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DIREITO DAS OBRIGAÇÕES I Prof. Menezes Cordeiro 普京的法律大学 大象城堡 2014/2015

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DIREITO DAS OBRIGAÇÕES I

Prof. Menezes Cordeiro

普京的法律大学 大象城堡

2014/2015

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Professor António Menezes Cordeiro

Tratado de Direito Civil | tomos VII e IX

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YAY! Talvez sem saber como, possivelmente – também – no êxito e compromisso da ambição, o

segundo ano cá está!

Desejando boa sorte, cabe-me alertar para o facto de a sebenta ter, certamente, pequenas

imprecisões que, por lapso e sem intenção, nela perpassaram. Leiam criticamente, como tudo

em ciência! E não dispensem a consulta dos manuais (só por si excelentes, na brilhante

academicidade e cientificidade do autor, excecionais!).

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Secção II: Relatividade E A Eficácia Perante Terceiros

27.º A Relatividade Estrutural

Aceções de relatividade: as obrigações mais habituais derivam de acordos livremente

celebrados. Compreende-se, a essa luz e como um dado apodítico (evidente), que elas apenas

possam vincular as pessoas que as tenham concluído. Ulpiano consagrou essa ideia numa

máxima célebre: “ninguém pode estipular para outrem”. Pela evidência, nem haveria muito a

explicar. Havia que passar, dos contratos, às obrigações em geral. E aí tornou-se decisiva a

contraposição com os direitos reais: na lógica romana, a obligatio não era relativa, assim como

a actio in rem também não era absoluta. Parecia natural, assim se mantendo em autores como

Savigny, que reportam os direitos reais ao domínio (da vontade) sobre uma coisa e os créditos

a um domínio parcial do devedor. A relatividade das obrigações era implicitamente afirmada

desde Savigny: com o sentido de implicar uma relação jurídica entre duas pessoas determinadas,

relação essa que não era apontada em direitos reais. Enquanto construção dogmática, a

relatividade ficou a dever-se à tentativa de implantação, nos reais, da técnica da relação jurídica.

Podemos prosseguir, aprofundando essa ideia:

- no direito de crédito, haveria uma verdadeira relação jurídica entre duas pessoas

determinadas: o credor e devedor; pelo contrário, o direito real, surgiria ou uma “relação” de

aproveitamento da coisa ou uma “relação” universal: em qualquer das leituras, seria absoluto;

- no direito de crédito, o credor está legitimado, pelo Direito, para exigir o cumprimento

ao devedor e apenas ao devedor; pelo contrário, em direitos reais, o titular pode obter a

restituição da coisa de qualquer terceiro (1311.º, n.º1), assim como, também de qualquer

terceiro, pode exigir o respeito pela sua própria posição;

- no direito de crédito, apenas o devedor pode faltar ao cumprimento incorrendo,

quando o faça, em responsabilidade obrigacional (798,º e seguintes); nos direitos reais, qualquer

pessoa pode atingir a coisa, sujeitando-se, quando isso suceda, à responsabilidade aquiliana

(483.º, e seguintes).

À partida, a matéria parece clara, lógica e justa. A clivagem existente entre os direitos

de crédito e os direitos reais pode adequadamente ser figurada como a relatividade dos

primeiros e a absolutidade dos segundos. É certo que a contraposição alicerçou-se na conceção

moderna de direito real (a do poder absoluto, derivado de relação universal) hoje abandonada.

Todavia, sabemos que o Direito Civil não é (sempre) lógico. E por isso, fatores de absorção

estrutural, teleológica, funcional e linguística levaram a que, nas obrigações, surgissem figuras

de exceção a algum (ou a vários) dos três fatores acima apontados, outro tanto sucedendo em

direitos reais. Tais exceções foram adquirindo significado, em termos de se justificar uma análise

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da matéria. Temos de fixar o preciso alcance dos termos, antes de proceder a uma sua utilização

dogmática. Ora, no tocante à relatividade dos créditos, temos, desde logo, três possíveis aceções:

- estrutural: os créditos seriam relativos por pressuporem uma relação jurídica: os reais

seriam absolutos por consignarem, para o seu titular, uma posição isolada (ab + soluta);

- eficácia: os créditos permitiriam pretensões apenas contra o devedor e só este estaria

obrigado; os reais facultariam pretensões contra quaisquer pessoas, estando, todas, obrigadas

ao respeito;

- responsabilidade: o credor apenas poderia pedir contas ao devedor, só este sendo

responsabilizável, enquanto, em direitos reais, qualquer terceiro poderia ser obrigado a

indemnizar.

Tais aceções estão interligadas: justamente por assentarem, estruturalmente, numa

relação jurídica entre duas pessoas, os créditos só produziriam efeitos entre elas, só o devedor

os podendo violar e, daí, só ele podendo ser responsabilizado; pelo contrário, os direitos reais,

por envolverem todas as pessoas do ordenamento, produziriam efeitos perante qualquer uma

delas, a qual, verificados os pressupostos, poderia ter que indemnizar.

Os limites à relatividade estrutural: a contraposição entre direitos absolutos e relativos é,

efetivamente, estrutural. Nos segundos, há uma relação jurídica; nos primeiros, isso, não sucede,

encontrando-se simplesmente o seu titular habilitado a agir, perante um bem: uma coisa

corpórea (direito real) ou um bem de personalidade (direito de personalidade): trata-se de

direitos “desligados” (ab + soluta). Os direitos de crédito integram-se nas obrigações (relações

jurídicas): são estruturalmente relativo. Nos direitos reais, têm vindo a impor-se figura relativas.

As relações de vizinhança são funcionalmente reais; os ónus reais são, no seu exercício, relativos;

numerosas relações entre titulares e direitos reais em conflito inscrevem-se no conteúdo destes.

Poderíamos construir uma dogmática real em que apenas o núcleo seria absoluto; teríamos,

depois, um halo de obrigações secundárias e de deveres acessórios, estruturalmente relativos.

Só que tal “halo” inscreve-se no núcleo, sendo, por vezes, essencial para o aproveitamento da

coisa. Em suma: é obvia a importância de referir a absolutidade como característica tendencial

dos direitos reais; mas não é possível fazer, dela, um instrumento dogmático, uma vez que irá

falhar nas questões mais delicadas. Os direitos de crédito serão, simétrica e tendencialmente,

relativos: implicam relações jurídicas. Mas nem sempre e não só. A ideia de obrigação em

sentido amplo é, hoje, pacífica. No seu seio, para além do vínculo crédito/débito, inscrevem-se

outras situações, incluindo direitos potestativos. Ora o direito potestativo é estruturalmente

absoluto: não há um obrigado, mas uma pessoa em sujeição. Tal pessoa nada pode (logo: não

deve) fazer. O regime aplicável é muito diverso do dos débitos. O titular do direito potestativo

está ab solutum: atua isoladamente. Dir-se-á que o direito potestativo, fruto de uma norma que

confere poderes, não encaixa nos direitos subjetivos, derivados de normas permissivas. Assim

é. Mas dada a natureza compreensiva do direito subjetivo, não vale a pena remar contra a maré.

Regressando às obrigações: a relatividade (estrutural) interessa-nos como um dado dogmático,

isto é: operacional para resolver problemas. Desde que se verifique a presença, nas obrigações,

de elementos absolutos, ela já não pode ser, sempre, característica de (todos) os créditos. O

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direito potestativo permite, a uma das partes, alterar uma situação jurídica de outra,

independentemente da vontade desta. Para um leigo, parece haver uma relação entre o titular

e a pessoa sujeita; para um jurista, a “relação” existente não é uma técnica relação obrigacional,

porque os regimes são muito diferentes. Numa relação obrigação, um devedor fica adstrito a

uma prestação. Aplica-se-lhe todo um complexo de normas relativas à manutenção do dever de

prestar, às suas vicissitudes e à sua execução. Numa situação de sujeição, a pessoa sujeita nada

pode fazer; logo: nada deve fazer. O regime é totalmente diferente, o que permite concluir que

a ligação direito potestativo/sujeição não é uma relação obrigacional. Consideramo-la

estruturalmente absoluta, porquanto independente (ab-soluta) de qualquer atuação do não-

titular. Quanto a saber se há direitos de crédito potestativos: se limitarmos o crédito à pretensão

a uma prestação, é obvio que não há. Teríamos de abrir uma categoria de “direitos potestativos”.

O problema coloca-se no plano histórico-cultural dos créditos. Por muito que custe a admitir, as

categorias civis não são, somente, lógico-formais. Surgem condicionadas pela evolução histórica

e pelas diversas coberturas linguísticas. A essa luz, o direito subjetivo é uma categoria

compreensiva e não analítica. E por isso todos consideram o direito potestativo como um direito

subjetivo embora, estruturalmente, seja diverso: o direito subjetivo deriva de uma norma de

permissão, enquanto o direito potestativo resulta de uma norma que confere poderes. Dado

este passo, regressemos ao direito de crédito. Sendo compreensivo, ele diz-nos que visa o

aproveitamento de uma prestação. Esse aproveitamento fez-se, nuclearmente, pela execução,

a cargo do devedor, da prestação principal. Mas não há apenas: há aproveitamentos nucleares

da relação obrigacional que derivam de exercícios potestativos; há aproveitamentos da

prestação principal que implicam tais exercícios; e há posições instrumentais dento da relação

complexa, também potestativas. Em suma: por via de compreensividade do direito subjetivo, há

menos créditos potestativos ou, pelo menos, elementos potestativos creditícios. E como a ideia

de “estrutura” é lógico- analítica e não compreensiva, temos de admitir créditos

estruturalmente absolutos ou, pelo menos, subestruturas absolutas dentro das relações

obrigacionais globalmente relativas. Outra fonte de problemas é representada pelos direitos

pessoais de gozo. Como vimos, estes direitos compreendem um núcleo permissivo, virado para

uma coisa corpórea. Este núcleo é estruturalmente absoluto: o titular goza a coisa mercê da sua

própria atividade (ab solutum) e não por via de qualquer prestação. Elementos relativos surgem

no plano secundário e nos deveres acessórios ou, pelo menos, em alguns destes. De todo o

modo, não é possível proclamar o direitos pessoais de gozo como “relativos”: o gozo é, por

definição, absoluto. Também aqui a relatividade (estrutural), enquanto vetor dogmático

omnipresente, falha.

Relatividade tendencial e sistema: tudo visto, poderemos dizer que a obrigação típica envolve

uma relação jurídica (técnica), entre o credor e o devedor. Mas há situações histórica e

sistematicamente consideradas obrigacionais que, seja por envolverem elementos potestativos,

seja por implicarem direitos de gozo (pessoais), não se podem reconduzir a relações jurídicas:

não são relativas. Fica-nos a relatividade estrutural como uma característica tendencial,

operante no plano do sistema, mas que não tem de estar concretamente presente em todas as

situações obrigacionais. Por isso encontrámos a relatividade como mero princípio. Esta

“relativização da relatividade”, que abaixo retomaremos, é acompanhada pela “relativização da

absolutidade” dos direitos reais. Podemos inferir, desta rúbrica, que não é possível preconizar

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uma contraposição estrutural entre os créditos e os reais. Se apresentarmos a um intérprete

aplicador uma situação retirada do contexto, ele não poderá concluir pela sua natureza creditícia

ou real. Um juízo só é possível a nível do sistema, isto é: quando se tenha um conhecimento da

precisa inserção da situação em causa.

28.º A Relatividade Na Produção De Efeitos

Generalidades, a oponibilidade forte: numa segunda aceção, como vimos, a ideia de

relatividade é aproximada da de oponibilidade ou produção potencial de efeitos. Mas logo aí

encontramos uma graduação que envolve significativas clivagens qualitativas. Distinguimos:

- oponibilidade forte: traduz a pretensão que o titular de um direito tem de exigir o quid

valioso que o Direito lhe atribui: pode ser erga omnes (o poder de reivindicar a coisa, conferido

ao proprietário, artigo 1311.º) ou inter partes (o poder de exigir o cumprimento ao devedor

cometido ao credor);

- oponibilidade média: exprime a possibilidade, reconhecida ao titular, de solicitar o

acatamento de deveres instrumentais que permitam o aproveitamento do quid valioso que lhe

compita ou um melhor aproveitamento desse mesmo quid; também ela pode ser erga omnes

(o proprietário pode pedir silêncio aos vizinhos, artigo 1346.º) ou inter partes (o credor pode

exigir o acatamento, ao devedor, das prestações secundárias ou dos deveres acessórios);

- oponibilidade fraca: manifesta a pretensão geral de respeito; erga omnes (todos

devem respeitar certa situação de propriedade) ou inter partes (o credor não pode piorar a

situação do devedor).

Passando aos créditos, parece indubitável que eles estão dotados de uma oponibilidade

forte inter partes: o credor pode exigir contra o devedor inadimplente (817.º) e apenas contra

ele; o proprietário pode exigir a coisa a qualquer pessoa que a possua ou a detenha (1311.º, n.1).

Deve explicar-se que, mau grado a relatividade estrutural, a obrigação admite a intromissão de

terceiros, desde que dirigida à satisfação do credor: 767.º, n.º1. Não pode é o cumprimento ser

exigido a terceiro. A regra será, pois: uma oponibilidade forte meramente inter partes, para os

créditos e uma oponibilidade forte erga omnes, para os direitos reais. Mas se esta é a regra, logo

deparamos com exceções. Elas são de três tipos:

- há direito reais que perdem a sua oponibilidade erga omnes;

- há créditos que adquirem uma oponibilidade erga omnes;

- há créditos que podem ser atuados contra terceiros.

A lei portuguesa admite que os titulares de certos direitos de crédito possam, por uma

declaração de vontade e uma subsequente inscrição, adquirir uma oponibilidade erga omnes.

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Temos, depois, diversos institutos que permitem, a um credor, obter o em ou o valor a que tem

direito, das mãos de um terceiro. Assim sucede, desde logo, na hipótese da ação direta (336.º,

n.º1). De seguida, surgem as hipóteses de ação sub-rogatória e de ação pauliana. No primeiro

caso, o credor exerce, contra terceiros, um direito patrimonial do devedor, quando isso se

manifeste essencial para a satisfação do seu próprio credito (606.º, n.º 1 e 2). Na mesma linha,

podem os credores invocar a prescrição favorável ao devedor (305.º, n.º1), bem como a nulidade

de atos por ele praticados (605.º, n.º1); podem, ainda, aceitar a herança do devedor (2067.º,

n.º1). Em todos estes casos, um credor exerce (“opõe”) o crédito contra terceiros, aos quais vai

exigir o valor que lhe cabe. Na ação pauliana, o credor pode impugnar os atos do devedor que

envolvam a diminuição da garantia patrimonial do seu crédito (610.º, n.º1), verificados

determinados requisitos. Ainda pela pauliana, o credor pode exigir a restituição dos bens a

terceiros ou executá-los no próprio património do obrigado à restituição (616.º, n.º1). De novo

o credor obtém de terceiros, aquilo a que tem direito. Em suma: no Direito das Obrigações e

tendencialmente, o credor (só) pode exigir o bem, serviço ou valor a que tenha direito, ao

próprio devedor. Será uma oponibilidade forte inter pares, que contracena com a oponibilidade

forte erga omnes, que provém dos direitos reais. Todavia, essa regra não funciona sempre,

podendo haver recortes negativos, quer nos reais, quer nas obrigações. Tais recortes nem são

(ou não são sempre) excecionais: dependem do entrecruzar de normas, de princípios e de

institutos. A oponibilidade forte inter pares (apenas) é tendencial e ordenadora.

A oponibilidade média; os contratos com proteção de terceiros e o terceiro cúmplice:

a oponibilidade média lida com os halos dos direitos subjetivos em jogo. Atendo-nos às

obrigações: estas podem, para além da prestação principal, envolver prestações (ou outras

realidades) secundárias e deveres acessórios.Tomemos o caso do contrato a favor de terceiros:

o contrato pelo qual uma pessoa se obriga, perante outra, a efetuar uma prestação a favor de

um terceiro (443.º, n.º1). O “terceiro” não é parte; mas ele adquire:

- imediatamente, o direito à prestação, podendo exigi-la ao promitente (444.º, n.º1);

- os direitos potestativos de rejeitar ou de adquirir à promessa (447.º, n.º1), sendo que

a adesão torna a promessa irrevogável.

Seja qual for a explicação para estes fenómenos, parece patente que, da obrigação

nuclear, contratada entre o promitente e o promissário, advêm efeitos nas esferas de terceiros.

Em princípio, tais efeitos predem-se com prestações secundárias; não é de excluir que envolvam

a própria prestação principal. Aditando, podemos explicar que certos contratos postulam, pela

sua natureza e pela exigência do sistema, deveres acessórios não só para defesa dos interesses

do credor mas, também, dos de terceiros. Esta problemática poderia resolver-se à luz da

responsabilidade aquiliana: dizendo que a responsabilidade do devedor para com terceiros se

teria ficado a dever à violação culposa de direitos de personalidade, como o direito à integridade

física, por via do artigo 483.º do Código Civil. Mas tal solução não confere uma proteção (tão)

eficaz como a dos contratos com proteção de terceiros; estes beneficiam, aqui, da preciosa

presunção de culpa/ilicitude, tal como resulta do artigo 799.º, do Código Civil. Através dos

contratos com proteção de terceiros, verifica-se que o devedor tem deveres para cumprir não

apenas para com o credor mas, também, perante terceiros. Podemos ainda reconduzir à

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oponibilidade média a denominada teria da responsabilidade do terceiro cúmplice. Tal teoria

coloca a seguinte questão: quando ocorra o incumprimento de uma obrigação contratual, pode

o credor responsabilizar, além do devedor, também o terceiro que tenha provocado o

incumprimento concluindo, com o devedor, um contrato incompatível com o primeiro. Para nós,

trata-se de uma manifestação da oponibilidade fraca, embora, no tocante ao terceiro cúmplice,

seja possível ir mais longe, como veremos de seguida. Temos, assim, duas linhas importantes,

que foram desenvolvidas na base de questões práticas: a dos contratos com proteção de

terceiros e da doutrina do terceiro cúmplice. Quanto aos contratos com proteção de terceiros,

estão em causa deveres acessórios de segurança. Embora primacialmente dirigidos para as

partes, os deveres acessórios de segurança podem surgir mercê de simples situações de

proximidade sócio-negocial. Mais complexa é a doutrina do terceiro cúmplice. Se bem

atentamos nos casos liderantes verificamos sempre um ponto em comum: o terceiro condenado

como cúmplice não é um vulgar estranho: trata-se, antes, de uma pessoa que, com as partes,

tem uma especial relação: conhecia a situação em que vai interferir e tinha interesses no caso,

designadamente por ser um concorrente. Podemos falar, a tal propósito, também numa relação

de proximidade negocial, centrada, agora, em deveres de lealdade, que recaem sobre o terceiro,

em situação de conexão. A doutrina de língua portuguesa tem, todavia, o privilégio de poder

trabalhar, indiferentemente, com a melhor instrumentação europeia. E a essa luz, afiguram-se

que, quer o “terceiro protegido”, quer o “terceiro cúmplice”, não são estranhos: antes pessoas

que, pela sua proximidade negocial, incorrem, passiva ou ativamente, em deveres acessórios.

Digamos que cada obrigação é (ou pode ser ) acompanhada por feixes de deveres acessórios

que acautelam os valores fundamentais do Ordenamento. E tais deveres acessórios envolvem

terceiros: seja protegendo-os, seja obrigando-os. Há, aqui, uma situação qualitativamente

diferente da que, acima, chamámos “oponibilidade forte”: será a oponibilidade média.

A oponibilidade fraca: o dever geral de respeito: as pessoas, independentemente de relações

obrigacionais específicas, devem respeitar os direitos das outras. Estão em causa direitos que,

pela sua natureza, sejam vulneráveis a terceiros: o direito de propriedade e os demais direitos

reais, os direitos sobre bens intelectuais, os direitos de personalidade e outros direitos desse

tipo. Prima Facie, estariam em causa os direitos absolutos. A violação de tais direitos, com culpa,

dá lugar ao dever de indemnizar (483.º, n,º1): é a responsabilidade aquiliana, também dita

delitual ou extra obrigacional. A responsabilidade aquiliana pode ser construída em torno de um

dever geral de respeito: o de não contundir com os direitos alheios ou com interesses de

terceiros legalmente protegidos. Esse dever geral de respeito visa tutelar direitos absolutos: por

definição, eles não dependem de nenhum dever específico. Os direitos de crédito, sendo direitos

relativos, não teriam proteção a esse nível: dependendo de vínculos específicos, eles não

poderiam, logicamente, ser violados por quem não se inclua em tais vínculos. Cumpre

transcrever um texto de Heck, muito célebre e que ilustra bem este tipo de pensamento:

«As obrigações são direito relativos. A norma só diz respeito ao devedor e não a outras

pessoas. Os interesses do credor só são protegidos às custas dos interesses do devedor e não às

custas dos interesses de terceiros. Um terceiro não pode violar a obrigação. Através desta

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limitação à proteção, os direitos de crédito distinguem-se dos “direitos absolutos”, nos quais a

norma de proteção diz respeito a todos, tal como sucede com os direitos reais, os direitos de

autor e outros direitos patrimoniais sobre a empresa. O direito absoluto assemelha-se a uma

fortificação, que concede proteção em todas as direções; o direito obrigacional a uma barricada,

que só protege numa direção, mas que não impede ataques de outras direções.»

29.º A Relatividade na Responsabilidade Civil

Colocação do problema: a oponibilidade forte tem a ver com a exigência, erga omnes ou inter

partes, do bem devido, enquanto a oponibilidade média se reporta a deveres específicos que,

não se confundindo com o cumprimento, visem tutelar a posição do credor. A oponibilidade

fraca joga como dever geral de respeito: existe sempre ou apenas opera perante os direitos

absolutos. À partida, dir-se-ia que apenas o devedor é responsável pelo incumprimento de uma

obrigação (798.º). E essa afirmação é tanto mais impressiva quanto é certo que, de tal

incumprimento, nasce um tipo de responsabilidade específico (a responsabilidade obrigacional),

marcada, entre outros aspetos, por uma presunção de culpa (e de ilicitude, artigo 799.º, n.º1)

que faz, dela, um instituto muito enérgico. Já no tocante a outros direitos, designadamente aos

absolutos: qualquer terceiro que, com dolo ou negligência, ilicitamente os violasse, cairia e

responsabilidade (483, n.º1). Uma responsabilidade mais lassa, uma vez que não assenta em

qualquer presunção (487.º, n.º1): a responsabilidade aquiliana, operacional erga omnes. A

relatividade na responsabilidade poder-se-ia ficar por aqui: os créditos são relativos porque

apenas eles, quando violados, dão azo à responsabilidade obrigacional. Mas vai, na doutrina

comum, mais longe: não só apenas os créditos dão azo à responsabilidade obrigacional (inter

partes) como também esses mesmos créditos não poderiam dar lugar à responsabilidade

aquiliana. Paralelamente, os direitos absolutos, designadamente os reais, só obteriam a tutela

adveniente da violação do dever geral de respeito (erga omnes) e não uma tutela mais

especializada, que se traduziria na inobservância de deveres específicos. Em síntese: teríamos,

para os créditos, uma responsabilidade mais forte e eficaz, mas apenas inter partes ou relativa;

para os direitos absolutos, especialmente o reais, quedaria uma responsabilidade mais solta,

mas erga omnes. Mas o Direito Civil não é (apenas) lógica, enquanto a riqueza da vida e a

diferenciação das situações que, nela, vão surgindo, também se não compadecem com

esquemas rígidos.

Tutela relativa dos direitos absolutos: a uma primeira leitura, a proteção geral dos direitos

absolutos funcionaria perante atuações ilícitas de terceiros. O dever genérico de respeito,

radicado no artigo 483.º, n.º1, exigiria, simplesmente, abstenções. O artigo 486.º poderia

mesmo depor nesse sentido. Um pouco de reflexão logo mostra que não é assim. A pessoa que,

vendo uma criança a afogar-se numa piscina, podendo retirá-la sem problemas, o não faça,

pratica um homicídio doloso direto. Temos de inferir que a responsabilidade aquiliana não se

limita a exigir abstenções: ela segrega deveres de atuação positivos, que devem ser respeitados.

Trata-se da doutrina dos deveres de tráfego. Os deveres de tráfego são, hoje, derivados do artigo

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483.º, n.º1. Fundamentalmente eles surgem quando alguém crie ou controle uma fonte de

perigo: cabem-lhes, então, medidas necessárias para prevenir ou evitar danos. A matéria dá

lugar a extensas seriações de ocorrências relevantes. Podemos elencar:

- a criação do perigo: aquele que dê azo ao perigo deve tomar as medidas adequadas;

- a responsabilidade pelo espaço: quem controle um espaço deve prevenir perigos que

lá ocorram ou possam ocorrer: quem tem a vantagem do lugar deve assumir os deveres que daí

decorram;

- a abertura ao tráfego: quem tenha um lugar aberto ao tráfego deve garantir a sua

segurança;

- assunção de uma tarefa: o arquiteto e o construtor não respondem apenas perante o

parceiro no contrato por vício da obra; garantem a segurança de quaisquer terceiros;

- introdução de bens no tráfego: o seu autor responde pelos danos daí resultantes;

- responsabilidade do Estado: pense-se nos danos causados por coisas sob controlo

público ou em relações de especial proximidade;

- responsabilidade pelo governo da casa: quem o tenha deve assegurar-se que, daí não

resultam danos.

O conteúdo dos deveres de tráfego é multifacetado, dependendo do caso concreto. No

que agora releva: não é possível afirmar uma (mera) tutela aquiliana erga omnes dos direitos

absolutos quando, afinal, mercê dos deveres do tráfego, eles dispõem, também, de uma tutela

“realtiva”. Tais deveres constituem-se em relação a condutas concretas, que podem ter natureza

“relativa”. Assim, não se pode, em abstrato, afirmar o tipo de proteção dispensada a um direito

absoluto, designadamente: a um direito real ou a um direito de personalidade. Depende de

muitas circunstâncias. Tanto basta para que se possa falar numa “tutela relativa dos direitos

absolutos”.

Tutela absoluta dos direitos relativos: coloquemos agora a questão em termos materiais: os

direitos de crédito podem ser atingidos por terceiros e, sendo-o, contemporizará o Direito

moderno com tal eventualidade? Enquanto vínculo abstrato, a obrigação não pode ser atingida

por terceiros: é uma pura criação do espirito. Apenas o devedor poderá, aquando do

cumprimento, não o levar a cabo. Só que a obrigação não é – ou pode não ser – apenas uma

criação do espírito. Por vezes, ela exigirá suportes materiais, condições ambientais e agentes

humanos. Quem atingir esses elementos circundantes estará, automaticamente, a impedir o

credor de alcançar as vantagens que a Ordem Jurídica lhe destinou. Poder-se-ia contrapor que,

em todas essas eventualidades, o crédito não é diretamente atingido. Caberia ao devedor

“lesado” ressarcir-se e, depois, ressarcir o seu credor. Em todos os casos e sobretudo, quando

se mostre que o agente pretendeu, com as “manobras circundantes”, atingir a obrigação,

prejudicando o credor, não há como evitar responsabilizá-lo. É justo e adequado e, sobretudo:

é reclamado por uma Ciência do Direito que tenha minimamente em conta o seu papel de, com

adequação e previsibilidade, resolver os problemas que se lhe deparem. Poderíamos admitir

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que razões histórico-culturais levem a que a tutela absoluta desejável seja conseguida não pela

via mais direta (a aplicação do artigo 483.º, n.º1, a todos os direitos, incluindo os créditos) mas

por outros caminhos, como o dos deveres acessórios, o dos deveres do tráfego ou o do abuso

do direito. Mas, de facto, terá de haver, em certas circunstâncias, uma via de responsabilizar o

terceiro que atinja o direito de crédito. Os direitos ditos relativos terão, no plano da

responsabilidade e verificados os pressupostos da Ordem Jurídica onde o problema se ponha,

de dispor de uma tutela absoluta.

30.º A Relatividade na Experiência Portuguesa (Eficácia Externa)

Coordenadas gerais; a eficácia externa: a denominada relatividade das obrigações, no

âmbito da produção de efeitos, apresenta aparentes flutuações: em função do tipo de

oponibilidade que esteja em causa e em consonância com a Ordem Jurídica onde o problema se

ponha. Todavia, torna-se possível fazer compreender tais flutuações a coordenadas coerentes e

adequadas. No tocante à oponibilidade forte, vimos ser de regra a sua natureza erga omnes, em

reais e inter partes, nas obrigações. Podemos adiantar que os desvios ocorrem mercê da

interação de outras normas e princípios. Designadamente nas obrigações: apenas perante

institutos específicos se torna possível, ao credor, exigir a prestação a terceiros. Tudo depende

do regime historicamente em vigor. Quanto à oponibilidade média, há duas técnicas de a

enquadrar: as vias anglo-saxónica e francesa, que acabam por cair em saídas de tipo delitual e a

solução alemã, que trabalha com o alagamento dos deveres acessórios, atingindo figuras como

o contrato com proteção de terceiros: uma saída obrigacional. Esta última construção é mais

analítica e mais perfeita. A responsabilidade do terceiro cúmplice acaba por operar com uma

tipificação de casos judicialmente decididos, nos quais se possa apontar uma especial

proximidade entre o devedor e o terceiro cúmplice, tendo dificuldades em encarar situações

novas. A oponibilidade fraca reflete esta matéria, em termos aderentes à responsabilidade civil

aquiliana.

Solução proposta: o Direito civil português dispõe das duas vias historicamente elaboradas

para o desenvolvimento harmonioso e adequado do sistema:

- da cláusula geral da boa fé (artigos 227.º, n.º1, 239.º, 334.º, 437.º, n.º1 e 762.º, n.º2),

que permite segregar deveres de conduta, sempre que a harmonia do ordenamento o exija (via

alemã);

- da cláusula geral da responsabilidade civil (483.º, n.º1), que faculta uma lata cobertura

aquiliana, como modo de prosseguir os valores básicos do sistema (via napoleónica).

Seria totalmente inexplicável que esta preferência levasse a um bloqueio: a boa fé não

funciona porque há responsabilidade e esta não opera para abrir as portas à boa fé. Teremos,

pois, de estar atentos. Na gíria nacional, a “eficácia externa” traduz tudo aquilo que, nas

obrigações, transcenda o círculo estreito entre credor e devedor, ou seja: tudo o que questione

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a relatividade pura. Mas é evidente que, nesses termos, ela abarca questões diversas, com

soluções próprias. Simplificando, iremos distinguir:

- eficácia externa latu sensu: corresponde a todos os elementos que superem a

relatividade e, designadamente, o que temos chamado a eficácia forte e média; questões como

os deveres acessórios eficazes perante terceiros ou a formação de vínculos semelhantes aos

contratuais, que respeitem a terceiros, têm solução à luz dos respetivos institutos e não devem,

aqui, interferir;

- eficácia externa stricto sensu ou própria: tem a ver com a tutela aquiliana dos créditos;

é esta a questão em aberto.

Como sempre temos defendido, não há nenhuma razão, interpretativa, histórica ou

comparatística, para negar a aplicabilidade, aos créditos, do artigo 483.º, n.º1. Não podemos

ignorar a doutrina maioritária, relativista e arcaica, mas que, na base de aportações alemãs

truncadas, pretende aparentar modernismo, e alguma jurisprudência. Esta última, que modela

a revelação das normas jurídicas, é uma fonte do Direito que devemos levar em conta, numa

dogmática realista. Teremos, pois, de a incluir, na solução a que se chegue. O artigo 483.º, n.º1

aplica-se aos critérios, quando tomados pelo prisma da titularidade. Ou seja: quando, o universo

amplo que traduz a obrigação, o terceiro interfira na ligação credor/crédito, há responsabilidade.

A doutrina da defesa aquiliana da titularidade, fortemente radicada nos setores relativistas

alemães tem, aqui, aplicação. Fica em aberto o saber se o artigo 483.º, n.º1 permite reagir

perante o terceiro que, com o devedor, contrate em termos incompatíveis com o crédito

preexistente, forçando ou incentivando ao incumprimento. Este é o grande tema que tem

ocupado a nossa jurisprudência e que a tem levado, ainda que com a recente (e correta) inversão,

que deve ser acompanhada, à resposta negativa acima apontada. Contratar, só por si, não

poderia levar ao 483.º, n.º1: os pressupostos da responsabilidade civil seriam suficientes para o

evitar: basta ver que não há ilicitude… O dever geral de respeito não tem, pois, este alcance.

Justamente neste ponto intervém a doutrina do abuso do direito, repetidamente invocada,

neste domínio, pela nossa jurisprudência, retomando uma intuição de Manuel de Andrade. O

terceiro poderia sempre contratar com o devedor: quando o faça, exerce a sua liberdade

contratual. Mesmo quando atinja direitos alheios, não há a ilicitude, explicitamente exigida pelo

artigo 483.º, n.º1. Repare-se: para que o artigo 483.º, n.º1 funcione, não basta que se atinjam

direitos alheios: é necessário que isso suceda ilicitamente e, ainda, com culpa. O abuso do direito

retira a “licitude” de quem exerça a sua liberdade contratual. Recorde-se que o abuso do direito

é uma locação tradicional par exprimir os valores fundamentais do ordenamento, veiculados,

em cada caso concreto pelo princípio da boa fé. Se o terceiro age defrontando a confiança, ou

em venire contra factum proprium ou, ainda, só para prejudicar o credor, em desequilíbrio no

exercício, comete abuso. Cessa a liberdade contratual: o seu ato passa a ser ilícito. Verificados

os demais pressupostos, entre os quais a culpa, temos responsabilidade civil. A aplicação do

abuso do direito, tudo visto, no domínio da eficácia externa das obrigações, funcionará da forma

seguinte:

- existe um contrato entre duas pessoas, A e B;

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- C, terceiro, é livre de contratar com A, o que impedirá, por parte deste, o

incumprimento da promessa;

- C não é responsável porque, embora tenha violado um direito alheio (A não agiu

sozinho!) não o fez ilicitamente: agiu dentro de uma permissão geral de contratar;

- todavia, se C penetrou no círculo de A/B, se aí obteve informações privilegiadas, se

induziu A a não cumprir cobrindo, designadamente, cláusulas penais ou outras consequências,

há abuso: estão a ser violados valores fundamentais da confiança e da tutela da materialidade

subjacente (boa fé);

- havendo abuso, cessa a permissão: revela-se, então, em toda a plenitude, a tutela

aquiliana do crédito de B (483.º, n.1);

- provada a culpa, há dever de indemnizar.

É óbvio que só em casos especiais o terceiro pode ser responsabilizado pelo que fez.

Normalmente, ele nem saberá do crédito do terceiro (ou isso não e poderá provar). Mas deve

ficar claro que, pelo Direito português, nenhum construtivismo afasta a aplicabilidade do artigo

483.º, n.º1, aos créditos. A recente viragem jurisprudencial, no bom caminho, deve, como já

sublinhámos, ser acompanhada e incentivada.

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Secção III – Especialidade E Atipicidade

31.º A Especialidade e a Atipicidade

A especialidade: as obrigações disporiam da característica da especialidade ou especificidade.

Trata-se da projeção da natureza individual da imputação das noras jurídicas: assim como um

direito subjetivo, por definição, só pode ter um titular, assim as obrigações se fixariam entre um

credor e um devedor. A complexidade subjetiva (vários credores e/ou vários devedores,

relativamente a uma mesma prestação) teria, como efeito, a multiplicação das obrigações:

tantas quanto os intervenientes, de ambos os lados. A especialidade das obrigações

corresponde a uma decorrência da lógica deôntica: a imputação das normas é individual,

reportando-se, sempre, a pessoas, singulares ou coletivas. Além disso, é uma exigência

dogmática: estamos perante uma realidade compreensiva, que deve ser tratada com a maior

precisão, uma vez que envolve deveres de conduta para todos os intervenientes. Tais deveres,

quando incumpridos, podem conduzir a juízos de censura (de culpa), os quais, de acordo com

os dados próprios da nossa cultura, são sempre individuais. Repare-se que boa parte da lógica

obrigacional, particularmente no que tange à intensidade do esforço requerido ao devedor, bem

patente na presunção de culpa (e de: licitude) que sobe ele recai, deriva da especificidade do

vínculo. Esta contrapõe-se à generalidade de certos deveres, mas lassos. A especialidade das

obrigações traduz-se, ainda, numa dimensão importante: a dimensão linguística. Justamente

por serem específicas, as obrigações são individualizadas, em termos vocabulares, de tal modo

que não haja dificuldades no seu reconhecimento. A tradução linguística de cada obrigação faz-

se, consoante os casos:

- identificando as partes;

- referindo o tipo de prestação;

- mencionando, sendo ela genérica, os traços qualitativos e quantitativos que permitam

isolá-la;

- explicitando, quando necessário para distinguir a obrigação de outras similares, a data

da constituição e/ou do vencimento ou um número de série, quando haja ambas na mesmas

circunstancias.

A dimensão linguística da especialidade das obrigações tem relevância dogmática,

interferindo no seu regime. Com efeito, a designação das obrigações – ou de cada uma delas –

foi sendo fixada ao longo da História, à medida que se foi apurando, para elas, um regime

jurídico adequado. Ambos estão interligados de tal modo que, muitas vezes, a mera

denominação invoca um regime. Summo rigore, de acordo com as boas regras, a denominação

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decorre do regime. Particularmente interessante é comprovar as derivas dogmáticas motivadas

por incidentes de denominação. A tipicidade em geral: uma determinada realidade pode ser

linguisticamente captada e comunicada através de uma indicação, mais ou menos sumária, das

suas características marcantes. Será uma realidade “típica” ou um tipo. Ainda a realidade (ou

uma porção dela) pode ser expressa com recurso a uma fórmula genérica (género ou genus

proximus) e à indicação de uma especificidade que o distinga (diferença específica ou a

differentia specifica): temos um conceito abstrato. Esta técnica pode ser aplicada ao Direito,

com importantes consequências. A norma jurídica consta de uma previsão e de uma estatuição.

Na previsão, faz-se uma descrição de certa realidade, com recurso a formulações linguísticas.

Pois bem: essas formulações podem traduzir-se numa descrição de certa realidade ou numa sua

exteriorização através de conceitos abstratos. Por vezes, aos tipos normativos também se

chama “conceitos de ordem”, enquanto os conceitos normativos serão “conceitos de classe”.

Em certas áreas, o Direito lida com medidas de tipo agressivo que podem bulir com os direitos

das pessoas. Recorre, então, a conceitos de ordem ou previsões típicas. Assim, não será viável

estatuir que as pessoas más (conceito geral) são presas mas, apenas, que quem cometer os

crimes “a”, “b” ou “c” (tipos explícitos de condutas) terá uma pena desse tipo. Na mesma linha,

também não é compaginável que se disponha: os riscos (conceito geral) devem pagar ao Estado;

antes se explicitará que quem tiver certo rendimento, obtido por tal forma, deverá pagar uma

parcela correspondente a tanto por certo (tipo de eventos e de consequências). Noutras áreas,

que suscitam diversas valorações, o Direito poderá lidar com conceitos abstratos: assim a norma

do artigo 406.º,n.º1, segundo a qual os contratos devem ser cumpridos. Nalguns casos, a própria

Constituição intervém, impondo o recurso à tipicidade previsiva. Compreende-se a especial

importância que, perante uma qualquer tipicidade, assume o determinar se se trata de uma

tipicidade imperativa ou de uma tipicidade exemplificativa. Haverá que recorrer à interpretação,

para obter a resposta. Havendo tipicidade, temos duas hipóteses a considerar:

- tipos fechados: assentam em descrições cerradas da matéria juridicamente relevantes

- tipos abertos: procedem a descrições mais lassas, as quais, embora impondo alguns

elementos, deixam os demais ao sabor das partes.

Normalmente, onde a Constituição imponha tipicidades imperativas, os tipos são

fechados, sob pena de, no limite, desampararem a mensagem constitucional. Pelo contrário:

sendo a tipicidade uma simples opção do legislador ordinário, os tipos podem ser abertos. A

existência de tipicidades imperativas tem importantes consequências de Direito. Assim, ela

envolve três pontos:

- uma descrição precisa, ainda que por remissão, da realidade que desencadeia a

estatuição;

- a existência de um numerus clausus de realidades relevantes;

- a proibição de aplicar, por analogia, as regras relativas aos tipos e às suas

consequências.

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A tipicidade implica, efetivamente, descrições precisas ou minimamente precisas da

realidade relevante, no setor considerado. Justamente por haver tipicidade, o número de tipos

é finito. Será possível, com recurso à lei, fazer a lista exaustiva de todas as ocorrências relevantes;

soi falar em numerus clausus. Finalmente, havendo tipicidade normativa, não há lugar à analogia.

Com efeito, a analogia pressupõe, sempre, uma situação carecida de regulação mas que,

concretamente, não esteja regulada (caso omisso). Ora, havendo numerus clausus, qualquer

realidade que não tenha norma aplicável não é relevante, para o setor considerado: não tem

nem devia ter. As normas típicas ou se aplicam diretamente, ou não têm aplicação. Para além

da lógica formal há, aqui, uma imposição axiológica: não faria sentido o Direito afadigar-se com

descrições típicas em numerus clausus para, depois, ver aplicar, por analogia, as normas que

previu, apenas para um setor predeterminado. Perante uma tipicidade normativa, o

ordenamento está, implícita mas eficazmente, a retirar ao juiz a capacidade para compor novas

normas de decisão ou para enquadrar situações praeter legem: essa será, apenas, uma tarefa

do legislador. Repare-se que a grande questão subjacente é a previsibilidade total das decisões

e a não-aplicação retroativa das normas. Quando se mova no âmbito do artigo 10.º, o juiz vai

resolver casos (passados) à luz de normas por ele afeiçoadas ou criadas; quando legislem, os

órgãos do Estado, nas áreas sensíveis sujeitas a tipicidades, fazem-no para o futuro. A síntese

efetuada permite ainda explicar um aspeto hermenêutico relevante. A presença de uma

tipicidade, particularmente de uma tipicidade normativa, deve ser sempre apurada pelo

intérprete-aplicador. E para isso, poderá dispor de um dos seguintes três indícios decisivos:

- a própria lei vem dizer que se vai estatuir com recurso a descrições pormenorizadas da

realidade;

- a lei proíbe a analogia: fica subentendido que haverá descrições capazes da matéria

relevante e que decorrerá um numerus clausus de descrições;

- a lei anuncia a presença de um numerus clausus, facultando, para os efeitos em jogo,

apenas as figuras que a lei preveja; corolários: as descrições previsivas serão típicas e não há

lugar para analogia.

O roteiro traçado é lógico e comporta uma adequação valorativa. No entanto, as

tipicidades podem ter densidades variáveis; os tipos fechados podem conviver com tipos

abertos, que recorrem a certos conceitos indeterminados, deixando assim ao juiz uma certa

margem de composição; as tipicidades exemplificativas podem comportar um sentido global

que se reflita no regime em presença e assim por diante. Haverá, sempre, que proceder a uma

indagação hermenêutica, devidamente amparada na evolução histórica e no Direito comparado,

para determinar a existência e o alcance de qualquer tipicidade.

A atipicidade obrigacional; tipicidades setoriais: a doutrina salienta, habitualmente, a

atipicidade das obrigações ou, pelo menos, a dos contratos. E fá-lo por contraposição com o

fenómeno inverso que se verifica nos direitos reais. A existência de um numerus clausus e de

uma tipicidade normativa é apontada em diversos ordenamentos, embora nem todos a

formulem com a incisividade da lei portuguesa. Como qualquer tipicidade, envolve os seguintes

aspetos:

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- os diversos direitos reais são típicos: correspondem a uma descrição do seu conteúdo

e não ao produto de uma classificação, c fatigo 1306.º, n.º1, epígrafe;

- há um numerus clausus de direitos reais: apenas os que constam da lei (ou fonte

equivalente), sendo possível fazer uma sua lista exaustiva;

- não é possível, por analogia, atribuir natureza real a novas figuras.

Tem interesse interpretativo e aplicativo referenciar a teleologia da tipicidade dos

direitos reais. Em termos históricos ela foi-se impondo na sequência da revoluções liberais. A

propriedade queria-se absoluta e livre, podendo circular sem entraves e, designadamente:

podendo ser acessível a quem dispusesse de meios. No tocante ao regime:

- os direitos reais são oponíveis erga omnes; assim, para que os terceiros saibam com o

que podem contar, os direitos reais hão-de assumir figurinos conhecidos ou cognoscíveis, com

facilidade;

- os direitos reais são, em regra, perpétuos: enquanto as obrigações se extinguem pelo

cumprimento, os direitos reais consolidam-se pelo seu exercício transmitindo-se por morte, em

regra sem limites; assim, melhor será que tenham uma configuração firme, dada pela lei, sem

flutuações introduzidas incidentalmente;

- os direitos reais estão sujeitos a publicidade: espontânea (posse) e organizada (registo

predial); para daí se retirar um máximo de fé pública, é conveniente que equivalham a catálogos

legais típicos;

- os direitos reais não são de funcionamento abstrato; constatam-se no terreno, isto é:

dão azo a um exercício que pode ser apreendido pelos sentidos, pelo menos parcelarmente;

para evitar confusões, melhor será que traduzam modelos pré-conhecidos;

- os direitos reais, seja emblematicamente, seja no campo das efetividades, encerram

uma parcela de soberania: dão um controlo individual e permitem afastar todos os outros desse

âmbito; assim sendo, natural parece que o Estado, para melhor poder acompanhar e fiscalizar

o que se passa no seu território, predetermine as hipóteses de aproveitamento de coisas

corpóreas.

