arca de noé no romance cacau um leitura metafórica

36
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO CAMPUS XIV COLEGIADO DO CURSO DE LETRAS COM HABILITAÇÃO EM LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURAS LICENCIATURA ANE TARCÍLA ARAÚJO MATOS ARCA DE NOÉ NO ROMANCE CACAU: UMA LEITURA METAFÓRICA Conceição do Coité 2012

Upload: uneb

Post on 23-Jun-2015

1.431 views

Category:

Documents


1 download

TRANSCRIPT

Page 1: Arca de noé no romance cacau um leitura metafórica

UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO – CAMPUS XIV

COLEGIADO DO CURSO DE LETRAS COM HABILITAÇÃO

EM LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURAS –

LICENCIATURA

ANE TARCÍLA ARAÚJO MATOS

ARCA DE NOÉ NO ROMANCE CACAU: UMA LEITURA

METAFÓRICA

Conceição do Coité

2012

Page 2: Arca de noé no romance cacau um leitura metafórica

ANE TARCÍLA ARAÚJO MATOS

ARCA DE NOÉ NO ROMANCE CACAU: UMA LEITURA

METAFÓRICA

Monografia apresentada ao Departamento de Educação da

Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Curso de

Letras com Habilitação em Língua Portuguesa e

Literaturas – Licenciatura, como parte do processo

avaliativo para obtenção do grau de Licenciado em Letras.

Orientador: Prof. José Plínio de Oliveira

Conceição do Coité

2012

Page 3: Arca de noé no romance cacau um leitura metafórica

CONVITE

E quando a viola gemer nas mãos do seresteiro na rua

Trepidante da cidade mais agitada, não tenhas moça,

Um minuto de indecisão. Atende o chamado e vem.

A Bahia te espera para sua festa quotidiana. Teus olhos

Te encharcarão de pitoresco, mas se entristecerão também

Diante da miséria que sobre nestas ruas coloniais onde se

Elevaram, violentos, magros e feios, os arranha-céus modernos.

(AMADO, 1991, p. 11)

Page 4: Arca de noé no romance cacau um leitura metafórica

DEDICATÓRIA

Dedico esta conquista as pessoas mais importantes da minha vida.

À minha avó Romilce, uma estrela no céu que ilumina os meus passos

diariamente; a melhor pessoa que já conheci em toda a minha existência. Deus

precisava de mais u anjo no céu e por isso a tirou da Terra.

Aos meus pais, Umberto e Zetinha, por todo esforço e carinho durante toda a

minha trajetória, por me ajudarem de todas as maneiras.

Ao meu filho Henry, por me fazer entender o significado do verdadeiro amor,

por me doar o sorriso mais lindo do mundo, por me fazer feliz nos momentos mais

tristes; por me amar como sou.

Aos meus familiares e amigos, por sempre estarem na torcida pelo meu

sucesso, por compreenderem as minhas ausências e continuarem gostando de mim

mesmo quando estive totalmente distante.

Ao meu esposo, por estimar meu crescimento, por sempre me aconselhar a

seguir em frente, a estudar, a buscar um ideal. Por demonstrar um sentimento forte

por mim, mesmo quando nem eu me suportava, quando o nervoso era bem maior do

que eu.

Aos mestres que tive durante toda a jornada de vida pessoal, estudantil e

acadêmica.

Essa vitória não é só minha, é nossa!

Page 5: Arca de noé no romance cacau um leitura metafórica

AGRADECIMENTOS

À Deus, primeiramente, por me conceder a vida e o direito de usufruí-la. Por

trilhar meu caminho, por me fazer chorar para aprender a acertar; por me fazer sorrir

e chorar em meio as conquistas.

Aos meus pais, por sempre me ensinarem que o estudo é o que de melhor o

ser pode ter, e assim lutarem comigo pela graduação. Por sempre estarem do meu

lado, auxiliando, apoiando e corrigindo os meus erros.

Ao meu filho, o meu grande amor, por entender as minhas ausências nas

suas tardes, por me doar o melhor abraço, o melhor beijo, o melhor carinho. Por tão

pequeno se preocupar comigo e sempre querer me ver sorrindo. Por me fazer voltar

a ser criança como ele, por me proporcionar os melhores momentos.

À meu avô Amorzinho, por demonstrar um carinho único, pela sabedoria

passada. Por prosear comigo sobre diversos assuntos, auxiliando no meu

crescimento.

À Everton, meu esposo, por entender minhas falhas, meus estresses, minha

correria nesse tempo da graduação. Pôr continuar gostando de mim e me dando o

seu melhor, mesmo em meio a turbulências; por sonhar junto comigo com o meu

sucesso.

À minha família, por me ajudar nesse processo de crescimento intelectual, e

natural. Por me incentivar a continuar, mesmo quando pensei que não conseguiria

mais. Em especial, às minhas tias Sileide, Romilza e Urânia, que o tempo todo

sabiam que eu seria vitoriosa, sempre apostaram em mim, nos meus estudos, na

minha vontade e capacidade de crescer. E ainda, por sempre me ajudarem nos

momentos difíceis, com conselhos e palavras de conforto, por demonstrarem querer

me ver brilhar.

Ao meu irmão Juninho e a Antonia, por estarem do meu lado, mesmo quando

brigamos, por segurarem minha mão para eu não cair. Por me deixarem muito

chateada as vezes, mas depois tudo passar e estarmos rindo de novo juntos.

Page 6: Arca de noé no romance cacau um leitura metafórica

Aos professores da Uneb, em especial Eugênia e Plínio, pois, a primeira foi a

que mais brigou comigo durante todos esses anos, e também a que mais me

ensinou; e ainda, é ela a que posso dizer que foi a “mãe” que tive na graduação,

pois sempre me ajudou, reclamou, puxou a orelha, mas jamais desgostou de mim,

ao contrário, sempre mostrou um carinho; o que é recíproco. E ao meu orientador,

por ser mais que um companheiro no estudo amadiano, por vibrar comigo nas

conquistas e estimar um maior desenvolvimento intelectual para mim, por almejar o

mestrado e sempre me deixar otimista.

Aos meus colegas e amigos da graduação, por serem mais que uma família

temporária, por formarem comigo laços eternos. Por me marcarem na escola da vida

e com certeza, por me deixarem muitas saudades de hoje em diante.

As serventes da faculdade, por me demonstrarem uma amizade, por sempre

quererem me ver alegre, por me desejarem sempre uma boa tarde, pessoas boas e

que fazem da instituição não só estudos intelectuais, mas também vivências.

A todos, muito obrigada. Vocês foram fundamentais nesta vitória!

Page 7: Arca de noé no romance cacau um leitura metafórica

RESUMO

O estudo de a Arca de Noé no romance Cacau: uma leitura metafórica é um exercício de significação acerca das civilizações pré e pós-diluvianas, pois, põe-nos a repensar questões identitárias; enquanto a primeira encontrava-se no limiar entre o angélico e o humano, a segunda vive na “caça” do homem pelo homem no universo sertão. Através do romance Cacau, Jorge Amado demonstra os riscos do mundo capitalista, o qual asfixia e engole as classes que se encontram à margem da sociedade detentora do capital. Tratando do ciclo cacaueiro, fica explícito, nesta obra, a disparidade entre dois grupos sociais: o dos trabalhadores cacaueiros e o dos coronéis, detentores das fazendas dos frutos valiosos. Objetivando estudar o discurso bíblico na obra amadiana, busca-se o estudo metafórico existente nos dois ambientes, no eixo da sobrevivência dos seres. Sendo assim, tratando dos excluídos sertanejos na obra, é pretendido denunciar a hipocrisia da sociedade. Este estudo foi movido por uma metodologia de cunho bibliográfico, voltando-se para obras como Da Diáspora, de Hall (2003); Vidas Secas, de Ramos (2003); O Menino Grapiúna, de Amado (1982); dentre tantas outras que tratam de temas relacionados à vida humana. Estabelecida a relação entre a história bíblica (Arca de Noé) e a Literatura (Cacau), o resultado da pesquisa é relevante pelo fato da confirmação que o capitalismo não traz melhoria de vida à classe marginalizada, ao contrário, faz dos trabalhadores reféns da sociedade de bens; humilhados e menosprezados, vivem subalternamente. Confirma-se, portanto, que o capitalismo não é uma boa escolha para o homem, pois, corrompe valores humanos, os quais eram vividos na sociedade antes do dilúvio. Palavras- chave: Arca de Noé. Sociedade. Capitalismo. Marginalização.

