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RDS VII (2015), 2, 471-497 A responsabilidade civil dos administradores para com as sociedades desportivas: o caso Marat Izmaylov * DR. TITO CRESPO Sumário: Introdução. 1. Síntese dos factos incontroversos. 2. Exposição dos dados que sustentam o litígio. 3. A legitimidade passiva e o administrador de facto. 4. A violação dos ‘deveres de cuidado e diligência’. 5. A exclusão de responsabilidade do artigo 72.º n.º 2 do CSC. 6. A ‘compensatio lucri cum damno. Introdução I. Numa área – o futebol profissional – em que os restantes agentes obtêm ganhos consideráveis, não pode deixar de ter-se como paradoxal que as socie- dades desportivas, elemento nuclear e dinamizador de toda a atividade, apresen- tem, invariável e transversalmente, resultados financeiros deficitários. Acresce que a frequência com que vão sendo noticiados negócios opacos, irracionais ou pródigos, envolvendo estas sociedades, se presta ao adensar das dúvidas relati- vamente à forma como as mesmas são administradas. Não obstante, a verdade é que, ao contrário do que seria expectável, os acionistas 1 – prejudicados diretos pelos prejuízos sucessivos, que redundam hoje em passivos impagáveis – nunca esboçaram qualquer reação judicial contra os «seus» administradores, convocando-os a justificar os indícios de mala gestio. Nunca esboçaram, corrija-se, até ao passado dia 01 de outubro de 2014, data em que a assembleia geral da Sporting Clube de Portugal – Futebol, SAD deli- * Atenta a natureza potencialmente dinâmica de alguns dos aspetos referidos no texto, é essencial, para a sua correta compreensão e avaliação, relevar que o mesmo foi concluído em fevereiro de 2015. 1 Por mera facilidade expositiva, independentemente do tipo societário concreto, designaremos, indiscriminadamente, os membros do órgão de administração sempre por «administradores» e os titulares do capital social por «acionistas». Book Revista de Direito das Sociedades 2.indb 471 Book Revista de Direito das Sociedades 2.indb 471 14/10/15 11:28 14/10/15 11:28

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RDS VII (2015), 2, 471-497

A responsabilidade civil dos administradores para com as sociedades desportivas: o caso Marat Izmaylov*

DR. TITO CRESPO

Sumário: Introdução. 1. Síntese dos factos incontroversos. 2. Exposição dos dados que sustentam o litígio. 3. A legitimidade passiva e o administrador de facto. 4. A violação dos ‘deveres de cuidado e diligência’. 5. A exclusão de responsabilidade do artigo 72.º n.º 2 do CSC. 6. A ‘compensatio lucri cum damno’.

Introdução

I. Numa área – o futebol profi ssional – em que os restantes agentes obtêm ganhos consideráveis, não pode deixar de ter-se como paradoxal que as socie-dades desportivas, elemento nuclear e dinamizador de toda a atividade, apresen-tem, invariável e transversalmente, resultados fi nanceiros defi citários. Acresce que a frequência com que vão sendo noticiados negócios opacos, irracionais ou pródigos, envolvendo estas sociedades, se presta ao adensar das dúvidas relati-vamente à forma como as mesmas são administradas.

Não obstante, a verdade é que, ao contrário do que seria expectável, os acionistas1 – prejudicados diretos pelos prejuízos sucessivos, que redundam hoje em passivos impagáveis – nunca esboçaram qualquer reação judicial contra os «seus» administradores, convocando-os a justifi car os indícios de mala gestio. Nunca esboçaram, corrija-se, até ao passado dia 01 de outubro de 2014, data em que a assembleia geral da Sporting Clube de Portugal – Futebol, SAD deli-

* Atenta a natureza potencialmente dinâmica de alguns dos aspetos referidos no texto, é essencial, para a sua correta compreensão e avaliação, relevar que o mesmo foi concluído em fevereiro de 2015.1 Por mera facilidade expositiva, independentemente do tipo societário concreto, designaremos, indiscriminadamente, os membros do órgão de administração sempre por «administradores» e os titulares do capital social por «acionistas».

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berou, ao abrigo do disposto no artigo 75.º n.º 1 do Código das Sociedades Comerciais (adiante CSC)2, a propositura de três ações sociais de responsabili-dade civil contra alguns ex-administradores da sociedade – concretamente, uma pela decisão de contratar o jogador Jéff ren Bermúdez, outra pela decisão de contratar o jogador Alberto Rodriguez3 e ainda uma terceira, pela renegocia-ção do contrato de trabalho desportivo do jogador Marat Izamylov – naquele que ameaça tratar-se de um momento de viragem, um dínamo para novas demandas.

II. Nesta contingência, mesmo cientes de que a discussão técnico-jurídica da matéria da responsabilidade civil dos administradores se encontra hoje pra-ticamente esgotada pela doutrina e jurisprudência – a atenção volta-se agora para a possibilidade de estender a responsabilização dos administradores aos acionistas, pela participação destes últimos em decisões prejudiciais à socie-dade, tendo o artigo 2476, comma 7.º, do Codice Civile italiano dado já o passo percursor nesse sentido4 – cremos que os três litígios referidos, não só pela novidade que representam, como também pela própria especifi cidade ine-

2 As sociedades desportivas (unipessoais ou anónimas) dispõem de um regime jurídico próprio – atualmente constante do Decreto-Lei n.º 10/2013, de 25 de janeiro –, o qual é omisso no que ao tratamento da dogmática da responsabilidade civil dos administradores diz respeito. Não obs-tante, atenta a remissão expressa constante no artigo 5.º n.º 1 do referido diploma [nos termos do qual às sociedades desportivas “(…) são aplicáveis, subsidiariamente, as normas que regulam as sociedades anónimas e por quotas.”] não sobejam dúvidas de que o quadro legal a que se subsume a matéria da responsabilidade civil dos administradores das sociedades desportivas é o constante do Código das Sociedades Comerciais. 3 Um e outro por, alegadamente, no momento da contratação não se encontrarem nas condições físicas adequadas à prática desportiva de alto rendimento.4 O preceito legal estatui que “Sono altresì solidalmente responsabili con gli amministratori, ai sensi dei precedenti commi, i soci che hanno intenzionalmente deciso o autorizzato il compimento di atti dannosi per la società, i soci o i terzi.”, isto é, estabelece-se uma responsabilidade solidária do acionista para com o administrador, caso fi que demonstrado que o primeiro intencionalmente decidiu ou autorizou a prática de atos que causaram prejuízo à sociedade, aos sócios ou a terceiros. Trata-se ainda, por-tanto, de uma responsabilidade muito mitigada, assente na demonstração da atuação com dolo e limitada à esfera das sociedades por quotas. Não se confunde, contudo, e vai bem além, das previsões contidas do Código das Sociedades Comerciais que permitem a responsabilização do sócio (cfr. artigos 83.º e 84.º). No caso italiano estamos face a uma responsabilização pela prática de atos próprios do sócio/acionista que se vieram a revelar errados e causadores de prejuízo, com impacto direto na gestão e no património da sociedade. Diferentemente, no caso dos preceitos nacionais tutela-se o acionista controlador, que abusando da sua posição, viola o dever de escolher criteriosamente os administradores (no caso do artigo 83.º), ou o dever de separar patrimónios, com prejuízo para a consistência patrimonial da sociedade (no caso do artigo 84.º).

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rente ao seu enquadramento no fenómeno desportivo, abrem espaço a uma análise renovada do tema.

III. Destarte, num exercício meramente académico, assente em exclusivo nas considerações que as partes envolvidas entenderam tecer publicamente até esta data – e, por isso, necessariamente imperfeito e incompleto – propomo--nos aqui levar a cabo a análise jurídica dos contornos de um desses litígios: o que envolve o jogador Marat Izmaylov.

1. Síntese dos factos incontroversos

I. Marat Izmaylov, jogador de futebol de nacionalidade russa, chegou a Portugal no «defeso» da época desportiva de 2007/2008, para representar o Sporting Clube de Portugal, cedido temporariamente pelo F.C. Lokomotiv Moscow, clube que era, então, o titular dos seus direitos desportivos.

Finda a época de estreia, o conselho de administração da Sporting Clube de Portugal – Futebol, SAD deliberou exercer a opção de compra que lhe era conferida pelo contrato de cedência temporária do jogador, tendo para o efeito pago ao F.C. Lokomotiv Moscow o montante de €4.500.000,00 (quatro milhões e quinhentos mil euros). Adquiriu, assim, os direitos desportivos do atleta e com ele celebrou um contrato de trabalho desportivo5 válido por 5 (cinco) épocas6.

Não obstante o contrato de trabalho celebrado ser válido até ao fi nal da época desportiva de 2012/2013, em 26 de abril de 2011 a Sporting Clube de Portugal – Futebol, SAD e o jogador levaram a cabo uma alteração contratual, nos termos da qual, entre outras (que se desconhecem, por não serem públi-cas), foi acordada a extensão da duração do vínculo – até ao fi nal da época desportiva 2014/2015 – e o aumento do valor da denominada «cláusula de

5 Atentas as especifi cidades da prestação e contraprestação em causa, o contrato de trabalho do praticante desportivo dispõe de um regime jurídico próprio, estatuído na Lei n.º 28/98, de 26 de junho (alterada pela Lei n.º 114/99, de 3 de agosto), a qual veio dar cumprimento à obrigação estabelecida no artigo 34.º n.º 1 da Lei n.º 05/2007, de 16 de janeiro (Lei de Bases da Atividade Física e do Desporto).6 Cfr. comunicado da Sporting Clube de Portugal – Futebol, SAD à CMVM, de 11 de junho de 2008, disponível em http://web3.cmvm.pt/sdi2004/emitentes/docs/FR19122.pdf – webpage consultada em 01.02.2015.

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rescisão»7, que passou de €25.000.000,00 (vinte e cinco milhões de euros) para €30.000.000,00 (trinta milhões de euros)8.

