o avião de noé

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Em “Todavia”, cidade do interior baiano, tudo pode acontecer... ...e acontece. Nos anos 1950, começando com uma explosão durante uma missa em louvor à Santa Rita dos Impossíveis. Uma fábrica de fogos pega fogo, mas todos acham que o barulho é devido às comemorações pela vitória do Brasil contra a seleção sueca. O responsável: o porco de um enfermeiro. Um inventor improvisado acredita que, com os restos de sucatas que vai encontrando, poderá construir um helicóptero, o “Águia de Todavia”, e até marca o dia para seu lançamento. A geringonça voará? Este e muitos outros relatos desfilam numa sucessão de acontecimentos vertiginosos na cidadezinha imaginária baiana criada pelo jornalista e romancista Fernando Vita, que compõe um mosaico debochado, escatológico e cheio de aventuras populares com tipos folclóricos neste seu segundo livro, depois de “Cartas anônimas”.

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Page 4: O Avião de Noé

Uma hilarian

te história

de inventore

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escritores e

outros

malucos de m

odo geral

Fernando V

ita

O Avião de Noé

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Page 5: O Avião de Noé

Copyright © 2014 by Fernando Vita

1ª edição — Outubro de 2014

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.

Editor e PublisherLuiz Fernando Emediato

Diretora EditorialFernanda Emediato

Produtora Editorial e GráficaPriscila Hernandez

Assistentes EditoriaisAdriana Carvalho

Carla Anaya Del Matto

CapaAlan Maia

Projeto Gráfico e DiagramaçãoKauan Sales

PreparaçãoNanete Neves

RevisãoMarcia BenjamimJosias A. Andrade

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Vita, FernandoO avião de Noé / Fernando Vita.

-- São Paulo : Geração Editorial, 2014.

ISBN 978-85-8130-248-5

1. Ficção brasileira I. Título.

14-07783 CDD -869.93

Índices para catálogo sistemático

1. Ficção : Literatura brasileira 869.93

GERAÇÃO EDITORIAL

Rua Gomes Freire, 225 – LapaCEP: 05075 -010 – São Paulo – SP

Telefax: (+ 55 11) 3256 -4444 E-mail: [email protected]

www.geracaoeditorial.com.br

Impresso no BrasilPrinted in Brazil

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Page 6: O Avião de Noé

Para Marcos Vita.

Outras histórias que

não lhe contei.

Para Taís, Nanda e Gal,

as minhas mulheres.

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Page 8: O Avião de Noé

Não sei o que vou escrever,

mas, para mim, só vale escrever

coisas que contam.

GRAHAM GREENE

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... contudo, em Todavia, e até mesmo em alguns pequenos sí-

tios não dela tão próximos, todos os que sabiam ouvir com os

ouvidos ouviram um estrondo da porra, vindo das margens

plácidas do rio da Dona, na manhã daquele domingo, 13 de

junho do ano da graça de 1958, não tão plácido esse domin-

go, não pelo pipoco fenomenal do supracitado estrondo, mas

porque, em tal domingo, a habitual placidez dos domingos

locais já tinha ido pras picas, desde cedinho, por três motivos

fundamentais e importantes, não necessariamente na ordem

em que eles serão aqui listados: primeiro, era o dia maior da

festa da padroeira dos todavianos, Santa Rita dos Impossíveis;

segundo, o escrete de futebol do Brasil enfrentava o da Suécia

— e era assim, de escrete, que se chamava, em tais tempos

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Destamanho pipocoem domingo incomum

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de dom corno, a Seleção —, em campo de nome difícil —