Page 8: Arca de noé no romance cacau um leitura metafórica

ABSTRACT

The study of the Ark of Noah in the novel Cocoa: a metaphoric reading is an exercise about

the significance of civilizations and post-diluvian there fore brings us to rethink questions of

identity, while the first was at the thres hold between the angelic and human lives in the

second "game" of man by man in the universe interior. Through out the

novel Cocoa, Jorge Amado demonstrates the risk sof the capitalist world, which chokes

and swallows the classes that are outside the company that owns

the capital. Since the cocoa cycle, is explicit in this work, the gap between two social groups:

the workers and the cacao colonels, holders of valuable fruit farms. Aiming at studying

the Bible talk amadiana in the work, the study seeks to metaphorical exists in both

environments, the axis of the survival of human beings. Thus, treating the

excluded backland in the work, is intended to expose the hypocrisy of society. This study

was motivated by a bibliographical methodology, turning to such works

as The Diaspora, Hall (2003), Barren Lives, Palm (2003),The Boy Grapiúna, Amado (1982),

among many others dealing topics related to human life. The relationship between

the biblical story (Noah's Ark) and Literature (Cocoa), the search result is relevant because of

the confirmation that capitalism does not bring better life to the marginalized class, by

contrast, makes workers hostage Society goods, humiliated and despised, living

subalternamente. Confirms, therefore, that capitalism is not a good choice for the

man, therefore corrupts human values, which were experienced in society before the flood.

Keywords: Noah's Ark. Society. Capitalism. Marginalization.

Page 9: Arca de noé no romance cacau um leitura metafórica

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 10

1. NOÉ E AS CIVILIZAÇÕES PRÉ E PÓS- DILUVIANAS 12

1.1 Comunidade fraterna e o castigo divino 12

1.2 A pombinha pesquisadora de Noé 14

1.3 Jorge Amado, o Noé do dilúvio cacaueiro 16

2. A PESQUISA METODOLOGICA EM “CACAU” 22

2.1 Compreensão de pesquisa bibliográfica 22

2.2 O passo a passo investigado 23

2.3 Entendendo a escolha e a organização da pesquisa 24

3. “CACAU”, A FOLHA DÓLAR QUE ATRAI O SERTANEJO 26

3.1 Entendendo o fenômeno migratório e as esperanças no Sul do Cacau 26

3.2 A relação entre Jorge Amado e o Cacau 28

3.3 Um olhar sobre a obra amadiana 31

CONSIDERAÇÕES FINAIS 35

REFERÊNCIAS 36

Page 10: Arca de noé no romance cacau um leitura metafórica

INTRODUÇÃO

Compreendendo que a Literatura se apropria da linguagem comum

ressignificando-a, transformando-a em arte, faz-se representação da realidade,

trazendo à tona, na ficção, textos com vida própria, que muito expressam. Jorge

Amado, a partir de suas inferências da realidade de flagelo e exclusão econômico-

social da classe trabalhadora das fazendas cacaueiras, apresenta, em sua obra

“Cacau”, a crueldade do ser homem em relação ao próprio homem, o qual movido

pela ganância e falta de solidariedade subestima e aprisiona a sua própria espécie.

Amado torna-se, nesta obra, um Noé, bem como o personagem existente na

“Sagrada Escritura”, metáfora essa que é a base e a fomentação desse estudo.

Estabelecendo uma conexão / relação entre a história bíblica da Arca de Noé,

contida no Gênesis, e o romance “Cacau” do autor Jorge Amado, exprimem-se

características metaforicamente comuns entre os dois ambientes, afinal, ambos

tratam de seleção; enquanto Noé seleciona os animais que adentrarão à Arca,

Amado demonstra, em sua obra, os bichos homens flagelados que migram para o

Sul da Bahia em busca de ascensão; de melhoria de vida, os quais, desde o

momento que entram no navio, sofrem a diferenciação de classe social, igualmente

a seleção feita por Noé. Em face desta leitura, podemos questionar: até que ponto

essa realidade de flagelo social é imperativa na vida das populações sertanejas do

Nordeste Brasileiro, abordadas nesse romance de Jorge Amado? Como entender as

relações entre a obra “Cacau” de Jorge Amado e a Arca de Noé, no âmbito da

Sagrada Escritura?

O escopo do trabalho é a análise da possível ligação existente entre os textos

(Cacau e a Arca), correlacionando aspectos de vida nos dois meios. Buscaram-se,

nesse viés, referências acerca do tema proposto, para a realização do estudo e

escrita do trabalho. Muitas foram as obras selecionadas, dentre elas pode-se citar:

Da Diáspora, de Hall (2003); Desconversa, de Galvão (1998); Metáfora, de Lopes

(1987); Vidas Secas, de Ramos (2003). Com uma metodologia de caráter

bibliográfico, a leitura do objeto investigado averiguará se o capitalismo traiu os

grapiúnas sertanejos.

Page 11: Arca de noé no romance cacau um leitura metafórica

O presente texto está dividido em três partes: capitulo primeiro – voltado para

as sociedades pré e pós-diluvianas, recontando a história bíblica da Arca de Noé e

mostrando posteriormente o Noé (Amado) do capitalismo, que aborda na obra

literária (Cacau) a seleção dos bichos homens -; capítulo segundo – que demonstra

os passos metodológicos aplicados à pesquisa – e, capítulo terceiro – análise dos

textos, traçando a possível relação entre os dois ambientes (Cacau e a Arca de

Noé).

Enfim, partindo-se de diversas leituras e da extração de informações dos

textos, têm-se o resultado do estudo: o trabalho monográfico constituído.

Page 12: Arca de noé no romance cacau um leitura metafórica

1. NOÉ E AS CIVILIZAÇÕES PRÉ E PÓS- DILUVIANAS

Neste capítulo primeiro a análise se debruça no que foi e como se deu a

construção da arca de madeira pelo carpinteiro Noé, explicando por ora o porquê da

construção dessa Arca e o acordo entre Deus e o carpinteiro. E, principalmente,

como o próprio título diz, trata-se da diferenciação das sociedades antes e depois do

dilúvio; enquanto a primeira é próspera, feliz e conserva valores como moral e ética,

a posterior é totalmente avessa, corrompida pelo capitalismo. Jorge Amado é, pois,

nesse momento apresentado como outro Noé, o qual estratifica na obra “Cacau”

uma arca, só que com bichos homens, ou melhor, homens que “são” bichos para a

sociedade detentora do fruto lucrativo; do cacau.

1.1 Comunidade fraterna e o castigo divino

O pensamento inicial sobre as civilizações pré e pós dilúvio, fundadas por

Noé, levam o leitor a praticar uma demanda de leitura prévia em que se propõe a

estabelecer uma relação de entendimento das linguagens de uma era muito remota

que inaugura a trajetória existencial da humanidade. Nesse sentido o leitor se dispõe

a compreender um mundo distante do que ele se encontra, também enquanto

humano e, portanto, herdeiro dessa história.

Compreendendo os aspectos da sociedade existente antes do dilúvio,

percebe-se que aquela foi uma era da humanidade fraterna, feliz, inclusiva e

solidária no sentido estrito do termo. Antes do dilúvio a humanidade viveu uma era

em que provavelmente “casavam-se e davam-se em casamento” (Lc 24, 38-9), ou

seja, era um tempo onde a felicidade reinava e não existiam ameaças ou outras

formas de opressão, havia prosperidade, alongava-se a dimensão da vida em

comunidade, incluindo o outro, atribuindo valor à História da humanidade na Terra.

Nesta era não havia ódio entre os homens, fome, pobreza, miséria, pedofilia,

desemprego, violência contra a mulher, preconceito, mas sim amor e cultivo dos

Page 13: Arca de noé no romance cacau um leitura metafórica

sentimentos mais elevados. Esta sociedade teve um único pecado: caiu em uma

espécie de abismo existencial, matando a cultura, bem como valores e princípios, da

moral, da ética e da dignidade em que também sucumbimos – por conseqüência e

cujos ônus ainda persistem neste tempo presente.

Uma civilização que desobedeceu às orientações do Criador e que teve o

dilúvio como forma de expiação, deixou-nos o seguinte legado:

Por conta do arrependimento de Deus de ter posto o homem na Terra, pelo fato da

malícia (corrupção) deste perante os valores proclamados pela divindade, o Criador

com muita dor e compaixão resolveu destruir o ser por ele criado, estendendo, pois,

sua vingança desde o homem até todas as espécies de animais (os que voavam,

que se arrastavam e que andavam). Naquele contexto, Deus se viu diante de Noé,

um homem justo e perfeito, filho de Lamec, um dos grandes patriarcas da origem

humana, e que andou com Ele todo o tempo.