II. Cerca de dois anos volvidos, em março de 2013, foi levado a cabo um ato eleitoral no Sporting Clube de Portugal, do qual resultou a eleição de um novo Presidente para o Clube e, por inerência, a designação para o conselho de administração da Sporting Clube de Portugal – Futebol, SAD – por cooptação, ao abrigo do disposto no artigo 393.º n.º 3 alínea b) do CSC – dos elementos da lista vencedora das ditas eleições.

III. O novo conselho de administração, depois de analisar os contornos concretos da alteração contratual levada a cabo em abril de 2011, entendeu que a mesma foi uma decisão carecida de racionalidade empresarial, que causou prejuízo patrimonial à Sporting Clube de Portugal – Futebol, SAD e que, por isso, se justifi caria a propositura de uma ação de responsabilidade civil, pela sociedade, contra os ex-administradores responsáveis pelo ato. Submetida a proposta pelo conselho de administração à assembleia geral da Sporting Clube de Portugal – Futebol, SAD, reunida em 01 de outubro de 2014, foi a mesma aprovada, com 348.483 (trezentos e quarenta e oito mil quatrocentos e oitenta e três) votos a favor e apenas 1 (um) voto contra9.

2. Exposição dos dados que sustentam o litígio

I. A posição da Sporting Clube de Portugal – Futebol, SAD relativamente ao litígio encontra-se espelhada no conteúdo do ponto 10, proposta A, da ordem de trabalhos que remeteu aos acionistas, juntamente com a convocatória

7 A utilização do vocábulo «rescisão» não está isenta de reparo. De facto, pretendendo-se desig-nar uma forma de extinção do contrato por manifestação de vontade de uma das partes, válida porque prevista no próprio contrato, a denominação técnica correta seria resolução (cfr. artigo 432.º e ss. do Código Civil). Não obstante, a verdade é que nesta área o termo «rescisão» parece aceite e enraizado, como se pode comprovar pela sua reiterada utilização nos regulamentos da Federação Portuguesa de Futebol e, inclusive, na lei (cfr. artigo 28.º da já referida Lei n.º 28/98, de 26 de junho).8 Cfr. comunicado da Sporting Clube de Portugal – Futebol, SAD à CMVM, de 26 de abril de 2011, disponível em http://web3.cmvm.pt/sdi2004/emitentes/docs/FR33242.pdf – webpage con-sultada em 01.02.2015.9 Cfr. ponto 10 do comunicado da Sporting Clube de Portugal – Futebol, SAD à CMVM, de 01 de outubro de 2014, disponível em http://web3.cmvm.pt/sdi2004/emitentes/docs/FR52349.pdf – webpage consultada em 01.02.2015.

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para a assembleia geral de 01 de outubro de 2014, e que aqui reproduzimos na íntegra, em seguida:

“O Conselho de Administração da Sporting Clube de Portugal – Futebol, SAD pro-põe à Assembleia Geral da Sociedade, reunida a 1 de Outubro de 2014, que, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 75.º, 1, do Código das Sociedades Comerciais, aprovem a propositura de acção de responsabilidade civil pela Sporting SAD, contra os ex-administra-dores Luiz Filipe Godinho Lopes, Luis Duque, José Filipe Nobre Guedes, e ainda contra Carlos Manuel Rodrigues de Freitas, que à data também exercia funções de administração, pelos factos envolvendo a renovação do contrato com o jogador Marat Izmaylov, que resumi-damente se apresentam:

1. Entre Abril e Junho de 2011, os referidos administradores decidiram e executaram a renovação do contrato com o jogador Marat Izmaylov.

2. Com efeito, em Abril de 2011, encontrando-se ainda em vigor um vínculo labo-ral com a duração de mais duas épocas com o jogador Izmaylov, propuseram ao mesmo a celebração de um novo contrato válido por quatro épocas desportivas e cujas remunerações ilíquidas a pagar ao jogador ascendiam a €5.516.000,00, pelo período dos quatro anos, o que representava um aumento exponencial da remuneração do jogador com efeitos imediatos.

3. Além disso, no âmbito da referida renovação, celebraram, em Maio de 2011, com a sociedade Gondry Financial Services Limited um contrato de exploração dos direitos de imagem do jogador Izmaylov pelo valor global de € 853.360,00.

4. Finalmente, em Junho de 2011, celebram com a sociedade Sbass Limited um acordo pelo qual a Sporting SAD se obrigou a pagar uma comissão pela intermediação na renovação do contrato com o jogador, no montante de € 480.000,00.

5. O aumento exponencial dos custos da Sporting SAD que resultou da renovação do contrato de trabalho desportivo com o jogador Izmaylov foi um decisão carecida de raciona-lidade empresarial, porquanto: (i) a situação fi nanceira da Sporting SAD não comportava tal aumento de custos; (ii) o jogador ainda tinha mais dois anos de contrato em vigor; (iii) o jogador tinha sido objecto de diversos processos disciplinares; (iv) o atleta tinha problemas físicos recorrentes; e (v) o rendimento desportivo do jogador desaconselhava a renovação, já que na época em que a mesma foi feita (2011/2012), à data da renovação (Abril de 2011) o jogador apenas tinha realizado uma partida ofi cial e durante 26 minutos de jogo.

6. Ao terem promovido a renovação do contrato do jogador Marat Izmaylov, nos ter-mos em que o fi zeram, os administradores em questão violaram culposamente os deveres de diligência e cuidado a que estavam obrigados e, em consequência, causaram à Sporting SAD um prejuízo, cujo montante irá ser concretizado pelos serviços jurídicos competentes para o efeito.”10.

10 Cfr. ponto 10 da ordem de trabalhos, proposta A, que a Sporting Clube de Portugal – Fute-bol, SAD remeteu aos acionistas e comunicou à CMVM, disponível em http://web3.cmvm.pt/

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II. Do lado dos visados, na ausência de melhor amparo, socorremo-nos das declarações prestadas pelo ex-Presidente do conselho de administração da Spor-ting Clube de Portugal – Futebol, SAD, Luiz Godinho Lopes, à comunicação social, nas quais se defendeu das imputações com os seguintes argumentos:

“Como qualquer jogador, têm de ser analisadas as suas prestações e potencial. Sendo um ativo, devemos ver se vale a pena alterar a situação do jogador. Vimos que ele tinha potencial para estar no Campeonato da Europa, era um dos melhores do clube e podia ser valorizado e vendido se apostássemos numa renovação. Foi feita com base em critérios racionais. Se resul-taram, isso vem depois. A verdade é que esteve no Europeu pela Rússia.”11.

III. Expostas que estão, em traços gerais, as posições das partes, analisaremos em seguida, pormenorizadamente, os aspetos técnico-jurídicos mais interessan-tes do litígio.

3. A legitimidade passiva e o administrador de facto

I. A simples qualidade de membro do órgão de administração não é sufi -ciente para que o facto ilícito se possa dizer praticado (ou omitido) por cada um dos administradores. Na verdade, não é o órgão, enquanto tal, que pode ser responsabilizado, mas sim os seus titulares, individualmente considerados, pelos factos próprios praticados. O nexo de imputação a estabelecer entre o ato e o autor carece, portanto, de ser individualizado12. E, como tal, andou bem a Sporting Clube de Portugal – Futebol, SAD ao especifi car que a ação deverá ser proposta “(…) contra os ex-administradores Luiz Filipe Godinho Lopes, Luis

sdi2004/emitentes/docs/CONV52096.pdf – webpage consultada em 01.02.201511 Notícia retirada do sítio da internet do «Jornal Record», disponível em http://www.record.xl.pt/Futebol/Nacional/1a_liga/Sporting/interior.aspx?content_id=910013 – webpage consul-tada em 01.02.2015. 12 O artigo 72.º n.º1 do CSC, ao permitir que o administrador afaste a sua responsabilidade atra-vés da demonstração de que agiu sem culpa, aponta inequivocamente no sentido de que estamos aqui no âmbito da responsabilidade subjetiva, incompatível com a responsabilização por atos de outrem. Neste sentido, na doutrina, entre outros, v. Maria Elisabete Ramos, Aspectos Substan-tivos da Responsabilidade Civil dos Membros do Órgão de Administração Perante a Sociedade, in Boletim da Faculdade de Direito, vol. LXXIII (Separata), 1997, pp. 223-225. e, na jurisprudência, Ac. STJ, de 14.05.2009, onde se pode ler que “Daí que a solidariedade, estabelecida no art.º 73.º do Código das Sociedades Comerciais, haja de ser entendida por referência aos gerentes responsáveis, isto é, entre os gerentes a quem é imputável a prática do acto gerador de prejuízo para a sociedade e determinante da responsabilidade e consequente obrigação de indemnizar.” (disponível em www.dgsi.pt).

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Duque, José Filipe Nobre Guedes, e ainda contra Carlos Manuel Rodrigues de Freitas, que à data também exercia funções de administração (…)”.

II. Mas, da transcrição supra, ressalta ainda uma menção que merece ser detalhada: a circunstância de um dos visados não ter a qualidade formal de administrador mas, ainda assim, querer-se a sua demanda porque, alega-se, “(…) à data também exercia funções de administração.”.

Ocorre amiúde, na praxis, que sujeitos formalmente estranhos à adminis-tração da sociedade chamam a si (ou contribuem para) a direção dos desígnios da mesma, comportando-se substancialmente como se de legítimos adminis-tradores se tratassem. São estes os denominados administradores de facto (por oposição aos administradores que adquiriram essa qualidade por uma das formas previstas na lei e, por isso se dizem, para efeitos desta diferenciação, «de direito» ou de jure).

