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António Menezes Cordeiro 葡京法律的大学 大象城堡

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  • Antnio Menezes Cordeiro

  • Direito Comercial II | Antnio Menezes Cordeiro 2015/2016

    1

    Desejando boa sorte, cabe-me alertar para o

    facto de a sebenta ter, certamente, pequenas

    imprecises que, por lapso e sem inteno,

    nela perpassaram. Leiam criticamente, como

    tudo em cincia! E no dispensem a consulta

    dos manuais (s por si excelentes, na brilhante

    academicidade e cientificidade dos autores, excecionais!).

    A sebenta divide-se da seguinte forma:

    Contm inicialmente a obra do

    Professor Menezes Cordeiro, dividida pela

    o parte geral (pg. 3) e

    o parte especial (pg. 255),

    consoante os volumes I e II,

    respetivamente, assim:

    SNC 256

    SQ 287 SA 372

    Desculpem no ter ndice isto no d para tudo (se que ns damos para alguma coisa)

    cada tipo societrio da parte especial tem uma pequena caixinha indicativa, no lado superior direito de cada

    pgina, com as siglas para cada um, para que melhor se possam organizar na sua leitura

  • Direito Comercial II | Antnio Menezes Cordeiro 2015/2016

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    VOLUME

    I

    Parte Geral

  • Direito Comercial II | Antnio Menezes Cordeiro 2015/2016

    3

    Captulo I - A Evoluo Histrica das

    Sociedades1

    2. - Das origens s pr-codificaes

    Generalidades: o conceito de sociedade, tal como hoje o conhecimento, muito recente, em termos de Direito Privado. Data, na prtica, do sculo XIX. Todavia, ele no foi, de

    modo algum e nessa altura, criado ex nihilo: antes surgiu como ponto de chegada de toda uma

    complexa e milenria evoluo anterior. Podemos considerar que as sociedades atuais

    surgiram no ponto de encontro de trs poderosos institutos:

    Do contrato romano de societas;

    Da personalidade coletiva;

    Das companhias dos sculos XVII e XVIII.

    Parece claro que a societas deixou a sua marca no contrato civil de sociedade e, da, nas

    sociedades civis puras, enquanto a orgnica das companhias coloniais foi determinante para

    as sociedades annimas. As comunicaes entre os trs apontados pilares mostraram-se

    enriquecedoras e constantes. Mais importante do que os reflexos nas diversas normas foram

    as consequncias jurdico-cientficas derivadas da juno de elementos to variados. A societas

    ius romanum, com tudo o que isso implica. A sua receo, ao longo dos tempos, foi-lhe

    atualizando o perfil: mas, sempre, com as marcas de origem. A personalidade coletiva revela-

    se, no fundamental, como uma conquista jurdico-cientfica do racionalismo. Corresponde a

    um nvel de abstrao superior e tem diversas consequncias tcnicas de relevo. Finalmente,

    as companhias coloniais operaram como o grande banco de ensaio que permitiu, ao Ocidente,

    alcanar uma tcnica jurdico-social de congregrar grandes capitais, a partir do esforo dos

    particulares e organizando, para tanto, uma estrutura funcional e produtiva.

    A societas: a societas conheceu, na Antiguidade, uma evoluo movimentada. Figuras paralelas eram conhecidas no Oriente e na Grcia. Em Roma, a sua origem tem sido colocada

    em determinados agrupamentos naturais, na compropriedade e no consrcio entre irmos

    co-herdeiros; documenta-se, ainda, um uso comum isto , no jurdico das locues socius

    e societas. O grande progresso deu-se com QUINTUS MUCIUS SCAEVOLA, a quem se

    devem os bonae fidei iudicia, entre os quais foi includa a societas. Esta tinha, assim, natureza

    consensual, podendo concluir-se com peregrini, sob a tutela de aes menos formais: era a

    dogmtica dos juzos de boa f. O desenvolvimento da societas acompanhou a expanso de

    Roma, ainda que sem um aprofundamento cientfico generalizador. A prpria noo, com o

    seu contedo, ressentir-se-ia, vindo a evoluir. Com os bizantinos, foi isolado o animus societatis

    contrahendae, no qual postula, j, um passo decisivo na elaborao conceitual. Esta temtica

    1 Cordeiro, Antnio Menezes; Direito das Sociedades, Parte Geral, Volume I; Almedina editores; 3. edio; Coimbra, Maio 2011.

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    suscitou o interesse dos juristas do princpio do sculo XX. A conexo das atuais sociedades

    fez-se, contudo, com as experincias medievais e no , de modo direto, com as romanas. No

    era, alis, funo da societas o criar um ente novo, diferente dos contraentes nem, sobretudo,

    providenciar complexas organizaes, onde seriam congregados os esforos ou os capitais

    de centenas ou de milhares de pessoas. A societas era, simplesmente, um contrato que traduzia

    uma relao de cooperao, entre duas ou mais pessoas.

    O desenvolvimento da personalidade coletiva: como elemento autnomo na moderna dogmtica das sociedades, temos a ideia de personalidade coletiva e o seu

    desenvolvimento atravs da Histria. Os antecedente romanos da personalidade coletiva so

    de reconstituio difcil. O ius romanum no procedeu elaborao do conceito: a prpria

    personalidade jurdica, como ideia geral, lhe ter sido estranha. A elaborao conceitual anda

    a par com a lingustica. Significativamente falta, em latim clssico, o equivalente a personalidade

    jurdica. A locuo persona grego traduzia a mscara usada em representaes

    teatrais2. Numa evoluo semntica que tem constitudo, ao longo dos tempos, um excelente

    tema de meditao, persona passou a designar as personagens retratadas, os figurantes e, por

    fim, os agentes em geral. Queda procurar, no Direito Romano, figuras afins das que, hoje,

    preencham o universo das pessoas coletivas. Nessas condies, apresenta-se como a mais

    antiga o populus romanis no que, com todas as distncias e salvaguardas, se pode considerar

    uma antecipao da ideia de Estado. O populus operava, na verdade, como sujeito de direitos

    e de obrigaes. No perodo do Imprio, ele vem referido como fiscus. Essa potencialidade

    estendeu-se a outras figuraes de base territorial, como os municpios e as colnias. Alm

    destas estruturas, que hoje se diriam de Direito Pblico, outras ocorreram, de base pessoal.

    Assim, apareceram as universitates de pessoas com relevo para os collegia profissionais, para a

    soladites de base religiosa e para diversos tipos de societates. A Histria de Roma parece, alis,

    documentar uma certa marcha para a liberdade de associao, ainda que com recuos,

    motivados por razes de ordem pblica e poltica: a lex julia de collegiis veio, por exemplo,

    reconhecer apenas collegia antigos, sujeitando os que viessem a ser constitudos a uma

    autorizao prvia. A consagrao romana das fundaes parece duvidosa. A opinio

    dominante entende que, embora com razes em iniciativas crists do Baixo Imprio, elas

    apenas seriam reconhecidas na Idade Mdia. Coo ideia, a personalidade coletiva foi

    desenvolvida a partir de textos romanos. Mas para tanto, era necessria a incidncia de um

    pensamento cientfico formalmente ordenado, isto : daquilo que temos vindo a designar

    pensamento sistemtico. Os canonistas, pelas necessidades prticas que tiveram de enfrentar,

    foram percussores. Visando enquadrar os diversos institutos de natureza eclesistica, os

    canonistas recuperaram e alargaram a instrumentao deixada pelos jurisprudentes romanos.

    Na base das universitates, eles vieram a alcanar um conceito de ordem geral. A ideia de fico

    no visava apenas transpor, para o Direito, a metfora literria de que fala Ruffini

    porventura para retirar, dela, efeitos necessrios s realidades do seu tempo veio, com base

    na sua natureza, apresentar concluses: universitas autem non potest excommunicari: quia umpossible

    2 A etimologia do termo pode ser confrontada em Blumethal; uma aceo particularmente

    verosmil, v, em persona, per + sonare soar atravs de o que joga com o papel da mscara,

    no teatro clssico: os atores falavam atravs dela, melhorando at, por essa via, nalgumas

    opinies, o tom da voz. A persona ter sido introduzida, em Roma, vinda da Grcia, pelo atos

    ROSCIUS, em 100 a.C.. as fontes referentes a persona e a , com a evoluo

    subsequente, podem ser confrontadas na obra clssica de Siegmund Schlossmann.

  • Direito Comercial II | Antnio Menezes Cordeiro 2015/2016

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    est quod universitas deliquat: qui universitas, siant et capitulum, populus, gens, et huiusmodi, nomina sint

    iuris, et non personarum apud Rufifini. Procurando justamente passar do somatrio de pessoas

    singulares para a pessoa coletiva, Sinibaldo Dei Fieschi (Inocncio IV) vem apontar que o

    sujeito de direitos no a pessoa natural, mas sim a fictcia: cum collegium in causa universitatis

    fingatir una persona. Os glosadores moveram-se sobre textos romanos onde a personalidade

    coletiva era patente. No entanto, seja por falta de meios cientficos, seja pelo influxo da

    realidade medieval ou seja, por fim, pela impossibilidade de levar demasiado longe a

    capacidade de abstrao, eles no avanaram. Nas palavras de Ruffini, os glosadores no

    souberam conceber a personalidade jurdica sem o substrato de uma coletividade de pessoas;

    a corporao seria ento, simplesmente, a soma dos seus membros. No se deve

    menosprezar a obra dos glosadores: ela foi decisiva na evoluo subsequente. A sua ligao

    estreita ao canonismo permitiu recuperar a ideia de fico para o Direito Romano. Esta linha

    foi recebida pelos comentadores. Brtolo reporta-se ao que hoje chamamos pessoa coletiva

    como fico jurdica: secunde um fictionem juris universitas aliud quam homines universitatis e

    acrescentando quia propria non est persona; tamen hoc est fictum positum pro vero; sicut ponimus nos

    juristae. A evoluo tcnico-jurdica da personalidade coletiva requeria uma maior capacidade

    de abstrao. Apenas esta permite transcender comparaes muito simplistas com corpora

    ou aproximaes elementares ideia de fico. Em princpio, os juristas do humanismo

    estavam habilitados a dar o passo subsequente. Houve um certo esforo nesse sentido. Em

    Donnellus, a pessoa continua, essencialmente, a ser a singular. Althusius, todavia, precede j

    a uma contraposio bastante expressiva entre a pessoa singular e a coletiva. Os humanistas

    prolongaram a sua influncia no mos gallicum e nos jurisprudentes elegantes que o enformaram.

    Eles ocuparam-se dos entes coletivos, dando azo a uma tradio prpria que tomaria corpo

    na pr-codificao francesa. A afirmao pode ser ilustrada com Domat, que escreve,

    designadamente:

    () as comunidades legitimamente constitudas, funcionam como pessoas, e a sua unio, que

    torna comuns, a todos os seus interesses, os seus direitos e os seus privilgios, faz que elas sejam

    consideradas como um s todo.