Noé havia gerado três filhos: Sem, Cam e Jafé, os quais assim como Noé,

tinham mulheres. O Criador, então, em face da Terra corrompida pela criatura

humana, manda Noé fazer uma arca de madeira, com três andares, para que ele e

sua família, bem como um casal de cada animal existente no Planeta (na intenção

de não aniquilar totalmente as espécies no Universo existentes, e sim restar destas

um casal para procriar e povoar o meio ambiente mais tarde) pudessem, assim,

salvar-se do castigo ou da vingança; dizendo ele a Noé, que mandaria um dilúvio de

águas sobre o Planeta Terra e que faria perecer todas as espécies viventes que

existissem debaixo do céu e que consumiria tudo que estivesse sobre a Terra.

Mandou ainda Noé depositar na Arca todos os estoques de víveres, destinados à

segurança alimentar e nutricional da sua família e das espécies da fauna então

recolhida nos espaços próprios da Arca. No momento em que o Senhor conversa

com Noé, este fala o porquê de o estar salvando, enfatizando o quanto ele foi justo

diante do homem, ao contrário dos outros homens que viviam no Planeta.

Sete dias se passaram, a chuva começou a cair, Noé com toda a sua família

e as espécies da fauna estavam dentro da Arca. As cataratas do céu foram abertas,

chovendo, pois, quarenta dias e quarenta noites. As águas da chuva foram tão

fortes, a ponto de elevar a Arca (construída por Noé sob orientação divina) muito alta

por cima da Terra, levando-a sempre sobre a Terra. Tudo foi coberto pelas águas, o

Page 14: Arca de noé no romance cacau um leitura metafórica

Planeta inundou-se, todas as espécies de animais morreram, os homens pereceram

e tudo o que havia abaixo do céu não resistiu, chegando ao fim, a não ser os seres

que estavam na Arca, únicos que ficaram com vida. As águas só aumentavam com

os dias, e a chuva cobriu a superfície terrestre por cento e cinquenta dias.

1.2 A Pombinha pesquisadora de Noé

O Senhor, lembrando-se do acordo por ele feito com Noé, que após cento e

cinqüenta dias as águas cessariam, mandou um vento forte sobre o Planeta para a

diminuição das águas, fez com que as chuvas parassem e as águas de cima da

Terra se retirassem. Quarenta dias se passaram, a arca estava estacionada sobre o

monte Arará, situado na atual Armênia, Noé resolveu abrir a janela da Arca e deixou

sair um corvo, o qual não retornou antes das águas que estavam sobre a terra se

secarem; em seguida Noé soltou uma pomba, a qual desenvolveu uma espécie de

pesquisa para Noé, pois, esta foi averiguar se as águas já haviam se retirado de

cima da Terra, como isso ainda não tinha acontecido e a pombinha não teve onde

pousar, pelo fato das águas ainda estarem na superfície terrestre, esta retornou à

Arca, voltando a sair somente depois de mais sete dias, retornando também para à

Arca, mas só no final da tarde e trazendo no bico um ramo de oliveira, que Noé leu

como um texto narrando a retirada das águas. Uma espécie de carta de despedida.

Ainda assim Noé esperou mais sete dias, e novamente deixou a pomba ir, a qual

não retornou a Arca, tendo Noé entendido que as águas haviam cessado e que este

era o momento de abrir a Arca e sair com todas as espécies, pois, já haviam se

salvado. Noé abriu o teto da Arca e viu que a superfície terrestre estava seca; o

Senhor, portanto, mandou Noé se retirar da Arca, com todos que lá estavam, pois,

deviam sair para procriar e povoar a terra; e assim foi feito.

Deus, enfim, resolveu que não mais amaldiçoaria a Terra, que não mais

encerraria o ciclo de vida através do dilúvio e disse ao lavrador (Noé) que daquele

momento por diante o que haveria de acontecer eram exatamente punições de

acordo o cometido, por exemplo, se o homem cometesse derramamento de sangue,

ele ira responder (pagar) por isso. E este foi o último acerto de Deus com Noé.

Page 15: Arca de noé no romance cacau um leitura metafórica

Com a leitura da Arca de Noé visualiza-se a pombinha como um símbolo/

representação de sobrevivência, ela mesma se tornou para Noé uma pesquisadora,

pois, dialoga com a Terra a possibilidade de vida. Sem muitas características acerca

da pombinha, suscitam-se indagações sobre sua cor, seu aspecto físico e mesmo o

seu tamanho, que são dados ainda desconhecidos e que nos faz pensar na teoria do

ocultismo para a não existência do preconceito, ou seja, o texto bíblico em nenhum

momento revela se a pomba é ou não branca, para que não pensemos sobre

questões humanas como a cor e a raça. Contudo, Noé compreende os resultados da

pesquisa da pombinha, ele vai lendo os resultados trazidos por ela, desde o

momento em que ela sai à primeira vez, retornando para a Arca com os pés sujos de

lama, fazendo Noé entender que as águas ainda reinam e que não é o momento de

sair; bem como quando volta pela última vez trazendo no bico uma folha verde de

oliveira, representando para o patriarca Noé uma grande leitura: a existência do

verde, do surgimento de alimento, da esperança de vida.

É perceptível, pois, a importância da pesquisa da pombinha, ela coleta dados

pacientemente, esforçando-se a todo tempo e sendo perseverante, bem como tem

todo um cuidado em realizar a seleção dos dados colhidos no momento de passá-

los para Noé, que codifica essas informações. A Arca também é convertida em um

laboratório de pesquisa, pois é nesse lócus que os dados da pombinha são tratados

e interpretados, para logo depois serem passados para o outro, para o mundo, enfim

para posteridade. No momento da pesquisa a pombinha faz deslocamentos e

movimentos tanto no sentido físico como no intelectual, pois é uma pesquisa de

caráter sustentável, capaz de garantir a plenitude à humanidade, afinal à pombinha

nos ensina que os resultados de uma prática de pesquisa são destinados à melhoria

da qualidade do mundo enquanto espaço humano. Portanto, faz-se visível que o

corrompimento humano não é culpa da pombinha, mas sim dos desejos e vontades

do ser, que elevados pela vaidade e ganância acabaram motivados por vontades

contrárias a do Pai Criador.

Nesta perspectiva de leitura, cabe ao mundo contemporâneo empreender a

releitura dos resultados da pesquisa da pombinha, visando agora a realizar a

ortopedia desse mundo. Esse símbolo dialoga, portanto, com a sociedade pós-

diluviana, com o “Cacau”, em que Jorge Amado é, pois, um outro Noé.

Page 16: Arca de noé no romance cacau um leitura metafórica

1.3 Jorge Amado, o Noé do dilúvio cacaueiro

A cultura brasileira no ano de 1922 buscava afirmar-se através da Semana de

Arte Moderna, um verdadeiro dilúvio de linguagens, ocorrida em São Paulo, sendo

um movimento no qual as estruturas envelhecidas da arte e da Literatura no Brasil

ansiavam por se equiparar às da Europa com todas as suas vanguardas. Os ideais

da semana de 22 eram voltados a propostas nacionalistas, ou seja, ao desejo de

fazer uma Literatura calcada na realidade brasileira.

A Literatura de 1930 aparece, pois, com duas vertentes paralelas: a corrente

regionalista (que diz respeito tanto ao meio rural quanto às zonas suburbanas das

grandes capitais) e a corrente psicológica (que faz a analise do comportamento

humano por si mesmo e em face de outros). Têm-se, portanto, a relação do homem

com o meio, que é a matéria-prima do regionalismo, com um conceito de afirmação

da realidade brasileira.

A ficção brasileira tem fisionomia e comunicação verbal próprias: o povo, a

paisagem, os costumes, os tipos e patologias sociais, os problemas, tudo e todos

integrantes de um mundo brasileiro, mas não por isso menos universal. Muitos foram

os autores que narraram o Brasil em seus romances, fazendo Literatura com a “cara

da nação”, entre eles figura Jorge Amado.

A importância de Jorge Amado veio do caráter seco, participante e, todavia lírico dos seus primeiros livros, que descrevem a miséria e a opressão do trabalhador rural e das classes populares. [...] Um dos traços característicos da sua maturidade foi a mistura de realismo e romantismo, de poesia e documento, voltando-se para os pobres, para a humanidade da gente de cor da sua terra, que apresenta com uma simpatia calorosa, um vivo senso do pitoresco, e, sempre, um imperativo de justiça social sobrepairando a narrativa. (CÂNDIDO, 1983, p. 271).

