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A RESPONSABILIDADE CIVIL DOS ADMINISTRADORES DE SOCIEDADES COMERCIAIS Filipe Vaz Pinto, Marcos Keel Pereira FDUNL N.º5 - 2001

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A RESPONSABILIDADE CIVIL DOS ADMINISTRADORES DE SOCIEDADES COMERCIAIS

Filipe Vaz Pinto, Marcos Keel Pereira

FDUNL N.º5 - 2001

Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa

Working Papers

Working Paper 5 /01

A RESPONSABILIDADE CIVIL DOS ADMINISTRADORES DE SOCIEDADES COMERCIAIS

Filipe Vaz Pinto, Marcos Keel Pereira

Março 2001

Nota: Os Working Papers da Faculdade de Direito da Universidade Nova de

Lisboa são textos resultantes de trabalhos de investigação em curso ou

primeiras versões de textos destinados a posterior publicação definitiva. A

sua disponibilização como Working Papers não impede uma publicação

posterior noutra forma. Propostas de textos para publicação como Working

Papers, Review Papers (Recensões) ou Case-Notes (Comentários de

Jurisprudência) podem ser enviadas para: Miguel Poiares Maduro,

[email protected] ou Faculdade de Direito da Universidade Nova de

Lisboa, Travessa Estevão Pinto, Campolide 1400-Lisboa.

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A responsabilidade civil dos administradores de sociedades comerciais

A- Introdução

1. Situação jurídica dos administradores1 face à sociedade

Como introdução ao tema da responsabilidade civil dos administradores, importa começar por deixar algumas notas acerca da natureza da relação entre os administradores e a sociedade. Trata-se de uma matéria que extravasa em muito o âmbito deste trabalho, pelo que, na sua abordagem, se procurará apenas indicar algumas das perspectivas defendidas pela doutrina portuguesa, de modo a ilustrar a variedade de soluções que, ao longo do tempo, têm vindo a ser apresentadas, sobretudo por referência às sociedades anónimas. Para tanto, socorrer-nos-emos, essencialmente, da exposição feita por Brito Correia2.

Convém esclarecer, desde logo, que esta questão se distingue do problema da

relação entre os sócios e a sociedade, sobretudo porque, nos termos dos arts. 252/1 e 390/33, a qualidade de membro do órgão de administração não pressupõe, necessariamente, a qualidade de sócio da sociedade em causa.

Num dos pólos da discussão temos as teorias contratualistas, segundo as quais a

nomeação se caracteriza como uma proposta, sendo, por conseguinte, essencial a aceitação do destinatário, para a conclusão do contrato. Para Minervini, destacado Autor italiano, a assembleia geral designa uma pessoa, a sociedade negoceia com ela e, com a aceitação desta, fecha-se um “contrato de administração”, categoria autónoma de prestação de serviços. Contudo, a concepção mais tradicional, no domínio das doutrinas contratualistas, é a teoria do mandato, vinda do século XIX. A designação dos titulares do órgão de administração passará pela constituição de uma relação de mandato, logo com natureza contratual, entre o administrador e a sociedade. Esta última (ou, segundo alguns autores, a assembleia geral) será o mandante, mandatários serão os vários membros do órgão de administração. A opção por esta construção constituiu uma resposta simples e conveniente à necessidade de encontrar algum modo de representação das sociedades (pessoas colectivas) por pessoas singulares4, visto ser evidente que aquelas, pela sua própria natureza, não podem, sem o recurso a um suporte físico, praticar qualquer tipo de actos, jurídicos ou não jurídicos. O Código Comercial de 1833 recebeu a teoria do mandato e, em diversas disposições, qualificou expressamente os administradores como mandatários (por exemplo, nos arts. 538 e 542), no que era acompanhado pela doutrina de então, designadamente, e como seria de esperar, pelo próprio autor do Código, Ferreira Borges5.

1 Salvo indicação em contrário, o termo “administrador” reportar-se-á, indistintamente, aos “gerentes, administradores ou directores” a que se referem os arts. 71, 72, 78 e 79 do Código das Sociedades Comerciais. 2 L. Brito Correia, Os administradores de sociedades anónimas, Coimbra, Almedina, 1993, pp. 375 ss. 3 Os artigos indicados sem menção do diploma em que se inserem pertencem ao Código das Sociedades Comerciais de 1986. 4 António Menezes Cordeiro, Da responsabilidade civil dos administradores das sociedades comerciais, Lisboa, Lex, 1997, p. 336. 5 J. Ferreira Borges, Das Fontes, Especialidade e Excellencia da Administração commercial segundo o Código Comercial, Jurisprudência do contrato mercantil de sociedade, segundo a Legislação, e Arestos dos Códigos, e Tribunais das Nações mais Cultas da Europa, Londres, 1830, p. 110, nota, citado por Brito Correia, cit., p. 376.

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A referida teoria foi criticada, no início do século XX, na Alemanha, por Laband. Este Autor, fazendo apelo à distinção entre mandato e procuração (representação), salientou a possibilidade de existir procuração sem mandato, bem como mandato sem procuração. Ou seja, a existência de um contrato de mandato não significava necessariamente que o mandante fosse representado pelo mandatário, quando, afinal, tinha sido precisamente esta necessidade de representação da pessoa colectiva sociedade que tinha levado a adoptar a concepção do mandato. Por outro lado, dizia-se, a lei impõe directamente certos deveres aos administradores, que não se relacionam com um mandato comum. Este aspecto é sublinhado, em Portugal, por Pinto Furtado, para quem a competência funcional do administrador não resulta de qualquer acto da assembleia geral (consistente, por exemplo, dizemos nós, numa proposta de mandato), mas directamente da lei6. Por sua vez, Raúl Ventura assinala que a relação entre administradores e sociedade não tem subjacente um contrato de mandato, porque este pressupõe a voluntariedade, que não está presente nesta situação, dado tratar-se de um caso de representação necessária, representação orgânica7. O mesmo Autor acrescenta, em obra posterior8, que “o motivo fundamental que determina a exclusão do mandato é a criação por outra fonte – a lei – dos efeitos que resultariam do mandato. Também Ferrer Correia critica a concepção do mandato9, servindo-se, entre outros, dos seguintes argumentos. Salienta a autonomia dos administradores no exercício das suas funções, por oposição à vinculação do mandatário às instruções do mandante (art. 1161 a) CC); a prática (também) de actos não jurídicos pelos administradores, em contraste com a limitação do mandato à prática de actos jurídicos (art. 1157 CC); o facto de o administrador-sócio votar na sua própria designação, ao contrário do mandatário, que é designado pelo mandante.

Ainda dentro das teorias contratualistas, temos a teoria do contrato de prestação

de serviços e a teoria do contrato de trabalho subordinado. A primeira não encontrou eco em Portugal. À segunda só aderiu, e no passado, Pinto Furtado, se bem que apenas quanto aos administradores não sócios, quando diz que “a investidura duma concreta pessoa estranha (não-sócia) como titular de determinado órgão faz-se, naturalmente, pela via contratual, utilizando um contrato de trabalho, pois constitui a admissão de um empregado da sociedade na veste de entidade patronal”10. No que diz respeito aos administradores-sócios, afirma o mesmo Autor, em edição mais recente da obra citada na nota 1011, já não poder estar em causa uma relação inter-subjectiva (como no contrato de trabalho), mas sim uma relação intra-subjectiva, cuja fonte residirá na própria organização societária, quando o administrador é eleito em asssembleia geral, ou no próprio contrato de sociedade, quando o administrador é designado logo nos estatutos12.

Contra a tese do contrato de trabalho subordinado manifestou-se Inocêncio

Galvão Telles, para quem os administradores integram a estrutura da sociedade,

6 J. Pinto Furtado, Código Comercial Anotado, vol. II, Coimbra, Almedina, 1979 e Curso de direito das sociedades, 3.ª ed., Almedina, 2000, p. 331. 7 Raúl Ventura, Teoria da relação jurídica de trabalho, vol. I, Porto, 1944, p. 299. 8 Idem, Sociedades Comerciais: Dissolução e Liquidação, vol. II, pp. 127 ss. 9 A. Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, 1968, vol. II, 1968, pp. 324 ss. 10 Pinto Furtado, Curso de Direito das Sociedades, Coimbra, Almedina, 1983. 11 3.ª edição, de 2000, p. 328. 12 Porém, mais adiante na sua exposição, Pinto Furtado considera, em geral, a tese unilateralista como a “construção tecnicamente mais perfeita”.

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enquanto seus órgãos, não podendo considerar-se dependentes dela13. Por seu lado, Raúl Ventura aponta a impossibilidade de os administradores, quer por terem a qualidade de órgão da sociedade, quer por serem considerados seus representantes necessários, contratarem consigo mesmos. Ainda no mesmo sentido, pode citar-se, na jurisprudência, o Ac. da Relação de Lisboa de 9.5.90, que afirma faltar, na relação de administração, “o vínculo de subordinação traduzido no dever de obediência às ordens e directivas da entidade patronal”, pois é o órgão de administração que define a “vontade da empresa em tudo o que respeita à sua administração, de forma autónoma e não subordinada”. Sobre este ponto, há que alertar para o facto de, pelo menos na actualidade, esta nota de autonomia ser mais nítida nas sociedades anónimas do que nas sociedades por quotas, já que, nestas, os gerentes estão obrigados a respeitar as deliberações dos sócios (art. 259).

Brito Correia inclui-se entre os defensores da tese contratualista, mas configura

o contrato formado entre administrador e sociedade como um contrato de administração. A eleição do administrador provém de uma deliberação dos sócios e tem o carácter de declaração negocial, que só produz os seus efeitos, consistentes na atribuição de poderes funcionais e na constituição de deveres e direitos, se for aceite pelo designado, sendo a aceitação um verdadeiro requisito de validade do acto constitutivo da relação de administração e não mera condição de eficácia. Assim, a eleição não é um negócio unilateral, mas, juntamente com a aceitação, uma componente de um negócio jurídico bilateral, o contrato de administração.

No pólo oposto das teorias contratualistas, situam-se as teorias unilateralistas.

Alegam, em favor do seu ponto de vista, que a deliberação dos sócios, fonte da designação do administrador, é um acto deliberativo que pode vincular quem com ele não concorde, porque, para a sua adopção, não é exigida unanimidade. Por outra parte, diz-se, esse acto é constituído por várias declarações idênticas, ao passo que no contrato estamos perante declarações não idênticas mas confluentes14. Acrescenta-se que a designação é um acto interno da sociedade e, como tal, não pode ser configurada como proposta de contrato, pois, para o ser, teria de ter por destinatário algum ente exterior à sociedade. Assim, Raúl Ventura sustenta não ser a deliberação da assembleia geral que designa o administrador uma proposta de um contrato que se formará com a aceitação. O acto designativo terá, antes, natureza unilateral, o mesmo sucedendo com aceitação que não se unifica com a pretensa proposta num contrato. Pelo contrário, a aceitação conserva o seu carácter autónomo, determinando tão-só a eficácia da deliberação, como uma condição suspensiva que se verifique15.

Terminamos este breve percurso por algumas das construções doutrinárias em torno do problema da relação de administração com uma referência às teorias dualistas. Deve sublinhar-se, desde já, que tais teorias surgiram, na Alemanha, para responder à situação específica dos directores de uma sociedade anónima com estrutura dita “dualista” ou “germânica”16.

Para expormos esta doutrina da forma mais sintética possível, citamos as

palavras de Ferrer Correia, que se mostra inclinado “a aceitar a orientação da doutrina

13 I. Galvão Telles, “Anotação ao Ac. do STJ de 21.4.72”, em O Direito, ano 104, 1972, p. 336. 14 Menezes Cordeiro, Da responsabilidade..., cit., pp. 344 ss. 15 Raúl Ventura, Sociedades..., cit., p. 163 . 16 Brito Correia, Os administradores..., cit., p. 304.

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germânica, que distingue no problema em análise, por um lado, um negócio jurídico unilateral, traduzido no acto de nomeação do administrador – acto de onde procedem os poderes de gestão e representação da sociedade, o direito de agir como órgão; e, por outro lado, um contrato (de emprego) celebrado entre o administrador e a corporação, contrato de direito comum, que é fonte da obrigação do primeiro de gerir e da obrigação da segunda de o remunerar”17.

A propósito das sociedades por quotas, Vaz Serra refere que “entre a sociedade e

os gerentes se conclui um contrato de prestação de serviço, pois da nomeação ou eleição do gerente (a qual significa a concessão da posição de gerente para efeitos externos) distingue-se do contrato que regula a situação na relação interna (o contrato de serviço)”18.

Mais recentemente, Ilídio Duarte Rodrigues aderiu também à tese dualista19.