III. Que os administradores de facto estão sujeitos aos deveres jurídicos que impendem sobre os que legitimamente administram, é inequívoco13-14. Sucede porém que, contrariamente ao que ocorre no foro do direito criminal15, na

13 Não se concede que o incumprimento das formalidades exigidas por lei possa resultar num quadro legal mais favorável, conferindo ao agente incumpridor uma esfera de impunidade de que não poderia benefi ciar o cumpridor. Assim, v. Tânia Meireles da Cunha, Da Responsabilidade dos Gestores de Sociedades Perante os Credores Sociais – A Culpa nas Responsabilidades Civil e Tributária, Almedina, 2.ª ed., 2009, p.79. No mesmo sentido da incontestabilidade da aplicação do rol de deveres legais aos administradores de facto, v. Coutinho de Abreu/Maria Elisabete Ramos, Responsabilidade Civil de Administradores e de Sócios Controladores, in Miscelâneas, n.º 3, IDET, Alme-dina, 2004, p. 43, Ricardo Costa, Responsabilidade Civil Societária dos Administradores de Facto, in Temas Societários, Colóquios, n.º 2, IDET, Almedina, 2006, pp. 29 e ss., Adelaide Menezes Leitão, Responsabilidade dos Administradores para com a Sociedade e os Credores Sociais por Violação das Normas de Protecção, in Estudos Dedicados ao Professor Doutor Luís Alberto Carvalho Fernandes, vol. I, Universidade Católica Editora, 2011, p. 33 e Maria de Fátima Ribeiro, A Tutela dos Credores das Sociedades por Quotas e a Desconsideração da Personalidade Jurídica, Almedina, 2012, pp. 465 e ss..14 A doutrina tende a olvidar que a equiparação de estatuto entre administradores de facto e «de direito» é necessariamente tout court, isto é, comporta não só a sujeição aos deveres, mas também a assunção dos direitos inerentes ao exercício daquela função – uma equiparação meramente par-cial, em matéria obrigacional, seria uma solução que o Direito não permite defender. Do exposto resulta todo um novo feixe de interesse na matéria, sob a perspetiva positiva dos direitos dos admi-nistradores de facto, que podem ir desde a possibilidade destes exigirem a respetiva remuneração até à impossibilidade de serem destituídos sem justa causa (podendo aqui abrir-se uma janela de oportunidade importante, nomeadamente pela possibilidade de, caso se verifi que a destituição, virem reclamar as respetivas compensação e indemnização). 15 V. artigos 227.º, 227.º-A, 228.º e 229.º do Código Penal.

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jurisdição tributária16 e em matéria de insolvência17, inexiste no Direito civil--societário qualquer disposição que expressamente reconheça a extensão da responsabilidade própria dos membros da administração aos administradores de facto.

A doutrina tem aventado duas soluções alternativas para superar a omissão: i) entender que a sujeição dos administradores de facto ao regime da respon-sabilidade civil societária dos artigos 72.º a 79.º é legitimada, prima facie, pelo artigo 80.º do CSC, que será assim uma norma extensiva 18; ou, ii) considerar que o artigo 80.º, ao referir-se expressamente a pessoas a quem sejam ‘confi a-das’ funções de administração, apenas permite incluir um estrito lote de admi-nistradores de facto, sendo antes de entender que a formulação legal «gerentes e administradores» contida nos artigos 72.º a 79.º do CSC é apta a integrar também os administradores de facto, de acordo com um princípio de equipa-ração funcional destes com os administradores de direito, que prevalecerá sobre a qualifi cação formal19.

Reconheça-se que a letra da lei não tranquiliza o intérprete nem o aplica-dor e, por isso, a posição de Ricardo Costa20 afi gura-se-nos, a este respeito, a tecnicamente mais acertada.

Em todo o caso, o que aqui deve ser sublinhado é a esterilidade da discussão teorética. Isto porque, seja qual for a tese que se adote, o resultado prático será, reconheça-se, exatamente o mesmo, na medida em que a responsabilização sempre operará por via dos artigos 72.º e ss. do CSC, independentemente de qual seja o trilho escolhido para legitimar a tutela dos sujeitos como adminis-tradores de facto.

16 V. artigo 24.º n.º 1 da LGT e artigo 8.º do RGIT.17 V. artigo 82.º n.º 3 alínea a) e artigo 186.º, ambos do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.18 Neste sentido, entre outros, v. Tânia Meireles da Cunha, Da Responsabilidade dos Gestores… (2009), op. cit., pp.77 e ss., Maria de Fátima Ribeiro, A Tutela dos Credores… (2012), op. cit., pp. 465 e ss. e Pereira de Almeida, Sociedades Comerciais e Valores Mobiliários, Coimbra Editora, 5.ª ed., 2008, pp. 255 e ss..19 Neste sentido, v. Coutinho de Abreu, Responsabilidade Civil dos Administradores de Sociedades, Almedina, 2007, pp. 102 e ss. e Ricardo Costa, Anotação ao art. 80.º, Código das Sociedades Comerciais em Comentário, n.º 1, IDET, Almedina, 2013, p. 921. Note-se, apesar de tudo, uma pequena discrepância na posição dos Autores: enquanto para o primeiro os artigos 72.º e ss. são aplicáveis diretamente aos administradores de facto, para o segundo tal aplicação só é possível mediante o recurso à interpretação extensiva (ou, mais especifi camente, por redefi nição extensiva do conceito de administrador).20 V. nota de rodapé anterior.

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IV. O grande desafi o nesta matéria consiste, antes, em defi nir os pressupos-tos constitutivos desta fi gura do administrador de facto, dos quais dependerá a sua operacionalização.

A este respeito, ponto de partida sólido e seguro é a noção avançada por Coutinho de Abreu, segundo a qual “(…) é administrador de facto (em sentido amplo) quem, sem título bastante, exerce, directa ou indirectamente e de modo autónomo (não subordinadamente), funções próprias de administrador de direito da sociedade.”21.

Mas serão estes pressupostos sufi cientes para qualifi car um sujeito como administrador de facto? A resposta negativa impõe-se, sob pena de o conceito atingir uma incidência subjetiva bem para além daquela que é a sua ratio. Pen-semos apenas nas estruturas desportivas profi ssionais do futebol. Caberiam ali, como administradores de facto, por exemplo, os hoje imprescindíveis «direto-res desportivos», ou mesmo os treinadores, que inequivocamente exercem, por inerência das suas funções, uma infl uência grande (muitas vezes determinante) junto das administrações no que diz respeito às decisões de contratar, dispensar e renovar os contratos de trabalho dos jogadores (funções próprias dos admi-nistradores de jure).

Na verdade, as sociedades comerciais apresentam hodiernamente uma estrutura orgânica complexa, que coloca a gravitar em torno da administração um conjunto muito variado de agentes, que de uma forma mais ou menos marcada, acabam por tomar parte e infl uenciar as decisões do órgão. Mas, enquanto uns o fazem ainda em razão daquelas que são as suas competências funcionais próprias e se limitam a dar conselhos, opiniões ou fazer recomenda-ções, outros atuam fora das suas atribuições e com o fi to exclusivo de impor a sua vontade e, assim, determinar a atuação do órgão. Ora, reconhecendo esta contingência, há que refi nar o conceito, aditando-lhe uma precisão que exclua os primeiros e inclua os segundos na categoria aqui em análise. Assim, cremos, para além do que já supra se deixou expresso, o administrador de facto há de ter, ainda, a capacidade de impor a sua vontade aos demais (administradores de jure) nos precisos termos em que um administrador formalmente investido teria capacidade legal para o fazer22. E esta é, a nosso ver, a pedra de toque que circunscreve o conceito e permite destrinçar aqueles que, efetivamente, o

21 In Responsabilidade Civil dos Administradores… (2009), op. cit., p. 99.22 Assim, v. Ricardo Costa [Responsabilidade Civil Societária… (2006), op.cit., pp. 29 e 31], segundo o qual “Aparentemente pacífi co neste conceito é o exercício positivo de funções de gestão similares ou equipa-ráveis às dos administradores formalmente instituídos”, característica a que se deverá acrescentar a “(…) actuação com a autonomia decisória que é própria dos administradores de direito (…)” o que se manifestará na capacidade de “(…) impor as suas decisões (quando é directo) ou infl uenciar de forma determinante (mesmo vinculativa) a gestão (quando é indirecto).”.

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legislador pretendeu chamar à colação para efeitos de responsabilização como administradores de facto.

Uma nota ainda para assinalar que apesar de alguma doutrina entender que são também pressupostos desta fi gura a continuidade e a durabilidade do exercício das funções23, não cremos que assim seja. A má gestão, geradora de responsabilidade, que o Direito tutela, pode bem consumar-se num único ato isolado. E, como tal, se o administrador de facto teve intervenção decisiva nesse ato, inexistem razões para que deva benefi ciar do manto de imunidade que o pressuposto do exercício contínuo e duradouro das funções lhe conferiria.

V. O instituto da administração de facto apresenta-se-nos, portanto, como um pressuposto de efi cácia da disciplina da responsabilidade civil pela adminis-tração social. Do que resulta que a chamada à colação do visado Carlos Manuel Rodrigues de Freitas implicará, quanto a este, previamente, o cumprimento de todo um iter probatório, prévio e adicional, tendente a demonstrar a invocada qualidade de administrador de facto. E só posteriormente, se ultrapassada esta primeira etapa com sucesso, se poderá, então sim, questionar a sua eventual responsabilização civil por atos de administração.

VI. Aqui chegados, importa reconhecer que os dados de que dispomos são escassos e não permitem uma tomada de posição. Certo é que a afi rmação de que o visado à data também exercia funções de administração é conclusiva e carece de ser fundamentada e circunstanciada, nomeadamente pela demonstração de que este atuou no negócio como se de um administrador de jure se tratasse, com plena autonomia negocial e decisória, impondo-se junto do conselho de administração como se de um administrador se tratasse. Falhando esta demons-tração, claudicará, impreterivelmente, a hipótese de vir a obter-se, por esta via, a responsabilização civil deste visado24.