Rasunda Stadium — numa cidade de graça estrambólica —

Estocolmo — e num horário ainda mais inaceitável para os

hábitos locais, onde já se viu jogar jogo de bola em matinas de

domingo, jogo de bola se joga de tarde, sabem todos os que

de fusos horários não sabem, já que as manhãs de domingo

se prestam mais às missas e às visitas a doentes que às porfias

da bola, que elas se deem aqui ou em que casa do caralho se

deem; e, de quebra — deixo de divagar e ao que interessa, o

terceiro dos motivos, volto picado — porque um formidá-

vel patrício, de nome de berço Noé, que vivia de consertar,

em mal aprumada oficina de beco fedorento a cocô e a mijo

de bebum, bicicletas e velocípedes, fogões e liquidificadores,

ferros de engomar e motocicletas, violões e máquinas de cos-

tura, e tudo o mais que às suas mãos chegasse, sanfonas pé de

bode e panelas de pressão inclusas, começara, o tal Noé, um

baixinho troncudo e amulatado já passado dos trinta, a cons-

truir um helicóptero, à sombra de uma jaqueira centenária,

nos fundos de sua casa, na rua das Queimadas, para pasmo

de alguns, chistes de outros, inveja de outros tantos, sem falar

dos que, pura e simplesmente, por pasmo, inveja ou chiste,

decretaram “Este corno tá é doido”, e em assim sendo, o pipo-

co da porra, que ecoou lá pras bandas do rio da Dona, passou

a ser, tão somente, a quarta e última razão da quebra da pla-

cidez daquele domingo, nada mais que isso, muito embora a

explosão tenha sido das mais supimpas.

... entretanto — já disse acima, mas repito em favor de um

melhor entendimento dos que não labutam com explosões

— não foi coisa pouca, o pipoco! A ele seguiu -se, subindo aos

céus, como um puta facho de incenso a pólvora, dinamite e a

enxofre cheirando (será que por perto rondavam o Tinhoso,

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o Sete Pelos, o Cabrunco e todos os outros diabos do sétimo

livro?) uma fumaceira fenomenal, era como se redivivos vís-

semos, nós todos, os que sabiam enxergar com os olhos, os

tais cogumelos radioativos que sequenciaram dois outros es-

trondos famosos, aqueles, da Segunda Guerra Mundial,

em Hiroshima e em Nagasaki, não sei em qual delas duas o

bum se deu primeiro, certo é que os de Todavia ouviram o fan-

tástico ribombo, e viram, não pela primeira vez, e que não

seria, entretanto, a última, um resultante miserê e um acaba-

mento tais, em vidas e danos materiais, que, até então, eles só

se dariam a acreditar fosse possível se dar no estrangeiro, no

Japão, em tempo de guerra, assim mesmo porque leram em

O Cruzeiro, e, mesmo tendo lido nas páginas de O Cruzeiro,

passaram a limpo o todo lido, ouvindo o rádio de Dodô das

Bicicletas contar o que ocorreu com os japoneses, era o rá-

dio de Dodô um Mullardão potente, que em ondas médias e

curtas ia longe, pegava, de dia, até a Mayrink Veiga do Rio de

Janeiro, quando não as emissoras de rádio dos quatro cantos

do mundo nas noites ermas de Todavia.

Ainda hoje não se precisam de forma exata a hora, nem os

minutos, muito menos os segundos em que o pipoco se deu,

até mesmo porque os todavianos nunca se ligaram muito em

tais detalhes, sempre cagaram e andaram, solenemente, para

essas coisas que os ponteiros dos relógios de marca ou os dos

roscofes mais pebas insistem em apontar em seus mostrado-

res, não seria na manhã daquele domingo, 13 de junho, do

dito 1958, que o fariam diferente, de maneira tal que levou

algum tempo até se saber, por relatos, variados nas fontes e

inexatos nos detalhes, que mais um fabrico clandestino de fo-

gos de artifício tinha ido pelos ares, levando junto algumas

dezenas de vidas, entre os velhos, jovens e crianças, de todos

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os sexos e idades, os tais quais, sem nenhuma segurança mas