Este Autor critica a tese unilateralista por, alegadamente, só visar o aspecto da relação orgânica na posição do administrador, esquecendo que há uma relação contratual entre administrador e sociedade que regula as condições de exercício da actividade do administrador e a sua remuneração. A designação é fonte da relação orgânica, confere poderes, mas não explica os deveres do administrador. Por outro lado, não se configura como proposta contratual, por se tratar de uma deliberação com carácter interno emanada de um órgão da sociedade. Isto será tanto mais assim, nos casos em que, nas sociedades por quotas, a designação caiba a um sócio ou a um grupo de sócios (art. 252/2). Prossegue o Autor, dizendo que o Código das Sociedades comerciais (CSC) consagra a distinção entre a instalação do órgão de administração e a relação de serviço entre administrador e sociedade, baseando esta ideia sobretudo no disposto no art. 430/3, onde se fala expressamente no “contrato” celebrado com o administrador, insusceptível de ser reconduzido ao acto de designação pelo Conselho Geral, que, como se disse, se considera ter natureza de acto interno, não podendo, por isso, constituir uma proposta contratual. Sublinha ainda o mesmo Autor o facto de a designação ser livremente revogável, enquanto que a relação de emprego só pode cessar nos termos previstos no contrato. 17 Ferrer Correia, Lições..., cit., pp. 328 ss. 18 A. Vaz Serra, “Anotação ao Ac. do STJ de 15.6.78”, na Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 112, 1979-80, p. 58. 19 I. Duarte Rodrigues, A Administração das Sociedades por Quotas e Anónimas – Organização e Estatuto dos Administradores, Lisboa, Petrony, 1990.

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2. Modelos históricos da responsabilidade civil dos administradores

No direito continental europeu, existem dois grandes modelos de responsabilidade civil: o modelo alemão e o modelo francês. São fruto de concretizações históricas específicas, de abordagens doutrinárias e jurisprudenciais próprias, motivando assim consagrações legislativas distintas.

Naturalmente que estas diferenças conceituais nos quadros gerais do instituto, projectando-se nos regimes concretos de responsabilidade civil dos administradores das sociedades comerciais, criam ideias próprias nesta matéria. Quer isto dizer que existem dois modelos relativamente autónomos de responsabilidade dos administradores. Com esta breve exposição pretende-se contribuir para melhor se conseguir compreender o regime português já que, como adiante se verá, recebemos influências dos dois modelos, dando forma a um sistema híbrido.

Comecemos por olhar para o modelo francês. Este funda a responsabilidade dos administradores na violação da lei ou na faute de gestão. É precisamente a utilização deste conceito que confere originalidade a este sistema. O seu conteúdo é muito discutido, mas diremos, em traços algo imprecisos mas impressivos, que engloba as nossas noções de ilicitude e de culpa, traduzindo um desvalor de determinada acção perante o direito, em função do que se considera ser o interesse societário, não sendo assim directamente transponível para o nosso ordenamento. Como se vê, é uma noção de fronteiras pouco precisas, necessitando de uma integração casuística por parte do aplicador do direito.

Nestes termos, a questão fundamental torna-se processual, a discussão centra-se

em quem é que tem legitimidade para propor acções de responsabilidade e em que condições o pode fazer. Assim, os tribunais primeiro e o legislador depois, sentem a necessidade de conceber um conjunto variado de acções, definindo rigorosamente as suas condições de proposição. Daí este modelo ser também chamado de modelo processual.

Esta proliferação de acções tem também uma explicação histórica, em razão da

construção dogmática da relação da administração com apelo ao contrato de mandato. É que, se os administradores são meros mandatários da sociedade, naturalmente que só esta, por deliberação dos sócios e na qualidade de mandante, poderia efectivar a responsabilidade daqueles. Ora, tal solução mostrava-se pouco adequada a tutelar os interesses das minorias, já que, as mais das vezes, a maioria que elegeu os membros do órgão de administração evitaria sujeitá-los a um processo em tribunal. São os tribunais que vão procurar resolver esta situação através da criação de um instrumento de natureza adjectiva: a substituição processual. Conferem a cada sócio a possibilidade de exercer, por conta da sociedade, o direito de indemnização de que esta é titular. Nasce assim a acção social ut singuli.20 Mas este era apenas o inicio de um longo processo evolutivo, jurisprudencial e legislativo, que haveria de cristalizar nas seguintes acções: acções individuais propostas por sócios ou terceiros, acção social ut universi, acção social ut singuli e acção de grupo. Como se verá, esta construção influenciou decisivamente o nosso legislador.

20 Menezes Cordeiro, Da responsabilidade..., cit., p. 109.

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Vejamos agora o sistema alemão. Diferentemente do modelo francês, este é de base substancial. Aqui há uma grande preocupação analítica na identificação dos pressupostos da responsabilidade civil em geral, e da responsabilidade dos administradores em particular. Assim, procura-se separar, clara e rigorosamente, o juízo que é feito sobre o agente, do juízo que é feito sobre o facto, isto é, distingue-se conceitualmente entre culpa e ilicitude, recusando qualquer noção unitária paralela à faute napoleónica. Perante este pano de fundo, não é de estranhar que a evolução, legislativa jurisprudencial e doutrinária, tenha sido no sentido de procurar descortinar quais os concretos deveres a que os administradores estão adstritos e cuja violação fundamenta a sua responsabilização. Deste modo, foram sendo feitas sucessivas alterações legislativas com o objectivo de, por um lado, ir aumentando o catálogo de deveres, recebendo assim os importantes contributos das decisões dos tribunais, e por outro, aperfeiçoar os já existentes adaptando-os às constantes mutações da vida económica, beneficiando aqui dos ensinamentos da doutrina.

Em sede de culpa faz-se apelo a fórmulas gerais, a padrões de comportamento

como o de um comerciante ordenado ou o de um director ordenado e consciente, em relação aos quais se vai aferir a culpabilidade do administrador em concreto.

Esta preocupação analítica, aliada ao rigor dogmático, não vê a necessidade, de

uma banda, nem admitiria, de outra, a existência de um meio processual como a acção social ut singuli, considerando sempre a assembleia geral como o órgão privilegiado para desencadear o processo de responsabilização das pessoas em causa. Em relação a terceiros, e accionistas enquanto tais, apenas restaria a via da responsabilidade delitual nos termos gerais do BGB.

A existência destes dois modelos, claramente contrapostos no seu estado puro, não impõe, obviamente, aos diversos ordenamentos uma opção pelo primeiro ou pelo segundo. Assim recebem-se aspectos de um e de outro, que em conjunto com os dados específicos de cada sistema moldam novos modelos que, por referência a estes, se dizem híbridos, de síntese21. Portugal é precisamente um desses casos.22 Aliás, na própria França e Alemanha, a tendência é para a aproximação: definem-se deveres concretos para os administradores ali, e discute-se a viabilidade das acções ut singuli aqui.

B- Regime actual no direito português

21 Menezes Cordeiro, Da responsabilidade..., cit., pp. 127 ss.. 22 Maria Elisabete Ramos, “Aspectos substantivos da responsabilidade civil dos órgãos de administração perante a sociedade”, em BFDUC, vol. LXXIII, Coimbra, 1997, pp. 212-13.

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1- Quadro geral

O regime jurídico da responsabilidade civil dos administradores de sociedades comerciais encontra-se configurado no Capítulo VII, do Título I (Parte Geral), do Código das Sociedades Comerciais (CSC), nos arts. 71 a 79, assim como no art. 64.

A responsabilidade perante a sociedade é tratada nos arts. 71-77, a

responsabilidade para com os credores no art. 78 e a responsabilidade face aos sócios e terceiros no art. 79. Será esta a sistematização adoptada na exposição que se segue.

Começaremos por percorrer as diversas disposições mencionadas, procurando

identificar a lógica que preside à sua arrumação no CSC. O legislador português quis regular, no CSC, quer aspectos substantivos da responsabilidade, quer aspectos processuais, recebendo assim as opções dos dois modelos historicamente opostos neste campo, o germânico e o francês, cujas características gerais foram acima enunciadas.

Assim, temos que os arts. 71-74 e os arts. 78/1 e 79 revelam uma aproximação

ao modelo substantivo alemão. O art. 71 versa sobre a responsabilidade quanto à constituição da sociedade, ou seja, incide sobre um momento prévio ao do início da actividade própria da sociedade e dos administradores. Daí que este artigo não se limite a responsabilizar os administradores, antes estenda aos sócios fundadores da sociedade, que não tenham aquela qualidade, a responsabilidade pelo incumprimento de certos deveres (adiante explicitados). O art. 72 centra-se já num momento de funcionamento pleno da sociedade, estabelecendo os pressupostos gerais da responsabilidade dos administradores face à própria sociedade. Prevê ainda as condições em que se torna possível uma exoneração individual da responsabilidade de cada um dos administradores individualmente considerados (n.ºs 2 e 3), assim como uma causa genérica de exclusão da ilicitude (n.ºs 4 e 5). Os arts. 73 e 74 respeitam a alguns aspectos específicos do modo de estruturação da responsabilidade perante a sociedade, em relação aos credores e face aos sócios e terceiros. Estes três últimos tipos de responsabilidade, que têm precisamente em comum o facto de já não se prenderem com a relação entre os administradores e a sociedade, estão previstos, respectivamente, nos arts. 78/1 e 79.

Quanto à recepção do modelo processual francês, que constitui verdadeiramente

a especificidade do regime da responsabilidade civil dos administradores face ao regime geral contido no CC, ela é operada por meio dos arts. 75-77 e 78/2. O art. 75 estipula a possibilidade de a própria sociedade mover uma acção de responsabilização dos administradores no seu próprio interesse. Esta disposição é complementada pelo art. 76, especificamente respeitante a formas especiais de nomeação dos representantes da sociedade em juízo. O art. 77 confere legitimidade activa aos sócios para, em certas condições, que serão objecto de análise neste trabalho, proporem uma acção de responsabilidade dos administradores ainda perante a sociedade em si. Por sua vez, o art. 78/2 permite aos credores sociais, em circunstâncias que também serão dilucidadas adiante, subrogarem-se à sociedade no exercício do direito de indemnização que esta última tenha legitimidade para exigir dos administradores. Sublinhe-se que, em todas estas especialidades processuais, ser a sociedade o sujeito activo da relação obrigacional de indemnização.

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A terminar esta primeira descrição dos preceitos atinentes à responsabilidade civil dos administradores, poderemos dizer, seguindo Menezes Cordeiro23, que a lógica de ordenamento dos artigos mencionados obedece a uma preocupação de cariz funcional, não científica, o que parece contrariar o espírito geral do CSC. Esta idiossincrasia do Capítulo VII do CSC é explicável por uma razão histórica, a saber, o facto de este capítulo resultar de uma transplantação para o CSC dos preceitos do Decreto-Lei 49381, de 15.11.1969.

2- Responsabilidade perante a sociedade a) Aspectos substanciais

Damos precisamente início à análise mais pormenorizada das disposições contidas no Capítulo VII do CSC com a consideração daquelas situações em que é a sociedade a (potencial) titular do crédito indemnizatório.

Começamos pelo art. 72, de importância decisiva, dado que, como foi dito,

define os requisitos que, uma vez preenchidos, dão origem ao direito de indemnização. Contudo, ainda antes da apreciação de cada um destes requisitos, é mister referir tratar-se, aqui, de uma responsabilidade de tipo obrigacional. Parte-se, portanto, da existência de uma relação jurídica concreta, bem definida, entre a sociedade e o(s) administrador(es) em causa. Para este efeito, é pouco relevante saber se essa relação jurídica tem subjacente um contrato de mandato, de prestação de serviços, de trabalho, de “administração”, ou até um negócio unilateral. Em qualquer caso, a responsabilidade será sempre obrigacional. Concretizando esta ideia, pode dizer-se estarmos perante um tipo de responsabilidade funcional, na medida em que se reporta actos praticados (ou omitidos) pelos administradores no exercício das suas funções e por causa destas. Tal qualificação não impede que possa haver responsabilidade delitual dos administradores perante a sociedade. Simplesmente, nesse caso, a imputação far-se-á nos termos gerais do art. 483/1 CC, não se aplicando, por isso, as normas do CSC que visam especialmente a responsabilidade obrigacional contemplada no art. 72/1 Feita esta nota prévia, podemos afirmar que a responsabilidade prevista no art. 72/1 se move nos quadros gerais da responsabilidade obrigacional, tal como ela é configurada pelo CC. Senão, vejamos.

O primeiro pressuposto, segundo a enumeração tradicional, é o facto, que o art.

72 enuncia como “os actos ou omissões [cfr. art. 486 CC]” praticados pelos administradores, maxime decorrentes de deliberações tomadas com vista à “realização do objecto social“ (art. 259, respeitante às sociedades por quotas) ou “sobre qualquer assunto de administração” (art. 406, concernente às sociedades anónimas). Neste ponto, cumpre referir que a simples qualidade de membro do órgão de administração não é suficiente para que o facto se possa dizer praticado (ou omitido) por cada um dos administradores. Na verdade, não é o órgão, enquanto tal, que é responsabilizado, mas antes cada um dos seus titulares individualmente considerados24. É o que resulta da possibilidade de os vários membros do órgão de administração se eximirem, individualmente, à responsabilidade, nos termos do n.º 2 do art. 72. 23 Menezes Cordeiro, Da responsabilidade..., cit., pp. 27-28. 24 Maria Elisabete Ramos, “Aspectos substantivos...”, cit., pp. 223-224.