Amado demonstra em seus escritos uma mistura de passado e presente,

pois, fatos por ele dantes pronunciados caracterizam a sociedade deste século

também. O romance realista de Jorge Amado tem a peculiaridade de trabalhar as

questões sociais de forma muito acentuadas. As relações entre homens, sociedade

e capitalismo são tratadas com toda a crueza típica do mundo dos conflitos e das

Page 17: Arca de noé no romance cacau um leitura metafórica

contradições enfrentadas pelas classes oprimidas, na perspectiva da subsistência

material. Jorge Amado escreve, pois, de acordo com a realidade, vindo a Literatura a

se constituir com base na visualização desta, que a partir do reflexo visto,

desenvolve-se, sendo esta sobrecarregada de significação; utiliza-se das mais

diferentes linguagens, para criar a partir da palavra uma imitação (mimese) do já

existente. Jorge Amado é o ficcionista mais popular do país. Sua obra tem se

caracterizado pela adesão afetiva do narrador aos fatos que relata. (JUNIOR;

CAMPEDELLI, 1999, p. 261).

A década de 30 traz marcada na Literatura a ênfase do social, voltando-se

para os problemas regionalistas enfrentados pelo país; de cunho popular, trata dos

problemas do povo brasileiro a partir da escrita narrativa da língua falada pelos

diversos setores humanos. É como relata Cândido (1983, p. 123) um romance

fortemente marcado de neonaturalismo e de inspiração popular, visando aos dramas

contidos em aspectos característicos do país. Jorge é um escritor que junto com

Rachel de Queiroz, Graciliano Ramos, José Lins do Rêgo, e outros, integram o

modernismo brasileiro, pertencente ao grupo chamado “Regionalista”, que tem esse

nome dado pela crítica por conta de denunciarem e anunciarem a vida do povo

nordestino.

Sendo Jorge um dos maiores romancistas de nosso país (DIAS, 2008, p.

234), percebe-se em seus escritos o amor pelo seu povo e pela Bahia, sempre

retratando a realidade destes dois signos em seus escritos. Bosi (1994) diz ser Jorge

Amado o contador de histórias regionais adaptadas em seus romances, utilizando na

grande maioria das vezes de uma linguagem de baixo calão, que veio trazer o

populismo literário para as suas narrativas. Ainda segundo tal crítico literário, o autor

divide a sua obra em fases da vida baiana, demonstrando o seu gosto por temas

sociais e pela Bahia. É, pois, conhecido como um escritor popular, justamente pelo

fato de trazer o povo em suas histórias, ele conta sobre esse povo, sobre essa

classe marginalizada, sem vez e sem voz; há então na sua arte literária a

reinterpretação histórica dessa Bahia por ele tão querida, mas tão cheia de

contradições na questão humanitária de valores.

Page 18: Arca de noé no romance cacau um leitura metafórica

Assim, é perceptível na obra “Cacau”, essa conotação peculiar da

Linguagem, afinal, encontramos nesses escritos um realismo premeditadamente

intoxicado de historicidade, onde a exclusão é uma forte característica.

No romance “Cacau”, o autor deixa explicita a ganância humana, onde há a

exploração do homem pelo homem na busca do capital. O cacau, conhecido como o

dólar do sertão, traz a idéia de ascensão para os nordestinos, que iludidos com o

suposto crescimento de vida saem da sua terra natal e vão trabalhar nas fazendas

do sul da Bahia, demonstrando o fenômeno da migração sertaneja (que em geral

é impulsionado pelas expectativas de conquistar melhores condições de vida), dos

indivíduos castigados pela seca e marcados pela pobreza, que visam a ter a sua

força de trabalho reconhecida e esperam serem melhor remunerados. Os migrantes

trabalhadores viajam de trem; das estações mais próximas dos seus lugares de

origem até a capital mais desenvolvida; de cujo porto sai o navio para o Sul,

sofrendo desde esse momento a seleção de classes em vagões de passageiros,

bem como a feita por Noé, para entrar nas camadas estratificadas da Arca.

O autor demonstra, portanto, uma visão critica do país, onde, denuncia a

exploração dos trabalhadores que são esmagados pela opressão capitalista nesse

universo sertão, onde, nem as crianças têm mais esperança de ascensão de vida.

Caatingas do sertão, dor das florestas sertanejas, o manso andar do trem sertanejo. Homens de alpercatas e chapéu de couro. Crianças que estudam para cangaceiros na escola da miséria e da exploração do homem. (AMADO, 2008, p. 248)

Estes homens sofrem todo tipo de exploração, são menosprezados e vivem

em condições subumanas de sobrevivência, trabalham como animais e devem além

do que recebem aos coronéis, configurando uma realidade verdadeiramente inferior

e injusta, na qual o homem passa a ser devorado pelos obstáculos que o meio e a

condição de vida estão o infligindo. A narração desta obra se deve a um ex-

trabalhador destas fazendas cacaueiras, conhecido como Sergipano, que depois de

conseguir mudar o rumo da sua vida resolve contar a vida de miséria dos

trabalhadores do cacau nessa sociedade distinta, onde poucos têm muito e muitos

Page 19: Arca de noé no romance cacau um leitura metafórica

não têm nada. Além de tudo, os que detêm o capital ainda tiram o pouco que os

trabalhadores conseguem obter com o trabalho duro e suado que exercem.

[...] Se lhe dessem o que era dele, estava certo. Não davam. Era um desgraçado, era como um cachorro, só recebia ossos. Por que será que os homens ricos ainda lhe tomavam uma parte dos ossos? Fazia até nojo essas pessoas importantes se ocuparem com semelhantes porcarias. (RAMOS, 2003, p. 94)

Os coronéis são os homens detentores do capital, um mundo diferente do dos

trabalhadores, que pagam com o seu suor a sua sobrevivência; [...]a culpa era da

sociedade mal organizada, era dos ricos [...](AMADO, 2008, p. 112), eles

trabalhavam de sol a sol e pouco ou nada obtinham.

A despensa levava todo nosso saldo. A maioria dos trabalhadores devia ao coronel e estava amarrada à fazenda. (AMADO, 2000, p.5)

[...] Passar a vida inteira assim no toco, entregando o que era dele de mão beijada! Estava direito aquilo? Trabalhar como negro e nunca arranjar a carta de alforria! (RAMOS, 2003, p. 94)

Jorge, portanto, compreende o universo psicológico de seus personagens,

nesta obra “Cacau”, por exemplo, ele denúncia à exploração sofrida pelos

trabalhadores, demonstrando as lutas físicas e mentais que eles sofrem.

Na obra de Jorge Amado compreende-se, pois, a diferença dessa sociedade

pós-diluviana para a anteriormente citada. A civilização pós-diluviana é marcada por

contradições existenciais, é uma sociedade muito pouco fraterna. O homem nesta,

encontra-se indignado com o dilúvio e tenta imprimir na Terra a marca da sua

presença eterna, que agora luta para resistir ao dilúvio capitalista que visa arrastar o

ser humano para o abismo da desumanização. Este ser humano sofre, pois, com a

falta de sentimentos, os quais reinaram por muito tempo na sociedade pré-diluviana,

homem este que esta causando a sua própria extinção, diariamente comete erros

Page 20: Arca de noé no romance cacau um leitura metafórica

com sua própria raça, derrama seu próprio sangue, impede as crianças e

adolescentes de tentarem trazer fraternidade e prosperidade a este mundo.

O homem aqui pensa somente em si, não olha o próximo, visa tão somente

seu crescimento material, nem enxerga a sua interioridade, muitas vezes nem

conhece a si mesmo, mas, é capaz de atos de carnificina contra o outro, é um ser de

muita coragem e muita falta de amor por si próprio e pelo próximo. Contudo,

percebe-se que as crises existenciais e os problemas mentais perduram nessa

sociedade em crise, e este é um fator relevante no quesito da desumanização

profunda em que esta sociedade está imbricada. Seres fortemente marcados com as

corrupções e degenerações do século vigente. Deus avisou a Noé o quanto a

sociedade pré-diluviana havia errado e explicou o porquê do dilúvio, mas, esta

atualidade vai além dos erros passados, comete homicídios, suicídios, vivem em

preconceitos, não aceita as diferenças de raça e humanas, mata crianças que nem

tiveram tempo de escolher os seus destinos, esta comunidade não se deu conta do

mal que esta causando a si mesma e não entende a dor que o Pai Criador está

sentindo com a perda de valores éticos e humanos desta sociedade.

Mediante a práxis da leitura empreendida pela pombinha, fica evidente que o

antídoto contra os malefícios do capitalismo é a prática da leitura e do cultivo dos

sentimentos mais elevados, ainda que os dilúvios das contradições capitalistas

tentem encurralar os homens nos porões das arcas das favelas, das prisões, das

sarjetas, das ruas, dos flagelos e das segundas-classes dos navios que transportam

trabalhadores a serem escravizados nas grandes fazendas de Cacau, o que se

conclui é uma imperativa construção de uma sociedade capaz de interpretar o

homem no prisma de uma história em que direitos, justiça e igualdade constituem as

bases de estabelecimento de uma sociedade fraterna.