    Pouco antes, explicara:

    () as comunidades que so corpos compostos de vrias pessoas, pra um fim pblico, e que,

    num Estado, so consideradas como se fossem pessoas.

    A ideias de Domat foram, diretamente, retomadas por Pothier, cuja influncia, no Code Civil,

    conhecida. Diz ele:

    Os corpos e comunidades, estabelecidos segundo as leis do reino, so

    considerados, no Estado, como se fossem pessoas: veluti personam sustinet;

    pois esses corpos podem, tal como as pesos, alienar, adquirir, possuir bens, litigar,

    contratar, obrigar-se e obrigar os outros para com eles.

    Esses Corpos so seres intelectuais, diferentes de todas as pessoas que os compem: universitas

    distat a singulis.

    Aparentemente, a pr-codificao francesa abrira o caminho, sendo de esperar que as pessoas

    coletivas obtivessem um lugar condigno, no ento futuro Cdigo Napoleo. Isso no

    sucederia: o perodo revolucionrio foi fortemente contrrio a entes que pudessem reduzir o

    papel nuclear do cidado individual. Alm disso e sobretudo: os jurisprudentes elegantes

  • Direito Comercial II | Antnio Menezes Cordeiro 2015/2016

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    franceses, embora conhecendo a ideia de personalidade coletiva, no lhe deram a focagem

    sistemtica necessria para, dela, fazer um dado nuclear do sistema. Exigia-se um nvel de

    pensamento abstrato que surgiria, entretanto, alm-Reno. A personalidade coletiva,

    entendida no sentido mais abstrato e como categoria geral e inserida no topo das introdues

    jurdicas, foi obra do racionalismo ou segunda sistemtica. Estava aberta a classificao que,

    at hoje, ocupa as primeiras pginas dos tratados de Direito Civil: a que contrape pessoas

    singulares s coletivas. Estas, por seu turno, contriburam para a conformao das sociedades

    comerciais e da sua dogmtica.

    As companhias coloniais: como terceiro fator histrico-cultural decisivo no desenvolvimento do atual Direito das sociedades temos os antecedentes das sociedades

    annimas e as companhias coloniais. Os estudiosos apontam, como a experincia mais antiga

    no domnio das sociedades annimas, o Banco de So Jorge, em Gnova, que operou entre

    1407 e 1805. Esta sociedade teve antecedentes significativos. Anlises mais recentes pem

    em dvida que se tivesse tratado de uma verdadeira sociedade annima, no sentido atual;

    tinha, no entanto, aspetos marcantes, como os da multiplicidade de participantes e a limitao

    da sua responsabilidade. Na evoluo subsequente, foram fundamentais as grandes

    sociedades coloniais, constitudas a partir do sculo XVII. Como a mais antiga temos a

    inglesa East India Company, fundada em 1600. Seguiu-lhe a Companhia Holandesa das

    ndias Orientais, instituda em 2 maro 1602 e que, atravs de vrias vicissitudes, sobreviveu

    at 1795. Esta sociedade, graas sobretudo ao apresamento de navios portugueses, no

    Oriente, chegou a pagar, aos acionistas, dividendos exorbitantes. Veio depois a Companhia

    Holandesa das ndias Ocidentais, de 1621. Tais entidades, apesar de representarem as foras

    econmicas de grupos privados, dependiam, duplamente, da outorga do Estado: para o seu

    prprio reconhecimento e, ainda, para o seu funcionamento. A sua personalidade era

    concedida por ato do Estado; alm disso, elas recebiam privilgios e funes de tipo pblico,

    esperando-se, em retorno, um desenvolvimento de atividades, em prol do Pas. Tambm na

    Inglaterra, a explorao colonial foi levada a cabo atravs de companhias privadas, que

    prefiguravam sociedades annimas, com relevo para a East India Company ou EIC. As

    companhias inglesas distinguiam-se, das holandesas, por assumirem uma estrutura

    associativa mais marcada, com uma deslocao de poderes para a assembleia e por atuarem

    em moldes mais concorrenciais. Assim, a charter de incorporao da Esta India Company

    permitia-lhe

    to make reasonable laws by the greatest part of a general assembly

    tendo, cada scio, um voto. No Continente, o esquema das companhias holandesas foi mais

    influente. Colbert utilizou os seus estatutos, quando da instituio das grandes companhias

    francesas, com relevo para a das ndias Orientais. As companhias francesas pioneiras foram

    a Compangnie des Iles dAmrique (1626), a Compangnie de la Nouvelle France (1628), a Socit franaise

    des Indes Orientales e a Compagnie des Indes Occidentales (ambas de 1664). A nvel interno, as

    companhias holandesas tinham participantes principais e subparticipantes. Apenas, aos

    primeiros, assistia o direito de nomear administradores, encontrando-se, sempre, numa

    grande solidariedade pessoal e de interesses com eles: o esquema funcionava, pois, como

    projeo de um restrito grupo de grandes comerciantes. Transposta para as companhias

    coloniais francesas, esta estrutura redundaria num instrumento poderoso do rei que, de facto,

    determinava as escolhas. Na experincia holandesa, os administradores resultaram dos

    diretos de antigas pequenas companhias que, pelo octrooi dos Estados Gerais da Holanda, de

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    1602, foram elevados a administradores. Mas se os esquemas do poder so os que, mais

    diretamente, prendem a ateno, no possvel esquecer o dia-a-dia do comrcio societrio.

    A, h que jogar com regras tcnicas que, embora menos visveis, tm uma importncia

    decisiva no moldar de uma cultura jurdica. A esse propsito, desde Troplong que os autores

    sublinham a importncia direta dos estatutos da Compagnie des Indes Orientales, na redao de

    certos preceitos do Code de Commerce de 1807, em matria de sociedades annimas. Est-se,

    pois, na presena de uma linha continua, at aos nossos dias. De todo o modo, tem sido feita

    uma contraposio interessante entre as experincias inglesa, holandesa e francesa, todas

    importantes para o futuro das sociedades annimas: a experincia inglesa assentou na

    iniciativa particular; a holandesa visou acabar com a concorrncia que existira nos Pases

    Baixos, antes da companhia de 1602; a francesa derivou de iniciativas do Estado. Como foi

    dito, as companhias coloniais do sculo XVII dependiam da outorga do rei ou do governo.

    Visando sedimentar essas sociedades como entidade autnomas e juridicamente

    diferenciadas, pretendeu-se libertar os administradores de adstries. Segundo o artigo II da

    Carta da Companhia das ndias Orientais Francesa,

    () nem os diretores nem os particulares interessados (portanto, os scios) podero ficar

    adstritos,, seja qual for a causa ou pretexto, a fornecer qualquer garantia, para alm daquela

    pela qual se obrigaram no primeiro estabelecimento da Companhia (portanto, a subscrio), ou

    atravs de suprimento ou de outra forma.

    Esta medida, em si compreensvel, veio somar-se ao facto de os administradores dependerem

    apenas do conselho do rei. Os interesses dos acionistas privados no estavam acautelados o

    que, na poca, causou vrios protestos. Durante o longo perodo de guerra com a Espanha,

    os administradores negavam-se a prestar informaes aos scios, alegando a necessidade de

    segredo militar. Posteriormente, o prprio dever estatutrio de prestar informaes acabaria

    por ser suprimido. Se no fosse a inverso provocada pela Revoluo Francesa e pela

    subsequente revitalizao do privatismo, as companhias teriam basculhado, para o Direito

    Pblico, comprometendo o futuro das sociedades annimas, tal como as conhecemos. No

    Sculo XVIII, sucederam-se as tentativas de lanar sociedades de capitais desligadas do

    Estado e dos seus privilgios; chegou-se, mesmo, a falar na sua democratizao. Tais

    tentativas fora, porm, minadas por escndalos financeiros, de que o Banco de Law foi o

    mais conhecido exemplo. A memria desses episdios impressionou os espritos, de tal

    modo que, na Revoluo Francesa, uma legislao radical veio proibir as sociedades de

    capitais, designadamente quando tivessem objetivos financeiros. O Diretrio, em 1796, veio

    inverter esse processo, abrindo as portas decisiva reforma de 1807.

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    Seco II A doutrina das pessoas coletivas

    23. - A personalidade coletiva

    As doutrinas clssicas: o desenvolvimento geral da autonomia da personalidade coletiva constituiu um dos fatores de sedimentao das sociedades. Cumpre, agora, referir o

    estado atual dos problemas: ele opera como um dos vetores integrantes da dogmtica bsica

    das sociedades, condicionando diversos aspetos do seu regime. O pensamento jurdico atual,

    no tocante personalidade coletiva, deve-se a Savigny. Alm disso, tem-lhe sido imputada a

    teoria da fico: a primeira das doutrinas clssicas sobre o tema. A literatura que o antecedeu

    manteve o tema nas estreitas fronteiras que lhe advinham do jusracionalismo. A propsito

    das pessoas, fala-se, apenas, em homens, quedando-se as pessoas coletivas por breves

    referncias esparsas. O relevo regulativo da figura era escasso. A mudana radical ocorreu

    com Glck o qual, retomando Heise e consagrado por Savigny, tornou irreconhecvel toda a

    evoluo subsequente. A personalidade coletiva incluiu-se entre os institutos privados

    definitivamente marcados por Savigny. Dela, Savigny deixou-nos uma ideia geral, uma

    construo tcnica, uma explicao terica e uma cobertura ideolgica. Assim, em termos

    gerais, pessoa todo o sujeito de relaes jurdicas que, tecnicamente, no corresponda a

    uma pessoa natural, mas que seja tratado como pessoa, atravs de uma fico terica: situao

    que se justifica para permitir determinado escopo humano. O pensamento de Savigny passou

    a constituir ponto de partida obrigatrio para os diversos estudos sobre a dogmtica da

    personalidade coletiva, at aos nossos dias. Um entendimento tradicional traava um quadro

    bastante plausvel: Savigny estaria imbudo de ideias libero-individualistas, pelo que, como

    pessoa, s podia entender o ser humano individual (Mensch); levado por razes de ordem

    tcnica, Savigny acabaria por admitir pessoas coletivas, mas apenas a ttulo de fico jurdica.