4. A violação dos ‘deveres de diligência e cuidado’

I. A responsabilidade civil dos administradores perante a sociedade encontra acolhimento legal no artigo 72.º n.º 1 do CSC, nos termos do qual “Os gerentes

23 Neste sentido, v. Tânia Meireles da Cunha, Da Responsabilidade dos Gestores… (2009), op. cit., p.79.24 Nada impede, todavia, que se tente a sua responsabilização recorrendo a outras fi guras do Direito, nomeadamente, a gestão de negócios, a representação, ou a mera responsabilidade civil (aquiliana ou obrigacional, consoante o sujeito tenha, ou não, relação contratual com a sociedade). Mas, ressalve-se, aqui já não estaremos a responsabilizar o sujeito como administrador. E este é o traço distintivo, a fronteira, que separa os regimes.

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ou administradores respondem para com a sociedade pelos danos a esta causados por actos ou omissões praticados com preterição dos deveres legais ou contratuais, salvo se provarem que procederam sem culpa.”.

II. Com o fi to de circunscrever a ilicitude e a culpa, a Sporting Clube de Portugal – Futebol, SAD, em jeito de conclusão, no último ponto do docu-mento, assinala que com as condutas descritas “(…) os administradores em questão violaram culposamente os deveres de diligência e cuidado a que estavam obrigados (…)” (realce nosso).

Ora, se é certo que as referências à culpa e à violação do dever de cuidado têm perfeito cabimento, a menção a um «dever de diligência» levanta-nos as mais sérias reservas. Isto porque o dever de diligência do administrador crite-rioso e ordenado, em torno do qual o artigo 64.º do CSC estava inicialmente construído, foi abandonado na reforma de 200625, dando lugar à atual distinção entre, no dizer da lei, deveres de cuidado e deveres de lealdade. Numa aborda-gem condizente com a perspetiva tradicional, a diligência é hoje, aqui, um cri-tério da culpa (cfr. artigo 487.º n.º 2 do Código Civil) e, não mais, de ilicitude. Pelo que, parece claro ter existido um equívoco conceptual na formulação, patente na redundância da dupla referência ao requisito da culpa.

III. Feito o reparo, cabe reconhecer que a solução substantiva contida no citado artigo 72.º n.º 1 implica necessariamente a sua articulação com o qua-dro normativo dos deveres que impendem sobre os administradores, do qual se retirará, por antítese, o preenchimento do pressuposto da ilicitude (ainda que, em alguns casos, apenas à condição26). Pelo que, antes de mais profícuos avanços, metodologicamente impõe-se que comecemos por esboçar, em traços gerais, o «estatuto obrigacional dos administradores das sociedades desportivas».

IV. Existem duas categorias de deveres que se impõem aos administradores: os deveres contratuais27 e os deveres legais. Os primeiros são aqueles que resul-tam da autonomia privada, das obrigações decorrentes do contrato de socie-

25 Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de março.26 Como melhor veremos infra, no ponto 5., da conjugação dos n.os 1 e 2 do artigo 72.º do CSC podemos identifi car um conteúdo mínimo do dever geral de cuidado, que afasta a ilicitude pre-viamente indiciada e garante a irresponsabilidade do administrador.27 A opção do legislador pela designação «deveres contratuais» é criticável, porquanto nela se incluem fi guras que não revestem a natureza jurídica de contratos. As deliberações dos sócios, por exemplo, não são contratos. Do mesmo modo, a relação de administração nem sempre é contratual. Veja-se o caso dos administradores de insolvência, que são nomeados pelo tribunal. Teria sido, portanto, preferível manter a terminologia anterior à revisão do Código de 1969, que se referia a

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dade, das deliberações sociais ou dos contratos de administração. Já os deveres legais são, evidentemente, os que decorrem da lei e subdividem-se em dois grupos: i) os deveres legais específi cos ou vinculados (que resultam imediata e especifi camente de alguma norma legal e, por isso, delimitam e vinculam os moldes da atuação do administrador sem lhe conferir margem de discriciona-riedade28); e, ii) os deveres legais gerais, deveres fi duciários básicos, que concre-tizam o dever típico e principal de administrar e representar a sociedade29 e que se encontram agrupados no artigo 64.º do CSC em duas categorias: os deveres de cuidado e os deveres de lealdade.

Na letra da lei os deveres de cuidado impõem ao administrador que, no cumprimento das suas funções, revele a “(…) a disponibilidade, a competência téc-nica e o conhecimento da actividade da sociedade adequados às suas funções (…)”. Tra-ta-se, pois, de um dever fi duciário, que é depois conformado por um padrão de diligência, que corresponde ao do “(…) gestor criterioso e ordenado.”. O primeiro releva enquanto fator determinante da ilicitude da atuação do administrador. O segundo importa em sede de culpa.

Por seu turno os deveres de lealdade têm um alcance ambivalente: tradu-zem-se, numa perspetiva positiva, no dever de os administradores, no exercício das suas funções, atenderem exclusivamente ao interesse da sociedade e, numa vertente negativa, no dever de se absterem de comportamentos que promo-vam, direta ou indiretamente, os seus próprios interesses ou interesses alheios30.

Acresce ainda que, não obstante a letra da lei não ter sido feliz nesta con-cretização, é manifesto que os deveres de cuidado e os deveres de lealdade, na medida em que resultam ambos do dever típico e principal de administrar, têm referenciais comuns, aplicáveis a ambos. Referimo-nos ao critério do gestor criterioso e ordenado (a que apenas se refere expressamente a alínea a) do n.º 1

«deveres estatutários». Nesse sentido, v. Coutinho de Abreu, Responsabilidade Civil dos… (2007), pp. 10 e ss. e Tânia Meireles da Cunha, Da Responsabilidade dos Gestores … (2009), pp. 55-56.28 A título exemplifi cativo: a obrigação de não atuar para além das limitações impostas pelo objeto social (cfr. artigo 6.º n.º 4 do CSC), a incumbência de, perdido que esteja metade do capital social, imediatamente convocar (no caso de gerente) ou requerer (tratando-se de administrador) a con-vocação de assembleia geral, a fi m de os sócios tomarem as medidas julgadas convenientes (cfr. artigo 35.º n.º 1 do CSC), ou o dever de requerer a declaração de insolvência da sociedade nos 30 (trinta) dias seguintes à data do conhecimento da situação de insolvência (cfr. artigos 17.º e ss. do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas). 29 Previstos, inter alia, nos artigos 192.º n.º 1, 252.º n.º 1, 405.º e 431.º n.os 1 e 2, todos do CSC.30 Neste sentido, entre outros, v. Coutinho de Abreu, Responsabilidade Civil dos… (2007), op. cit., p. 25 e Ricardo Costa/Gabriela Figueiredo Dias, Anotação ao art. 64.º, Código das Sociedades Comerciais em Comentário, n.º 1, IDET, Almedina, 2013, p. 742.

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do artigo 64.º do CSC) e à obrigatoriedade de prossecução do interesse social [constante, tão só, da alínea b) do n.º 1 do artigo 64.º do CSC]31.

E é neste último ponto, na defi nição do que se entende ser o interesse social de uma sociedade desportiva, que o regime dos deveres destes administradores, até aqui decalcado do aplicável às sociedades comerciais comuns, ganha contor-nos próprios. Vejamos, então, as suas especifi cidades.

V. As sociedades comerciais têm como fi m necessário e caracterizador o lucro (cfr. artigo 980.º do Código Civil), sendo a atividade económica por elas desenvolvida instrumental em relação à obtenção, precisamente, desse lucro.

Ora, nas sociedades desportivas este fi m lucrativo é, ao menos, muito miti-gado. Observação que fi ca evidente, desde logo, pela análise das razões históri-cas que levaram à criação deste tipo societário. De facto, mais do que prover à criação de um motor de desenvolvimento económico, as sociedades desportivas foram erigidas com o fi to de sanear os clubes – associações de direito privado, sem fi ns lucrativos32 – dos graves problemas fi nanceiros que ameaçavam a sua subsistência (nomeadamente, por via do forte endividamento perante o Estado) e, por inerência, a estabilidade das competições profi ssionais. Por outro lado, o afastamento do fi m lucrativo fi ca igualmente espelhado nos diversos cons-trangimentos que o regime jurídico das sociedades desportivas (atualmente, no Decreto-Lei n.º 10/2013, de 25 de janeiro) apresenta a este respeito – v.g., a impossibilidade de participação no capital social de sociedade com idêntica natureza, a transferência de direitos e obrigações do clube fundador, ou a partici-pação necessariamente privilegiada do clube fundador no seu capital social33-34.

Pelo que, face a este cenário, não é de estranhar que Maria Raquel Rei tenha concluído que “(…) o bom ou mau desempenho dos administradores da SAD é

31 Neste sentido, v. Adelaide Menezes Leitão, Responsabilidade dos Administradores… (2011), op. cit., p.38, Carneiro da Frada, A Business Judgment Rule no Quadro dos Deveres Gerais dos Adminis-tradores, in Separata da Revista da Ordem dos Advogados, Ano 67, I, Lisboa, 2007, pp. 175 e ss. e Ana Perestrelo de Oliveira, A Responsabilidade Civil dos Administradores nas Sociedades em Relação de Grupo, Almedina, 2007, pp. 92 e ss..32 Cfr. defi nição legal de clube desportivo, constante do artigo 26.º da Lei de Bases da Atividade Física e do Desporto.33 Cfr., respetivamente, artigos 12.º, 22.º e 23.º do Decreto-Lei n.º 10/2013, de 25 de janeiro.34 Sobre o fi m lucrativo das sociedades desportivas v., entre outros, Maria Raquel Rei, Sociedades Anónimas Desportivas – O Fim Lucrativo, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Carlos Ferreira de Almeida, Almedina, 2011 e Luís Serras Sousa, Direito aos Lucros nas Sociedades Anónimas Desportivas – Um Verdadeiro Lucro?, in Revista de Direito das Sociedades, números 1/2, Ano V, Almedina, 2013.