Nas obrigações, não existe tal princípio. Mais precisamente:

- as partes podem fixar livremente, dentro dos limites da lei, o conteúdo positivo ou

negativo da prestação (398.º, n.º1);

- dentro do limite da lei, as partes podem:

a) fixar livremente o conteúdo dos contratos;

b) celebrar contratos diferentes dos previstos no Código Civil;

c) incluir, em tais contratos, as cláusulas que lhes aprouver (405.º, n.º1);

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d) reunir, no mesmo contrato, regras de dois ou mais negócios, total ou

parcialmente regulados na lei (405.º, n.º2).

Por isso, a lei pode estatuir, nas obrigações, com recurso a conceitos gerais ou de classe;

assim, já referida e fundamental norma do artigo 406.º, n.º1: o contrato (seja ele qual for) deve

ser pontualmente cumprido. Ainda por isso:

- não há um numerus clausus de obrigações; antes um numerus clausus abertus, sendo

teoricamente possível engendrar novas figuras, até ao infinito;

- nada impede a analogia: verificados os pressupostos, o artigo 10.º é plenamente

aplicável.

A atipicidade obrigacional decorre, desde logo, da acima invocada especialidade. Pois se

a obrigação, ontologicamente e no seu cerne, relaciona duas pessoas, lógico será admitir que

estas lhe possam das a configuração que entenderem mais adequada para a gestão dos seus

próprios interesse. Essa atipicidade, todavia, desenvolve-se através do contrato. Outras fontes

têm uma configuração mais estrita, podendo escapar ao controlo dos interessados. Adiantando,

ainda, que sob uma atipicidade de princípio, encontramos, nas obrigações:

- tipicidades exemplificativas: surgem na lei: desde logo, nos diversos contratos

previstos no Código Civil;

- tipicidades normativas ou imperativas setoriais: ocorrem com os atos unilaterais (457.º)

e com as situações de responsabilidade objetiva (“sem culpa”, 483.º, n.º2). Quanto a estas

últimas: algumas são abertas; outras fechadas. Também aqui podemos afirmar que as

tipicidades normativas surgem em áreas mais agressivas para a liberdade das pessoas, ficando

as tipicidades fechadas para as situações de tipo expropriativo: quiçá por exigência

constitucional.;

- tipicidades cientificas: resultante de uma técnica jurídico-cientifica de lidar com

conceitos indeterminados pois, na presença destes, e sob pena de tornar ingovernáveis e

imprevisíveis as resoluções dos casos concretos, o intérprete-aplicador, normalmente guiado

pela jurisprudência, irá compor constelações de casos típicos que permitam melhor enquadrar

as situações futuras que lhes possam ser reconduzidas, tornando previsíveis as soluções a que

deem azo. Poderemos, então, falar destas tipicidades: particularmente úteis para enquadrar a

concretização de diversos institutos, em Direito das obrigações.

- tipicidades sociais: são os tipos sociais de obrigações que, embora não dispondo de

referência legal, correspondam a situações habituais, perfeitamente reconhecíveis na sociedade.

Apesar de omissos na lei, os tipos sociais são úteis: uma vez identificados, permitem aceder,

através de várias vias, a aspetos importantes do seu regime.

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Secção IV – Confronto Com Outras Situações Privadas

32.º Obrigações e Reais

O sentido jurídico-científico do confronto: o confronto das obrigações com outras situações

privadas, designadamente os direitos reais, é um exercício académico habitual, nos escritos da

especialidade. Devemos, todavia, justificar a rubrica e apontar os seus limites. O Direito tem

pretensões de racionalidade. O seu teor é, para efeitos de comunicação e de aprendizagem,

arrumado em função de pontos de vista unitários, constituindo o sistema externo. Este, numa

conquista que remonta à superação de Heck e de outros positivistas, não é indiferente para o

plano material das soluções. Aliás: o sistema externo só por abstração analítica tem autonomia,

uma vez que todo o Direito existe, apenas, nas proposições destinadas a propiciar a sua

aprendizagem e a sua aplicação. Nestas condições, tem o maior relevo a ordenação que se dê

ao Direito Civil. Trata-se, de resto, de uma ordenação sedimentada e aperfeiçoada ao longo da

História e que se confunde com o próprio surgimento de muitas soluções. Por vezes, a

arrumação incidental de um instituto, fora da área que, ex rerum natura, seria a sua, acaba por

ter consequências no plano do regime. Para além desse interesse dogmático direto, a ordenação

civil permite esclarecer uma série de figuras de fronteira, aprontando instrumentos para

resolver questões que, de outro modo, passariam despercebidas. O Direito Civil não está na lei

ou melhor: não está apenas na lei. Muita da sua problematicidade é suscitada na periferia, no

plano das questões concretas, que o intérprete-aplicador não pode deixar sem solução. E é

muitas vezes nas fronteiras, nas terras de ninguém, ou nas zonas cinzentas, que escapam aos

especialistas, que se colocam questões do maior interesse. O confronto entre as diversas

disciplinas privadas tem, ainda, um papel formativo de primeiro plano. Dir-se-á, todavia, que as

disciplinas não são estanques: aos diversos problemas concretos há que, em regra, aplicar

normas oriundas dos vários continentes jurídicos. No entanto, isso não retira relevo dogmático

às fronteiras. Apenas obriga a conjuga-las com diversos outros elementos, de modo a poder

compor modelos de decisão diferenciados e harmónicos. O confronto das obrigações com

outras situações privadas é, no fundo, mais um patamar para expor e concretizar a Ciência do

Direito, aqui em causa.

O núcleo da distinção: no núcleo da distinção entre obrigações e reais, podemos colocar os

respetivos direitos subjetivos. O direito de crédito traduz a permissão normativa específica de

aproveitamento de uma prestação, enquanto o direito real corresponde à mesma permissão,

mas de aproveitamento de uma coisa corpórea. Assim tomada, a contraposição é natural e é

profunda, esperando-se, dela, inúmeras consequências. Com efeito, o aproveitamento de uma

conduta humana tem, prima facie, um sentido: o da pretensão dirigida a essa conduta. O

beneficiário pode exigir o cumprimento, disfrutando, depois, daquilo que ele represente. Já o

aproveitamento de uma coisa corpórea traduz-se, também prima facie, no fenómeno de gozo,

isto é: na possibilidade de, da coisa, poder retirar as vantagens (o uso e a fruição) que, pela sua

própria natureza, ela possa dispensar. Estes aspetos, eminentemente positivos, são dobrados

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pela normatividade jurídico-positiva. A permissão deixa de o ser para quem não seja beneficiário.

Por isso, no crédito, se o devedor não cumprir, o credor pode lançar mão dos meios de execução

específica ou de composição pecuniária, realizando, em última instância, valores patrimoniais

do devedor; e no direito real, se alguém se apossar da coisa-objeto, pode o titular usar da

reivindicação pedindo ao tribunal que a coisa lhe seja entregue, se necessário manu militar.

Ainda no núcleo da distinção, as situações de base configuradas são o crédito relativo à entrega

da coisa certa, pelas obrigações e a propriedade, pelos reais. Este aspeto e muito importante.

Perante as referidas situações de base, temos:

- na obrigação, o beneficiário pede ao devedor que lhe proporcione ou entregue a coisa

objeto da prestação (colaboração devida); na propriedade, o beneficiário atinge a coisa pelas

suas próprias forças, gozando-a (usando-a e fruindo-a) (inerência);

- na obrigação, o beneficiário havendo incumprimento, só pode atingir a coisa através

do devedor e na medida em que ela se encontre no património dele (mediação); na propriedade,

o beneficiário pode, se necessário manu militari, ir buscar a coisa onde quer que ela se encontre

(sequela): etiam si per milia manus abulaverit (ainda que tenha sido levada por mil mãos);

- na obrigação, o beneficiário fica em pé de igualdade com credores ulteriores à mesma

coisa; sendo o património do devedor insuficiente, procede-se a um rateio entre todos os

credores (Igualdade dos credores); havendo propriedades incompatíveis, a mais antiga leva a

melhor (prevalência do tipo I), prior in tempore, potior in iure (mais antigo no tempo, mais

poderoso no direito);

- havendo uma oposição entre a obrigação e o direito de propriedade, este leva sempre

a melhor ainda que aquela seja mais antiga (prevalência tipo II);

Em síntese, podemos dizer que, no núcleo da distinção entre direitos de crédito (de

entrega de coisa certa) e direitos reais (de propriedade), temos, frente a frente:

- do lado dos créditos, a colaboração devida, a mediação, a igualdade com os créditos

concorrentes e a vulnerabilidade ao destino jurídico do objeto da prestação;

- do lado dos reais, a inerência, a sequela e a prevalência, de tipo I e de tipo II.

Esta contraposição nuclear não se concretiza na periferia. Na verdade, verifica-se que:

- os créditos relativos à entrega de coisa certa podem ser efetivados sem as

contingências ligadas à colaboração devida e à sua mediação; invocando a probabilidade seria

da inutilização do seu direito, o credor pode, por via cautelar (381.º, n.º1 CPC) impedir o devedor

de da outras destinos à coisa;

- os direitos reais podem perder a inerência (bem como a sequela e a prevalência),

através das regras do registo; além disso, tirando a propriedade, eles tornam-se “relativos”: a

ação confessória (a ação destinada a obter o reconhecimento de direitos reais menores, como

o usufruto e a servidão) é intentada contra o proprietário e não contra terceiros ignotos.

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De todo o modo, a apresentada distinção nuclear é despicienda. Embora ela não modele

cada crédito e cada direito real, ela opera como arquétipo sempre presente, mau grado

inúmeros desvios, em toda a matéria.

Aspetos complementares: o núcleo da contraposição entre as obrigações e os reais, acima

apresentado, corresponde, de certa forma, à natureza das coisas. Temos, de seguida, aspetos

complementares, dependentes do legislador histórico, para que chamamos a atenção. São eles:

- a publicidade: os direitos reais reportam-se a coisas corpóreas. Estas são percetíveis

pelos sentidos. Logo, os próprios direitos reais, no seu exercício, são, igualmente e em geral,

percetíveis pelos sentidos. Pelo contrário, nos direitos de crédito, lida-se com meros vínculos

abstratos: apenas acessíveis ao intelecto. No seu funcionamento normal, os direitos reais (de

gozo) dão lugar à posse: o controlo material de uma coisa corpórea. A posse propicia um tipo de

publicidade, dita espontânea, à qual o Direito associa diversas consequências jurídicas. O Estado,

dada a importância deste fenómeno, organiza esquemas de publicidade artificial racionalizados:

os do registo predial. Por essa via, publicita não apenas os direitos reais de gozo, que dão azo à

posse, mas também outros direitos reais, como a hipoteca e os de aquisição. É certo que

determinadas obrigações, com relevo para os denominados direitos pessoais de gozo, também

dão azo à publicidade: espontânea e, em certos casos, racionalizada. Na origem, porém, esse

fenómeno reporta-se aos direitos reais. Diremos, assim, que a publicidade e mais um traço

diferenciador (de princípio) entre as obrigações e os reais;

- o numerus clausus: a contraposição é clara: ele aplica-se, como vimos, aos direito reais

(1306.º, n.º1) mas não às obrigações. Estas funcionam mesmo como figura residual: de acordo

com a conversão legal fixada no final do 1306.º, n.º1, o direito “real” que se situe fora do

catálogo real terá “mera” natureza de obrigação;

- a responsabilidade: pelo menos no seu núcleo matricial, é efetivamente diferente, nos

dois setores. O incumprimento de uma obrigação dá azo à responsabilidade obrigacional,

marcada pela presunção de culpa/ilicitude (799.º, n.º1). A inobservância do direito real implica

responsabilidade aquiliana (483.º, n.º1): ao lesado caberá provar a culpa do agente (487-º, n.º1);

- a diversidade jurídico-cientifica: o Direito das obrigações, ao ocupar-se das relações

entre pessoas, dos contratos e da responsabilidade civil reúne, no seu seio, o essencial do Direito

das Nações. Tem, deste modo, uma massa crítica que lhe permite um papel liderante, em termos

jurídico-científicos. Há dois séculos que, praticamente, todos os avanções práticos e todas as

descobertas jurídico-científicas ocorrem nas obrigações. Pelo contrário: direitos reais é uma

área marcada pela quietude e pelo conservadorismo. Bastará recordar o bloqueio quanto à

possibilidade de alargar o elenco clássico dos direitos reais e outras figuras, mesmo óbvias, como

o direito do locatário ou a letargia quanto a progredir, na conceção de posse, para uma conceção

objetivista mais do que evidente. O próprio estilo literário é diferente: obrigações têm um estilo

teorizador e criativo, enquanto reais soçobram num discurso descritivo.

Figuras híbridas: direitos pessoais de gozo, ónus reais e relações jurídicas reais: a

distinção entre obrigação e reais levanta especiais dificuldades, perante figuras híbridas e,

designadamente:

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- os direitos pessoais de gozo: são aqueles que proporcionam ao beneficiário o uso e a

fruição de uma coisa corpórea e que, por razões fundamentalmente histórico-culturais, não são

considerados direitos reais. O Código Vaz Serra conhece quatro dessas figuras: a locação

(1022.º), a parceria pecuniária (1121.º), o comodato (1129.º) e o depósito (1185.º);

-os ónus reais: são, em geral, deveres que impendem sobre os titulares de direitos reais.

Em sentido próprio, definimo-los como os direitos de exigir prestações positivas ou periódicas,

a titulares de direitos reais de gozo sobre um prédio. Surgem, muitas vezes, integrados em

direitos mais amplos, mas temos, porém, casos de ónus reais autónomos:

- a reserva do direito, pelo doador, de receber certa quantia sobre os bens

doados (959.º, n.º1), a qual está sujeita a registo (959.º, n.º2);

- o apanágio do cônjuge sobrevivo (2018.º, n.º1): este tem o direito a ser

alimentado pelos rendimentos dos bens deixados pelo falecido, devendo o apanágio ser

registado (2018.º, n.º3).

No ónus real, há que distinguir: as diversas prestações a que ele vai dando lugar,

prestações essas que constituem o objeto de efetivas obrigações e o direito-matriz ou direito a

fazer surgir essas mesmas obrigações. O direito-matriz – o ónus propriamente dito – traduz uma

forma de aproveitamento da coisa. Uma forma artificial, é certo: mas os direitos reais não se

limitam, hoje, aos de gozo. De facto, nos ónus reais, não haveria mediação, sendo patente a sua

natureza relativa. Todavia, surge a inerência: o beneficiário pode solicitar as prestações ao

proprietário da coisa, onde quer que este se encontre. Temos, assim, um direito real de

aquisição, direito esse que é fonte de obrigações: as obrigações propter rem;

- as relações jurídicas reais: são as que se estabelecem entre titulares de direitos reais,

com vista a resolver conflitos de vizinhança ou de sobreposição. A vizinhança é um fenómeno

sociológico e jurídico que deriva da contiguidade ou da proximidade entre prédios ou partes de

prédios (frações autónomas). Quando ocorra, o exercício de propriedade (ou de outro direito

de gozo) por um dos vizinhos pode bulir com os direitos dos outros. O Direito intervém, fixando

uma teia complexa de relações entre vizinhos, de modo a permitir uma convivência pacífica e

mutuamente proveitosa. O Código Vaz Serra, nos seus artigos 1353.º a 1375.º versa diversas

relações de vizinhança.

Sobreposição, por seu turno, é outro fenómeno típico dos direitos reais e que ocorre

sempre que, sobre a mesma coisa, incidam direitos de diferentes titulares: sejam tais direitos

homogéneos, sejam heterogéneos. De novo o Direito intervém, fixando obrigações reportadas

aos titulares em conflito, de modo a permitir a coexistência. Todas estas relações surgem entre

titulares de Direitos reais, sejam eles quais forem. Elas são inerentes às coisas em presença; mas

dão origem a obrigações de diversa natureza. Do nosso ponto de vista, têm natureza real; no

seu funcionamento, elas podem originar direitos potestativos e, ainda, verdadeiras obrigações,

também propter rem. Os ónus reais e as relações jurídicas reais seguem um regime de Direitos

Reais: submetem-se A tipicidade; podem das azo a publicidade; manifestam o fenómeno da

inerência; traduzem, ainda que sem um gozo direto, uma forma de aproveitamento de coisas

corpóreas ou, tecnicamente: uma permissão normativa de aproveitar. Já as obrigações propter

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rem que delas decorram: são obrigações que, em tudo o que não sogra inflexão, seguem o

regime geral.

Afinidades e interligações: entre obrigações e reais, para além das diferenças que temos

vindo a acentuar e a precisar há, ainda, afinidades. Desde logo, ambas as disciplinas são ius

romanum atual. Podemos, a propósito da generalidade dos seus institutos, apontar origens e

designações romanas, reforçadas através das sucessivas receções. De seguida, ambas integram

o sistema do Direito patrimonial privado, genericamente protegido através da “propriedade

privada” (62.º CRP). Por fim: obrigações e reais dão azo à Ciência do Direito civil, operando como

Direito comum por excelência. No plano das fontes, verifica-se que algumas são comuns: o

contrato e os negócios unilaterais. No fundo, isso deve-se à colonização de direitos reais pelas

obrigações: no Direito Romano, o dominium adquiria-se pelo usus e pelo decurso do tempo.

Quanto a sanções: quer obrigações quer reais dão azo à responsabilidade civil, ainda que

diferenciada. Funcionalmente: há direitos reais ao serviço de obrigações e obrigações ao serviço

de direitos reais. À medida que as sociedades se tornam mais complexas, a diferenciação de

funções e de papeis faz o seu caminho. Hoje, particularmente no tocante à propriedade sobre

imóveis, o aproveitamento do beneficiário passa por uma teia de obrigações. Digamos que, sem

as obrigações, os direitos reais não teriam conteúdo útil. Mais longe ainda: na atual vida

económica, qualquer tipo de propriedade tem, antes de mais, o papel de garantir créditos: basta

pensar na locação financeira ou na reserva de propriedade. Temos, aqui, uma

“obrigacionalização dos reais”. Mas também ocorre o inverso. As obrigações são, em si, vínculos

abstratos, enquanto a sobrevivência e o desenvolvimento das pessoas postulam o

aproveitamento de coisas corpóreas. Reais dá, às obrigações, uma substância natural e, logo,

humana. No plano prático: é raro que surjam questões “obrigacionais” e “reais” puras. Pelo

contrário, elas interligam-se, havendo que lidar com normas oriundas dos dois quadrantes.

Obrigações e reais interpenetram-se, de tal modo que, apenas por abstração, podemos, muitas

vezes, discernir as situações subjacentes. No fundo, ambas essas disciplinas traduzem um plano

comum da sociabilidade humana.

33.º Obrigações, Personalidade e Família

Aspetos gerais; bens de personalidade e de família: as obrigações contrapõe-se aos reais

num ponto, à partida, simples e estruturalmente: a obrigação visa uma conduta humana precisa,

dando azo a uma relação jurídica; o real proporciona uma coisa, sendo uma situação absoluta.

Vimos que o desenvolvimento subsequente torna esta contraposição menos clara: mas ela

existe e é importante. Saindo da dicotomia obrigações/reais, a delimitação é mais complicada.

Como foi visto, a denominada classificação germânica do Direito civil não é lógica nem é, em

rigor, uma verdadeira classificação. Os direitos de personalidade pressupõem a autonomização

de realidades atinentes à pessoa humana, nas suas diversas dimensões: biológica, moral e social.

São os bens de personalidade. Sobre eles recaem direitos, especialmente adequados e

historicamente desenvolvidos, para a tutela da pessoa: absolutos, duplamente inerentes e

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tendencialmente prevalentes. Os direitos de personalidade acolhem, em certos casos, natureza

patrimonial; e mesmo quando não a tenham podem, também em certos casos, ser objeto de

negócios patrimoniais ou com algum alcance patrimonial. Afigura-se, por tudo isso, que os bens

de personalidade podem envolver “prestações de personalidade” e, assim, ser objeto de

obrigações. A família surge como um prolongamento natural da personalidade. Ela implica

situações relativas a pessoas ligadas, entre si, por casamento, parentesco, afinidade e adoção

(1576.º). Implica relações pessoais e patrimoniais: conforme os casos, os membros de uma

família estão vinculados, entre si, em torno de valores específicos a que poderemos chamar bens

de família.

As obrigações de personalidade: já foi entendido que os bens de personalidade estariam,

pela sua própria natureza, extra commercium: não poderiam ser objeto de negócios. Hoje, sabe-

se não ser assim: o próprio artigo 81.º, n.º1 comporta a “limitação voluntária” de direitos de

personalidade, desde que não se atinja a ordem pública. Por seu turno, o artigo 79.º, n.º1 e n.º3,

relativo ao direito à imagem, admite que esta possa ser lançada no comércio. De facto, os

direitos de personalidade, como quaisquer direitos subjetivos, são espaços de liberdade e, como

tal: disponíveis. A negociabilidade dos bens de personalidade obriga a fazer distinções. Temos:

- situações não-patrimoniais fortes: o Direito não admite que os respetivos bens sejam

trocados por dinheiro: a vida, a saúde e a integridade física, por exemplo;

- situações não-patrimoniais fracas: não podem ser trocadas por dinheiro; mas o Direito

admite que sejam visadas por negócios jurídicos patrimoniais: o direito à saúde e à integridade,

quando haja acordos sobre a experimentação humana.

- situações patrimoniais: embora de personalidade, podem ser comercializadas: o nome,

a imagem ou as criações intelectuais.

Verifica-se, ainda, que as situações não carecem de contudo patrimonial. Em suma: tudo

isto depõe no sentido de ser possível a constituição de obrigações de personalidade, isto é, de

obrigações cujas prestações envolvam bens de personalidade, seja limitando-os, seja alargando

a sua esfera inicial. As obrigações de personalidade seguem o regime geral das obrigações.

Surgem algumas especificidades:

- a sua violação dá azo a uma responsabilidade civil compensatória (70.º, n.º2 1.ª parte),

por vezes com predeterminação de terceiros beneficiários (496.º);

- são imprescritíveis (298.º, n.º1);

- a sua cessação pode estar bloqueada, por haver ligação à pessoa do credor (577.º, n.º1);

- o credor pode não ser constrangido a receber a prestação de terceiro (767.º, n.º2): ela

pode prejudica-lo, dada a natureza dos bens envolvidos;

- sanção pecuniária compulsória pode não ser possível (829.º-A): quando estejam em

causa prestações que exijam especiais qualidades científicas ou artísticas do obrigado;

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- a execução específica pode, também, não ser possível, por a isso se opor a natureza da

obrigação assumida (830.º, n.º1);

- são absolutamente impenhoráveis – 822.º alíenea a), do CPC;

- podem não se extinguir por compensação – 853, n.º1, alínea b).

Tudo isto em, grosso modo, a ver com a negociabilidade limitada. No seu funcionamento,

os deveres de personalidade regem-se, no geral, pelas obrigações. Estas asseguram, ainda, a sua

proteção, através da responsabilidade civil. Quanto ao cumprimento de prestações de

personalidade: há uma dupla tutela, obrigacional e aquiliana. Lidamos, aqui, com direitos

absolutos, pelo que nem margem há para as discussões historicamente surgidas, em torno da

relatividade das obrigações e da sua eficácia externa.

As obrigações de família: o Direito da Família lida com uma teia complexa de deveres: entre

os cônjuges; entre os pais e filhos; e entre parentes. Esses deveres podem ter conteúdo pessoal

ou patrimonial: mas são reconhecidos pelo Direito, em qualquer dos casos. De um modo geral,

o Direito da família lida com relações obrigacionais, não sendo hoje correto falar-se, nesse

domínio, em “direitos à pessoa” ou “sobre a pessoa”. A matéria tende, contudo, a ser

apresentada em torno de institutos ou de estados: casamento, parentesco, filiação, etc. No

tocante aos cônjuges, o artigo 1672.º refere recíprocos deveres de respeito, fidelidade,

coabitação, cooperação e assistência. Quanto ao respeito, à fidelidade e à coabitação, a lei não

é explicita: apenas alude à obrigação de, salvo motivos ponderosos, ambos os cônjuges

adotarem a residência da família (1673, n.º2). Todavia, será possível ir mais longe, apontando

diversos deveres pessoais, em que o Direito não interfere, de modo direto. O dever de

cooperação (1674.º): “(…) importa para os cônjuges a obrigação de socorro e auxílio mútuos e a

assumirem as responsabilidades inerentes à vida da família que fundaram.” Por seu turno, o

dever de assistência (1675.º, n.º1) compreende a obrigação de prestar alimentos e a de

contribuir para os encargos da vida familiar (1676.º, n.º1). Tudo isto se efetiva através de

obrigações, submetidas ao regime geral. Mas apresenta diversas especificidades que, de resto,

resultam logo das normas exemplificadamente apontadas. A responsabilidade pelas dívidas da

família tem regras específicas, dependentes do regime de bens (1717.º e seguintes). A filiação

é, também, uma fonte de obrigações recíprocas. Na base segundo o artigo 1878.º, n.º1, compete

aos pais, no interesse dos filhos, velar pela segurança e saúde deles, prover ao seu sustento,

dirigir a sua educação, representá-los, ainda que nascituros e administrar os seus bens. Por seu

turno (1878.º, n.º2), os filhos devem obediência aos pais. De novo temos obrigações, sujeitas ao

regime geral, mas com especificidades, designadamente:

- quanto à determinação do seu conteúdo, que segue as linha axiológicas da família;

- quanto às sanções, especialmente adequadas aos bens a tutelar.

A integração de certas relações obrigacionais no Direito da família dá uma especial

coloração às posições subjetivas das pessoas envolvidas. Assim, os “direitos “ têm, em regra, o

alcance de poderes-deveres: devem ser exercidos dentro de uma certa finalidade, de modo a

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assegurar determinada função. Por outro lado, as relações de família são perpétuas, apenas se

extinguindo com a morte de algum dos intervenientes.

38.º Obrigações e direitos de autor

Aspetos gerais: o Direito de autor ou, mais latamente, o Direito sobre os bens intelectuais, é

uma disciplina civil, hoje reconhecida como autónoma A doutrina sublinha que a sua

especificidade resulta, muito vincadamente, da índole do seu objeto Numa primeira abordagem,

ele tem uma feição dupla, traduzida em dois distintos “direitos”:

- o direito patrimonial de autor: assegura que o aproveitamento económico da obra é

feito em favor do autor, pelo menos em parte;

- o direito moral de autor: permite ao criador da obra reivindicar a paternidade,

defender a integridade da obra e defendê-la, contra quaisquer eventualidades que a atinjam.

O direito (subjetivo) de autor pode ser constituído em termos dualistas (tendo em conta

os dois “direitos” referidos) ou em moldes monistas, com o primado de um ou de outro dos dois

aspetos considerados. De acordo com a boa metodologia jurídica, qualquer opção deve assentar

na prévia determinação do regime aplicável. Sucede, todavia, que o Código do Direito de Autor

(CDA) não vem dar corpo a nenhuma construção coerente. Ele foi fruto das circunstâncias tendo

evoluído ao sabor de instrumentos internacionais díspares e de diversas contingências ligadas a

problemas concretos que, bem ou mal, se pretenderam solucionar. Cabe chamar a atenção para

a existência de valorações unitárias no Direito de autor. Muitas vezes os “monismos”, os

“dualismos” e os “pluralismos” advêm de se lidar com noções não-compreensivas de direitos

subjetivos e de não se atinar na origem do problema. O direito de autor arrancou da aplicação

da ideia de propriedade às realidades imateriais. Essa conceção está, de certo modo, ainda

subjacente ao artigo 1303.º do Código Civil. Foi a pandectística alemã que, ao reservar a

propriedade para as coisas corpóreas, obrogou a repensar o tema dos direitos de personalidades,

inicialmente negados por Savigny. Na fase final do pandectismo, os direitos de personalidade

foram potenciados e enriquecidos pelo tratamento dogmático alcançado pelos direitos obre

bens imateriais, recém-conquistados para a Ciência do Direito. Trata-se de um aspeto que deve

ser enfatizado: os direitos de personalidade desenvolveram-se apoiados na prática e nas

necessidades de dar corpo aos vetores humanistas que, perante novas realidades animaram o

Direito Civil. No tocante às manifestações “parcelares” que, na periferia, animaram os direitos

de personalidade temos, em primeiro lugar, o tema das patentes. Visando explicar a tutela aí

dispensada aos seus titulares, Carl Gareis introduz a ideia do “direito individual”. Haveria, depois,

um “direito individual geral”. ´´: “(…) a ordem jurídica reconhece a cada pessoa o direito de se

realizar como indivíduo, de viver e de desenvolver as suas forças”. Neste “direito individual geral”

tem-se visto o “direito geral de personalidade” depois referido ¨por alguns pandectistas.

Paralelamente, Josef Kohler batia-se pelos direitos dos bens imateriais. Eles não dariam lugar a

uma “propriedade espiritual” e não se limitariam a possibilitar uma determinada defesa: pela

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positiva, facultariam a exploração económica de um bem imaterial. Na base, todavia, Kohler

acabaria por colocar o “direito individual”, patente em ulterior escrito sobre o direito ao nome.

Também a fotografia não poderia ser usada sem autorização do fotografado. Kohler

aprofundaria o seu pensamento a propósito dos direitos relativos a cartas-missivas. Tratar-se-ia

de um direito ao substrato geral, tendo o autor o direito exclusivo do seu aproveitamento

económico e o de preserva a matéria em jogo. O cultivo destes pontos dogmáticos era dobrado

pela análise – sempre apoiada em institutos concretos – do papel dos princípios jurídicos na

defesa das instituições e dos ideais. O progressivo domínio dogmático da “periferia” da

personalidade permitiu o esforço de abstração necessário para se alcançar a ideia de “bem de

personalidade”, base de qualquer dogmática coerente de direitos de personalidade. Estes vêm,

assim, a ser afirmados na pandectística alemã tardia, já sem dúvidas ou indecisões. Reportam-

se aos direitos de personalidade como direitos subjetivos privados e não patrimoniais. Todavia,

o desenvolvimento era ainda escasso. A doutrina e a jurisprudência subsequentes encarregam-

se disso. Hoje, o direitos de personalidade constituem um património civil nuclear, reconhecido

e pacífico. O seu papel no Direito de autor é básico e está assegurado.

O direito de autor e os direitos conexos: a evolução acima apontada é útil para melhor

surpreender a natureza do direito de autor. As considerações obtidas são aplicáveis aos direitos

conexos. O direito subjetivo é uma posição vantajosa marcada pela liberdade. O beneficiário

dispõe de uma permissão normativa de aproveitamento de um bem. Mas por razões histórico-

culturais que se projetam nas normas de hoje, essa permissão é conferida em termos

compreensivos. Tomando o exemplo universal do direito de propriedade: ele implica a

concessão de um conjunto infindo de possibilidades, totalmente variável consoante o objeto em

jogo e as circunstâncias de cada caso. A esta luz, compreende-se que a doutrina mais

aprofundada defenda um monismo do direito de autor, sem preocupações de saber se se trata

de “monismo pessoal” ou de “monismo patrimonial”. O direito de autor confere, ao titular, uma

tutela conjunta dos deus interesses espirituais e materiais. De resto, se bem pensarmos, ambos

os aspetos estão interligados:

- o desrespeito pelo “direito moral” do autor atinge a sua capacidade de gerar riqueza;

- o postergar do “direito patrimonial” fere a dignidade da obra e do seu criados.

A doutrina mais recente complementa a conceção unitária assim exposta justamente

com o reconhecimento dos direitos de personalidade patrimoniais. Poder-se-ia contrapor que

os regimes aplicáveis ao “direito moral” são diferentes dos do “direito patrimonial”. Mas

também isso sucede com o direito de propriedade: o denominado uso e fruição podem ser

concedidos a outras pessoas, em termos variáveis sem que, por isso, se introduzam elementos

de dualidade no direito real máximo. O monismo tem, de resto, vindo a ser reconhecido como

a melhor via técnica de explicar os esquemas vigentes. A interligação entre os aspetos morais e

patrimoniais dos direitos de autor, numa síntese de princípio, é aplicável, com as necessárias

adaptações, aos direitos conexos. Os direitos conexos designam as posições dos outros

intervenientes necessários para o aproveitamento da obra: executantes, artistas, produtores,

tradutores, difusores e editores, como exemplo. Rejeitando a ancestral e (nociva) tendência

para desconsiderar a comerciabilidade: o reconhecimento dessa síntese não é nenhuma

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despromoção para a espiritualidade das criações. Ocorre, designadamente, afastar a minoração

do direito de produtor, por ser uma (mera) empresa. Embora seja claro que o direito do produtor

tem uma visão patrimonial evidente, devemos admitir que não lhe são indiferentes os aspetos

“morais” envolvidos. O produtor, ao fixar uma obra, envolve o seu bom nome e acolhe a

dimensão “moral” do autor e do intérprete. A tutela da integridade da obra protege, também,

o produtor; a sua paternidade representa, para ele, um bem inestimável. Até por razões

pedagógicas, o Direito não pode “condenar” as entidades produtivas a um anátema. Em suma:

os direitos sobre bens imateriais traduzem uma síntese frutuosa, entre as dimensões “moral” e

“patrimonial”. Tal síntese previne contra cortes na realidade, que mesmo quando necessários

para efeitos de análise, devem ser superados pela ideia do conjunto. Aparentemente, estamos

num mundo diverso do Direito das obrigações, embora já se antevejam numerosas pontes.

A evolução do Direito de autor: a ideia de que o autor tem um direito sobre o produto da

sua criação exige um esforço elevado de abstração. Por isso, ela é relativamente recente. O

problema de um direito imaterial a uma obra do espírito pôs-se, inicialmente, a propósito de

obras literárias, após a invenção da imprensa. Criou-se um esquema de privilégios: o soberano

atribuía a determinado livreiro o privilégio de, em exclusivo, editar certa obra. A posição do

autor não era reconhecida. Ainda antes da Revolução Francesa, o Conselho de Estado pôs termo

a privilégios perpétuos, reconhecendo o direito do autor à obra criada. Na Revolução Francesa,

admitiu-se o princípio de que, ao autor, cabia a propriedade da sua obra, mantendo-se, nos seus

herdeiros, por um período que veio a ser alargado por leis sucessivas. Em Portugal, o tema do

Direito de autor foi espoletado pela Constituição de 1838. A matéria teve, depois, acolhimento

no Código Civil de Seabra, de 1867, em capítulo intitulado Do trabalho litterario e artístico.

Apesar de pouco desenvolvido, o Código de Seabra marcou uma nova fase no Direito de Autor.

Seguiu-se o Decreto n.º13:725, 3 de junho de 1927, que veio aprovar o regime da Propriedade

literária, scientifica e artística. Este Decreto prestou bons serviços ao Direito de autor português

e aos criadores em geral. Todavia, cedo foi ultrapassado pela evolução dos meios de reprodução

e de comunicação das obras e pelas revisões da Convenção de Berna. Assim, uma Portaria de 6

de junho de 1946 designou uma comissão encarregada de elaborar um anteprojeto onde se

fizesse uma harmonização do Direito interno comos textos internacionais e com as novas

realidades. A Câmara Corporativa ocupou-se, depois, da matéria, vindo a aprovar um novo texto,

em 24 de março de 1953. Entretanto, foi concluída em Roma, a 26 de outubro de 1961, uma

Convenção sobre direitos vizinhos do direito de autor. Tudo isto conduziu, finalmente, à

aprovação do Código de Direito de Autor, de 1966. Trata-se já de um verdadeiro Código que

colocou a matéria num patamar mais elevado. Infelizmente, não houve uma correspondência

doutrinária que acompanhasse o progresso legislativo. O Decreto-lei n.º63/85, 14 de março,

veio aprovar um novo Código. Trata-se de Direito vigente, ainda que muito alterado. Iremos

tomar nota das modificações surgidas, procurando ordenar a matéria em função das

necessidades do estudo subsequente. O Código do Direito de Autor de 1985, muito generoso,

não acautelava os direitos dos autores e de outros intervenientes, do ponto de vista destes.

Desencadeou-se uma forte reação, que levou à aprovação da Lei n.º45/85, 17 de setembro, que

alterou fortemente diversos aspetos iniciais, republicando o Código em anexo. Oliveira Ascensão,

que teve um papel importante na versão inicial, reagiu fortemente, passando, na sua obra, a

criticar a lei e a defender perspetivas redutoras, nas diversas matéria. O CDA foi

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subsequentemente, alterado por outras leis. A evolução geral das fontes legislativas ilustra uma

certa procura de equilíbrio. O Direito de autor está sob uma enorme pressão derivada dos meios

atuais de comunicação e de divulgação. Trata-se de uma vantagem cultural, se for aproveitada

nesse sentido. Mas ela envolve um risco mortal para a criação de obras. Esta dimensão deve

estar presente nas operações de interpretação e de aplicação.

O Direito de autor e as obrigações: o Direito de autor constitui, hoje, uma reforçada área de

especialização, dentro do Direito Civil. A sua ligação com o Direito das obrigações tem, todavia,

um papel de primeiro plano, que não tem sido evidentemente sublinhado. Tradicionalmente, o

Direito de autor era aproximado de Direitos Reais: o artigo 1303.º do Código Civil pressupõe-no

e manda mesmo aplicar, ao Direito de autor e à propriedade industrial, as “disposições deste

Código”, o que tem sido entendido como “disposições deste Livro(Direito das Coisas)”. Todavia,

o Direito das obrigações, de resto igualmente abrangido pela remissão do referido artigo 1303.º,

parece mais apropriado: em prejuízo por importantes aportações de Direitos Reais, como a

reivindicação. O Direito de autor reporta-se a bens intelectuais. O aproveitamento que estes

proporcionam aos autores, no plano material, só se obtém através de uma teia de obrigações.

E no plano moral: estamos no domínio dos direitos de personalidade, com os inerentes deveres

de justas (ações e omissões). Sem a técnica do Direito das obrigações, o Direito de autor paralisa.

De seguida, cumpre recordar a área de responsabilidade civil. A tutela aquiliana deve ser

complementada através das múltiplas normas de proteção e dos deveres do tráfego. A

dogmática autoralista teria tudo a ganhar com o estudo das obrigações. Finalmente, cumpre

sublinhar que o Direito de autor – como, em geral, os demais relativos a bens intelectuais – tem,

hoje, um funcionamento essencialmente contratualizado. O aproveitamento é feito através de

cadeias de entidades especializadas, com as quais há que acertar contratos e autorizações.

35.º Obrigações e relações especiais

Relações de trabalho: o próprio Código Civil define, no seu artigo 1152.º, o contrato de

trabalho. O contrato de trabalho é, depois, remetido para legislação especial (1153.º): hoje o

Código do Trabalho. As relações de trabalho são, em sentido estrito, todas aquelas que se

estabeleçam entre o trabalhador e o empregador e, designadamente, as que decorram do

contrato de trabalho. Em sentido amplo, elas abrangem as relações coletivas de trabalho, as

relações das condições de trabalho e diversas situações de ordem geral. Temos todo um

universo complexo e diferenciado, com uma cultura própria, com técnicas específicas e com

exigências crescentes de especialização. O Direito do Trabalho é, de modo predominante,

considerado uma especialização do Direito das Obrigações. É certo que, historicamente, o

Direito do Trabalho deve a sua ocorrência à necessidade humana, social e política de defender

trabalhadores, particularmente vulneráveis na sequência da revolução industrial. E nesse

sentido, foi operando uma série de instrumentos que transcendem o tradicional Direito das

condições de trabalho e Direito coletivo de trabalho. Cumprida a sua missão histórica, o Direito

do Trabalho funciona, hoje, como um Direito de pessoas, sensível à proteção destas,

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designadamente no plano dos direitos de personalidade e atenta, ainda, às realidades

empresariais. Tornou-se, deste modo, possível uma dogmática aprofundada. Na sua essência, a

relação de trabalho é obrigacional. O Direito de Trabalho é, no seu conjunto, uma grande

província autonomizada, pelas necessidades de especialização, da galáxia obrigacional. Mantém

todavia, com esta, estreitas relações. O Código do Trabalho pressupõe toda uma disciplina

obrigacional, a seguir ponto por ponto. Notamos que o estudioso do Direito do Trabalho não

pode descurar os seus conhecimentos de Direito das Obrigações. No entanto, o grau de

especialização é muito grande, pelo que não é possível improvisar, a partir do tecido

obrigacional. Paralelamente: o obrigacionista tem, no campo do trabalho, um espaço

inesgotável para procurar ideias novas e para atestar o equilíbrio das suas soluções.

Relações de comércio: a autonomização do Direito comercial, perante o civil, é muito anterior

à do Direito do Trabalho. Todavia, ela veio perder terreno, tendo mesmo desaparecido, em

Direitos de outros países. Hoje, ela tem uma natureza histórico-cultural, nos países que a

mantêm, entre os quais o nosso. As relações que se estabelecem no exercício do comércio

(subjetivo ou objetivo) são de tipo obrigacional; da mesma forma, os denominados contratos

comerciais seguem, grosso modo, o regime geral. O próprio Direito Comercial, assente no Direito

Civil e, em especial, no Direito das Obrigações, não tem qualquer preocupação em tratar, com

coerência e compleitude, o tecido normativo no qual se desenvolvem as atividades comerciais

e industriais. Surge, assim, como um “conglomerado de problemas heterogéneos”,

diferenciados do Direito comum. As tentativas de fixar uma comerciabilidade substancial não

têm tido êxito. Quanto à possibilidade de apontar princípios e regras comerciais: ficamo-nos

pela solidariedade de princípio (artigo 100.º do Código Comercial) a contrapor à parciariedade

civil (513.º), pelo regime conjugal das dívidas – 1691, n.º1, alínea d) – e pela tutela do crédito

comercial, permeável, de resto, a situações civis. O Direito Comercial, na parte em que regula o

estatuto dos comerciantes, tem natureza institucional. Quanto aos contratos ditos comerciais:

é uma especialização do Direito das Obrigações como, aliás, sucede com os diversos contratos

em especial.

Relações societárias: o Direito das sociedades emancipou-se do Direito Comercial,

constituindo, hoje, uma área autónoma. Tem, de resto, a sua sobrevivência assegurada, em

função da especificidade dos seus problemas e da diferenciação da dogmática que eles

convocam. As próprias sociedades comerciais assentam, na origem, num contrato – o contrato

de sociedade – que representa uma especialização do contrato de sociedade civil, vertido nos

artigos 980.º e seguintes. Do contrato de sociedade e, em geral, das normas legais que têm

aplicação, imperativa ou supletiva, às diversas sociedades, resultam:

- situações puramente organizativas, como as que digam respeito ao seu funcionamento;

- situações obrigacionais, que relacionam os sócios entre si, os sócios com a sociedade

e os titulares dos órgãos com os sócios e com a sociedade.

De novo temos aqui um largo campo dominado pelo Direito das Obrigações e no qual as

regras societárias, quando surjam, apenas precedem a adaptações parcelares. Podemos apontar

um fenómeno já detetado, a propósito do Direito Comercial: o da natureza fragmentária do

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Direito das Sociedades, na área não-organizatória. Ele apenas se manifesta pontualmente,

pressupondo, em geral, o sistema das obrigações, na sua plenitude.

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Secção II – Tipos De Obrigações

47.º Obrigações Genéricas

Noção e aspetos evolutivos: na vida social e económica, somos confrontados com coisas

individualizadas por características próprias, que as distinguem de todas as demais, enquanto

são idênticas a quantas pertencerem ao mesmo género. Estas últimas devem ser determinadas,

dentro do seu género, por fatores que traduzam uma quantidade. São coisas fungíveis (207.º),

a não confundir com prestações fungíveis: as que podem ser efetuadas pelo devedor ou por

terceiros. O objeto de uma obrigação pode reportar-se, dentro do universo das prestações de

entrega:

- a uma coisa não-fungível individualizada ab initio;

- a uma coisa fungível que, todavia, já tenha sido delimitada previamente, de tal modo

que se saiba, de antemão, qual é ela;

- a uma coisa fungível, determinada apenas pelo género.

A obrigação cujo objeto seja determinado pelo género diz-me genérica (539.º). As

obrigações genéricas não colocam um mero problema de objeto da sua prestação. Há que saber

como se faz o cumprimento. Está em causa todo um regime, o qual permite autonomizar o tipo

“obrigação genérica”. A simplicidade desta matéria engana: ela implica um desenvolvimento

teorético de milénios. No Direito Romano, perante stipulationes que conduzissem a obrigações

de género, quando nada estivesse determinado, podia o devedor escolher os objetos da pior

qualidade. Na hipótese de empréstimo, deveriam ser devolvidas coisas de qualidade idêntica à

das recebidas. Os imperadores Caracala e Severo, seguindo GAIO, determinaram que não

deviam ser prestadas nem as piores, nem as melhores. Finalmente: Justiniano fixou a regra da

prestação de coisas de utilidade média. Temos, pois, uma evolução lenta, em direção ao que

hoje parecerá óbvio. No Direito Romano, o devedor de débito de género mantinha-se obrigado

até que cumprisse ou até que o género tivesse (todo) vindo a perecer. Uma regra que iremos

encontrar, nos nossos dias.

Problemática atual: a primeira constatação tem a ver com o âmbito das obrigações genéricas.