    Essa leitura de Savigny foi posta em causa por Flume. Segundo este autor, Savigny conhecia

    bem a existncia de um substrato real, subjacente s pessoas coletivas. A referncia a uma

    fico, em sentido prprio, teria resultado de um mal-entendido na leitura de Savigny; haveria,

    na verdade, apenas, uma transposio. O problema suscitado por Flume no tem resposta

    clara. Savigny parece indicar que, na verdade, quando ele falava em fico, no lhe d o

    sentido de fingimento, que o termo adquiriria na literatura posterior. Nesse sentido, Flume

    tem razo: a verdadeira teoria da fico surgiria mais tarde, podendo ainda acrescentar-se que,

    alm disso, ela tem razes bem anteriores a Savigny. No pode, contudo, ignorar-se que o

    qualificativo fico tinha um imediato alcance dogmtico. Ao efetu-lo, Savigny no

    pretendia lucubrar sobre teorias mas, pelo contrrio, apontar um regime. Ora h dois pontos

    do regime das pessoas coletivas que mau grado o silncio da doutrina derivam da natureza

    essencialmente ficciosa do fenmeno da responsabilidade coletiva: a impossibilidade de

    aplicao analgica das normas ficciosas e a irresponsabilidade, penal e civil aquiliana, das

    prprias pessoas coletivas. A evoluo da Cincia do Direito ultrapassaria, nas dcadas

    ulteriores, a construo de Savigny. A reconduo da personalidade coletiva mera categoria

    de fico punha em jogo a sua prpria subsistncia. A questo tinha de ser formalizada, com

    frontalidade: em que medida no seria a personalidade coletiva mais do que um expediente

    tcnico, para prosseguir determinados objetivos? Jhering responde afirmativamente a essa

  • Direito Comercial II | Antnio Menezes Cordeiro 2015/2016

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    questo. E f-lo com argumentos ponderosos. Desde logo, coloca o tema da personalidade

    depois do do direito subjetivo que, sabidamente, define como o interesse juridicamente

    protegido. O primeiro elemento do direito subjetivo seria o interesse. Como segundo

    elemento surge a proteo, mxime pela ao judicial, e que corresponde a um critrio de

    Direito Privado. Na sociedade ocorrem certos interesses, indeterminados ou gerais, cuja

    defesa exige uma particular colocao de modo a poderem comportar a ao judicial. A

    acodem as pessoas coletivas: so modos de posicionar os referidos interesses indeterminados

    ou gerais, como forma de os tornar operacionais, perante a ao judicial. Mas os interesses

    so-no, sempre, dos homens; por isso, Hjering passa a descobrir quem se abriga por detrs

    das diversas pessoas coletivas: nessas condies estariam os verdadeiros titulares dos seus

    direitos. Esta evoluo tinha um termo lgico. Se as pessoas coletivas e, da, as pessoas em

    geral mais no eram do que um expediente tcnico para assegurar a tutela jurdica de certos

    escopos, ento elas podiam ser dispensadas. As realidades deveriam ser chamadas pelos seus

    nomes: os escopos com determinada aetao. Esta posio negativista foi defendida por

    Brinz. O Direito no vive no pode viver - de expedientes lingusticos. Por isso, se a pessoa

    (Coletiva) mais no fosse do que um expediente, destinado a permitir a ao judicial, em

    relao a escopos coletivos ou indeterminados ou quaisquer outros poderia ser

    dispensada, como complicao suplementar intil. Numa palavra: a crtica de Brinz no pode

    ser positiva. Mas para tanto, haveria que aguardar, ainda, uma longa caminhada cientfica. O

    vazio deixado pela tecnicizao da personalidade coletiva levou a doutrina do sculo XIX a,

    vivamente, procurar um contedo para preencher essa noo. As mltiplas tentativas desde

    ento verificadas podem agrupar-se em sistematizaes que no sendo inquas, variam com

    os autores. Pela facilidade de reconstruo histrica que possibilita, vai recorrer-se

    ordenao cronolgica dos esforos efetuados. A reao mais caracterstica e cabal ao

    ficcionismo tcnico viria de Von Gierke e da sua conceo, que ficaria conhecida como teoria

    orgnica ou do realismo orgnico e que daria azo, mais tarde, a uma generalizada busca de

    substratos, para a pessoa coletia. Von Gierke desenvolve a sua construo sobre a

    personalidade coletiva na base de uma crtica denominada teoria da fico. Aps aturados

    estudos histricos, Von Gierke levado a concluir pela efetiva existncia, na sociedade, de

    entidades coletivas que no se podem reduzir soma dos indivduos que as componham. A

    realidade social no permitiria, portanto, concluir pela existncia, apenas, de pessoas

    singulares: junto a estas operariam as pessoas coletivas. Explica este autor:

    A pessoa coletiva uma pessoa composta. A sua unidade no se exprime numa essncia

    humana singular, mas, antes, num organismo social que, na sua estrutura orgnica surge,

    tradicionalmente, com um corpo, com cabea e membros e com rgos funcionais, mas apenas

    como imagem social.

    Resultaria, da, que:

    A pessoa coletiva uma pessoa efetiva e plena, semelhante pessoa singular; porm, ao

    contrrio desta, uma pessoa composta.

    A construo de Von Gierke tem sido criticada pelo inslito que implica a referncia a rgos,

    especificamente cabea e membros, nas pessoas coletivas. A crtica no justa: Von Gierke

    explica que, por um lado, tambm a pessoa singular s age atravs dos seus rgos; por outro,

    tais referncias so meramente ilustrativas. Imputa-se, ainda, a Von Gierke, uma certa

    definio quanto natureza ltima dos organismos, que servem de substrato s pessoas

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    coletivas. Na realidade, tais organismos era assumiriam natureza histrico-cultural, ora seriam

    apresentados como realidades sociolgicas, ora seriam remetidos para o elemento humano

    subjacente. Responde Von Gierke:

    No sabemos, verdadeiramente, o que e a vida. Mas no a podemos, por isso, excluir da

    Cincia. Sabemos, de facto, que a vida existe (). Assim, construmos um conceito de vida

    com o qual operamos nas cincias da natureza e nas do esprito.

    Finalmente, considera-se que o Direito Positivo, por vezes, personifica realidades pura e

    simplesmente carecidas de substrato, enquanto outras, dele guarnecidas, no so

    contempladas. A orientao orgnica de VOn Gierke tem o mrito de recordar que a

    personalidade coletiva corresponde a uma realidade histrica e sociolgica, que ultrapassa o

    arbtrio do Direito. Este pode no reconhecer todos os organismos que o mereceriam, como

    Von Gierke no deixa de notar. Mas quando isso ocorra, o legislador esquece a realidade,

    atentando contra a ideia de Direito. Por outro lado, atribuir personalidade a algo que no

    corresponda a qualquer substrato, estar, por certo, prximo da fico. O grande bice de

    construo de Von Gierke reside na dimenso tcnica que a personalidade coletiva veio a

    assumir. Embora essa dimenso no a esgota, ela existe e no deve ser esquecida. Ora, desde

    o momento que o Direito Positivo personifique entidades que ainda no tm substrato

    orgnico e que porventura nunca o viro a ter, h que procurar, alhures, a sua essncia.

    Como esta ressalva, Otto Von Gierke ficar como o cientista do Direito que mais

    profundamente estudou a personalidade coletiva. Embora a linguagem metafrica de on

    gIerke tenha sido desamparada, a ideia bsica por ele defendida permaneceria em largos

    setores da doutrina. Tal ideia traduz-se na assero de que, na personalidade coletiva, no h

    uma pura criao jurdica ou um simples expediente normativo: o Direito limitar-se-ia a

    reconhecer algo de preexistente, ou seja, um determinado substrato, cuja natureza, depois,

    se poderia discutir. Alm disso, da pessoa coletiva emanaria uma dimenso supraindividual.

    At aos nossos dias, tem sido reconhecida pelo menos uma parcela de razo a Von gIerke.

    O organicismo de Vom Gierke veio ceder o lugar a substratos mais subtis. Assim, possvel

    apontar trs tradies que procruram o substrato das pessoas coletivas, respetivamente, em

    acervo de bens, em manifestaes institucionalizadas da vontade ou em organizaes no

    especficas. O acervo de bens ou patrimnio de afetao remonta corajosa construo de

    Brinz e, mais longe, a uma das leituras de Jhering. Perante a prtica jurdica corrente,

    habituada a lidar com as pessoas coletivas, esta orientao foi perdendo as suas vestes

    negativistas. Em Windscheid, ainda se mantm alguns aspetos: admitem-se os prprios

    patrimnios como sujeitos de direitos. Schwarz, por fim, reconstitui a unidade das pessoas,

    asseverando que, em todos os casos, a personalidade resulta do escopo dos patrimnios

    afetos, numa posio que aflora igualmente em Rhode. A vontade, e com razes em Savigny,

    surge, de modo repetido e na literatura da poca, como um excelente substrato para as

    pessoas coletivas. Num importante trabalho, Zitelmann vem concluir que a personalidade

    a capacidade de ter uma vontade jurdica. KArlowa retoma esta orientao, conectando-a,

    alis, com o pensamento hegeliano, enquanto Regelsberger fala em centros de atuao e de

    vontade. Levando esta orientao at s suas fronteiras lgicas, Hlder defende o

    representante como o efetivo substrato da pessoa coletiva. Posteriormente, autores como

    Haff, so levados a abordar o tema da personalidade coletiva atravs da vontade, como modo

    de aprofundar as construes de Von Gierke. Os apelos a uma organizao de tipo jurdico

    e, portanto, a no confudnir com o organicismo, de Von Gierke vo surgir, com exemplo

    em Enneccerus: as pessoas coletivas so organizaes, reconhecidas como sujeitos, de

  • Direito Comercial II | Antnio Menezes Cordeiro 2015/2016

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    direitos e de vontade. Todas essas orientaes, cada vez de leitura mais complexa e subtil,

    defrontavam-se com uma dificuldade de raiz: a multiplicao das pessoas coletivas permitia,

    em contnuo, apresentar casos nos quais faltava, ora o patrimnio, ora a vontade, ora a

    organizao. Noutros termos: no h um patrimnio, ora a vontade, ora a organizao.

    Noutros termos: no h um substrato que possa, com razoabilidade, amparar todas as todas

    as pessoas coletivas que a prtica jurdica permite documentar. Os estudiosos recorreram,

    ento, a abstraes crescentes. O pensamento neo-hegeliano, particularmente apto para a

    superao do personalismo kantiano atravs da concretizao das ideias, forneceu, num

    primeiro tempo, quadros mentais e lingustico para a abstrao dos substratos.