com exímia técnica artesanal, davam forma final a cobrinhas,

chuvinhas, espanta -coiós, rodinhas, rojões, estrelinhas e esta-

los bebês que, das margens plácidas do rio da Dona, ganha-

vam as cidades da Bahia e do Brasil, e quiçá do mundo todo,

para alegrar as festas, iluminar as noites em cascatas de luz

e subir aos céus, em cores e lágrimas, como aos céus devem

ter subido, sem pedir licença a São Pedro, tantos e tantas de

Todavia que em tais arapucas mambembes transformavam

perigosos pós, pólvora, dinamite e argila nas pirotecnias das

alegrias alheias, que viver era preciso, mesmo que morrendo

fosse, isso se deixando por menos que no mesmo furdunço

mudaram -se dessa para uma melhor uma porrada de gali-

nhas, cachorros, porcos, passarinhos de gaiola e outros ti-

pos de bichos de criação, desses que gostam de se achegar de

onde tem gente, vieram abaixo e viraram entulho mais uma

apreciável quantidade de casinhas e casinholas de adobe, em

sua maioria as de morar dos que no fabrico davam duro, e se

um Pablo Picasso às mãos ali tivéssemos, um outro Guernica

pronto e acabado com certeza nós teríamos para dependurar

em uma parede ou deslumbrar povos num museu.

Dessa vez, foderam -se, de verde e amarelo, trinta e três po-

bres almas, sem contar uma multidão a mais de queimados,

estropiados, aloprados, pernetas e manetas que restou viva

para contar a história da desgraceira geral que se deu e do que

sobrou da explosão do fabrico precário de fogos, um mero

círculo de pequenos caramanchões, cobertos de sapé ou pa-

lhas de dendê, sem portas ou paredes, mafuás improvisados,

a céu aberto, e bote céu aberto nisso, a esperar, no além das

nuvens, em viagem sem retorno, os que laboravam ali na hora

do solene pipoco.

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Corina, velha astróloga, cartomante, mandalista, taróloga,

numeróloga e prendada na leitura das mãos alheias, sendo

que em nenhuma dessas artes acertava qualquer prognóstico,

apressou -se em contar nos dedos e vaticinar, com solene cati-

logência e acadêmica profi ciência:

— Hoje é o dia 13, do mês seis, do ano de 1958. Conte nos

dedos, os que dedos tiverem e souberem contar: um e três, qua-

tro. Mais seis, dez. Mais um, onze, com mais nove, temos vinte,

com mais cinco, vinte e cinco, com mais oito, fechamos em trin-

ta e três, a idade em que Cristo morreu na cruz, pregado a prego

e martelo pelos judeus da Judeia, ou da Cananeia, estou eu velha

a mais da conta para saber quais judeus foram os que bateram

com martelo os pregos que pregaram Jesus Cristo na cruz. Mas,

sei de sapiência certa, já que os números nunca me enganam,

que foi um milagre de Jesus terem morrido tão poucos, só trinta

e três, e que Deus seja louvado! Pelo pipoco do estrondo, eu que

estava na sentina a obrar e a jogar as cartas do tarô, pensei que o

mundo começara a acabar justo naquele momento e que o Pai

Celestial escolhera Todavia para sediar o princípio do fi m.

— E depois, Corina, tu limpou o rabo? — perguntou

João Galocha, seu constante interlocutor e vizinho de por-

ta na comprida e esconsa rua do Espera Negro, um dos que,

o Galocha em lide, mesmo num domingo tão novidadeiro

quanto aquele, encontrara tempo para ouvir, meditar e pi-

lheriar ante a numerologia abestalhada da velha, em roda de

prosa de ponta de rua.

— Se ela ariou a bunda ou não, eu não sei — intrometeu-

-se Ernesto Pical Bandeira, marido de Corina e compadre de

João. — Mas que ela saiu do quartinho picada, ainda ajei-

tando a calçola e com a cara assustada de quem tinha visto o

demônio, disso eu sou testemunha.