O dilúvio marca, portanto, o fim de uma sociedade insustentável pelas

contradições criadas pelo próprio homem, na mesma perspectiva em que se

estabelece uma nova era material, ou seja, de um novo mundo em que a pessoa

humana supera todas as mazelas que fizeram sucumbir o que existiu antes. É assim

também o capitalismo contemporâneo, com todas as suas formas de injustiças, que

inspiram o escritor Jorge Amado a criar o seu mundo literário.

Page 21: Arca de noé no romance cacau um leitura metafórica

2 A PESQUISA METODOLÓGICA EM “CACAU”

No capítulo vigente têm-se os preceitos metodológicos que direcionam o

estudo de caso, discorrendo sobre as técnicas aplicadas na pesquisa, explicando

como se deu a investigação e a escolha do tema, bem como se desenvolveu a

coleta de dados, análise e seleção das informações acerca dos textos suportes da

pesquisa.

Do ponto de vista metodológico o estudo da obra Cacau, de Jorge Amado,

requer uma acentuada leitura dos pressupostos que orientam as relações de leitor

para com a arte modernista, porque esse autor integra a plêiade de escritores

surgidos naquele contexto literário.

2.1 Compreensão de pesquisa bibliográfica

Neste capítulo, são abordadas as bases metodológicas que organizam esta

pesquisa bibliográfica. A metodologia é um conjunto de técnicas, procedimentos,

métodos e regras que servem de indicativo da realização da pesquisa, ou seja,

demonstra as etapas do processo de estudo, análise e produção do texto.

Entendendo por técnica “um conjunto de preceitos ou processos de que se

serve uma ciência ou arte [...]” (MARCONI; LAKATOS, 2006, p. 176), o estudo

bibliográfico realizado além de se debruçar sobre a bibliografia já pública, traz à tona

um novo estudo, uma nova proposta sobre o assunto. Portanto, Marconi e Lakatos

(2006, p. 71) definem a pesquisa bibliográfica como o levantamento, a seleção e a

documentação de toda bibliografia [...].

Este trabalho teve um caráter bibliográfico, justamente por se utilizar de

leituras. O método de abordagem utilizado foi o hipotético-dedutivo, pois na

elaboração do trabalho criaram-se hipóteses como pressupostos dos que buscam

comprovações aos questionamentos iniciais para o estudo do caso em questão.

Page 22: Arca de noé no romance cacau um leitura metafórica

Corroborando, de acordo às leituras e às análises realizadas, a terceira

hipótese contida no Projeto de Pesquisa, cuja trata que se a realidade de flagelo

social impera na vida dos grapiúnas sertanejos, o capitalismo pode ter traído essa

demanda de trabalhadores, ou seja, iludiu-os, fez com que tivessem esperança de

ascensão econômico-social e agiu contrariamente, deixando-os miseravelmente e à

margem de tudo e de todos. Enfim, conclui-se pois, a perversidade da dominação

capitalista que submete e massacra os trabalhadores oprimidos.

Os procedimentos aplicados foram o histórico, revisitando a Sagrada

Escritura; o comparativo, visualizando a metáfora entre os dois textos que tratam da

seleção de animais e do bicho homem; e ainda, e principalmente, o monográfico

(estudo de caso), examinando minuciosamente diversas bibliografias e escrevendo

concretamente acerca do tema proposto. A fenomenologia teve uma abordagem

qualitativa, com etapas investigativas e diversas informações da analise acerca do

tema em foco, buscando compreender os dados significativos da pesquisa,

descrevendo-os e investigando-os diretamente.

2.2 O passo a passo investigado

A leitura e a análise do romance “Cacau”, de Jorge Amado e da história

bíblica da “Arca de Noé”, presente na Sagrada Escritura, foram as primeiras etapas

investigativas na relação da arca estratificada.

Posteriormente, durante o levantamento, fichamento e análise bibliográfica,

outros livros foram selecionados e acrescidos a este estudo, como “Da Diáspora”, de

Hall (2003); “Desconversa”, de Galvão (1998); “Metáfora”, de Lopes (1987); “História

da Literatura Brasileira”, de Moisés (2001); “História Concisa da Literatura Brasileira”,

de Bosi (1994); “As Transformações da Literatura Brasileira no século XX”, de Lucas

(1989); “O Menino Grapiúna”, de Amado (1982); “Bahia de Todos os Santos”, de

Amado (1991); “Fragmentos de História”, de Souza (2008); “Vidas Secas”, de Ramos

(2003); dentre tantos outros que também foram somados a este estudo bibliográfico.

Page 23: Arca de noé no romance cacau um leitura metafórica

Além dos textos em análise, as diversas leituras feitas em outras obras

enriqueceram de informações o tema em foco, pois, extraíram-se dos teóricos,

citações e comentários importantes para a constituição do trabalho.

Sendo assim, a coleta de dados acerca do tema proposto foi um estudo acima

de tudo cultural, por conta de englobar a vida de trabalhadores nas fazendas

cacaueiras, com aspectos relacionados as explorações e mazelas sofridas por essa

classe marginalizada e desprezada pela sociedade detentora do capital de lucro.

Portanto, este estudo literário analisa questões relacionadas à vida humana,

buscando demonstrar o imperativo sofrimento de uma classe; através do eixo da

análise e interpretação dos textos. Conclui-se que é uma pesquisa bibliográfica

importante no quesito de apresentação e representação da vida humana.

2.3 Entendendo a escolha e a organização da pesquisa

A escolha do tipo de pesquisa foi feita por questão de afinidade com a área da

Literatura Brasileira. O autor selecionado aconteceu pelo fato da sua critica e sua

denúncia social, a qual serve de inspiração a esta sociedade que vive em crise

existencial de valores e que elege o dinheiro como meio de afirmação.

Conhecendo diversas obras amadianas, suscitou o questionamento acerca do

valor da vida humana e, após muitas leituras e análises, chegou-se ao denominador

comum que deveria ser “Cacau” a obra a ser estudada, mas, não como as

pesquisas já encontradas, cujas analisam, muitas vezes, um determinado

personagem e sua participação influente no texto, mas de maneira diferenciada, que

se tornasse um desafio e, ao mesmo tempo, um tema inovador. Neste quesito, foi

pensada a “Arca de Noé”.

Quando foi possível abordar os dois textos, “Arca de Noé” e “Cacau”,

metaforicamente, encontrando um ambiente comum, inicialmente se tornou mais

que um desafio, pelo fato de muitos perguntarem (e interrogarem de certa maneira)

se daria certo, se seria possível, se havia realmente o que se falar em conjunto

sobre dois ambientes distintos (o mito bíblico e o texto amadiano), mas que

Page 24: Arca de noé no romance cacau um leitura metafórica

demonstram, no decorrer da análise, serem comuns. Posteriormente, o trabalho

aumentou, tornou-se visível a metáfora da vida humana existente nesses dois

meios, com a sua diferenciação, e o estudo seguiu o trajeto junto com Sergipano

(personagem de “Cacau”).

A pesquisa ganhou vida própria e a análise e estudo do caso foram se

construindo aos poucos, visando o demonstrativo da fúria do capitalismo acirrado

das sociedades, afinal, trata-se de tempos únicos, uma sociedade antes do dilúvio e

a outra após o dilúvio. São trazidos para o estudo bibliográfico, o Noé da Bíblia e o

Noé (Amado) da sociedade corrompida.

A organização da pesquisa deu-se de maneira simples e objetiva, inicialmente

trazendo o mito do Noé pré-diluviano, posteriormente tratando da metodologia, que

visa justamente demonstrar o porquê e como se deu esta pesquisa; e, por fim,

buscando confirmações nos teóricos sobre o Noé Amado, cujo transcreve o íntimo

dos trabalhadores cacaueiros, conseguindo assimilar e escrever esta dor das

injustiças e diferenças sociais sofridas por esta classe trabalhadora.

Tendo se tornado visível esta realidade de flagelo social sofrida por esta

classe marginalizada, compreende-se o pouco valor do ser humano, o qual vale ou

não moedas, pois, o homem nesta sociedade passa a ser visto não pelos seus

valores adquiridos no berço familiar e ao longo da vida, mas pelos bens que possui.

Eis aqui um exercício de estudo da vida, da imperativa dor humana, a qual é

causada pelo próprio homem mediante a exploração do homem, regida por suas

próprias regras, um universo diferente do divino.