    Realismo jurdico e tendncias recentes: os esforos acima notados no sentido de, para as pessoas coletivas, encontrar um substrato foram, claramente, esmorecendo. A

    variedade de situaes a que o Direito vinha reconhecendo a personalidade coletiva

    inviabilizava qualquer hiptese razovel de construir substratos unitrios ou sequer,

    classificveis. Os juristas vieram a refugiar-se em construes cada vez mais tericas ou

    tcnico-jurdicas. A teoria da fico, reportada sem grande critrio a Savigny, era recusada

    perante a presena efetiva de pessoas coletivas. Porm, tambm o organicismo e os diversos

    substratos eram desamparados, dada a presena irrefutvel dos mais diversos tipos de

    pessoas coletivas. A pessoa coletiva veio, ento, a ser definida com recurso a pura

    terminologia jurdica e por pessoa singular. Em contrapartida teoria da fico, esta

    orientao dita realismo; e por contraposio aos diversos substratos, ela considera-se

    jurdica. O realismo jurdico remonta aos aspetos tcnicos da noo de Savigny. Tais aspetos

    foram sobrevalorizados por algum pandectstica tardia, ao ponto de se tornarem nos nicos

    fatores a ter em conta, na definio. Em troos j citados, Windscheid e de Enneccerus, nota-

    se uma referncia muito tmida a substratos; o essencial das respetivas noes tcnico-

    jurdico. A partir daqui, autores das mais diversas formaes vm apresentar noes que

    pretendem combater o ficcionismo com recurso a categorias jurdicas. Para BInder, ser

    sujeito de direito estar numa relao, dada pela Ordem Jurdica, e que ns chamamos direito

    subjetivo. Saleilles, embora considerando analtica a frmula de Binder, adere tambm ao

    realismo. Wolff apela a um conceito tcnico-jurdico de pessoa, enquanto Brecher sublinha

    que o sujeito de direito s o por fora da lei. O realismo jurdico tem sido doutrina oficial

    em Frana, em Itlia e em Portugal. O realismo jurdico teve, por fim, um influxo muito

    marcado em Portugal, ao ponto de poder considerar-se, tambm a, como uma verdadeira

    doutrina oficial. Logo no incio, essa orientao, bem documentada em Jos Tavares e Cunha

    Gonalves, partia de uma srie de classificaes de doutrinas nem sempre muito ajustadas

    ao verdadeiro pensamento dos autores classificados rebatendo os diversos termos. No fim,

    a pessoa coletiva, mais ou menos amparada em referncias poltico-filosficas, era defendida

    como uma realidade jurdica ou tcnica. Manuel de Andrade, alis com uma referncia a

    Ferrara, apresenta a pessoa coletiva como um produto da ordem jurdica ou uma realidade

    do mundo jurdico, na qual o essencial o elemento jurdico. A frmula de Andrade

    reaparece, em Mota Pinto; simplesmente, d-se uma caminhada no sentido da sua

    formalizao, em termos que, a ter havido evoluo, poderiam ter levado a opes de tipo

    analtico ou normativista, mais modernas. Perto dessa evoluo esteve Jos Dias Marques

    que , aps percorrer as tradicionais classificaes das doutrinas, acaba por fixar-se numa

    orientao jurdica e realista, definido a pessoa como mera suscetibilidade de direitos e

    obrigaes. J Paulo Cunha e Castro Mendes ficaram mais prximos de um realismo jurdico

    tradicional, semelhana de diversa doutrina que os antecedeu e que lhes sucedeu. Apenas

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    em Heinrich Ewald Hrster, de modo muito sinttico e em Coutinho de Abreu, se tentaria

    superar o realismo mais tradicional. Cumpre apreciar. O realismo jurdico uma formula

    vazia: ela s significa algo pelo que cala: a inviabilidade das construes que a antecederam.

    Na verdade, a personalidade coletiva , seguramente, personalidade jurdica e, da, uma

    realidade jurdica. Mas com semelhante tautolgica, pouco teremos avanado, no sentido de

    determinar a sua natureza. Wieacker procura apresentar toda esta situao sob cores mais

    amenas: as diversas teorias no seriam concorrentes, mas complementares. Contudo, isso

    no parece possvel: de um modo geral, as diversas teorias apresentam-se globais; alm disso,

    elas assentam em lgicas internas prprias, que no facultam miscigenaes. Chegamos a

    este ponto, restaria concluir pelo esvaziamento do contedo da pessoa coletiva: esta

    assumiria, hoje, um puro contedo tcnico-jurdico, no tendo qualquer significado discutir

    teorias. E de facto, multiplicam-se os manuais que, de pessoa coletiva, do breves definies

    tcnicas, ou abandonam, pura e simplesmente, a tarefa da sua definio. Estas opes so

    cientificamente insustentveis: elas surgem como um pragmatismo agnstico que, como

    suporte, apresenta as dificuldades em descobrir a verdade. Ora se parece admissvel e

    mesmo razovel proclamar que, de momento, a Cincia do Direito no conseguiu explicar

    a essncia da personalidade coletiva, j no aceitvel uma pura e simples demisso, quanto

    a essa tarefa. Por isso, a mais recente doutrina tem vindo a abandonar o realismo jurdico, o

    tecnicismo e o agnosticismo, procurando novos rumos para aquele que, tendo sido

    considerado o problema do sculo XIX, conseguiu atravessar, sem soluo, todo o sculo

    XX. O panorama atual relativo determinao da natureza da personalidade coletiva

    mantm-se pouco animador. Em termos quantitativos, ele mantm-se dominado pelas

    orientaes realistas, tecnicistas, pragmticas ou agnsticas. No entanto, alguns autores,

    conservando acesa a chama da Cincia do Direito, tm procurado ir mais longe,

    aprofundando o problema. Torna-se interessante notar que, muitas vezes, essas tentativas

    redundam em retornos s posies clssicas, do sculo XIX. Surgem, assim posies

    negativistas, apelos de regresso a Savigny e defesas de diversos substratos, com relevo para

    os patrimnios de afetao ou para as realidades sociais subjacentes. Uma posio negativista,

    qu eproclama a pura e simples inutilidade do conceito de pessoa coletiva, a de Ernst Wolf.

    Na verdade, possvel fazer uma exposio de Direito Civil onde, pura e simplesmente, suja

    suprimida a referncia a pessoas coletivas; apenas haver, depois, que repetir, a propsito de

    cada figura singular, as consequncias prprias do que, normalmente, se vem chamando

    personalizao. O negativismo de Ernst Wolf, tem vindo a ser criticado; no entanto, h que

    mant-lo como hiptese, ltima vlvula de segurana contra a eventual incapacidade dos

    juristas, quanto manuteno em vida da personalidade coletiva. O regresso a Savigny no

    deve ser tomado como uma pura e simples afirmao da teoria da fico, nas leituras, um

    tanto abusivas, que , do System, a ela conduziram. Ele constata, mais simplesmente, que a

    ideia de personalidade foi construda na base da pessoa singular tendo, da, sido extrapolada

    para a coletiva. Cumpre, depois, referir posies como as de Herbert Wieldemann, ou de

    Massimo Bianca. Ara Wieldmann, nas pessoas coletivas, um patrimnio especial sujeito de

    direitos. H um retomar de Brinz, numa rea em que as construes deste, como focaria

    Schwartz, so particularmente verosmeis. Para Massimo Bianca, as pessoas coletivas tm

    subjacente, uma realidade social. Desta feita, projeta-se a sombra de Von Gierke. Finalmente,

    refira-se John: na base da pessoa coletiva assenta numa estrutura, com trs elementos:

    organizao de atuao, centro de responsabilidade e ponto de referncia designado;

    teramos, assim, uma morfologia das personificaes, num organicismo tcnico. Mais

    interessante parece ser a considerao de que a personalidade coletiva ou, se se preferir, a

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    personalidade jurdica, no seu todo no pode mais ser tratada como uma categoria absoluta:

    antes haver que relativiza-la. Trata-se de um ponto para o qual a comercialstica tem dado a

    um contributo. A doutrina tradicional contrapunha personalidade, a capacidade: a primeira

    daria um teor quantitativo do ente, enquanto a segunda se ligaria a aspetos quantitativos.

    Noutros termos: as diversas pessoas podem ter maiores ou menores capacidades de direitos

    ou de adstries; mas ou so pessoas, ou no o so. Esta absolutizao da personalidade, que

    obriga a reduzir, num mesmo conceito, realidades profundamente diversas, constitui um dos

    bices que tm travado uma doutrina, cabal e coerente, das pessoas coletivas. Justamente:

    reas crescentes do moderno privatismo tentam pr cobro a essa anmala absolutidade. Na

    origem, encontramos alguns estudiosos clssicos do incio do sculo XX, como Chironi, que,

    estudando a natureza da personalidade coletiva, logo sublinham a multiplicidade das suas

    concretizaes: no fundo, como bem explicou de Ruggiero, a pessoa coletiva define-se,

    apenas, pela negativa: no ser singular. Modernamente, temos Fabriccius, que, estudando a

    relatividade da capacidade jurdica, no deixa de focar os reflexos que essa relatividade tem

    nas prprias pessoas, enquanto tais. Porm, s mais recentemente, a ideia de personalidades

    parcelares tem vindo a ser divulgada, sobretudo em torno do estudo das sociedades do BGB.

    Trata-se de uma posio com inmeros efeitos prticos, uma vez que permite, entre outros

    aspetos, equacionar novos direitos reconhecidos s sociedades civis puras que, no BGB,

    no seriam personalizadas , encarar a personalizao parcelar das sociedades profissionais,

    explicar a incidncia de deveres legais, sobre sociedades em formao, bem como o seu

    especfico regime de responsabilidade. A essa luz, a contraposio entre sociedades de

    pessoas (que, no Direito alemo, no teriam personalidade jurdica plena) e de capitais tende

    a esbater-se. Com as cautelas que presidem alterao de temas centrais deste tipo, a

    evoluo parece estar em marcha.

    Posio adotada: afigura-se til aproveitar algumas concluses propiciadas pela ponderao das inmeras teorias, historicamente surgidas, para explicar a essncia da

    personalidade jurdica. Temos por assente que, pelo menos no campo da personalidade

    coletiva, o tempo das descobertas intuitivas geniais acabou com Savigny. No pensvel

    assumir posies inovadoras sem todo um paciente trabalho de estudo e de meditao. As

    doutrinas no se criticam com rotulagens, sob pena de pr em crise a natureza cientfica do

    Direito. Recuperando um tanto a formulao seriada de Uwe John, temos o seguinte: a

    pessoa do Direito deve surgir como uma realidade independente; ela deve dar azo a conceitos

    dogmaticamente operacionais; ela pode aproveitar as diversas teorias historicamente

    ocorridas. H que entroncar, aqui, um dos mais estimulantes files da atualidade e que tem

    sido dedignado corrente analtica ou corrente normativa, sem com isso, se pretender uma

    unificao desses termos. Quando, em Direito, se fala na personalidade coletiva, pretende-

    se, quando no se teorize, exprimir um regime jurdico-positivo. Por isso, toda uma tradio,

    com exemplo j clssico em Rittner, procede a uma abordagem dogmtica do tema. Em Itlia

    e na sequncia de genial intuio de Ascarellu, notavelmente prosseguida por DAlessandro,

    a ideia conheceu um desenvolvimento autnomo. A pessoa coletiva , antes do mais, um

    determinado regime, a aplicar aos seres humanos implicados. Estes podem ser destinatrios

    diretos de normas; mas podem-no ser, tambm, indiretamente, assim como podem receber

    normas transformadas pela presena de novas normas, agrupadas em torno da ideia de

    pessoa coletiva. No caso de uma pessoa de tipo corporacional, os direitos da corporao so

    direitos dos seus membros. Simplesmente, trata-se de direitos que eles detm de modo

    diferente do dos seus direitos individuais. Referir, em Direito, uma pessoa considerar a