Não está em causa um simples problema de compra e venda ou de determinação da prestação:

antes se joga um modelo de enquadramento das diversas obrigações que, por repousarem,

linguisticamente, em géneros, exigem uma determinação. Essa ideia de “tipo” ou de “modelo”

ideal veio a ser acolhida pela doutrina oitocentista, passando, daí, aos códigos de segunda

geração. Toda a obrigação é afetada: desde a conduta das partes, através dos deveres acessórios,

até à atuação do devedor, aos seus empenho e diligência, à transferência do risco e ao

cumprimento. As especialidades daí resultantes são inúmeras: totais. De seguida, é importante

frisar o relevo prático das obrigações genéricas. Todo o comércio por grosso segue, em regra,

essa via, à qual se abriga mesmo o comércio a retalho. Finalmente, o tema das obrigações

genéricas ocorre, fundamentalmente, no domínio do Direito da perturbação das prestações. A

individualização do objeto torna-se importante ara efeitos de cumprimento imperfeito. Ora uma

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obrigação relativa a um objeto fungível só por exceção constituirá uma obrigação específica. No

tráfego normal, lida-se com coisas fungíveis, pelo que esta matéria deve estar sempre presente.

Pergunta-se se as obrigações genéricas traduzem um modelo aplicável, apenas, quando haja

prestações de dare ou se, nas de facere, o mesmo tema pode ser suscitado. Em boa verdade,

perante uma obrigação de serviço, o objeto é, necessariamente, designado através do género.

Mesmo quando individualizado em função do devedor, apenas é possível um referência desse

tipo. A individualização, ex rerum natura, dar-se-á na execução. Por isso, também e até esse

momento, o risco corre, à partida, pelo devedor. Os modelos aplicáveis nas obrigações de

serviço não correspondem, todavia, aos historicamente apurados nas obrigações genéricas,

moldados sobre prestações de coisa. Os princípios poderão ser comuns: a sua aplicação deve,

porém, ser indicada, em cada caso concreto.

O risco: teorias de Thöl e de Jhering: a questão teórica e valorativa subjacente às obrigações

genéricas é a da determinação do risco e da sua transposição. Trata-se de um tema conhecido

pelos romanos, que nos deixaram os seus eixos básicos. O risco corre pelo dono da coisa (casum

sentit dominus); e assim, depois de perfeito o contrato transmissivo, o risco concentrava-se no

comprador. Nas obrigações romanas, uma vez que a perfeição ocorre com o cumprimento, o

risco segue pelo vencedor. Na presença de uma obrigação genérica, o perecimento de uns

quantos elementos pertencentes ao género em causa não impede o cumprimento: genus perire

non censetur ou genus non perit. Transpondo o tema para o Direito vigente: o risco corre pelo

proprietário de tal modo que, desaparecendo ou deteriorando-se uma coisa, o prejuízo fica na

esfera de quem, sobre ela, for titular de direitos. Esta solução é, em simultâneo: a mais prática

e a mais justa. Numa obrigação de dare, o risco da supressão ou da desvalorização da coisa corre

pelo titular, no momento em que a coisa seja atingida. Assim, nos contratos que impliquem a

transferência do domínio sobre certa coisa ou que constituam ou transfiram um direito real

sobre ela, o perecimento ou deterioração da coisa por causa não imputável ao alienante corre

por conta do adquirente (796.º, n.º1). Como construir esta matéria na presença de obrigações

genéricas? A questão ficou pautada por uma querela clássica que opôs, no século XIX, Thöl a

Jhering. Thöl defendeu a teoria da separação ou da individualização, enquanto Jhering

subscreveu a teoria da entrega ou do cumprimento. Na base, Thöl recorda que, pelo Direito

comum funcionava, na compra de coisa específica, a regra pela qual o comprador suportava o

risco do preço e da prestação. Para tanto, o conhecimento e a vontade das partes deveria dirigir-

se a um concreto objeto do negócio o qual ficaria, assim, perfeito, transpondo para o comprador

o risco da sua supressão. Na compra da coisa genérica, a vontade do adquirente não poderia

incidir sobre um concreto objeto da prestação. A perfeição do negócio exigiria um acordo com

o vendedor que permitisse isolar esse objeto. Preenchido tal requisito, o negócio ficaria

completo, transferindo-se o risco para o comprador. Em suma: o risco passaria para o

comprador assim que o preciso objeto da obrigação fosse separado ou individualizado de entre

o género a que pertencia, com o acordo ou o conhecimento das partes. Jhering contrapõe uma

diversa leitura. Nas obrigações genéricas, aquilo que é verdadeiramente devido é o género: de

outro modo, a obrigação seria específica, não se pondo o problema. A species apenas surgiria

aquando do cumprimento. Ora este só sobreviria quando o devedor tivesse levado a cabo tudo

aquilo que, contratualmente, lhe dissesse respeito. O risco não se transferiria, por isso, nem com

a separação nem, necessariamente, com a traditio. Isso ocorreria, antes:

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- ou com a entrega;

- ou com o envio;

- ou com a mora do credor, isto é, a recusa injustificada, por parte deste, em receber a

coisa.

Quanto à solução correta: os Direitos positivos terão uma palavra a dizer. De todo o

modo, quanto a Thöl, sempre se imporá uma observação: desde o momento em que, de uma

forma ou de outra, as partes se ponham de acordo quanto ao preciso objeto do cumprimento,

desinserindo-o do género pelo qual foi designado inicialmente, a obrigação deixará de ser

genérica. Ficaremos perante uma comum obrigação específica, que seguirá o seu regime normal.

O regime; a escolha: o Código Vaz Serra ocupa-se das obrigações genéricas nos seus artigos

539.º a 542.º, à matéria em causa, um tratamento mais amplo e cuidado do que o da

generalidade dos outros códigos. As precisões decisivas advieram de Manuel de Andrade: o risco

corre pelo devedor, a quem compete, em nome de um favor debitoris disseminado pelo sistema,

a escolha; esta deverá operar segundo critérios médios, sendo comunicada ao credor: um

negócio unilateral recipiendo, a uma indagação extensa de Direito comparado que lhe permitiu

apresentar uma proposta alargada, depois ligeiramente simplificada. Perante uma obrigação

genérica, a escolha compete ao devedor (539.º). Pode haver estipulação em contrário, altura

em que a escolha passará para o credor, para terceiro ou para credor e devedor, por acordo. Em

qualquer dos casos e não sendo o género perfeitamente homogéneo, a escolha deverá obedecer

a juízos de equidade, se outros critérios não tiverem sido estipulados (400.º, n.º1). Como

interpretar a remissão para juízos de equidade? Antunes Varela vem dizer que, “praticamente”

isso significa que nem o devedor pode prestar coisas de pior qualidade, nem o credor exigir as

melhores. Mas tal não corresponde a qualquer noção de equidade conhecida, sendo de

presumir que o legislador escolheu bem as palavras vertidas na lei (9.º, n.º3). Uma remissão

para a equidade pode ter um de dois sentidos:

- a equidade forte: implica uma decisão tomada de acordo com elementos do caso

concreto;

- a equidade fraca: a decisão baseia-se em critérios jurídico-positivos, expurgados de

exigências puramente formais.

Não faz sentido admitir que o artigo 400.º, n.º1, no coração do Direito das Obrigações,

remeta para uma equidade forte, que redundaria em critérios extrajurídicos de decisão. Fica-

nos, pois, a segunda hipótese. Que critérios jurídicos não-formais poderão ser atendidos, para

determinar uma prestação segundo juízos de equidade? A determinação do sentido de uma

prestação é matéria negocial. Cabe às partes fazê-lo. Quando escolham um género homogéneo,

está feito. Quando esse não seja o caso: deviam-no ter feito. Há uma lacuna negocial. O apelo à

equidade, neste ponto, será entendido como uma remissão para critérios substanciais: os do

artigo 239.º. E assim, partindo sempre da interpretação do contrato, haverá que atender:

- à vontade hipotética, quando comporte elementos úteis;

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- em qualquer caso e com primazia: à boa fé, ou seja, aos valores fundamentais do

ordenamento.

Por esta via, chegamos à exigência de uma escolha tendencialmente média, que melhor

assegure o equilíbrio entre as partes (materialidade subjacente) e que respeite aquilo em que,

legitimamente, as partes confiaram (tutela da confiança).

A concentração: A escolha, seja realizada pelo devedor (solução supletiva), pelo credor ou por

terceiro, não interfere, em si, com o risco. Segundo o artigo 340.º, enquanto a prestação for

possível em coisas do género estipulado, não fica o devedor exonerado pelo facto de perecerem

aquelas com que ele se dispunha a cumprir. Trata-se da consagração da velha máxima genus

non perit ou munquam perti. Só com o cumprimento, lógica e praticamente subsequente à

escolha, cessa o risco do devedor. Nesse momento opera, por excelência, a concentração:

apenas abrange a efetiva prestação efetuada. Trata-se da consagração, entre nós, da tese de

Jhering. Antes do cumprimento, a obrigação pode, de todo o modo, concentrar-se por alguma

das seguintes cinco razões (541.º):

- por acordo das partes: nessa altura, a obrigação deixará de ser genérica, passando ipso

facto a específica; depois disso, se a coisa perecer, por causa não imputável ao devedor, o risco

é do credor (796.º, n.º1);

- quando o género se extingue, ao ponto de restar apenas uma das coisas nele

compreendidas; o devedor terá de cumprir com o remanescente; caso, depois, também este

pereça, sem imputação ao devedor, opera o 796.º, n.º1: o risco do credor;

- por mora do credor: sem motivo justificado, ele não aceita a prestação ou não pratica

os atos necessários ao cumprimento (813.º); a concentração funciona, em tal eventualidade, em

torno das precisas coisas que o devedor tenha oferecido em cumprimento, num afloramento da

teoria da separação; o credor passa a suportar o risco “normal” derivado da concentração e,

ainda, o risco agravado do 815.º, n.º1, o qual inclui a impossibilidade superveniente derivada de

negligência do próprio devedor;

- por entrega, pelo devedor, ao transportador ou expedidor da coisa ou à pessoa

indicada para a execução do envio, quando se trate de coisa que, por convenção, o devedor

deva enviar para local diferente do do cumprimento (797.º, ex vi 541.º);

- pela escolha feita pelo credor ou por terceiro, depois de comunicada ao devedor ou a

ambas as partes (542.º, n.º1).

Quanto a escolha caiba ao devedor e este a faça: ele pode voltar atrás e fazer opção

diversa e isso até ao cumprimento ou até que opere outra qualquer causa de concentração. O

risco é dele. Competindo a escolha ao credor ou a terceiro: ela só é eficaz depois de comunicada

ao devedor ou a ambas as partes, altura em que se torna irrevogável (542.º, n.º1). Assim que

produza efeitos, tal escolha faz correr o risco pelo devedor, não podendo mais ser tocada sem

o consentimento deste. A escolha integra, aqui, o conteúdo de um encargo, a exercer uma única

vez. Pode, ainda, suceder que a escolha caiba ao credor. Nessa eventualidade (542.º, n.º2):

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- ou existe um prazo prefixado para que o credor a faça;

- ou tal não sucede, altura em que o devedor lhe pode fixar um prazo para que ele realize

a escolha.

A fixação do prazo da escolha do credor, pelo devedor, é um afloramento de favor

debitoris, correspondendo, ainda, à valoração do 777.º, n.º1 (obrigações puras). Dependendo

das circunstâncias, o prazo em causa deve ser razoável, para não inutilizar o direito do credor: o

de, sem prazo prévio, provocar a concentração da obrigação genérica. A escolha pelo credor é,

tecnicamente, também um encargo. Se não o fizer, a “sanção” traduz-se na devolução desse

poder ao próprio devedor (542.º, n.º2). Quando a escolha caiba a um terceiro e este a não faça,

a lei é omissa. Desde logo, há que verificar se foi fixado prazo para a escolha pelo terceiro.

Passado esse prazo, qualquer delas pode, tendo aguardado um tempo razoável, passar

igualmente à fase seguinte. Que fase? Não parece possível aplicar por analogia o próprio artigo

542.º, n.º2, deferindo a escolha ao devedor: o credor obteve o direito contratual de ver a electio

feita por um terceiro e não pela contraparte, o que pode ter sido decisivo para a sua decisão de

contratar e para o subsequente equilíbrio do contrato. Resta recorrer ao artigo 400.º, n.º2: pedir

a determinação pelo tribunal. Aplica-se, então, o 1429.º do CPC. Digamos que, por excelência, o

tribunal é um terceiro supra partes. Caso o não desempenho, pelo terceiro, derive de negligência

deste ou tenha envolvido a violação de deveres de conduta, haverá um dever de indemnizar

ambas as partes por todos os prejuízos assim causados. O ponto de partida será, naturalmente,

o de que o terceiro tenha aceitado oportunamente a incumbência.

Aspetos práticos: no tocante ao género, ele há-de estar suficientemente fixado, sob pena de

indeterminabilidade. De seguida, é importante verificar se le é homogéneo. Sendo-o, a escolha

surge relativamente inóqua; na hipótese inversa, ela representa uma importante prerrogativa

do devedor, fazendo especial sentido recorrer aos critérios (“juízos de equidade”) acima

referidos. O género pode ser mais ou menos extenso, assim se delimitando a atuação do

devedor. Quando, todavia, este deva prestar o género todo, a obrigação já será específica. A

escolha, nas obrigações genéricas, deve ser tomada em sentido amplo. Pode envolver uma

seleção simples (electio), operações de medidas diversas (mensura) ou uma designação

(demonstratio). Nos termos gerais, a escolha pode ser comunicada expressa ou tacitamente.

Quando, como é de regra, compita ao devedor, ela decorre, muitas vezes, do próprio ato do

cumprimento. De todo o modo, pode considerar-se um negócio unilateral preparatório do

cumprimento: negócio por envolver liberdade de celebração e liberdade de estipulação, uma

vez que o devedor pode escolher ou não, dentro de certas margens e, fazendo-o, ainda que

dentro dos limites do artigo 400.º, n.º1, pode decidir o conteúdo da escolha. O devedor que se

recuse a escolher quando essa operação lhe caiba vai, antes de mais, omitir o cumprimento. A

falta de escolha dilui-se, nesse nível. Caso seja possível a execução específica, caberá ao próprio

tribunal proceder ou manda proceder à escolha que o devedor inadimpliu (827.º). Para esse

efeito, dispõe o artigo 930.º, do Código do Processo Civil. A execução é, de facto, individual ou

específica. Pergunta-se se as obrigações genéricas podem respeitar a imóveis. Aparentemente,

o regime histórico dos artigos 539.º a 542.º foi desenhado para móveis. Todavia, nada impede

a sua aplicação a imóveis, sendo até bastante frequente. A obrigação é genérica, havendo que

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fazer a escolha através das competentes operações de seleção e medição. O regime das

obrigações genéricas dirige-se, como vimos, a um tipo abstrato de obrigação. Passando ao

terreno, ele vai implicar prestações secundárias, com relevo para as que presidiam à escolha e,

ainda, deveres acessórios. O devedor fica adstrito a vigiar o género, antes da escolha, e a ter de

fazer para que o negócio não se transforme numa operação aleatória, que não permita

prosseguir o fim da obrigação e a satisfação do interesse do credor. Esse regime vai, depois,

integrar-se com numerosas regras específicas. A determinação de género e as operações de

escolha podem obedecer a normas técnicas. No limite não haveria verdadeiras obrigações

genéricas, uma vez que a precisa determinação do cumprimento, a ser devidamente executada,

acabaria por não deixar margem à livre-escolha humana: tudo estaria em aplicar as regras.

Todavia, o Direito trata o período anterior à concretização como sendo de liberdade. De facto,

as obrigações genéricas implicam o descrito regime, independentemente do debate de fundo

sobre o determinismo. Até onde vai o regime das obrigações genéricas? Importa esclarecer que

a obrigação genérica não deixa de o ser depois da escolha: ela mantém-se como tal sendo,

quando muito, uma obrigação genérica concretizada. Daí resulta que as regras aplicáveis podem

ser repristinadas a todo o tempo. Esta consideração permite solucionar o tema da natureza das

obrigações genéricas: serão, por hipótese, obrigações comuns condicionadas à ocorrência de

concretização? A vontade das partes é a de contrair uma obrigação de género; não se confunde

com a vontade condicional, que faz depender um efeito jurídico de um facto futuro e incerto.

Podemos, assim, optar pela sua autonomia, histórica, cultural e dogmática.

48.º Obrigações Alternativas

Delimitação: as obrigações podem, quanto ao objeto, ser simples ou compostas: no primeiro

caso, elas têm uma única prestação; no segundo, várias. Nas obrigações compostas, podemos

distinguir:

- as obrigações cumulativas, quando todas as prestações pressupostas pelo vínculo

devam ser efetivadas, para que haja um cumprimento;

- as obrigações disjuntivas, sempre que o devedor se exonere efetivando uma das

prestações em presença (também se dizem alternativas ou de escolha).

Adiantamos também que, por via da situação alternativa, a correspondente obrigação

fica toda ela infletida, submetendo-se a um regime específico. A própria obrigação alternativa

deve ser delimitada de várias figuras próximas. Assim:

- das obrigações genéricas: nestas, objeto é designado pelo seu género e pela

quantidade; nas alternativas, são indicados dois ou mais objetos (individualizados ou genéricos),

para escolha ulterior;

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- das obrigações subjetivamente alternativas: tais obrigações implicam que o devedor

possa cumprir perante uma e várias pessoas; em regra isto leva à pluralidade ativa, dotada de

um regime próprio e que integra u outro tipo obrigacional;

- das pretensões alternativas, que ocorrem quando, perante certa situação, o credor

possa escolher entre um de vários remédios;

- da obrigação com faculdade alternativa: há apenas um objeto mas o devedor pode

substituí-lo, no cumprimento por outro;

- da obrigação condicionada: estão envolvidas prestações cuja efetivação depende de

factos futuros e incertos; não há, aqui, qualquer escolha, funcionando o regime da condição;

- da obrigação potestativamente condicionada: se não pretender um certo efeito, deve

pagar uma quantia.

As obrigações alternativas caracterizam-se por postular, desde o início, duas ou mais

prestações, das quais bastará realizar uma para configurar o cumprimento. A determinação a

prestação do cumprimento operará por escolha humana. A matéria é suficientemente

particularizada para justificar um regime próprio.

A escolha: a escolha, como foi dito, cabe, supletivamente, ao devedor. É possível às partes,

determinar que compita ao credor ou a terceiro. Qual o critério? A escolha é livre. Ao contrário

do que sucede com o as obrigações genéricas, pode o devedor (a quem caiba a escolha) optar

pela pior prestação. Cabendo ao credor, este escolherá a melhor e assim por diante.

Quando deve ser feita? O devedor terá de escolher até ao cumprimento, sob pena de,

retardando este, entrar em mora. Se o devedor não o fizer e se seguir uma exceção, manda o

artigo 548.º que o credor possa exigir do devedor que ele escolha:

- no prazo estipulado;

- no prazo fixado na lei do processo.

Não o fazendo, a escolha é devolvida ao credor. Aplica-se o artigo 803.º do Código de

Processo Civil. Quanto à escolha a realizar pelo credor ou por terceiro, remete o artigo 549.º

para o 542.º, relativo às obrigações genéricas. Aí se dispõe sobre a eficácia da escolha e sobre

as consequências de, cabendo a escolha ao credor, este não a efetivar. Assim:

- quanto à ineficácia: a escolha que caiba ao credor ou a terceiro só é eficaz quando

declarada, respetivamente, ao devedor ou a ambas as partes, sendo (depois disso), irrevogável

(542.º, n.º1);

- quanto à forma: não ter de ser feita por escrito, em virtude do princípio da liberdade

da forma;

- cabendo ao credor e não o fazendo ele no prazo estabelecido ou no que

(razoavelmente) o devedor lhe fixe, passa a escolha para este (542, n.º2);

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- o tribunal pode proferir uma condenação no cumprimento de uma obrigação

alternativa, devendo a escolha ser feita ulteriormente, nos termos gerais.

Cabendo ao terceiro e não o fazendo este em tempo devido, sê-lo-á pelo tribunal (400.º,

n.º2): operam as razões apontadas a propósito das prestações genéricas, quando se encontrem

perante tal eventualidade. A matéria é regulada no artigo 803.º, n.º3 CPC. O artigo 1429.º já foi

visto a propósito das obrigações genéricas. Pergunta-se se a escolha feita pelo devedor pode ser

revogada. A lei considera irrevogáveis as escolhas feitas pelo credor ou pelo terceiro, depois de

declaradas, respetivamente, ao devedor ou a ambas as partes (542.º, n.º1, ex vi 549.º). Trata-se

de um poder que se esgota com o seu exercício: é lógico. Mas não vemos que essa solução seja

extensível, sem mais, ao devedor. Com efeito, a escolha, sendo irrevogável, não se limita a

reduzir a liberdade do devedor: ela vai aumentar o risco do credor. Antes da concentração, a

impossibilitação não imputável de alguma das prestações não impede a obrigação,

circunscrevendo-a, apenas, a que ainda seja possível (545.º); depois disso, a impossibilitação da

prestação devida extingue a obrigação. Em consequência, uma concentração antecipadamente

provocada (apenas) pelo devedor pode desequilibrar o risco assumido por ambas as partes, o

que não é aceitável. Temos que distinguir. Na base, o devedor apenas tem de escolher aquando

do cumprimento. Só assim não será se houver cláusula diversa ou se a natureza da prestação

exigir uma prévia preparação do credor. Quando, sem necessidade, haja uma escolha

antecipada, pode ocorrer:

- um contrato superveniente, completo com a aceitação do credor: terá de ser

respeitado, por ambas as partes, deixando a obrigação de ser alternativa;

- uma declaração não vinculante que todavia, suscite a confiança do credor: há

responsabilidade pela confiança, quando não seja aceite;

- uma renuncia antecipada ao direito: é nula, por via do artigo 809.º, n.º1, em

interpretação extensiva;

- um comum ato unilateral: é revogável por quem o fez, nos termos gerais;

- uma delimitação prévia do risco: é ineficaz, uma vez que, se se impossibilitar antes do

momento o cumprimento, o credor pode exigir a prestação ainda possível.

O Direito Civil não se compadece com saídas monolíticas, apriorísticas ou conceituais.

Quanto à natureza: a escolha é um direito potestativo; cedível, em princípio e nos termos gerais.

Diz Antunes Varela que, além disso, é ainda um dever, visto ser, em regra “uma ponte de

passagem indispensável para o cumprimento. Tecnicamente, será um encargo, por esse prisma.

A escolha pode, nos termos gerais, operar tacitamente.

A impossibilidade: o Código Vaz Serra é bastante pormenorizado quanto à eficácia da

impossibilidade superveniente sobre as obrigações genéricas. Embora as soluções a que chega

já adviessem das regras gerais, o Código dedica, ao tema, três artigos (545.º a 547.º). Ocorrendo,

relativamente a alguma ou algumas das prestações, uma impossibilidade superveniente não

imputável a nenhuma das partes, a obrigação concentra-se nas prestações que ainda forem

possíveis (545.º). Caso todas as prestações se tornassem impossíveis por causas não imputáveis,

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extinguir-se-ia a obrigação, no seu conjunto (790.º). Sendo a impossibilidade superveniente

imputável ao devedor, cumpre distinguir (546.º):

- se a escolha pertencer ao devedor, cabe-lhe efetuar uma das prestações possíveis: o

credor não fica prejudicado;

- se ela couber ao credor, este fica despojado do seu direito de escolher; por isso, ele

poderá, em alternativa:

a) ou exigir uma das prestações possíveis;

b) ou pedir uma indemnização;

c) ou resolver o contrato, “nos termos gerais” (os dos 801.º, n.º2 e 802.º).

Finalmente, na impossibilidade superveniente imputável ao credor, há também que

distinguir (547.º):

- se a escolha pertence ao credor, considera-se efetuada a prestação;

- se couber ao devedor, também se considera cumprida; este pode optar, todavia, por

efetuar a outra prestação e ser indemnizado pelos danos.

Toda esta matéria poderia ser alcançada, pelos princípios gerais. Em compensação, o

Código não dispõe sobre situações de impossibilidade criadas por alguma das partes, quando a

escolha caiba a um terceiro. Pelos princípios gerais, teremos o seguinte quadro de soluções:

- sendo a impossibilidade imputável ao credor, a obrigação deve-se ter por cumprida,

salvo a hipótese do devedor optar pela prestação possível, com indemnização (547.º, por

analogia);

- sendo imputável ao devedor, pode o credor exigir uma das prestações possíveis, ou

optar pela indemnização ou, ainda, resolver o contrato (546.º, 2.ª parte, por analogia).

Pesam dois argumentos: por um lado, ninguém pode ser beneficiado pelo ilícito próprio

(334.º, proibição do tu quoque); por outro, o terceiro (apenas) tem legitimidade para escolher,

em normalidade, entre duas (ou mais) prestações. Estando em causa situações anómalas, que

envolvam danos, só o próprio pode decidir.

Função e natureza: não encontramos, na nossa jurisprudência, situações diretas de obrigações

alternativas. Todavia, elas são frequentes e importantes. As obrigações alternativas permitem

uma especial satisfação aos consumidores dando-lhes uma margem de defesa e de criatividade.

Devem ser acarinhadas. Quanto à natureza: prevalece a ideia de que se trata de um tipo unitário

de obrigação, com um regime especialmente adotado, aperfeiçoado pela História. De resto, ele

é acolhido nos “instrumentos” europeus, com escolha pelo devedor e manifesta influência

alemã. Afastam-se, pois, as hipóteses historicamente surgidas, de obrigações reciprocamente

condicionadas ou de prestações suspensas. Além das funções próprias, as obrigações

alternativas têm, ainda, um respeitável lastro cultural.

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49.º Obrigações com Faculdade Alternativa

Autonomização: remonta a Ulpiano a existência de obrigações que admitem, por parte do

devedor, uma possibilidade de substituição da prestação, aquando do cumprimento: embora

adstrito a certo cumprimento, o devedor dispõe do poder de realizar uma prestação diversa.

Enquanto as obrigações alternativas pressupõem duas prestações as quais uma se concretizará

no cumprimento (duae res in obligatione, una in solutione), as obrigações com faculdade

alternativa assentam numa única prestação a qual, todavia, pode, no cumprimento, ser

substituída (una res in obigatione, duae in solutione). Com os comentadores, passou a falar-se

em facultas alternativa, expressão que prevalece entre nós. A figura surge assente na

pandectística, sendo pacífica a parte debitoris, isto é, quando o poder de substituição caiba ao

devedor. Relsberger apurou que também poderia haver um poder de substituição a parte

creditoris, isto é: que também o credor poderia, no momento do cumprimento e apesar de a

obrigação em jogo prever um única prestação, fazer substituir a prestação devida por uma outra.

De facto e ao abrigo da autonomia privada, a faculdade alternativa do credor não levanta

dúvidas. A obrigação com faculdade alternativa distingue-se da alternativa propriamente dita

por não ser indeterminada. Pressupõe, desde o início, uma única prestação. E assim, se esta se

impossibilitar, cessa a obrigação. Não há que prever todo um conjunto de regras referentes à

escolha, à sua comunicação e à sua eficácia, sendo inaplicáveis as previstas a propósito das

obrigações alternativas. Tudo isto com uma especialidade aquando do cumprimento, pode o

devedor substituir a prestação devida por outra ou pode o credor, nessa mesma ocasião, exigir,

em vez da prestação devida, uma outra.

Funcionamento e natureza: o Código Vaz Serra não consagra as obrigações com faculdade

alternativa de forma expressa, de tal modo que o seu funcionamento deve ser procurado nas

regras gerais. Encontramos manifestações legais de obrigações com faculdade alternativa: assim

sucede com o artigo 558.º, n.º1, relativo a moeda com curso legal apenas no estrangeiro:

quando adstrita a uma obrigação desse tipo, o devedor pode, salvo cláusula em contrário, pagar

em moeda com curso legal no País. No tocante a obrigações com faculdade alternativa a parte

creditoris, a sua admissibilidade não suscita dúvidas, sendo mesmo apontado o artigo 442.º, n.º2

como exemplo. Quando assente num contrato, a determinação dos seus contornos exige uma

cuidada interpretação. Situação de fronteira é aquela em que surja uma obrigação com sinal ou

com cláusula penal. Poder-se-á dizer que o devedor tem o poder alternativo de, aquando do

cumprimento, em vez de efetuar a prestação devida, pagar sinal em dobro ou a cláusula penal.

Essa eventualidade terá de resultar do contrato. Nada dizendo (expressa ou tacitamente), não

há verdadeira obrigação com faculdade alternativa, mas, antes, a aplicação de sanções. Estas

(seja o sinal, seja a cláusula penal) têm regimes próprios. Quanto à natureza: a obrigação com

faculdade alternativa é uma obrigação simples que, todavia, apresenta, no seu conteúdo, o

direito potestativo (secundário), a parte debitoris ou a parte creditoris de proceder, no

cumprimento, à substituição da prestação. Há como que uma aceitação prévia, pela outra parte,

de uma dação em cumprimento, que venha a ser decidida por quem tenha a faculdade em causa.

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A obrigação com faculdade alternativa representa um tipo autónomo de obrigações. Embora

não previsto expressamente pela lei, ele surge como perfeitamente caracterizado pela cultura e

pela Ciência do Direito. Será, assim, um tipo científico cultural.

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53.º - As Obrigações Pecuniárias

Nota evolutiva: as regras básicas relativas ao dinheiro eram conhecidas no Direito romano. A

evolução da troca para a compra, através da introdução da moeda, ocorre em Paulo. Surgiu a

moeda: no início, ela não era contada mas, antes, pesada, de modo a determinar o seu valor

intrínseco. Depois, o Estado romano passou a, nela, apor a sua marca, de modo a atestar o valor.

O princípio do valor nominal fez a sua aparição: o dinheiro a usar nos pagamentos opera de

acordo com a valia facial aposta nas moedas utilizadas. O pagamento com moeda falsa não

liberava o devedor: este era, todavia, obrigado a restituir as espécies falsificadas. Nas obrigações

pecuniárias, tornou-se de estilo a cláusula probe dari ou probos reddere: a pagar em boa moeda.

No século IV, foi determinado o curso forçado do solidus: uma moeda de ouro criada por

Constantino e que operou, depois, durante séculos. Na Idade Média, a falta de um poder central

eficaz e a multiplicação das cunhagens levou ao desaparecimento do nominalismo. A moeda

passou a valer pelo seu teor metálico. Na Idade Média, coube ao humanista Carolus Mlinaeus

(Charles Dumoulin) formalizar a atual essência do dinheiro. Este não vale pelo seu valor

intrínseco (bonitas intrinseca) mas, sim, pelo valor extrínseco (bonitas extrinseca) ou valor

impositus, isto é: o valor legal que a moeda tenha, ao tempo da constituição da obrigação. Isto

significa que se, depois da constituição da dívida, o dinheiro de valorizou, há vantagens para o

credor; se se desvalorizar, a vantagem é para o devedor. Esta doutrina foi adotada oficialmente

por diversos Estados europeus, a partir do século VXI. As codificações não foram, no início,

unanimes. O Código Napoleão manteve a tradição nominalista. O ALR prussiano (1794) e o AGBG

austríaco (1811) conservaram o princípio do valor do metal. Todavia, a pandetística foi mais

flexível. Deve ter-se presente eu, antes da unificação alemã circulavam diversas espécies,

incluindo notas de banco de vários emitentes. Assim, veio a admitir-se a seguinte contraposição:

- obrigações pecuniárias puras: as partes podiam acordar no pagamento de certa

quantia em dinheiro, traduzida em determinada quantidade de moeda explicitada: seria uma

dívida pecuniária autêntica, uma vez que o pagamento deveria ser feito na espécie acordada,

sob pena de ora do credor;

- obrigações pecuniárias impuras: as partes fixaram uma cifra que, todavia, poderia ser

realizada sob qualquer outra espécie: caberia ao devedor escolher.

Impôs-se, apesar de tudo, o princípio do valor do curso, especialmente propugnado por

Savigny, com três escopos:

- o dinheiro deve ser avaliado de acordo com o valor facial, seja qual for a forma

(metálica ou em papel) por que se exprima;

- o dinheiro deve operar como meio de pagamento abstrato de todas as realidades

patrimoniais: compreende, em si, um poder patrimonial;

- esse valor não lhe avém do Estado mas da “crença geral” de que ele comporta esse

valor.

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O valor nominal do dinheiro e a sua ligação ao papel moeda acabou por ser firmado,

juridicamente, em meados do século XIX. Adiantamos, todavia que, dentro do ideário liberal, o

próprio Código de Seabra admitia, por acordo, esquemas alternativos que precavessem o valor

da moeda. As Ordenações, por vicissitudes várias, eram mais estritas. A regra era dobrada por

expressiva norma penal. Tais sanções não terão tido aplicação: mas mostravam o empenho do

Estado na soberania monetária.

Obrigações pecuniárias; o valor nominal: são obrigações pecuniárias aquelas cuja prestação

consista numa entrega em dinheiro. O Código Vaz Serra trata das obrigações pecuniárias de

forma tripartida. Distingue:

- obrigações de quantidade – o seu objeto traduz-se apenas por uma determinada

quantidade ou soma de dinheiro;

- obrigações de moeda específica – o seu objeto é expresso não só numa determinada

quantidade mas também na qualidade particular da moeda considerada;

- obrigações com curso legal apenas no estrangeiro o seu objeto consiste em dinheiro

que tenha curso legal noutro espaço jurídico.

Esta classificação, que resulta dos artigos 550.º e seguintes do Código Civil, dá lugar a

termos impenetráveis. De facto, as obrigações em moeda estrangeira podem também, por seu

turno, ser de quantidade ou de moeda específica. Haveria, então, que apurar uma coordenação

particular que englobe as diversas normas em presença. A regra geral relativa às obrigações de

quantidade vem referida no artigo 550.º do Código Civil, como princípio nominalista. Este

princípio vale como preceito jurídico-normativo; não como produto imanente da própria moeda.

A sua análise cabal implica a ponderação de vários aspetos que lhe estão subjacentes. Em

primeiro lugar, o princípio nominalista move-se no seio dos diversos “valores” atribuídos à

moeda. Recorde-se que tais valores podem ser:

- valor nominal ou extrínseco: imposto por lei a cada moeda, e constando, de modo

publicitado, dos exemplares que, em concreto, traduzam a moeda considerada;

- valor metálico ou intrínseco: corresponde ao valor da maéria – de metal – incluída nas

espécies monetárias, quando se pretendesse dar-lhe uma qualquer outra aplicação;

- valor de troca: traduz o poder aquisitivo da moeda, isto é, a quantidade de mercadorias

que a moeda considerada possa, efetivamente, proporcionar;

- valor corrente ou cambiário: exprime a razão existente entre a moeda considerada e

outras moedas estrangeiras; ainda aqui seria possível distinguir um valor corrente ou cambiário

oficial de um valor de mercado, consoante se atenda a câmbios oficialmente fixados pelos

bancos centrais ou instituições similares competentes ou a câmbio resultantes das leis do

mercado livre.

O princípio nominalista diz, em primeiro lugar, que nas moedas de quantidade releva,

apenas, o valor nominal ou extrínseco. Para além de mandar atender a um determinado valor

da moeda que corresponde já a uma nítida emancipação dos níveis económicos – valor nominal

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– tem ainda implícitos certos corolários que lhe dão expressão plena. Assim a moeda legal tem

um poder liberatório irrecusável pelo seu valor nominal: efetivamente, quando, pelas regras

económicas, surjam desvios entre o seu valor nominal e os outros valores acima referidos

apenas uma regra jurídica muito particular poderia dar uma certa consistência ao primeiro; tal

regra é a do poder liberatório, isto é, a faculdade reconhecida à moeda com curso legal de

provocar, através do cumprimento, a extinção das obrigações que exprima, pelo seu valor

nominal ou facial. O valor nominal relevante é o do cumprimento; pactuada uma obrigação por

certo valor e sobrevindo, depois, alterações no valor económico em jogo, é sempre pelo valor

facial no momento do cumprimento que se afere o poder liberatório em jogo. O risco das

alterações no valor da moeda corre, indiferentemente, pelos devedores ou pelos credores,

consoante o sentido da modificação; a desvalorização onera o credor; esta asserção é, na prática,

totalmente teórica: bem se sabe que o sentido geral da evolução das moedas vai no sentido da

desvalorização; a distribuição do risco operada pelo princípio nominalista faz-se, pois, a favor

dos devedores, podendo mesmo considerar-se como um dos pilares do apregoado do princípio

favor debitoris. Tudo isto pode ser retirado do artigo 550.º. Assinale-se que a introdução do euro

não perturbou minimamente o princípio nominalista. Fixou-se a regra da manutenção dos

instrumentos jurídicos anteriores. Apenas há que aplicar a taxa de conversão quanto ao nosso

escudo.

As exceções ao nominalismo: as exceções ao nominalismo dão azo a permissões legais de

atualizar as prestações pecuniárias. Genericamente previstas no artigo 551.º, tais permissões de

atualização ocorrem, por exemplo na indemnização em renda vitalícia ou temporária, nas tornas

em dinheiro quando ocorram partilhas em vida e nas doações em dinheiro sujeitas à colação e

nos encargos que as onerem ou sejam cumpridas pelo donatário. Um campo fértil em hipóteses

de atualizações é o do arrendamento. O artigo 551.º remeteu, nos casos de atualização, para

certos indicadores, procurando pôr cobro a uma viva discussão.

Obrigações em moeda estrangeira; obrigações próprias e impróprias; juros: a existência,

no Planeta, de vários espaços jurídico-económicos conduz à possibilidade de obrigações em

moeda estrangeira, também chamadas obrigações valutárias. Na obrigação em moeda

estrangeira ocorre, desde logo, um débito pecuniário, válido em face de determinada ordem

jurídica; simplesmente o objeto desse debito recai sobre uma moeda diferente da do espaço

correspondente à ordem jurídica considerada. A possibilidade, perante a ordem jurídica

portuguesa, de estipular em moeda com curso legal apenas no estrangeiro, resulta do artigo

558.º; esta disposição, embora não o disponha de modo direto, pressupõe a validade de

cláusulas a tanto destinadas. A presença de obrigações em moeda estrangeira pode advir de

estipulações:

- diretas: quando as partes insiram, nos seus instrumentos negociais, cláusulas que

imponham, como objeto de vínculo, uma moeda estrangeira;

- indiretas: sempre que o recurso a moeda estrangeira resulte de preceitos contratuais

dirigidos a outras latitudes.

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As estipulações de moeda estrangeira, seja qual for a forma que assumam, podem ainda

destinar-se a dois objetivos distintos:

- o de prevenir uma particular instabilidade da moeda nacional e, designadamente, a

evitar os inconvenientes que possam advir, para as partes, da sua desvalorização;

- o de facultar às partes o manusear de certa moeda, por razões de outra ordem.

Quando tenha lugar em países cuja moeda esteja marcada pela depreciação, o recurso

a obrigações valutárias visa, classicamente, evitar hipóteses de desvalorização; pelo contrário,

nos países de moeda forte, a utilização de moeda estrangeira anda, em regra, ligada a negócios

puramente cambiais. O recurso a obrigações em moeda estrangeira, seja qual for a forma por

que tenha lugar e um tanto de acordo com o objeto que vise, pode ainda assumir duas

configurações bem distintas, na sua estrutura como no seu regime. Pode tratar-se:

- de obrigações valutárias próprias, quando o pagamento deva ser realizado em moeda

estrangeira efetiva;

- de obrigações valutárias impróprias, quando as partes tenham pretendido utilizar a

moeda estrangeira como bitola do valor da obrigação, podendo o cumprimento ter lugar na

moeda nacional que equivalha ao quantitativo estrangeiro estipulado;

- de obrigações valutárias mistas (Manuel de Andrade), quando das partes pretendem

um efetivo cumprimento na moeda estrangeira, mas admitiram, para o devedor, a faculdade de

pagar na moeda nacional. Segundo Manuel de Andrade, estas estariam mais próximas das

obrigações valutárias próprias: de facto, fácil é verifica que as partes, nelas, pretenderam lidar

com efetiva moeda estrangeira e não, apenas, com o seu valor.

A referência a uma obrigação pecuniárias expressa em certa moeda transcende, em

muito, as meras categorias económicas subjacentes e que se prendem, como é sabido, com a

ideia de dinheiro. A obrigação pecuniária surge, como um conceito jurídico, dominado por regras

de Direito, a saber:

- o nominalismo, com os seus corolários acima examinados e designadamente, o seu

valor nominal, o seu poder liberatório irrecusável, o relevo do valor nominal referido, no

momento do cumprimento e as regras implícitas relativas à distribuição do risco em ulteriores

e eventuais modificações no valor;

- as delimitações negativas ao próprio nominalismo, formadas pelo conjunto dos casos

em que o Direito admita a atualização das prestações;

- a configuração interna da utilização da moeda no espaço jurídico considerado, a saber:

-as regras que fixem um valor concreto para a moeda em causa;

- as regras que estabeleçam as espécies principais e divisionárias;

- as regras que firmem o poder liberatório das espécies e causa;

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- as regras relativas à convertibilidade da moeda presente ou ao seu curso

forçado e aos termos em que tudo isso se processe;

- outras regras reportadas à utilização da moeda em jogo e que vão desde prazos

de validade das espécies em que se exprima até às quantidades máximas de que se

possa ser portador.

Quando as partes constituam obrigações valutárias próprias, não está em causa um

pagamento a efetivar em moeda de certa nacionalidade: há, antes, uma verdadeira remissão

para todas as regras aplicáveis à moeda estrangeira considerada, nos termos da ordem jurídica

em que ela se integre e salvo, segundo os princípios gerais, a presença de conexões sectoriais

mais fortes. Quando, pelo contrário, as partes deem lugar a meras obrigações impróprias,

apenas o valor da moeda estrangeira, em relação ao da nacional, está em causa; em tudo o mais

aplicam-se, nos termos gerais, as regras próprias da ordem jurídica a que pertença a moeda

nacional. A determinação da natureza pura ou imprópria de certa obrigação pecuniária em

moeda estrangeira constitui um comum problema de interpretação contratual. Trata-se, em

concreto, de averiguar a intenção das partes que estipularam a moeda estrangeira como objeto

das suas vinculações e, designadamente, se está em causa verdadeira moeda estrangeira ou

apenas o seu valor. Sem absolutizações, a doutrina alemã recorre a um critério de grande

oportunidade: o do local do cumprimento. Quando as partes remetam para a moeda estrageira

correspondente ao país onde o cumprimento deva ter lugar, haverá obrigação valutária própria.

Quando, pelo contrário, o cumprimento esteja previsto para o país da nacionalidade, é de crer

que apenas o valor da moeda estrangeira motivou as partes: a obrigação valutária é impura ou

fictícia. Resta apurar a situação das obrigações valutárias mistas; a categoria tem tanto maior

importância quanto é certo que a lei portuguesa a estabeleceu como regra subsidiária – artigo

558.º, n.º1. A tal propósito, houve a oportunidade de citar a opinião de Manuel de Andrade, que

merece inteiramente ser sufragada. A obrigação valutária mista, quando tenha sido acordada,

aponta para a obrigação valutária própria; tanto as partes tiveram em vista um cumprimento

em moeda estrangeira efetiva que convencionaram a moeda nacional como mera faculdade

alternativa. Quando, porém, a faculdade alternativa resulte da lei, ainda que subsidiária, há que

ir mais longe na interpretação do contrato. Muito útil é, então, o critério do local do

cumprimento. As obrigações em moeda estrangeira implicam, pois, vínculos bem caracterizados

pelo seu objeto. Em causa estão as regras jurídicas que enquadrem a moeda estrangeira visada.

Tratando-se de obrigações valutárias próprias, há que lidar com o conjunto das regras relativas

à moeda estrangeira em jogo; sempre, porém, que haja meras obrigações impróprias, apenas o

valor da moeda estrangeira releva para o vínculo considerado. As obrigações em moeda

estrangeira vencem juros de acordo com a lei nacional respetiva. Esta é a solução que defende-

mos e que veio a ser acolhida na jurisprudência. Se o pagamento ocorrer em moeda nacional, a

jurisprudência tem apelado às taxas de juros do País. Em rigor, há que ver quando se faz a

conversão: se for ab initio, vale a taxa nacional; se for no momento do pagamento, aplica-se a

estrangeira.

Operações cambiais; evolução; a liberalização: a noção de operação cambial deriva, hoje,

do artigo 3.º do Decredto-Lei n.º 295/2003, 21 novembro. Segundo esse preceito:

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1 – São consideradas operações cambiais:

a) A compra e venda de moeda estrangeira;

b) As transferências de ou para o exterior expressas em moeda estrangeira,

para liquidação de operações económicas e financeiras com o exterior;

2 – São equiparadas a operações cambiais:

a) A abertura e a movimentação de contas em território nacional, nos livros

das instituições autorizadas, em nome de não residentes;

b) A abertura e a movimentação de contas em território nacional, nos livros

das instituições autorizadas, em nome de residentes expressas em moeda

estrangeira, bem como em unidades de conta utilizadas em pagamentos ou

compensações internacionais;

c) A abertura e a movimentação no estrangeiro de contas de residentes.