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A expressão “danos a esta causados”, constante do art. 72/1, visa a exigência de

outros dois pressupostos comuns da responsabilidade civil, a saber, o dano e o nexo de causalidade. Também aqui o CSC não se afasta do regime geral. Por conseguinte, a discussão acerca do modo de determinação do nexo de causalidade terá de ser feita à luz do disposto nos arts. 562 e 563 CC. Trata-se de uma matéria que extravasa já o âmbito do presente trabalho, razão pela qual a abordaremos apenas sucintamente. Seguindo a lição de Pessoa Jorge25, podemos dizer que o art. 562 consagra, como primeiro critério de causalidade, a teoria da conditio sine qua non, definindo assim o círculo máximo dos prejuízos reparáveis. Assim, a função do art. 563 vem a ser a de, enquanto segundo critério de causalidade, delimitar, de forma mais precisa, o âmbito dos danos indemnizáveis. Fá-lo quando se reporta aos danos que o lesado “provavelmente” não teria sofrido se não fosse a lesão. Ao exprimir esta ideia de probabilidade, a lei parece, se bem que porventura de modo imperfeito, consagrar a teoria da causalidade adequada como critério último de determinação do nexo de causalidade26. Deste modo, será também com base nesta teoria que se deverá operar no apuramento do nexo de causalidade em sede de responsabilidade civil dos administradores. Com esta afirmação não se pretende afastar a hipótese de a teoria da causalidade adequada vir a ser, no concreto, complementada com o recurso a outras teorias, como, por exemplo, a teoria do âmbito de protecção da norma. Diga-se, ainda, que o problema do nexo de causalidade se reveste de especial acuidade neste campo, porquanto, não raras vezes, uma conduta ilícita de um administrador pode estar na origem de avultados danos em cadeia, surgindo assim a questão de saber até que ponto os danos que se situam no fim dessa mesma cadeia podem ainda ser reconduzidos, numa perspectiva normativa, ao facto que, naturalisticamente, os provocou27.

A propósito da questão do dano, digamos algo acerca da finalidade da

responsabilidade civil dos administradores. Em geral, a atribuição a alguém de um direito de indemnização tem em vista o ressarcimento de um dano, a eliminação dos efeitos nefastos de um facto praticado por outrem. Procura-se reintegrar uma situação que foi perturbada por uma conduta ilícita e culposa. A esta função, o CC parece, em alguns dos seus artigos (por exemplo, no art. 494), acrescentar uma outra, a de retribuição, de punição do agente da conduta lesiva. Não julgamos, contudo, que tal função punitiva se adeque à natureza do direito civil, que procura, essencialmente, assegurar o equilíbrio entre interesses particulares contraditórios (se já no direito penal a teoria da retribuição é posta em causa por muitos...). O mesmo já não se poderá dizer de um outro fim, esse sim susceptível de ser prosseguido pelo instituto da responsabilidade civil. Estamos a pensar no fim da prevenção. Na verdade, a perspectiva de vir a ser responsabilizado pela sua conduta lesiva pode levar o potencial lesante a colocar um maior cuidado na sua actuação, tendo em vista, justamente, evitar vir a ser obrigado a indemnizar o lesado. Esta finalidade preventiva tem especial interesse no contexto da relação entre a sociedade e o administrador, na medida em que, aqui, o fim de ressarcimento do dano pode, muitas vezes, ser prejudicado pelo facto de o património individual do administrador ser significativamente inferior ao valor dos danos sofridos

25 F. Pessoa Jorge, Ensaio sobre os pressupostos da responsabilidade civil, Lisboa, 1968. 26 Neste sentido, inequivocamente, Almeida Costa, Direito das Obrigações, 7.ª ed., Lisboa, Almedina, 1997, p. 678: “Adopta-se, com evidência, a doutrina da causalidade adequada”. Diferentemente, Antunes Varela, Das Obrigações em geral, vol. I, 9.ª ed., Coimbra, 1996, pp. 928 ss.; Menezes Cordeiro, Da responsabilidade..., cit., p. , para quem o art. 563 não impõe a causalidade adequada, apenas afasta, como princípio, a causalidade virtual. 27 Cfr. Menezes Cordeiro, Da responsabilidade..., cit., p. 541.

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pela sociedade28. A concluir a apreciação deste requisito, é de salientar que os conceitos de dano emergente e de lucro cessante (cfr. art. 564 CC) devem ser alvo de uma aplicação cautelosa, no domínio específico da responsabilidade civil que estamos a considerar29. Esta advertência prende-se com a distinção, que cumpre fazer, entre os riscos próprios da gestão, associados à vida corrente de uma actividade “empresarial”, e os riscos advenientes de uma gestão negligente (lato sensu). Se estes devem correr por conta do administrador, já aqueles devem ser suportados pela sociedade. De outra forma, estar-se-ia a coarctar gravemente a liberdade de decisão e de actuação dos administradores, que, colocados perante a perspectiva de virem a ser responsabilizados pelo insucesso de certa medida, cujos efeitos seriam, a priori, impossíveis de prever, com um grau de certeza muito elevado, escolheriam não adoptar essa medida, no intuito de salvaguardar a sua posição. Ora, assim estaria criado um quadro insustentável, já que a actividade “empresarial”, objecto das sociedades comerciais, comporta, inevitavelmente, alguma dose de risco (estamos agora a falar de um risco situado dentro da esfera da licitude).

Quanto ao pressuposto da ilicitude, ele está reflectido nas palavras “com preterição dos deveres legais e contratuais”. Assim, vemos que a responsabilização dos administradores, com base no art. 72/1, terá subjacente a violação, por parte destes, de deveres específicos, que lhes são impostos quer pelo contrato de sociedade ou pelos estatutos, quer pela lei, designadamente pelo CSC. Desta forma, e como é próprio do modelo substancial que o artigo em causa incorpora, a tónica recai sobre a indagação dos deveres que, uma vez preteridos, contribuem para fundar a obrigação de indemnizar. É de frisar que não encontramos nem no nº1 do art. 72, nem no seu n.º 4, uma resposta à questão de saber se a inexecução de deliberações sociais pode conduzir à responsabilização dos administradores por omissão. Tal resposta encontramo-la, no que concerne às sociedades por quotas, no art. 259. Deste resulta estarem os gerentes vinculados a um dever de respeito pela deliberações sociais na prossecução do objecto social. Quanto às sociedades anónimas, depreende-se do art. 373/3, que atribui à administração o exclusivo dos poderes de gestão, salvo delegação da própria administração na assembleia geral, não estarem os administradores adstritos a qualquer dever de execução das deliberações sociais em matéria de gestão (o que não significa que não estejam vinculados, pela negativa, a algumas deliberações, como aquelas compreendidas no art. 6º/4, a que aludiremos adiante) . A letra do artigo em apreciação também não esclarece a questão de saber se por deveres “legais” devemos entender exclusivamente aqueles estabelecidos por lei em sentido formal, ou se, pelo contrário, com aquele adjectivo são também visados os deveres criados por fonte normativa infralegislativa, nomeadamente por regulamento. Podem, sobretudo, estar aqui em causa deveres de índole fiscal. Tendo em conta a interpretação cautelosa do art. 64 adiante defendida, julgamos preferível não restringir aqui o âmbito da norma. Passamos, agora, a procurar identificar na lei, mais concretamente no CSC, e sem preocupações de exaustão30, alguns dos tais deveres legais a que estão sujeitos os administradores e cuja violação constitui um ilícito civil. Logo no art. 6º/4, vemos que os administradores, no exercício das suas funções, não devem ultrapassar os limites 28 Cfr. Maria Elisabete Ramos, “Aspectos substantivos...”, cit., p. 218. 29 Ver, idem, ob. cit., p. 240. 30 Para uma listagem completa, veja-se Menezes Cordeiro, Da responsabilidade..., cit., pp. 38 e ss.

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fixados pelo objecto social, nem praticar actos proibidos pelas cláusulas contratuais e por deliberações sociais. Também dos arts. 31 a 35, onde estão previstas diversas regras sobre a conservação do capital social, resultam comportamentos que os administradores têm de adoptar. Os arts. 65 e sgs prevêem os importantes deveres em matéria de prestação de contas. Também em matéria de fusões, cisões, e também transformações, de sociedades, se estabelecem variadas obrigações. Em relação à parte especial do código uma primeira nota: a grande quantidade e multiplicidade de deveres previstos para os administradores das sociedades anónimas, por comparação com aqueles que impendem quando estão em causa outros tipos societários. Limitamo-nos a referir as disposições respeitantes ao direito aos lucros e ao direito à informação, que têm, naturalmente, os correspectivos deveres. Veja-se, respectivamente, o art. 214 e 217 para as sociedades por quotas. Para as sociedades anónimas regem o art. 291 e o art. 294.

Resta-nos debruçarmo-nos sobre o último pressuposto da responsabilidade civil: a culpa. Tal como é próprio da responsabilidade civil de tipo obrigacional, a parte final do art. 72/1 institui uma presunção de culpa dos administradores (para este efeito, devedores na relação obrigacional) que, segundo o estabelecido na parte restante do artigo, hajam incorrido num ilícito do qual tenham resultado danos para a sociedade. Esta forma de distribuição do ónus da prova decorreria já do estipulado no art. 799 CC31 e atinge, colectivamente, todos os membros do órgão de administração. A ratio específica desta presunção poderá estar ligada às dificuldades que os lesados enfrentariam na produção da prova da culpa, uma vez que estes não têm, em regra, acesso à mesma informação de que os administradores dispuseram ao tempo da prática do acto (ou omissão) em causa, não sendo assim fácil, para quem desconhece todo o contexto que envolveu a tomada de decisão, formular um juízo de censurabilidade sobre esses mesmos administradores. Por outro lado, esta presunção não será muito gravosa para os administradores, já que estes, dispondo de todos os elementos que rodearam a decisão, poderão com relativa facilidade, quando for caso disso, naturalmente, ilidir essa presunção.

Dito isto, importa averiguar qual seja o critério de aferição da culpa, ou seja,

precisamos de encontrar o “administrador-tipo”, cuja conduta previsível, em cada momento concreto, nos permita formular um juízo de censura sobre o administrador real, na medida em que possamos afirmar que, naquelas circunstâncias concretas, este podia e devia não ter praticado o facto ilícito (cuja indagação se processa num momento logica e cronologicamente anterior). Tal critério é-nos fornecido pelo art. 64, onde se diz que “os gerentes, administradores ou directores de uma sociedade devem actuar com a diligência de um gestor criterioso e ordenado”. Temos, pois, que o modelo correspondente ao “bom pai de família” do CC (art. 487/2 CC) no CSC é o gestor criterioso e ordenado. Diga-se, a este propósito, não nos parecer que, à partida, este critério exija mais do administrador do que o exigiria o critério do bom pai de família. Isto, porque o modelo do gestor criterioso e ordenado não é mais do que a aplicação do modelo do bom pai de família ao domínio específico da administração de uma sociedade. Por outras palavras, para os administradores, o bom pai de família é o gestor criterioso e ordenado32.

31 Aliás, há mesmo quem sustente que todo o art. 72/1 (assim como os arts. 73/1, 74/1 e 78/1) não se reveste de qualquer tipo de utilidade prática, uma vez que, para chegar à solução nele consagrada, bastaria recorrer às disposições sobre responsabilidade civil inseridas no CC. Neste sentido, Menezes Cordeiro, Da responsabilidade..., cit., pp. 33-37. 32 Aparentemente em sentido contrário, L. Brito Correia, Os administradores..., p. 600: “Sendo evidente que não é exigível de um bom pai de família tanto como de um ‘gestor criterioso e ordenado’, é claro que existe aqui um diferença

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A culpa é, aqui, apreciada em abstracto, isto é, ao invés de se comparar a

conduta real do administrador com o comportamento que ele mesmo teria tido se nele tivesse investido o seu esforço e empenho normais (apreciação em concreto), confronta-se aquela conduta com a que teria sido adoptada, nas mesmas circunstâncias, pelo gestor criterioso e ordenado. Esta avaliação da culpa em abstracto justifica-se especialmente no campo da administração de sociedades. Na verdade, quem aceita fazer parte do órgão executivo sabe (ou tem obrigação de saber) que as funções que é chamado a desempenhar envolvem, geralmente, uma complexidade elevada, exigindo, por isso, do administrador, os conhecimentos e a competência adequados a essa complexidade. A investidura num cargo de administração de uma sociedade de alguém que não dispõe desses conhecimentos ou dessa competência implica, de certo modo, um comportamento negligente por parte de quem aceita o dito cargo, sem ter avaliado convenientemente a sua própria capacidade para o desempenhar correctamente. Contra esta perspectiva, poderá aduzir-se o argumento segundo o qual aqueles a quem cabe designar os membros doo órgão de administração da sociedade teriam o ónus de ponderar bem a sua escolha, designadamente assegurando-se da real competência dos candidatos ao lugar. Ainda assim, julgamos que, em regra, será o próprio administrador quem está nas melhores condições para ajuizar sobre a sua capacidade para desempenhar funções de gestão; beneficiando das vantagens inerentes ao cargo, assume também as responsabilidades que o acompanham. Deste modo, reiteramos o anteriormente afirmado, isto é, que a apreciação da culpa em abstracto se adequa bem à situação do administrador33.