Page 25: Arca de noé no romance cacau um leitura metafórica

3. “CACAU”, A FOLHA-DÓLAR QUE ATRAI O SERTANEJO

Neste capítulo, inicialmente é explicado o fenômeno migratório da classe

sertaneja para o Sul da Bahia (mas precisamente Itabuna e Ilhéus); em seguida, é

demonstrado o porquê de Jorge Amado escrever sobre a vida no cacau e por último

traz-se as considerações sobre esta obra “Cacau”, motivação dessa pesquisa

bibliográfica.

Cacau, de Jorge Amado, inicialmente atrai a atenção do leitor porque amplia

as possibilidades de diálogo com outros discursos, por exemplo, o mito bíblico da

Criação, A Arca de Noé. Então adentrar à leitura desse romance é como principiar

um exercício de percepção de valores míticos, que incluem, inclusive, o mito do

capital.

3.1 Entendendo o fenômeno migratório e as esperanças no Sul do Cacau

Este capítulo é uma forma de leitura literária dos movimentos migratórios,

desenvolvidos por correntes de trabalhadores sertanejos atraídos por melhores

condições de vida humana. Inicialmente percebe-se que o homem no sertão do

flagelo social têm sérias implicações de natureza climática, de ordem econômica, de

projeto político, de educação escolar e até de espaço social, com motivações de

demandas geográficas.

Partindo-se do ponto de vista sócio geográfico, a migração tem como

significado um indivíduo ou um grupo de indivíduos que saem de suas fronteiras de

terra em demanda de outros territórios que lhe propiciem melhores condições de

sobrevivência. Muitos são os fatores que causam esse deslocamento, entre eles, o

principal é o fator econômico. As pessoas muitas vezes migram em busca de

trabalho e de melhores condições de vida. (COELHO; TERRA, 2003, p. 339).

Entendendo que é muito baixo o nível de vida da população nordestina (sem

contar na existência de uma classe dominante que é a minoria da população, que

concentra em suas mãos parte das riquezas regionais), milhões de brasileiros

Page 26: Arca de noé no romance cacau um leitura metafórica

migram para as demais regiões do Brasil, em busca de se reestruturem

economicamente. Grande parte dessa população flagelada migrou para o sul da

Bahia (Itabuna e Ilhéus), trabalhando nas fazendas de cultivo do cacau, importante

produto de exportação e enriquecimento para uma minoria, e de exploração da força

de trabalho de uma maioria oprimida.

O cacau é uma planta originária da floresta Amazônica, que se desenvolve a

sombra de outras árvores maiores (cultivo sombreado). Seus frutos, produtos, são

exportados de caminhões e de navios (para o Brasil e para o exterior). É uma das

principais atividades econômicas da Zona da Mata Baiana.

Sendo a Literatura uma apresentação da realidade, percebe-se, de acordo

com os Estudos Culturais, que os textos literários são transmissores da cultura, que,

na maioria das vezes, é determinada na sociedade por um grupo restrito de

pessoas, “elite”, que impõe como deve ser esse meio social e não dá “voz” aos que

estão à margem, que carregam consigo diversos fardos desde o nascimento, não

por opção, mas por imposição. Portanto, a Literatura é também uma forma de

manifestação social que se utiliza do poder do discurso da Linguagem e da Arte,

vindo esses estudos culturais a serem a prática da teoria literária. É nesse contexto

que a ficção brasileira ganha vida.

A ficção literária tem fisionomia e comunicação verbal próprias: o povo, a

paisagem, os costumes, os tipos e patologias sociais, os problemas, tudo e todos

integrantes de um mundo brasileiro, mas não por isso menos universal. Muitos foram

os autores que narraram o Brasil em seus romances, fazendo literatura com a “cara”

da nação, entre eles têm-se Jorge Amado, que buscou, nos marginalizados,

histórias para suas obras ficcionais de cunho realista.

Em se tratando do Sul do cacau, Amado, por ser filho de um proprietário de

fazendas cacaueiras, pôde visualizar o sofrimento dos trabalhadores que viviam na

esperança de crescerem, melhorarem de vida. Aqueles homens que trabalhavam de

sol a sol, e ali chegaram por acharem que, sendo o cacau um fruto lucrativo muito

valioso, iriam com ele enriquecer, mesmo sendo empregados e não detentores do

capital de lucro e das fazendas cacaueiras. Sendo o nordestino um “forte”, como

afirma Euclides da Cunha, esses esperançosos, com todo sofrimento que

Page 27: Arca de noé no romance cacau um leitura metafórica

passavam, ainda acreditavam que tudo daria certo com o tempo, que parecia não

passar, mesmo passando.

O fruto cacau seduziu todas as esferas sociais que viveram um jogo de

interesses econômicos. A população de pouca renda nordestina tinha duas opções

de mudança: São Paulo (a grande capital urbana e universo cafeeiro) ou o Sul da

Bahia, onde se encontrava o cheiro do chocolate, as matas cacaueiras. Duas

opções distintas, mas em algum ponto iguais: a ilusão do sucesso era a mesma e a

desilusão também. Muitos migraram para São Paulo, outros não partiram e

enfrentaram a Seca trazida pelo sol e ainda atrelada à existência; e o restante se

arriscou na busca do dólar do Sertão.

As migrações impulsionadas pela busca do sucesso e pelo cansaço do

fracasso fizeram com que os outros horizontes fossem sempre os melhores e,

portanto, a luta de vida se expandisse e os navios estratificados da Arca que

transportava os trabalhadores sertanejos continuassem a existir, resgatando

grandes levas de trabalhadores do dilúvio da pobreza para as promessas de

abastança no universo cacaueiro. O trabalhador Sergipano é um grande exemplo

desse drama da economia cacaueira.

3.2 A Relação entre Jorge Amado e o Cacau

Jorge Amado nasceu na fazenda Auricidia, no distrito de Ferradas, município

de Itabuna, no Sul do Estado da Bahia, em 10 de Agosto de 1912. Era filho do

fazendeiro de cacau João Amado de Faria e Eulália Leal Amado. Ao completar dois

anos de idade, junto com a sua família, vai morar em Ilhéus (cidade vizinha a

Itabuna), por conta de uma enchente e de um surto de varíola, uma espécie de

dilúvio epidemiológico, que destruiu a casa e a lavoura da família e que “operou”

entre os homens uma espécie de seleção biológica, tal como a do mito Noé.

Em Ilhéus, aos poucos a família reestruturou-se financeiramente, e, logo, o

coronel (titulo comprado à Guarda Nacional) João Amado conseguiu comprar outra

fazenda, onde recomeçou a plantar suas roças de cacau, que viriam a inspirar Jorge

Page 28: Arca de noé no romance cacau um leitura metafórica

posteriormente em seus romances, em meio às lutas políticas, às tocaias e brigas de

jagunços e pistoleiros.

Jorge Amado cresceu na realidade do cacau, aprendendo então a conviver

com todo tipo de gente, sem preconceito. Anos mais tarde, vai morar em Salvador

para estudar. Aos 13 anos, o padre Cabral, professor de Jorge, recebe uma redação

sua (“O Mar”) e postula que será escritor. Mais tarde, muda-se para o Rio de

Janeiro, pois seus pais almejavam que ele seguisse a carreira de bacharel em

Direito, vindo a se formar posteriormente, mas nunca tendo exercido a profissão. No

Rio de Janeiro, publica seu primeiro romance, O País do Carnaval, que se torna um

sucesso de crítica e de público, animando-o a outras empreitadas. Nesta época,

conhece pessoas importantes tanto na política quanto nas letras, vindo a fazer

novas amizades e a aliar-se ao Partido Comunista Brasileiro (PCB).

Retornando a Ilhéus, interessa-se pelos dramas humanos da zona do cacau,

criando, portanto, o romance Cacau (1933), primeiro do ciclo cacaueiro, que narra à

saga dos nordestinos flagelados, das contradições humanas. Morreu em 06 de

Agosto de 2001, em sua casa no bairro do Rio Vermelho, em Salvador.

Tendo visto a realidade desumana de flagelo social vivida pelos trabalhadores

explorados nas fazendas de cacau, o escritor Jorge Amado, em sua ficção, cria um

mundo de outras realidades humanas como forma de crítica ao universo real. Jorge

é um intérprete dessa realidade, e transpôs isso em sua Literatura.

A produção literária é uma reflexão sobre o social, sobre as práticas sociais e não apenas uma repetição destas, logo, possibilita-nos perceber o contexto social mais amplo no qual foi produzida. Os romancistas, como os historiadores, vão construindo uma certa história social, vão instituindo uma memória em detrimento de outras, dentro do momento e do contexto em que cada um se encontra. (SOUSA, 2008, p.52)

Sendo Jorge Amado o Noé do mundo capitalista, cria uma arca literária que

abriga bichos homens em estado de miséria quase extrema, que vão se aventurar,

pois, no mito do Cacau. Na região grapiúna não havia lugar para vagabundos, o

trabalho era duro, a luta sem tréguas (AMADO, 1982, p. 66). Naquela região, a vida

humana valia muito pouco, reinava ali só o fruto valioso; no mais, o ser humano valia

o que tinha. Como os empregados não tinham nada, este era o valor adquirido.