Em suma: operações cambiais são fundamentalmente operações relativas a dinheiro não

nacional, sendo-lhe ainda equiparadas operações com não residentes. O artigo 8.º do Decreto-

Lei n.º 205/2003 consagra a liberdade de contratação e de liquidação de operações económicas

e financeiras com o exterior. Antes não havia tal liberdade. O artigo 10.º do mesmo diploma

apenas autoriza o comércio de câmbios às instituições de crédito e às sociedades financeiras

para tanto habilitadas. Pertence a uma tradição nacional, que remonta ao século XIV e às guerras

da independência, a ideia de um monopólio estadual do tráfego cambiário. Ao longo do tempo,

a ideia foi evoluindo, acabando por se abrir o comércio aos banqueiros privados.. Mas, ao sabor

das crises, cedo se regressou a um controlo estadual, através do Banco Central, dessas

operações. A liberalização subsequente foi promovida pela integração europeia, económica e

monetária. Após a revisão o Banco de Portugal manteve o seu papel na regulação do mercado

cambial, supervisionando as entidades autorizadas a exercer o comércio de câmbios. A

intermediação dessas entidades manteve-se obrigatória. Não obstante, os pagamentos a

residentes, por não residentes, podem ter lugar em moeda estrangeira assim como é facultada

aos residentes. Sem prejuízo dos poderes prudenciais do Banco de Portugal e demais

autoridades com competência cambiária, podemos considerar que as operações cambiais

regressam, entre nós, ao Direito privado, comum, comercial ou bancário. No fundo, elas

traduzem um modo de atuação jurídica, em moeda estrangeira suscetível de enformar

quaisquer contratos. A dogmática das obrigações pecuniárias em moeda estrangeira dobra,

assim, as regras próprias dos diversos atos. Podem os particulares estipular, licitamente, moeda

estrangeira (ou sem curso legal), honrando, depois, as suas obrigações nessa mesma moeda.

54.º - Os Juros

Aspetos geras; a sua legitimidade: a obrigação de juros ou, simplesmente, os juros,

correspondem a uma remuneração pelo uso do capital alheio. Tradicionalmente, o seu

montante calcula-se aplicando uma taxa ao montante de capital em dívida, taxa essa que, hoje,

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opera em base anual. No Direito romano praticava-se a centésima usura: 1% ao mês ou 12% ao

ano. A obrigação de juros pressupõe, assim uma outra – a de capital. Posto isso, ela é

determinada em função do montante desta, da sua duração e de uma determinada relação que

se estabelece entre elas: a taxa, em regra, como foi dito, de base anual. A prestação de juros

não tem de ser pecuniária; é-o, porém, em regra. A questão da legitimidade dos juros está na

base da maior discussão existente no seio do hoje chamado Direito Bancário. O Código Vaz Serra,

na sua versão original, baixou a taxa legal dos juros civis para 5%. O artigo 1146.º estabelecia os

limites máximos: 8% e 10% consoante houvesse, ou não, garantia real. Porém, logo em 1973 e

com um agravamento após 1975, iniciou-se um processo inflacionista vincado. Alterou-se o

artigo 539.º, n.º1 do Código Civil, de tal modo que a fixação da taxa de juros legais passasse a

ser feita por portaria conjunta dos Ministros da Justiça e das Finanças e do Plano. E de facto,

logo a Portaria n.º 447/80 fixou essa taxa de 15%; a Portaria n.º 581/83, 18 maior, em 23%;

finalmente, no campo civil, a Portaria n.º 291/2003, 8 abril, fixou a taxa em 4%. Quanto ao

campo comercial, há a observar o aviso n.º 9944/2012, 2 julho, mantém a taxa em 8%. Quanto

aos limites das taxas de juros: mercê da redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 262/83, 16

junho, o artigo 1146.º, n.º1 do Código Civil fixou, como imites para as taxas de juros, a taxa legal,

acrescida de 3% e de 5%, consoante houvesse, ou não, garantia real, cifras essas que

ascenderiam a 7% e 9%, na hipótese de cláusula penal – idem, n.º2. Desenha-se, hoje, uma certa

tendência para liberalizar, em geral, a temática dos juros. Os Estados e os bancos centrais

dispõem de fórmulas indiretas mas eficazes para gerir a política de juros, enquanto o Direito civil

e as leis de tutela dos consumidores podem, em concreto, resolver as situações injustas.

Modalidades; anatocismo: os juros são suscetíveis de diversas classificações. Assim, temos

juros voluntários e juros legais, consoante resultem da vontade das partes ou, diretamente, da

lei; juros remuneratórios e juros de mora, conforme visem a retribuição do capital mutuado ou

o ressarcimento dos danos criados pela mora na restituição; juros compensatórios e juros

compulsórios, quando pretendam, respetivamente, repor a degradação do capital devido ou

incitar o devedor ao pagamento; juros convencionados e juros legais stricto sensu, em função

da natureza pactuada ou não pactuada das respetivas taxas. Classificação importante é a que

separa os juros em civis, comerciais ou bancários, em função dos intervenientes na operação.

Anatocismo, é a prática que consiste em fazer vencer juros de juros. Trata-se de um esquema

que permite multiplicar a taxa efetiva de certa operação, pelo que ela é valorada com alguma

reserva, pela lei. O artigo 560.º só permite o anatocismo por uma de duas vias – n.º1:

- ou por convenção entre as partes, posterior ao vencimento;

- ou mediante notificação judicial feita ao devedor para capitalizar os juros vencidos ou

proceder ao seu pagamento, sob pena de capitalização.

O n.º2 do mesmo preceito só admite a capitalização de juros correspondentes ao

período mínimo de um ano. Porém, o n.º3, ainda da norma em jogo, considera inaplicáveis todas

as apontadas restrições “… se forem contrárias a regras ou usos particulares do comércio”.

Temos, por aqui, uma porta aberta ao anatocismo bancário abaixo referido. No setor

cooperativo, dados os fins não lucrativos que devem imperar, o anatocismo é considerado

vedado pela jurisprudência. No campo bancário, tem-se defendido o anatocismo em função de

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um uso, aí invocado. Tal uso deve, de todo o modo, ser alegado e provado, em concreto: a

posição básica do Direito privado é, perante o anatocismo, de desfavor, sendo certo que ainda

há poucos anos ta uso não estava radicado. O artigo 5.º, n.º6 do Decreto-Lei n.º 344.º/78, 17

novembro, na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 204/87, 16 maio, a contrario, permite a

capitalização de juros correspondentes a um período igual ou superior a três meses: nos termos

gerais haverá que, após o vencimento, concluir um acordo, nesse sentido.

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CAPÍTULO VI – OBRIGAÇÕES PLURAIS

55.º Quadro Geral E Evolução

As teorias da contitularidade; o concurso: em Direito, diz-se que há contitularidade ou

comunhão quando, relativamente a um mesmo objeto, surjam dois ou mais titulares. O

problema é especialmente vincado em Direitos Reais, dada a visibilidade da coexistência de

vários interessados relativamente à mesma coisa. Para explicar a contitularidade, têm sido

apresentadas quatro teorias:

- a teoria das partes intelectuais: cada contitular teria um direito individual sobre quotas

abstratas relativas ao objeto em causa. O direito subjetivo delimita-se pelo seu objeto, não o

contrário. Ora, aqui, teríamos uma realidade que adviria, precisamente, da configuração do

direito. Além disso, a “quota ideal” não pode ser entendida como uma prestação, o que tiraria

substância ao crédito aqui em causa e, logo, à obrigação que o abranja;

- a teoria do direito único, com vários titulares: na comunhão, dois ou mais titulares

possam ser encabeçados no mesmo direito. Não pode ser: a menos que se introduza aqui, uma

pessoa coletiva, e seja qual for a noção defendida, o direito subjetivo é sempre individual.

Inverter essa lógica é pôr em crise as noções de direito subjetivo e de personalidade jurídica sem,

com isso, nada explicar;

- a teoria da pessoa coletiva: havendo comunhão, os diversos titulares funcionam, em

conjunto, como uma entidade própria diferente de cada um dos presentes. Seria, em suma, uma

pessoa coletiva autónoma. Esta orientação não tem, em si, nada de ilógico. Cabe apenas

perguntar se o regime aplicável às diversas comunhões tem algo que se aproxime das regras das

pessoas coletivas. A resposta é negativa. Embora nalguns casos se possa fazer uma aproximação

à personalidade rudimentar, as pessoas em comunhão serão tratadas, pelo Direito, como sendo

individuais e autónomas;

- a teoria do concurso de direitos: nada no direito subjetivo exige a exclusividade do

objeto. Uma mesma realidade, seja uma coisa corpórea, seja uma prestação, pode ser objeto de

direitos concorrentes. Caberá, depois, ao Direito fixar um modus vivendi. Este terá em conta a

natureza homogénea ou heterogénea de direitos e, ainda, as diferenças qualitativas que possam

existir. Esta construção pode ser aplicada às obrigações, seja no polo ativo (vários direitos sob a

mesma prestação), seja no passivo (várias adstrições à mesma prestação). Recordemos que as

condutas são individuais e que as sanções são, também, individuais. Deste modo, conseguimos

uma boa correspondência com as realidades sociais e culturais.

A mão-comum: uma variante marcada da pluralidade obrigacional seria dada pela ideia de

titularidade em mão-comum. A mão-comum fica muito próxima da personalidade coletiva; não

se deixa, porém, caracterizar perante o Direito vigente, a não ser aproveitando figuras

dogmáticas autónomas, como a comunhão conjugal, a comunidade de herdeiros ou a própria

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sociedade. No tocante às obrigações, ela surge ainda em domínios que, entre nós, estão

personalizados. Podemos falar em pessoas rudimentares. De todo o modo: a mão-comum, a

existir, dá azo a obrigações de tipo singular e não plural. A questão estará mas em explicar o

sujeito, que parecerá uma pessoa coletiva, do que a obrigação em si. O problema pode, de resto,

ser alargado à ideia de “parte subjetivamente complexa”: mais um fator de relativização da

personalidade coletiva.

O Código Vaz Serra: o Código Vaz Serra reparte o tema das obrigações por duas secções,

dentro do capítulo dedicado às modalidades das obrigações. As obrigações solidárias arrumam-

se, por seu turno, em três subsecções:

“- secção II – Obrigações solidárias (512.º a 533.º);

- secção III – Obrigações divisíveis e indivisíveis (534.º a 538.º).”

Devemos ter presente que, à solidariedade, se contrapõe a parciariedade. Todavia, o

Código vem tratar as obrigações parciárias a propósito das divisíveis. Ao longo do Código surgem,

ainda, outros preceitos que referem a pluralidade das obrigações ou que, para ela, remetem:

especialmente quanto à solidariedade.

56.º Obrigações Parciárias

Noção e modalidades: a obrigação plural diz-se parciária quando o credor só de todos os

devedores possa exigir prestação integral (parciariedade passiva), quando só todos os credores

possam pedir, ao devedor, a totalidade da prestação (parciariedade ativa) ou quando apenas

todos os credores possam solicitar o integral pagamento, desde que o façam a todos os

devedores (parciariedade mista). Nas obrigações parciárias, é fundamental saber se a prestação

é divisível ou indivisível. Sendo divisível, o fracionamento do esforço necessário para o

cumprimento opera antes deste, de tal modo que:

- o credor só possa exigir, a cada devedor, a parcela do cumprimento que lhe compita,

na parciariedade passiva;

- o devedor só possa exonerar-se pagando, a cada credor, a parcela que lhe caiba, na

parciariedade ativa.

Sendo indivisível, o credor apenas de todos os devedores pode exigir o cumprimento,

salvo se houver solidariedade: altura em que poderá exigi-lo somente a um deles (535, n.º1).

Ainda dentro das prestações indivisíveis, particularmente na presença de parciariedade, há que

contrapor:

- prestações que possam ser executadas por um único dos co-devedores: a prestação,

embora indivisível, pode ser prestada pelos diversos co-devedores, que repartirão o esforço

necessário, ou, apenas, por um deles;

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- prestações que requeiram a cooperação entre todos os devedores: reportan-se às

obrigações internamente diferenciadas, isto é: as obrigações cuja execução exige uma

cooperação entre diversos devedores especializados.

Presunção de igualdade, beneficium divisionis e supletividade: o regime da parciariedade

vive dominado por três regras básicas:

- a presunção de igualdade de partes ou quotas: havendo pluralidade, presume-se que

os vários credores ou os vários devedores têm, na obrigação, partes iguais. Assim, não será se,

da lei ou de um negócio jurídico, resultar uma proposta diversa (534.º, 1.ª parte). Caberá aos

interessados provar os competentes factos constitutivos, por isso se falando em presunção de

igualdade. Esta regra tem, ainda, implícito um dever acessório para as partes: até que se prove

o contrário, as partes plurais devem ser tratadas como se tivessem quotas iguais, no crédito ou

no débito, conforme os casos. Tratando-se de herdeiros do devedor, a presunção de igualdade

cessa depois da partilha: as partes são fixadas proporcionalmente às suas quotas hereditárias,

nos termos do artigo 534.º, 2.ª parte;

- o beneficium divisionis: conhecida no Direito Romano, esta regra leva a que o credor

só possa exigir, a cada devedor, a parcela que lhe caiba: se a exigisse in totum, o devedor

demandado poderia excecionar o beneficium divisionis. Paralelamente, na parciariedade ativa,

cada credor só pode pedir a sua quota-parte; demandando ao devedor pelo total, este

contraporá o beneficium. Este benefício tem ainda um papel da maior importância: afasta a

regra da integralidade da prestação (763.º): mesmo quando divisível, a prestação deve ser

efetuada por inteiro, não tendo o credor o dever de aceitar prestações parciais. Quando, pela

frente, tenha vários co-devedores, o credor ficará ciente de que o cumprimento pode ser

fracionado. Torna-se importante, perante uma situação de pluralidade, determinar se a

prestação é divisível. Primeiro: objetivamente; caso a divisão implique prejuízo para o credor,

ela já não será opção. Depois: subjetivamente; havendo um acordo estipulando a integralidade

da prestação, será necessário verificar, pela interpretação, se ele equivale a uma ideia de

solidariedade, se ele convive com a parciariedade ou se ele deixa de se aplicar perante uma

pluralidade superveniente;

- a aplicação supletiva: haja ou não divisibilidade da prestação, a parciariedade tem

aplicação supletiva, isto é: funciona sempre que um preceito específico da lei ou um acordo das

partes não imponham a solidariedade (513.º). Trata-se de uma regra civil importante, inversa à

que funciona no Direito Comercial (100.º Código Comercial) e que dá corpo ao favor debitoris.

Prestações indivisíveis: o Código Civil comporta várias regras relativas às obrigações parciárias

com prestações indivisíveis: quatro os cinco artigos dedicados à parciariedade (535.º a 538.º).

Bem se compreende: trata-se de área que, pela natureza das coisas, pode proporcionar mais

dúvidas. A norma básica consta do artigo 535.º, n.º1: havendo pluralidade de devedores e uma

prestação indivisível, esta só pode ser exigida de todos, salvo se houver solidariedade: ex

contratu ou ex lege. A mesma regra aplica-se quando a pluralidade resulte de sucessão

hereditária (535.º, n.2). Pode a obrigação indivisível e parciária extinguir-se apenas em relação

a alguns ou algum dos devedores: designadamente por remissão ou por confusão, hipóteses em

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que os artigos 836.º, n.º1 e 870.º, n.º1 remetem, expressamente, para o 536.º. Nessa altura,

cabe ao credor exigir a prestação (por inteiro) aos restantes obrigados, desde que lhes entregue

o valor da parte que competia ao devedor ou devedores exonerados (536.º). Essa entrega deve

ser feita simultaneamente ou o devedor (ou devedores ) instados podem recusar, usando a

exceptio daí resultante. Pode ainda a prestação indivisível tornar-se impossível por facto

imputável (apenas) a algum ou alguns dos devedores (537.º). Dispõe o artigo 537.º: ficam os

outros exonerados. Tudo opera, pois, como se um terceiro tivesse impossibilitado a prestação.

Aplicar-se-á, depois, o regime da impossibilidade superveniente: imputável ao devedor que lhe

tenha dado azo (801.º, n.º1) e não-imputável aos restantes (790.º, n.º1). Naturalmente: todos

os danos causados deverão ser indemnizados, pelos responsáveis. Se a obrigação fosse solidária,

ninguém ficaria exonerado: o próprio escopo da solidariedade o exige. Havendo pluralidade

parciária ativa com prestação indivisível: qualquer dos credores pode exigi-la por inteiro; mas o

devedor, enquanto não for judicialmente citado, só perante todos se pode exonerar (538.º, nº1).

Significa isto que a obrigação parciária ativa com prestação indivisível, havendo citação do

devedor por um dos credores, se torna, relativamente a este, solidária. O regime explica-se: a

assim não ser, o credor ficaria dependente dos demais o que, sendo a prestação indivisível, o

privaria de quaisquer vantagens. Naturalmente: recebendo a prestação por inteiro, o credor terá

de fazer contas com os restantes.

Natureza; deveres acessórios: as obrigações parciárias são obrigações plurais: diversos

sujeitos ativos, passivos ou ativos e passivos, vários créditos, débitos ou créditos e débitos e uma

única prestação, com uma também única obrigação complexa. Ao contrário do que sucede

havendo solidariedade, a repartição do esforço ou das vantagens faz-se antes do cumprimento.

Pergunta-se, todavia, se sendo a prestação divisível, não haverá antes tantas obrigações quantas

as parcelas resultantes da repartição. A resposta é negativa. Com efeito:

- ao conjunto plural aplica-se o mesmo regime; apurar várias obrigações poderia

conduzir a derivas;

- a designação linguística é una; ora conhecido o papel constitutivo da linguagem, esse

fator não é despiciendo;

- a divisão é potestativa: pode não ser invocada; de resto, muitas vezes, não o será;

havendo confiança, o devedor parciário paga por inteiro, fazendo depois contas com os seus

parceiros.

Na pendência da obrigação, todas as partes são envolvidas por deveres acessórios

tendentes a salvaguardar a materialidade em jogo. Assim, os envolvidos devem acatar os

deveres de segurança, de lealdade e de informação que se mostrem convenientes.

Particularmente relevante será a necessidade de se manterem mutuamente informados sobre

as vicissitudes que possam afetar o vínculo obrigacional em jogo.

57.º Solidariedade Passiva

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Noção: há solidariedade passiva ou obrigação in solidum quando, numa obrigação plural (512.º,

n.º1, 1.ª parte):

- cada um dos devedores responda pela prestação integral;

- e esta, sendo efetivada, a todos libere.

Os dois requisitos têm o seu papel: pode alguém convencionar, com dois deveres e em

separado, a mesma prestação; não há solidariedade pois, embora possa exigir, a qualquer deles,

a prestação integral, o cumprimento, por um deles, não libera o outro. A solidariedade passiva

pode reportar-se a qualquer tipo de obrigação: de facere ou de dare. A hipótese natural é a de

se tratar de prestações pecuniárias. Pode ainda suceder, sem prejuízo para a solidariedade, que

os devedores:

- estejam obrigados em termos diversos;

- apresentem distintas garantias.

Em tal eventualidade, a repartição inigualitária far-se-á por via do regresso, enquanto

distintas garantias manifestar-se-ão quando acionadas. De todo o modo, o artigo 516.º fixa uma

presunção de igualdade, quanto à posição dos devedores. A solidariedade passiva só existe

quando resulte da lei ou da vontade das partes (513.º).

Quanto à lei, temos:

- o artigo 100.º do Código Comercial, que leva a uma regra supletiva de solidariedade,

no tocante às obrigações comerciais, a qual tem aplicação no campo cambiário;

- o artigo 467.º, quanto à pluralidade de gestores;

- os artigos 497.º, n.º1 e 507.º, n.º1 e n.º2, quanto à obrigação de indemnizar; aqui

prevalece um juízo de favor em prol do lesado, que justifica a solidariedade;

- o artigo 649.º, n.º1, quanto à pluralidade de fiadores;

- o artigo 997.º, quanto aos sócios em sociedades civis puras;

- os artigos 1135.º, 1139.º e 1169.º, quanto aos comodatários e aos mandantes com

interesse comum;

- o artigo 1695.º, quanto aos cônjuges, por dívidas comuns.

Solidariedades impróprias ou não autenticas: na solidariedade passiva encontramos uma

obrigação, uma prestação e vários devedores. Encontramos situações semelhantes, mas que se

distinguem:

- por haver vários distintos;

- por não ser possível, ab initio, pedir a prestação a qualquer um dos devedores.

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Podemos, a tal propósito, falar em solidariedades impróprias ou não-autenticas. O

problema já tem sido referido, na nossa literatura: muitas vezes usa-se solidariedade para

exprimir uma confluência de situações passivas, que não se reportam no mesmo vínculo. Assim

sucede no caso da fiança: o fiador garante a obrigação principal (627.º, n.º1), mas a sua

obrigação é acessória (627.º, n.º2) e, logo, independente. Tem um regime decalcado do da

principal, justamente pela acessoriedade. Mas o fiador tem o benefício da exclusão (638.º): pode

recusar o cumprimento, enquanto não se mostrarem excluídos todos os bens do devedor, sem

se obter a satisfação do credor. E mesmo quando haja renúncia: mantém-se a diversidade de

regras. Um caso claro de responsabilidade solidária imprópria é o da responsabilidade

subsidiária. Esta só funciona de esgotadas as possibilidades do devedor principal: opera o

beneficium excussionis só que, aqui, sem um vínculo específico de fiança. Na mesma linha,

podemos referir a reversão: no domínio fiscal, mostrando-se insuficientes os bens sociais, pode

a execução reverter contra os gestores: estes são solidariamente responsáveis entre si e,

subsidiariamente, responsáveis pelas dívidas fiscais da sociedade. O regime do Código Civil é,

sempre, a última instância legal sobre toda esta matéria. Todavia, haverá que, caso a caso,

indagar sobre as eventuais especificidades dos vínculos existentes. De todo o modo, mantém-

se a regra de que apenas por lei podem surgir situações de “solidariedade imprópria”.

Relações externas: na técnica da solidariedade passiva, usa-se “relações externas” para

traduzir o relacionamento entre os codevedores e o credor. A matéria surge no Código Civil, em

certa desordem, cabendo-lhe dar uma sequência. O devedor solidário pode ser demandado pela

totalidade da dívida (519.º, n.º1): mesmo quando divisível, ele não pode opor o beneficium

divisionis (518.º, 1.ª parte). Pode o devedor chamar os outros à demanda (518.º, 2.ª parte e

517.º, n.º1), assim como pode o credor demandar, em conjunto, os devedores solidários (517.º,

nº1): nem por isso aquele a quem tenha sido impedida a totalidade da dívida se libera. A

possibilidade de demandar qualquer um dos devedores solidários pela totalidade da dívida não

é prejudicada pelo facto de ultrapassar a quota do interpolado. Todavia, demandando um dos

devedores pela totalidade da dívida, fica o credor inibido de proceder judicialmente contra os

outros pelo que, primeiro, tenha pedido (519.º, n.º1, 2.ª parte). Uma vez demandado, o devedor

solidário pode defender-se (514.º, n.º1):

- pelos meios que pessoalmente lhe compitam: meios de defesa pessoais;

- pelos meios comuns a todos os codevedores: meios que afetem o vínculo na sua

totalidade: a sua nulidade, a prescrição do crédito ou a sua extinção pelo cumprimento ou por

qualquer outra forma (523.º). Ocaso julgado entre o credor e um dos devedores é oponível pelos

devedores contra o credor, desde que não se baseie em fundamento que respeite, apenas,

àquele devedor (522.º).

Se um dos devedores tiver um meio de defesa pessoal contra o credor, este não fica

inibido de reclamar dos outros a prestação integral, ainda que esse meio já lhe tivesse sido

oposto (519.º, n.º2). É lógico: tal meio de defesa não atinge a obrigação, no seu todo, a qual

pode ser atuada contra os demais devedores. Quando a prestação se torne impossível por facto

imputável a um dos devedores, todos os outros são responsáveis pelo seu valor (520.º, 1.ª parte).

Essa regra é importante, porque mostra que a solidariedade se alarga aos sucedâneos da

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prestação principal. Assim, quando haja solidariedade nas obrigações resultantes de um

contrato e sobrevenha o seu incumprimento definitivo, ela prolonga-se na competente

indemnização. Todavia, quando a impossibilidade provocada por um dos codevedores provoque

danos que excedam o valor da prestação, apenas o codevedor em causa responde pela sua

reparação; sendo vários, fazem-no solidariamente (520.º, 2.ª parte). A satisfação do interesse

do credor – o 523.º especifica: por comprometimento, dação em cumprimento, novação,

consignação em depósito ou compensação – libera todos os devedores. O credor pode escolher

o codevedor a quem queria exigir a totalidade da prestação; de igual modo, pode qualquer

devedor, chegado o momento, oferecer-se para cumprir por inteiro: o credor deverá aceitar,

sob pena de incorrer em mora. Quando o faça, deverá ex bona fide, avisar os outros, não vá

haver duplicações. O credor que renuncie à solidariedade a favor de algum ou alguns dos

codevedores não fica impedido de pedir, aos restantes, a prestação por inteiro (527.º).

Logicamente: mesmo sem essa renúncia (quando seja admissível), ele sempre poderia pedir o

cumprimento, por inteiro, a algum ou alguns deles.

Relações internas: este termo traduz o relacionamento entre os codevedores. Como ponto de

partida, cumpre assinalar que, na solidariedade perfeita ou autêntica, todos os codevedores são

iguais, perante o credor. E isso sem prejuízo de ser diferente o conteúdo das prestações de cada

um deles, de estarem obrigados em termos diversos ou com distintas garantias (512.º, n.º2, 1ª

parte). A diversidade porventura existente virá depois à luz, nas relações entre os devedores.

Nas relações entre si, presume-se uma situação de igualdade na participação na dívida: isso

sempre que outra coisa não resulte da relação jurídica entre eles existente, isto é, da própria

obrigação plural complexa (516.º). O devedor que satisfizer o crédito para além do que lhe

competir tem o direito de regresso contra cada um dos codevedores, na parte que a estes

compita (524.º). O direito de regresso é um direito novo, autónomo, que deriva de um facto

complexo: a própria fonte de obrigação solidária e o facto de o devedor em causa ter procedido

ao seu cumprimento, nos precisos termos em que o haja feito. Tem um regime adequado,

características suas e vida própria. Não se deve confundir o direito de regresso dos devedores

solidários que cumpram para além da sua quota com a sub-rogação a favor do fiador que cumpra,

nos direitos do credor (644.º). A sub-rogação é um meio de transmissão de obrigações que opera

a favor do terceiro que satisfaça uma prestação (589.º a 594.º). Ora o devedor solidário não

realiza uma prestação de terceiro, nem visa adquirir seja o que for. E assim, o direito de regresso

não traz consigo as garantias da obrigação principal: nem as suas fraquezas. Pelo Direito vigente

trata-se, simplesmente, de uma obrigação legal, assente na preocupação de prevenir o

enriquecimento dos devedores que não tenham sido chamados a cumprir até ao limite das

respetivas quotas. O direito de regresso pode ser detido, relativamente a cada codevedor que,

dele, seja titular (525.º, n.º1):

- pela falta do decurso do prazo que lhe tenha sido concedido para o cumprimento;

- por qualquer outro meio de defesa, comum ou pessoal do visado.

Essa possibilidade opera ainda que o codevedor tenha deixado, sem culpa sua, de opor

o meio comum de defesa; não assim se a falta de oposição for imputável ao devedor que

pretenda fazer valer o mesmo meio (525., n.º2): haveria, ai, um tu quoque contrário à boa fé.

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Pode um dos codevedores ficar insolvente ou, por qualquer outro motivo, não poder cumprir a

prestação a que esteja adstrito: altura em que a sua quota-parte é repartida proporcionalmente

pelos demais (benefício da repartição), incluindo (526.º, n.º1):

- o próprio credor do regresso;

- os codevedores que tivessem sido, pelo credor, exonerados da obrigação ou da

solidariedade.

O benefício da repartição não aproveita ao credor do regresso na medida em que só por

negligência sua não lhe tenha sido possível cobrar a parte do seu codevedor na obrigação

solidária (526.º, n.º2). O direito de regresso subsiste ainda que as obrigações dos outros

devedores de encontrem prescritas e a do visado, por suspensão ou interrupção da prescrição,

não beneficie desse estatuto, sendo o mesmo compelido a cumprir (521.º, n.1): uma regra que,

só por si, já mostra a unicidade do vínculo. Em compensação, o devedor que não haja invocado

a prescrição (podendo fazê-lo), não tem o direito de regresso contra os codevedores cujas

obrigações tenham prescrito, desde que aleguem a prescrição (521.º, n.º1).

Papel e natureza: a solidariedade passiva é importante: ela dá consistência ás correspondentes

obrigações plurais. Na verdade, a obrigação, enquanto vínculo abstrato dependente da

seriedade e da motivação do devedor, torna-se diáfana e frágil. Essa fragilidade mais se acentua

quando sejam vários devedores: se todos usarem o beneficium divisionis, o credor poderá ter

dificuldade em receber tudo aquilo a que tem direito, além de incorrer em incómodos, delongas

e despesas. A essa luz, compreende-se a postura de Direitos que, como o alemão e o italiano,

estabelecem a solidariedade como solução subsidiária. E entende-se, também, porque razão,

no tocante a obrigações de indemnizar prevalece, no nosso Direito, a solidariedade.

Independentemente do seu papel nas obrigações plurais, a solidariedade passiva funciona como

garantia pessoas das obrigações: um dos codevedores surge, tão só, para garantir o

cumprimento que apenas interessa ao outro. A solidariedade passiva tem, ainda, um papel

matricial, relativamente às obrigações plurais. Embora a solução normal seja, entre nós, a

parciariedade e apesar de se prever, também, a solidariedade ativa, podemos dizer que, em

termos dogmático culturais, a doutrina da pluralidade das obrigações se tem vindo a

desenvolver em torno da solidariedade passiva. No âmbito deste surgiu a figura muito relevante

do direito de regresso. Além disso, a solidariedade passiva é um excelente banco de ensaio para

afinar o tema processual do litisconsórcio e o próprio jogo das exceções, com o seu alcance

substancial e os seus limites. Este papel matricial da solidariedade deve manter-nos atentos, em

relação aos perigos da deriva conceitual. Por vezes, o termo “solidário” é usado para exprimir

fenómenos aparentados que, com a solidariedade, já não têm a ver. Isso sucede, desde logo,

com as denominadas “solidariedades impróprias”: estas abrangem situações diversas, como

sejam garantias pessoais, com regimes diferenciados. Além disso, verifica-se um uso de

“solidário” para nominar situações de conjunção dotadas de regimes específicos. Daí se passaria,

naturalmente, à aplicação de regras sobre a solidariedade: fora do contexto e do seu âmbito de

aplicação. Quanto à natureza: temos uma única obrigação complexa, com uma prestação

repartível apenas depois do cumprimento. Se ela for indivisível, os codevedores terão, depois,

de repartir o esforço que ela tenha representado. Pelo prisma dos envolvidos e de acordo com

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a orientação propugnada quanto à contitularidade: teremos tantos direitos e crédito quanto os

credores (sobre a mesma prestação) e/ou tantos deveres de prestar quantos os devedores

(relativos à mesma prestação).

58.º - Solidariedade Ativa

Noção e regras gerais: na solidariedade ativa temos uma obrigação com vários credores e um

devedor, na qual (512.º, n.º1, 2.ª parte):

- cada um dos credores tem a faculdade de exigir, só por si, a totalidade da prestação;

- a prestação integral, feita a esse credor, libera o devedor perante os demais.

Tal solidariedade só existe quando prevista na lei ou em contrato (513.º). Presumem-se

iguais as partes que os credores tenham na obrigação (516.º).

Relações externas: cabe ao devedor, escolher o credor solidário a quem satisfaça a prestação

(528.º, n.º1, 1.ª parte): escolherá, naturalmente, o que mais lhe convier, numa manifestação de

favor debitoris. Depois de citado judicialmente por um credor cujo crédito se ache vencido, deve

cumprir perante este (528.º, n.º1, 2.ª parte). O dever de cumprir em face do credor que tenha

exigido judicialmente a prestação não cessa pelo facto de o devedor cumprir perante um credor

diferente (528.º, n.º2, 1.ª parte): bem se compreende, pois isso poderia esvaziar o conteúdo de

direitos de crédito de titulares não convenientes. Pode, todavia, a solidariedade ativa ter sido

estabelecida em favor do devedor. Nessa altura, pode ele renunciar total ou parcialmente ao

benefício e prestar, a cada um dos outros a prestação, com dedução da parte do demandante

(528.º, n.º2, 2.ª parte). Caberá então, ao devedor provar que a solidariedade foi estabelecida no

seu interesse e que a repartição de valores é possível, sem prejudicar os credores ou algum deles.

Ao credor solidário podem ser opostos os meios de defesa comuns a todos os credores, como a

prescrição da obrigação ou os que pessoalmente respeitem ao credor considerando, como a

incapacidade (514.º, n.º2). Quanto à prescrição (530.º, n.º1): se o direito de um dos credores,

por via da suspensão ou da interrupção da prescrição ou outra causa, se mantiver, enquanto

hajam prescrito os direitos dos restantes, pode o devedor opor àquele credor a prescrição do

crédito na parte relativa a estes últimos. Naturalmente: isso pressupõe que a prestação seja

divisível: não o sendo, terá de se proceder ao encontro dos valores. A renúncia à prescrição,

feita pelo devedor em benefício de um dos credores, não aproveita aos demais (530.º, n.º2).

Caso julgado: o formado entre um dos credores e o devedor não é oponível aos outros credores,

porém, ser oposto por estes ao devedor, mas sem prejuízo das exceções pessoais que o devedor

possa invocar em relação a cada um deles (531.º). Prevalece, aqui, uma lógica semelhantes à

dos limites do caso julgado, quanto à solidariedade passiva. Quanto à impossibilidade

superveniente da obrigação (529.º):

- quando ela ocorra por facto imputável ao devedor, a solidariedade mantém-se

relativamente ao crédito de indemnização (n.º1);

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- quando resulte de facto imputável a um dos credores, fica este obrigado a indemnizar

os demais (n.º2).

A satisfação do direito de um dos credores, por cumprimento, dação em cumprimento,

novação, consignação em depósito ou compensação, produz a extinção da relação global, em

face de todos os credores (532.º): solução justa e lógica, uma vez que há uma única obrigação.

Relações internas: o credor cujo direito tenha sido satisfeito para além da parte que lhe

competia deve satisfazer aos outros a parte que eles tinham na prestação comum (533.º).

Quando a prestação não seja divisível, haverá um encontro de valores. Nos termos gerais, o

credor satisfeito deve ser interpelado pelos restantes, para entrar em mora. Só então dele

deverá juros.

Aplicações e natureza: a hipótese mais referida de solidariedade ativa seria a resultante de

aberturas de contas bancárias ditas “solidárias”. O banqueiro, pelo depósito, torna-se

proprietário do dinheiro; os depositantes são credores da correspondente importância. O

banqueiro poderá pagar a um ou a outro, assim se exonerado. Todavia, temos aí, tão só, uma

extensão do termo “solidário”: ele apenas implica que cada contitular possa, sozinho,

movimentar a conta. Às demais regras de solidariedade não têm, só por isso, aplicação: um

aspeto a verificar caso a caso. De facto, pode-se afastar, em conta bancária solidária, a

presunção de igualdade entre as quotas-partes dos diversos credores. Mas isso não impede, em

regra, que o banqueiro compense créditos seus sobre um dos credores com a totalidade do

saldo de uma conta conjunta solidária, mesmo sem autorização de todos os titulares. Quanto à

natureza: também aqui temos uma obrigação única com uma só prestação; mas com vários

créditos concorrentes. A repartição das vantagens de cada um faz-se, apenas, depois do

cumprimento. Entre os intervenientes surgem, depois, múltiplos deveres acessórios destinados

a compor, de modo equilibrado, os créditos em presença.

59.º - Pluralidade Heterogénea

Generalidades; o usufruto de créditos: a pluralidade das obrigações que temos vindo a

estudar até este momento é uma pluralidade comum ou homogénea: os diversos intervenientes

têm direitos de crédito ou débitos qualitativamente idênticos, ainda que quantitativamente

diversos, sobre uma mesma prestação. Pode suceder que, sobre uma mesma prestação,

concorram créditos de qualidade diferente: designadamente por proporcionarem

aproveitamentos diversos, por estrutura. A primeira hipótese é a de existir um usufruto de um

crédito. Segundo o artigo 1439.º:

«Usufruto é o direito de gozar temporária e plenamente uma coisa ou direito alheio, sem

alterar a sua forma ou substância.»

Trata-se, à partida, de um direito real de gozo, temporariamente limitado, que deve a

sua atual compleição a uma especial evolução histórica. Como tal, só é possível sobre coisas

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corpóreas. Já no Direito Romano, verificou-se que créditos podiam ficar envolvidos em situações

de usufruto. O usufruto de créditos está hoje tratado nos artigos 1464.º a 1466.º do Código Civil,

Grosso modo, o regime é o seguinte:

- tratando-se de capitais postos a juro, o usufrutuário faz seus os juros; o capital só pode

ser levantado ou invertido com o acordo do titular da raiz (1464.º, n.º1 e 2);

- havendo um usufruto sobre dinheiro, o usufrutuário pode administra-lo desde que

preste caução; o risco da perda da soma usufruída corre por ele (1465.º, n.º1);

- tratando-se de títulos de crédito, o usufrutuário tem direito aos prémios e outras

utilidades aleatórias que eles produzam (1466.º).

Em qualquer caso, o crédito principal (ou o valor que ele represente) cabe ao titular da

raiz.

O penhor de créditos: o artigo 666.º, n.º1 apresenta o penhor como conferindo:

«(…) ao credor o direito à satisfação do seu crédito, bem como dos juros, se os houver,

com preferência sobre os demais credores, pelo valor de certa coisa móvel, ou pelo valor de

créditos ou outros direitos não suscetíveis de hipoteca, pertencentes ao devedor ou a terceiro.»

Quer isto dizer que um direito de crédito pode ficar afeto, como garantia, à satisfação

de outro crédito. Moldado sobre um típico direito real, o penhor de créditos tem uma

regulamentação explícita nos artigos 679.º e seguintes. O crédito empenhado deve ser

suscetível de transmissão e, portanto, de realização pecuniária. A partir daí, ele representa um

valor pelo qual o credor pignoratício poderá, preferencialmente, realizar a cifra a que tenha

direito. Em torno do penhor de créditos são construídas diversas figuras bancárias.

Natureza: além do usufruto e do penhor de créditos, outras situações são configuráveis ao

abrigo da autonomia privada. Qual a sua natureza? Começaremos por afastar, como

complicação inútil, a figura dos “direitos sobre direitos”: o primeiro direito reporta-se, na

realidade, ao objeto do segundo. Assim, o usufruto de um crédito não recai sobre o direito do

credor: antes sobre a própria prestação. Esta sofre o concurso de dois distintos direitos: o direito

do titular da raiz e o direito do usufrutuário. São ambos direitos de crédito, mas de tipo

qualitativamente diferente: correspondem à ordenação sócio económica milenária do direito

(real) de usufruto. Toda a preocupação do Direito Civil, seja diretamente pelas normas aplicáveis,

seja através de deveres acessórios ditados pela boa fé, será, depois, a de assegurar a solução

equilibrada dos conflitos que ocorram entre os titulares em presença. Da mesma forma, o

penhor de créditos respeita não ao direito, em si, mas ao seu objeto. Este sofre um duplo

aproveitamento: do credor comum e do credor pignoratício, sendo que, este último, tem um

puro fito de garantia. E será em sede de garantias que o competente regime deve ser estudado.

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Capítulo IV – O Contrato-Promessa

Secção I – Origem e enquadramento

20.º coordenadas histórico-dogmáticas

Do Direito Romano ao Código de Napoleão: pelo contrato-promessa, as partes obrigam-se

a celebrar um outro contrato: o contrato definitivo. Trata-se de uma noção comum, hoje

presente no artigo 410.º, n.º1. O contrato-promessa entrou nos hábitos jurídicos e sociais da

nossa Terra, parecendo uma figura natural. Todavia, ela não é obvia: se as partes estão de

acordo quanto a uma certa composição dos seus interesses, e querem fixá-la, definitivamente,

por contrato, porque não o fazem? Obrigarem-se a obrigarem-se futuramente quando, desde o

início, congelas os termos definitivos do quadro final parece ser uma complicação inútil. De resto,

ao longo da História, não faltaram nem doutrina que o afirmasse, nem leis que o determinassem.

Foi necessária uma elaboração muito abstrata do Direito, para se atingir a ideia de contrato-

promessa. No Direito Romano, a figura do contrato-promessa não era conhecida. Admite-se a

existência de manifestações parcelares dessa figura: tal o caso da promessa de mútuo (pactum

de mutuo dando) a qual, quando vertida em stipulatio, poderia dar lugar a uma ação. A ideia de

um respeito geral pelas promessas de contratos adveio da Escola do Direito Natural. Data dessa

época o uso das expressões pactum de contrahendo e pactum de inuendo contractu, patentes

no Direito comum. Faltou, na altura, um forte impulso dogmático que amparasse a figura, bem

como necessidades concretas que a tornassem apetecível. Aquando das codificações

jusracionalistas, o destino do contrato-promessa foi diverso. No ALR prussiano (1874), ele

apenas foi consignado a propósito da promessa de mútuo. Já no ABGB austríaco (1811), ele

obteve uma referência mais geral. O Código de Napoleão refere o contrato-promessa apenas a

propósito da compra e venda. E fá-lo em termos algo elíticos. De todo o modo, a promessa era

relevante e vinculativa, designadamente quando unilateral.

Elaboração pandectística, BGB e influência subsequente: a elaboração jurídico-cientifica

do contrato-promessa foi obra da pandectistica tardia. Como ponto de partida, cumpre

sublinhar que a prática comercial oitocentista lidava, Além-Reno, com promessas de contratos

diversas. Elas eram especialmente úteis porque, segundo o Direito da época, as propostas não

eram vinculativas: podiam ser revogadas pelo proponente, até que a sua eventual aceitação se

tornasse eficaz. Além disso, a promessa era distinta do contrato. Bechamnn chama-se uma

“criação híbrida da vontade das partes sem qualquer escopo razoável”, enquanto Eichhorn

também exprimira as suas reservas. Savigny manifesta-se nestes termos: têm-se levantado,

frequentemente, dúvidas e mal-entendidos quanto ao contrato que se destine à conclusão de

um outro contrato (pactum de contrahendo). Muitas vezes, aquilo que assim se designa mais

não é do que um contrato, incompleto, tomado na sua preparação o qual, naturalmente, não

pode ter ainda qualquer eficácia. Noutros casos é um contrato plenamente concluído, apenas

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com o cumprimento adiado. A revitalização dogmática do contrato-promessa exigia, em

primeiro lugar, um termo adequado para o exprimir. Para além do latim, as designações comuns

“promessa”, “policitatio”, “proposta vinculativa” ou “contrato sobre a atuação” eram pouco

convenientes para uma dogmatização eficaz. Foi mérito de Heinrich Thöl o ter proposto pré-

contrato ou contrato preliminar (Vorvertrag), para denominar a figura. A expressão teve êxito,

tendo passado a ser usado na literatura subsequente. A obra básica relativa ao contrato-

promessa, que ditou a dogmática romano-germânica subsequente, coube a Degenkolb.

Degenkolb começa por adotar a terminologia de Thöl: Ververtrag; fixa o seu escopo: a vinculação

à celebração do contrato definitivo, embora, summo rigore, todo o contrato seja definitivo; a

existência e a autonomia do contrato-promessa são um imperativo lógico, sendo a figura

apresentada como geral. No segundo estudo, Degenkolb apresenta três teses básicas:

a) A vinculação de, no futuro, emitir declarações de vontade não é idêntica a estas;

b) Logicamente, o pré-contrato não equivale à conclusão do definitivo;

c) Na execução, há que contratar de novo.

A questão da forma levantava dúvidas: Degenkolb é levado a pensar que, perante

contratos informais, bastaria uma oferta vinculativa. Após Degenkolb ficou adquirido:

- que o contrato-promessa era uma estrutura logicamente admissível, com um papel

próprio;

- que se tratava de uma figura de tipo geral;

- que as obrigações dele emergentes eram suscetíveis de originar demandas.

O passo seguinte era o reconhecer a obrigatoriedade do contrato-promessa, com meios

jurídicos para a efetivar. Trata-se de um aspeto que foi sendo acolhido na doutrina e, também,

na própria lei processual. Aquando da apresentação do projeto do BGB, a doutrina alemã era

largamente pioneira, no tocante ao contrato-promessa e ao seu fundamento jurídico-cientifico.

No entanto, entendeu-se que o tema não carecia de regulação legal genérica. O contrato-

promessa veio, desta forma, a desenvolver-se de acordo com os princípios gerais e apoiado na

jurisprudência. Salientamos alguns pontos:

- na promessa, as partes devem estar de acordo sobre todos os pontos do contrato

definitivo, ao contrário do que sucede noutros negócios preparatórios;

- a forma do contrato-promessa depende do escopo da forma exigível para o contrato

definitivo;

- as obrigações provenientes do contrato-promessa cumprem-se através das emissões

da proposta e da aceitação, próprias do definitivo;

- não sendo cumpridas, cabe indemnização e resolução;

- pode haver execução específica, pela qual a sentença do tribunal substitui a declaração

negocial em falta.