Discutida e discutível é a questão de saber se o art. 64 configura, para além de um critério de aferição da culpa, um verdadeiro “dever geral de diligência”, cuja violação consubstancie um caso de ilicitude. Este problema reveste-se de importância prática significativa, dado que, a aceitar-se aquela que designaremos por “tese da ilicitude”, o preenchimento do requisito da ilicitude, previsto no art. 72/1, não teria de passar necessariamente pela violação, por parte dos administradores, de deveres contratuais ou legais específicos; bastaria que se mostrasse ter sido infringido o referido dever geral de diligência. Em abono da “tese da ilicitude” parece jogar a letra do preceito em causa. De facto, poderá ser dito que, se se tivesse querido consagrar, no art. 64, um mero critério de avaliação da culpa, ter-se-ia utilizado, no corpo do artigo, uma expressão como “no cumprimento dos seus deveres legais e contratuais, os administradores devem actuar com a diligência de um gestor criterioso e ordenado”. Ora, visto que a primeira parte desta expressão não surge no art. 64, isso poderá significar que se quis impor aos administradores um verdadeiro dever, cuja infracção seja fundamentadora de ilicitude.

Ainda antes de tomarmos posição quanto a este problema, iremos procurar

desenvolver algo mais o conceito de dever geral de diligência, desdobrando-o, concretizando-o em vários deveres mais específicos que ele é susceptível de abarcar. Para isso, recorreremos ao tratamento que foi dado a este tema pela doutrina e jurisprudência norte-americana34, que tem sido inovadora neste domínio. Apesar de termos a consciência de que muitas soluções não são compatíveis com o nosso sistema entre as figuras referidas (...) que passa as fronteiras de um mero aspecto secundário de regime para atingir o núcleo de cada uma das figuras a que se refere”. 33 Cfr. Maria Elisabete Ramos, “Aspectos substantivos...”, cit., pp. 230-231. 34 Nos Principles of Corporate Governance by the American Law Institute. Aprofundadamente sobre o tema, Pedro Caetano Nunes, Responsabilidade Civil dos Administradores perante os Accionistas, pp. 12 ss..

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jurídico, aquelas podem constituir auxiliares úteis para a interpretação de algumas das nossas normas e podem também servir como fonte de inspiração para eventuais evoluções legislativas.

Assim, poderemos decompor o dever geral de diligência em outros dois deveres

gerais de extensão já mais comprimida. São eles o dever geral de diligência em sentido estrito e o dever geral de lealdade. O primeiro tem um cariz essencialmente positivo e prende-se com o objectivo primordial a atingir com a actividade social, isto é, com a obtenção de lucros (interesse comum dos sócios). O segundo tem um conteúdo negativo, dispondo que os administradores não devem, no exercício das suas funções, agir no seu próprio interesse em detrimento do interesse social, prejudicando, desse modo, a sociedade de cuja gestão estão encarregados.

O dever de diligência desdobra-se, por sua vez, em vários duties of care, dos

quais destacaremos três. Um dever de vigilância (duty to monitor) sobre a actuação dos trabalhadores da sociedade, em especial quando existe delegação de poderes; um dever de obtenção de informação, (duty of inquiry) segundo o qual os administradores devem, antes da tomada de qualquer decisão de gestão, procurar recolher toda a informação pertinente, de modo a permitir formular um juízo tão seguro quanto possível acerca da razoabilidade da medida de gestão a adoptar. Este dever implica, designadamente, a investigação da origem das eventuais anomalias constatadas no cumprimento do dever de vigilância. Por seu lado, o dever de lealdade apresenta também três importantes concretizações: a proibição de concorrência, que implica que os administradores não desenvolvam, por conta própria ou alheia, actividades concorrentes com o objecto social (esta vertente do dever de lealdade já tem consagração no CSC, nomeadamente nos arts. 254, 398 e 428); a proibição de apropriação de oportunidades de negócios da sociedade, às quais o administrador só tem acesso precisamente em virtude das funções que desempenha, não sendo, por isso, legítimo que o administrador obtenha, para si, através da realização daqueles por sua própria conta, uma vantagem patrimonial, em lugar de a assegurar à sociedade (o CSC não refere autonomamente esta proibição). Porventura, será possível retirá-la do princípio geral da boa fé no cumprimento das obrigações, consagrado no art. 762/2 CC); a proibição de realização de negócios com a sociedade.

Servem estes exemplos para mostrar que, como se disse acima, a adesão à “tese

da ilicitude” não é isenta de consequências práticas, antes pelo contrário. Convém, ainda, fazer um esclarecimento sobre o alcance do dever de diligência em sentido estrito. Ele nunca poderá ser entendido em termos tão amplos que levem a considerar o “erro de gestão” como um ilícito, ou seja, que conduzam à apreciação pelo julgador da própria razoabilidade, da bondade das medidas de gestão. O mérito ou demérito da gestão é apreciado pelos sócios, designadamente no momento da eventual recondução dos administradores no cargo, mas não constitui uma questão susceptível de sindicabilidade jurisdicional. Cabe aludir aqui à já referida distinção entre risco de empresa e risco de gestão negligente35.

Aliás, também nos EUA estas preocupações se têm sentido. Nessa linha, surge a

chamada business judgement rule, que se destina a deslocar a apreciação das decisões dos administradores, por parte dos tribunais, dos aspectos substanciais, de mérito, para os aspectos formais, ou até mesmo procedimentais. Pretende-se evitar que, no processo de determinação das infracções ao dever de diligência, as decisões empresariais possam 35 V. supra, a propósito do pressuposto do dano.

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ser substituídas por opiniões dos juízes tomadas a posteriori. De facto, os tribunais tendem a limitar o seu controlo à eventual existência de um conflito de interesses entre o administrador e a sociedade a propósito da decisão a tomar e ao cumprimento do duty of inquiry. A business judgement rule transfere a apreciação judicial do momento substancial para um momento processual – exige-se a observância de um certo processo, mais do que uma boa decisão em si36.

Voltando agora à discussão da eventual consagração, no art. 64, do referido

dever geral de diligência como fundamentador de ilicitude, é de sublinhar não existir unanimidade na doutrina portuguesa. Antunes Varela pronuncia-se no sentido de o art. 64 respeitar somente à culpa37. Pelo contrário, Menezes Cordeiro38 identifica no artigo em causa elementos de ilicitude. Diz, contudo, serem estes elementos insuficientes para, por si mesmos, fundarem o juízo de ilicitude, entendendo que necessitam de ser complementados pela referência a deveres específicos, contratuais ou legais. Parece-nos que, bem vistas as coisas, esta posição acaba por negar consistência prática à afirmação de ilicitude no art. 64, porque, no fundo, coloca-nos perante a seguinte alternativa: ou conseguimos identificar algum dever específico, legal ou contratualmente estipulado, que haja sido infringido pelo administrador, e, nesse caso, não precisamos de nos reportar ao art. 64, porque o mencionado dever é susceptível de, por si só, fundar a ilicitude (teríamos ainda, obviamente, de lançar mão do critério contido neste artigo para averiguar a existência ou não de culpa, mas essa é outra questão); ou não é possível vislumbrar a violação de qualquer dever específico, e, então, de nada vale a referência aos “elementos de ilicitude” do art. 64, porque estes, segundo o Autor citado, não gozam de autonomia suficiente para justificar a censura sobre um certo facto praticado ou omitido por um administrador.

Analisemos, pois, se é viável uma construção que veja no art. 64 um fundamento

autónomo de ilicitude. Uma primeira tentativa poderia passar por se negar, liminarmente, a distinção conceitual entre ilicitude e culpa, defendendo a absorção deste requisito da responsabilidade civil por aquele. Assim, teríamos no art. 64 um dever de actuar com a diligência de um gestor criterioso e ordenado, cuja violação, obviamente, só poderia consubstanciar um facto ilícito. No entanto, esta construção, para além de ser dogmaticamente pouco rigorosa, na medida em que confunde o juízo de censura sobre o facto com o juízo de censura sobre o próprio agente, contraria frontalmente o disposto no art. 72/1. Na verdade, este artigo distingue claramente a ilicitude (“preterição dos deveres legais e contratuais”) e a culpa, que é, só ela39, presumida. Afastada esta primeira construção, a adesão à “tese da ilicitude” teria de partir da aceitação da distinção entre ilicitude e culpa. Neste quadro, não nos parece aceitável reservar a expressão “dever de actuar com a diligência de um gestor criterioso e ordenado” para a ilicitude, porquanto, dessa forma, ficaríamos sem um critério indicado pelo CSC para apreciar a culpa. É certo que se pode defender que tal consequência não seria grave, pois, dir-se-á, sempre se poderia recorrer ao critério geral do “bom pai de família” do CC, adaptando-o à realidade societária. Julgamos que esta solução não se coaduna com 36 João Soares da Silva, ”Responsabilidade Civil dos Administradores de sociedades: os deveres gerais e a corporate governance”, em Revista da Ordem dos Advogados, ano 57, Abril de 1997. 37 A propósito do caso da Sociedade Financeira Portuguesa: o art. 64 é um “preceito bastante genérico e impreciso, mais retórico que realista, destinado a definir o grau de diligência exigível aos responsáveis pela gestão nas sociedades, capaz de interessar ao requisito da culpa, (que) não afasta o requisito da ilicitude requerida da conduta desses agentes.”; em “Anotação ao Acórdão do Tribunal Arbitral de 31 de Maio de 1993”, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 126, n.º 3835, p. 315. 38 Ob. cit., p. 40, nota 21. Também pp. 496-497. 39 Diferentemente, Menezes Cordeiro, Da responsabilidade..., cit., pp. 486 e ss..

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o espírito geral do CSC, mormente em matéria de responsabilidade civil dos administradores. Em primeiro lugar, como já foi dito, o conceito de “bom pai de família” concretiza-se, no direito societário, precisamente no paradigma do gestor criterioso e ordenado. Poderá perguntar-se, então, por que razão o CSC sente necessidade de se referir expressamente a um critério que já decorreria do regime geral da responsabilidade civil. Mas esta pergunta não adquire aqui qualquer especificidade. Na verdade, o CSC pretende, ao longo de todo o seu capítulo VII, afirmar a sua autonomia face à lei civil, o que é patente, desde logo, na inclusão de preceitos como os arts. 72/1, 73/1, 74/1 e 78/1, cujas soluções, como já foi dito, poderiam ser encontradas por referência à lei civil, caso aquelas normas não existissem. E se, naquelas disposições, a linguagem é bastante similar à utilizada pelo CC, já a expressão “gestor criterioso e ordenado” reflecte, apenas, a vontade de fixar um sentido para a concretização do conceito de “bom pai de família” em sede de direito societário, sendo que a solução encontrada pelo art. 64 não era, à partida, a única possível. Acresce que, na linguagem jurídica, o termo “diligência” costuma estar particularmente associado à culpa.

Não é, pois, de aceitar uma orientação que conduza à negação da existência de

um critério de culpa no art. 64. Por isso, para que se pudesse aderir à “tese da ilicitude” teria de ser possível identificar no art. 64, simultaneamente, um critério de culpa e um dever em sentido estrito. Este consistiria no dever de actuar diligentemente, para aquele ficariam reservadas as palavras “gestor criterioso e ordenado”. Ora, não se nos afigura possível cindir o art. 64, de modo a destrinçar nele quer um fundamento de ilicitude, quer um padrão de aferição da culpa. A força da construção conceitual não pode abafar ou violentar os regimes jurídicos concretamente existentes. E, neste caso, pensamos que a identificação de um dever geral de diligência no art. 64, nos termos descritos, implicaria forçar o seu sentido para além do razoável. Portanto, concluímos que, não obstante ser sedutora a solução que passe pela consagração de um dever geral de diligência, ela não está nas mãos do intérprete. Trata-se, antes, de uma matéria incluída na esfera de intervenção do legislador.