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No entanto, não passava das dez horas de relógio, hoje ima-

gino, quando o estourão se deu, porque, quando do dito pi-

poco, monsenhor Galvani ainda oficiava a missa solene do dia

maior, igreja lotada — sabem todos que os de Todavia apreciam

muito rezar em missas, chorar em velórios, cantar em procis-

sões e acompanhar enterros. E muitos enterros os esperavam,

na segunda que vinha logo ali, na sequência daquele domingo

de junho, em que o escrete canarinho atochou cinco a dois no

fiofó dos suecos, Pelé deitou e rolou, Garrincha rolou e dei-

tou, o Brasil se tornava, pela vez primeira, campeão do mun-

do no futebol, e até mesmo os de Todavia, com pipoco e tudo,

se esqueceram do horror que se deu no Maracanã em 1950,

ah! Ghiggia, inesquecível filho de uma puta, por que brocas-

tes o nosso Barbosa goleiro, naquela porfia final, entre Brasil

e Uruguai, protelando por mais oito anos a nossa histórica vi-

tória? E quando ela se deu, era, então, Juscelino o presidente

do Brasil, e uma voz de moço, docinha como o quê, som de

violão de batida bem moderninha ao fundo, tomava os ares

de Todavia, e era ele, um tal de João Gilberto, quem cantava pe-

las bocas do serviço de alto -falantes de seu Diguinha, levando

alguns dos de Todavia que ouviam as suas canções a indagar:

“Quem é mesmo esse filho da puta desafinado?”

Quando se ouviu o estrondo afinado e uniforme, no en-

tanto, estava monsenhor Galvani pomposamente sentado, em

solene cadeira lateral ao altar, acompanhando aquela parte da

missa em que frei Eliseu das Chagas de Cristo, sacro pregador

franciscano, especialista na vida e na obra de Santa Rita dos

Impossíveis, vindo da Cidade da Bahia tão somente para louvar,

em prédica de improviso, os feitos da santa padroeira naquela

solene celebração, dizia que Rita era isso e aquilo e aquilo ou-

tro. Então, com um sutil piscar de olhos, o monsenhor chamou

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um desarrazoado de nome Toninho do Padre, tido por todos,

em Todavia, como seu ilegítimo fi lho, fruto de fornicação

errada com uma beata descuidada nos controles das tabelinhas

que regulavam as idas e vindas mensais das suas regras e

paquetes, Toninho este que acolitava a celebração na função de

operador de turíbulo, sendo o turíbulo aquela alfaia sagrada

que, prenhe de carvão em brasa, atochada de incenso e mirra

até a boca, faz uma fumaça cheirosa permear toda a ambiência

das naves de igrejas, sabe lá Deus com que propósito, senão o

de deixar alguns cristãos com os olhos ardendo e uns tantos

outros a dar espirros esporrentos, mas eu dizia que monsenhor

Galvani chamara Toninho, com um sutil piscar de olhos, e ao

tal Toninho do Padre delegou a tarefa de, repassado o turíbulo

a um subacólito, chamemos assim esse outro desimportante,

fosse averiguar a que se deveu o pipoco ouvido. Teria sido uma

bomba joanina um tanto ou quanto mais forte, a celebrar um

gol do nosso escrete?, chegara a especular o homem de Deus,

antes de liberar Do Padre para a cubagem.

Não fora uma bomba, o Brasil já estava ganhando de três

a um da Suécia, assegurou Toninho, na volta, aos cochichos,

aos ouvidos já meio moucos do monsenhor. “E que porra foi

então, seu pedaço de estrume?”, quis saber o vigário, ao que

Toninho do Padre, com a concisão possível aos explicares de

um reconhecido abestalhado, informou que fora uma explo-

são da zorra, lá pras bandas do rio da Dona, e que tinha gente

morta e ferida para dar de pau, fora o que soubera, mais não

pôde saber, as suas funções turibulares estavam a exigir a sua

volta ao altar, e a elas não retornou sem antes ouvir, do mon-

senhor Galvani, uma imprecação pouco cristã e menos ainda

solene para momento tão grave: “Dou o meu cu em praça pú-

blica se não foi outra fábrica de fogos que foi pelos ares!”

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E fora, mesmo.