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apreciado, à face da lei, não em razão dos lucros que a SAD arrecadar, mas, sim, das vitó-rias desportivas que a equipa em causa obtiver nas competições em que se apresentar.”35.

Não acompanhamos, contudo, a posição da Autora. Por um lado, não existe nenhum dever legal de obter bons resultados desportivos (tampouco os resultados desportivos são, sequer, mencionados no diploma) e, por outro por-que, apesar das contingências, a verdade é que a dita lei em momento algum afasta perentoriamente o escopo lucrativo destas sociedades. Mas, é mister reco-nhecer que, de facto, o enquadramento legal deste tipo societário lhe confere uma natureza mista, híbrida, que resulta de se lhe exigir a prossecução do lucro – como é inerente às sociedades comerciais e, ademais, circunscreve o interesse exclusivo dos acionistas investidores – e, concomitantemente, a obtenção de resultados desportivos – interesse preponderante do acionista de referência, o clube.

Esta divergência entre o interesse do acionista investidor e o do acionista clube, díspares que são (e, por vezes, até inconciliáveis), afasta a hipótese de encontrar um interesse comum dos sócios, elemento nuclear da teoria contra-tualista36. Mas, se pelo contrário alargarmos o âmbito e procurarmos o interesse comum não apenas aos sócios, mas também a todos aqueles que gravitam em torno das sociedades desportivas (inter alia, desportistas e demais funcionários, credores, parceiros institucionais, etc.) teremos encontrado, na teoria institu-cionalista37, o suporte que buscávamos para podermos asseverar que o interesse social das sociedades desportivas se situa no ponto de equilíbrio entre a vertente desportiva e a gestão fi nanceira tendente ao lucro. Um não deverá prevalecer sobre o outro, de forma que o abale defi nitivamente. E é precisamente aqui, neste equilíbrio, que os administradores das sociedades desportivas deverão ser capazes de inserir a sua atuação.

VI. Explicitados que estão, julgamos, os contornos fundamentais do dever típico de administrar nas sociedades desportivas, cabe agora avançar para verifi -car se, face aos dados disponíveis, os mesmos foram, ou não, observados pelos ex-administradores visados. A sua inobservância, vimos, consubstancia a prática

35 In Sociedades Anónimas Desportivas… (2011), op. cit., p. 286. 36 A teoria contratualista é defendida, entre outros, por Menezes Leitão, Pressupostos da Exclusão de Sócio nas Sociedades Comerciais, AAFDL, Lisboa, 1989, pp.38 e ss. e Brito Correia, Os Admi-nistradores das Sociedades Anónimas, Almedina, Coimbra, 1993, p. 602.37 A teoria institucionalista identifi ca como titulares do interesse social não só os sócios, como também os trabalhadores, os credores e a própria sociedade e é apoiada, entre outros, por Cou-tinho de Abreu, Deveres de Cuidado e de Lealdade dos Administradores e Interesse Social, in Reformas do Código das Sociedades, Colóquios, n.º 3, IDET, Almedina, 2007, p. 43 e Tânia Meireles da Cunha, Da Responsabilidade dos Gestores… (2009), op. cit., p. 48.

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de um ato ilícito que, em sede cível, legitima a destituição com justa causa38 e a responsabilidade civil (demonstrada que esteja a verifi cação dos restantes pressupostos constantes do artigo 72.º n.º 1 do CSC, naturalmente). Até por impossibilidade de operar a primeira, é nesta última que a Sporting Clube de Portugal – Futebol, SAD acantona a sua pretensão.

Vejamos, então.

VII. Grosso modo, a Sporting Clube de Portugal – Futebol, SAD alega que a alteração contratual levada a cabo importou um “(…) aumento exponencial da remuneração do jogador com efeitos imediatos”, o qual não ocorreria se se manti-vessem as condições contratuais em vigor, à data. Acrescenta que, ainda “(…) no âmbito da referida renovação (…)” foram celebrados outros dois contratos: um relativo à exploração dos direitos de imagem do jogador, com a «Gondry Finan-cial Services Limited», e outro pelo qual a Sporting Clube de Portugal – Futebol, SAD se “(…) obrigou a pagar uma comissão pela intermediação na renovação do con-trato (…)” à «Sbass Limited». E fi naliza, neste campo, com a afi rmação de que “(…) a situação fi nanceira da Sporting SAD não comportava tal aumento de custos;”. Por outro lado, no plano desportivo, afi rma-se que o jogador tinha problemas disciplinares e físicos recorrentes e, ademais, que era pouco utilizado na equipa. Conjugando todas estas circunstâncias, entende a Sporting Clube de Portu-gal – Futebol, SAD que a alteração contratual foi uma “(…) decisão carecida de racionalidade empresarial (…)” e que, ao executá-la, “(…) os administradores em questão violaram culposamente os deveres de diligência e cuidado a que estavam obrigados (…)”39.

VIII. Atento o supra exposto fi ca agora claro, à míngua de melhor prova, que as imputações da Sporting Clube de Portugal – Futebol, SAD se destinam apenas a circunstanciar a violação do dever de cuidado pelos ex-administrado-res. É, portanto, sobre a sufi ciência, ou não, dos factos alegados que em seguida nos debruçaremos.

IX. Tivemos já oportunidade de referir supra que a letra da lei, no artigo 64.º n.º 1 alínea a) do CSC, estabelece três pressupostos exigíveis para que se considere cumprido o dever de cuidado (reafi rmem-se: a «disponibilidade», a «competência técnica» e o «conhecimento da atividade da sociedade ade-

38 Cfr. artigo 257.º n.º 6 e artigo 403.º n.º 4, ambos do CSC. 39 Cfr. n.os 2, 3, 4, 5 e 6 do ponto 10 da ordem de trabalhos, proposta A, que a Sporting Clube de Portugal – Futebol, SAD remeteu aos acionistas e comunicou à CMVM, disponível em http://web3.cmvm.pt/sdi2004/emitentes/docs/CONV52096.pdf – webpage consultada em 01.02.2015.

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quados às suas funções»). Contudo, é consensualmente reconhecido que estes requisitos não consubstanciam um elenco taxativo e que na análise concreta da conduta dos administradores há que atender a outras circunstâncias, não expres-samente enunciadas na norma.

Não seria possível, nem tampouco profícuo, chamar aqui à colação todos os critérios que a doutrina vai avançando, na tentativa de operacionalizar o con-ceito40. Mas há um que, por ser comum e nuclear, cabe mencionar: o dever de tomar decisões substancialmente razoáveis, que, grosso modo, impõe ao admi-nistrador que avalie prévia e corretamente as situações (cuidado informativo) e decida tendo em conta os recursos de que dispõe e o interesse da sociedade que administra, de uma forma equilibrada, prudente e razoável (cuidado decisório).

X. Olhando então aos factos alegados, como ponto de partida devemos sublinhar que a renovação do contrato de trabalho desportivo de um jogador quando ainda existe um vínculo válido, mesmo que por mais 2 (dois) anos, confi gura, no nosso entender, ao menos em abstrato, uma atuação prudente. Isto porque, nos termos do disposto no artigo 18.º n.º 3 do Regulations on the Status and Transfer of Players da FIFA – aplicável à Federação Portuguesa de Futebol e seus associados por inerência da relação de associação/fi liação necessária existente entre eles – nos 6 (seis) meses que antecedem a caducidade do contrato de trabalho desportivo, os jogadores são livres para negociarem e celebrarem contrato com outro clube. Transitarão, assim, de um clube para o outro sem que entre estes haja lugar ao pagamento de qualquer compensação.

Ora, em concreto, vemos então que, à data dos factos, a Sporting Clube de Portugal – Futebol, SAD estava a apenas um ano e meio de permitir que um jogador pelo qual pagou €4.500.000,00 (quatro milhões e quinhentos mil euros) ao F.C. Lokomotiv Moscow, pudesse sair sem qualquer retorno fi nanceiro do investimento feito pela sociedade. Acresce ainda, como notou o ex-adminis-trador Godinho Lopes, que no entretanto o jogador estaria (e esteve) presente no Campeonato Europeu de Futebol de 2012, ao serviço da seleção nacional da Rússia, o que certamente seria um fator de valorização. Destarte, tendo presente que os grandes fl uxos fi nanceiros no futebol ocorrem, precisamente,

40 Que, não obstante, apresentam todos uma proximidade grande com os critérios avançados por Coutinho de Abreu, Responsabilidade civil dos… (2007), op. cit., pp. 19-24, o qual aponta como principais sub-deveres do dever geral de cuidado o dever de controlar a organização e o funciona-mento da atividade societária, o dever de atuar corretamente na preparação do processo decisório e o dever de tomar decisões (substancialmente) razoáveis. Para propostas diferentes de organiza-ção destes sub-deveres, v. Ricardo Costa/Gabriela Figueiredo Dias, Anotação ao art. 64.º, Código das Sociedades… (2013), op. cit., pp. 732-733 e Nuno Calaim Lourenço, Os Deveres de Administração e a Business Judgment Rule, Almedina, 2011, pp. 17 e ss..

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com a transação dos direitos desportivos dos jogadores, difi cilmente se podem conceber hipóteses de ser vantajoso para um clube, ou sociedade desportiva, permitir que o contrato de trabalho desportivo de um qualquer jogador se extinga por caducidade. Em face disto, julgamos que imprudente teria sido deixar o tempo passar sem avançar com esta revisão contratual.

Pelo que, quanto ao timing da renovação nada há, a nosso ver, que questionar.

XI. Já se olharmos à conjugação das condições negociais concretas em que essa alteração contratual foi levada a cabo e ao resultado da mesma (nos termos alegados pela Sporting Clube de Portugal – Futebol, SAD) há, efetivamente, dúvidas que podem legitimamente ser levantadas e que são suscetíveis de pôr em causa a bondade da administração levada a cabo.