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Quando o contrato-promessa não seja totalmente explícito, pode-se pedir a formulação

de uma proposta ou a determinação do dever de concluir o contrato, tudo se mantendo nas

margens da boa fé. No Direito italiano, a promessa de venda era conhecida desde o século XVIII,

tendo um espaço próprio ditado pela prática. Os códigos pré unitários ainda compreendiam

preceitos semelhantes ao Código de Napoleão. Todavia, o Código Civil italiano de 1865 já não

acolheu essa orientação: a promessa de venda era distinta da venda em si, podendo ter um

papel, próprio e justificado. O pensamento jurídico alemão, particularmente para Degenkolb,

veio radicar, desde o princípio do século XX, a ideia do contrato-promessa como figura de ordem

geral. Com estes antecedentes, o Código Civil de 1942, não podia senão consagrar o contrato-

promessa. Na base destes preceitos, não houve dificuldade em desenvolver uma doutrina geral,

tendo-se multiplicado, no terceiro quartel do século XX, as monografias sobre o tema. O tema

do contrato-promessa presta-se, ainda, a estudos de tipo comparatístico, diretos, por via do

Direito Internacional Privado ou como apoio à dogmática. De facto, o contrato-promessa dispõe,

nos diversos ordenamentos europeus, de consagrações legais bastante diferenciadas. Todavia,

ele contempla necessidades económicas e práticas semelhantes. Aspetos como o da forma,

aparentemente pouco relevantes podem, neste domínio, fazer toda a diferença. Dada a

facilidade, que abaixo assinalaremos, com que, na nossa panorâmica jurídica, se escreve e se

legisla sobre o contrato-promessa, torna-se importante sublinhar que, no recurso ao Direito

comparado, há sempre que ponderar as diversidades de regime, no plano das fontes mais

diretas e no do próprio sistema, antes de se proceder a transposições.

A experiência portuguesa: no Direito das Ordenações a compra e venda tinha mera eficácia

obrigacional: o contrato ficava concluído logo que houvesse acordo quanto à coisa e quanto ao

preço, mas o domínio apenas se transferia com a tradição ou entrega da coisa. Num quadro

destes, menos espaço ficaria para uma promessa de venda. De resto, as Ordenações admitiam

que, celebrada a compra e venda e havendo sinal passado, qualquer das partes se pudesse

arrepender: o comprador, perdendo o sinal e o devedor, restituindo-o em dobro. A função de

arrependimento podia, deste modo, ser assumida pela própria compra e venda. O Código

Comercial de Ferreira Borges (1833) dispunha:

«A promessa de vender tem força de venda, logo que há consentimento reciproco

d’ambas as partes sobre a cousa e o preço, e não póde resilir-se do contracto a titulo d’haver

dado signal, porque em commercio sempre este se entende em principio de paga, salvo

convenção expressa em contrario.»

O Código de Seabra tomou uma posição oposta, posição essa que constitui o ponto de

partida para a grande elaboração do contrato-promessa que, posteriormente, teria lugar. Donde

nos vem semelhante preceito, que estabelece uma saída diametralmente inversa à do Código

de Napoleão? De acordo com o Projeto inicial de Visconde de Seabra, seriam apenas, “mera

convecção de prestação de facto”, a promessa de venda sem determinação de preço ou

especificação de coisa: uma saída que fazia sentido. No Código finalmente aprovado, adotou-se

a posição oposto, sem que se conheçam as razões. Podemos, todavia, construí-las: o Código de

Seabra abandonou o sistema anterior da compra e venda meramente obrigacional, a favor do

consensualismo na produção dos efeitos reais. Com isso, abriu um vazio, pelo qual penetrou o

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contrato-promessa: o da necessidade de se prever um contrato que, não consumando ainda a

transferência do domínio, fosse reversível, através do arrependimento e do mecanismo do sinal.

Permitia, ainda, uma importante conclusão a contrario: faltando a determinação do preço ou a

especificação da coisa, nem promessa poderia haver. O Código de Seabra sofreu, em 1930, uma

alteração de relevo. O corpo do artigo passou a especificar, depois da referência ao “sinal

passado”. Além disso, foi acrescentado um § único:

«Tratando-se de bens imobiliários, o contrato deve ser reduzido a escrito, e , sendo feito

sem outorga da mulher do promitente vendedor, este responde por perdas e danos para com o

promitente comprador.»

A admissibilidade de mera forma escrita, para a conclusão de promessas relativas a

imóveis, deu um grande relevo prático ao instituto ora em estudo. Na verdade, a escritura é uma

formalidade pesada, por regra marcada com uma antecedência dilatada. Além disso, a escritura

deve, também por regra, ser precedida pelo pagamento de impostos e por formalidades

tabulares. O contrato-promessa, permitindo, desde logo, a cabal vinculação de ambas as partes,

preenche um espaço decisivo, no tráfego imobiliário. Torna-se muito interessante sublinhar que

esta evolução operou na base das necessidades práticas, que o legislador foi acompanhado. O

Código de Seabra apenas referia a promessa de contratar a propósito da compra e venda. Mas

a doutrina não teve dificuldade em alarga-la aos diversos contratos definitivos. Quanto à

questão do seu incumprimento: apenas quedaria lugar para a indemnização, “pois que o juiz

não pode substituir pela sua vontade a vontade extinta do promitente remisso”.

A preparação do Código Civil de 1986: o passo seguinte coube a Vaz Serra, no seu estudo

preparatório do atual Código Civil, sobre o contrato-promessa. No seu estilo habitual, Vaz Serra

fez um apanhado da doutrina e das leis do seu tempo sobre o contrato-promessa, escolhendo

as soluções que teve por adequadas, e concluindo com um articulado. Na base do a apontado

desenvolvimento, Vaz Serra fez propostas ambiciosas, para o então futuro Código Civil. As

opções decisivas que, depois, passariam ao Código Civil foram obra de Antunes Varela, na

primeira revisão ministerial. Assim:

- fixou-se a regra da simplificação da forma, no tocante ao contrato-promessa e perante

o exigido para o contrato definitivo;

- consignou-se a promessa unilateral (monovinculante), com a fixação judicial de prazo,

se necessário;

- admitiu-se a transmissão mortis causa, aliás proposta por Vaz Serra;

- firmou-se a possibilidade de uma eficácia perante terceiros; na segunda revisão

ministerial, adotou-se a locução “eficácia real da promessa” e retirou-se a possibilidade de ela

poder operar perante coisas não registáveis;

- consagrou-se a possibilidade de execução específica da promessa com redações que

foram oscilando até ao projeto final.

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Em síntese, podemos afirmar que o Código Vaz Serra operou uma pequena revolução

no contrato-promessa, ainda que aproveitando a tradição anterior. Com efeito, o contrato-

promessa foi definitivamente reconhecido como uma figura de ordem geral, desligando-se da

compra e venda. Na linha de reforma de 1930, conservou-se o alijamento formal do contrato-

promessa, decisivo para a salvaguarda do seu alcance prático. As duas grandes novidades

residiram na possibilidade da promessa com eficácia real (413.º) e na execução especifica do

contrato promessa (830.º). Ficaram lançados no plano os pilares para um dos mais produtivos

institutos contratuais.

21.º - O contrato-promessa no sistema jurídico

O mapa normativo: no Direito vigente, o contrato-promessa encontra-se repartido por

diversos preceitos:

- artigo 410.º (regime aplicável);

- artigo 411.º (promessa unilateral);

- artigo 412.º (transmissão dos direitos e obrigações das partes);

- artigo 413.º (eficácia real da promessa).

Grosso modo, podemos adiantar que o Decreto-Lei n.º 236/80, 18 julho, visou

estabelecer um regime especial para os contratos-promessa relativos a habitação; que o

Decreto-Lei n.º 379/86, 11 novembro, procurou resolver problemas suscitados por aquele

diploma, aproveitando para (tentar) aperfeiçoar anomalias na redação inicial do Código; e que

o Decreto-Lei n.º 116/2008, 4 julho, pretendeu suprimir a referência ao notário e a menção

exclusiva à escritura pública. Na mesma secção I:

- artigo 441.º (contrato-promessa de compra e venda);

- artigo 442.º (sinal).

Sempre no Livro II, Titulo I do Código Civil, temos o artigo 755.º, n.º1 alinha casos

especiais do direito em causa. Este preceito adveio do artigo 442.º, n.º3, versão de 1980.

Lidamos, depois, com o artigo 830.º (contrato-promessa), relativo à execução específica. Estas

alterações tiveram, nos termos apontados, e respetivamente, o escopo de enfrentar as

promessas relativas à habitação e de corrigir as anomalias resultantes da primeira reforma.

Adiantamos que a matéria presume, pelas suas implicações, alguma complexidade.

Funções do contrato-promessa: de um modo geral, têm-se imputado, ao contrato-promessa,

dois tipos de funções:

- de pré-vinculação, numa altura em que, por falta de documentos ou de meios materiais,

ainda não seja possível celebrar o contrato definitivo;

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- de dilação, por facultar a assunção do definitivo apenas mais tarde.

Afigura-se necessário ir mais longe. O contrato-promessa representa, de facto, um

subsistema complexo, sendo seguro que as funções por ele desempenhadas são decisivas, quer

para a interpretação das suas cláusulas, quer para a aplicação das regras, supletivas ou injuntivas,

que se perfilem para o efeito:

- função preliminar: o contrato-promessa é usado como fase destinada a alcançar o

contrato-promessa;

- função mitigadora: a promessa traduz uma vinculação enfraquecida, relativamente ao

prometido;

- função de transação meramente obrigacional: a promessa equivale à compra e venda

romana ou alemã;

- função de desformalização;

- função reguladora autónoma: as partes procuram, logo no plano do contrato-

promessa, uma composição para os seus interesses.

Enquanto preliminar, o contrato-promessa é usado como peça no processo de formação

do contrato. As partes, quando já tenham obtido um equilíbrio final e completo para os seus

interesses, podem fechar uma promessa com alguma ou algumas das seguintes finalidades:

- redocumentação: a celebração do contrato definitivo, mormente quando implique

escritura pública ou equivalente, exige documentos que requerem tempo: certidões, entre

outros; as partes pretendem vincular-se desde já, mas remetem para mais tarde a formalização;

- fracionamento do preço: o recurso à promessa permite, ao comprador, pagar parte do

preço, a título de sinal ou mera antecipação e, depois, eventualmente, reforça-la, com novos

pagamentos, até perfazer, no definitivo, a quantia em dívida; compõe, assim, o plano financeiro

que lhe convenha;

- financiamento: a parte adquirente não dispõe dos fundos necessários para cumprir o

contrato definitivo; em vez de se constituir devedora, com todos os riscos que isso implica para

o vendedor, recorre-se à promessa;

- acabamento: desta feita, a parte vendedora não concluiu, ainda, o objeto, não

pretendendo as partes transacionar sobre bens futuros; a promessa resolve o problema de um

vinculação prévia;

- indisponibilidade para a entrega: no caso de contratos reais quod constitutionem, pode

a parte alienante não dispor, de momento, da coisa para, pela entrega, concluir o contrato:

sobrevém, então, a promessa;

- fiscalidade: o imposto municipal sobre a transação de imóveis deve ser pago, em regra

pelo comprador antes da operação definitiva; o recurso ao contrato-promessa permite

sedimentar o negócio, enquanto se dá cumprimento às obrigações fiscais.

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As finalidades concretas que levem ambas as partes a recorrer a um contrato-promessa,

na sua vertente de preliminar, não são neutras: uma delas depende toda uma plêiade de

prestações secundárias e de deveres acessórios, que compõem o regime da promessa. Em suma:

as concretas finalidades do recurso ao preliminar, designadamente quando levadas ao contrato,

quando acordadas a latere ou quando se imponham, por via acessória, ex bona fide (762.º, n.º2),

são decisivas para compor a concreta relação obrigacional complexa que irá ligar os promitentes.

Enquanto contrato mitigado, a promessa faculta uma adstrição, entre os promitentes, de um

tipo mais solto ou lasso do que o provocado pelo definitivo. Temos quatro subhipóteses:

- o efeito dilação: recorrer-se ao contrato-promessa como meio de reportar, para o

futuro, os efeitos pretendidos; fazendo-o, o vínculo enfraquece, uma vez que podem sobrevir

impossibilidades e superveniências, antes que o risco se concentre na parte adquirente;

- a possibilidade de arrependimento: pode-se excluir a execução especifica,

designadamente associando o mecanismo do sinal; assim, as partes podem abdicar do contrato

definitivo, sujeitando-se às consequências controladas que tenham previsto;

- a indecisão quanto a contratar: uma das partes aceita vincular-se, mas a outra só o fará

se quiser: é a promessa monovinculante ou “unilateral”;

-a regulação parcial: a promessa pode visar compor parte dos interesses das partes,

dentro de um universo mais vasto que esteja em aberto.

Também aqui na finalidade em jogo pode condicionar obrigações secundárias e deveres

acessórios, desde que emerja do contrato. Quanto ao efeito dilação, haverá que ponderar o seu

papel na fixação de prazos e o cuidado que ele envolva para as partes; a hipótese de

arrependimento, perfeitamente natural e lícita, se prevista no contrato, dá corpo aos inerentes

deveres de informação; a regulação parcial origina deveres de informação e de procedimento,

em relação ao conjunto. A função de transação meramente obrigacional salta à vista, nos

contrato-promessa relativos a imóveis com execução específica: o subtipo paradigmático que

condiciona todo o regime aqui presente. Os comparatistas são-lhe especialmente sensíveis. Com

efeito, no Direito romano, no Direito português das Ordenações e no atual Direito alemão, a

compra e venda tinha ou tem mera eficácia obrigacional: a propriedade deve ser transmitida,

para o adquirente, através de um ulterior ato de entrega da coisa ou de inscrição no registo. As

vantagens deste esquema, aparentemente complicado, são evidentes: basta ver que o risco de

perecimento ou de deterioração da coisa se mantém na esfera do devedor, enquanto este tiver

o controlo da coisa. Apenas com a entrega da coisa, em execução da compra e venda, o risco

passa para o adquirente. Além disso, a compra e venda meramente obrigacional permite que a

ordem dominial acompanhe a realidade do terceiro: é dono quem, de facto, exerça o controlo.

O Código de Seabra e o atual Código Vaz Serra (artigo 408.º9 abandonaram o sistema tradicional,

por influencia napoleónica. Mas ele tinha virtualidades. Pois bem: através do contrato-promessa,

que contém, necessariamente, todos os elementos do definitivo, as partes conseguem

precisamente o efeito da compra e venda obrigacional: tudo está montado, mas a transferência

do domínio depende de uma ulterior atuação: a celebração do definitivo. A função de

desformalização é uma especificidade do Direito português, que remonta ao Código de Seabra.

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De facto, pela pura lógica, se o contrato-promessa coloca as partes numa situação semelhante

à do correspondente contrato definitivo, faz todo o sentido submete-los a forma idêntica.

Todavia, encontramos, no nosso Direito, um interessante desvio: o artigo 410.º, n.º2 apenas

exige, para as promessas relativas a definitivos formais, o escrito assinado pelas partes ou pela

parte que fique vinculada, sem, com isso, obstar à execução específica. Por esta via, os rigores

da forma são aplainados, numa saída reconhecida pela jurisprudência. Evidentemente: os

ganhos em desformalismo serão depois gastos no definitivo ou na execução específica; mas

momentaneamente, são de monta. Finalmente, o contrato promessa pode assumir uma feição

reguladora autónoma, isto é: enquanto valoração distinta do contrato definitivo. Também aqui

podemos distinguir:

- o contrato-promessa enquanto fonte de específicos valores que se transacionam na

sociedade;

- o contrato-promessa como situação estável, entre as partes; pode não haver qualquer

pessoa no definitivo; o contrato-promessa valerá, por si.

É ainda frequente o contrato-promessa incluir-se em contratos mistos mais ou menos

vincados. Situação correspondente já a um tipo social regulado na lei é a da promessa com

tradição da coisa: ainda antes do definitivo, seja por acordo, seja por tolerância, o promitente-

adquirente recebe, desde logo, a posse da coisa, em termos paralelos aos que lhe assistiram

pelo definitivo. O contrato-promessa é, ainda, uma presença frequente em acordos parassociais,

em acordos de gestão e nas mais diversas composições. Haverá que convocar, nessas

eventualidades, as considerações acima efetuadas sobre os contratos mistos.

As figuras afins: o contrato-promessa não se confunde com as diversas figuras que lhe estão

próximas. Desde logo, cabe despistar outros contratos ou atos preparatórios. Assim:

- a proposta de contrato: embora firme e completa, ela não dá azo a um contrato,

enquanto não ocorrer a aceitação;

- a minuta ou punctação: trata-se do texto sobre o qual as partes construíram o acordo,

mas antes da formalização deste; em princípio, a minuta não é vinculativa para as partes;

- pactos preparatórios materiais ou instrumentais: no processo conducente à formação

de um contrato, podem as partes acordar sobre como podem celebrar pactos relativos à forma,

ao valor do silêncio, à duração das propostas que venham a ser feitas ou à sua revogação:

embora destinados a facilitar o contrato definitivo, estes pactos não contêm, em si, os

elementos necessários para retratar tal contrato, não envolvendo, para as partes, o dever de o

concluir;

- pacto de preferência: uma das partes obriga-se, perante a outra a, querendo celebrar

determinado contrato com terceiros, o fazer, nesses precisos termos, com o beneficiário (o

preferente), nas mesmas condições apresentadas pelo terceiro em causa (tanto por tanto); no

pacto de preferência, as partes não se obrigam a contratar: apenas uma delas se adstringe a dar

preferência; além disso, não há nenhum contrato prefixado a cuja celebração possam, sequer,

ficar vinculados;

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- pacto de opção: uma das partes recebe o direito potestativo de, querendo, fazer surgir

certo contrato definitivo; aqui e ao contrário da promessa, ninguém fica obrigado; apenas uma

das partes fica em sujeição;

- concurso para a celebração de um contrato: o interessado desencadeia uma série de

atos tendentes a apurar um vencedor, que irá celebrar, com ele, um contrato definitivo; em

regra, no concurso, não está ainda determinada a precisa configuração desse contrato; quando,

porém, tal suceda ab initio e o interessado se vincule a contratar com o vendedor, sendo que

todos os candidatos se vincularam aos termos do concurso, já poderemos apontar uma

promessa com uma das partes (ainda) indeterminada;

- convite a contratar: o interessado solicita o aparecimento de interessados na eventual

celebração de determinado contrato; todavia, nem este está claramente determinado, nem o

interessado se obrigação, contratualmente, à conclusão.

Num segundo grupo, surgem situações de dever de contratar, isto é, que impõem, a

uma pessoa, a obrigação de concluir um contrato mas que não se reconduzem a contratos-

promessa. Assim:

- o exercício de uma preferência: quando ocorra, o obrigado à preferência deve concluir

com o preferente, o contrato definitivo; não houve, todavia e aqui, uma promessa mas tão-só,

uma preferência;

- a promessa pública de contratar: pode um interessado vincular-se unilateralmente e

nos termos do artigo 459.º, à celebração de um contrato, com quem se encontre em certa

situação ou pratique determinado facto: há uma obrigação de contratar, mas de base unilateral;

- o dever legal de contratar: certas leis, designadamente na área dos serviços vitais ou

na do domínio da concorrência, obrigam a contratar; também aqui falta uma prévia vinculação

contratual.

A obrigação de contratar não derivada de um contrato-promessa pode submeter-se a

certos aspetos do seu regime e, designadamente, à execução especifica ex 830.º, desde que se

mostrem reunidos os seus requisitos. Todavia, não sendo contratual, ela terá um regime distinto

do aplicável ao contrato-promessa e às obrigações dele resultantes. No terceiro grupo de casos,

o contrato-promessa distingue-se de outros contratos diretamente dirigidos à conclusão de um

contrato definitivo, mas que postulam, ainda, aspetos em aberto, sujeitos a negociação.

Estamos perante o universo que designamos “contratação mitigada”. Ficam abrangidos:

- a carta de intenção: uma declaração unilateral que consigna a vontade do seu

signatário de, em certos pressupostos, concluir determinado contrato; a carta não contém,

todavia, todos os elementos necessários para a conclusão do contrato definitivo; não reporta,

consequentemente, uma vontade firme e completa de o concluir; e não comporta o mútuo

consentimento:

- o acordo de negociação: consigna, em negociações complexas e, ainda, não coroadas

de êxito, uma vontade comum das partes de prosseguir, dentro de certas balizas;

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- o acordo de base: também em negociações complexas, as partes podem formalizar um

primeiro acordo nuclear, que hajam alcançado, prosseguindo as negociações para solucionar

aspetos mais técnicos;

- o protocolo complementar: visando um acordo central, as partes podem começar por

se pôr de acordo em aspetos acessórios, formalizando-os; as negociações prosseguem quanto

ao núcleo dos seus interesses;

- o acordo de reserva: no decurso de uma negociação e sem que haja qualquer acordo,

uma das partes aceita, durante um certo lapso de tempo, manter-se disponível para contratar,

com referência a determinado objeto, apenas com um interessado.

Tudo isto tem relevância jurídica, obrigando os interessados, por via negocial ou na base

de uma relação de confiança, a respeitar o que tenham afirmado. Podemos ter obrigações de

prosseguir negociações sérias ou de tipo procedimentais. Os aspetos acordados ficam, em

princípio, conquistados: não se pode, quanto a eles e sem uma especial justificação, voltar atrás.

Os danos que forem infligidos, com violação de obrigações principais ou secundárias e de

deveres acessórios, devem ser indemnizados. Todavia, fica ressalvado um ponto: faltará, nestas

figuras, um conteúdo suficientemente preciso e autossuficiente para que permita encontrar um

contrato definitivo, altura em que poderemos estar perante um verdadeiro contrato-promessa,

não temos, nestas situações, elementos suficientemente densos para integrar esta figura. Esta

contratação mitigada não dá azo a negócios de segunda categoria: são verdadeiros contratos,

com toda a dignidade inerente, mas que apenas produzem efeitos na área dos maiores esforços

ou de condutas procedimentais. No quarto grupo, temos acordos de cortesia, manifestações de

obsequidade e acordos de cavalheiros. Assim:

- acordo de cortesia é o convénio que, não tendo conteúdo patrimonial, releve do mero

trato social;

- acordo de obsequidade surge como o acordo de cortesia que seja dominado por um

elemento de respeito ou pelo desejo de homenagear;

- acordo de cavalheiros implica um assentimento mútuo sobre matéria de relevância

patrimonial, mas que as partes tenham decidido excluir do campo do Direito.

Qualquer destas situações pode dirigir-se para a celebração de um ulterior contrato:

como distingui-las do contrato-promessa? No tocante à cortesia e à obsequidade: elas

dependem de, no domínio do contrato definitivo visualizado, ser possível apontar, apenas,

matéria de trato social. A cortesia que consista em combinar um contrato definitivo, a ser séria

e efetiva, surgirá como um verdadeiro contrato-promessa. Quanto a acordos de cavalheiros: não

é possível abdicar previamente da tutela jurídica (809.º). Perante Cavalheiros (ou Senhoras),

essa promessa será mais efetiva do que um instrumento assumidamente jurídico; mas a

renúncia antecipada à tutela não é válida. A cortesia e a obsequidade podem ser fonte de

responsabilidade, por via da confiança ou da própria lei. Temos um quinto grupo, preenchido

com contratos que, numa ou noutra dimensão, apresentam efeitos próximos de um dever

negocial de contratar. Assim:

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-o contrato sujeito a termo ou a condição iniciais suspensivos: há um contrato que

prefigura efeitos a desencadear no futuro: seja fatal, seja eventualmente; ele opera de modo

automático, com deveres para as partes enquanto houver pendência; mas não obriga a novas

declarações de vontade nem aos deveres acessórios a tal associados;

- o contrato normativo: como vimos, pode obrigar à prática de atos jurídicos, ainda que

em termos gerais e abstratos; em certos casos, fará sentido aplicar, havendo incumprimento, a

execução específica ex 830.º; será então um “contrato-promessa normativo”; mas não

necessariamente:

- o contrato-tipo: dá corpo a decisões de contratar, caso venham a surgir; não gera, por

si, um dever de contratar;

- o mandato sem representação: o mandatário obriga-se à prática de atos jurídicos, por

conta do mandante; os atos praticados formam-se na esfera do mandatário, o qual deve, depois,

retransmitir para o mandante os direitos assim adquiridos (1181.º);

- o compromisso: pacto pelo qual as partes submetem a árbitros qualquer litígio entre

elas surgido;

- o contrato dissimulado: escondido sob uma simulação, o contrato dissimulado pode

ser válido e eficaz (241.º); simplesmente, este não é um contrato definitivo, relativamente ao

simulado, que seria uma promessa; os regimes em presença são inconfundíveis.

Modalidades: a própria lei permite distinguir diversas formas de contratos-promessa:

- promessas formais e não formais: consoante estejam, ou não, sujeitas a alguma forma

solene (410.º, n.º2);

- promessas respeitantes à celebração de contrato oneroso de transmissão ou

constituição de direito real sobre edifício ou sua fração autónoma e as restantes (410.º, n.º3);

- promessa “unilateral” (monovinculante) e “bilateral” (bivinculante) (411.º);

- promessa exclusivamente pessoal e outras (412.º);

- promessas com e sem eficácia real (413.º);

- promessas com e sem sinal (442.º, n.º2);

- promessas com e sem tradição da coisa objeto do definitivo (442.º, n.º2, 2.ª parte);

- promessas com e sem execução específica (830.º, n.º1).

Para além disso, aplica-se, ao contrato-promessa, a generalidade das classificações

relativas aos contratos: em função da natureza do contrato definitivo. Teremos contratos-

promessa onerosos ou gratuitos, translativos de direitos ou de prestação de serviço e assim por

diante. Por via do princípio da equiparação (410.º, n.º1), o contrato-promessa submeter-se-á à

diretriz que lhe advenha do definitivo.

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Importância: o contrato-promessa, pela largueza das suas funções e pelas facilidades formais

que a lei lhe confere, tem, entre nós, uma importância muito mais vincada do que nos países

juridicamente próximos. No campo imobiliário, poucas eram as transações que não fossem

precedidas pelas correspondentes promessas. E nos restantes contratos: proliferam as figuras

mistas, com apelo às promessas, bem como a sua utilização no plano organizatório. A reforma

precipitada de 1980 e a recusa (evitável) de, em 1986, restituir, ao contrato-promessa, a sua

configuração inicial, introduziram, numa área que deveria ser dominada pela segurança e pela

previsibilidade, uma incerteza que multiplicou os litígios e as intervenções doutrinárias. A par

do arrendamento e da preferência, podemos considerar que o contrato-promessa é das áreas

mais guarnecidas de decisões judiciais e de comentários, no campo contratual. Com tais latas

funções, o contrato-promessa assume um papel importante na ordenação dos bens e na

circulação da riqueza: superior, no País, ao da generalidade dos demais espaços europeus. As

incertezas introduzidas pela aventura de 1980 e pelos cuidados de 1986 agravaram a

litigiosidade do instituto, com larga representação jurisprudencial. A aparente acessibilidade do

tema, apenas assente na doutrina nacional, levou à multiplicação de intervenções doutrinárias

e de obter dicta: nem sempre com o desejável nível. Devemos ainda prevenir para desmandos

de linguagem inabituais, no coração do Direito Civil, e que o tema do contrato-promessa

suscitou em vários autores. Volvido um terço do século, afigura-se possível a reconstrução

jurídico-científica serena de toda esta matéria.

22.º - A prometibilidade

Aspetos gerais: propomos “prometibilidade” para designar a qualidade de um determinado

contrato poder ser prometido, isto é: objeto de um contrato-promessa. Perante o atual Direito

Civil português, cabe distinguir dois graus:

- prometibilidade fraca: o contrato considerado é suscetível de promessa, mas não pode

ser obtido por execução específica, na base de uma ação ex 830.º;

- prometibilidade forte: o contrato pode ser prometido, recorrendo-se à execução

específica da promessa, no caso de incumprimento.

À partida, os diversos contratos gozam de prometibilidade forte: sendo permitido, às

partes, celebrar um contrato, sê-lo-á, a fortiori, o obrigarem-se a fazê-lo. A promessa parece

sempre um minus, em relação ao contrato prometido. E uma vez celebrada, possibilidade da

sua execução específica é uma decorrência simples da regra da eficácia dos contratos inter

partes (406.º). A execução específica pode, todavia, ser mais restringida, com isso cessando a

prometibilidade forte. E isso por uma de duas vias:

- pela natureza dos valores envolvidos: a execução da promessa é possível (…) sempre

que a isso não se oponha a natureza da obrigação assumida (830.º, n.º1, in fine);

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- por norma expressa: o artigo 103.º, n.º3 do Código do Trabalho afasta a execução

específica da promessa de trabalho, como exemplo.

Além disso, a própria prometibilidade fraca pode ser vedada pelo ordenamento, com

uma consequência da maior gravidade: a de não ser, de todo e com referência ao contrato

atingido, possível o correspondente contrato-promessa. Neste ponto, o Direito legislado é

menos claro. A regra geral mantém a possibilidade de conclusão dos diversos contratos-

promessa. Mas nem sempre e, também aqui, por duas ordens de fatores:

- pelos valores envolvidos;

- pela presença de regras expressa: o artigo 1591.º, relativo à promessa de casamento.

Vamos considerar estas duas situações:

A doação: a possibilidade de concluir um contrato-promessa de doação levanta dúvidas

tradicionais. Savigny explica que, dada a natureza da doação, a admissibilidade de uma

promessa a ela relativa conduz ao seguinte: verdadeira doação seria, de facto, a promessa,

altura em que ficaria consumado o enriquecimento do donatário, a subsequente entrega ou

pagamento ao donatário não seria, já, nenhuma verdadeira doação. A doutrina francesa

também se manifestou contra a viabilidade do pactum de donandum. Estes raciocínios foram

retomados, entre nós por Cunha Gonçalves. A grande vaga de fundo favorável à contratação e

às promessas, dobrada por uma certa insensibilidade aos valores civis tradicionais, levaram a

doutrina a admitir, em geral, a promessa de doação. O movimento começou na periferia com a

doação, menos violenta, de direitos obrigacionais. Vaz Serra ponderou o problema de iure

condendo: opta pela possibilidade do contrato-promessa de doação, “embora sejam de exigir

para ele certas formalidades”: a espontaneidade da doação não é afetada, desde que se garanta

a sua seriedade e ponderação, propondo uma norma, que não passaria ao Código de 1966: este,

ao contrário do sucede com outros códigos civis, não dispõe sobre a promessa de doação: nem

em sede de contrato-promessa, nem na da doação. Após a publicação do Código Vaz Serra, o

próprio Vaz Serra manteria a possibilidade de promessas de doação, sendo retomado, nesse

ponto por Antunes Varela e por Almeida Costa. Afirmando que, nesse caso, não seria possível a

execução específica: teríamos, pois, uma prometibilidade fraca. A fragilidade dos argumentos

em presença recomenda, vivamente, uma ronda pela jurisprudência. As conclusões são simples:

mantém-se uma forte corrente contrária à admissibilidade da promessa de doação; entre os que

a admitem, é tranquila a rejeição da execução específica; em nenhum caso, sob razões várias,

encontramos uma condenação de um promitente doador a indemnizar ou a uma execução

específica de uma promessa de doação. O Direito não é apenas tecnicidade conceitual. Há um

sentimento do justo, próprio de cada sociedade e que qualquer ordenamento apetrechado não

poderá deixar de aplicar. Veremos como articular tal sentimento com a lei. Enquanto ponto de

partida, vamos recordar dois aspetos pacíficos:

- o contrato-promessa tem um desenho legal que pressupõe contratos definitivos

onerosos e sinalagmáticos: basta pensar nos mecanismos inerentes ao sinal e à execução

específica;

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- a doação assume uma dogmática própria, distinta da dos demais contratos,

estruturalmente onerosos.

Nestas condições, torna-se clara a desadaptação do contrato-promessa perante a

doação. Tal desadaptação ficará sanada com a exclusão da execução específica? Se o contrato-

promessa de doação fosse válido e eficaz,, ele daria, ao donatário, o direito à celebração da

doação definitiva. Não havendo lugar à execução específica, ele deveria ser indemnizado pelos

danos advenientes do “incumprimento” do doador. E tal indemnização teria, pelo menos, o

valor do bem doado, do qual o donatário foi privado. Assim sendo, admitir a promessa de doação

é remeter, para a promessa, o papel de transferência gratuita de valores, transferência essa que,

psicológica e sociologicamente, só ocorrerá com o definitivo. Será admissível? A resposta é

negativa. O contrato-promessa de doação não pode, pelas razões apontadas, dar azo à

obrigação de celebrar a doação definitiva. Esta mantém-se livre, até ao seu cumprimento. A

doação, pela sua própria natureza, não é o prometível: nem em sentido forte (execução

específica), nem em sentido fraco (mera obrigação de contratar). Mas nem por isso teremos de

considerar a promessa de doação como nula: não viola normas imperativas. Apenas é ineficaz,

quanto às prestações principais, não surgindo, por isso, como um verdadeiro contrato-promessa.

Quedam os deveres acessórios: de segurança, de lealdade e de informação. Assim, se celebrada

uma promessa de doação, o promitente doador, sem justa causa, se retratar, poderá haver lugar

a indemnização pelos danos de confiança e por maiores despesas. A promessa de doação não é

um verdadeiro contrato-promessa por falta de prometibilidade do “contrato-definitivo”.

O casamento: o casamento tem projeções pessoais, sociais e económicas bem conhecidas ou

intuídas. Em regra, o casamento é preparado com antecedência, sendo precedido por um

convívio, pelo namoro e pelo noivado. Nessa sequência, pode surgir uma promessa de

casamento: um acordo, entre ambos os interessados tendente à futura conclusão de um

casamento. Durante esse período, são feitos, sempre em regra, preparativos, que envolvem

despesas. Está em jogo a constituição de uma nova família. A lei não pode desamparar essas

situações. Todavia, pretende que o casamento seja inteiramente livre, até à sua celebração.

Nesse sentido, vem regulada a promessa de casamento. Esta, concluída a título de esponsais

quando rompida sem justo motivo por um dos noivos ou quando, por culpa de um deles, dê azo

a que o outro de retrate, apenas dá lugar a que o noivo inocente:

- seja indemnizado quer das despesas feitas, quer das despesas contraídas, naprevisão

do casamento (1594.º, n.º1, 2.ª parte);

- sendo a indemnização fixada segundo o prudente arbítrio do tribunal, de acordo com

os elementos referidos no artigo 1594.º, n.º3.

Perante este regime, poder-se-ia excogitar que a promessa de casamento seria um

verdadeiro contrato-promessa, mas ao qual o Direito associaria um regime especial, como que

amortecido: apenas quedaria uma indemnização, de certo modo limitada. Todavia, surgem

problemas, logo perante o regime. Com efeito, tal indemnização:

- pode caber aos pais do noivo inocente ou de terceiros, que tenham agido em nome

dos pais (1594.º, n.º1, in medio); ora tais pessoas são terceiros, na promessa;

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- é devida em caso de incapacidade, quando haja dolo do noivo incapaz ou dos seus

representantes; ora, aqui, surge uma figura diversa, uma vez que a fonte do dever de

indemnização não é o incumprimento, mas antes o dolo.

Em qualquer caso, a rutura de esponsais dá sempre azo:

- à restituição de donativos que o outro ou terceiro tenham feito, em virtude da

promessa ou na expectativa do cassamento, nos termos da nulidade ou da anulabilidade do

negócio jurídico (1592.º, n.º1);

- à restituição de cartas e retratos pessoais do outro noivo, mas não de coisas

consumidas antes da retratação ou da verificação de incapacidade (1592.º, n.º2).´

Nada disto e objeto de uma promessa de casamento. Logo, não pode ser imputado a

um contrato com tal teor. As dificuldades em reconduzir a promessa de casamento a um

verdadeiro contrato levaram à defesa de outras teorias, para além do contrato:

- teoria da facticidade: a relação de noivado seria uma pura relação social, fonte de

simples deveres morais. A sua quebra envolveria responsabilidade ética ou uma quebra de um

“contrato social”. Estamos, todavia, perante fórmulas descritivas, quando se impõe uma efetiva

redução dogmática;

- teoria da relação legal: assente na confiança, a promessa de casamento tem natureza

pessoal, mas implica projeções patrimoniais. Combinado um casamento, ambos os noivos

envolvem os seus patrimónios, normalmente com o apoio das respetivas famílias, realizando

despesas que, para o nível económico de quem começa uma vida são, em regra, consideráveis.

A vinculação mantém-se pessoal, podendo ser discricionariamente quebrada por qualquer um

deles. Pelo prisma do Direito das Obrigações, significa isso que, da promessa de casamento, não

derivam as prestações principais de concluir o casamento. Mas quedam deveres acessórios,

articulados em torno dos valores pessoais e sociais, que uma combinação de casamento sempre

implica. Nos termos gerais, tais deveres envolvem segurança, a lealdade e a informação, numa

configuração típica a que podemos chamar promessa de casamento. E também nos termos

gerais, tais deveres podem requerer a proteção dos interesses de terceiros. Mais explicitamente,

devem as partes

- respeitar a segurança física, moral e patrimonial uma da outra, precavendo quaisquer

atos ou situações que possam atentar contra as integridades respetivas;

- manter a lealdade, de modo a não encetar atos que impliquem a quebra da promessa;

a lei explicita quebras de lealdade com:

a) romper a promessa sem justo motivo;

b) dar lugar a que o outro se retrate (1594, n.º1, 1.ª parte);

- trocar as informações necessárias.

Tudo isto exemplifica o conteúdo da relação obrigacional legal, assente na confiança e

derivada da promessa de casamento. A promessa de casamento (e o próprio casamento) não

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são causas justificativas de agressões físicas, morais ou patrimoniais. Pelo contrário: dão azo a

uma relação obrigacional legal, assente na confiança e constituída pelos apontados deveres

acessórios. A sua violação dá lugar à presunção do artigo 799.º, n.º1. Em suma: a promessa de

casamento não é um verdadeiro contrato-promessa, porque falta, ao casamento, a

prometibilidade jurídica: antes é uma fonte de uma relação obrigacional legal, assente na

confiança, a tomar em termos atualistas e com o alcance resultante dos valores básicos do

ordenamento.

Promessas de contratos reais quoad constitutionem: as promessas relativas a contratos

reais quoad constitutionem suscitam dúvidas desde a Antiguidade. Pelo seguinte: o contrato real

quoad constitutionem exige a entrega da coisa. Esta não pode ocorrer na própria promessa. Caso

os interessados pudessem, com validade, obrigar-se a concluir um contrato desse tipo, chegar-

se-ia a uma situação final em tudo idêntica ao real quoad constitutionem, embora sem qualquer

tradição. Mas, justamente: estas dificuldades poderiam, numa visão mais aberta, justificar os

contratos-promessa relativos a contratos quoad constitutionem: não havendo disponibilidade

física da coisa e pretendendo as partes, desde logo, contratar, teriam a disponibilidade do

contrato-promessa correspondente. A questão pôr-se-ia no tocante à execução específica: esta

não seria possível, tratando-se de contratos reais quoad constitutionem. Em suma: os contratos

reais quoad constitutionem teriam começado por não apresentar qualquer prometibilidade;

mais tarde, ter-se-iam quedado por uma prometibilidade fraca, isto é: sem possibilidade de

execução específica. O Direito atual é francamente desfavorável à exigência de tradição, para o

fecho de determinados contratos. Por maioria de razão, não há como obstacular às

correspondentes promessas.

Típicos e atípicos: outras situações, que em tempo terão levantado dúvidas, são hoje pacíficas.

Assim, admitem-se:

- promessas de partilhas;

- promessas de alienação de coisa alheia;

- promessas de arrendamento;

- promessas de sociedade;

- promessas de elementos atípicos.

Em todos os casos, há que atentar: os concretos deveres que assistem aos promitentes

são modelados pelo objetivo final: a conclusão do definitivo em causa. Este deve ser usado como

bússola interpretativa da promessa em jogo. O contrato-promessa pode ainda, para além de

elementos destinados à inclusão do contrato prometido, incluir regras de conduta imediata que

transcendam esse âmbito. Assim, temos:

- cláusulas que permitem, ao promitente-adquirente, indicar a quem será feita a venda;

- cláusulas que facultem a imediata entrega da coisa prometida vender ao promitente-

adquirente, o que coloca a questão de saber se há posse do promitente-adquirente;

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- cláusulas que se reportem à execução e ao incumprimento do próprio contrato

definitivo.

Em todos os casos, há que distinguir a matéria reportada ao definitivo, matéria essa que

deve ser aferida pelo prisma da prometibilidade, e a restando. Quanto ao conjunto: teremos um

contrato misto, ao qual caberá aplicar o competente regime.

Secção II – O regime

23.º - A forma

Evolução e regra geral: ao contrato-promessa não foi, inicialmente, dada especial importância.

Ela não tinha eficácia translativa do domínio e, aparentemente, não envolvia grande

responsabilidade de ambas as partes. E assim, o Código de Seabra, na sua redação pimitiva, não

continha regras formais relativas às promessas. Esse silêncio poderia ser interpretado no sentido

de se lhe aplicarem as regras formais relativas ao contrato definitivo. Todavia, a natureza

especial das regras formais leva a que elas nãos sejam transponíveis para fora do seu estrito

âmbito de aplicação. E assim teremos de admitir que, no âmbito do Código de Seabra, os

contratos-promessa não estavam sujeitos a qualquer forma especial. A intensificação do tráfego

jurídico, mormente no grande esforço de urbanização que foi feito nos finais do século XIX e nos

princípios do século XX, levou à multiplicação de promessas relativas a imóveis. Aquando da

preparação do Código de 1966, houve mais ponderação. Presentes estavam os modelos

estrangeiros que, com lógica, submetiam o contrato-promessa à forma do definitivo. Sob esta

influência, orientação rejeitada por Antunes Varela, a favor de uma simplificação formal. E assim,

na versão original do artigo 410..º tínhamos as seguintes regras formais:

- ao contrato-promessa não se aplicam as regras formais relativas ao definitivo (410.º,

n.º1);

- exceto tratando-se de contratos definitivos para os quais a lei exija documento

autentico ou particular, altura em que a promessa “só vale se constar de documento assinado

pelos promitentes” (410.º, n.º2).

A expressão “pelos promitentes” levantou dúvidas de interpretação e de aplicação. De

todo o modo, ficou adquirida uma dualidade de regimes formais – e isso para além da hipótese

do artigo 413.º:

- os contratos-promessa comuns não implicam qualquer forma, aplicando-se a regra da

liberdade, fixada no artigo 219.º;

- os contratos-promessa referentes a definitivos sujeitos a documento autêntico ou

particular, submetem-se a documento assinado pelos promitentes.

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Os contratos-promessa puramente consensuais, relativos a bens correntes do dia-a-dia,

são muito frequentes e não levantam problemas. A sua inobservância, de resto, não chega aos

tribunais. Em relação aos restantes: pertence hoje à cultura jurídica comum a ideia da redução

a escrito e da assinatura, para desencadear a vinculação. A lei e totalmente adequada.

A consubstanciação do escrito e os “promitentes”: o que entender por documento escrito?

Apesar do uso do singular é pacífico que o “documento” pode resultar de uma troca de cartas,

estando, cada uma delas, assinada pelo interessado respetivo ou de dois documentos, original

e duplicado, se o promitente vendedor tiver assinado o exemplar entregue ao promitente

comprador e este tiver assinado o exemplar entregue àquele. Nos termos gerais, o documento

escrito deve conter os elementos essenciais da promessa, ela própria reportando os fatores

básicos do definitivo. Assim, não basta a simples entrega de um recibo de sinal e isso a menos

que, de tal recibo, resultem os exigíveis elementos essenciais. A fortiori: não é suficiente a mera

entrega do sinal. A lei exige a “assinatura”. Se o interessado não souber ou não puder assinar,

pode outrem fazê-lo a rogo, nos termos gerais do artigo 154.º Código Notariado. A

jurisprudência também valida, em vez da assinatura, a aposição de impressão digital. Mais

complicado é o sentido de “promitentes”. Em termos literais, “promitente” pode ter um de dois

sentidos:

- o promitente como parte num contrato-promessa: nessa aceção, qualquer promessa

tem, pela natureza das coisas, duas partes e, logo, dois “promitentes”;

- o promitente como aquela parte que, num contrato-promessa, assumia, perante a

outra, a adstrição de celebrar o contrato definitivo; e isso porque o artigo 411.º admite, de modo

expresso, que apenas uma das partes possa ficar vinculada ao definitivo.

A primeira hipótese seriam sempre exigíveis duas assinaturas; na segunda, sê-lo-iam nas

promessas bivinculantes, bastando uma, nas restantes. À partida, é insólita a hipótese de um

contrato assinado, apenas, por uma das partes. Todavia, Antunes Varela, autor do texto, veio

esclarecer: Promitente seria, para o Código de 1966, apenas a parte que, num contrato-

promessa, fique vinculada ao definitivo. Esta solução tendia a ser pacífica. Todavia, em 1986, o

Decreto-Lei n.º379/86, 11 novembro, visando “esclarecer dúvidas”, veio redigir o n.º2 do artigo

410.º, criando novas dúvidas, particularmente vinculadas perante as cláusulas acessórias.

A comissão de reserva e os deveres acessórios: num contrato-promessa monovinculante, a parte

que não esteja vinculada a celebrar o contrato definitivo e que, portanto, o fará se quiser, não

deixa de ser contratante. E por essa via, ela fica vinculada:

- a todas as prestações secundárias que as partes queiram pactuar;

- aos diversos deveres acessórios, derivados da boa fé (762.º, n.º2).