A terminar esta análise do art. 64 parece-nos oportuno aludir à sua parte final. Aí

se diz que a actuação dos administradores deverá visar o interesse da sociedade e ter em consideração os interesses dos sócios e dos trabalhadores. Quanto a estes últimos, a sua importância é relativamente reduzida, na medida em que o grosso dos interesses dos trabalhadores já se encontra especificamente acautelado na legislação laboral. Deste modo, o sentido desta referência expressa no art. 64 será mais negativo do que positivo. Ou seja, não se pretende que os administradores, na tomada de decisões, tenham como especial preocupação a salvaguarda dos interesses dos trabalhadores, mas sim obstar a que aqueles venham a ser responsabilizados por, no âmbito da discricionariedade de que disponham, terem optado por uma solução que privilegie (de uma forma não totalmente desproporcionada) algum interesse dos trabalhadores em detrimento, porventura, de uma outra via à partida mais favorável à maximização do lucro da sociedade.

A dificuldade de interpretação deste segmento final do art. 64 prende-se com os

outros dois tipos de interesses nele mencionados. É que não se afigura fácil identificar um interesse societário insusceptível de recondução aos interesses dos sócios; ou então, numa outra perspectiva, vislumbrar interesses dos sócios que, devendo ser tidos em conta na gestão da empresa, se distingam do “interesse da sociedade”.

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Parte da doutrina portuguesa prefere não ver qualquer alcance na distinção e acaba por não assinalar um interesse da sociedade autónomo face aos interesses dos sócios. Menezes Cordeiro afirma ser necessário encontrar algum sentido útil para a distinção entre os dois conceitos, já que esta é expressamente acolhida na lei. Assim, começa por dizer que “uma regra dirigida a uma pessoa colectiva será sempre, em última instância, uma norma destinada aos administradores e aos sócios. Mas é-o em modo colectivo” e, como tal, não se confundirá com os preceitos directamente dirigidos aos administradores e aos sócios. Prossegue o mesmo Autor, esclarecendo que os interesses referidos no art. 64 são, simplesmente, normas e princípios jurídicos, que devem ser respeitados pelos administradores, mas de uma maneira específica: em modo colectivo – ou seja, atendendo ao tipo particular de personalidade atribuída à sociedade, a personalidade colectiva40.

Uma outra forma de perceber a contraposição entre interesses dos sócios e

interesse da sociedade passa por subdividir aqueles em dois tipos distintos de interesses. Por um lado, temos o interesse comum dos sócios traduzido na obtenção, pela sociedade, do maior lucro possível, dado que quanto maior o lucro maiores os dividendos distribuídos a cada sócio. Por outro lado, existem os interesses extrassociais dos sócios que, em certas circunstâncias e até certo ponto, também devem ser ponderados pelo gestor criterioso e ordenado no cumprimento dos deveres para com a sociedade. Exemplo de um interesse extrassocial dos sócios é a expectativa de não desvalorização da sua participação social, expectativa essa que os administradores hão-de ter em consideração na prática de actos de gestão. A ser aceite, para este efeito, o conceito de interesses extrassociais, estes identificar-se-iam com os “interesses dos sócios”, ao passo que o “interesse da sociedade” traduziria o interesse comum dos sócios já explicitado.

Passamos agora a analisar os n.ºs 2, 3, 4 e 5 do art. 72, que, ao contrário do n.º 1,

susceptível de ser integralmente reconduzido às regras gerais do CC sobre responsabilidade obrigacional, apresentam já algumas especificidades do direito societário. Trata-se, aqui, de indicar as causas de exoneração da responsabilidade face à sociedade, isto é, por outras palavras, de enunciar as causas específicas de exclusão da ilicitude da actuação dos administradores.

O art. 72/2, a que já nos referimos sucintamente, diz respeito à possibilidade de

cada um dos administradores, enquanto titular individual do órgão de administração, se eximir à responsabilidade decorrente de uma deliberação colegial. Este tipo de deliberações está previsto, para as sociedades anónimas, nos arts. 406 e 431/3 e, para as sociedades por quotas, no art. 261/1. Para não ser responsabilizado, o administrador terá de demonstrar que não participou na deliberação, ou que, tendo nela participado, votou vencido. Neste último caso, dispõe do prazo de cinco dias para documentar a sua declaração de voto, para o que se pode socorrer de uma de três vias: fazer inscrever a declaração no livro de actas, fazê-lo perante notário, ou dirigir-se, por escrito, ao órgão de fiscalização (previsto, para as sociedades por quotas, no art.262 e, para as sociedades anónimas, no art. 413).

Quanto à “não participação” na deliberação, cumpre dizer que ela não se

identifica com a ausência física da reunião em que a deliberação haja sido tomada. Por um lado, é possível que, apesar de ter estado presente na reunião do órgão de 40 Ver Menezes Cordeiro, Da responsabilidade..., cit., pp. 521 ss.

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administração, o titular estivesse impedido de votar, designadamente, e falando das sociedades anónimas, por a deliberação em causa incidir sobre um tema em que o administrador tenha, por conta própria ou de terceiro, um interesse conflituante com o da sociedade (art. 410/6). Por outro lado, a ausência física nem sempre tem como implicação necessária a impossibilidade de votar, uma vez que, segundo o disposto no art. 410, nºs 5 e 7, o administrador pode, respectivamente, fazer-se representar na reunião e, nos casos autorizados pelo contrato de sociedade, votar por correspondência. No período de vigência do Decreto-lei 49381, entendia a doutrina, com base no respectivo art. 17/3, que a ausência da reunião (ausência efectiva, abstrai-se aqui das possibilidades de representação e voto por correspondência ) era motivo justificativo da exclusão da responsabilidade, qualquer que fosse a causa dessa ausência. Actualmente, à luz do art. 72, já não parece ser de sustentar esta posição. Na verdade, o n.º 2 do art. 72 deve ser articulado com o estipulado pelo n.º 3 do mesmo artigo. Aí se diz que o administrador responde solidariamente com os restantes membros do órgão de administração, quando não tenha feito uso do direito de oposição que lhe assiste nos termos da lei, tendo podido fazê-lo. Ora, daqui pode retirar-se a possibilidade de responsabilização do administrador que não tenha feito tudo o que estava ao seu alcance para evitar a deliberação originadora do facto danoso. Tal será o caso, quando o administrador, injustificadamente, falte à reunião e, desse modo, não participe na deliberação41, pois, dessa forma, está a arredar, por vontade própria e sem razão atendível, a possibilidade de se vir a opor a todas as deliberações tomadas na reunião em causa.

Sobre a regra contida no art. 72/2, resta dizer que, obviamente, se situam fora do

seu âmbito de aplicação as situações em que sejam imputáveis a um titular do órgão de administração actos fundadores de responsabilidade que não se relacionem com uma prévia deliberação colegial, como seja, por exemplo, a violação do dever de não concorrência (arts. 254, 398 e 428). Ponto de partida e pressuposto lógico do funcionamento da causa individual de exclusão da ilicitude do art. 72/2 é a existência de uma deliberação colegial (da qual resultem danos para a sociedade)42.

O texto do nº3 do artigo em análise fala de um “direito” de oposição do

administrador. No entanto, visto que o não exercício desse “direito” dá origem à responsabilização do administrador pelo acto a que poderia ter-se oposto, estamos perante um “poder-dever”, ou mesmo face a um dever tout court, e não perante um “direito”, que, para o ser rigorosamente, teria de consubstanciar uma permissão em lugar de uma imposição de agir. De resto, dificilmente os poderes atribuídos em geral aos administradores no âmbito da gestão da sociedade serão configurados como verdadeiros direitos e não como poderes funcionais. A redacção do art. 72/3 não torna claro se a oposição deve ser exercida somente num momento anterior ou contemporâneo da deliberação, ou se pode (deve) também ocorrer num momento posterior, designadamente na altura da sua execução. Julgamos que a interpretação correcta do preceito passa por esta segunda hipótese. Neste sentido, podemos apontar o art. 412/4, que impõe aos administradores o dever de “não consentir” na execução de deliberações nulas, o que vale por dizer que eles têm o dever de se opor a tal execução. No seguimento do entendimento exposto sobre a real natureza do “direito” conferido pelo art. 72/3, pode defender-se também que a possibilidade de o administrador requerer a declaração de nulidade ou a anulação de deliberações do conselho de administração (art. 41 M. Nogueira Serens, Notas sobre a sociedade anónima, Coimbra Editora, 1997, p. 93. 42 Maria Elisabete Ramos, “Aspectos substantivos...”, cit., p. 244.

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412/1) implica a atribuição de um poder-dever e não de um direito. Subjacente a toda esta posição está a concepção segundo a qual a cominação legal da nulidade ou anulabilidade de certo acto não prejudica a imposição da obrigação de indemnizar a quem poderia ter evitado a prática do acto nulo ou anulável ou a sua subsequente implementação.

Nos termos do art. 72/4, está excluída a responsabilidade dos administradores

por um acto ou omissão baseado em deliberação dos sócios, mesmo que esta seja anulável. No fundo, o art. 72/4 trata de situações de certa maneira análogas às de “culpa do lesado”, previstas no art. 570 CC. Como a deliberação originadora do facto danoso assenta numa outra deliberação decidida pelos próprios sócios, e visto que estes são, ainda que apenas por repercussão no seu património do dano sofrido pela sociedade, os principais prejudicados pela deliberação da administração, pode dizer-se que o dano assenta, em última análise, num facto praticado pelo lesado, cuja “culpa” exclui, por isso, a responsabilidade (a obrigação de indemnizar, segundo o art. 570 CC) dos administradores, que, em primeira linha, surgem como lesantes.

O disposto no art. 72/4 parece adequado ao funcionamento das sociedades por

quotas, uma vez que, nestas, como já foi dito, os gerentes estão vinculados a um dever de respeito pelas deliberações dos sócios (art. 259). Contudo, no respeitante às sociedades anónimas, a solução já não se nos apresenta tão evidente quanto às deliberações incidentes sobre matéria de gestão. É que, de acordo com o art. 373/3, os accionistas só podem deliberar sobre matérias de gestão a pedido da administração, e, mesmo nesses casos, não se verifica uma transferência de poderes e de responsabilidades dos administradores para os accionistas. O sentido do pedido do órgão de administração é o de auscultação da opinião dos sócios acerca de determinado assunto de gestão, a título meramente consultivo. Esta interpretação é reforçada pelo disposto no art. 405, onde se diz que o conselho de administração só deve sujeitar-se às deliberações dos accionistas nos casos em que a lei ou o contrato de sociedade o determinarem. Ora, do art. 373/3 não se pode inferir que os administradores fiquem vinculados à deliberação dos sócios. O tipo societário em causa destina-se a servir de suporte sobretudo a grandes empresas, cuja gestão se reveste de uma complexidade assinalável, exigindo, como tal, um elevado grau de conhecimentos técnicos por parte de quem está encarregado da administração. Daí que, em princípio, os administradores estejam melhor preparados do que o conjunto dos sócios para avaliar a licitude ou ilicitude da sua conduta. Por isso, se, depois de os sócios se pronunciarem a favor de certa medida, os administradores tiverem razões para crer que a deliberação a adoptar consubstancia uma violação dos seus “deveres legais ou contratuais” (art. 72/1), poderão e deverão abster-se de deliberar nesse sentido.

Contra esta posição, pode dizer-se que a ratio do art. 72/4 assenta na ideia de

que a propositura de uma acção de responsabilidade perante a sociedade, quando o alegado facto danoso teve primariamente origem numa deliberação dos sócios, constitui um caso de abuso do direito de pedir uma indemnização, na modalidade de venire contra factum proprium, uma vez que a instauração das acções previstas nos arts. 75 e 77 depende de deliberação dos sócios ou, pelo menos, da iniciativa de alguns deles. Não faz sentido, dir-se-á, que os sócios se pronunciem favoravelmente quanto a uma determinada decisão a tomar pela administração, para, em momento posterior, virem exigir uma indemnização pela prática do facto por eles mesmos aconselhado (note-se que este argumento é também válido para as sociedades por quotas, aliás por maioria de

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razão, pois, como foi dito, neste tipo societário, as deliberações dos sócios têm de ser respeitadas pela administração).

Replicando, pode sustentar-se, por um lado, que, apesar de tudo (isto é, apesar

de o incremento patrimonial sofrido pela sociedade em virtude do pagamento da indemnização se repercutir indirecta e positivamente no património de cada um dos sócios), credora da obrigação de indemnização é a sociedade, enquanto pessoa colectiva, e não os sócios, que, no caso da acção prevista no art. 75, nem sequer se apresentam como autores, já que estes são representantes especiais que actuam em nome da sociedade. Para além disso, acrescentar-se-á, o facto de a propositura da acção depender de deliberação dos sócios explica-se por só a estes ser possível atribuir a legitimidade de dar início ao processo indemnizatório, uma vez que é a actuação dos normais representantes da sociedade, os próprios administradores, que está em causa na acção. Por outro lado, pode insistir-se no carácter meramente consultivo da deliberação dos sócios, que não deverá poder servir para desresponsabilizar a actuação dos administradores, sob pena de isso conduzir ao absurdo de estes, nos casos em que sabem poder estar a incorrer num ilícito, solicitarem a pronúncia dos accionistas na expectativa de obter um parecer positivo, “incentivando-o” até mediante a apresentação de argumentação parcial (já que nada na lei impede os administradores de, juntamente com o pedido de pronúncia, manifestarem um a primeira opinião sobre a questão em causa).