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    presena de uma entidade destinatria de normas jurdicas e portanto: capaz de ser titular de

    direitos subjetivos ou de se encontrar adstrita a obrigaes. A afirmao da personalidade

    ser, pois, a considerao de que o ente visado pode autodeterminar-se, no espao de

    legitimidade de que o ente visado pode autodeterminar-se, no espao de legitimidade

    conferido pelos direitos de que seja titular, e deve agir, no campo das suas adstries. O

    modo por que vo ser exercidos os direitos e cumpridas as obrigaes j no esclarecido

    pela afirmao sumria da personalidade: isso depender de mltiplas outras normas jurdicas,

    cuja aplicabilidade, no entanto, postula a personalidade e deriva dela. Qualquer norma de

    conduta permissiva ou de imposio ser sempre, em ltima anlise, acetada por seres

    humanos conscientes, o que dizer, por pessoas singulares capazes. Qualquer fruio de

    bens ser, tambm, sempre sentida, em ltima instncia, por pessoas singulares e isso no

    obstante, muitas vezes (quase sempre?) a verdadeira fruio exigir um compartilhar de

    vantagens. Por razes histricas, culturais, econmicas, prticas, lingusticas ou casuais, as

    normas assumem, com frequncia, frmulas indiretas para atingir os seus destinatrios. Em

    Direito, pessoa , pois, sempre, um centro de imputao de normas jurdicas, isto : um polo

    de direitos subjetivos, que lhe cabem e de obrigaes, que lhe competem. A pessoa singular,

    quando esse centro corresponda a um ser humano; coletiva na terminologia portuguesa

    em todos os outros casos. Na hiptese da pessoa coletiva, j se sabe que entraro, depois,

    novas normas em ao de modo a concretizar a imputao final dos direitos e dos deveres.

    Digamos que tudo se passa, ento, em modo coletivo: as regras, de resto infletidas pela

    referncia a uma pessoa, ainda que coletiva, vo seguir canais mltiplos e especficos, at

    atingirem o ser pensante, necessariamente humano, que as ir executar ou violar. A definio

    apresentada sistemtica, tcnica e funcional: permite, numa frmula sinttica, a articulao

    da personalidade com o direito subjetivo e os demais nveis da ordem jurdica. , ainda,

    unitria. Pergunta-se, porm, se no apresentar um excessivo plano de formalismo,

    reduzindo a personalidade a um expediente tcnico, prximo das correntes normativistas e

    analticas. A verdade, porm, que os diversos ordenamentos dos nossos dias, guiados por

    necessidades materiais e de normalizao, concedem a personalidade s mais variadas

    entidades, independentemente do eu substrato. Por isso, no vivel induzir uma definio

    plausvel da pessoa coletiva que mantenha uma referncia a um qualquer substrato. Alm

    disso, o mapa das diversas pessoas coletivas possveis, desde o Estado at s discutveis

    sociedades civis puras, to vasto e diversificado que s custa da abstrao se tornaria

    possvel encontrar um esquema que tudo abranja. Porm e como j foi adiantado este

    formalismo abstrato, fatalmente necessrio, no vai ao ponto de esquecer a referncia a

    pessoa. O Direito poderia ter encontrado qualquer outra expresso para designar os centros

    coletivos de imputao de normas jurdicas, que no a de pessoa. No o fez. Numa receo

    cultural, cujo mrito remonta a Savigny e seus antecessores, aos jusracionalistas e, mais longe,

    aos canonistas, procedeu-se transposio da prpria figurao humana: pessoa. Houve

    transposio: bom lembr-lo e, aqui, o retorno a Savigny surge inevitvel e saudvel. Mas

    transposio, quanto possvel, efetiva. Tanto basta e seria possvel mais? para que a

    referncia a uma pessoa coletiva, para alm da imediata eficcia tcnica, no plano da aplicao

    de normas jurdicas, envolva representaes tico-normativas, determinantes na aplicao de

    normas e princpios. A focagem deste ponto essencial, na nossa construo e isso com

    mltiplas consequncias dogmticas e regulativas mais do que sobeja para substancializar

    a personalidade coletiva.

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    24. - A ordenao das pessoas coletivas3

    Polos, classificaes e tipologias: uma arrumao das sociedades passa pela ordenao prvia das pessoas coletivas e das realidades a elas afins. As pessoas coletivas

    obedecem a regras que, dentro de certos limites, ditam a sua conformao interna, o seu

    modo de atuar e o universo da sua atuao. No obstante essas limitaes, elas podem

    desenvolver as mais diversas realizaes humanas, dando corpo a variadas tcnicas de

    atuao. A Organizao das Naes Unidas, os diferentes Estados ou uma pequena

    sociedade de amigos: todos so pessoas coletivas tendo em comum, apenas, um trao

    negativo: o no serem seres humanos. Nestas condies, compreende-se o especial interesse

    que, para o conhecimento e a anlise da matria, tm as classificaes. Temos, todavia, de

    contar com um bice importante. As classificaes operam por genus proximum e differentia

    specifica, o que implica, pelo menos: que as distintas espcies de pessoas coletivas caibam num

    mesmo gnero e que seja possvel destrina-las em funo de critrios uniformes. No

    obstante, as possibilidades de classificaes lgicas no so totais. As pessoas coletivas tm,

    ao longo da Histria, conhecido desenvolvimentos assimtricos. Podemos considerar que

    elas evoluram em torno de determinados polos, ao sabor de problemas concretos. Apenas a

    posteriori surgiram ordenaes sistemticas e cpulas explicativas. Um polo de

    desenvolvimento autnomo constitudo pelas sociedades comerciais e, dentro destas, pela

    sua matriz: as sociedades annimas. Boa parte das regras atinentes ao regime interno das

    pessoas coletivas, com relevo para as tcnicas de funcionamento das assembleias e para a

    validade e eficcia das deliberaes e que hoje pertence s diversas pessoas coletivas de base

    associativa, foi aperfeioada no domnio das sociedades annimas. Outro tanto seria possvel

    dizer a propsito da fiscalizao e das firmas e denominaes. Um segundo polo, de base

    contratual, adveio das sociedades civis, mais precisamente do contrato de sociedade. O papel

    da vontade das partes , a, aperfeioado. Um terceiro, de cariz institucional, vem-nos das

    associaes. Deparamos, desta feita, com coletividades ao servio de fins que transcendem

    os interesses dos associados mas que, no obstante, repousam neles. O Direito das pessoas

    coletivas apresenta-se, a esta luz, como uma sntese complexa de problemas e solues

    tecidas na periferia e que as categorias do jusracionalismo procuram reduzir. As classificaes

    intervm nesse mosaico de regras e de entidades, procurando orden-las em funo de uma

    lgica exterior. A seu lado, devemos contar com tipologias: estas no classificam; antes

    ordenam as distintas entidades em funo das caractersticas mais marcantes que as animem4.

    Pessoas coletivas associativas e fundacionais: a contraposio entre pessoas coletivas associativas (tambm ditas de base associativa, de base corporacional ou

    3 Cordeiro, Antnio Menezes; Direito das Sociedades, Parte Geral, Volume I; Almedina editores; 3. edio; Coimbra, Maio 2011. 4 Por exemplo, poderemos classificar as pessoas coletivas de tipo associativo em associaes e sociedades, consoante tenham ou no fim lucrativo (o que nem rigoroso, uma vez que as associaes podem ter fins lucrativos, enquanto as sociedades podem ser usadas sem esse fim; fala-se, j aqui, apenas de configuraes tpicas). Mas as diversas formas de sociedades j no obedecem a critrios nicos: antes surgem como uma tipologia ou justaposio de tipos, distintos entre si por uma srie, de resto varivel, de caractersticas.

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    corporaes) e pessoas coletivas fundacionais (tambm ditas fundaes, de base fundacional,

    de base institucional ou instituies) remonta aos canonistas e foi aperfeioada por Savigny.

    Ela assume um relevo estrutural e tem a ver com o substrato que a anime ou caso no

    tenha ainda substrato que se destine a comportar. Na pessoa coletiva associativa, o

    substrato constitudo por uma agremiao de pessoas, que juntam os seus esforo para um

    objetivo comum. Na fundacional, o substrato redunda num valor ou num acervo de bens,

    que potenciar a atuao da pessoa considerada. Os exemplos mais restritos sero

    constitudos pelas associaes e pelas fundaes civis artigo s167. e seguintes e 185. e

    seguintes, respetivamente, CC. Deve ficar claro que a contraposio anunciada, conquanto

    que, partida, estrutural, se encontra, hoje, formalizada. Podemos localizar pessoas coletivas

    que mais no traduzam do que acervos objetivos personalizados e que, todavia, no sigam a

    forma fundacional, mas antes a associativa. Estas distores explicam-se por duas ordens de

    ideias:

    Pelo arcasmo do regime atual relativo a fundaes e que impede que estas tenham

    fins diretamente lucrativos;

    Pela impressividade de tipos ideolgicos e de mercado que assume a referncia a

    sociedades e que leva adoo, por puras razes de designao, da correspondente

    forma.

    A contraposio entre pessoas associativas e fundacionais pode ser seguida entre as pessoas

    coletivas pblicas. Uma associao pblica , naturalmente, uma pessoa coletiva de tipo

    associativo, enquanto uma instituto pblico ou empresa pblica assumem natureza

    fundacional.

    Pessoas coletivas com e sem fins lucrativos; superao: as pessoas coletivas propem-se desenvolver determinadas atividades, com um objetivo geral. Quando tal

    objetivo se analise na busca de lucros, a pessoa coletiva tem fins lucrativos e, tendo base

    associativa, surge como sociedade. Quando no assume tal fim lucrativo, ser uma associao

    ou, no tendo natureza associativa, uma fundao. No fundo, esta contraposio permitiria

    isolar as sociedades das restantes pessoas coletivas: apenas elas teriam, como objetivo geral,

    a procura de lucro. Estas categorias esto hoje francamente ultrapassadas: apenas sobrevivem

    devido sua formalizao. Comeando pelas sociedades: nada impede que uma funo

    puramente benemrita seja desenvolvida por uma sociedade (comercial, civil sob forma

    comercial ou civil pura) especialmente congeminada para esse fim: trata-se de uma questo

    de mercado ou de tcnica de gesto. Quanto s pessoas ditas sem fins lucrativos: muitas

    vezes desejvel que elas disponham de rendimentos prprios, normalmente obtidos atravs

    de atuaes lucrativas. Nessa altura, o seu objetivo geral poder ser lucrativo, ainda que

    afetando os lucros a fins benemritos. O fim lucrativo ou no lucrativo no dita, pois, de

    modo fatal, a posio assumida pela pessoa coletiva em jogo. Isso no obsta a que, de facto,

    as associaes tenham um perfil solto, perante o das sociedades; a, a busca oficializada do

    lucro leva a prever esquemas de fiscalizao mais marcados e uma tutela especial para

    minorias, que no requerida nas associaes. medida que se acentua o relevo econmico,

    direto ou indireto, de associaes e fundaes, estas tm vindo a dotar-se de esquemas de

    acompanhamento, de consulta e de fiscalizao semelhantes aos das sociedades. Noutros

    termos: aplica-se-lhes o Direito das Sociedades.