No primeiro caso, está, designadamente, a chamada “comissão de reserva”: a parte que

não está vinculada a celebrar o contrato definitivo, obriga-se a retribuir a vantagem assim

percebida através de um pagamento. Havendo comissão de imobilização, ambas as partes ficam

obrigadas. Devem assinar? As opiniões dividem-se

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- a resposta positiva é dada por Galvão Telles: o contrato torna—se bilateral, pelo que

as partes são interessadas e assinam;

- a resposta negativa advém de Pinto Monteiro, de Almeida Costa, e dubitativamente,

de Menezes Leitão: no fundamental, não estando tal cláusula sujeita a forma especial, cairia na

liberdade de forma (219.º);

- a resposta intermédia provém de Antunes Varela: embora se trate de uma promessa

unilateral, uma vez que o beneficiário está adstrito a uma prestação, ambos devem assinar.

Pelas regras gerais, a cláusula de remuneração ou comissão de reserva, pela qual o

promitente não vinculado à promessa compensa a contraparte pelo encargo por esta assumido,

é acessória. Caímos no artigo 221.º, n.º1: não lhes é exigida a forma do contrato propriamente

dito, uma vez que as razões de ser da exigência formal não se repercutem; apenas se exigirá a

prova de corresponderem à vontade das partes. Passando ao texto do artigo 410.º, n.º1: do

elemento sistemático, deve extrair-se que “parte que se vincula” é, apenas, a que se adstringe

a concluir o contrato prometido e não aquela que assuma quaisquer outras vinculações. E a

própria intenção do legislador histórico tal depõe no mesmo sentido. Para além das cláusulas

relativas a prestações secundárias, de que a comissão de reserva é o exemplo mais típico,

devemos ter presente o universo dos deveres acessórios. Apesar de não estar vinculado a

concluir o contrato definitivo, a parte “promissária” fica adstrita a deveres de segurança,

lealdade e de informação. Ela não deve submeter o promitente vinculado a incertezas excessivas,

piorando a sua situação. Além disso, deve exercer a sua posição com lisura e clareza, dando

todos os elementos necessários para que o promitente vinculado possa cumprir a sua obrigação.

Outros aspetos serão vistos a propósito do artigo 411.º. A responsabilidade em que, po via dos

deveres acessórios, a parte “promissária” pode incorrer, fica embaciada mercê da

desformalização em que ela incorre. De iure condendo, todas estas subtilezas deveriam ter sido

proscritas: qualquer contrato-promessa, relativo a definitivos formais, dever-e-ia sujeitar à

forma escrita. Pelo Direito vigente, isso não sucede, antes de aplicando o regime acima

explanado.

Os bivinculantes só com um assinatura: a exigência, no tocante aos contratos-promessa, de

duas assinaturas, sempre que sejam bivinculantes, suscitou uma das mais proliferas questões

do atual Direito Civil. Quid iuris se, num contrato desse tipo, houver apenas uma assinatura? À

partida, tínhamos duas hipóteses:

- ou tal contrato vale, automaticamente, como promessa monovinculante;

- ou tal contrato é nulo, por falta de forma.

Sendo nulo, ele ainda poderia, em certas circunstâncias, ser aproveitado:

- ou por redução;

- ou por conversão.

Todas estas opções encontraram defensores e jurisprudência. Num primeiro momento,

após a entrada em vigor do Código Vaz Serra, o Supremo inclinou-se para a ura e simples

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nulidade do contrato-promessa que, exigindo as assinaturas de ambas as partes, apenas

contivesse uma delas. Dois meses volvidos, tomou a posição oposta. Decidiu que a promessa

bivinculante subscrita por apenas uma das partes valia em relação a esta, mas não à outra.

Contra, manifestou-se logo Vaz Serra: esta transmutação só seria possível de se verificassem as

regras da redução. As dúvidas suscitadas levaram a novo acórdão onde foi confirmada a segunda

orientação do Supremo: na presença de uma só assinatura, valia o contrato como

monovinculante. Mas sem unanimidade. Em 26 de abril de 1977, o Supremo decidiu de modo

diverso. O contrato bivinculante com apenas uma assinatura é nulo: apenas verificados os

requisitos do artigo 292.º (redução) se poderia preservar, como monovinculante, um contrato-

promessa assinado só por uma das partes. Em novo acórdão, de 10 de maio do mesmo ano, o

Supremo manteve tal orientação. As dúvidas voltaram a suscitar-se, surgindo decisões que

admitiam a convolação para a promessa monovinculante, na presença de uma única assinatura.

O Supremo, com todo o formalismo então aplicável, tirou um assento:

«No domínio do texto primitivo do n-º2 do artigo 410.º do Código Civil vigente, o

contrato-promessa bilateral de compra e venda de imóvel, exarado em documento assinado

apenas por um dos contraentes é nulo, mas pode considerar-se válido como contrato-promessa

unilateral, desde que essa tivesse sido a vontade das partes.»

Resolveu-se um problema, mas criou-se outro: o assento impedia transmutações

automáticas, mas não dizia se o aproveitamento da promessa inválida se fazia pela redução ou

pela conversão. A jurisprudência subsequente passou a tentar interpretar o ambíguo assento.

Diversos autores intervieram nessa contenda, fixando-se o seguinte quadro doutrinário:

- a favor da redução votam Almeida Costa e Menezes Leitão;

- a favor da conversão depõem Antunes Varela e Galvão Telles.

A questão não é de mera qualificação: envolve o regime. A redução pode ser travada

mostrando-se que o negócio não teria sido concluído sem a parte viciada – 292.º - o que constitui

um aceno à vontade real; a conversão pelo contrário, apela a uma vontade hipotética modelada

pelo fim, mais objetiva – 293.º . Além disso, o ónus da prova não é coincidente; na redução, o

interessado deve provar a divisibilidade do negócio cabendo à contraparte demonstrar que ele

não teria sido concluído senão na totalidade; na conversão, cabe ao interessado fazer prova de

que teria havido – a saber-se da invalidade – um negócio diverso. Pela nossa parte, sempre

temos preconizado uma interpretação-aplicação conjunta dos dois preceitos, a que

acrescentaríamos ainda, pelo menos, o artigo 239.º, com o seu apelo à boa fé, devidamente

concretizado. No sistema do contrato-promessa, não podemos deixar de sublinhar o seguinte:

uma promessa monovinculante é visceralmente diferente da bivinculante: na primeira, surge

uma parte sujeita ao livre arbítrio de outra, o que não sucede na segunda. Não há, aqui, um

mero problema de “invalidade parcial”: o ponto é tão importante que todo o contrato fica

atingido. As prestações principais têm um sentido diferente, consoante a natureza mono ou

bivinculante da promessa. Os deveres acessórios, que podem ser decisivos, são diversos. Apenas

a conversão pode salvar a promessa bivinculante, vitimada por falta de uma assinatura. O

contrato, particularmente quando fonte de obrigações, é um conjunto. Além da lógica

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articulação entre prestações principais, temos as prestações secundárias e os deveres acessórios

que lhe dão toda uma coloração. Quando subscrevam um contrato, tudo o que lá está é essencial:

A invalidade de uma cláusula implica a invalidade total. O interessado em salvaguardar (parte

do) contrato tem o ónus de provar a divisibilidade. Aliás: pelas regras gerais, ele tem o ónus de

provar os factos de onde promane a posição que queira valer (342.º, n.º1). Apenas feita essa

prova se devolve, à outra, a “contraprova” de que o contrato, apesar de “divisível”, não teria

sido concluído sem a parte viciada. No tocante ao contrato-promessa, não é possível excluir a

hipótese de “divisibilidade”. Em regra e como foi dito, a promessa monovinculante não é uma

“parcela” da correspondente bivinculante: é antes total e qualitativamente diferente. Há, pois,

que recorrer à vontade hipotética das partes, na base de indícios que o interessado tem o ónus

de provar, para se operar a conversão. Mas no concreto, pode não ser assim, de tal modo que,

provada a divisibilidade, caiba à contraparte provar o fim contrário das partes. A chave deve

residir na boa fé e na confiança. A pessoa que, voluntariamente, celebre um contrato por escrito,

tendo-o concluído e, depois, invoque a falta da sua própria assinatura para não se considerar

vinculada, estará, com grande probabilidade, a atentar contra a boa fé. A exceptio de não ter

assinado apresenta-se como um venire contra factum proprium. O Direito reage, forçosamente,

com reserva. Por isso, preconizamos uma conjugação dos artigos 292.º, 293.º, 239.º e 334.º para,

em cada caso concreto, encontrar a solução adequada.

Os contratos-promessa urbanos: chamaremos, brevitatis causa, contratos-promessa

urbanos aos contratos-promessa respeitantes:

«(…) à celebração de contrato oneroso de transmissão ou constituição de direito real

sobre edifício, ou fração autónoma dele, já construído, em construção ou a construir(…)»

na terminologia do artigo 410.º, n.º3. Relativamente a eles, existe um regime formal específico,

desde 1980, que tem levantado um mar de dúvidas. O circunstancialismo histórico que presidiu

à reforma introduzida pelo Decreto-Lei n.º 236/80, 18 julho, deve ser reconstituído. Nessa época,

o País curava de absorver cerca de um milhão dos seus cidadãos que haviam regressado, sem

nada, do Ultramar. Faltavam habitações. O arrendamento estava bloqueado pelo regime

vinculistico, sendo impossível revê-lo por pruridos de tipo ideológico. Assistiu-se, por isso, a um

pico de construção para habitação própria, procedendo-se a uma imediata colocação no

mercado de novos fogos, mesmo quando clandestinos ou, ainda, em construção. E o contrato-

promessa de compra e venda surgia como instrumento de eleição para se proceder a uma rápida

comercialização, com uma colheita de fundos, junto de particulares interessados. Esta súbita

corrida à habitação própria coincidiu com uma depreciação cambial muito marcada, do escudo,

projetada, de imediato, em taxas elevadas de inflação. Punham-se problemas deste tipo:

- eram concluídos contratos-promessa relativos a construções clandestinas, isto é: sem

licena de habitação e construção; as escrituras surgiam, depois, impossíveis;

- os promitentes alienantes celebravam contratos-promessa e recebiam os

correspondentes sinais; mais tarde, por vezes já com a família compradora a residir no local

prometido vender, incumpriam, restituíam o sinal em dobro e vendiam a terceiros por um preço

que permitia não só cobrir essa restituição mas, ainda, faturar um lucro;

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- os promitentes alienantes, depois de celebrada uma promessa e, também e por vezes,

já com a família adquirente a residir no local, elevavam unilateralmente o preço, ameaçando

não cumprir o definitivo. Em meados de 1980, um conhecido promotor imobiliário iniciou

procedimentos deste tipo em grande escala. Alarmado, o Ministro da Justiça da época (Mário

Raposo) decidiu intervir, aprontando, de imediato, o diploma legal depois aprovado como

Decreto-Lei n.º 236/80, 18 julho. O preâmbulo desse diploma começa por mencionar o contrato-

promessa como via de eleição para a aquisição de habitação própria. A sua frequência adviria

de dois factos, causadores da impossibilidade da celebração imediata do contrato de compra e

venda:

- o inacabamento da construção;

- “(…) a inexistência imediata dos requisitos indispensáveis ao registo do direito de

propriedade do transmitente”.

Em face de tal frequência, o preâmbulo explica que o regime legal não responde às

necessidades da então conjuntura. Isso porque os promitentes-compradores:

- ou veem resolvido o contrato, pelo outro outorgante, com uma indemnização – o

dobro do sinal – que não corresponde à soma desembolsada e não cobre o dano emergente da

resolução;

- ou são coagidos, para alcançar a propriedade da casa que muitas vezes já habitam, a

satisfazer exigências inesperadas, que agravam o preço inicialmente fixado.

Sempre no preâmbulo, o legislador explica que vai exigir, quer para das mais solenidade

ao contrato, quer para evitar a venda de construções clandestinas sem conhecimento do

adquirente, que, no documento do contrato, se proceda ao reconhecimento presencial das

assinaturas dos promitentes e que o notário certifique a existência de licença de construção do

edifício. Mantém, depois, ao que diz, a regra anterior no tocante à resolução do contrato,

havendo sinal. Simplesmente, tendo havido tradição da coisa para o promitente comprador, a

indemnização passa a ser o valor da coisa em vez que “(…) se criou forte expectativa de

estabilização no negócio e uma situação de facto socialmente atendível (…)”. Essa situação é

reforçada pela atribuição, ao promitente comprador, de um direito de retenção. Tudo isto é

dobrado pelo reconhecimento, ao promitente comprador, do direito de, em alternativa,

requerer a execução específica do contrato. Por razões de equilíbrio, se deve reconhecer, ao

promitente vendedor, a possibilidade de, na execução específica, pedir a modificação do

contrato por alteração das circunstâncias. Ocupa-se, finalmente, da expurgação de eventual

hipoteca, podendo o promitente comprador exigir do promitente vendedor a entrega do

montante do débito garantido. Em suma:

-está em causa apenas o contrato-promessa de compra e venda de casa para habitação

própria

- a problemática focada ronda a quebra de equilíbrio, provocada pela inflação, entre os

promitentes. Mas não só;

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- focam-se também problemas conexos como o da construção clandestina e a

necessidade de dignificar a promessa de compra e venda de habitação própria.

Tudo isto, seriado no preâmbulo do diploma, é confirmado pelas soluções nele próprio

aprontadas, sempre para a promessa de compra e venda de habitação própria; pretende-se

alterar a promessa de compra e venda de habitação própria; pretende-se alterar o contrato-

promessa no tocante à sua celebração, para a dignificar e combater a construção clandestina e,

no que respeita à violação, com o fito de tornear a depreciação monetária. No domínio da forma,

o Decreto-Lei n.º 236/80 aditou, ao artigo 410º, um novo número – o 3 – com o teor seguinte:

«No caso de promessa relativa à celebração de contrato de compra e venda de prédio

urbano, o de sua fração autónoma, já construído, em construção ou a construir, o documento

referido no número anterior deve conter o reconhecimento presencial das assinaturas dos

outorgantes e a certificação, pelo notário, da existência da respetiva licença de construção. A

omissão destes requisitos não é, porém, invocável pelo promitente vendedor, salvo no caso de

ter sido o promitente comprador que diretamente lhe deu causa.»

A retificação de 29 julho 1980 corrigiu “licença de construção” para “licença de utilização

e de construção”. Em relação a este preceito, formulámos os reparos seguintes:

- a referência a “prédio urbano” deve ser convolada para edifício; os “prédios” não se

constroem e não têm frações;

- a menção a compra e venda visa, na realidade, todos os contratos onerosos, típicos ou

atípicos, relativos a edifícios;

- não está em causa, apenas, a propriedade, mas ainda qualquer outro direito real;

- a sanção final visa compelir o vendedor a regularizar o objeto do negócio projetado.

Sensível a estas críticas o legislador deu ao artigo 410.º, n.º3, uma nova redação, através

do Decreto-Lei n.º 379/86, 11 novembro. Temos, assim, um regime formal e de formalidades

específico para as promessas urbanas:

- devem conter o reconhecimento presencial da assinatura do promitente ou

promitentes;

- bem como a certificação, pela entidade que reconheça as assinaturas, da existência de

licença de utilização ou de construção.

O âmbito de exigência formal do artigo 410.º, n.º3 foi delimitado pela jurisprudência.

Assim, ela não se aplica:

- ao direito real de habitação periódica, pela sua natureza;

- à superfície relativa a um posto de abastecimento de combustíveis;

- à compra e venda do direito e ação à herança, integrada por bens imóveis;

- a negócios sobre prédios rústicos.

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Temos de entender, em todos estes casos, que ou não há habitação ou se verifica um

regime especial que afasta o Código Civil. Em compensação, o preceito aplica-se a terrenos para

construção que já tenham um projeto. A omissão das exigências formais do artigo 410.º, n.º3,

quando tenham aplicação, deveria dar azo a nulidade, por via do artigo 220.º. Com isso, porém,

a reforma de 1980, mantida em 1986, teria vindo precarizar ainda mais a posição dos

promitentes-adquirentes urbanos: precisamente as pessoas que, supostamente, viria defender.

Por isso, no seu final, o preceito incluiu uma regra especial:

«(…) contudo, o contraente que promete transmitir ou constituir o direito só pode

invocar a omissão destes requisitos quando a mesma tenha sido culposamente causada pela

outra parte.»

Assim concebido, este preceito deixava em aberto:

- se o promitente-adquirente podia invocar a invalidade a todo o tempo;

- se ela podia ser invocada, também a todo o tempo, por terceiros;

- se ela podia ser declarada ex officio, pelo Tribunal; e se ela podia ser sanada,

supervenientemente.

Pela nossa parte, respondemos pela negativa às três primeiras questões e pela positiva,

à última. Com efeito, o artigo 410.º, n.º3 desenha uma invalidade mista, a aproximar da

anulabilidade: o promitente-adquirente, na falta do formalismo legal, recebe o direito

potestativo de anular o negócio. O promitente-alienante só disporá de idêntico direito quando

a omissão tenha sido culposamente causada pelo promitente-adquirente. Ainda poderíamos

admitir que estejam em jogo interesses públicos, que requereriam a nulidade. Todavia, o tipo

de norma em causa mostra que a valoração legislativa se dirige à proteção dos promitentes-

adquirentes e não à da regularidade das construções. A jurisprudência oscilou um pouco,

acabando por acolher-se à boa doutrina. A invocação da invalidade ex 410.º, n.º3, a levar a cabo

pelo promitente-adquirente, pode, nos termos gerais, ser bloqueada por abuso do direito. Assim

sucederá quando o próprio adquirente, com conhecimento de causa, tenha dispensado a

formalidade ou quando tenha recebido alguma vantagem patrimonial, precisamente para

simplificar a conclusão do contrato. Mas haverá, aí, que insistir nos aspetos do investimento de

confiança, requerido para a tutela do interessado e nos aspetos teleológicos em causa. Apesar

de se jogar uma invalidade sui generis, destinada a proteger o adquirente, é obvia, também, a

presença do interesse público, sempre ligada às exigências de forma. Digamos, em síntese, que

se exige, para bloquear, ex bona fide, a invocação da invalidade decorrente do artigo 410.º, n.º3,

um abuso do direito reforçado.

As promessas reais: chamaremos, brevitatis causa, promessa real ao contrato-promessa com

eficácia real, previsto no artigo 413.º do Código Civil. Para já, releva a forma. E para os presentes

propósitos, vamos reter que a promessa real é oponível não inter partes mas, ainda, erga omnes.

O código Civil prevê-a, apenas, quanto a imóveis ou móveis sujeitos a registo e, ainda, em certos

requisito. E fixa, para ela, uma forma especial, mais exigente. Na versão original do Código Civil,

o artigo 413.º, na sua redação, há que reter a questão da forma:

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- o Código de 1966 sujeitava a escritura pública todos os contratos-promessa com

eficácia real;

- todavia, tais contratos podiam visar contratos definitivos totalmente consensuais,

como o da compra e venda de automóveis.

Chegar-se-ia, deste modo, ao absurdo de exigir, para a promessa, uma forma (muito)

mais pesada do que a requerida para o correspondente definitivo, quando a sensibilidade do

Direito português é precisamente a inversa: o aligeiramento da forma, no tocante à promessa:

o aligeiramento da forma, no tocante à promessa (410.º, n.º1). O legislador de 1986 foi sensível

a estas críticas. E assim, o Decreto-Lei n.º 379/86, 11 novembro, desdobrou o artigo 413.º,

inserindo, no seu n.º2, a matéria relativa à forma, nos termos seguintes:

«Deve constar de escritura pública a promessa a que as partes atribuam eficácia real;

porém, quando a lei não exija essa forma para o contrato prometido, é bastante documento

particular com reconhecimento de assinatura da parte que se vincula ou de ambas, consoante

se trate de contrato-promessa unilateral ou bilateral. »

Finalmente, o Decreto-Lei n.º 116/2008, 4 setembro, que visou limitar o papel dos

notários, substituiu a primeira parte do preceito por:

«Salvo o disposto em lei especial, deve constar de escritura pública ou de documento

particular autenticado a promessa a que as partes atribuam eficácia real(…)»

Os preceitos parecem claros, devendo assinar-se que o Decreto-Lei n.º 379/86, além de

restabelecer coerência no campo do contrato-promessa, antecipou o atual movimento

destinado a desformalizar o Direito. As consequências técnicas precisas da promessa real são

discutíveis: nenhum notário as vai resolver. Mas o sentido da figura – a oponibilidade erga

omnes – é percetível por qualquer cidadão. A alteração de 1986 merece, neste ponto, todo o

aplauso.

24.º - O regime substantivo

Aspetos gerais; o principio da equiparação: segundo o artigo 410.º, n.º1, ao contrato-

promessa são aplicáveis:

- as disposições legais relativas ao contrato prometido;

- excetuadas as relativas à forma;

- e as que, por sua razão de ser, não se devem considerar extensivas ao contrato-

promessa.

A aplicação, como regra, ao contrato-promessa, do regime do contrato prometido, dá

azo ao princípio da equiparação. De facto, tal princípio impõe-se, por via de valorações

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sistemáticas muito simples: pelo contrato-promessa, designadamente cabendo a execução

específica, as partes podem encontrar-se na precisa situação em que se encontrariam perante

a celebração imediata do contrato definitivo. Logicamente: deverá aplicar-se o mesmo regime.

O princípio da equiparação projeta-se, designadamente, na aplicação, ao contrato-promessa,

das seguintes regras de ordem geral, próprias do contrato definitivo concretamente em jogo:

- nos pressupostos: as regras relativas à capacidade das partes, à sua legitimidade e à

existência e características do objeto, aplicáveis ao definitivo;

- na formulação: as normas atinentes à vontade, à sua exteriorização e ao seu conteúdo,

incluindo, quando seja o caso, as das cláusulas contatuais gerais;

- nos requisitos: os vetores pertinentes à oponibilidade, à determinabilidade, à licitude,

à conformidade legal, aos bons costumes e à ordem pública.

Quanto às cláusulas típicas: operam, na promessa, as regras aplicáveis aos

correspondentes definitivos: na condição, no termo, no modo, no sinal e na cláusula penal. A

natureza global da promessa é infletida pela do contrato definitivo. Finalmente: há que contar

com normas, imperativas ou supletivas, próprias do tipo contratual visado pelo definitivo. O

princípio da equiparação deve ser tomado como uma diretriz de tipo metodológico. Perante um

contrato-promessa, há que principiar por uma ponderação das regras do contrato definitivo, de

modo a verificar se têm aplicação e em que medida. Efetivamente, quer no que tange aos

pressupostos, quer no que toca aos requisitos, pode acontecer que eles faltem aquando da

promessa mas que, pela natureza da situação considerada, seja expectável ou possível que eles

venham a consubstanciar até à conclusão do definitivo. Impõe-se, pois, uma aplicação, caso a

caso, do princípio da equiparação.

Regras não extensivas por sua razão de ser: por sua razão de ser, não se aplicam ao contrat-

promessa todas as regras que visem a consubstanciação das prestações próprias do contrato

definitivo e, a fortiori, o seu regime. Também a temática da perturbação das prestações, típica

de cada uma das figuras contratuais, não tem lugar na correspondente promessa. Ainda na parte

geral das obrigações, encontramos diversas regras que, “por sua razão de ser”, só podem visar

contratos definitivos. De um modo geral, aplicam-se, ao contrato-promessa, as regras relativas:

- à cessão da posição contratual (424.º a 427.º); veja-se, nesse sentido, o artigo 412.º,

n.º2;

- à exceção de não-cumprimento do contrato (428.º a 431.º): nenhuma das partes pode

ser compelida a cumprir a promessa, outorgando no definitivo, se a outa parte não fizer outro

tanto;

- à resolução do contrato, baseada na lei ou na própria promessa (432.º a 436.º); a

resolução pode sobrevir, designadamente, por impossibilidade superveniente (795.º, n.º1) ou

por impossibilidade imputável equiparada ao incumprimento (801.º, n.º2);

- à resolução ou modificação do contrato por alteração das circunstâncias (437.º a 439.º);

o artigo 830.º, n.º2 prevê diretamente essa eventualidade;

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- à antecipação do cumprimento e ao sinal (440.º a 442.º); aí se incluem regras

diretamente viradas para o contrato-promessa;

- ao contrato a favor de terceiro (443.º a 451.º); temos o pactum de contrahendo cum

tertio;

- ao contrato para pessoa a nomear (452.º a 456.º), bastante frequente, nos contratos-

promessa;

- a obrigações alternativas (543.º a 549.º).

Por sua razão de ser, não se aplicam a contrato-promessa, pelo menos inteiramente, as

matérias referentes:

- à pluralidade de credores e devedores (512.º a 538.º);

- a obrigações genéricas (539.º a 542.º).

O modus de contrahendo: na construção do regime do contrato-promessa – de cada contrato-

promessa –a afigura-se fundamental ter presente que, para além do princípio da equiparação,

ele se coloca numa dimensão especial a que poderemos chamar o modus de contrahendo – o

modo de promessa. O contrato-promessa visa efetivamente, a celebração do definitivo. Todos

os deveres que ele postula colocam-se ao serviço desse objetivo comum das partes. Daí uma

série de especificidades:

- prestações principais que se analisam na emissão das declarações de vontade que irão

integrar o definitivo;

- prestações secundárias instrumentais, destinadas a permitir a válida conclusão do

contrato final; particularmente em causa estão todas as tarefas de redocumentação, para tanto

necessárias;

- prestações secundárias materiais, requeridas pelo aprontamento da coisa objeto do

cntrato definitivo ou pela sua manutenção;

- prestações secundárias de tipo jurídico, como sejam a obtenção do consentimento do

outro cônjuge ou a aquisição da coisa pelo promitente-alienante.

Além disso e como temos enfatizado, estão em jogo múltiplos deveres acessórios,

assentes na boa fé e que visam, em modus de contrahendo, acautelar os interesses das partes.

Recordarmos os deveres de segurança, de lealdade e de informação. Na mesma linha, considera

que a parte que tenha dado início à execução da promessa, criando na outra parte a confiança

legítima de que iria prosseguir, não pode invocar na falta, assim como não o pode fazer quem,

por três vezes, reforce o sinal passado. O contrato-promessa não é, no seu regime substantivo,

uma projeção simplificada do definitivo. Ele tem vida própria, regras específicas e funções

distintas. A fixação do regime da promessa é sempre uma atividade criativa, guiada pela Ciência

do Direito e na qual o contrato definitivo visado pelas partes é um elemento, entre outros, a ter

em conta.

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A fixação do prazo na promessa monovinculante: O Código Civil regula algumas vicissitudes

do contrato-promessa. Em primeiro lugar, temos o dispositivo do 411.º, intocado desde 1966:

se se tratar de uma promessa monovinculante, e não se fixar o prazo durante o qual ela se

mantém, pode o tribunal, a requerimento do promitente, fixar à outra parte um prazo para o

exercício desse direito. Expirado o prazo sem que seja atuada a promessa, esta caduca. Pelas

regras gerais, na falta de estipulação ou de disposição especial da lei, o credor pode exigir, a

todo o tempo, a prestação, assim como o devedor pode, a todo o tempo, apresentar-se a

cumprir (777.º, n.º1). este regime funciona perante os contratos-promessa bivinculantes, que

não tenham prazo para o cumprimento. Lembramos que ambos os promitentes são, em

simultâneo, credores e devedores um do outro. No caso da promessa monovinculante, a

vantagem da parte “não-promitente” é, precisamente, a de dispor de um lapso de tempo, de

sua escolha, quando não esteja prefixado, para decidir se contrata ou não. E essa é a

desvantagem do promitente, cujo bem fica como que congelado, à espera da decisão da outra

parte. O ideal será que as partes tenham combinado um prazo para o exercício da promessa.

Não o tendo feito e não havendo acordo, queda a fixação judicial. A fixação judicial de prazo

consta dos artigos 1456.º e 1457.º do Código de Processo Civil. Entre os elementos a ter em

conta, pelo juiz, contar-se-á a eventual existência de uma “comissão de reserva” ou de

“imobilização” e o seu montante, bem como as demais circunstâncias que rodeiem o caso. Em

princípio, quanto maior for a comissão, mais longo será o prazo.

A transmissão da posição das partes: o artigo 412.º, n.º1 determina a transmissão dos direitos

e das obrigações das partes em contratos-promessa, aos seus sucessores, salvo quando sejam

exclusivamente pessoais. Com isso, faz-se aplicação da regra geral do artigo 2024.º, segundo a

qual a sucessão por morte respeita, apenas, às situações jurídicas patrimoniais; as restantes

extinguem-se com a morte do visado. Ocorrendo a sucessão, cabe aos herdeiros cumprir o

contrato-promessa em jogo. Será responsável aquele que o impeça. Este preceito visou eliminar

dúvidas anteriores quanto à transmissão mortis causa da promessa. Quanto à transmissão entre

vivos: o artigo 412.º, n.º2 remete-a para as regras gerais, que são, fundamentalmente, as da

cessão da posição contratual (424.º a 427.º). O direito do promitente é penhorável, nos termos

gerais que norteiam a penhora de direitos. Ocorrendo insolvência de uma parte em contrato-

promessa, cabe ao administrador da insolvência decidir se cumpre o contrato-promessa ou se

recusa o cumprimento. Todavia, não pode ser recusado o cumprimento da promessa com

eficácia real, se já tiver havido tradição a favor do promitente-comprador. Trata-se, com efeito,

de uma situação especialmente reforçada, que o próprio legislador da insolvência considera

irreversível.

Secção III – O Cumprimento e o Incumprimento

25.º - cumprimento e incumprimento da promessa (regras gerais)

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Enunciado: a matéria do cumprimento e do incumprimento das obrigações constitui uma

rubrica básica, próxima da responsabilidade civil. No entanto, ela releva para o contrato-

promessa. Em termos normativos, elas constam do artigos 762.º a 836.º, preceitos que, de resto,

incluem regras específicas para o contrato-promessa, como sucede com a sua execução

específica. Diz-se cumprimento a realização da prestação devida. Pela natureza das coisas,

estamos perante uma realidade nodal, no seio das obrigações: a concretização, pelo devedor ou

por terceiro, do programa previsto pela obrigação em causa. Podemos simplificar fazendo

corresponder, ao cumprimento, quatro princípios:

- princípio da correspondência: a atuação adimplente deve reproduzir, qualitativamente,

o figurino abstrato prefixado pela obrigação;

- princípio da integridade: a prestação não deve ser efetuada por partes (763.º, n.º1),

prevalecendo uma indivisibilidade de raiz;

- princípio da concretização: a conduta devida deve realizar, no terreno, o interesse do

credor;

- princípio da boa fé: na execução do vínculo, há que acatar a medida de esforço exigível

e os deveres acessórios existentes, de modo a acautelar os valores fundamentais do

ordenamento, através da tutela da confiança e da primazia da materialidade subjacente (762.º,

n.º2).

O princípio da concretização traz-nos dados novos: eles dependem do terreno em que

o cumprimento tenha lugar. Estão em jogo os vetores seguintes:

- a legitimidade ativa (quem pode fazer a prestação);

- a legitimidade passiva (a quem deve ser feita a prestação);

- o lugar da prestação;

- o prazo da prestação (o momento em que a prestação deva ocorrer);

- a imputação do cumprimento (havendo várias obrigações similares e uma prestação

insuficiente para as cobrir a todas, qual delas se deve ter por cumprida).

Para os presentes propósitos, releva o prazo da prestação. Tudo isto tem regras: quando

ocorra, cumprimento extingue, em regra, a prestação principal. Mas não põe cobro,

necessariamente, ao vínculo obrigacional. Assim, este subsistirá nas obrigações duradouras e

nas relações complexas, que podem subsistir, através dos deveres acessórios. O incumprimento

é a não realização, pelo devedor, da prestação devida, quanto tal ocorrência corresponda à

violação de normas jurídicas, isto é: quando não exista uma causa de justificação para a não

execução da atitude obrigacionalmente prevista. O incumprimento apresenta várias

modalidades, sendo de distinguir:

- o incumprimento stricto sensu ou não realização, ad nutum, da prestação devida;

- a impossibilidade superveniente imputável ao devedor;

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- a violação positiva do contrato, que engloba o cumprimento imperfeito e a inexecução

de deveres acessórios.

Por seu turno, o incumprimento stricto sensu, pode envolver:

- o cumprimento retardado ou mora: pressupõe a ultrapassagem do prazo do

cumprimento, sem que este se tenha verificado. O prazo corresponde ao vencimento da

obrigação: ou prefixado ou derivado da interpelação do credor, isto é, de uma comunicação

dirigida ao devedor, de que ele deve cumprir. Quando em mora, a obrigação ainda é possível e

satisfaz o interesse do credor. Mas não ad aeternum; por isso, seja pela ultrapassagem e um

novo prazo razoável fixado pelo credor (interpelação admonitória), seja pela perda do interesse,

do mesmo credor, no cumprimento, a mora passa a incumprimento definitivo;

- o incumprimento definitivo: habilita o credor a lançar mão da responsabilidade civil,

dos meios coercivos previstos pelo Direito e, no limite, dos esquemas de responsabilidade

patrimonial.

Cumpre ainda jogar com a ideia de garantia. Genericamente, garantia é todo o instituto

destinado a assegurar as obrigações e o seu cumprimento. Temos:

- a garantia real, que corresponde às regras da responsabilidade patrimonial;

- as garantias pessoais, traduzidas por novas obrigações ou situações obrigacionais;

- as garantias reais, expressas em direitos reais especialmente funcionalizados.

Cumprimento: o cumprimento de um contrato-promessa consiste, em termos analíticos, na

emissão, por cada uma das partes, das declarações de vontade que irão integrar o contrato

definitivo. Em regra, tais declarações não podem ocorrer ad nutum, dada a natureza formal do

definitivo. Haverá, assim, que observar as formalidades envolvidas, executando, a título de

prestações secundárias e de deveres acessórios, todas as atuações instrumentais e materiais,

para tanto necessárias. O contrato definitivo deverá ser, precisamente, o prefigurado na

promessa. Pode suceder que esta deixe espaços em branco. Aí, temos três hipóteses:

- ou a determinação de tais espaços foi deixada a alguma das partes ou a terceiro,

aplicando-se o artigo 400.º, n.º1;

- ou o aspeto por regular é comunicável ao contrato definitivo, altura em que este será

concluído, procedendo-se à determinação aquando da execução deste; assim sucede com a

determinação do preço;

- ou é possível ultrapassar o problema através da integração do contrato-promessa ou

da sua interpretação complementadora (239.º).

Nada disso ocorrendo, o contrato-promessa será nulo por indeterminabilidade do seu

objeto (280.º,n.º1). As partes podem, de comum acordo, concluir um contrato diferente do que

ambas haviam prometido. Nessa altura, teremos uma modificação por mútuo consentimento,

que não levanta maiores dúvidas: salvo se levada a cabo por erro, altura em que tem aplicação

o competente regime. O contrato definitivo deve ser celebrado por inteiro. Já se pôs o problema

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da sua divisão: havendo sucessão hereditária, poderia cada herdeiro celebrar um contrato-

promessa relativo à sua quota-parte, desde que tal eventualidade interesse ao promitente-

adquirente. Nessa hipótese, seria de encarar uma modificação da promessa, por mútuo acordo.

A transmissão da posição de promitente aos herdeiros não pode, seja pelas regras das

obrigações, seja pela das sucessões, modificar a realidade em jogo. A promessa deveria ser

cumprida in totum, pelos herdeiros no seu conjunto. Se um deles faltar, a responsabilidade é da

herança (de todos), sem prejuízo do direito de regresso a que possa haver lugar, contro o

responsável. Quanto aos parâmetros relativos a concretização, no adimplemento, do contrato-

promessa, temos:

- legitimidade: a menos que tenha sobrevivido alguma transmissão da obrigação, o

contrato definitivo só pode ser concluído pelas partes na promessa; há que descontar o pactum

de contrahendo cum tertio, altura em que o definitivo é concluído entre o promitente obrigado

e o terceiro, de acordo com as regras que regem o contrato a favor de terceiro;

- lugar da prestação: o contrato é, em regra um contrato entre presentes; obriga, por

isso, ambas as partes a encontrarem-se para a conclusão; o lugar da celebração, quando não

esteja determinado no contrato ou não seja, nos termos do mesmo, determinável, deve ser

fixado de acordo com as regras aplicáveis ao próprio definitivo, por via do princípio da

equiparação;

- tempo da celebração: não havendo prazo, qualquer das partes pode interpelar a outra,

nos termos dos artigos 777.º, n.º1 e 805.º, n.º1; no caso da promessa monovinculante, poderá

ser necessário recorrer ao tribunal (411.º);

- imputação do cumprimento: na hipótese, algo teórica, de serem concluídos, entre as

mesmas partes, diversos contratos-promessa idênticos e de ser celebrado um contrato

definitivo que não explicite a qual das promessas se reporte, aplicar-se-ão os artigos 783.º e 784.

Incumprimento do contrato-promessa: o incumprimento do contrato-promessa advém,

prima facie de, no momento fixado para a celebração do definitivo, alguma das partes não

comparecer no local determinado ou, por qualquer forma, se recusar a cumprir. Temos duas

situações:

- a mora: resulta da não-celebração atempada do definitivo, por razão imputável a uma

das partes (o promitente faltoso) (804.º, n.º2);

- o incumprimento definitivo: ocorre quando, mercê da mora, o promitente fiel perca

objetivamente o interesse no definitivo ou quando, fixado um novo prazo razoável (prazo

admonitório), o promitente faltoso não cumpra (808.º).

O incumprimento lato sensu da promessa pode ainda resultar de algum dos seguintes

fatores, todos eles assimiláveis ao incumprimento definitivo:

- a impossibilidade superveniente imputável ao promitente faltoso (801.º); tal

impossibilidade pode advir da destruição do objeto do contrato definitivo ou, tipicamente, da

celebração, com um terceiro, do contrato combinado com o promitente fiel;

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- da recusa séria, injustificada e definitiva de contratar; apurada esta, nenhuma razão há

para prosseguir com o inter inadimplente, até alcançar o incumprimento definitivo;

- do acionamento, quando possível, dos mecanismos do arrependimento,

eventualmente subjacentes ao sinal ou a cláusula equivalente.

O incumprimento definitivo extingue as prestações principais. Estas não mais são

possíveis ou, sendo-o, deixam de ser exigidas pelo Direito. Mantêm-se todavia, as prestações

secundárias, quando seja o caso, bem como as acessórias. Além disso, nascem novas obrigações,

agora do foro da responsabilidade contratual (798.º e seguintes).

Outras formas de extinção: o contrato-promessa pode ainda cessar por diversas outras

formas. Assim, de acordo com o esquema geral que rege as relações complexas, temos:

- a revogação: declaração unilateral, discricionária e só viável quando prevista no próprio

contrato, por uma das partes e à outra, de cessação do contrato;

- a resolução: declaração unilateral, vinculada e viável quando prevista no contrato ou

na lei, pior uma das partes à outra, de cessação do contrato; a resolução pode ocorrer, em

princípio, perante o incumprimento de uma das partes;

- a revogação por comum acordo ou distrate: sempre possível, desde que ambas as

partes deem o seu assentimento.

A resolução aparece associada ao incumprimento definitivo, em termos que têm

levantado dúvidas a propósito do funcionamento do sinal e a que teremos a oportunidade de

regressar. O contrato-promessa pode ainda cessar por impossibilidade superveniente, não

imputável a nenhuma das partes (790.º, n.º1). Tal sucederá quando desapareça, por causa

fortuita, o objeto do contrato definitivo ou quando, por alteração legislativa, a celebração do

mesmo contrato se torne juridicamente inviável. Outras hipóteses de extinção das obrigações,

para além do cumprimento, são aqui configuráveis. A saber:

- a compensação, quando se verifiquem dois contratos-promessa de sinal contrário e

concorram os demais requisitos (847.º);

- a novação, sempre que exista acordo, dos promitentes, nesse sentido (857.º);

- a confusão, quando ambas as posições de promitente se reúnam na mesma esfera

jurídica (868.º).

Secção IV – O Sinal e o Direito de Retenção

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26.º - o Sinal e o contrato-promessa

Aspetos gerais e remissão: o sinal é uma cláusula típica, própria dos contratos onerosos. No

que agora releva, podemos sintetiza-lo: aquando da celebração de um contrato ou,

posteriormente mas antes do cumprimento, uma das partes entrega, à outra, uma coisa ou uma

quantia; se o contrato for cumprido, a coisa ou a quantia entregue é imputada no cumprimento

ou, não sendo a imputação possível, é restituída; se houver incumprimento, cabe distinguir:

sendo o incumprimento provocado por quem recebe o sinal, deve este restituí-lo em dobro;

sendo, pelo contrário, causado por quem dá o sinal, fica este perdido. Trata-se de uma figura

conhecida pelos usos, com tradições entre nós. O sinal vem previsto nos artigo 440.º a 442.º, do

Código Civil. Tem um papel de relevo no domínio do contrato-promessa. Surge, ainda, como

uma cláusula frequente: em torno dele há vasta jurisprudência. O sinal não tem uma natureza

unitária. Tal com ele nos surge, trata-se, na verdade, de um produto de uma rica evolução

histórica. Em termos muito sumários:

- o Direito grego antigo, onde o instituto nasceu, o prévio pagamento do sinal assegurava

o negócio, dando-lhe consistência e permitindo o ressarcimento dos danos, no caso de violação;

- no Direito romano, o sinal assumiu uma função confirmatória: provava a existência do

contrato e o termo das negociações; além disso, facultava o ressarcimento dos danos;

- no Direito justinianeu, adquiriu um papel penitencial: permitia ao interessado libertar-

se do contrato, pagando o valor resultante do sinal.

O atual Direito alemão distingue ainda o sinal confirmatório do sinal penitencial: o

primeiro não impede as partes de optar pelo regime geral da indemnização, no caso de

inadimplemento; o segundo permite a qualquer das partes libertar-se do contrato, mediante o

pagamento do valor do sinal ou a sua restituição em dobro. Mas o Direito português, segundo

parece por falta de aprofundamento doutrinário, operou a junção das diversas figuras. Assim:

- o sinal tem uma dimensão confirmatório-penal, na medida em que dá consistência ao

contrato e funciona como indemnização;

- o sinal tem uma dimensão penitencial quando opere como “preço do arrependimento”,

permitindo ao interessado resolver o contrato, mediante o pagamento do que resulte o próprio

sinal.

Antecipando, podemos adiantar que, no âmbito do contrato-promessa, quando as

partes afastem a execução específica, o sinal é penitencial; na hipótese inversa, ele é

confirmatório-penal, uma vez que não há “direito ao arrependimento”. O sinal confirmatório-

penal tornou-se regra no âmbito da reforma de 1980. De todo o modo e em geral, dependerá

da interpretação da vontade das partes o saber se um concreto sinal estipulado tem

predominância confirmatório-penal ou predominância penitencial. No primeiro caso, as partes

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pretenderam ressarcir danos; no segundo, elas procuraram reservar-se a faculdade do recesso.

No primeiro, há indemnização; no segundo, um preço.

Sinal e promessa; redação de 1966: a lógica inicial do Código Vaz Serra passava por um

tratamento conjunto da antecipação do cumprimento e do sinal. Assim:

- no artigo 440.º, com um alcance verdadeiramente genérico, explicita que, se ao

celebrar-se o contrato ou em momento posterior, uma das partes entregar à outra, uma coisa

que coincida, no todo ou em parte, com a prestação a que fica adstrito, a entrega é havida como

antecipação total ou parcial do cumprimento, salvo se as partes lhe quiserem atribuir a natureza

de sinal;

- no artigo 441.º, consignava-se uma norma especial para o contrato-promessa de

compra e venda: aí, toda a quantia entregue pelo promitente-comprador ao promitente-

vendedor, presume-se sinal; o sinal afastava, em princípio, a execução específica da promessa,

nos termos do artigo 830.º, n.º2, versão original;

- no artigo 442.º, fixava-se o funcionamento comum do sinal.

O sistema era simples e coerente. Assim, na generalidade dos contratos, o sinal tinha o

sentido confirmatório, sendo imputado no pagamento sempre que possível. Pelo contrário, no

contrato-promessa e na linha da tradição anterior, tinha um alcance penitencial: permitia que

as parte meditassem até ao momento do cumprimento e, aí, optassem ou pela execução do

combinado, ou pelo pagamento resultante do regime do sinal. Naturalmente: todas estas regras

eram supletivas. De todo o modo, ficou clara a mensagem legislativa de, contrariando a solução

tradicional das Ordenações, dar um suplemento de vitalidade aos contratos e à sua execução.

Nas ordenações, como referido, a compra e venda era puramente obrigacional: não transferia

o domínio, o qual só transitava, para o comprador, pela entrega. Uma vez celebrada, era

vinculativa, não permitindo o arrependimento: exceto se houvesse sinal, altura em que, o

arrependimento era possível. Em compensação, se em vez de sinal ocorresse uma entrega em

dinheiro “em parte de paga, ou em sinal e parte de paga”, já não havia lugar a arrependimento

ficando os “contratos de compra e venda mais perfeitos”. O sistema era harmónico e flexível.

Com as codificações, particularmente com o Código Vaz Serra, a compra e venda passa a real

quoad effectum, assumindo a promessa de compra e venda o papel de verdadeira “compra

obrigacional”. O sinal/arrependimento transfere-se, pois, para ela. Tratava-se, de resto, de um

regime justo e bem adaptado às realidades sociais.