Page 29: Arca de noé no romance cacau um leitura metafórica

Pagavam com a sua existência a moradia no caro reino. A vida humana continuava

a valer pouco, moeda com que se pagava um pedaço de terra, um sorriso de

mulher, uma parada de pôquer (p.37).

O romance Cacau é a Arca literária em que as demandas de trabalhadores

navegam para o território das incertezas: a fome, as relações sociais, a violência, as

opressões, entre tantas outras que os marcam, afligem e maltratam. Esses seres

perpassam, portanto, por crises existenciais, que, apesar de serem inerentes à

condição humana, os afloram ainda mais, desde a instabilidade emocional até ao

próprio vazio existencial, onde esses migrantes se questionam sobre sua própria

identidade e seu valor perante a sociedade dominante.

Jorge traz,na sua obra, uma realidade regional e universal, afinal a nação

converte tradicionalmente esses valores para os impactos da exclusão social. A obra

de Jorge Amado funciona, portanto, como via de acesso à realidade brasileira

extraliterária (GOLDSTEIN, 2003, p.226). Em Cacau, o autor faz uma dura crítica ao

sistema capitalista de relações, pois, demonstra que, apesar de todo sofrimento nas

terras fartas, esses trabalhadores não desistiam da luta pela vitória, e, mesmo em

meio a lágrimas, continuavam a comemorar a vida. Povo alegre, festeiro, otimista e

resistente ao sofrimento é o povo de Jorge Amado (GOLDSTEIN, 2003, p.116).

Porque assim é a Bahia, mistura de beleza e sofrimento, de fartura e fome, de risos

álacres e de lágrimas doloridas (AMADO, 1991, p. 12-13). Amado compreende o

povo e escreve acerca desse povo e suas lutas pela ascensão, pois, por conviver

com essa realidade cacaueira de divisão de classes ele acabou por pertencer de

certa forma a este mundo bipartido de culturas e economias distintas. Vidas opostas

e que se cruzam são a dos empregadores e dos empregados, os quais necessitam

um do outro para que a vida financeira continue acontecendo. Em se tratando da

realidade do fruto valioso, as figuras, na obra em questão, são, pois, transposições

de uma realidade vista e relatada, não precisamente igual, mas muito semelhante,

como afirma Amado:

Os personagens das obras de ficção resultam da soma de figuras que se impuseram ao autor, que fazem parte de sua experiência vital. Assim são os coronéis de cacau nos livros onde trato de região grapiúna, nos quais tentei recriar a saga das conquistas da terra e as etapas da construção de uma cultura própria (AMADO, 1982, p. 71-72).

Page 30: Arca de noé no romance cacau um leitura metafórica

Muitas são as classes relatadas nas obras amadianas, entre putas e

vagabundos, trabalhadores e coronéis, todas personagens de obras ficcionais,

espelho do real. Lutas pelo dinheiro e pela vida fazem parte desses seres meio

humanos, afinal apesar de serem homens sobrevivem como animais.

A região grapiúna por ser povoada por sergipanos faz desta demanda

humana desbravadores, pois, vão à terras por ora desconhecidas encontrar frutos

valiosos mas para eles não tão lucrativos, afinal acabam pagando com seus

esforços físicos e psicológicos a sobrevivência na “nova casa”. A arca de animais do

mito bíblico se mantém, pois, na sociedade capitalista que imprime regras e reprime

muitos seres humanos.

Neste prisma, a figura humana do escritor grapiúna Jorge Amado emerge não

somente como a de um grande pensador literário, mas também como uma vítima

das mazelas sofridas pelos migrantes sertanejos que inundavam o Sul cacaueiro.

Dessa forma, Jorge é uma alma marcada pelos estigmas da dor que martirizava o

seu povo convertido – pelos sofrimentos – em personagens de sua obra.

3.3 Um olhar sobre a obra amadiana

Jorge Amado, pertencente ao grupo chamado de Regionalista, em sua obra

Cacau, trata da saga cacaueira na região Sul da Bahia, tendo como personagem

principal Sergipano, um migrante nordestino que busca mudança e melhoria de vida

nas fazendas do “dólar do sertão”. Nesta obra, Jorge por meio do narrador José

Cordeiro (o Sergipano), relata as opressões, as marginalizações, os flagelos e as

misérias sofridas por essa classe trabalhadora, que acaba vivendo um escravismo

no capitalismo que os sucumbi.

Com diferentes manifestações culturais, a classe oprimida e a repressora

convivem nas mesmas fazendas, mas com afazeres e estadias distintas. Enquanto

os coronéis aproveitavam-se de seu título de nobreza e capital de lucro para ordenar

e reprimir, os trabalhadores, surrados e suados dessa vida de incertezas

Page 31: Arca de noé no romance cacau um leitura metafórica

continuavam a aventurar o mito. Sergipano trabalhava e residia na fazenda

Fraternidade, do coronel Mané Fragelo.

Mané Fragelo fora um apelido posto na cidade. Pegou. Um flagelo, de fato, aquele homem gordo, de setenta anos, que falava com uma voz arrastada e vestia miseravelmente. Manoel Misael de Souza Telles era o seu verdadeiro nome (AMADO, 2000, p.5).

Sergipano trabalhava como alugado, bem como os outros, era assim que os

coronéis tratavam os empregados; diminuindo-os, tratando-os como “máquinas de

serviço” somente, algo descartável, que só serve enquanto está funcionando de

acordo com o que os patrões desejam.

O termo me humilhava. Alugado... Eu estava reduzido a muito menos que homem [...](AMADO, 2000, p. 23)

Apesar de a fazenda ter o nome de Fraternidade, esse valor não existia entre

patrão e empregados, solidariedade era uma utopia da classe subalterna e valores

como ética e moral jamais existiram. Ao contrário das sociedades pré-diluvianas,

esta que é sucumbida pelo capitalismo acirrado, visualizada no fruto do cacau,

destrói sentimentos, honra, ilusões e ideais daqueles que buscam trabalhar

honestamente para alcançar o direito à vida. Honestidade se torna uma palavra e

realidade em desuso pela classe dominante, que vive na ganância de imperar no

fruto valioso, tornam-se mercenários e não têm pudores na busca incessante pelo

lucro, atropelam pessoas e não se comovem com a perda de vidas de empregados,

matam os que “sabem demais”. A maldade não tem limites quando o intuito é o

aumento do patrimônio financeiro, os valores humanos inexistem e até o seguimento

familiar é esquecido. Em se tratando de Mané Frajelo, diz um empregado:

[...]A alegria desse miserável é fazer mal aos outros. A mãe morreu pedindo esmolas e o irmão vive ai cheio de feridas, vestido que nem a gente. Miserável assim nunca vi. (AMADO, 2000, p. 20)

Page 32: Arca de noé no romance cacau um leitura metafórica

A história de Sergipano, personagem de “Cacau”, divide-se em três fases:

operário da fábrica de seu pai, trabalhador das roças cacaueiras e por último

tipógrafo no Rio de Janeiro. Antes de entrar no drama do cacau, tinha uma estável

condição financeira, pois seus pais eram donos de uma fábrica, mas, com a morte

de seu pai e as alucinações posteriores de sua mãe, seu tio que tinha ganhado de

seu pai sociedade nos negócios acabara por tornar-se proprietário único da

empresa, pois, segundo ele, para o nome da família não ir para “o brejo” quitou as

inúmeras dívidas deixadas por seu irmão na fábrica e como forma de pagamento se

apropriou do comércio, deixando sua cunhada e sobrinhos ao desamparo. Ficando

pobre, Sergipano partiu para a terra do cacau, região em que os operários falavam

como da terra de Canaã (p. 15), um mito, a prosperidade financeira.

A vida na roça do Sul da Bahia não foi a imaginada, o eldorado passava longe

daquela realidade inóspita e grotesca, afinal, viviam miseravelmente, pouco comiam,

o dinheiro do suor não dava nem para a alimentação, a despensa ficava com tudo e

o saldo ainda era devedor. Em meio a esta classe humilhada, crianças, desde cedo,

começavam a trabalhar, e não havia tempo para os estudos, cresciam e mal sabiam

falar, os palavrões imperavam, homens feitos quase nenhum sabia ler.