Em favor desta tese, pode ainda invocar-se o disposto no art. 72/5, segundo o

qual o parecer favorável ou o consentimento do órgão de fiscalização não exoneram de responsabilidade os administradores. Ora, se a razão de ser desta não exoneração se prende com o carácter consultivo das manifestações do órgão fiscalizador, por que não aplicar idêntica solução aos casos em que as deliberações dos sócios tenham igualmente mera natureza consultiva? Acresce que, se recorrermos ao elemento histórico, verificamos que o art. 72/4 corresponde ao art. 17/4 do Decreto-lei 49381, que se enquadrava num regime que dava supremacia à assembleia geral dos sócios sobre os administradores43. Ora, o CSC veio conceder clara primazia ao órgão de administração quanto aos assuntos de administração, o que é visível, nomeadamente, nos arts. 373/3, 405 e 406. Assim, tendo-se operado uma mudança significativa no equilíbrio de forças entre os dois órgãos da sociedade referidos, tal mudança não foi acompanhada por uma alteração no regime da responsabilidade dos administradores, que foi, pelo menos no que respeita ao preceito em causa, pura e simplesmente transplantado do Decreto-lei 49381 para o CSC.

A propósito da parte final do art. 72/4, cabe mencionar a perspectiva defendida

por Vasco da Gama Lobo Xavier. Segundo este Autor, há que fazer uma interpretação restritiva desta parte do n.º 4. Assim, nos casos em que a anulabilidade seja conhecida do administrador, não se aplicará o preceito, pelo que a responsabilidade não fica excluída. Parece, realmente, ser esta a interpretação correcta, pois, caso contrário, estar-se-ia a favorecer a conduta de um administrador que, de má-fé, se aproveita de uma deliberação dos sócios, que ele sabe estar viciada, para praticar um acto ilícito.

O art. 73 estabelece a regra da solidariedade da responsabilidade dos

administradores, o que significa poder ser exigido de qualquer dos administradores o total do montante da indemnização devido pelo conjunto dos administradores 43 Brito Correia, Os administradores..., cit., p. 557.

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responsáveis. Estamos, portanto, perante um caso de litisconsórcio voluntário passivo (art. 27 do Código de Processo Civil). Trata-se de uma solução idêntica à consagrada no art. 497/1 CC.

O n.º 2 do art. 73 esclarece, na linha do n.º 2 do art. 497 CC, que o direito de regresso conferido ao administrador que tenha cumprido sozinho a obrigação de indemnização varia quantitativamente em função da culpa de cada um dos administradores solidariamente responsáveis. Esta remissão expressa para a medida das culpas vem reforçar o entendimento acima defendido, a propósito do art. 64, segundo o qual o CSC exige uma rigorosa distinção entre a ilicitude e a culpa enquanto pressupostos constitutivos da responsabilidade civil dos administradores. O referido número estabelece ainda, mais uma vez à semelhança do art. 497/2, uma presunção de igualdade da medida das culpas. Em suma, o art. 73 nada acrescenta ao regime geral contido no CC.

O art. 74/1 considera nulas as cláusulas de limitação e exclusão da responsabilidade dos administradores, independentemente de estarem incluídas no contrato de sociedade. Quanto à exclusão total da responsabilidade, segue-se o estatuído no art. 809 CC. Já no que concerne à limitação, o CSC é mais exigente do que o CC. Isto se aceitarmos a posição da doutrina dominante, segundo a qual o art. 809 não proíbe as cláusulas que apenas limitem antecipadamente a responsabilidade. Segundo este entendimento, a “cláusula penal”, a que se refere o art. 810 CC, tanto pode servir para estabelecer um montante indemnizatório previsivelmente superior aos danos que podem vir a resultar do incumprimento, como para estabelecer um quantitativo provavelmente inferior a esses mesmos danos. Ou seja, ainda que se venha a apurar um dano mais elevado do que o quantum indemnizatório contratualmente estipulado, é este último que prevalece, desde que, naturalmente, ele não signifique, na prática, uma exclusão da responsabilidade44. O maior grau de exigência dever-se-á ao facto de os administradores se suporem dotados de especial competência e habilitações para o exercício das suas funções, ao passo que o devedor visado pelos art. 809 ss. CC é definido em termos genéricos. É de frisar que esta proibição de limitação e de exclusão respeita tanto à fixação do montante da indemnização num valor inferior ao dos danos, como à definição dos casos em que a responsabilidade se constitui (não é permitido estipular-se que só haverá responsabilidade em caso de dolo e não em situações de mera negligência).

Ao lado da proibição de exclusão e limitação quanto a aspectos substantivos, o

art. 74/1 prevê igual proibição a propósito de certos aspectos processuais. Assim, o artigo em apreciação não admite a sujeição do exercício da acção social proposta por sócios (art. 77) a prévio parecer ou deliberação dos sócios, o que faz todo o sentido, já que este tipo de acção visa precisamente permitir que sócios individuais ou grupos de sócios efectivem o direito da sociedade à indemnização, quando não haja sido deliberado, pelo conjunto dos sócios, nos termos do art. 75, o exercício da acção social pela própria sociedade. O art. 75/2 permite à sociedade renunciar ao seu direito de indemnização, através de deliberação expressa dos sócios, mas só considera válida a renúncia, quando a esta não se tenham oposto, mediante voto contrário, sócios detentores de, pelo menos, 10% do capital social. Há aqui alguma incongruência com o estipulado no art. 77/1, onde se permite a sócios possuidores de, pelo menos, 5% do 44 Assim, por exemplo, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. II, 4.ª ed., Coimbra Editora, 1997, p. 73.

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capital social, que intentem a acção social. Como estes sócios actuam em substituição processual da sociedade, não poderão exercer o direito de indemnização da sociedade quando esta já haja renunciado a ele, nos termos do art. 74/1. Assim sendo, seria mais coerente fixar uma percentagem igual nos arts. 74/1 e 77/145. É claro que, de um ponto de vista de protecção das posições minoritárias, estas ficariam melhor salvaguardadas, se, em ambos os artigos, fosse fixada a percentagem em 5%.

A parte final do n.º 1 do art. 74 estabelece um impedimento de voto na

deliberação que incida sobre a renúncia ao direito de indemnização. Trata-se de não permitir ao administrador que seja simultaneamente sócio (possibilidade prevista no art. 21/1 d)) que vote em sentido favorável à renúncia ao direito de indemnização de que ele seja o eventual devedor.

Por fim, o n.º 3 do art. 74 dispõe que, em regra, a deliberação da assembleia

geral pela qual sejam aprovadas a gestão ou as contas apresentadas pelos administradores (sobre o relatório de gestão, a apresentação de contas e a respectiva aprovação versam os arts. 65, 66, 67, 68, 246/1e), 376/1a) [competência dos sócios de sociedades por quotas e de sociedades anónimas para a aprovação]) não significa renúncia aos direitos de indemnização da sociedade contra os administradores. A renúncia só se terá por verificada, quando se verifiquem cumulativamente dois requisitos, a saber: os factos constitutivos da responsabilidade terem sido expressamente dados a conhecer aos sócios antes da aprovação; não terem votado contra a deliberação de aprovação sócios possuidores de, pelo menos, 10% do capital social. Esta regra encontra a sua razão de ser no facto de o relatório de gestão e as contas serem elaborados pelo próprio órgão de administração (art. 65) do qual são membros os eventuais responsáveis. Visa-se impedir que, no caso de os factos constitutivos de responsabilidade não constarem do relatório ou das contas, ou surgirem “diluídos” entre os restantes aspectos contabilísticos, os administradores não possam, posteriormente, alegar que os sócios já perderam a oportunidade de desencadear o exercício do direito de indemnização. Até porque, não pode deixar de se reconhecer que, em alguns casos, os administradores tenderão a, tanto quanto possível, não fazer transparecer nos documentos em que são apresentadas as contas e relatada a gestão os factos que eles saibam serem susceptíveis de originar a sua responsabilidade perante a sociedade. E, como se trata aqui de uma actividade de ocultação de provas, será particularmente difícil ao órgão de fiscalização detectar os tais factos constitutivos de responsabilidade. b) Aspectos processuais

Já foi diversas vezes dito que o sistema de responsabilidade dos membros do

órgão de administração que entre nós vigora é um sistema híbrido quanto à recepção dos modelos de responsabilidade civil. Acabaram de ser passados em revista os aspectos substanciais desse regime, de matriz claramente germânica. Cabe agora analisar as notas processuais específicas do regime da responsabilidade dos administradores, que, como já vimos, corresponde a uma recepção do direito francês, embora com alguns traços próprios.

Comecemos por olhar para o art. 75 onde se prevê a acção social ut universi.

Este é o meio normal e, como vimos, o primeiro a aparecer historicamente de propor 45 Nogueira Serens, Notas..., cit., p. 98.

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uma acção contra os administradores. Os sócios, por qualquer das formas que o CSC admite46, deliberam exercer o seu direito de indemnização. Diz-nos o citado artigo que a deliberação pode ser aprovada por maioria simples, não se exigindo qualquer maioria qualificada. A partir do momento em que é decidida a responsabilização dos administradores começa a correr um prazo de seis meses para a efectiva proposição da acção. Este prazo pretende resguardar os administradores da situação de indefinição prolongada causada pelo lapso temporal entre a deliberação e a propositura da acção (e a subsequente decisão judicial). Como tal, este prazo é preclusivo, pelo que, naturalmente, os sócios não poderão deliberar novamente a instauração de uma acção respeitante aos mesmos factos. Quanto muito, será de admitir a hipótese de responsabilização dos representantes especiais pela sua inércia, maxime quando estes sejam remunerados.

Para que se possa discutir e decidir esta matéria em Assembleia Geral é

necessário que a mesma conste da ordem do dia ( art. 377 e art. 75/2 a contrario), excepto nas deliberações anuais de apreciação de contas, onde tal matéria consta sempre, ex lege47, da ordem do dia (art. 75/2).

Em razão de um óbvio conflito de interesses, impede-se, no n.º 3 do mesmo

artigo, disposição paralela a outras no CSC48, os administradores-sócios de votar nessas deliberações.

A lei tem depois algum cuidado com a representação da sociedade em juízo.

Quer-se evitar que sejam membros do órgão de administração, ou alguém nomeado para o efeito por este, a representar a sociedade quando poderá estar em causa a responsabilidade de um membro desse mesmo órgão. Para o efeito, podem os sócios, quando decidem exercer o direito de indemnização da sociedade, nomear representantes especiais que actuarão em nome da sociedade junto do tribunal (art. 75/1 parte final). Se não o fizerem nesse momento pode qualquer sócio, ou sócios, que detenha mais de 5% do capital social requerer ao tribunal a designação de representantes judiciais (art. 76/1). Mais problemática é a possibilidade, dada ao mesmo grupo minoritário de sócios, de requerer ao tribunal a substituição do representante especial que os próprios sócios legitimamente designaram, quando deliberaram responsabilizar os administradores. De facto, se os sócios decidem, com a necessária maioria, propor uma acção de responsabilidade não se vê qual a razão para impedi-los de serem eles próprios a escolher quem querem para os representar, como se a minoria em causa fosse uma intérprete privilegiada do interesse societário. Nestes termos, deve ser feita uma aplicação cuidadosa da parte final do art.76/1, reduzindo a situações verdadeiramente excepcionais os casos em que “...se justifique a substituição...”.

Aliás, é o próprio legislador a sentir que assim é, ao estabelecer um mecanismo

dissuasor no art. 76/3. Este obriga a minoria que requereu a nomeação dos representantes a reembolsar a sociedade de todas as despesas que esta tenha tido em consequência da dita nomeação, quando o administrador é absolvido49 do pedido.

46 Ver arts. 53 e ss.: assembleia geral, assembleia universal, deliberação unânime por escrito e, eventualmente, deliberações por voto escrito. 47 M. Nogueira Serens, Notas..., cit., p. 93. 48 Ver, por exemplo, o art. 251 e o art. 384 n.º 6. 49 Quando a sociedade vê reconhecido o seu direito é ela que suporta as despesas com esses representantes.

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De seguida, a lei prevê uma outra forma processual de responsabilizar os administradores perante a sociedade: a já referida acção social ut singuli, ou, na expressão da lei, acção social proposta por sócios, expressão máxima da influência francesa no nosso legislador.