O vinculismo de 1980: o sistema de 1966 foi profundamente perturbado pela reforma

adotada pelo Decreto-Lei nº 236/80, 18 julho. Fundamentalmente, o legislador de 1980

entendeu tomar três medidas:

- passou a afastar o regime do sinal penitencial: a execução específica tornou-se

vinculativa (830.º, n.º1, redação 1980);

- conferiu ao promitente-alienante que beneficiasse já da tradição da coisa um direito

alternativo: ou de receber não (apenas) o dobro do sinal, mas antes uma indemnização

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equivalente ao valor da coisa-objeto do contrato-prometido ou de recorrer à execução

especifica da promessa (442.º, n.º1 redação de 1980;

- atribui, ao mesmo promitente-adquirente beneficiário da tradição da coisa, um direito

de retenção pelo crédito resultante do incumprimento pelo promitente-vendedor.

Em termos de política legislativa, podemos dizer que a reforma de 1980 foi muito

enérgica. Bastante mais grave foi a absoluta falta de cuidado técnico por que toda esta reforma

foi levada a cabo. Vamos chamar a atenção para alguns pontos particularmente flagrantes:

- o legislador pretendeu, quer pela ratio legis, quer pela occasio legis, quer pelo

elemento sistemático (o 410.º, n.º3), quer pelo tipo de situação em jogo, quer finalmente, pela

teleologia resultante das soluções, ocupar-se de promessas urbanas para habitação, todavia:

generalizou, pelo menos na forma, a todos os contratos-promessa, uma solução de emergência

requerida apenas pelas promessas habitacionais;

- a reforma veio baralhar noções básicas; no novo 442.º, n.º2 refere “coisa” objeto do

sinal e, logo a seguir, sem adjetivos “coisa” objeto do contrato definitivo;

- o diploma de 1980 excedeu-se ao conferir uma indemnização equivalente ao valor da

coisa por algo que podia não ter sido minimamente pago;

- as alterações também foram excessivas ao atribuir um direito de retenção que supera

a hipoteca (442.º, n.º3); a prática veio documentar conluios entre promitentes, para defraudar

a banca.

Perante esta reforma, a melhor solução, fazendo prevalecer o espírito da lei sobre a sua

letra e dando a primazia aos elementos sistemáticos e teleológicos da interpretação, era a de

considerar que o novo regime aplicava-se, apenas, aos contratos-promessa visados no novo

artigo 410.º, n.º3. Relativamente os restantes, que nada sugeria fossem objetiva ou

subjetivamente visados pelo legislador, mantinha-se o texto inicial. Como sugestões tendentes

a reduzir o âmbito da reforma de 1980 no contrato-promessa, para além da ideia global de a

acantonar aos contratos referidos no artigo 410.º, n.º3, tínhamos as seguintes:

- a indemnização equivalente ao valor da coisa só funcionaria tendo havido tradição da

coisa;

- tal indemnização, quando tenha lugar, deveria ser deduzida do preço convencionado,

descontando o sinal entregue.

Ambas foram as propostas pelo Professor Lobo Xavier: acabariam por ser acolhidas na

lei, aquando da reforma de 1986.

O compromisso de 1986: o Decreto-Lei n.º 236/80, 18 julho, desorientou totalmente a

doutrina, a jurisprudência e os próprios espíritos. Havia que lhe pôr cobro quanto antes, sendo

de aplaudir a proposta de Calvão da Silva: acantonar as medidas de exceção aos contratos-

promessa que as haviam originado: os relativos a habitação própria. Infelizmente, não foi essa

a opção do legislador, desta feita apoiado em doutrina da melhor qualidade. Antes encetou a

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via de radicar, em definitivo e no Código Civil, as alterações de 1980, dando-lhes todavia, um

bom recorte técnico e expurgando-as dos aspetos mais exorbitantes. Como dissemos, foi pena:

mas com isso teremos de viver. O legislador de 1986 manteve o artigo 442.º, n.º1, referente ao

sinal. Também o 442.º, n.2, muito alterado, apresenta uma primeira parte relativa ao

funcionamento do sinal, quando haja incumprimento: sem qualquer restrição, essa primeira

parte aplica-se a todos os contratos em que haja sinal passado. Todavia, surge uma segunda

parte, que se reporta, apenas, a contratos-promessa. O regime em síntese, é o seguinte:

- quando, num contrato-promessa ocorra, a favor do promitente-adquirente, a tradição

da coisa objeto do contrato prometido, entra-se num regime exorbitante, relativamente ao sinal;

- tal regime implica que, havendo incumprimento por parte do promitente-alienante, o

promitente-adquirente tenha direito não (apenas) ao sinal em dobro, mas antes, se preferir, ao

valor da própria coisa, à data do incumprimento da promessa, com dedução do preço

convencionado e sendo-lhe restituído o sinal e a parte do preço que tinha pago;

- e implica ainda que, em alternativa a tudo isso, o promitente-adquirente fiel possa

recorrer a execução específica ex 830.º (442.º, n.º3, 1.ª parte);

- podendo, na hipótese de ele optar pelo valor da coisa, o promitente faltoso opor-se,

oferecendo para cumprir a promessa, salvo tendo-se já passado ao incumprimento definitivo,

previsto no artigo 808.º (442.º, n.º3, 2.ª parte): é a exceção do cumprimento da promessa.

Logo à partida este esquema, embora aparentemente lógico, surge complicado.

Estamos no domínio de contratos que são correntemente praticados pelos cidadãos. Fica a

pergunta: não poderia estabelecer-se um regime mais direto? Antes de relevar o estudo das

questões, damos conta de que a reforma de 1986 veio, nos pontos-chave, confirmar soluções

interpretativas que já haviam sido defendidas, ao abrigo do diploma de 1980. Tem, pois,

aplicação retroativa. Tal orientação obteve-se, de um modo geral, o acolhimento da

jurisprudência.

27.º - O funcionamento do sinal no contrato-promessa

O sinal comum, a resolução e a mora: o grande problema em aberto cifra-se em saber se,

para o funcionamento do sinal, se exige a resolução do contrato e se esta, por seu turno, requer

o incumprimento definitivo ou se basta a simples mora. Essa mesma questão pode ser

recolocada a propósito de cada uma das quatro saídas atuais para o sinal; a perda/restituição

dobrada; a indemnização pelo valor da coisa; a execução específica direta; a exceção do

cumprimento. Vamos ver. Quanto ao funcionamente comum ou clássico do sinal, que envolvia

a sua perda ou a sua restituição em dobro, a doutrina divide-se: querem uns que ele implique o

incumprimento definitivo e a resolução do contrato, enquanto outros se contenham com a

simples mora. Há que distinguir entre o regime e a qualificação. O sinal visa simplificar o

funcionamento do contrato. Marca-se uma data e passa-se sinal. Se na data aprazada não

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houver cumprimento, o sinal funciona. A alternativa de ter de colocar o devedor em mora,

através de interpelação judicial ou extrajudicial (805.º, n.º1), fixar-lhe, depois, novo prazo

admonitório, através de nova interpelação (808.º, n.º1), ou fazer a prova efetiva da perda do

interesse objetivo do credor (808.º, n.º 1 e 2) é transformar a normalidade social numa via crucis

burocrática. Se se opta por um prazo, com sinal, visa-se um prazo certo perentório. O sinal

funciona logo que haja incumprimento, no momento aprazado e isso mesmo quando tal

cumprimento ainda fosse ulteriormente possível. Solução iníqua, diz Menezes Leitão, uma vez

que o incumprimento pode ser de dias ou advir de mero esquecimento. Tal objeção opera,

porém, perante quaisquer prazos, por graves que sejam as consequências. Devemos ter

presente que, em regra, o sinal é uma pequena quantia do todo em jogo e destina-se,

justamente, a fixar um esquema expedito e automático de justiça contratual. Passando à lei: o

subsistema dos artigos 440.º a 442.º, sendo especial, prevalece sobre o regime comum dos

artigos 805.º, n.º1 e 808.º. Não há que apelar ao esquema da cláusula penal: a lei, em vez do

dispositivo do atigo 811.º, n.º2, que parece pressupor cláusulas de incumprimento e cláusulas

moratórias, diz, lapidarmente que, na falta de estipulação em contrário, não há lugar, pelo não

cumprimento do contrato, a qualquer outra indemnização. Evidentemente: decorre sempre um

controlo, pelo abuso do direito, de modo a vedar funcionamentos de sinais gravosos, por danos

mínimos. Devemos igualmente atentar em que o sistema clássico do sinal, ainda presente no

artigo 442.º, n.º2, 1.ª parte, visar dar corpo a um esquema penitencial: o não cumprimento

atempado traduz a opção pelo arrependimento. Finalmente, mais dois argumentos de natureza

sistemática e que não são despiciendos:

- a presença de sinal afasta, em princípio, a execução específica (830.º, n.º2);

- a reforma de 1986 coloca, lado a lado com o sinal, a indemnização pelo valor da coisa

entregue por conta do definitivo.

O Direito não pode ser um mero jogo de proposições formais, onde todas as

combinações são possíveis, encontrando defensores. Neste momento, particularmente nos

Países do Sul, enfrentamos um movimento geral de incumprimento de prazos, com graves danos

para as economias e com severas perdas de postos de emprego e isso ao ponto de já ter

provocado duas intervenções das instituições europeias. Cabe ao Direito civil, pela clareza das

suas soluções e pela defesa do acordado, adotar uma postura pedagógica. Quanto a negócios

significativos: por maioria de razão se deve acatar o clausulado, não sendo credíveis

“esquecimentos” com culpa leve. O Direito civil não deve aceitar a sua própria burocratização.

Isto dito: como joga o sinal clássico com a resolução? À partida, a resolução tem eficácia

retroativa (433.º), envolvendo a supressão de todo o contrato. Tanto basta para dizer que ela

não foi pensada para o sinal: havendo incumprimento, funciona, do contrato, a parcela

vocacionada para intervir, substituindo as prestações principais: o próprio sinal. Mantêm-se, nos

termos gerais, as prestações secundárias e as acessórias.

A tradição da coisa: o regime do sinal é infletido, de acordo com a atual redação do artigo

442.º, n.º2, 2.ª parte, quando haja “tradição da coisa a que se refere o contrato prometido”.

Trata-se de uma inovação então interpretável como aplicando-se, apenas, aos contratos-

promessa do artigo 410.º, n.º3, mas a que hoje não pode deixar de ser conferido um alcance

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geral. Para prevenir confusões, comecemos por recordar que o sinal é, em si, uma cláusula real

quoad constitutionem (só opera com a entrega da coisa), e quoad effectum (produz efeitos reais,

transferindo a propriedade para a parte que o recebe). Normalmente, tratar-se-á de dinheiro,

em termos que permitem, também, uma imputação no preço; mas a prática documenta

entregas diversas, como títulos de crédito. A tradição em causa no artigo 442.º, n.º2, 2.ª parte,

reporta-se à entrega, ao promitente-adquirente, da coisa que ele irá adquirir com a celebração

do contrato definitivo. Tal entrega não poderia nunca advir do contrato-promessa que, por

natureza, se limita a prever futuras prestações de escrito ou concluída oralmente a latere e com

o conteúdo indicado. Seria o promitente-adquirente um verdadeiro possuidor? A jurisprudência

alemã anterior à reforma de Decreto-Lei n.º 236/80, decidiu que o promitente-adquirente

traditário não era possuidor por não ter animus; o contrato-promessa não seria causal da

transmissão de nenhum direito real. A questão, todavia, não estava corretamente colocada. Na

verdade, o contrato-promessa não era causal da transmissão de nenhum direito real; mas

também não era causal da entrega da coisa. Tal entrega, teria de ser imputada a um segundo

acordo, de natureza atípica e genericamente admitindo pelo artigo 405.º; tal acordo, porém,

teria natureza meramente obrigacional, sendo insuscetível de proporcionar a posse. Passou-se,

depois, a uma terceira fase em que a tutela do promitente-adquirente com tradição da coisa

passou a ser admitida. Efetivamente, não há qualquer tipicidade de contratos constitutivos ou

translativos de direitos reais. Consequentemente, também não haverá limites desse tipo, no

tocante a contratos com eficácia possessória. Não há nenhum obstáculo à inclusão, num

contrato atípico ou em qualquer contrato obrigacional, de uma cláusula tendente à traditio de

uma coisa; tão-pouco há impedimento a que, ao lado de um contrato, seja ele qual for, as partes

celebrem um segundo acordo, especificamente destinado à entrega da coisa. Questão diversa

é, agora, a de saber qual a natureza da posse do promitente-adquirente. Tudo depende da

vontade das partes: haverá, pois, que interpelar o acordo relativo à traditio usando todos os

demais elementos coadjuvantes. Em abstrato, temos as seguintes hipóteses possíveis:

- a traditio visou antecipar o cumprimento do próprio contrato definitivo;

- a entrega da coisa é um favor feito pelo promitente-alienante: desta feita, temos algo

de semelhante a um comodato, pelo que a posse do promitente-adquirente se deve situar no

âmbito do artigo 1133.º, n.º2;

- a entrega da coisa, não sendo uma antecipação do cumprimento do definitivo não

surge, porém, como mero favor: desta feita, surge gozo remunerado, a aproximar da locação:

impõe-se uma posse tipo artigo 1037.º, n.º2.

Nos termos gerais e a menos que sobrevenha uma inversão do título, apenas no

primeiro caso há possibilidade de usucapião.

O sinal vinculístico: sinal vinculístico é o regime extraordinário, introduzido pela reforma de

1980 para os contratos-promessa urbanos para habitação e generalizado, em 1986, em nome

de uma luta contra a inflação. Teve como objetivo o ligar o promitente-adquirente á coisa objeto

do contrato definitivo, sempre que ela lhe tivesse sido entregue ainda na vigência da (mera)

promessa, isto é: quando tivesse havido tradição de tal coisa. Beneficia do sinal vinculistico o

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promitente-adquirente que tenha pago um sinal (comum) e que, além disso, aproveite da

tradição da coisa. Isto dito, ele pode, havendo incumprimento por banda do promitente-

alienante:

- ou acolher ao regime comum, ponde cobro ao contrato e exigindo o sinal em dobro;

- ou pôr cobro a esse mesmo contrato, mas exigindo o valor da coisa, com dedução do

preço e sendo-lhe restituído o sinal (442.º, n.º2, 2.ª parte);

- ou requerer a execução específica, nos termos do artigo 830.º (442.º, n.º3, 1.ª parte).

Como primeiro termo de alternativa, ele pode optar pelo funcionamento comum do

sinal. O segundo termo resultou da redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º236/80, 18 junho,

depois de nós próprios termos chamado a atenção para o enriquecimento escandaloso que ele

poderia originar para o promitente-adquirente e de o Professor Lobo Xavier ter procurado

minimizá-lo. Aquilo que se confere (ou pode conferir), ao promitente-adquirente, é o aumento

do valor da coisa. Com um duplo sentido: impedir o enriquecimento do promitente-vendedor

que, tendo violado o contrato, ainda seria contemplado com a valorização imobiliária e vedar o

empobrecimento do promitente-adquirente, que terá de satisfazer as suas necessidades no

mercado, a preços atuais. O terceiro termo – o poder recorrer à execução específica do contrato-

promessa, mesmo havendo sinal – adveio do final do artigo 442.º, n.º2 na versão de 1980, tendo

sindo normalizado no artigo 442.º, n.º3, 1.ª parte, da reforma de 1986. Trata-se da solução mais

comum, uma vez que, pela geografia do contrato celebrado, o promitente-adquirente deseja

objetivamente a coisa prometida, a qual vai ao encontro do seu interesse efetivo.

A exceção do cumprimento da promessa: o sinal vinculístico, particularmente na verão

resultante do Decreto-Lei n.º236/80, 18 julho, que mandava indemnizar, havendo tradição, pelo

valor da coisa, era muito violento e, daí´, injusto. Assim, logo na altura, sugerimos que, ao abrigo

das regras gerais, o promitente-alienante, demandado pelo valor da coisa, se pudesse defender

oferecendo-se para cumprir a promessa, celebrando o definitivo. O Decreto-Lei n.º 379/86, 11

novembro, na busca de um equilíbrio, formalizou a exceção de cumprimento da promessa, com

a ressalva resultante da intervenção de Lobo Xavier. Dispõe, assim, a segunda parte do artigo

442.º, n.º3:

«(…)se o contraente não faltoso optar pelo aumento do valor da coisa ou do direito,

como se estabelece no número anterior, pode a outra parte opor-se ao exercício dessa faculdade,

oferecendo-se para cumprir a promessa, salvo o disposto no artigo 808.º»

A solução é equilibrada e contempla todas as sensibilidades. Todavia, foi criticada:

porque pressuporia que o sinal vinculístico e, logo, o próprio sinal comum pudessem funcionar

com a simples mora. Mas justamente: o sinal comum funciona, como vimos, perante a (simples)

mora. As criticas não têm base.

28.º -O Direito de retenção

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Aspetos gerais: o sinal vinculístico é ainda reforçado pela atribuição, ao promitente-adquirente

que tenha obtido a tradição da coisa, de um direito de retenção: o artigo 755.º, n.º1, alínea f)

do Código Civil. O direito de retenção é uma garantia especial que permite ao devedor que

disponha de um crédito contra o seu credor, reter a coisa em seu poder se, estando obrigado a

entrega-la, o seu crédito resultar de despesas feitas por causa dela ou de danos por ela causados

(754.º). Havendo retenção de móveis, o seu titular goza dos direitos e está sujeito às obrigações

do credor pignoratício, salvo no que respeita à substituição e reforço da garantia (758.º).

Estando em jogo a retenção de imóveis, o seu titular tem os seguintes poderes (759.º):

- de executar a coisa, nos mesmos termos em que o pode fazer o credor hipotecário e

de ser pago com preferência aos demais credores do devedor;

- de fazer prevalecer esse seu poder sobre a hipoteca, ainda que registada

anteriormente;

- de beneficiar das regras do penhor, as quais incluem a defesa possessória.

O direito de retenção veio, assim, blindar em absoluto o promitente-adquirente

traditário: é o vinculismo, na sua total expressão. Daí derivam três tipos de situações:

- promitentes-alienantes que recusaram peremtóriamente a entrega da coisa antes da

escritura, com prejuízo para os adquirentes que era suposto proteger;

- promitentes-alienantes que aproveitaram e levaram o preço ou exigiriam novas

prestações pela entrega: tudo tem um preço;

- promitentes-alienantes e promitentes-adquirentes que procederam a tradições em

conluio, para bloquear as hipotecas registadas anteriormente a favor dos banqueiros.

Com conluio ou sem ele, assistiu-se, ainda à foenixização de contratos-promessa

absorvidos pela celebração dos respetivos definitivos: consiste ela em anular um contrato

definitivo de compra e venda, de modo a fazer renascer a promessa anteriormente celebrada:

esta, ao contrário do direito de propriedade, permite deter as hipotecas anteriores, graças ao

direito de retenção que proporciona.

A concretização: na concretização dos requisitos do direito de retenção do promitente-

adquirente, apoiados na jurisprudência ou em parte dela, aderimos, em geral, às propostas

restritivas de Luís Menezes Leitão, relativamente ao artigo 755.º, n.º1, alinea f). Desde logo, o

direito de retenção surge apenas caso tenha sido passado sinal:

- porque os créditos referidos no artigo 442.º são, apenas, o da restituição do sinal em

dobro ou o do aumento do valor da coisa e não o crédito geral indemnizatório ex 798.º;

- porque, não havendo sinal, a tradição será uma mera tolerância, não cabendo penalizar

o promitente-vendedor.

Além disso a retenção só garante o direito ao aumento do valor da coisa e não o direito

à restituição em dobro: esta é comum, não havendo valorações que expliquem o seu reforço

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por causa da tradição da coisa. Também o credor hipotecário anterior é tratado com justiça,

uma vez que o seu direito se reporta ao valor da coisa ao tempo da hipoteca e não ao aumento

desse valor, “reservado” pela lei ao promitente-adquirente traditário. Resta acrescentar que

com o termino da bolha imobiliária e com uma inflação negativa, muito pouco ficará para este

insólito direito, verdadeiro resquício da inflação de há trinta anos: em boa hora.

Secção V – A execução Especifica

29.º - Execução específica da promessa: consagração e reformas

Aspetos gerais: diz-se execução específica a realização, pelo tribunal, da prestação que

incumbia ao devedor inadimplente. Os casos paradigmáticos resultam dos artigos 827.º a 829.º

do Código Civil:

- na prestação de dare, a entrega é feita pelo tribunal ou por ordem deste: manu militari

(27.º);

- na prestação de facere, sendo o facto fungível, é o mesmo prestado por terceiro, à

custa do devedor (828.º);

- na prestação de non facere, havendo obra, é a mesma demolida a expensas de quem

se obrigou a não a fazer (829.º).

Em toos estes casos, a execução específica é possível quando o devedor possa ser

substituído na sua realização. Assim, não cabe tal instituto perante prestações de facto não

fungíveis (828.º a contrario) e nas prestações de non facere, quando não seja possível fazer

reverter o sucedido (829.º, n.º1, a contrario: não haja obra). Nessa eventualidade, quedam duas

soluções:

- ou se desiste da realização da prestação devida, passando-se a uma fase puramente

indemnizatória (798.º);

- ou se pressiona a vontade do devedor remisso, através de sanções pecuniárias

compulsórias (829.º-A, n.º1).

Existe ainda uma categoria de dever, que se presta a uma substituição, por parte do

tribunal: a da realização de um facto jurídico. Tradicionalmente, entendia-se que a prática de tal

facto, designadamente a conclusão de um contrato, era de efetivação insubstituível. Mais

modernamente, as dificuldades dogmáticas na execução do contrato-promessa têm sido

situadas no dispositivo constitucional que garante a liberdade de disposição: ora a execução

específica constituiria uma exceção severa a esse princípio. Perante isso, ao não-cumprimento

de um contrato-promessa apenas se poderia reagir através de pedidos de indemnização. Ora

esta solução é triplamente inconveniente:

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- o bem acordado e devido é traduzido pelo próprio contrato definitivo: qualquer

sucedâneo é sempre insatisfatório, seja no plano normativo, seja no económico-social;

- é muito difícil (salvo sinal ou equivalente) fixar indemnizações por incumprimentos de

promessas: no fundo, tudo depende do que iria resultar da execução do contrato definitivo, o

que se pode tornar inexcogitável;

- nossa judicatura é muito avara na atribuição de indemnizações, numa situação que só

muito lentamente tem vindo a ser corrigida; e assim torna-se um bom negócio não cumprir as

suas obrigações e esperar pelas condenações do tribunal.

Impunha-se dar o passo seguinte e admitir a execução específica do próprio contrato-

promessa ou, mais latamente, do dever de contratar. A possibilidade de executar o dever de

contratar foi fixada, em termos pioneiros, pelo Código de Processo Civil alemão de 1877. Para

tanto, recolheu elementos de Direito processual prussiano. A ideia básica é a seguinte: está em

jogo uma execução de facto positivo, ao qual o devedor executado está obrigado. Uma vez que

se admite o fenómeno da representação, isto é, a possibilidade de alguém praticar atos jurídicos

em nome e por conta de outra pessoa, de tal modo que os efeitos se projetem na esfera desta

última, não há dificuldades conceituais em que tal execução, implicando um facto jurídico, seja

levada a cabo pelo próprio tribunal. A especificidade da matéria justifica um preceito a ela

dedicado. Por influência alemã, uma orientação favorável à execução específica da promessa foi

acolhida no Código Civil italiano 1942. Tem ainda um especial interesse divulgar o dispositivo do

Código Civil brasileiro de 2002: um diploma que, pela facilitação formal e pelos aspetos práticos

de execução específica, marca um claro progresso quer em relação ao Código italiano, quer

perante o Código Vaz Serra.

A preparação do Código Vaz Serra: a possibilidade de execução específica de contratos-

promessa foi fazendo o seu caminho, no âmbito da preparação do Código de 1966. Como

antecedente, tínhamos a cláusula compromissória, tomada como um contrato-promessa de

cedlebração de um compromisso arbitral. O artigo 1565.º, do Código de Processo Civil de 1939.

Representava um especial avanço em relação ao anterior Código de Processo Civil, de 1876. Aí,

a cláusula compromissória era o produto de uma simples prestação de facto, dando azo a perdas

e danos, quando não cumprida. Mas um avanço tímido: ainda se previa que o devedor

inadimplente fosse chamado ao juiz para, aí, ser coagido a celebrar o compromisso; não o

fazendo, o próprio tribunal executava… o contrato definitivo que nem chegava a ser celebrado,

mas que se pressupunha. No âmbito os trabalhos preparatórios, Vaz Serra ponderou

cuidadosamente o tema. Podemos considerar que, embora a execução específica fosse

novidade entre nós, o tipo de receção que a traria para o nosso ordenamento acolheu as já

longas experiências alemã e italiana. Não houve um salto no desconhecido. Na sequência de

todas estas ponderações, Vaz Serra apresentou, na versão sintética, um texto complexo. Havia

uma certa restrição formal. A execução específica requeria que o contrato-promessa satisfizesse

às formalidades exigidas para o contrato-prometido, ainda que com uma abertura: a de estarem

asseguradas as finalidades de forma prescritas para o definitivo. Também havia uma

interessante solução para os contratos reais quoad constitutionem: o próprio tribunal faria a

competente entrega. Logo na primeira revisão ministerial, Antunes Varela alterou, na forma e

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do fundo, a proposta de Vaz Serra. A matéria foi fortemente simplificada, desaparecendo os

resquícios das restrições formais. Além disso, a “obrigação de emitir uma declaração de vontade”

foi substituída por “se o devedor se obrigou a concluir um contrato”. Na segunda revisão

ministerial, o preceito adquiriu uma forma próxima do definitivo, com uma repartição em três

números. Surge, nessa altura, a epígrafe “contrato-promessa”: uma ideia menos conseguida e

que, quarenta anos mais tarde, teria inesperado consequências interpretativas.

As reformas de 1980 e 1986: dada a frequência da celebração de contratos-promessa, o

artigo 830.º do Código Vaz Serra encontrou larga aplicação. Era inovatório: Antunes Varela

proclamou “verdadeiramente revolucionária em face do sistema anterior”: com algum exagero.

Colocou-se, na época, a questão de saber se o novo dispositivo tinha aplicações a contratos

celebrados antes da entrada em vigor do Código Vaz Serra. A doutrina e a jurisprudência deram,

em geral, resposta negativa. E bem: seria uma forma de retroatividade não predisposta pela lei.

A execução específica era afastada, ainda que, porventura, na base de uma presunção ilidível,

pela presença do sinal ou por ter sido adotada uma cláusula geral. Ora, no cenário já descrito da

inflação gravosa, que levava alguns promitentes-alienantes a incumprir, devolvendo o sinal em

dobro, e vendendo a terceiros com lucros apreciáveis, era importante, do ponto de vista do

legislador, tornar a execução específica imperativa, no tocante às promessas urbanas para

habitação. E assim, o Decreto-Lei n.º 236/80, 18 julho, veio dar uma nova redação ao artigo

830.º, n.º1: onde estava (…) na falta de convenção em contrário (…) passou a estar (…) em

qualquer caso(…). Tomado à letra, este preceito impunha que a execução específica fosse

imperativa: desaparecia o sinal penitencial, o direito convencional ao arrependimento e a

própria autonomia privada, neste setor. Além disso e sempre na sua letra, a nova redação

aplicar-se-ia a todos os contratos-promessa e, visto o artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 236/80, 18

julho, a contratos anteriores à publicação desse diploma, desse que o seu incumprimento se

verificasse após a sua entrada em vigor. Houve manifesta falta de cuidado: era evidente, quando

se lesse sequencial e atentamente, que o legislador não quis alterar o regime geral do contrato-

promessa, o que nem faria sentido: ele pretendeu, sim, resolver o problema premente das

promessas urbanas para habitação. Dixit maximus quam voluit, cabendo ao intérprete-aplicador

o engenho de fazer prevalecer o espírito da lei sobre a sua letra. E isso foi tentado pro três vias:

- ou defendendo que o Decreto não altera, com generalidade, o Código Civil, antes

introduzindo um regime específico para certos contratos-promessa;

- ou sustentando que, mau grado a alteração, havia que proceder a uma equivalente

restrição “… pelo espirito e pelo contexto da disposição…” (Antunes Varela);

- ou explicando que a modificação devia sofrer uma “… interpretação restritiva…” (Rui

de Alarcão);

- ou, pelo menos, apresentando a nova redação como “inconveniente” (Vasco Lobo

Xavier).

Contudo, não faltou quem, na base da letra da lei, argumentasse com a generalidade da

alteração. Defendendo, de iure condendo, a solução restritiva, com argumentação jurídico-

cientifica irrefutável. Em nova intervenção legislativa, conduzida pelo Decreto-Lei n.º 379/86, 11

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novembro, tentou-se introduzir alguma ordem, nesta matéria. No tocante ao artigo 830.º,

ensaiou-se uma media via: conservar um regime de exceção para os contratos urbanos (os do

artigo 410.º, n.º3) e regressar à redação inicil do Código Civil, quanto aos restantes. Assim:

- o n.º1 represtinou a redação de 1966;

- o n.º2 fez outro tanto;

- o n.º3 excecionou as promessas do artigo 410.º, n.º3, para as quais a execução

específica seria imperativa; como contramedida, permitiu que o demandado requeresse a

aplicação do artigo 437.º, relativo à modificação do contrato por alteração das circunstâncias;

- o n.º4, com referência a esses mesmos contratos, regulou a expurgação das hipotecas;

- o n.º5 recuperou a redação do n.º3, versão original.

Este regime, já largamente defendido, no âmbito da vigência do Decreto-Lei n.º236/80,

11 novembro, como vimos, teve clara natureza interpretativa, aplicando-se, pois,

retroativamente: uma solução acolhida, de um modo geral, na jurisprudência.

30.º - Pressupostos da Execução Específica

A validade da promessa; a sua forma: a execução específica de um contrato-promessa exige

determinados condicionalismos ou pressupostos. E, desde logo, um contrato-promessa válido.

O foro da execução será local adequado para se escrutinar qualquer vício que venha a ser

alegado e que, não se mostrando reparado ou sanado, poderá obviar à execução. Põe-se, em

especial, a questão de saber se, havendo omissões de regulamentação na promessa, a execução

específica pode constituir sede adequada para a sua regulamentação. Depende. O contrato-

promessa de conteúdo indeterminável é nulo, nos termos gerais do artigo 280.º, n.º1, tal como

nulo será caso preveja, ele próprio, um contrato definitivo que enferme desse vício; joga o

princípio da equiparação (410.º, n.º1). Já se se tratar de uma promessa de teor indeterminado,

mas determinável, a concretização é possível: jogam preceitos como os artigos 400.º

(determinação da prestação) e 883.º (determinação do preço), aplicável aos contratos onerosos

(939.º). As próprias partes podem prever mecanismos diversos de determinação, os quais

devem ser aplicados. Nos termos gerais e tendo em conta o princípio da economia processual,

nada impede que, numa ação de execução específica, sejam pedidas, ao tribunal, as

providências adequadas para determinar as prestações em jogo no definitivo. Situação diversa

e a de o contrato-promessa a executar conter lacunas. Estas podem ser integradas, nos termos

negociais (239.º) ou, até, legais (10.º), quando elas envolvam lacunas da lei. Torna-se também

possível, com recurso aos institutos da redução (292.º) e da conversão (293.º), aproveitar

promessas inválidas, de modo a propiciar as competentes execuções específicas. Há um

princípio do favor negotii, que dever ser levado até aos limites do juridicamente possível.

Importa sublinhar que, por vezes, o promitente que, aquando de um pedido de execução

específica, returca invocando invalidades na promessa, está a abusar do direito: seja porque, ele

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próprio, induziu o vício de que se pretende prevalecer (tu quoque), seja porque vem contrariar

uma posição previamente assumida, defrontando a confiança legítima assim ocasionada (venire

contra factum proprium). Em tais eventualidades, quando o vício vise apenas a tutela de direitos

disponíveis, a execução pode prosseguir; se estivessem em causa valores públicos

inultrapassáveis, quedaria uma indemnização ao lesado, verificados os pressupostos da

responsabilidade civil.

Pretensos pressupostos: mora ou não incumprimento definitivo: ainda enquanto

pressuposto da execução específica, põe-se o problema de saber se se exige, relativamente ao

contrato-promessa em jogo, a mora ou quiçá, o não-incumprimento definitivo. Em termos

lineares, dir-se-ia o seguinte:

- a execução específica requer o incumprimento do contrato prometido;

- todavia, se estivermos no ponto de um incumprimento definitivo, não fará sentido

impor uma execução específica que, de resto, poderá nem ser já possível;

- logo: a execução específica pressupõe uma situação de mora.

De acordo com o sistema português que, neste ponto, remonta às origens do contrato-

promessa na pandectística mais recente, com tónica em Degenkolb, as partes usam, no

contrato-promessa, a sua liberdade contratual. Embora o contrato-promessa tenha regras

próprias, especialmente evidenciadas no plano das prestações secundárias e dos deveres

acessórios, o processo é, todo ele, dirigido teleologicamente para a obtenção do definitivo. A

menos que exista sinal (penitencial) ou outra causa de bloqueio a superveniência do definitivo

é uma fatalidade jurídica: inteiramente justa e legítima, porquanto livre e validamente

controlado pelas duas partes. Assim sendo, são desde logo possíveis três situações:

- requerer a execução específica antes do vencimento do dever de contratar;

- requerer a execução específica realizando, em simultâneo, a interpelação judicial

prevista no artigo 805.º, n.º1: se o réu reconhecer o pedido e não tiver dado azo à ação, de novo

cabem as custas ao autor;

- requerer a execução específica depois de ultrapassado o prazo certo para a celebração

do definitivo – 805.º, n.º1, alínea a) (mora ex re) – ou após ter colocado o réu em mora, pela

interpelação judicial ou extrajudicial (805.º, n.º1).

Quanto ao denominado incumprimento definitivo, de novo cabe distinguir:

- ou estamos perante uma impossibilidade superveniente definitiva de conclusão do

prometido, altura em que a execução especifica já não é possível (801.º);

- ou, mercê da mora e das consequências dela resultantes, a celebração do definitivo

perdeu objetivamente o interesse para o promitente fiel (808.º): cabem, a este, as vias

indemnizatórias;

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- ou, apesar de, tecnicamente, haver incumprimento definitivo, o contrato prometido

ainda é possível e conserva interesse para o promitente fiel, altura em que a execução específica,

se mantém totalmente viável.

No rigor dos princípios, não seria possível a execução específica de um contrato-

promessa que tenha sido “resolvido”. Todavia, não podemos ser formalistas, perante as

declarações das partes. São possíveis quatro hipóteses:

- a “resolução” no sentido de opção pelo sinal: já vimos que não há, aqui, senão uma

“resolução” das prestações principais; de todo o modo, a presença e, a fortiori, a opção pelo

sinal afastam a execução específica (830.º, n.º2);

- a “resolução” enquanto consequência da impossibilidade superveniente, imputável ao

devedor, de celebrar o definitivo (801.º, n.º2): a execução específica não é viável, não tanto pela

resolução, que até pode ser dispensável, se não houver contraprestações a receber, mas pela

impossibilidade;

- idem, enquanto consequência de impossibilidade superveniente casual (795.º, n.º1): o

regime é paralelo e, também aí, a “resolução” (que nem é referida na lei) é dispensável:

- a “resolução” como desistência do promitente fiel de obter o cumprimento da

promessa: faz todo o sentido seguir-se a execução específica.

Tal como vimos suceder a propósito do sinal: o contrato-promessa postula um

subsistema de incumprimento que não se subsume, totalmente, no regime geral. Há pois que

proceder a uma cuidadosa aferição das normas gerais, perante as características do modus de

contrahendo. E em cada caso concreto, far-se-á a sindicância dos resultados, em face dos valores

básicos do sistema.

A exclusão convencional; limites: a execução específica é afastada, nos termos do artigo

830.º, n.º1, quando exista convenção em contrário. O n.º2 explicita entender-se haver

convenção em contrário quando exista sinal ou tenha disso fixada uma pena para o caso de não

cumprimento da obrigação assumida. A hipótese de convenção em contrário é clara e natural.

Estamos no coração do Direito patrimonial privado: não só as situações jurídicas são disponíveis

como também as normas em juízo se apresentam supletivas. Na ponderação dos seus interesses

podem as partes optar por se manterem livres, quanto à eventualidade da sua conclusão. A

liberdade das partes não pode ir ao ponto de celebrar um contrato-promessa combinado que,

da sua hipotética violação, não emerjam nenhumas consequências. Isso representaria uma

renúncia antecipada a direitos de credor, vedada pelo artigo 809.º. Dessa forma, o contrato-

promessa que fosse, ad nutum, privado de execução específica, ainda valeria como contrato. A

sua violação acarrateria consequências indemnizatórias, nos termos do artigo 798.º. Admitimos,

porém, que dada a especial natureza da promessa, se pudesse chegar a uma situação sem danos.

O normal, porém, é que as partes afastem a execução específica, substituindo-a por sinal ou por

cláusula penal. Estaremos, assim, perante um direito ao arrependimento, tendo o sinal o sentido

de arras penitenciais. Reside, neste ponto, uma das funções básicas do contrato-promessa.

Admite-se, porém, que se possa fixar um sinal ou uma pena convencional e, não obstante,

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manter a execução específica. Aí, duas são as soluções possíveis, a determinar de acordo com a

interpretação global do que tenha sido acordar:

- ou a execução específica irá funcionar em alternativa ao esquema do sinal ou á cláusula

penal, cabendo ao interessado, na altura própria, fazer a sua opção;

- ou ela opera cumulativamente com essas figuras, as quais, para além do aspeto

compulsivo, visarão compensar o lesado pela demora e pelas maiores despesas e incómodos

que sempre advêm da necessidade de recorrer ao tribunal.

No último caso, ainda será preciso, pela interpretação do contrato, resolver um outro

problema: o da imputação do sinal no preço, quando haja. O artigo 442.º, n.º1 é supletivo:

estamos no coração das obrigações! Assim, podem as partes combinar que, havendo

incumprimento e seguindo-se a execução específica, o sinal acresça ao preço em vez de, nele,

ser imputado. E a fortiori assim sucederá com qualquer pena convencional, a que as partes deem

diversa designação. De modo a facilitar o funcionamento de toda esta matéria, a lei estabelece

duas presunções:

- a de que havendo sinal ou pena convencional, as partes quiseram afastar a execução

específica (830.º, n.º2);

- a presunção do preceito em causa opera mesmo em contratos que integrem diversos

vínculos jurídicos;

- o pagamento de um sinal elevado e a tradição da coisa implicam um propósito de

tornar firme o contrato-promessa, constituindo indícios de admissão de execução específica,

assim se ilidindo a presunção ex 830.º, n.º1.

Esta liberdade das partes, relativa à execução específica, tem os imites do artigo 830.º,

n.º3, 1.ª parte; no esforço de reduzir, às dimensões que lhe cabiam, a generalização vocabular

incorrida pelo Decreto-Lei de 18 de julho de 1980. Não pode ser afastada a execução específica

no tocante aos contratos urbanos, isto é, aos previstos no artigo 410.º, n.3. Visou-se, com isso,

proteger a posição dos promitentes-adquirentes de fogos para a habitação. As condições

socioeconómicas são hoje diversas: manifesta-se, então, a lacuna oculta de saber como

proceder quanto ao preço: o artigo 830.º, n.º5 só regula o tema na hipótese de uma execução

específica movida pelo adquirente. Há ainda quem pretenda que a execução específica é sempre

possível nos contratos com eficácia real. E se as partes, atribuindo eficácia real à promessa e

seguido os demais ditames para a sua válida constituição, declararem afastar a execução

específica: há ilegalidade? De novo frisamos a primazia da autonomia privada. Faz todo o sentido

atribuir eficácia real a uma promessa e, não obstante, afastar a execução específica: o

promitente-adquirente lançará mão dessa eficácia se a coisa passar a um terceiro, entendido

que fique que, contra terceiros, nunca cabe a execução específica, mas antes uma medida

diversa.

A exclusão pela natureza da obrigação assumida: o artigo 830.º exclui a execução

específica nos casos que denominámos de prometibilidade fraca: admitem o contrato-promessa,

mas não se compadecem com a execução específica. Quais são eles?

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- contratos definitivos reais quoad constitutionem, como o penhor (669.º), o comodato

(1129.º), o mútuo (1142.º) e o depósito (1185.º), que pressupõem, para a conclusão, a entrega

de uma coisa, entrega essa que teria de ser feita pessoalmente, não sendo suprível;

- contratos definitivos de tipo pessoal, como certas sociedades e a prestação de serviço,

o trabalho, a sociedade e o mandato, que envolvem prestações não-fungíveis e relativamente

às quais o juiz não se poderia substituir;

- contratos definitivos que repugna, ao sentir geral, ver concluir manu militari, como a

doação.

Em primeiro lugar, cumpre excluir as situações nas quais, pura e simplesmente, não seja

de admitir verdadeiras promessas vinculativas de contratos. Tais os casos, já ponderados, do

casamento e da doação. Em relação aos contratos reais quoad constitutionem sabe distinguir:

- contratos precários, que podem cessar, a todo o tempo, por iniciativa do proprietário

ainda que, porventura, tenha de indemnizar; em relação a eles, não faz sentido uma execução

específica cujos efeitos poderiam terminar imediatamente, por vontade do réu;

- contratos estáveis em relação aos quais e configurável a execução específica: seja pela

condenação do promitente faltoso a entregar a coisa, assim surgindo o definitivo, seja por

sucedâneos que não exijam a entrega.

Quanto aos contratos ditos pessoais, a ausência de execução expecífica (ou mera

prometibilidade fraca) cifra-se em considerações paralelas. A execução específica é vedada, em

certos casos, por expressa disposição legal. Também aqui, a não haver tal preeito, jogaria o

raciocínio próprio do mandato. Os danos de confiança são, em qualquer caso, indemnizáveis.

Em suma: o Direito evolui à medida que formos capazes de substituir juízos intuitivos, ainda que

corretos, por proposições jurídico-científicas suscetíveis de controlo racional. Além disso, no

contrato-promessa como noutras áreas, há sempre que trabalhar o Direito como um todo.

31.º - Concretização da execução específica

Generalidades: no Direito do Código Vaz Serra a execução específica não é automática. Ainda

que dentro de certos limites, pede-se ao juiz que repondere os interesses em presença,

mantendo, na fase definitiva, os equilíbrios escolhidos pelas partes e balanceados pelo

ordenamento. Já referimos a necessidade de colmatar, na execução específica, eventuais

espaços em branco deixados pelas partes. Seja em função do que elas próprias tenham

clausulado nesse sentido, seja em consonância com os parâmetros gerais relativos à

determinação da prestação (440.º) ou do preço (883.º), seja, finalmente, em obediência aos

ditames sobre a integração dos negócios (239.º), sobre a sua redução ou conversão (292.º e

293.º) ou sobre a própria integração da lei (10.º). Cabe agora analisar, ainda que brevemente,

três institutos que, por expressas referências legais, podem ter aplicação aquando da execução

específica.

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A alteração de circunstâncias: a alteração de circunstâncias é um instituto geral de Direito

das obrigações que permite, perante contratos ainda em execução e verificados diversos

pressupostos, proceder à sua modificação ou à sua cessação quando, mercê de vicissitudes

verificadas no condicionalismo que presidiu à sua celebração, a exigência das obrigações

assumidas pelas partes contrarie gravemente os valores básicos do sistema (a boa fé). Ele foi

acolhido expressamente no artigo 437.º, n.º1 do Código Vaz Serra. Depois de, na sua letra,

tornar obrigatória a possibilidade de execução específica, veio dispor, reportando-se ao

promitente faltoso:

«(…) a requerimento deste, a mesma sentença poderá ordenar a modificação do

contrato nos termos do artigo 437.º.»

Formalmente era um contrapeso. A alteração de circunstâncias, quando convocada por

via do artigo 830.º, n.º1, poderia ser invocada mesmo havendo mora do demandado. Faz sentido:

demandando e condenado em execução específica, o promitente faltoso estaria, com toda a

probabilidade, em mora; assim e por via do artigo 438.º, ser-lhe-ia fechada a porta das

alterações de circunstâncias. Ao referir, de modo expresso, o instituto, a lei visaria remover esse

óbice: mantém-se, de resto, o controlo, através da boa fé.

A expurgação das hipotecas: quem adquira bens hipotecados, registe o título de aquisição e

não seja pessoalmente responsável pelo cumprimento das obrigações garantidas, pode

expurgar a hipoteca: ou pagando integralmente aos credores hipotecários as dívidas garantidas

ou, sendo a aquisição gratuita ou sem fixação de preço, declarando estar pronto a entregar aos

credores, para pagamento dos seus créditos, até à quantia pela qual obteve os bens ou aquela

em que os estima (721.º). Verificados os requisitos e mantendo-se a hipoteca depois da

execução específica, pudesse o exequente (830.º, n.º2, 2.ª parte, versão de 1980).

«(…) para o efeito de expurgar a hipoteca, rquerer que a sentença a que se refere o

número anterior condene também o promitente-vendedor a entrgar-lhe o montante desse

débito, ou o valor nele correspondente à fração objeto do contrato, e dos respetivos juros

vencidos e vincendos até integral pagamento.»