Pobres crianças amarelas, que corriam entre o ouro dos cacauais, vestidos de farrapos, os olhos mortos, quase imbecis. A maioria deles desde os cinco anos trabalhava na juntagem. Conservavam-se assim enfezados e pequenos até aos 10 e 12 anos. (AMADO, 2000, p. 70)

Sergipano, bem como os outros empregados das fazendas, tinha como

filosofia de vida a obediência aos patrões. Trabalhavam de sol a sol, viviam mais

como animais do que como homens, e, naquela terra, a única coisa, que soava bem

para os fazendeiros e que tinha valor, era o cacau. O cacau exercia sobre eles uma

fascinação doentia (AMADO, 2000, p.12). As roças são belas quando carregadas de

frutos amarelos (p. 58).

As mulheres que ali residiam acabavam se engraçando com os filhos dos

coronéis, os quais as tratavam como mero objeto sexual, tiravam sua honra, usavam

e abusavam e, em seguida, jogavam-nas fora. Defloradas, iam residir na Rua da

Page 33: Arca de noé no romance cacau um leitura metafórica

Lama e trabalhar como prostitutas. Pobres mulheres, que choravam, rezavam e se

embriagavam na Rua da Lama. Pobres operárias do sexo. Quando chegará o dia da

vossa libertação? (p.57). Enfim, no Sul da Bahia até as mulheres não tinham valor,

juntamente com os empregados e filhos viviam quase fora do mundo, da maneira

que dava, vivendo por viver, aprendendo com a miséria reinante. Olhávamos os

cacaueiros e não achávamos a solução. Se nós não estivéssemos muito

acostumados com a miséria, os suicídios seriam diários. (p.84)

Poucos conseguiram a libertação das roças dos frutos amarelos, uns fugiram,

outros pagaram para sair e ir embora. Sergipano depois de beijos e caricias trocados

com a filha do coronel, com consciência de classe, vai embora para o Rio de

Janeiro, torna-se tipógrafo e conhece outra esfera de vida em sociedade, em que o

trabalho não é tão duro e tem-se recompensa, ao contrário de muitos anos passados

na Fazenda Fraternidade. Deixou de ser bicho homem e tornou-se gente, digno e

com valores humanos.

O personagem Sergipano, dessa forma, fecha o ciclo factual de um

determinismo que condena o trabalhador explorado a uma eterna relação de

subserviência e exclusão humana. Também Sergipano fecha um discurso de

inspiração marxista no romance amadiano, no sentido de que o homem oprimido é o

principal agente de sua libertação.

A guisa de conclusão, este trabalho de estudo literário chega a uma base

irrefutável de que o romance Cacau, de Jorge Amado é um manifesto de afirmação

que trata da exploração do homem pelo homem, quanto das possibilidades que este

tem para promover a sua emancipação, mediante o conhecimento de uma cultura

literária emancipadora em todos os sentidos, inclusive a da própria Arte Literária.

Enfim, Jorge Amado liberta a Literatura e mostra a “cara da terra”, do povo, dos

costumes.

Page 34: Arca de noé no romance cacau um leitura metafórica

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Realizou-se o estudo entre a Arca de Noé, texto contido na Sagrada Escritura

e o romance Cacau, obra amadiana, encontrando a metáfora da vida existente nos

dois ambientes. Enquanto a Arca, feita por Noé, visou à salvação das espécies,

Amado demonstra que o navio cacaueiro, arca estratificada, tenta sucumbir e

destruir o ser humano. Por isso, o estudo metafórico entre os ambientes já citados,

deixa-nos a analisar as relações humanas enquanto sociedade e economia no

mundo das desigualdades.

São denunciadas à sociedade as mazelas do capitalismo. Considerando os

objetivos e hipóteses iniciais a este estudo, confirmou-se a hipótese que condena o

capitalismo como destruidor de sonhos e esperanças de ascensão e como traidor da

classe trabalhadora, que sai de suas terras em busca de crescimento social e

econômico e acaba retornando igual ou pior do que quando partiu.

Este estudo buscou, em teóricos, aprimoramentos e citações relevantes ao

tema abordado, bem como criou por si um texto que visa o repensar do ser homem

na sociedade vigente, afinal, vive-se como ser humano e age-se como irracional.

Enquanto a arca de Noé salvou os animais da total destruição para que não se

aniquilasse totalmente as espécies, o bicho homem, que tem voz na época presente,

torna-se canibal da sua própria raça.

Enfim, o estudo de anúncio e denúncia da sociedade contido nas páginas de

Cacau cruza-se com o Gênesis enquanto sociedades distintas, mas sofrem a dor

existencial em universos diferentes, pois, a sociedade pré- diluviana era fraterna e

cultivava valores como moral e ética e, após o corrompimento humano, recebeu o

dilúvio e passou a viver uma era insustentável, bem como a dos dias de hoje.

Portanto, o estudo monográfico possibilitou a visualização da crueldade

humana, que marginaliza, reprime, sucumbi, menospreza e destrói o seu próximo,

manifestando-se de acordo os interesses próprios. Sendo o texto repleto de

significados e interpretações, este se reescreve e reconstrói a cada leitura, por isso,

esta obra amadiana discute também uma consciência histórica, fato este que se

encontra imbricado nestas páginas de análise; há, pois, o dedo da arte literária

refletida nas diferentes gerações.

Page 35: Arca de noé no romance cacau um leitura metafórica

REFERÊNCIAS

AMADO, Jorge. Bahia de Todos os Santos: guia de ruas e mistérios. 39 ed. Rio de Janeiro: Record, 1991.

AMADO, Jorge. Academia dos Rebeldes. In: SANTANA, Valdomiro. Literatura Baiana 1920- 1980. Salvador: Casa das Palavras, 2009.

AMADO, Jorge. Cacau. 35. ed. Rio de Janeiro: Record, 2000.

AMADO, Jorge. Capitães de Areia. 6. Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

AMADO, Jorge. O Menino Grapiúna. Ed. Especial. Rio de Janeiro: Record, 1982.

Bíblia Sagrada. Tradução de Ivo Storniolo. Revista e Corrigida. São Paulo: Pastoral, 1991.

BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. 40. Ed. São Paulo: Cultrix, 1994.

CÂNDIDO, Antonio. Presença da literatura brasileira. 9. Ed. São Paulo: Difel, 1983.

COELHO, Marcos de Amorim; TERRA, Lygia. Geografia Geral e do Brasil. 1.ed. São Paulo: Moderna, 2003.

DIAS, Léa Costa Santana. O ciclo do cacau na Bahia: Jorge Amado e as Terras do sem fim. In: O olhar de Castro Alves: ensaios críticos da literatura baiana. FONSECA, Aleilton (org.). Salvador: Assembléia Legislativa do Estado da Bahia; Academia de Letras da Bahia, 2008.

FONSECA, Aleilton. O pêndulo de Euclides. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2009.

GALVÃO, Walnice Nogueira. Metáforas Náuticas. In: Desconversa. 1.ed. Rio de Janeiro: UFRJ, 1998.

GOLDENBERG, Mirian. A arte de pesquisar.7. ed. Rio de Janeiro: Record, 2003.

GOLDSTEIN, Ilana Seltzer. O Brasil Best Seller de Jorge Amado: literatura e identidade nacional. São Paulo: SENAE, 2003.

HALL, Stuart. Da Diáspora: identidades e mediações culturais. Tradução de Adelaine La Guardia Resende. Belo Horizonte: UFMG, 2003.

JÚNIOR, Benjamim Abdala; CAMPEDELLI, Samira Youssef. Tempos da literatura brasileira.6. Ed. São Paulo: Ática, 1999.

LOPES, Edward. Metáfora: da retórica à semiótica. 2. Ed. São Paulo: Atual, 1987.

LUCAS, Fábio. As transformações da literatura brasileira no século XX: In: Do barroco ao moderno. São Paulo: Ática, 1989.

Page 36: Arca de noé no romance cacau um leitura metafórica

MARCONI, Marina de Andrade; LAKATOS, Eva Maria. Fundamentos de metodologia científica. 6.ed. São Paulo: Atlas, 2006.

MOISÉS, Massaud. História da literatura brasileira. 5.ed. São Paulo: Cultrix, 2001. V.III.

RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. 92. Ed. Rio de Janeiro: Record, 2003.

SEIXAS, Cid. Triste Bahia. Oh! Quão dessemelhante. Salvador: EGBA, 1996.

SOUZA, Antonio Pereira. Fragmentos de História: contribuições teóricas sobre história e literatura. Rio de Janeiro: T.mais.oito, 2008.

TORRES, Antonio. Meu querido canibal. 2. Ed. Rio de Janeiro: Record, 2000.