  • Direito Comercial II | Antnio Menezes Cordeiro 2015/2016

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    Associaes, fundaes e sociedades: no Direito comum, a trilogia clssica de pessoas coletivas constituda pelas associaes, pelas fundaes e pelas sociedades civis

    artigos 166. e seguintes, 185. e seguintes e 980. e seguintes, todos CC. Deve esclarecer-se

    que no se trata de qualquer classificao: antes e to-s de um alinhamento de tipos. As

    associaes e as fundaes ainda poderiam ser tomadas como uma classificao bsica de

    pessoas coletivas, atinente sua estrutura ou ao seu substrato. As sociedades obedecem j a

    um critrio diverso a apregoada natureza lucrativa mas, sobretudo, a uma tradio muito

    distinta e mais antiga: a societas. As associaes do corpo a uma manifestao bsica do

    princpio da liberdade de associao. As fundaes tm o sentido de entregas em vida ou de

    deixas por morte do interessado. Elas equivalem a uma reconstruo liberal das antigas deixas

    pias, a conventos ou a congregaes religiosas. Finalmente, as sociedades correspondem ao

    produto da celebrao de contratos de sociedades, podendo apresentar formas muito

    multifacetadas. A matria das pessoas coletivas no obteve uma regulao sistemtica unitria,

    no Cdigo Civil. O relegar das sociedades para o captulo dos contratos em especial artigos

    980. CC sintomtico. De resto, essa situao comum aos cdigos civis dotados de parte

    geral como sucede com o GBG alemo mas com a agravante de, no Direito Civil

    Portugus, as sociedades civis puras poderem ter personalidade jurdica. A situao mais

    marcada fica com o facto de as sociedades comerciais terem assento em diploma prprio. O

    Cdigo das Sociedades Comerciais prev os seguintes tipos de sociedades:

    Sociedade em nome coletivo: o scio responde individualmente pela sua entrada

    e, ainda, pelas obrigaes sociais subsidiariamente em relao sociedade e

    solidariamente com os outros scios (artigo 175., n.1 CSC); a sua firma, quando

    no individualize todos os scios, deve conter, pelo menos, o nome ou firma de um

    deles, com o aditamento, abreviado ou por extenso, e Companhia ou qualquer um

    que indique a existncia de outros scios (artigo 177., n.1 CSC);

    Sociedade por quotas: o capital est dividido em quotas e os scios so

    solidariamente responsveis por todas as entradas convencionadas no contrato

    (artigo 197., n.1 CSC); a forma poder ter uma composio variada mas, em

    qualquer caso, concluir pela palavra limitada ou pela abreviatura Lda. (artigo 200.,

    n.1 CSC);

    Sociedade annima: o capital dividido em aes e cada scio limita a sua

    responsabilidade ao valor das aes que subscreveu (artigo 271. CSC); a firma, de

    composio variada, concluir com a expresso sociedade annima ou pela sigla

    S.A. (artigo 275., n.1 CSC);

    Sociedade em comandita: tem dois tipos de scios:

    o Os scios comanditrios: que respondem apenas pela sua entrada, e

    o Os scios comanditados: que respondem nos mesmos termos pela sua entrada

    dos scios em nome coletivo;

    Na comandita simples no h representao do capital por aes; na comandita por

    aes, s as participaes dos scios comanditrios so representadas por aes

    (artigo 465. CSC).

  • Direito Comercial II | Antnio Menezes Cordeiro 2015/2016

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    Seco IV As sociedades como organizao5

    27. - A personalidade jurdica das sociedades

    A importncia do tema: a personalidade coletiva est ligada s sociedades, particularmente s comerciais. Resultam, da, quadros e referncias que acompanham, em

    permanncia, o desenvolvimento da problemtica inerente. Numa aproximao ao cerne da

    matria, vamos agora ajuizar, perante o Direito positivo portugus, a personificao das

    sociedades. Dela depender boa parte da essncia organizativa das mesmas. Apesar da sua

    importncia, as fronteiras da personificao das sociedades no esto, ainda hoje, esclarecidas.

    A anlise dos problemas em aberto constituir, assim, um banco de ensaio excelente para os

    elementos j obtidos, permitindo ainda uma crescente aproximao dogmtica societria.

    O problema nas sociedades civis puras; a discusso: o Cdigo Civil no atribui, com clareza, personalidade coletiva s sociedades civis que regula. Mas tambm no a nega.

    O autor do anteprojeto o Professor Ferrer Correia teve a seguinte ideia:

    Foi de caso pensado que no propusemos a insero no Projeto de qualquer norma consagrando

    ou repudiando, neste captulo das sociedades civis, o conceito de personalidade coletiva.

    Efetivamente, este conceito, como outros do mesmo gnero, no mais do que a expresso da

    sntese das solues dadas a certas questes prticas de regulamentao, que, essas sim, tm de

    ser enfrentadas pelo legislador. E no h dvida de que o Projeto as enfrentou. Resta apenas

    saber que indicaes se tiram das solues adotadas pelo Projeto, no que toca ao mencionado

    conceito. Mas esse um problema de dogmtica, com que o legislador no tem de se preocupar.

    Temos, ainda, duas precises. Em primeiro lugar, no uma mera questo de conceito: antes

    de construo dogmtica, envolvendo consequncias de entendimento e de regime.

    Seguidamente: estamos perante um tema portugus clssico, discutido h mais de um sculo

    e no de uma temtica importada. Num momento em que a defesa do Direito Portugus

    deve constituir prioridade absoluta, no podemos deixar cair no esquecimento as nossas

    questes mais debatidas e, ainda, por resolver. Na origem da discusso ora em estudo, surge-

    nos Dias Ferreira que, anotando a sociedade civil no Cdigo de Seabra, a considera como:

    pessoa jurdica com direitos e obrigaes, no s entre os seus membros, mas em relao a

    terceiros.

    Guilherme Moreira vem tomar posio diversa. Para ele, a personalidade s surgiria quando

    se verificasse uma total independncia patrimonial em relao aos scios ou associados. Isso

    leva-o a considerar as sociedades annimas como pessoas coletivas; j as sociedades em

    nome coletivo no o seriam, outro tanto sucedendo com as sociedades civis puras. Logo Jos

    Tavares, numa anlise muito incisiva e ponderosa, vem tomar posio oposta: as sociedades

    civis puras teriam uma verdadeira personalidade jurdica. De facto, diversos preceitos do

    Cdigo de Seabra reconheciam, na sociedade civil, uma entidade juridicamente diferenciada

    5 Cordeiro, Antnio Menezes; Direito das Sociedades, Parte Geral, Volume I; Almedina editores; 3. edio; Coimbra, Maio 2011.

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    dos seus scios. Fechando este ciclo de controvrsia, Cunha Gonalves vem negar a

    personalidade coletiva das sociedades puras. Invoca argumentos de tradio e explica que a

    sociedade de tomar como sentido de os diversos scios. Aps a publicao do Cdigo Civil

    1966, o problema manteve-se: o legislador entendeu, como vimos pensamos que bem

    no resolver expressamente o problema, remetendo-o para a doutrina. A doutrina dividiu-se.

    Contra a personalidade coletiva das sociedades civis puras manifestaram-se Ferrer Correia,

    Pires de Lima e Antunes Varela, Mota Pinto e Isabel Magalhes Collao. A favor, com

    algumas reservas, depunha Paulo Cunha; tambm com reservas, ele propugnada por

    Marcello Caetano, Castro Mendes, Carvalho Fernandes e Pedro Pais de Vasconcelos.

    Segue; posio adotada: antes de situar o problema perante os dados atuais da teoria da personalidade coletiva, parece til proceder a algumas precises. Quando a lei, de modo

    expresso e eficaz, reconhea personalidade coletiva a uma entidade est, por essa via, a

    determinar a aplicao de certas normas: de outro modo, a qualificao pessoa coletiva ficaria

    no vazio. A personalizao de um ente artificial cria uma entidade oponvel erga omnes, com

    direitos incluindo de personalidade! prprios, uma esfera especfica e todas as

    prerrogativas que acompanham as pessoas, em Direito. Compreende-se, por isso, que as

    pessoas coletivas devam adotar figurinos normalizados, sujeitando-o, ainda, a uma certa

    publicidade. De outro modo, no seria curial opor tais pessoas coletivas a terceiros: estes no

    podem ser confrontados com a necessidade de respeitar situaes que no conheciam nem

    podiam conhecer. Mas a lei pode no ser expressa: antes se limitando a prever um regime

    que, por razes de harmonia sistemtica, obrigue o intrprete-aplicador a formular o juzo

    tico-valorativo da personalizao. No fundo, sempre de um regime adequado que se trata.

    A anlise do articulado legal vigente mostra, com relevo para o problema, preceitos que:

    Referem diretamente direitos e deveres como sendo da sociedade;

    Pressupem direitos e deveres da sociedade;

    Mencionam diretamente atos ou atuaes da prpria sociedade;

    Admitem consequncias para a sociedade;

    Referem fins da sociedade;

    Admitem a responsabilidade patrimonial da sociedade.

    Parece claro que o Cdigo Civil se exprime, neste complexo, em modo coletivo. Ser

    quimrico tentar convolar todas as regras em que se refere a sociedade para regras reportadas

    aos scios: toda uma subsequente questo de regime, comum s diversas pessoas coletivas,

    saber como tais regras chegam, depois, aos destinatrios ltimos que as devam cumprir. Alm

    disso, o Cdigo Civil postula, vrias vezes, a possibilidade de, por maioria, se formar uma

    vontade social irredutvel, pois, de todos os scios: assim sucede nos artigos 982., n.2,

    985., n.2,3 e 4, 991., 1005., n.1 e 1008., n.1: umas vezes quando o pacto o permita;

    outras, por lei. O RNPC contm elementos com interesse. O FNPC abrange informao

    relativa s sociedades civis (artigo 4., n.1, alnea a) RNPC). O seu artigo 42. dispe

    expressamente sobre as denominaes das sociedades civis sob forma comercial. No fica,

    todavia, clara a obrigao de inscrio no RNPC: o artigo 6. do correspondente diploma

    refere pessoas coletivas, no sendo seguro que as sociedades civis puras fiquem abrangidas.

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    Contudo, o artigo 10., n.1 RNPC sujeita a inscrio no FNPC factos relativos s entidades

    referidas no artigo 4., n.1, alnea d), o qual menciona:

    Entidades que, prosseguindo objetivos prprios e atividades diferenciadas das dos seus

    associados, no sejam dotadas de personalidade jurdica.