Valem aqui as considerações tecidas anteriormente a propósito das razões

substanciais que levaram à consagração desta acção na jurisprudência gaulesa. Quer-se proteger as minorias dentro da sociedade, já que, por força das relações privilegiadas que frequentemente existem entre a administração e a maioria dos sócios que a elegeu, dificilmente se formará uma maioria suficiente (precisamente por ser a mesma exigida para as duas situações) para desencadear a acção social da sociedade, defraudando assim os legítimos interesses das ditas minorias.

Não se vai, no entanto, tão longe nessa protecção como em França, optando-se

por um equilíbrio de interesses diverso, atribuindo maior relevância ao valor estabilidade social. Naquele país, qualquer sócio, pelo simples facto de ser sócio e independentemente da percentagem do capital social que possui, pode lançar mão de uma acção contra os administradores50. Cá, pelo contrário, exige-se a concentração, num sócio ou num grupo de sócios, de pelo menos 5% do capital social. Daí ser também chamada acção de grupo.51

Diz-nos ainda o n.º 1 do art. 77, na sua parte final, que esta acção tem carácter

subsidiário face à acção ut universi, sendo esse o motivo que nos levava a afirmar, algo imprecisamente, que esta era o meio “normal” de propor uma acção contra os administradores. Retira-se também da mesma norma, o que nos leva ao ponto seguinte, que a indemnização eventualmente obtida é a favor da sociedade visando ressarcir os danos que ela tenha sofrido e não a favor dos sócios que a propõem, até porque esta acção não prejudica a possibilidade de esses mesmos sócios virem a pedir tutela para os danos próprios que sofreram.

E o assunto que agora nos ocupa é precisamente o do enquadramento dogmático

desta figura, qual a sua natureza jurídica. Ora, como vimos agora mesmo, estamos perante uma situação em que a lei concede, excepcionalmente52, a um grupo de sócios a possibilidade de, apesar de actuando em nome próprio, actuarem por conta da sociedade. Tal enunciado corresponde a uma figura do processo civil, a substituição processual53. Aos sócios aqui em causa é-lhes conferida legitimidade activa para a acção, pois, apesar de não serem os titulares directos do interesse em causa, a indemnização, têm um interesse juridicamente relevante na responsabilização dos administradores que será satisfeito se a acção vier a proceder.54 50 Menezes Cordeiro, Da responsabilidade..., cit., p.109. Mesmo em França esta modalidade não é muito utilizada, já que o sócio que a decidir propor suporta todas as despesas inerentes a ela, mesmo revertendo o seu produto integralmente a favor da sociedade. Esta é outra forma de moderar a utilização destas acções. 51 Menezes Cordeiro, Da responsabilidade..., cit., p. 115, reserva a expressão “acção social ut singuli” para as situações em que qualquer sócio pode propor a acção, sem dependência da titularidade de uma percentagem do capital social. Assim, no caso do art. 77, utiliza o termo “acção social ut singuli imprópria” ou acção de grupo. Não existindo no nosso direito tal figura optamos por manter a designação tradicional. Nesse sentido, M.E. Ramos, “Aspectos substantivos...”, cit., p. 215. 52 Excepcionalmente no sentido em a situação que se verificaria na sua ausência seria a legitimidade exclusiva da sociedade para a propositura da acção. 53 Para mais detalhes, v. Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil, Coimbra, 1997, pp. 60 e ss. 54 M. Elizabete Ramos, “Aspectos substantivos...”, cit., p. 215, refere que este interesse será a “valorização da participação social em virtude do incremento patrimonial verificado em consequência da percepção da indemnização”, o que não parece ser nada óbvio, pelo menos primacialmente, já que, como aliás a própria A. refere (p. 218), na maioria dos casos o património dos administradores será insuficiente para reparar os danos de uma má gestão. Nestes

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Visto que o substituto em geral, e no nosso caso os sócios, actuam tendo em

vista o efeito indirecto que a tutela jurisdicional do direito do substituído, isto é da sociedade, terá no seu próprio interesse, percebe-se bem que, quando o titular directo do interesse em causa exerce o seu direito, no nosso caso através do seu órgão constituído pelo colégio dos sócios que despoleta a acção ut universi, não possa aquele também fazê-lo. É que os seus interesses são já salvaguardados dessa maneira: daí o carácter subsidiário desta acção.

Também no quadro desta construção compreende-se facilmente, uma vez que o

interesse fundamental em causa é o da sociedade, que, como refere Nogueira Serens55, sejam oponíveis a estes sócios todas as excepções que seriam invocáveis contra a própria sociedade, designadamente quando o acto posto em crise assentar em deliberação dos sócios (art. 72/4).

Outra característica deste regime consta do n.º 4 do mesmo artigo, que determina

a chamada da sociedade ao processo. Tal é inerente a esta figura: naturalmente que aquele que é o titular directo do interesse em causa deve ter oportunidade de se pronunciar sobre a questão56. Em relação à forma de representação do grupo em juízo o legislador evita interferir, permitindo aos sócios em causa acordar na representação de todos por um ou mais sócios (art. 77/2).

No art. 77/3, esclarece-se que o único momento relevante para aferir se a

percentagem mínima exigida por lei está satisfeita é o da proposição da acção (v. art. 267 Código de Processo Civil, que fixa o momento do início da instância). Nesse momento, têm de estar reunidos 5% do capital social, mas é irrelevante que, posteriormente, seja porque um dos membros do grupo inicial deixa de ser sócio, seja porque algum deles desiste da instância, deixem de estar reunidos os ditos 5%. Não deve, portanto, proceder a ideia de que a aplicação da norma se restringiria aos casos em que, por desistência ou perda de qualidade de sócio, a percentagem do capital social se mantivesse acima do mínimo legal. É que esse entendimento retiraria qualquer sentido útil à norma, porquanto tal seria sempre admissível por apelo ao n.º 1 do mesmo artigo. Raúl Ventura e Brito Correia sublinharam que a acção pode prosseguir mesmo que todos os sócios autores desistam ou percam a qualidade de sócio, na medida em que permanece o interesse da sociedade (uma vez mais, é desta o interesse principal em jogo) e dos credores na procedência do pedido.

No n.º 5 volta a fazer-se sentir a cautela que o legislador teve na recepção deste

mecanismo, em particular receando que dele se faça um uso indiscriminado e abusivo. Atrás já vimos, na mesma linha de pensamento, que se recusou a possibilidade de sócios, individualmente considerados, isto é atendendo exclusivamente à sua qualidade de sócio sem considerar a percentagem da sua participação no capital social, exercerem o direito de indemnização que pertence à sociedade. Agora, procura-se introduzir uma válvula de segurança que funcione como um mecanismo dissuasor da utilização indevida deste meio processual. Estes cuidados são extremamente pertinentes, já que,

termos, não é de esperar grande valorização da participação social por força de uma escassa indemnização. O interesse dos sócios residirá, pois, na correcta gestão da empresa, essa sim valorizadora da participação social, e potenciada por mecanismos de responsabilização. 55 Ob. cit., p. 96. 56 Vejam-se os arts. 320 e 325 do Código de Processo Civil.

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como bem nota Nogueira Serens57, esta acção pode tornar-se “...um instrumento de desgaste dos membros do órgão de administração...”. Prescreve, nesse sentido, a citada norma, que os administradores em causa podem requerer uma de duas coisas: ou pedem que o grupo de sócios seja chamado a prestar caução; ou então solicitam ao Tribunal que indague previamente se os sócios estão a prosseguir interesses diferentes daqueles que são protegidos por lei com a concessão deste instrumento adjectivo. Tal verificar-se-á quando são prosseguidos interesses diferentes dos societários, que, neste caso concreto, são concretizados por uma administração zelosa e competente.

O exercício do direito de indemnização de que a sociedade é titular interessa,

prima facie, aos sócios: daí as diferentes formas, acabadas de analisar, que têm ao seu dispor para o exercer (ou melhor dito, para o fazer exercer) . Mas eles não são os únicos interessados no aumento do património da sociedade. Também os seus credores, visto que, como é sabido, qualquer aumento patrimonial aumenta também a garantia dos seus créditos, têm um interesse no exercício desse direito. Frequentemente, os interesses dos sócios são conflituantes com os dos credores, o que poderia inviabilizar muitas vezes a dita deslocação patrimonial em favor da sociedade. Deste modo, tutelando assim as suas legítimas expectativas, prevê a lei a possibilidade de os credores provocarem o seu exercício. Note-se que estamos ainda no domínio da responsabilidade perante a sociedade, os credores limitam-se a substituí-la no exercício de um direito que está na sua esfera jurídica e que, pelo menos imediatamente, só a esta aproveita. Neste sentido, veja-se o art.º 78/2: aí se expressam os dois traços fundamentais desta acção, o seu carácter subsidiário e sub-rogatório, que indicam voltarmos a encontrar a figura da substituição processual. Subsidiário, pois, como resulta do que foi dito, sempre que haja lugar a uma acção social (seja ut universi ou ut singuli), os interesses dos credores são plenamente realizados, só se justificando a intromissão de alguém estranho à sociedade em ultima instância. Sub-rogatório já que, também como já vimos, os credores actuam em nome próprio mas por conta da sociedade, em conformidade com os artigos 606 a 609 C.C., o que impõe como requisito a essencialidade da acção para a satisfação do crédito (art. 606 C.C.). Quer isto dizer que este meio processual estará vedado, sempre que a situação economico-financeira da sociedade permitir o cumprimento atempado das suas obrigações. Terá pois o credor de provar que, sem o exercício do direito de indemnização da sociedade contra o administrador, dificilmente verá o seu crédito satisfeito.

Muito delicada é a questão de saber se esta acção fica prejudicada pelo facto de

o acto do administrador assentar em deliberação da assembleia geral, por a sociedade a ele ter renunciado ou por ter transigido esse direito, no fundo a questão de saber se o art. 78/3 se aplica apenas em relação ao n.º 1 (a acção autónoma dos credores, adiante analisada) ou se também se aplica ao n.º 2, a acção sub-rogatória que agora vemos.

Actuando os credores como substitutos processuais, naturalmente que agem

como se estivessem no lugar do substituído, isto é, são titulares das mesmas situações jurídicas de que a sociedade seria, se tivesse decidido exercer esse direito. Não parece pois ser de admitir que os credores possam exercer um “direito da sociedade” quando a própria sociedade já não é titular desse direito, quando ele já desapareceu da sua esfera jurídica, seja por renúncia, seja por transacção. O que se quer dizer é que, no fundo, os credores, como substitutos, apenas podem fazer exercer direitos que efectivamente existam no património da sociedade. É fundamental que nunca se perca de vista que os 57 Ob. cit., p. 95.

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credores não estão aqui a exercer um direito próprio, sob pena de resultados absurdos. Imagine-se uma situação em que a sociedade, obedecendo a todos os requisitos acima referidos, faz um acordo com um administrador, renunciando ao seu direito em troca de um valor e impedindo assim a sempre receada exposição pública destas situações; a sociedade já não é titular desse direito e o administrador perdeu também uma quantia, seria inadmissível que se permitisse agora aos credores exercer o pretenso direito da sociedade, que já não existe, até porque esta acabaria por ser ressarcida duas vezes58. Em relação às deliberações sociais a questão põe-se nos mesmos termos: sempre que funcionarem, nos termos atrás explicitados, como causa de justificação, terão de ser, forçosamente, oponíveis aos credores que exercerem a acção sub-rogatória.

Este entendimento encontra consagração legal se procedermos a uma

interpretação cuidadosa da norma que aqui está em causa, o art. 78/359. Circunscreve-se a sua previsão à “obrigação de indemnização (...) relativamente aos credores...”, devendo-se entender que só no caso da acção autónoma é que a obrigação de indemnização é relativa aos credores. No caso da acção sub-rogatória, apesar de serem os credores a actuar, eles fazem-no por conta da sociedade, cujo património beneficiará do incremento decorrente do pagamento da indemnização, logo a obrigação de indemnização é “relativa” à sociedade. Delimitada a hipótese legal, através da interpretação da expressão “relativamente aos credores”, fica também restringida a estatuição, que fica reserva à acção autónoma do n.º 1, em relação à qual faz todo o sentido, como se verá a seguir.

Outro argumento, de cariz sistemático, pode também ser alinhado: como

entender a remissão operada pelo n.º 5 do mesmo artigo para o art. 72/4 se se considerar que o art. 78/3 se aplica quer à acção autónoma quer à acção sub-rogatória? Como se resolveria esta contradição? Por um lado diz-se que o facto de o acto em causa assentar numa deliberação exclui a responsabilidade (art. 72/4 por remissão do art. 78/5), por outro lado afirma-se que a responsabilidade não é excluída por assentar em deliberação social (art.78/3). Nogueira Serens propõe entender esta remissão apenas em relação à acção sub-rogatória, evitando assim uma interpretação ab-rogante. É uma solução engenhosa, mas depara com dificuldades face ao texto da lei. Note-se que se diz que ”...ao direito de indemnização previsto neste artigo...”, o que parece ser o direito próprio dos credores, e não o direito que está em causa na acção subrogatória60.