Em primeiro lugar, é difícil de conceber como é que um jogador que não estava a ser utilizado regularmente na equipa e tinha problemas físicos e dis-ciplinares recorrentes conseguiu, ao invés do que seria expectável segundo as regras da «normalidade», no jogo de forças que envolve qualquer negociação, levar a melhor em toda a linha e impor não só melhorias salariais, como tam-bém o pagamento de «comissões de intermediação». Pode dizer-se, conceda-se, que as negociações nem sempre decorrem de acordo com essas ditas regras da «normalidade». Mas então, perante um cenário negocial adverso aos interesses da sociedade que representavam e com o conforto de o vínculo contratual em vigor ser ainda válido por mais 2 (dois) anos, caberia à administração da Spor-ting Clube de Portugal – Futebol, SAD abortar a operação, sem comprometer a possibilidade de retomar as negociações noutra ocasião futura.

Complementarmente, cabe igualmente questionar como é que se explica que a administração da Sporting Clube de Portugal – Futebol, SAD tenha tido interesse na exploração dos direitos de imagem de um jogador que não atuava regularmente? E mais, que os tenha adquirido por uma quantia avultadíssima, da qual, mantendo-se o status quo, certamente não obteria retorno41. Pode sem-pre dizer-se que se acreditava na recuperação do jogador. Mas esta projeção,

41 A exploração do direito à imagem dos desportistas está tutelada por lei (cfr. artigo 10.º da Lei n.° 28/98, de 26 de junho). Aceita-se, assim, que a imagem dos desportistas tem um valor comer-cial apreciável, fruto da sua notoriedade, e legitima-se que estes retirem rendimento da mesma, cedendo os direitos de exploração a terceiros. Por sua vez, os terceiros adquirentes dos direitos tentarão retirar benefícios económicos, mediante a associação da imagem do desportista ao fi m ou produto que pretendem publicitar. O retorno do investimento do adquirente implica, por isso, que a imagem do desportista mantenha a notoriedade e a boa reputação junto do público. Trata--se, portanto, de um contrato que tem associado um elevado grau de risco.

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amplamente subjetiva e impossível de controlar, não retira a imprudência e irrazoabilidade ao ato42.

XII. Posto isto, é de concluir que a renegociação contratual não apresenta, em abstrato, nenhuma limitação. Tivesse a mesma sido levada a cabo em con-dições iguais às então vigentes, ou até conseguindo condições mais favoráveis para a Sporting Clube de Portugal – Futebol, SAD (como, parece, seria viável, atenta a situação do jogador) e nada haveria a questionar. Ao levar avante uma negociação e materializar um contrato que colocou a Sporting Clube de Por-tugal – Futebol, SAD numa situação pior do que aquela em que se encontrava ab initio (para além dos custos da renovação suportou, a partir daquela data, um salário mais elevado do que aquele que o jogador benefi ciava até ao momento), num cenário em que a alteração contratual não representava uma premência inadiável, a decisão do conselho de administração indicia, de facto, a nosso ver, não ter sido substancialmente razoável e, por isso, contrária ao dever de cui-dado que impendia sobre os membros deste órgão.

XIII. Aqui chegados, considerando que da leitura sequencial do n.º 1 com o n.º 2 do artigo 72.º do CSC – de que falaremos no ponto seguinte – resulta que ao lesado cabe unicamente fazer prova prima facie, indiciária, da verifi cação do requisito da ilicitude43, é mister concluir que os elementos aventados pela

42 Note-se, ainda, que caso os contratos em crise não tenham sido uma decorrência necessária do contrato principal – isto é, se a obrigação de os celebrar não tiver sido assumida concomitan-temente com a alteração celebrada ao contrato de trabalho desportivo (note-se, a este respeito, que os contratos foram celebrados em datas diferentes, distando praticamente um mês entre eles), então tanto o contrato de exploração dos direitos de imagem do jogador, como o acordo para pagamento de comissão de intermediação, consubstanciam, cada um deles, um ato próprio de administração. E, nestes termos, de cada um deles, individualmente, resultará um foco autónomo de imputação de responsabilidade civil aos administradores. Outrossim, em vez de serem utili-zados para sustentar a ilicitude da atuação dos administradores no contrato principal, cada um deles pode ser utilizado para, de per si, obter a responsabilização, o que sob o ponto de vista da estratégia processual pode ser importante, na medida em que mitiga o risco de a Sporting Clube de Portugal – Futebol, SAD não vir a obter o ressarcimento de qualquer dos danos sofridos, em resultado da improcedência da ação. 43 Esta facilitação judicial da prova impõe-se, desde logo, para tutela do interesse do lesado, que não está, na maioria das vezes, em condições de fazer prova plena do requisito da ilicitude, na medida em que não tem, ou não consegue aceder, à informação relevante para a sua demonstração. E, ademais, porque caso se exigisse do lesado a demonstração da concreta ilicitude da conduta do administrador, então “(…) a cláusula de exclusão da responsabilidade do art. 72.º, n.º 2, não teria espaço para operar, porque o administrador estaria sempre protegido pela distribuição do ónus da prova da ilicitude.” – Carneiro da Frada, A Business Judgment Rule… (2007), op. cit., p. 189.

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Sporting Clube de Portugal – Futebol, SAD, se demonstrados em juízo, são, no nosso entender, sufi cientes para aceitar essa indiciação.

5. A exclusão de responsabilidade do artigo 72.º n.º 2 do CSC44

I. Expresso que deixámos que o requisito da ilicitude está indiciado, dada a presunção legal de culpa de que benefi cia o lesado e considerando que os restantes pressupostos da responsabilidade civil não são de probatio diabolica, é de crer que o foco de interesse do litígio se recentre rapidamente no artigo 72.º n.º 2 do CSC.

O alcance desta norma é o seguinte: se o administrador atuou “(…) em termos informados, livre de qualquer interesse pessoal e segundo critérios de racionalidade empresarial.”, o mesmo não será responsabilizado pela violação dos deveres de cuidado45 – a que está adstrito por via do estatuído no artigo 64.º n.º 1 alínea a) do CSC, como vimos –, independentemente do mérito e do resultado da sua atuação. Recorta-se, «por dentro», o espaço da ilicitude prévia e provisoria-mente estabelecido pelo referido dever de cuidado – que analisámos no ponto

44 Este normativo foi decisivamente infl uenciado pela business judgment rule, regra da jurisprudência americana que, reconhecendo que a atividade de administração é, por natureza, arriscada – por-quanto praticada em cenários de incerteza – entende que esta não pode, como regra, implicar a responsabilidade pelo resultado, devendo antes avaliar-se o comportamento tido pelo adminis-trador no processo de tomada de decisão. Não obstante a inegável infl uência, cabe contudo frisar que as fórmulas utilizadas não são exatamente equivalentes. Enquanto a business judgment rule do Direito norte-americano consubstancia uma presunção de licitude da conduta dos administra-dores, o preceito do CSC consagra-a como causa de exclusão da responsabilidade, do que resulta que é o administrador que fi ca, aqui, onerado com o onus probandi. Nesse sentido, v. Carneiro da Frada, A Business Judgment Rule… (2007), op. cit., pp. 180 e ss.. 45 É pacífi co o entendimento de que o artigo 72.º n.º 2 deve ser objeto de uma interpretação res-tritiva (ou redução teleológica), porquanto contrariamente ao que possa sugerir o elemento lite-ral (e especialmente da sua conjugação com o n.º 1 do mesmo artigo), a regra ali contida não é aplicável à preterição de deveres específi cos (legais, contratuais ou estatutários), relativamente aos quais inexiste autonomia e margem de discricionariedade no comportamento que se espera do administrador. Já saber se o referido artigo é, ou não, aplicável à violação dos deveres de lealdade, suscita divergência doutrinária. Na esteira do entendimento de Coutinho de Abreu [Responsa-bilidade Civil dos…(2007), op. cit., p. 46] e Ricardo Costa [Responsabilidade dos Administradores… (2007), op. cit., p. 69], somos da opinião que a menção a uma atuação livre de qualquer interesse pessoal afasta também a possibilidade de uma violação do dever de lealdade poder benefi ciar da exclusão de responsabilidade constante da norma. Em sentido contrário, considerando que a business judg-ment rule se aplica também aos deveres de lealdade, v. Adelaide Menezes Leitão, Responsabili-dade dos administradores… (2011), op. cit., p. 43 e Carneiro da Frada, A Business Judgment Rule… (2007), op. cit., p. 182.

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precedente – e, outrossim, o espaço de sindicabilidade jurídica da atividade da administração para efeitos de responsabilidade civil46.

Verifi quemos então, seguidamente, se os pressupostos (cumulativos) dos quais depende a efi cácia da norma que permite a irresponsabilização dos admi-nistradores estão, ou não, in casu, preenchidos.

II. O primeiro desses pressupostos, vimos, é a atuação informada do adminis-trador.

Exige-se a demonstração de que o processo de tomada de decisão foi ins-truído com a informação adequada. Ou seja, não se impõe o esgotamento da informação (se isso é possível, aos dias de hoje), mas antes que a decisão tenha sido suportada por informação sufi ciente e apropriada à complexidade do caso concreto. Trata-se, portanto, de uma exigência de due process47.

A este respeito, as declarações do visado deixam transparecer algum cuidado no que à exigência de informação diz respeito, ao referir que “Como qualquer jogador, têm de ser analisadas as suas prestações e potencial. (…) Vimos que ele tinha potencial para estar no Campeonato da Europa, era um dos melhores do clube (…)”.