    Quer isto dizer que as sociedades civis puras devem ser inscritas no RNPC, ou mais

    precisamente (artigo 10., n.1) devem s-lo:

    A sua denominao;

    A sua sede e endereo postal;

    O objeto social ou atividade exercida;

    O incio e a cessao da sua atividade.

    Esta obrigao envolve a de adotar uma denominao; ela torna-se efetiva, nos termos do

    artigo 54., n.2, quando a sua constituio de concretize por escritura pblica: parece que

    este preceito ter de se aplicar prpria constituio das sociedades civis puras,

    independentemente de serem, a priori, pessoas coletivas. A sociedade civil pura, constituda

    por escritura pblica ou equivalentes, dotada de denominao, devidamente inscrita no

    RNPC, dado o mbito dos artigo s980. e seguintes CC, uma pessoa coletiva em tudo

    semelhante s demais sociedades. Mostram-se assegurados os diversos interesses e valores

    subsequentes. De acordo com a metodologia de Paulo Cunha podemos, ento e s ento!

    recorrer ao artigo 157. CC Verifica-se a analogia que permite a aplicao dos artigos 158.,

    n.1 e 167. CC: as sociedades civis puras, desde que constitudas por escritura pblica ou

    por outro meio legalmente admitido e com as especificaes prescritas, nos seus estatutos,

    so pessoas coletivas plenas. Quanto s restantes, todas as graduaes so permitidas.

    Relativizada a ideia de personalidade coletiva e admitindo o princpio das pessoas coletivas

    rudimentares, nenhuma dificuldade haver em considera-las com pessoas rudimentares. S

    funcionam como tal nos casos em que a lei assim o determine e para os especficos efeitos

    consignados legalmente. Cumpre ainda chamar a ateno para as sociedades civis sob forma

    civil que adquirem a personalidade coletiva por via de leis especiais.

    A personalidade coletiva das sociedades comerciais: perante o artigo 5., a personalidade coletiva das sociedades comerciais parece no oferecer dvidas. A generalidade

    da Doutrina, ao abrigo do artigo 108. CCom, entendia que, por via deste preceito, todas as

    sociedades comerciais eram dotadas de personalidade jurdica. De resto, outro tanto

    sucederia em Itlia, e isso perante textos menos expressivos. Contra depunha Guilherme

    Moreira: segundo este Autor, a referncia a para com terceiros ela limitativa, traduzindo apenas

    a autonomia patrimonial. Noutros preceitos transcritos haveria pois que procurar a

    personalidade coletiva, sendo certo que Guilherme Moreira acaba por nega-la s sociedades

    em nome coletivo. Alis, situa-se aqui a poderosa corrente que, ainda hoje e contra todas as

    evidncias, recusa a personificao das sociedades civis puras. A personificao das

    sociedades comerciais foi sentida, em 1888, como uma necessidade: retomou-se, ento, a

    sada do Cdigo de Comrcio Italiano, de 1882. Paralelamente, no Direito Civil, o problema

    parece (e at hoje) ter menor importncia. Porqu? Em termos de politica legislativa, a

    personalizao tinha um triplo aspeto:

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    Impedir os credores individuais do scio de responsabilizar a sua quota nos bens

    sociais, prejudicando a sociedade;

    Impedir o scio de transferir essa mesma quota de bens para terceiros;

    Assegurar aos credores da sociedade uma preferncia sobre os bens sociais, no

    confronto com os credores individuais dos scios.

    Daqui resulta que a sociedade comercial deixou de ser um conjunto de relaes obrigacionais

    entre scios: antes se tornou num novo sujeito de direitos. A orientao do Cdigo de

    Comrcio foi considerada excessiva, luz do Cdigo Civil de 1942. E assim a doutrina atual

    distingue entre autonomia patrimonial e personalidade jurdica: na primeira, a lei opera no

    mbito objetivo da sociedade; na segunda, f-lo, tambm, no mbito subjetivo. Apenas as

    sociedades de capitais (as annimas e as de responsabilidade limitada ou por quotas) teriam

    personalidade; as de pessoas (as simples e as em nome coletivo) no a teriam. Na Alemanha,

    tambm se entendia que as sociedades civis puras ou sociedades do BGB e as sociedades em

    nome coletivo (ou sociedades abertas) no tinham personalidade coletiva: fundamentalmente

    por falta de expresso reconhecimento legal. A doutrina mais recente admite, todavia, uma

    reponderao; esta sociedades aproximam-se das sociedades de capitais, pelos sucessivos

    poderes que lhe vm sendo reconhecidos, assumindo uma personalidade rudimentar. Como

    balano, podemos assinalar que o Direito Comercial portugus, na sequncia das

    transferncias culturais apontadas e merc das crticas generalizadas dirigidas a Guilherme

    Moreira, acabou por assentar na soluo mais generosamente radical, quanto atribuio da

    personalidade coletiva s sociedades comerciais: a todas.

    28. - A capacidade de gozo das sociedades

    O princpio da especialidade; evoluo: as pessoas tm capacidade jurdica: ser a concreta medida de direitos e obrigaes de que sejam suscetveis. No que toca s pessoas

    singulares, essa capacidade (ou capacidade de gozo) plena: elas podem ser titulares da

    generalidade dos direitos admitidos pelo ordenamento e podem ficar adstritas generalidade

    dos deveres que a ordem em causa conhea. J quanto a pessoas coletivas, uma orientao

    com certa tradio, entre ns, pretende que a sua capacidade seria limitada pelo princpio da

    especialidade: ela (apenas) abrangeria os direitos e obrigaes necessrios ou convenientes

    prossecuo dos seus fins, segundo a frmula do artigo 6., n.1 CSC, retomada do artigo

    160. CC. A ideia do princpio da especialidade teve uma dupla origem: a doutrina ultra vires

    anglo-saxnica e as restries continentais aos bens de mo morta. Nos pases anglo-

    saxnicos, a personalidade coletiva comeou por surgir por outorga do Parlamento ou

    equivalente. Requeria-se uma lei especfica que, em consonncia, lhe eram reconhecidos. Se,

    na atuao concreta, a entidade praticasse atos que ultrapassassem o acervo que lhe fora

    concedido, eles eram ultra vires: ultrapassavam as foras da prpria entidade, no a vinculando.

    Em linguagem continental, podemos dizer que teria sido ultrapassada a sua capacidade de

    gozo. Nos pases latinos, particularmente em Frana, verificou-se um fenmeno diverso. Ao

    longo da Idade Mdia, iam sendo deixados bens a conventos e a ordens religiosas, entidades

    pioneiras no domnio da personalidade coletiva. Tais bens particularmente quando imveis

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    saam do mercado normal: no mais eram transacionados, tinham uma produtividade que

    podia ser limitada e, alm disso, no pagavam impostos, uma vez que ficavam envolvidos

    nos privilgios da Igreja. Eram os bens de mo morta. Ao longo da Histria, os reis foram

    aprontando regras tendentes a limitar tais bens e, designadamente: sujeitando a prvia

    autorizao rgia a sua aquisio, pelas referidas entidades. Este estado de coisas ainda se

    refletia no Cdigo de Napoleo cujo artigo 910., verso original dispunha:

    s disposies entre vivos ou por testamento, a favor de hospcios dos pobres de uma comuna

    ou de um estabelecimento de utilidade pblica no produziro efeitos enquanto no forem

    autorizados por um decreto imperial.

    J as deixas Igreja haviam sido proibidas, tendo-se procedido, ao longo da Revoluo,

    venda compulsiva dos seus bens. Na sequncia destas medidas, vamos encontrar, no Direito

    Francs, uma referncia a um princpio da especialidade, limitador da capacidade de gozo de

    certas pessoas coletivas, princpio esse que, muitas vezes, referido j sem uma meno s

    origens. Em Portugal, a preocupao de restringir a capacidade das pessoas coletivas prende-

    se, igualmente, ao problema dos bens de mo morta e s leis de desamortizao destinadas a

    evit-lo. A primeira lei destinada a combater a acumulao dos bens nas corporaes

    religiosas de D. Dinis, datando de 10 julho 1324. Outras medidas constam das Ordenaes

    Manuelinas, dispondo as Filipinas:

    De muito longo tempo foi ordenado por os Reis nossos antecessores, que nenhumas Igrejas nem

    Ordens podessem comprar, nem haver em pagamento de suas dvidas bens alguns de raiz, nem

    per outro titulo algum os acquirir, nem possuir, sem especial licena dos ditos Reis, e acquirindo-

    se contra a dita defesa, os ditos bens se perdessem para a Cora().

    Com o liberalismo, foram tomadas diversas medidas. A Lei de 4 abril 1861 ordenou a

    alienao dos bens das Igrejas e determinou a sua sub-rogao por ttulos de dvida pblica

    consolidadas. A Lei de 22 Junho 1866 ampliou a desamortizao aos bens imobilirios dos

    distritos, municpios, parquias, misericrdias, hospitais, irmandades, confrarias,

    recolhimentos e quaisquer outros estabelecimentos pios, nacionais ou estrangeiros. A Lei de

    28 agosto 1869 procedeu a novas ampliaes. Na sequncia de toda esta evoluo, o Cdigo

    de Seabra veio estabelecer (artigo 34.):

    As associaes ou corporaes, que gosam de individualidade jurdica, podem exercer todos os

    direitos civis, relativos aos interesses legtimos do seu instituto.

    (artigo 35.);

    As associaes ou corporaes perpetuas no podem, porm, adquirir por titulo

    oneroso bens imobilirios, exceto sendo fundos consolidados; e os que

    adquirirem por ttulo gratuito, no sendo desta espcie, sero, salvas as

    disposies de leis especiaes, convertidos nella dentro dum anno, sob pena de

    os perderem em beneficio da fazenda nacional.

    1. O que fica disposto na segunda parte deste artigo, no abrange os bens immoveis,

    que forem indispensveis para o desempenho dos deveres das associaes ou corporaes.

    2. So havidas, para os efeitos declarados neste artigo, como perpetuas:

    1. As associaes ou corporaes por tempo ilimitado;

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    2. As corporaes ou associaes, ainda que por tempo limitado, que no tenham

    por objeto interesses materaes.

    Como se v, o artigo 34. limitava a capacidade aos interesses legtimos do instituto,

    enquanto a conjugao do artigo 35., com o seu 1. e com o seu 2., n.2, impedia as

    associaes no lucrativas de deter bens imveis que no fossem indispensveis para o

    desempenho dos seus deveres. Fechava-se, mesmo sem autoconscincia, o princpio da

    especialidade. Recolhendo e reformulando todas estas construes, Guilherme Moreira

    procede a uma interessante aproximao:

    Por um lado, a ideia, ligada doutrina ultra vires, de que operando o reconhecimento

    com vista aos interesses legtimos do seu instituto, a capacidade concedida no

    poderia ir mais alm;

    Por outro, as restries postas aquisio de bens, por parte das pessoas moraes.

    Trata-se de consideraes retomadas por Manuel de Andrade, que aproxima o princpio da

    especialidade e a doutrina ultra vires, de modo explcito. Outros autores deram o referido

    princpio como adquirido.