Contra esta interpretação restritiva aqui defendida, mas apenas na parte

respeitante à oponibilidade das deliberações sociais, poderá sustentar-se que a ratio do art. 72/4 – não favorecer um venire contra factum proprium por parte dos sócios, cuja vontade estaria simultanea e contraditoriamente na base da deliberação social e do desencadear da acção de responsabilização – não encontra eco no caso de serem os credores sociais, que nada têm a ver com a deliberação social, a propor a acção de indemnização, ainda que somente a título subrogatório. É que, dir-se-á, a legitimidade processual activa atribuída em função do interesse dos credores não pode ser prejudicada pela existência de uma deliberação que, de maneira alguma, é imputável aos titulares daquele interesse. Assim, o facto de com tal acção subrogatória se beneficiar a sociedade que, através de um seu órgão (assembleia dos sócios) contribuiu para a

58 Na mesma orientação, M. Elizabete Ramos, “Aspectos substantivos...”, cit., p. 238. 59 Em sentido oposto, face ao já citado Decreto-Lei n.º 49381, que foi transposto para o CSC, pronunciaram-se Raúl Ventura/Brito Correia. 60 Ob. cit. pp. 97-98. Aliás, o próprio autor chega a interrogar-se sobre se esta remissão terá sido lapso.

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produção do facto danoso, teria de ser visto como uma consequência menor e inevitável, insusceptível de afastar a defesa do interesse legítimo dos credores no incremento da garantia do seu crédito. Julgamos, todavia, que esta perspectiva não deve obter vencimento, sob pena de se inverter completamente a lógica subjacente ao mecanismo da subrogação. Na verdade, encarar como mero efeito reflexo ou lateral a vantagem ganha pela sociedade com o exercício, pelos credores, da acção subrogatória implicaria ter de se considerar como principal o interesse dos credores e secundário o da sociedade. Ora, a situação visada pelo art. 78/2 é exactamente a contrária a esta: é por o interesse dos credores ser indirecto e o da sociedade directo que se atribui àqueles um direito de acção apenas subsidiário, só exercível quando a sociedade não faça uso do seu direito.

3- Responsabilidade perante os credores

Passemos agora para a responsabilidade dos administradores para com os credores sociais. Tal hipótese está prevista genericamente no art. 78/1, tem aspectos de regime semelhantes à responsabilidade perante a sociedade (desde logo por força do art. 78/5) e tem um regime especial no já nosso conhecido art. 78/3. É uma acção individual dos credores, que agem em nome e por conta própria, e é independente da acção face à sociedade.

Ao contrário do que tínhamos visto em relação ao art. 72, estamos agora na

presença de uma modalidade de imputação delitual. De facto, não existem aqui quaisquer vínculos específicos entre os administradores e os credores sociais, já que há um ente jurídico autónomo que medeia as relações que estes estabelecem entre si, de modo a fundamentar uma responsabilidade de tipo obrigacional61. Assim, a responsabilidade perante os credores não se afasta muito do regime geral do art. 483 e ss. CC: ao lesado cabe alegar e provar todos e cada um dos factos constitutivos da responsabilidade civil.

No regime geral temos duas formas de ilicitude: uma dita stricto sensu “...violar

ilicitamente o direito de outrem...”, e outra que consiste na violação de normas de protecção “...disposição legal destinada a proteger interesses alheios...”. A responsabilidade perante os credores só é possível nesta segunda vertente, só quando se verifique a “...inobservância culposa das disposições legais ou contratuais destinadas à protecção dos credores...” 62. Mas tal não é ainda bastante. É necessário que da violação das normas de protecção resulte uma insuficiência patrimonial que não permita à sociedade cumprir as suas obrigações. Com esta exigência suplementar, o legislador mostra bem qual a tónica do instituto: unicamente se tem em vista a salvaguarda dos concretos direitos de crédito em causa. Se o administrador viola normas destinadas a proteger os interesses dos credores, mas, ainda assim, a sociedade for capaz de prestar aquilo a que está vinculada, a acção não poderá nunca proceder. Para a concretização dessas normas de protecção, teremos de recorrer aos ensinamentos do direito civil: os interesses dos credores têm de ser directamente tutelados pela norma em causa, isto é, têm de estar abrangidos pelo círculo de protecção da norma em causa.

61 Veja-se Menezes Cordeiro, Da responsabilidade..., cit., p. 495. 62 Exemplo de normas de protecção dos credores são as relativas à conservação do capital social (designadamente arts. 31 ss.).

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Como se vê do que vimos de dizer, estamos aqui perante uma acção própria dos

credores, em relação a um direito pessoal. Daí que faça agora todo o sentido o art. 78/3. Em relação à renúncia e à transacção pela sociedade a solução legal é óbvia e redundante. Claro que só o titular do direito pode renunciar a ele ou transigir sobre o mesmo. Não se vê como é que a sociedade, através de uma deliberação social nesse sentido, poderia renunciar a um direito que é dos credores, que existe em função dos danos que eles próprios sofreram. Também em relação às deliberações sociais, quando funcionam como causa de justificação, valem idênticas considerações. De facto, as razões que acima indicámos como fundamentadoras desta causa de exclusão da ilicitude não procedem aqui. Os credores são pessoas exteriores à vida societária e nunca poderiam ser prejudicados por deliberações dos sócios, estas valem apenas nas relações internas dentro da própria sociedade. De contrário, levando ao limite, os administradores que quisessem escapar-se à responsabilidade perante os credores limitavam-se a ter de conseguir fazer aprovar uma deliberação social no mesmo sentido. É para evitar estas situações que o art. 78/3 esclarece que as deliberações sociais são inoponíveis aos credores.

Resta apenas referir o n.º 5 deste artigo. Naturalmente, como resulta de tudo

quanto se disse, repete-se que não se atende à remissão para o art. 72/4. As restantes referem-se a pontos do regime da responsabilidade perante a sociedade que são aqui aplicáveis. Remetemos nós também para os momentos em que a eles nos referimos.

4- Responsabilidade perante sócios e terceiros

Estipula o art. 79 que os administradores são responsáveis para com os sócios e para com terceiros (independentemente de serem ou não também credores) pelos danos que directamente lhes causem no exercício das suas funções. Este artigo levanta, no essencial, duas questões. A primeira consiste em saber o que deve entender-se por danos “directamente” causados. A segunda passa por determinar se o art. 79 acrescenta algo de novo ao regime da responsabilidade delitual contido no CC, ou se, pelo contrário, se limita a reafirmar este último. Para responder a esta questão, importa esclarecer qual o objectivo da lei, ao estabelecer que a responsabilidade se apura “nos termos gerais”.

Quanto ao primeiro problema, à partida, o advérbio “directamente” pode significar uma de duas coisas. Ou a perspectiva é a dos efeitos do facto danoso, e, então, quer-se afastar do âmbito de previsão da norma os danos sofridos liminarmente pela sociedade e só reflexamente pelos sócios e terceiros; ou a óptica é a da causa dos danos, e, nesse caso, afirma-se estarem em causa danos causados pelos administradores sem a interferência da pessoa colectiva63. Nogueira Serens64 atribui ao termo “directamente” aquele primeiro significado, dizendo que, no caso de danos reflexos, haverá antes lugar à acção social. Contudo, parece-nos que esta interpretação não é isenta de problemas. É que o art. 79 não se refere apenas aos sócios. Pelo contrário, o artigo trata, aliás indistintamente, dos danos sofridos por sócios e terceiros, pelo que teria de ser concebível que os terceiros pudessem também ser lesados reflexamente por um dano causado directamente à sociedade, para ser possível compreender a necessidade sentida pelo legislador de distinguir este tipo de lesões daquelas sofridas directamente pelos 63 Neste sentido, Menezes Cordeiro, Da responsabilidade..., cit., p. 496. 64 Ob. cit., p. 100.

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terceiros em consequência de um acto praticado pelos administradores. Isto, claro, se nos quisermos ater ao princípio geral segundo o qual o intérprete deve presumir que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (art. 9/3 CC). Ora, uma vez que não conseguimos imaginar um caso em que alguém que não é sócio nem credor (para estes casos já existe o artigo 78/1) de certa sociedade possa sofrer um dano (que ainda seja de alguma forma susceptível de ser abarcado pelo nexo de causalidade; obviamente que, se se adoptasse sem mais – e mal – a teoria da conditio sine qua non, a situação referida já seria imaginável) como consequência de um outro sofrido primariamente por essa sociedade, temos alguma dificuldade em aderir à opinião defendida por Nogueira Serens. Aliás, este Autor, ao expor o seu entendimento acerca da palavra “directamente”, apenas se refere à situação dos sócios e não à dos terceiros, o que, de algum modo, deixa transparecer que o argumento só procede quanto àqueles. Ainda assim, talvez seja possível fazer uma interpretação restritiva da letra do preceito, o que dependerá da plausibilidade do segundo termo da alternativa de interpretação apresentada. Verifiquemos, pois, se deve ou não prevalecer.

Ora, à primeira vista, não parece que assim seja. De facto, para efeitos de

determinação do alcance do artigo em causa, é difícil vislumbrar o sentido útil da distinção entre danos causados pelos administradores com e sem a interferência da sociedade. Na verdade, se o danos foram causados por uma pessoa titular do órgão de administração numa situação em que agiu despida da qualidade de administrador, não se pode dizer que essa pessoa tenha agido “no exercício das suas funções” e, por conseguinte, não se aplica o art. 79. Se, pelo contrário, os danos foram causados por um acto praticado pelo administrador “no exercício das suas funções”, então há sempre alguma interposição da personalidade jurídica da sociedade, na medida em que, actuando no âmbito da sua esfera de competência, o administrador actua formalmente em nome da sociedade, enquanto seu representante, ainda que, eventualmente, tenha abusado dos poderes que lhe foram conferidos (cfr. art. 269 CC). Em apoio desta tese joga a remissão operada no n.º 2 do art. 79, nomeadamente a remissão para o art. 72/2, cuja aplicação tem como pressuposto uma deliberação colegial do órgão de administração da sociedade, situação que só é concebível no quadro da personalidade colectiva da sociedade. Em conclusão, não se nos afigura possível que um administrador possa actuar no exercício das suas funções e, simultaneamente, causar danos “directamente”, isto é (nesta perspectiva), sem a interferência da personalidade colectiva da sociedade. Daí também o facto de a sociedade responder sempre, enquanto comitente, pelos actos dos administradores que actuem como seus representantes (art. 6/5). Do exposto resulta que a interpretação mais plausível do advérbio “directamente” acaba por ser aquela que se situa na óptica dos efeitos do facto danoso, apesar de, assim, e como já foi dito, a referida palavra só ter utilidade quando o lesado seja um sócio, ao contrário do que dá a entender a letra da norma.

Resta-nos, agora, dizer algo acerca da utilidade ou inutilidade do preceito no seu

todo. Ora, julgamos que, à semelhança do que sucede com outros preceitos do mesmo capítulo, a única utilidade do art. 79 é a de não deixar qualquer dúvida acerca da possibilidade de responsabilidade aquiliana dos administradores, mesmo actuando estes no exercício das suas funções. No fundo, desfaz-se a ilusão de que o simples facto de se agir no exercício de funções de administração desresponsabiliza quem age nessa qualidade. Assim, a expressão “nos termos gerais” deve ser entendida no sentido de reafirmar a possibilidade de responsabilização dos administradores através das normas do CC sobre responsabilidade delitual. Desta forma, fica também claro que a

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responsabilidade visada pelo art. 79 é sempre individual, nunca imputável aos titulares do órgão de administração colectivamente considerados.

O art. 79/2, à semelhança do art. 78, manda aplicar às situações previstas no art.

79/1 o disposto nos n.ºs 2 a 5 do art. 72, no art. 73, e no art. 74/1. Merece especial atenção a remissão para o n.º 4 do art. 72. Na verdade, não faz muito sentido opor aos terceiros uma deliberação tomada pelo colégio dos sócios, porque, neste caso, não se aplica a ratio subjacente ao art. 72/4 – não favorecer um venire contra factum proprium dos sócios. Consequentemente, deve ter-se por inaplicável a remissão para o n.º 4 do art. 72, quando os lesados sejam terceiros.

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Índice A – Introdução 1. Situação jurídica dos administradores face à sociedade 2. Modelos históricos de responsabilidade dos administradores B - Regime actual no direito português 1. Quadro geral 2. Responsabilidade perante a sociedade

a) Aspectos substanciais b) Aspectos processuais

3. Responsabilidade perante os credores 4. Responsabilidade perante sócios e terceiros Trabalho realizado por Filipe Vaz Pinto e Marcos Keel Pereira no âmbito da disciplina de Direito das Sociedades.