Clandestina, como tantas outras fajutas fábricas de fogos

em Todavia, esta que acabara de explodir pertencia a um fo-

guista de nome Antônio Trovão das Mortes, de todos conhe-

cido como Bigorrilho Fogueteiro, ele próprio ali posto, aos

pés de Santa Rita dos Impossíveis, naquele momento, a re-

zar contrito, sem saber missa metade nem missa inteira da

desgraceira que se dera em seu mafuá, lá pras bandas do rio

da Dona, não seria dessa vez que, por errar um mero palpite,

nosso monsenhor vigário teria que arribar a batina para que

um penitente qualquer lhe passasse em trolha o seu santo cu.

Frei Eliseu concluiu seu longo sermão, e o coro, sob a re-

gência do velho maestro Sóter Barros, mandou aos ares os seus

cantares de subi, precioso incenso, antecipando tudo o mais que

ainda se daria naquela santíssima missa, consagração, comu-

nhão e ofertório incluídos, até o seu final solene, com hinos,

palmas e vivas a Santa Rita, que mesmo sendo santa de alta

reputação dentro do mundo da santidade, capaz de operar os

milagres mais impossíveis, de seu altar nada mais poderia fazer

para salvar as vidas dos que se foram na explosão.

Nos fundos de sua casa, na rua das Queimadas, número de

porta 77, Noé trabalhava, calmamente, na construção do seu

helicóptero quando o pipoco se deu. Deu -se o pipoco, mas

Noé, de tão enfronhado que estava nessa sua empreitada, não

se deu pelo pipoco. Apertou mais uns tantos parafusos, de-

mandou a um seu quebra faca, de apelido Ferramenta, um

alicate torquês, aplicou mais uns pontos de solda em parte

da estrutura daquela estrovenga mecânica que mal tomava as

primeiras formas, depois limpou as mãos sujas de graxa numa

ponta de estopa, abriu uma cerveja, bebeu em companhia do

dito quebra faca, pediu mais outras geladas à sua patroa, as

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intermeou com algumas doses de uma crua de nome Sururu,

vinda de bom engenho, elogiou a perder de conta a quali-

dade da caninha, comandou que sua consorte pusesse o tri-

vial cozido dominical à mesa logo que pudesse, quando isto

feito comeu como come um condenado, deu alguns arrotos,

dispensou o doce de goiaba caseiro da sobremesa, tirou uma

breve madorna numa rede de varanda, soltou alguns peidos

e logo voltou às porcas e aos parafusos do seu engenho de

voar, aproveitando o saldo de domingo restante, que ama-

nhã é segunda-feira, dia dito de branco e de voltar aos pa-

rafusos e às porcas dos outros engenhos, estes, que ele tinha

que consertar, por dever de ofício, para ganhar a vida, à vera,

Ferramenta, o quebra faca, um pretinho de olhar esperto, ain-

da não chegado aos vinte, sempre ao lado.

Foi o que se deu, sem tirar nem pôr, nesse tal domingo, 13

de junho de 1958, e mais não se deu porque, o que ainda ti-

nha que se dar, não se daria mais. A solene procissão de Santa

Rita dos Impossíveis, que à tardinha deveria percorrer as ruas

da cidade, foi suspensa pelo monsenhor Galvani, em sinal de

sentimento pelas mortes causadas pela explosão do fabrico

de fogos. E se às ruas fosse a procissão — apresso -me logo a

dizer —, por mais bonitas e enfeitadas estivessem as charolas,

por mais afi nadas e bem regidas desfi lassem as nossas duas

impávidas fi larmônicas, a Sociedade Philarmônica Amantes

da Lyra e a Sociedade Filarmônica Carlos Gomes, esta sem o

ph do arcaico escrever por ser de fundação mais recente que

aquela, poucos cristãos acompanhariam o sacro cortejo: as-

sim que o juiz de bola de nome oblongado deu o apito fi nal

que fi ndou o jogo do nosso escrete com o da Suécia, foi um

tomar de cachaça sem alívio, bons de copo os de Todavia são,

mais até que cristãos ou patriotas, só uns poucos cantaram o

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Hino Nacional, todos beberam e festejaram muito, de forma

que o andor de Santa Rita, se fosse às ruas naquele domingo, a

dar -lhe vivas teria uns poucos gatos pingados da Congregação

Mariana, da Irmandade do Sagrado Coração de Jesus, da

Cruzada Eucarística, e olhe lá.