    A sua superao: o princpio da especialidade perdeu os dois pilares histrico-dogmticos em que assentava. A partir de meados do sculo XIX, generalizou-se o sistema

    de reconhecimento automtico da personalidade coletiva: reunidos os requisitos legais e

    procedendo-se as diligncias requeridas mxime, ao registo a personalidade coletiva surge,

    de acordo com a iniciativa privada. No h, por esta via, nenhum limite estrutural: nas

    margens legais, podem os interessados eleger os fins que entenderem, os quais podem ser

    prosseguidos por todos os meios lcitos. Introduzir, aqui, uma doutrina ultra vires vai s

    embaraar o comrcio jurdico, prejudicando as relaes com terceiros. Quanto ao problema

    da mo-morta e das desamortizaes ele histrico. De todo o modo, quando se pretenda

    evitar a concentrao de imoveis em certas esferas jurdicas, leis especiais prescrevem-no.

    Nesta base, o princpio da especialidade no consta, j, do Cdigo Civil Italiano; este apenas

    previa, no artigo 17., a necessidade de autorizao governamental para a aquisio de

    imveis ou para a aceitao de heranas e legados, preceito esse que j foi revogado. Tambm

    a doutrina civil alem da atualidade o ignora: salvas as limitaes da natureza, as pessoas

    coletivas tm plena capacidade de gozo. Veremos que a doutrina comercial portuguesa no

    lhe era, de igual modo, recetiva. O anteprojeto de Ferrer Correia recolheu esta soluo.

    Preconizava, quanto capacidade das pessoas coletivas, o seguinte preceito:

    Salvas as excees determinadas na lei, a capacidade das pessoas coletivas estende-se a todos

    os direitos e obrigaes que, segundo a natureza das coisa ou a ndole da sua disciplina legal,

    no forem inseparveis da personalidade singular.

    Era o preceito correto, infelizmente. Infelizmente, ele veio a ser afastado nas revises

    ministeriais. A doutrina subsequente a 1966, confrontada com uma consagrao legal tardia

    do princpio da especialidade, no artigo 160., n.1 CC, tentou minorar o seu alcance. O

    prprio Antunes Varela, responsvel pelas revises ministeriais, explica que esse artigo 160.,

    n.! CC, facultando os direitos e deveres convenientes prossecuo dos fins da pessoa

    coletiva, atenuou largamente o rigor da especialidade, chegando a uma soluo

    aparentemente mais ampla do que a do Cdigo de Seabra, enquanto Carvalho Fernandes

    opta por um entendimento liberal do preceito. Uma tentativa de salvaguardar o princpio

  • Direito Comercial II | Antnio Menezes Cordeiro 2015/2016

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    poderia provir de uma compartimentao do seu contedo: no estaria em causa o fim de

    uma concreta pessoa coletiva, mas antes o de uma completa categoria de pessoas ou de atos.

    Dir-se-ia, assim, que certa categoria de pessoas coletivas no se poderia dedicar a certas

    categorias de atos. Mas no: por verosmeis que paream os exemplos que se encontrem,

    poderia sempre suceder que, em concreto, um ato estranho se mostrasse justificado. Apenas

    na base de leis especficas se torna possvel limitar a capacidade das pessoas coletivas. O

    princpio da especialidade, como elemento limitador da capacidade jurdica das pessoas

    coletivas, tende, assim, a ser abandonado. Deve sublinhar-se que ele no pertencia ao acervo

    clssico do Direito das Sociedades Comerciais. Citamos Jos Tavares:

    Desde que a lei reconhece a existncia de uma personalidade jurdica, esta tem, em princpio

    geral, a capacidade de uma pessoa fsica, excetuando apenas os direitos que, por sua natureza

    ou pelo seu fundamento, lhe no podem realmente pertencer, como so os direitos relativos ao

    estado civil das pessoas fsicas e os de sucesso ab intestatio, e aqueles que a lei lhes recusa

    expressamente, ou indiretamente, determinando taxativamente a rea da sua capacidade

    jurdica.

    O Professor Ferrer Correia, grande comercialista, tentou, h mais de meio sculo e como

    vimos, que o princpio da especialidade no fosse includo no Cdigo Civil. Foi, pois, num

    puro refluxo concetualista, que nenhum estudo de campo soube amparar, que o Cdigo das

    Sociedades Comerciais, no seu artigo 6., n.1, o veio como que ressuscitar. A moderna

    comercialstica acaba, porm, por lhe retirar um papel atuante: ora limitando-o a aspetos

    descritivos, ora reportando-o a um objeto final de conseguir lucros, assim legitimando tudo

    e mais alguma coisa. Apenas seriam ressalvadas as ocorrncias que dispem de um regime

    especial. Tambm a jurisprudncia tem vindo a subalternizar o princpio da especialidade: a

    capacidade das pessoas coletivas obedeceria a um regime de ilimitao.

    O problema dos atos gratuitos e das garantias: o grande campo de eleio para as restries capacidade de gozo dos entes coletivos o dos atos gratuitos, que poderiam

    ser contrrios aos fins da pessoa coletiva, particularmente se ela fosse uma sociedade. A

    doutrina tende a abandonar tais construes. Desde logo, ficam de fora os donativos

    conformes com os usos sociais: nem so havidos como doaes (artigo 940., n.2 CC). O

    artigo 6., n.2 CSC tambm considera no serem contrrias ao fim da sociedade as

    liberalidades que possam ser consideradas usuais, segundo as circunstncias da poca e as condies da prpria

    sociedade. Vamos porm mais longe: e a doao verdadeira e pura ficar fora da capacidade

    de uma sociedade? E se os seus rgos prprios, com todas as garantias legais, chegarem

    concluso de que uma doao acaba por ser vantajosa, a prazo, qual o papel do legislador,

    procurando intervir num ato de gesto, hoje corrente, em todo o Mundo? A prtica de

    doaes ou atuaes non profit , hoje, uma indstria, por parte de instituies lucrativas e

    muito bem geridas. O prprio legislador consagra um Estatuto de Mecenato, como modo

    de atrair certas doaes. Nenhuma razo se visualiza para considerar as doaes fora da

    capacidade de qualquer pessoa coletiva, mesmo tratando-se de uma sociedade. Em casos

    concretos, determinadas doaes podero ser invlidas: mas por fora de regras especficas,

    que as probam. Resta concluir: o denominado princpio da especialidade no restringe, hoje,

    a capacidade das pessoas coletivas: tal como emerge do artigo 160., n.1 CC, ele diz-nos, no

    fundo, que todos os direitos e obrigaes so, salvo excees abaixo referidas, acessveis s

    pessoas coletivas. Subproblema muito relevante o da prestao de garantias a terceiros. Tal

    prestao poderia surgir como um favor e, portanto, como um ato gratuito, que iria

  • Direito Comercial II | Antnio Menezes Cordeiro 2015/2016

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    depauperar o patrimnio do garante, custa dos scios e dos credores. Mas pode ser uma

    atividade lucrativa: pense-se nos bancos, que prestam garantias a troco de comisses. O

    artigo 6., n.3 CSC dispe sobre as garantias. F-lo, porm, usando uma linguagem

    desnecessariamente qualitativa: considera-se contrria ao fim da sociedade a prestao de garantias.

    Mas justamente: a parte puramente qualitativa no vincula o intrprete-aplicador. De acordo

    com as regras de interpretao, o artigo 6., n.3 CSC proibiu, pura e simplesmente, as

    sociedades de prestar garantias, salvo nas condies que ela prpria prev. So elas:

    Justificado interesse prprio da sociedade garante;

    Sociedade em relao de domnio ou de grupo.

    Estas excees so de tal ordem que acabam por consumir a regra. O justificado interesse

    prprio definido pela prpria sociedade, atravs dos seus rgos: estamos no Direito

    Privado. Era evidente que, quando se presta uma garantia altura em que todos pensam

    que a operao vai correr bem ou que, pelo menos, tudo recupervel , faclimo invocar

    interesse prprio justificado. A jurisprudncia alarga, mesmo, a ideia de interesse,

    explicando que ele pode ser indireto. Resta concluir que a proibio do artigo 6., n.3 CSC

    acaba por funcionar apenas, perante situaes escandalosas e, ainda a, havendo m f dos

    terceiros beneficirios. A responsabilizao dos administradores ter de servir de contrapeso.

    Quanto o problema geral dos atos gratuitos, o qual inclui, em certos moldes, algumas

    garantias, resta acrescentar o seguinte: no Direito tradicional, a contraposio era clara:

    associaes e fundaes tinham fins desinteressados, enquanto as sociedades buscavam o

    lucro. Hoje, essas entidades esto formalizadas, de tal modo que a contraposio no clara.

    As pessoas coletivas tendem para a neutralidade. O que se exige, como contrapartida, a

    transparncia dos seus atos, com contas devidamente auditadas e publicitadas. A partir dai,

    o controlo feito pelo mercado: automtica e implacavelmente.

    As limitaes especficas: naturais, legais e estatutrias: como vimos, o chamado princpio da especialidade no tem, hoje, alcance dogmtico. No se infira, contudo

    e da, que a capacidade de gozo das pessoas coletivas seja idntica das singulares. Ela pode

    sofrer diversas limitaes. Vamos distinguir:

    Limitaes ditadas pela natureza das coisas;

    Limitaes legais;

    Limitaes estatutrias;

    Limitaes deliberativas.

    Esta destrina importante, uma vez que os regimes derivados da inobservncia dos diversos

    pontos no so coincidentes. Segundo o final do artigo 6., n.1 CSC, excetuam-se ao mbito

    da capacidade de gozo das pessoas coletivas os direitos e obrigaes inseparveis da

    personalidade singular. Trata-se, fundamentalmente:

    De situaes jurdicas familiares ou sucessrias que, pela sua natureza, visam apenas

    pessoas singulares;

    De situaes de personalidade, tambm centradas nas pessoas singulares;

  • Direito Comercial II | Antnio Menezes Cordeiro 2015/2016

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    De situaes patrimoniais, mas que pressupem a interveno de uma pessoa

    singular;

    Diversas situaes de Direito Pblico, tambm destinadas a contemplar pessoas

    singulares.

    Quando se trate de transpor para modo coletivo uma determinada norma, cabe verificar, pela

    interpretao, se esta, pela sua prpria natureza, no opera, apenas, em modo singular,

    contemplando direta e necessariamente pessoas singulares. A violao de limitaes impostas

    pela natureza das coisas implica a nulidade do negcio, por impossibilidade legal (artigo 280.,

    n.1 CC), atingindo as inerentes deliberaes sociais por via do artigo 56., n.1, alnea c) CSC.

    As limitaes legais capacidade de gozo das pessoas coletivas, referidas no artigo 6., n.1,

    in medio CSC, tm uma natureza profundamente diferente da das impostas pela natureza das

    coisas.