Não será sufi ciente, contudo. Entre outras, mostrar-se-á fundamental demonstrar que a decisão de alteração contratual foi precedida de troca de informações com a equipa técnica (treinador, preparadores físicos, etc.) – a fi m de avaliar o rendimento desportivo do jogador (atual e potencial) e a sua importância para a equipa (note-se que uma das imputações feitas pela Sporting Clube de Portugal – Futebol, SAD é, precisamente, que o jogador era pouco

46 Saber se a exclusão de responsabilidade do artigo 72.º n.º 2 do CSC respeita à ilicitude, à culpa ou a ambas é, porventura, das discussões mais férteis nesta matéria. Em sentido diverso do por nós veiculado, entendendo que a norma ilide a presunção de culpa estabelecida no artigo 71.º n.º 1 e, simultaneamente, exclui a ilicitude do comportamento, v. Coutinho de Abreu, Responsa-bilidade civil dos… (2007), op. cit., p. 43 e Ricardo Costa, Responsabilidade dos Administradores…, (2007), op. cit., pp. 75-79. Numa perspetiva apesar de tudo diferente, António Menezes Cor-deiro considera que na norma se encontra uma exclusão da faute, fi gura do direito francês, que na responsabilidade obrigacional interpenetra os conceitos de ilicitude e culpa. Refere o Autor que, “(…) pelo nosso entendimento da responsabilidade obrigacional, o ‘business judgment rule’ funcionaria, entre nós, como exclusão da ‘faute’, isto é, de culpa/ilicitude.” (Direito das Sociedades, vol. I, 3.ª edição, Almedina, 2011, p. 985). Destaque, ainda, para a posição de Adelaide Menezes Leitão que, afastando-se das posições tradicionais, coloca a questão no campo da causalidade porquanto, segundo a Autora, “(…) o ‘business judgment rule’ confi gura uma regra que não visa delimitar a ilicitude, mas sim, na formulação positiva portuguesa, delimitar a responsabilidade, pelo que, melhor se insere em sede de causalidade, funcionando de forma paralela à relevância negativa da causa virtual.” [Responsabilidade dos administradores… (2011), op. cit., pp. 44-45].47 Nesse sentido, v. Ricardo Costa, Responsabilidade dos Administradores…, (2007), op. cit., pp. 82-83 e Carneiro da Frada, A Business Judgment Rule… (2007), op. cit., p. 196.

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utilizado) – e, bem assim, com o departamento médico – a fi m de avaliar cor-retamente o estado físico do jogador (de molde a afastar a imputação de que o atleta tinha problemas físicos recorrentes). Para além disto, será igualmente essencial demonstrar, numa perspetiva fi nanceira, que os custos associados à alteração contratual foram devidamente calculados.

III. O segundo pressuposto, recordemos, é a atuação livre de qualquer inte-

resse pessoal.Avançámos já, supra48, que na nossa opinião este requisito diz respeito ao

dever de lealdade e se destina a mantê-lo afastado da cobertura conferida por esta causa de exclusão da responsabilidade. Reforçamos aqui este entendimento, até porque, como será bom de ver, de outra forma exigir-se-ia aos ex-admi-nistradores que fi zessem prova de factos negativos, designadamente, por exem-plo, caber-lhes-ia demonstrar que nada receberam, em proveito próprio, das empresas «Gondry Financial Services Limited» e «Sbass Limited» (intervenientes no negócio) e que não tinham qualquer ligação, de facto, às mesmas. E esta é uma prova que, como facilmente se constata, está fora do seu alcance.

IV. Por último, o artigo 72.º n.º 2 do CSC exige que a atuação dos admi-nistradores tenha sido guiada segundo critérios de racionalidade empresarial.

O protesto relativo à difi culdade na materialização deste pressuposto é par-tilhado por vários Autores49, sendo que a solução aventada por Coutinho de Abreu afi gura-se-nos a mais merecedora de apego: ao administrador caberá provar que a sua atuação não foi irracional, isto é, que a sua decisão é com-preensível e tem explicação coerente50, à luz dos interesses da sociedade.

Recorrendo a uma imagem facilitadora da explicação dir-se-á que, meta-foricamente, racionalidade e razoabilidade podem ter-se como duas circunfe-rências sobrepostas. A racionalidade corresponderá à circunferência maior, que tem no seu interior uma outra circunferência (de raio) menor, a qual encerra a razoabilidade exigida ao administrador pelo artigo 64.º do CSC. O admi-nistrador deverá atuar sempre dentro da circunferência mais pequena (a da razoabilidade). Se a extravasar mas conseguir demonstrar que a sua atuação se insere ainda nos limites fi xados pela circunferência maior (a da racionalidade), situar-se-á numa «zona de imunidade», conferida pelo artigo 72.º n.º2, que o

48 V. segunda parte da nota de rodapé n.º 44.49 Carneiro da Frada, in A Business Judgment Rule…(2007), op. cit., p. 197, considera que “O ponto mais difícil do novo texto prende-se com a racionalidade empresarial.”. No mesmo sentido, v. Cou-tinho de Abreu, Responsabilidade Civil dos… (2007), op. cit., pp. 44 e ss..50 In Responsabilidade Civil dos…., (2007), op. cit., pp. 45-46.

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protege de ser responsabilizado. Ultrapassado este círculo maior, então sim, a sua atuação será necessariamente tida como contrária ao Direito.

V. Que este requisito é o elemento nuclear da responsabilidade civil dos administradores e que, in casu, será o cerne da discussão e o pêndulo decisor, não passou despercebido a nenhuma das partes envolvidas. A Sporting Clube de Portugal – Futebol, SAD, sem sequer lhe competir a alegação e prova, apressou-se a avançar que “O aumento exponencial dos custos da Sporting SAD que resultou da renovação do contrato de trabalho desportivo com o jogador Izmaylov foi um decisão carecida de racionalidade empresarial (…)”. Outrossim, o ex-adminis-trador, mesmo tratando-se de uma mera declaração à imprensa, não se mostrou desinformado e fez questão de frisar que a decisão “Foi feita com base em critérios racionais.” (realces nossos).

VI. Mas, recordemos, então, o restante da declaração do ex-administrador, a quem caberá a prova do pressuposto: “Sendo um ativo, devemos ver se vale a pena alterar a situação do jogador. Vimos que ele tinha potencial para estar no Campeonato da Europa, era um dos melhores do clube e podia ser valorizado e vendido se apostássemos numa renovação. Foi feita com base em critérios racionais. Se resultaram, isso vem depois. A verdade é que esteve no Europeu pela Rússia.”.

A explicação avançada é compreensível e coerente, no plano desportivo. De facto, cabe manter no plantel os melhores jogadores e as grandes competi-ções, no que se incluem os Campeonatos da Europa, são efetivamente eventos que tendem a valorizar os atletas que nelas participam. O simples facto do joga-dor ser internacional pela seleção russa diz também quer acerca da sua qualidade técnica, quer quanto ao seu valor numa eventual transação. E é indiscutível que os sucessos desportivos só são possíveis mantendo no plantel os bons jogadores. Pelo que, nada obsta à conclusão a que chegámos supra (no ponto 4), onde referimos que a decisão de renegociar o contrato de trabalho desportivo ainda válido por mais 2 (duas) épocas nada tinha, em abstrato, de questionável e até se entende ter sido acertada, na medida em que visou impedir que a Sporting Clube de Portugal – Futebol, SAD fi casse exposta ao risco de vir a perder o jogador, por caducidade do contrato, sem conseguir reaver sequer parte do investimento fi nanceiro realizado na aquisição dos seus direitos desportivos.

VII. Por outro lado, se do ponto de vista desportivo a decisão parece ina-

tacável, na vertente fi nanceira restam poucas dúvidas de que a operação foi bastante dispendiosa e, com elevado grau de certeza, um mau negócio para a Sporting Clube de Portugal – Futebol, SAD.

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Mas, o busílis da questão é o seguinte: os maus negócios são necessaria-mente irracionais? É certo que não. E é precisamente este o âmbito e justifi ca-ção da existência deste artigo 72.º n.º 2 do CSC que, com «aba larga», protege da sindicabilidade jurídica grande parte das más decisões dos administradores.

Visto de outra perspetiva, a renegociação levada a cabo teria sido irracional se o jogador tivesse, por hipótese, 45 (quarenta e cinco) anos de idade e proble-mas físicos recorrentes, derivados da própria idade, ou se tivesse uma lesão que o impedisse, irremediavelmente, de praticar desporto de alto rendimento. Aqui sim, teríamos uma decisão irracional, porque impossível de explicar, e com-preender, segundo as regras da lógica. Uma decisão que, segundo um juízo de probabilidade, com elevado grau de certeza produzirá um resultado contrário ao interesse da sociedade.

VIII. Noutro campo, considerar-se-á igualmente irracional, por excessi-vamente temerária, uma decisão que comporte um risco tal para a sociedade que se possa afi rmar, ab initio, que correndo mal implicará a insolvência. Nota Coutinho de Abreu que “(…) a sociedade não deve poder perecer por causa de uma só decisão falhada.”51.

Ora, a alegação da Sporting Clube de Portugal – Futebol, SAD a este respeito, segundo a qual a situação fi nanceira da Sporting SAD não comportava tal aumento de custos, nem é sufi ciente para atingir o objetivo, nem tampouco parece verosímil, atentos os factos que são do conhecimento público e que dão conta da subsistência da sociedade, com mais ou menos difi culdades, até aos dias de hoje, sem que tivesse sido necessário declará-la incapaz (insolvente) ou, sequer, recorrer a mecanismos judiciais ou extrajudiciais de apoio à recupera-ção da solvabilidade.

IX. Vimos já que da conjugação dos n.os 1 e 2 do artigo 72.º do CSC resulta um conteúdo mínimo e sufi ciente do dever geral de cuidado, que garante a irresponsabilidade do administrador, e que se cifra na obrigação deste tomar decisões informadas e não irracionais. Ora, in casu, estamos em crer que, demonstrado que fi que o cumprimento do dever informativo por parte dos ex-administradores, difi cilmente a conduta daqueles deixará de ter-se por irra-zoável (porquanto a renovação parece ter sido um mau negócio para a Sporting Clube de Portugal – Futebol, SAD) mas racional (na medida em que a decisão era apta, segundo um juízo probabilístico retroagido àquela data, a trazer bons resultados para a sociedade – mesmo que depois estes não se tenham vindo a

51 In Responsabilidade Civil dos…, (2007), op. cit., pp. 22 e 23.

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verifi car) e, por isso, benefi ciadora da exclusão de responsabilidade prevista no artigo 72.º n.º 2 do CSC.