Amabílio Moreira Opobre, crítico contumaz dos costumes

locais, o que fazia, com mestria e arte, por meio dos panfletos

assinados que escrevia, mandava imprimir em gráfica e distri-

buir nas Quatro Esquinas — ponto central de Todavia —, ao

saber que a solene procissão fora suspensa, aproveitou a deixa

para baixar o malho, em conversa com amigos de birita, no

monsenhor Galvani, com quem de há muito vivia às turras,

por razões as mais diversas, notadamente pelo comportamen-

to, digamos, pouco ortodoxo do padre, na condução dos cha-

mados interesses paroquiais:

“Esse sacana desse padre suspendeu a procissão por pre-

guiça. Ele está clericalmente se lixando para os que morreram

na explosão e muito puto dentro das batinas porque o escrete

da Itália não chegou às finais da copa do mundo, quinta co-

luna que é este porra desse italiano de merda, vindo da mais

baixa das itálias, lá do bico da botina, da Sicília, para tirar

uma de porreta em Todavia, ah terra de cornos mansos, a

nossa!”, determinou o mulato Opobre, bravo, pomposo, ajei-

tando no pau do nariz um par de óculos de aros finos, parente

bem próximo de um solene pince -nez.

Um domingo movimentado e tanto, aquele, tão diferen-

te dos plácidos domingos de Todavia. E já na segunda -feira

cedinho, os que gostavam de jogar no bicho — e entre os

nossos conterrâneos não eram poucos os adeptos da jogati-

na! — apostaram, maciçamente, na dezena 18, a do porco.

Fizeram a fezinha na expectativa de que, aquele outro bicho,

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o porco de Jessé Enfermeiro, que já na véspera fora pronta-

mente acusado de ter sido o causador da tragédia e das tan-

tas mortes, se verá lá na frente porque, por ironia do destino

viesse a ser, na segunda, o bom palpite, o talismã da sorte, que

os levasse a acertar na dezena, ou na centena, quiçá no milhar

da loteria dos bichinhos, dando novo alento e esperanças a

tantas outras vidas desimportantes, e que pelo menos para

isso tivessem serventia o porco desastrado e o pipoco fatal.

Foderam -se, também, os vivos, ainda de verde e amarelo ves-

tidos, celebrando a taça Jules Rimet que Bellini levantara aos

céus na Suécia. Apurado o resultado do outro jogo, aquele que

o barão de Drumond em fi nais do século XIX inventara, foi

avestruz, dezena 01, o bicho que deu, de primeiro ao quinto,

como se quisessem os fados sinalizar, dizer mesmo com todas

as letras, “Vai, povinho besta, desenterra a cabecinha das gro-

tas que avestruz não és e descobre que boa sorte não tens, se

boa sorte tivesses e em Todavia não estarias a vegetar!”

Inocente parte do cenário do pipoco, o rio da Dona conti-

nuou o seu curso, saracoteando aqui e ali, bamboleando acolá,

fazendo incríveis curvas e recurvas desde a sua nascente, en-

tão riachinho besta, nos sopés da serra da Jiboia, só para não

ter que passar por dentro de Todavia, eta riozinho pirracento

da porra, que até dentro de Santana, dita do rio da Dona, uma

merdinha de povoado, passava, mas por dentro de Todavia

não passava, aí eu vi pirraça das boas, pois pirraça era, já que

depois que Todavia fi cava para trás, sem o gostinho de ver a

cor das suas águas, o da Dona seguia reto e correto, sem ser-

pentear nem nada, driblava o Sururu, escanteava o Taitinga e

ia desaguar no Jaguaribe, este que depois de banhar Nazaré

das Farinhas vai dar ao mar, destino de todos os rios, que no

dizer de um português da vila de Azinhaga, de quem me valho

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por ousadia, José Saramago chamado, “como os homens, só

perto do fim vêm a saber para que nasceram!”

E chega de saudade!

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