Cenário diferente, na nossa opinião, só poderá vir a verifi car-se se a Spor-ting Clube de Portugal – Futebol, SAD conseguir demonstrar que a decisão pôs em sério risco a sobrevivência da sociedade, que apenas evitou a insolvência por um facto superveniente (por exemplo, um investidor que à data não era conhe-cido, ou um fi nanciamento em condições mais vantajosas do que o habitual).

X. Por último, cabe sublinhar que no caso de não se verifi car algum dos pressupostos de que o artigo 72.º n.º 2 faz depender a exclusão de responsabili-dade, isto não determina, por si só, a responsabilização dos visados. Signifi cará, unicamente, que se rompe a imunidade atribuída pelo preceito e, como tal, caberá aferir da conduta face aos standards do dever de administrar. Isto é, o juiz deverá então analisar a decisão empresarial alegadamente danosa.

6. A ‘compensatio lucri cum damno’

I. Concedendo que a nossa conclusão expressa no ponto anterior – no sentido da provável não responsabilização dos ex-administradores visados – não é líquida e inatacável, avancemos para a hipótese de se considerar inaplicável a salvaguarda conferida pelo artigo 72.º n.º 2 do CSC. A discussão passará então, disse-se, para a verifi cação do preenchimento dos pressupostos da responsabili-dade civil, a que se refere o n.º 1 do mesmo preceito.

Para o que aqui nos interessa, atenhamo-nos no requisito do dano, pressu-posto incontornável da responsabilidade civil.

II. In casu, a Sporting Clube de Portugal – Futebol, SAD assegura ter tido um prejuízo computado na seguinte soma: i) a quantia de €853.360,00 (oito-centos e cinquenta e três mil trezentos e sessenta euros), paga à sociedade «Gon-dry Financial Services Limited» pela celebração do contrato de exploração dos direitos de imagem do jogador; ii) o montante de €480.000,00 (quatrocentos e oitenta mil euros), pagos à sociedade «Sbass Limited» a título de comissão pela intermediação na renovação do contrato; e, iii) o acréscimo remuneratório de que o jogador passou a benefi ciar imediatamente a partir do momento da alteração contratual (relativamente ao que auferia em virtude do contrato de trabalho desportivo que estava ainda em vigor)52.

52 Cfr. n.os 2, 3 e 4 do ponto 10 da ordem de trabalhos, proposta A, que a Sporting Clube de Portugal – Futebol, SAD remeteu aos acionistas e comunicou à CMVM, disponível em http://web3.cmvm.pt/sdi2004/emitentes/docs/CONV52096.pdf – webpage consultada em 01.02.2015.

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A demonstração destes danos não se afi gura, à partida, tarefa árdua. A prova documental deverá ser sufi ciente para a concluir com sucesso.

Mas, aparentemente, a soma destes montantes pode não refl etir a totalidade do prejuízo infl igido na esfera patrimonial da Sporting Clube de Portugal – Futebol, SAD. Isto porque, o documento termina com a seguinte menção: “(…) em consequência, causaram à Sporting SAD um prejuízo, cujo montante irá ser concretizado pelos serviços jurídicos competentes para o efeito.”53. Signifi ca isto que, para além dos prejuízos na forma de dano emergente, já apontados, outros poderão ainda ser chamados à colação54.

III. Ora, a respeito do dano, caberá à defesa dos visados trazer à colação um elemento factual decisivo: é que após a renegociação contratual que estendeu o vínculo (e que aqui é posta em crise), em janeiro de 2013 a Sporting Clube de Portugal – Futebol, SAD alienou os direitos desportivos do jogador em causa à Futebol Clube do Porto – Futebol, SAD55. Isto é, a Sporting Clube de Portugal – Futebol, SAD, por ser a legítima titular dos direitos desportivos do atleta, negociou-os e transacionou-os onerosamente, de acordo com os seus interesses, com uma sociedade desportiva terceira.

Sucede, porém, que se não fosse a alteração contratual e consequente extensão do vínculo levadas a cabo (e agora postas em causa) o jogador estaria, na data em que ocorreu a transação, em condições de negociar e de se vincular a outros clubes à revelia da Sporting Clube de Portugal – Futebol, SAD e sem que esta tivesse direito a receber qualquer compensação.

Senão vejamos. Antes da renegociação levada a cabo o jogador tinha con-trato válido, dissemos, até ao fi nal da época desportiva de 2012/2013 (isto é, até maio/junho de 2013). Nos termos do artigo 18.º n.º 3 do Regulations on the Sta-tus and Transfer of Players da FIFA, vimos já anteriormente que os jogadores são

53 Cfr. n.º 6, in fi ne, do ponto 10 da ordem de trabalhos, proposta A, que a Sporting Clube de Portugal – Futebol, SAD remeteu aos acionistas e comunicou à CMVM, disponível em http://web3.cmvm.pt/sdi2004/emitentes/docs/CONV52096.pdf – webpage consultada em 01.02.2015.54 Conceda-se, por mera hipótese, que as verbas utilizadas na alteração do contrato estavam reser-vadas para o cumprimento de compromissos bancários ou fi scais e que, em função da mesma, foram incumpridos. Os custos tidos para a regularização do incumprimento são indemnizáveis. Outrossim, imagine-se que à data da renovação a Sporting SAD estava na iminência de contra-tar um outro jogador, mas os custos com a alteração do contrato inviabilizaram a aquisição. Esse jogador acaba por ser transferido para um clube rival, de onde, no dia seguinte, mesmo sem chegar sequer a treinar, é vendido com uma mais valia signifi cativa. 55 Cfr. comunicado da Sporting Clube de Portugal – Futebol, SAD à CMVM, de 08 de janeiro de 2013, disponível em http://web3.cmvm.pt/sdi2004/emitentes/docs/FR42998.pdf – webpage consultada em 01.02.2015.

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livres para negociarem e celebrarem contrato de trabalho desportivo com outro clube nos 6 (meses) que antecedem a caducidade do contrato então em vigor56. E, assim sendo, sem a renegociação levada a cabo, o jogador seria, em janeiro de 2013 (altura em que se deu a transferência), perfeitamente livre para nego-ciar o seu contrato de trabalho desportivo diretamente com a Futebol Clube do Porto – Futebol, SAD (ou com outra sociedade desportiva, ou clube), à revelia da Sporting Clube de Portugal – Futebol, SAD.

Ora, dada a alteração contratual levada a cabo (e alegadamente danosa), isto não sucedeu, tendo a Sporting Clube de Portugal – Futebol, SAD acabado por conseguir salvaguardar os seus interesses na transação que veio a ocorrer. Do que resulta uma conclusão interessante: considerando-se a alteração contratual um ato ilícito, desse ilícito veio a resultar um benefício para o lesado, que não teria existido se não fosse, precisamente, esse ato ilícito. Ou melhor, o evento alegadamente danoso e que obriga à reparação, para além dos efeitos negativos, trouxe também um benefício ao lesado, na medida em que permitiu a este obter um incremento patrimonial que, doutra forma, não teria conseguido.

IV. Aqui chegados, cabe então questionar se o nosso ordenamento jurídico permite, ou não, tomar em linha de conta a vantagem obtida pelo lesado com o evento ilícito e deduzi-la ao montante indemnizatório a que este teria direito; ou seja, se o instituto romano da compensatio lucri cum damno é reconhecido e admitido pelo nosso Direito.

Apesar do parco tratamento dado à matéria na jurisprudência e doutrina, ambas são unânimes em reconhecer que o instituto não está expressamente consagrado na lei (lato sensu), mas resulta da conjugação das regras gerais de avaliação do dano (designadamente, dos artigos 562.º, 564.º e 566.º n.º 2, todos do Código Civil) que impõem a «teoria da diferença» e impedem o enriqueci-mento do lesado resultante do evento lesivo e da indemnização57.

A compensatio lucri cum damno opera, então, a compensação dos danos com as vantagens eventualmente resultantes do facto danoso. Exige-se, contudo, como pressuposto, que o dano seja resultante do mesmo evento, isto é, que

56 O citado preceito estatui que “A club intending to conclude a contract with a professional must inform the player’s current club in writing before entering into negotiations with him. A professional shall only be free to conclude a contract with another club if his contract with his present club has expired or is due to expire within six months. Any breach of this provision shall be subject to appropriate sanctions.”.57 Na jurisprudência, entre outros, v. Ac. STJ, de 31.05.2011 e Ac. STJ, de 22.11.2012, ambos disponíveis em www.dgsi.pt. Na doutrina, v. Paulo Mota Pinto, Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo, vol. I, Coimbra Editora, 2008, pp. 710 e ss..

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A responsabilidade civil dos administradores para com as sociedades desportivas:… 497

exista nexo causal entre o evento danoso e a vantagem. Nada que escape ao nosso caso, como se vê.

V. Difi culdade maior será determinar o montante da compensação. Isto porque, o benefício que a Sporting Clube de Portugal – Futebol, SAD obteve com a transação é difícil de quantifi car, na medida em que não houve um pagamento, mas antes uma permuta de jogadores. Em troca, a Sporting Clube de Portugal – Futebol, SAD fi cou titular dos direitos desportivos do jogador Miguel Lopes58.

Não obstante, feita essa quantifi cação, o montante deverá ser deduzido a qualquer eventual indemnização que haja a pagar. Do que pode vir a resultar uma situação peculiar (e que, aliás, é até altamente provável, dadas as avultadas quantias pelas quais são habitualmente transacionados os direitos económicos e desportivos dos jogadores profi ssionais das chamadas «equipas grandes»): que, a fi nal, da diferença, inexista prejuízo computável e, bem assim, qualquer indem-nização a pagar pelos ex-administradores lesantes.

58 Cfr. comunicado à CMVM identifi cado na nota de rodapé n.º 55.

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