Envolvia que, a propósito de uma execução específica que não estava inicialmente

prevista, o promitente-alienante visse, sem contrapartida, vencer de imediato os seus débitos

para com a banca, que poderiam ter todo um calendário de pagamentos. Uma consciência

constitucional mais acurada teria invalidade semelhante norma, quando aplicada a contratos

anteriores. A reforma de 1986 conservou esse preceito, agora no artigo 830.º, n.º4, mas

limitando-o expressamente aos contratos urbanos, previstos no artigo 410.º, n.º3. Como limite

interpretativo adequado: esse preceito só se aplica quando o promitente-alienante se tenha

obrigado a vender “livre de ónus ou de encargos”.

O depósito do preço: o artigo 830.º, n.º5, ainda a propósito da concretização da execução

específica, dispõe:

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«No caso de contrato em que ao obrigado seja lícito invocar a exceção de não

cumprimento, a ação improcede, se o requerente não consignar em depósito a sua prestação no

prazo que lhe for fixado pelo tribunal.»

Trata-se do preceito que constava do artigo 830.º, n.º3 da versão de 1986. O artigo 830.º,

n.º5 contempla um problema prático efetivo que, a não ter sido encarado pelo legislador, iria

desequilibrar fortemente a execução específica do contrato-promessa. Como pano de fundo,

devemos adiantar que a sentença que decrete a execução específica de uma promessa, estando

em causa uma compra e venda ou similar é, de facto, um título translativo do domínio: quando

bem poderia suceder que, justamente, o réu condenado não tivesse querido celebrar o contrato

prometido por temer que o promitente-adquirente não lhe pagasse o preço ajustado. Seria justo

sentença transferir o domínio, sem se assegurar desse pagamento? Por certo: não. Em vez do

preço, pode estar em causa qualquer outra prestação. Em termos técnicos, a exceção de não

cumprimento do contrato ou exceptio non adimpletii contractus é o instituto que permite, nos

contratos bilaterais, se não houver prazos diferentes para o cumprimento, a cada um dos

contraentes, a faculdade de recusar a sua execução, enquanto o outro não efetuar a prestação

que lhe caiba ou não oferecer o seu pagamento simultâneo. O artigo 830.º, n.º5 visa,

precisamente, articular o funcionamento da exceptio com a execução específica. A sua redação

presta-se, contudo, a dúvidas. Vamos consignar algumas proposições jurisprudenciais:

- o artigo 830.º, n.º5 visa assegurar, na ação de execução específica, o funcionamento

oportuno da exceção de não-cumprimento; assim, o promitente-comprador deve consignar o

preço, antes de o juiz proferir a sentença;

- não é possível a sentença de execução específica condicionada à pretensa realização

de depósito de parte do preço ainda não pago;

- a consignação em depósito, aqui em causa, não pode ser substituída por caução;

- ela deve ser efetuada imediatamente antes de proferida a sentença;

- a sua exigência não ofende o princípio da igualdade, nem constitui uma pretensão

desproporcionada;

A exceção do contrato não cumprido não é um instituto de conhecimento oficioso.

Assim, o artigo 830.º, n.º5 só se aplica se a parte demandada em execução específica suscitar o

problema. Quando levantado, o juiz apreciará, de mérito, a sua oportunidade. Sendo a decisão

afirmativa, fixa prazo, anterior à sentença, para a consignação em depósito da prestação em

causa. Trata-se de um depósito simples, à ordem do tribunal e não da (infindável) ação especial

de consignação em depósito, regulada no Código de Processo Civil. A lei não regulou a hipótese

inversa: a de a execução específica ser movida pelo promitente-alienante. Como assegurar que

este receba o preço, antes de abrir mão da coisa ou concomitantemente com ela? Há que

integrar a lacuna, bilateralizando os valores em jogo. O juiz deverá condenar o promitente-

adquirente a depositar o preço: e só depois disso decretará a execução especifica pedida.

Alargamento a outros deveres de contratar: o artigo 830.º, pela sua epígrafe e pela previsão

do seu número 1, reporta-se à execução específica de contratos-promessa. Quid Iuris?

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Poderemos alargar a ação ex 830.º a qualquer obrigação de contratar? No anteprojeto de Vaz

Serra, o artigo 442.º visava a obrigação de emitir uma declaração de vontade. Mas logo a

primeira revisão ministerial, da responsabilidade de Antunes Varela, acantonou formalmente o

preceito à “obrigação de concluir um contrato” (813.º), numa ideia reforçada, na segunda

revisão ministerial, pela epígrafe ”contrato-promessa” (830.º). Digamos que, embora de modo

indireto, os preparatórios inculcam uma ideia de progressiva restrição da execução específica.

No domínio do Código em si, Antunes Varela, embora sem desenvolver, afirma que o legislador

não contempla todas as hipóteses em que uma das partes se encontre obrigada a celebrar um

contrato, mas apenas aquelas em que isso resulte de contrato-promessa. O problema tem-se

posto, na prática, a propósito do mandato sem representação. A doutrina inclinou-se para dar

um resposta positiva. Logo no início, Vaz Serra veio defender que o dispositivo do artigo 830.º,

n.º1:

«(…) é suscetível de interpretação extensiva, de maneira a ser aplicável também a outros

casos abrangidos pelo seu espírito: seria estranho e injustificável que só na hipótese de promessa

de um contrato fosse permitido ao credor obter sentença que esse artigo menciona. Dada a

identidade de razão, é legítima interpretação extensiva do preceito do artigo 830.º: a lei diz

menos do que o que queria dizer»

Anos volvidos, Vaz Serra mantém e reforça essa posição (apelado também e se necessário à

analogia). A análise mais cuidadosa sobre o tema coube a Calvão da Silva, que pode ser colocada

ao lado da linha maioritária. Diz esse autor:

«É de estender o âmbito de aplicação da execução específica prevista no artigo 830.º, se

não mesmo de iure constituto – solução que não nos choca apesar da história e da letra do artigo

- , pelo menos de iure condendo, indo mais longe do que, por cautela, parece ter querido ir o

legislador de ‘66».

O alargamento doutrinário da execução específica a outras situações de dever de contratar,

designadamente da emergente do mandato sem representação, não se poderia considerar

ousada. Como ponto de partida, interessa verificar se o artigo 830.º, despojado das

excrescências recebidas em 1980 e mantidas em 1986, é uma norma de exceção ou se, pelo

contrário, corresponde à concretização de princípios e valores gerais. Na atual panorâmica

jurídico-científica, não levanta dúvidas a segunda opção. Os contratos devem ser cumpridos. E

havendo inadimplência, a primeira opção do ordenamento é providenciar o restauro natural.

Como vimos, em face do incumprimento do dever de contratar, é muito problemático fixar

indemnizações. O artigo 830.º representa, pois, uma manifestação dos valores básicos do

sistema, nenhuma razão havendo para o acantonar à sua letra ou à sua epígrafe. Quanto aos

trabalhos preparatórios: têm escasso valor hermenêutico, devendo ceder perante uma

interpretação sistemática e atualista, teleologicamente enformada. Isto dito, importa frisar que

a execução específica ex 830.º representa o produto de décadas de aperfeiçoamento, no

tocante ao dever de contratar. Permite, designadamente, afastar, com harmonia, os casos em

que, por natureza, a ação ex 830.º não possa singrar e assegura, ainda, a necessidade de manter

a aplicabilidade da exceptio non adimpleti contratus. Abdicar de tudo isto a favor de uma

informe ação de condenação é desperdiçar um acervo dogmática duramente alcançado, no

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decurso de um processo em que, de resto, Antunes Varela teve todo o mérito. Assim sendo, seja

por razões axiológicas de fundo, seja pelos motivos técnico-jurídicos invocados, afigura-se-nos

que a execução específica é aplicável a todas as obrigações de contratar. Só assim não será se

leis especiais ditarem outro rumo ou se, em concreto, se revelarem valores que recomendem

saída diversa. Para além do dever do mandatário sem representação, já examinado, estão

especialmente em causa as diversas manifestações de contratação mitigada, sempre que, nelas,

seja possível discernir, com clareza mínima, uma intenção de contratar e um perfil suficiente,

para o contrato definitivo.

Secção VI – O Contrato-Promessa com Eficácia Real e o Registo da Ação de Execução Específica

32.º - O Contrato-Promessa com Eficácia Real

Origem e consagração: o Código Vaz Serra estabeleceu, no artigo 413.º, a possibilidade de se

conferir eficácia real ao contrato-promessa. Trata-se de uma ideia inovatória, sem tradições no

nosso Direito e para a qual o próprio Código não fixou um regime completo. A reconstrução

doutrinária é, pois, fundamental. Os trabalhos preparatórios foram, aqui, magros. Estudando o

contrato-promessa, Vaz Serra (e bem) que ele não confere prioridade em face do contrato

definitivo que venha a ser celebrado com um terceiro: não transfere nenhum direito real nem,

muito menos a propriedade, numa solução pacífica à luz do Código de Seabra. Hoje, diríamos

que ele é batido, pelo direito do terceiro, em prevalência de tipo. Prosseguindo, Vaz Serra

excetua a hipótese, por ele próprio proposta, de ter sido registada uma ação de execução

específica antes de inscrito o direito de terceiro adquirente: nessa altura, prevaleceria a

promessa. Vaz Serra interroga-se sobre se não seria de admitir, entre nós, uma figura

semelhante à prenotação ou registo prévio alemão. No Direito alemão a compra e venda tem

uma eficácia obrigacional. Uma vez celebrada, o domínio não se transmite de imediato: o

vendedor fica obrigado a promover essa transferência, através do acordo para inscrição no

registo, tratando-se de imóveis (Einigung e Einitragung). Pode suceder que o vendedor, depois

de concluído o contrato mas antes da Einigung, venda a um terceiro e com ele realize as

apontadas operações de transmissão. Nessa altura, o primeiro comprador ficará prejudicado,

apenas podendo demandar em indemnização. Justamente para evitar esse risco, prevê a lei a

Vormerkung ou inscrição prévia. Através da prenotação, fica garantida a pretensão obrigacional

a modificações reais. A figura da Vormekung ou prenotação no registo desenvolveu-se no Direito

alemão pré-unitário, particularmente no prussiano. Pressupõe uma configuração constitutiva

do registo predial e desempenha, aí, um especial papel, protegendo o adquirente perante as

fraquezas da compra e venda puramente obrigacional, alargando a tutela ao beneficiário de boa

fé. Vaz Serra, tendo feito uma breve explicação sobre a Vormerkung alemã, conclui:

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«Um dos casos em que parece de aceitar a possibilidade de atribuição de eficácia real a

um direito de crédito é a do crédito derivado do contrato-promessa, defendendo-se, assim, o

credor contra alienações feitas a terceiro.»

Tratava-se, apenas, do registo de uma futura aquisição, que defendia o beneficiário contra

transmissões a favor de terceiro. Esta redação não ocorre na primeira revisão ministerial. Foi na

segunda revisão, provavelmente na linha de uma intuição de Antunes Varela ou de Pires de Lima,

para a qual não foram dadas explicações que surge um preceito semelhante ao artigo 413.º.

Frisemos as novidades:

- na prenotação há uma iniciativa simples do promitente-adquirente; a “eficácia real”

depende de um acordo entre as partes, nesse sentido;

- a prenotação refere-se a um crédito; o registo da eficácia real reporta-se ao que resulte

do competente acordo.

Em compensação, há uma semelhança perturbadora, entre a prenotação e a “eficácia real”

introduzida na segunda revisão ministerial: ambas parecem depender do registo, para produzir

efeitos.

Os requisitos e as reformas do preceito: o artigo 413.º, sob a epígrafe “eficácia real da

promessa”, recebeu na origem, seguinte redação:

«À promessa de alienação ou oneração de bens imóveis, ou de móveis sujeitos a registo,

quando conste de escritura pública, podem as partes atribuir eficácia real; mas, neste caso, a

promessa só produz efeitos em relação a terceiros depois de registada.»

Dado este preceito, fácil se torna isolar os requisitos da promessa real:

1.º A presença de coisas imóveis ou de móveis sujeitas a registo;

2.º Uma promessa de alienação ou de oneração, a elas reportada;

3.º Escritura Pública;

4.ºUma convenção de eficácia real;

5.º Um registo da promessa, para produzir efeitos em relação a terceiros.

Perante esse elenco formulámos observações críticas em dois pontos:

- no da exigência de escritura pública: ela não ocorreria para certos contratos definitivo

relativos a móveis sujeitos a registo. Ora, toda a lógica da articulação promessa/definitivo vai,

pelo Direito português, no sentido de aliviar, na promessa, as exigências de forma feitas para o

definitivo: nunca o inverso. Responde Antunes Varela: as dúvidas ocorridas em torno da eficácia

real da promessa são tais que, mau grado a apontada distorção, se justificaria a intervenção

esclarecedora do notário. Todavia: os meandros últimos da eficácia real não estão, ainda, sob o

controlo da Ciência do Direito, pelo que nenhum notário pode valer; a ideia de eficácia real é,

porém, muito simples, sendo acessível a qualquer leigo que a queira utilizar.

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- quanto ao registo: a redação original do artigo 413.º inculcava que o registo era, aqui,

constitutivo, aproximando-se do da hipoteca. Na verdade, ao dizer liminarmente “mas, neste

caso, promessa só produz efeitos em relação a terceiros depois de registada”, o preceito deixava

entender que, sem registo, a atribuição de eficácia real a uma promessa nada acrescentava, em

relação à promessa comum. Ora essa solução desvia-se do sistema registal português. Aí, o

registo (salvo na hipoteca) é apenas consolidativo. O facto sujeito a registo e não registado é

oponível inter partes, a terceiros estranhos e a terceiros que adquiram, do mesmo adquirente,

direitos incompatíveis, salvo se beneficiarem de uma aquisição tabular. Perante isso,

preconizámos a aproximação do artigo 413.º ao sistema geral de registo. Com o seguinte alcance:

a promessa real não registada só não produziria efeitos perante terceiros que, estando de boa

fé, adquirissem do mesmo alienante um direito incompatível com a própria promessa e o

registassem antes do registo de qualquer ação intentada pelo promitente-adquirente, para fazer

valer o seu direito. O Decreto-Lei n.º 379/86, 11 novembro, decidiu intervir no artigo 413.º,

fundamentalmente para acolher a crítica que formulámos em relação à exigência de escritura

pública. O artigo 413.º, n.º2 foi ainda alterado pelo Decreto-Lei n.º 116/2008, 4 julho, tendente

a limitar s escrituras públicas. Esse diploma reproduziu, em nova redação, o preceito em causa,

com alterações que atingiram a sua primeira parte. Na segunda parte do preceito, o legislador

veio repetir a exigência de “documento particular com reconhecimento de assinatura”, sem se

aperceber de que, menos de dois anos antes, abolira essa figura, pelo referido artigo 2.º do

Decreto-Lei n.º 250/96, 24 dezembro. Malhas do império: não se consegue acertar o tema da

forma da promessa real. O regime formal do contrato-promessa com eficácia real está, hoje,

mais razoável do que em 1966. Quid Iuris quanto ao registo? De facto, o legislador de 1986 veio

provocar um desvio em relação ao sistema geral do registo. Pode fazê-lo. E há duas razões que

depõem nesse sentido:

- a proximidade, histórica e dogmática, em relação à Vormerkung alemã;

- o facto de a promessa real apresentar um encargo muito forte sobre a coisa que onere

e isso ao ponto de a absorver ainda mais do que a própria hipoteca.

Modificando posições anteriores, inclinamo-nos, pelas razões expostas, para a natureza

constitutiva do registo requerido pelo artigo 413.º, n.º1: não da própria promessa, mas da sua

eficácia real, isto é, do direito real de aquisição que ela abriga ou passa a abrigar.

O funcionamento da eficácia real: celebrada uma promessa real, qual o seu funcionamento?

Na base temos, ainda, um contrato-promessa: nas relações entre as partes aplicar-se-á, pois, o

regime correspondente. Inter partes, haverá lugar à execução específica, nos termos gerais. E

se, violando a promessa, o promitente alienante vender a coisa a terceiro ou a onerar por

qualquer forma? A lei não dispôs sobre a forma de agir. Apenas permite entender, pelo uso da

expressão “eficácia real” e pela sujeição a registo, que o promitente adquirente poderá agir

diretamente contra o terceiro em causa. No Direito português, a transmissão (ou oneração,

salvo na hipoteca) opera imediatamente por força do contrato (408.º, n.º1). Como agir? Na

doutrina, têm sido defendidas praticamente todas as posições imagináveis. Assim, perante uma

alienação faltosa a um terceiro:

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- recorrer-se-ia a uma execução específica contra o promitente faltoso, e ao regime da

nulidade, contra o terceiro, por venda de bens alheios (Antunes Varela);

- idem, mas sendo a venda feita a terceiros meramente ineficaz (Almeida Costa);

- usar-se-ia a execução específica contra o terceiro adquirente ou contra este e o

promitente faltoso (Oliveira Ascensão);

- lançar-se-ia mão de uma ação ad hoc: “declarativa constitutiva, eventualmente

cumulável com um pedido de restituição, a instaurar em litisconsórcio necessário contra o

promitente e o terceiro adquirente” (Menezes Leitão);

- intentar-se-ia uma reivindicação contra o atual possuidor da coisa (nós próprios).

Nenhuma detas orientações pode ser rejeitada ad nutum: todas tÊm argumentos a seu favor.

De todo o modo, há que atentar nalguns aspetos práticos. A execução específica só pode ser

usada inter partes. A venda, a terceiros, de bens onerados com uma promessa real não é nem

ilegítima, por envolver bens alheios, nem ineficaz. O promitente-alienante é o titular legítimo,

dispondo da coisa como entender. Ora nada nos leva a poder construir uma propriedade

resolúvel, para a hipótese de um incumprimento. Da mesma forma, não temos como configurar

uma propriedade inerme. A ação ad hoc de Menezes Leitão parece mais sólida. Mas ainda

podemos avançar, no plano da sua dogmatização. Num contrato-promessa com eficácia real,

quando a coisa seja alienada a um terceiro, a que poderá seguir-se toda uma sequência de novas

alienações, o promitente-adquirente tem de solucionar dois pontos:

- adquirir a coisa;

- pedir a sua restituição a quem seja possuidor.

Na promessa obrigacional, o beneficiário adquire a coisa ou pelo contrato definitivo, ou pela

sucedânea execução específica. Nunca será possível adquirir a coisa a non domino, quando o

promitente-alienante, em falta, a tenha alienado a terceiros. Este raciocínio é extensivo à

promessa real, sob pena de subvertermos as bases de qualquer raciocínio jurídico coerente.

Resta admitir que, tendo a promessa natureza real, o beneficiário pode adquirir a coisa

potestativamente, dispensando, seja o contrato, seja a execução específica. Essa aquisição

potestativa exige uma ação, funcionando, aqui, a analogia iuris da ação de preferência, ação

essa que é registada; veremos contra quem. Quanto ao pedido de restituição contra terceiros:

não chega exibir o contrato-promessa com eficácia real: este não é fundamento da constituição

originária do direito, bem podendo ter sido concluído a non domino. O promitente interessado

terá, pois, de apresentar, como causa de pedir da restituição pretendida: o contrato-promessa

com eficácia real; a aquisição legítima do promitente alienante; idem, a do seu antecessor e por

aí adiante até exibir a causa originária de aquisição. Para pedir uma coisa a um terceiro, a

reivindicação é sempre necessária, com a inerente diabolica probatio. Por isso, a ação aqui em

jogo será sempre intentada contra o atual possuidor da coisa – ou não serve para nada. E assim

sendo, faz todo o sentido que o direito potestativo de aquisição seja exercido na própria ação

em causa, por elementares preocupações de racionalidade processual. Por isso falamos em

reivindicação adaptada. Quanto a demandar o promitente faltoso, em litisconsórcio: não é

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preciso, a menos que o réu na “reivindicação adaptada” o queira, ele próprio, chamar, para

excecionar a invalidade da promessa, a exceção do contrato não cumprido ou qualquer outra

que lhe diga respeito.

33.º - O registo da ação de execução específica

O problema e o registo da ação: não se confunde com a eficácia real a questão da eficácia do

registo da ação de execução específica, mesmo em comuns contratos obrigacionais. O problema

é equacionável: quando seja intentada uma execução específica numa promessa sem eficácia

real, o réu pode, pura e simplesmente, vender de imediato a coisa a terceiros; quando tal faça,

o tribunal ver-se-á incapacitado de decretar a execução específica, mesmo que se mostrem

reunidos os diversos requisitos. A execução específica teria, assim, uma fragilidade extrema. A

questão pode (ou poderia) ser resolvida graças às regras do registo predial. Com efeito, a

execução específica relativa a imóveis está sujeita a registo, nos termos do artigo 3.º, n.º1 do

Código do Registo Predial. Esse registo é mesmo necessário, sob pena de a ação não prosseguir

depois dos articulados (3.º, n.º2 CRp). Transitada a ação que dê provimento à execução

específica, a decisão está sujeita a registo – 3.º, n.º1, c) – e é averbada ao registo da ação – 101.º,

n.º2, b) CRp – o qual se converte em definitivo com a prioridade que lhe advém da inscrição

inicial (6.º, n.º3 CRp). Ou seja: o registo da sentença que decrete a execução específica retroage

à data do registo da própria ação. São-lhe inoponíveis os registos de aquisição de terceiros

posteriores ao registo da ação (5.º). Assim se consegue evitar o facto indecoroso e injusto de,

intentada uma ação de execução específica, o réu poder neutralizar a decisão do tribunal

apressando-se a vender o bem a terceiro. Há, ainda, outra hipótese: é intentada uma ação de

execução específica, mas não é feito o seu registo e, não obstante, os autos prosseguem. No

decurso da ação, a coisa-objeto é vendida a um terceiro, que também não regista. Nessa altura,

pela regra da prioridade do registo e pelo funcionamento da própria execução específica, esta

prevalece, se for registada antes do registo do terceiro. Estas soluções, tão simples, justas e

naturais, vieram a ser perturbadas pelo facto de se vir dizer que, pelo registo da ação de

execução específica, a promessa meramente obrigacional adquiriria eficácia real. Não é o caso:

a promessa manter-se-ia, sempre, obrigacional; apenas a eventual decisão do tribunal teria uma

eficácia reportada à data da propositura da ação ou do seu registo. Mas como se falou

(impropriamente) em eficácia real, surgiram opiniões e decisões desencontradas.

A evolução da jurisprudência e a doutrina: num primeiro momento, a jurisprudência veio

dizer (mal) que o facto de o registo da ação ter precedido o registo da venda a terceiro não tem

relevância, para efeitos de execução específica, por não ser constitutivo de qualquer direito

substantivo sobre a coisa. Corrigindo o sentido da decisão, o Supremo, veio decidir que o direito

à execução específica pode adquirir eficácia real, quando o comprador proceda ao registo da

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ação judicial respetiva. No mau sentido, em 1991, afirmando que não é possível, pelo registo,

conferir eficácia real à promessa que a não tenha entendeu que nem a ação de execução

específica estava sujeita a registo, e que nem tal registo podia conferir eficácia real. Orientação

contrária (e, logo, correta) surgiu depois. Tudo parecia normalizado. Todavia, o acórdão do

Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/98, 5 novembro, ainda que com numerosos votos de vencido,

uniformizou jurisprudência no sentido erróneo. O Supremo foi em especial impressionado por,

pela via que rejeitou, um terceiro poder ser afetado por uma decisão judicial em cujo processo

não tinha intervindo. Mas não: ele é afetado, sim, por um registo, registo esse que pode

impugnar, nos termos gerais, discutindo tudo o que haja para debater. E se ninguém tiver

registado, vale a data da propositura da ação, que prevalece contra terceiros adquirentes, que

não registem. Quanto à doutrina: na sua larga maioria, defendeu que o registo da ação de

execução específica fazia retroagir, à data deste, a decisão que viesse a ser proferida no seu

termo. Subsequentemente, a boa jurisprudência foi restabelecida por RPt (Relação do Porto) e

confirmada pelo Supremo: fazemos votos para que permanentemente. Voltamos ao ponto de

partida: todo este périplo, que envolveu muitas dezenas de horas perdidas e algumas decisões

injustas assentou na confusão de chamar “eficácia real” ao que mais não era do que um tema

comum de eficácia da sentença, reportada à data da inscrição da ação em que foi proferida. A

imagem de uma “eficácia real” quando, precisamente, não estava em causa a promessa real do

artigo 413.º levou às orientações que criticámos. Neste como noutros pontos, há que ser muito

preciso, na linguagem jurídica, sob pena de se desencadearem falsos problemas. ~

Secção VII – A Natureza do Contrato-Promessa

34.º - A natureza do contrato-promessa

A primazia da promessa: perguntar pela natureza do contrato-promessa é colocar o tem das

suas relações com o contrato definitivo. Nos extremos, temos duas soluções antagónicas:

- a autorregulamentação das partes surge, apenas, com o contrato definitivo; a

promessa não representaria mais do que uma operação preparatória;

- esse mesmo papel assiste à promessa a qual, uma vez concluída, esgota a liberdade

das partes: o definitivo seria, tão só, um ato de execução do já combinado.

A primeira opção explicativa levaria, no fundo, à negação da própria promessa, como contrato

autónomo. Se as partes querem contratar e sabem em que sentido fazê-lo, porque não se

desempenham, em vez de encetar o circuitus inutilis da promessa? A segunda orientação

extremista desvaloriza o contrato definitivo. No fundo, este seria apenas uma operação de

redocumentação: a hipótese de um negócio poder integrar um cumprimento seria absurdo.

Também esta orientação deixa rastos em autores que nela se reconheçam. Será possível tentar

um equilíbrio entre ambos os contratos? Pela nossa parte, já defendemos o efetivo apagamento

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do contrato definitivo. Ao celebrar o contrato-promessa, as partes obrigam-se, de facto, a

contratar. Mas não se trata de uma obrigação genérica: elas adstringem-se, precisamente, a

celebrar um determinado contrato, devidamente explicitados em todos os seus elementos.

Fazendo-os, elas esgotam, no espaço dos seus interesses, em jogo no processo contratual

considerado, as suas faculdades jurígenas. O definitivo nada traz de novo: os dados foram

lançados na promessa. O Direito positivo parece adotar esse ponto de vista, quando firma o

princípio da equiparação (410.º, n.º1). Justamente por, na promessa, as partes regularem, em

definitivo, o que esteja em causa, haverá que lhe aplicar o regime previsto para o contrato

prometido. Paralelamente, quando celebrem o contrato definitivo, as partes cumprem deveres

pré assumidos: convenhamos não ser isso o que se espera de uma verdadeira (e logo livre)

contratação. Tudo isto é rematado pela execução específica: a possibilidade de um tribunal se

substituir às partes, na conclusão de um “contrato” mostra que, de facto, não é um verdadeiro

contrato que se trata. Como complemento de toda esta demonstração, temos o atual artigo

830.º, n.º5: ao permitir a intervenção, na execução do contrato-promessa, de exceções

relevantes apenas na execução do contrato definitivo, ele revela o apagamento deste: o

legislador está bem consciente de que o momento da verdade sócio-económica se joga na

promessa. Pois bem: desta primazia dogmática do contrato-promessa, relação ao definitivo,

resultam duas consequências práticas com relevo interpretativo:

- a necessidade de intensificar o princípio da equiparação, delimitando, em função dele,

a celebração das promessas;

- a conveniência de aperfeiçoar e de generalizar a execução específica.

Embora, de seguida, passemos a matizar a nossa posição, estes dois aspetos, ainda quando não

absolutizados, devem ser retidos.

A autonomia dogmática e significativo-ideológica do definitivo: a primazia do contrato-

promessa não deve, no entanto, levar ao apagamento do definitivo. Ele tem um papel próprio,

permitindo, por essa via, conferir à promessa o seu papel autónomo. O contrato definitivo é

sentido como um contrato a se. Nesse sentido joga todo o peso sócio-cultural do contrato, a

partir do século XVII. Desde logo as partes optam, muitas vezes, por conservar intacta a sua

liberdade de contratar, mesmo no plano do definitivo. Daí a presença do sinal, cláusulas penais

ou do simples afastamento da execução específica. A imposição deste dispositivo, em 1980 e

1986, só se compreende por manifesta necessidade social: deveria ter terminado assim que

cessaram as razões que lhe deram azo. De seguida, o contrato definitivo é sempre criativo. Por

vezes, o tribunal tem de intervir, para precisar aspetos deixados em branco no contrato-

promessa. Outras vezes, as partes o farão, numa nova negociação que não chega aos tribunais,

mas que não é despicienda. É ainda importante sublinhar o papel da prática contratual na

interpretação dos contratos em jogo. Quer isso dizer que apenas após a conclusão e a aplicação

do definitivo será, por vezes, possível, proceder à interpretação cabal da própria promessa. A

autonomia do definitivo é ainda posta em relevo, apontando as funções próprias do contrato-

promessa. Este, como foi referido, implica uma dimensão sua, a que chamamos o modo de

contrahendo, com prestações secundárias e deveres acessórios próprios, distintos dos que

surgem com o definitivo. Este não se confunde, pois, com o primeiro. O contrato-promessa

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assegura, ainda , uma repartição de riscos diferente da que irá surgir com o definitivo. À partida:

mais equilibrada. Basta ver que impossibilidade casual de celebrar o definitivo é, em regra,

distribuída, nos seus inconvenientes, por ambas as partes, enquanto que a supressão casual das

vantagens asseguradas pelo definitivo cai, toda ela, no regaço de quem a sofra. Em suma: mau

grado a primazia reguladora da promessa, o contrato definitivo não perde em categoria.

Continua a ser um verdadeiro contrato, ainda que devido e pré regulado, pelo menos em parte.

Apresenta um espaço diferente de autonomia e acentua valores que são apenas pré visualizados

na promessa. Daqui retiramos a explicação para um aspeto da maior importância: estamos em

presença de valores próprios e de uma relacionação específica que justificam, à dupla

promessa/definitivo, a aplicação de um subsistema próprio de perturbação das prestações, que

não coincide com o regime geral das obrigações. Os inconvenientes da rígida aplicação dos

esquemas da mora e do incumprimento definitivo demonstram-no.

A natureza da execução específica: estamos na posse de elementos que ajudam a delucidar

a natureza da execução específica. A primeira nota é a sua facultatividade. A lei proíbe, por vezes,

a renúncia prévia à execução específica, através da anteposição de cláusulas como o sinal ou a

cláusula penal. Mas nunca a impõe. A parte que dele beneficie pode sempre optar pelos

esquemas sucedâneos que a lei lhe faculte. De seguida, esclarece-se o sentido e a propriedade

da afirmação repetida, mas nem sempre justificada, da natureza constitutiva da execução

específica. Ela não é puramente executiva, pois não há nenhum título cabal que ela se limite a

levar ao terreno. Tão-pouco é declarativa, uma vez que dela nada sai de preexistente.

Constitutiva faz todo o sentido: está na base do estádio subsequente da regulação entre as

partes. Sublinhe-se, ainda, que numa certa tradição que advém das origens (alemãs) a execução

especifica não dá azo a que o tribunal “emite a declaração negocial do faltoso”: nem isso faria

sentido. O tribunal dimana, sim, o título jurídico da situação subsequente. A sentença ex 830.º

equivalerá. Na prática, haverá que lidar com o próprio contrato-promessa e com a sentença, de

modo a apurar o clausulado relevante. Mas à sentença se deve a jurídica-positividade do ulterior

equilíbrio de interesses.

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Capítulo V - O Pacto de Preferência

35.º - Coordenadas histórico-dogmáticas

Noção: a secção I do Capítulo II do Título dedicado às obrigações em geral compreende uma

subsecção III intitulada “pactos de preferência” (414.º a 423.º). Abre com uma noção (414.º):

«O pacto de preferência consiste na convenção pela qual alguém assume a obrigação

de dar preferência a outrem na venda de determinada coisa.»

Temos três anomalias, pelo menos aparentes:

- o uso do plural “pactos de preferências” quando, de seguida, o Código fixa o perfil

normativo de uma efetiva figura geral;

- a definição redundante “pacto de preferência” origina a “obrigação de dar preferência”,

sem se dizer em que esta consiste;

- a limitação à “venda” quando estamos numa área geral das obrigações.

Diz-se, em Direito, que há preferência ou que alguém está obrigado a dar preferência quando

um sujeito (o obrigado), caso queira celebrar um determinado negócio (o negócio ou contrato

preferível), desde que esta queira acompanhar as condições do negócio em causa (caso prefira

ou dê tanto por tanto) e isso em detrimento do terceiro (o preferido), com o qual o negócio fora

ajustado. Historicamente foram surgindo diversas figuras de preferência: só muito tarde se

generalizou tal figura. Isto explica o plural “pactos de preferência”. Também historicamente, a

preferência desenvolveu-se a propósito da venda, embora cubra, hoje, qualquer negócio

patrimonial (423.º). No fundo, as anomalias legislativas detetadas permitem logo uma pequena

abordagem, histórica e explicativa, da figura.

Direito romano: enquanto instituto, a preferência é essencialmente medieval. Todavia,

encontramos manifestações antigas nos mais diversos povos, aparentemente como resquícios

de uma propriedade comunitária primitiva. Surgem concretizações suas nos povos germânicos,

eslavos e judeu. Traduz, nessas múltiplas ocorrências, como que uma forma de controlo da

comunidade ou da família, sobre o destino de bens significativos. Apesar de associado à

propriedade primitiva, o direito de preferência implica um afinamento considerável da ordem

jurídica que o legitime. Por isso, considera-se que ele não seria conhecido na antiga sociedade

agrícolas de Roma. Mais tarde, a sociedade romana desenvolveu-se em termos de grande

individualismo. Foram surgindo algumas manifestações legais de preferência, isto é: situações

de preferência não dependentes de qualquer prévio acordo nesse sentido. Assim:

- a preferência na venditio bonorum, isto é, na venda executiva, em leilão, do património

do devedor inadimplente, no âmbito da qual ela cabia aos maiores credores e aos parentes do

executado, por grau de parentesco;

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- a preferência no âmbito do in diem addictio: tratava-se de uma figura ligada ao édito

do pretor, provavelmente antecedida por práticas consuetudinárias e que traduzia a venda de

uma coisa sob reserva de melhor oferta; caso esta surgisse, o vendedor poderia resolver o

contrato, concluindo-o, antes, com quem desse melhores condições; estas, todavia, deveriam

ser primeiro comunicadas ao primeiro comprador o qual, querendo, as poderia acompanhar,

assim mantendo o negócio;

- a preferência na emphyteusis, uma figura de origem oriental e que fez a sua aparição

no período de vulgarização; no seu âmbito, o proprietário recebeu, sob Justiniano, o poder de,

quando o enfiteuta quisesse vender o seu direito, após até dois meses de reflexão, realizar ele

o negócio projetado ou receber uma determinada compensação.

Quanto a direitos convencionais de preferência: consideram que, dada a tipicidade existente,

quanto aos contratos e no Direito romano, a sua consubstanciação não seria fácil. Porventura

através da stipulatio, eles seriam possíveis, ainda que não se documentem. Já no campo dos

bonae fidei iudicia, onde eram compagináveis, designadamente junto da compra e venda, pacta

adieta ou cláusulas laterais, tínhamos: pactum de retrovendo (direito de venda a retro), pactum

de retroemendo (dever de venda a retro), pactum de non alienando (proibição de alienar) e

pactum de promitiseos (direito de preferência). Quanto a este, temos, nas fontes, dois

fragmentos:

«Paulo, D.19.1.21.5:

Mas se eu te vendo um fundo, para que não vendas a nenhum outro que não eu, é dada

uma ação de venda se venderes a um outro.»

«Hermogeniano, D.18.1.75:

Aquele que vender um fundo com a cláusula de que ele próprio pode arrendá-lo, caso o

queira vender, não o deve fazer a outrem, mas ao próprio, ou algo semelhante: pode ele agir,

por via do contrato de compra e venda, para o cumprimento.»

Nas palavras de Arangio-Ruiz: esta figura, de romana, nem tinha o nome. Na verdade, a

expressão protimiseos mais não é do que o alatinamento do grego προτμισεs, praeletio ou

preferência. Em suma: embora, no Direito Romano, pela sua enorme riqueza e diversidade, seja

possível documentar figuras semelhantes à preferência, parece assente a ausência de um

verdadeiro instituto semelhante ao que, mais tarde, viria a surgir no Ocidente.

O período intermédio e as codificações: o Direito germânico tinha, inicialmente, uma

conceção de propriedade muito diversa da romana. Por um lado, tinha raízes coletivas ainda

próximas. Por outro, ela surgia não como uma posição abstrata, mas como um conjunto efetivo

de poderes concretos, que podiam ser desarticulados ou fracionados. Nessas condições,

multiplicavam-se as preferências, com os mais diversos ensejos. A receção do Direito romano

permitiu dogmatizar as figuras díspares de preferências, intentando-se, numa fase ulterior, a

sua sistematização. A possibilidade de constituição negocial de preferências era reconhecida:

mas com mera eficácia obrigacional. A partir do século XVIII, a existência das preferências

multifacetadas veio a ser criticada. As conceções estratificadas da sociedade, com base numa

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nobreza fundiária, perderam valia, enquanto as luze recomendavam uma propriedade livre de

entraves. Desenvolveu-se uma tendência legislativa geral para a sua supressão. Os primeiros

códigos conservaram apenas resquícios, sendo de sublinhar o Código Napoleão, que manteve

somente a preferência no âmbito da comunhão hereditária, na forma de retratação. No Código

Austríaco de 1811, a matéria, embora muito simplificada em relação ao Direito anterior,

apresentou algum desenvolvimento: enquanto uma cláusula acessória, relativamente à compra

e venda. O BGB procurou também pôr cobro à compilação anterior, conservando dois tipos de

preferência: a obrigacional e a real imobiliária, no seio dos diversos direitos reais. Ambas sãod e

base convencional. Para além de reaparições modernas, abaixo referidas, temos, como

preferência legal, a do co-herdeiro. O Código Italiano não prevê, em termos gerais, a figura da

preferência (prelazione). Todavia, ela é bem conhecida, por via doutrinária, sendo corrente a

contraposição entre as preferências convencional, legal e testamentária. A referência mais clara,

a essa figura surge a propósito do contrato de fornecimento: refere-se a cláusula típica pela qual

o adquirente se obrigue a dar, em subsequente contrato, preferência ao primeiro fornecedor,

estabelecendo-lhe um prazo-limite de cinco anos. Surgem, ainda, preferências em leis

extravagantes, com incidência especial no domínio da locação. Podemos considerar, numa

rápida panorâmica europeia, que o direito de preferência é muito infletido pela História e pelas

tradições, apresentando diferenças notáveis, entre os códigos dos diversos países. Presta-se a

análises comparatísticas, embora a sua dispersão seja tal que, muitas vezes, soçobra em meras

descrições. Ao logo do século XX, houve um certo nascimento da figura.

A experiência portuguesa: na evolução do Direito português, encontramos, adaptadas à

realidade local, as vicissitude que enformaram a preferência medieval europeia. Como primeiro

filão surge o direito de avoenga: permitia que, caso alguém pretendesse vender bens de raiz, os

seus irmãos ou primos os adquirissem pelo seu justo preço. E sendo a venda levada a cabo, o

beneficiário podia pôr-lhe cobre através do retrato familiar. Um segundo filão, bastante mais

consistente, foi o do direito de opção, radicado na enfiteuse. De origem oriental e acolhido no

Direito romano vulgar, a enfiteuse conduzia a cindir a propriedade sobre prédios: o domínio

direto, do senhorio, que lhe permitia perceber determinadas vantagens e o domínio útil, do

enfiteuta ou foreiro, que lhe facultava a exploração da terra. Quando o enfiteuta pretendesse

vender o seu domínio útil, cabia aos senhorios diretos um direito de opção, de prelação ou ius

protimiseos pelo qual podiam preferir nessa venda. Com pequenas alterações formais, esta

regra1 passou das Ordenações afonsinas às Ordenações Manuelinas e às Filipinas. A dogmática

da preferência foi-se desenvolvendo, ao longo dos séculos, justamente a propósito da enfiteuse.

O liberalismo do século XIX não se compadecia com as restrições à livre circulação da

propriedade. Além disso, tinha uma preocupação igualitária, nas várias situações legalemente

tratadas. Aquando da preparação do Código de Seabra, desapareceu a designação opção, uma

vez que o laudémio foi abolido para o futuro, a favor da preferência. O projeto manteve esta

1 «Defeso he per direito ao foreiro, que tras alguma herdade, casa ou vinha, etc. aforada pera sempre, ou certas pessoas, que nom posssa vender, nem escaimbar, doar, nem enalhear a cousa aforada sem outorgamento do Senhorio, porque o Senhorio deve sempre pera ello seer requerido, se a quer tanto por tanto; e querendo-a elle, nom a poderá aver outrem; e nom a querendo, entom a poderá outrem aver»: assim estava inserida nas Ordenações Afonsinas

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última, a favor, apenas, do senhorio. «A concessão do direito de preferir unicamente ao senhorio

era ainda vestígio das antigas idéas feudaes, e do velho direito de vassallagem, que

consideravam o aforamento um beneficio feito ao foreiro, e não um contrato com direitos

eguaes. Mas, como nem a sciencia nem o direito admittiam a distincção, para este fim

reconhecida na velha Ordenação entre senhorio e emphyteuta, nem o direito de preferencia

hoje tem por fundamento género algum de reconhecimento ou de vassallagem, e sim a

necessidade de promover a liberdade da terra, e de garantir o direito de propriedade perfeita

com a reunião dos direitos desmembrados, logo nos primeiros trabalhos a comissão revisora

ampliou e com justiça a faculdade de optar como hoje se encontra no código.» Nesta base, a

versão final do Código de Seabra acabou por, na enfiteuse, reconhecer direitos de preferência

cruzados: a favor do senhorio e a favor do enfiteuta (1678.º). E com uma perspetiva moderna:

- respeitar a igualdade formal entre os intervenientes;

- permitir a reconstituição do direito de propriedade único sobre a terra.

Trata-se do embrião da futura ação de preferência. O Código de Seabra não referia, de modo

expresso, o pacto de preferência ou preferência meramente convencional. Este era todavia

admitida, ao abrigo da autonomia privada, tendo tido um especial papel entre herdeiros, como

forma de manter a unidade da herança ou entre co-enfiteutas, para conservar a unidade do

prazo. A doutrina e a jurisprudência reconduziram-no a uma promessa ou mera convenção de

prestação de facto, fonte de responsabilidade civil, quando incumprida. O desenvolvimento

normativo continuava a ser escasso. Mas tudo visto, podemos considerar que o Código de

Seabra foi além do Código Napoleão, ao consagrar (mais) algumas situações legais de

preferência. E, como seria muito natural, ficou aquém do BGB que, dispondo já de uma

dogmática muito mais avançada, tratou separada e corretamente a preferência convencional e

a real.

A preparação do Código Civil de 1966: na preparação do Código Civil de 1966, Vaz Serra

teve em especial conta o modelo alemão. Era, de facto, o mais desenvolvido e o mais equilibrado.

Vaz Serra assinalou a multiplicação dos direitos legais de preferência, mas concentrou o seu

estuo na preferência convencional. Ponderando as várias hipóteses, apresentou um articulado

extenso. Aí, optou pelo tratamento em conjunto da preferência obrigacional e da preferência

real. Como especial novidade e baseando-se nas particularidades do BGB, Vaz Serra distinguia,

entre os direitos convencionais de preferência, três hipóteses:

- a preferência obrigacional;

- a preferência obrigacional com eficácia real;

- a preferência real.

A preferência produziria, nos termos gerais, efeitos entre as partes. Quanto às duas restantes:

a preferência com eficácia real seria uma comum preferência obrigacional que, tendo sido

objeto de registo prévio (Vormerkung), adquiriria eficácia perante terceiros. O direito real de

preferência atinge diretamente a coisa, distinguindo-se do direito pessoal preventivamente

anotado. Esta contraposição é interessante: suscita uma série de problemas que terão de se

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mostrar resolvidos, prante a lei vigente. Vaz Serra apresentou, no anteprojeto global, um texto

em 17 artigos e do qual despareceria já o direito real de preferência. De notar que, nesse

anteprojeto global, a obrigação de preferência era inserida no título relativo às modalidades das

obrigações, ao lado das de sujeito indeterminado, solidárias, divisíveis, genéricas, alternativas,

de juros, pecuniárias, de indemnização, de reembolso de despesas e de informação. Seria uma

solução bem interessante. Nos preparatórios subsequentes, a matéria apresentou-se bastante

instável. A primeira revisão ministerial conservou a preferência como uma modalidade de

obrigação, mantendo-a apões a obrigação de informar e de apresentar coisas e documentos. Na

segunda revisão, o tema passa para os contratos enquanto fontes das obrigações, local onde se

iria manter. Muitos dos seus preceitos só encontraram a sua fórmula definitiva na segunda

revisão ministerial em causa ou no próprio projeto definitivo.

36.º - As preferências no sistema jurídico

O mapa normativo: o desenvolvimento histórico-dogmático do instituto da preferência

permite, à partida, fazer uma contraposição entre as preferências convencionais, resultantes de

um pacto livremente celebrado entre os interessados e a tanto destinado e as preferências

legais, fixadas pela lei em determinadas conjunturas. Embora os regimes não coincidam, eles

pressupõem toda uma dogmática comum. Cabe fazer um levantamento. No Código Vaz Serra, o

pacto de preferência surge nos artigos 414.º a 423.º. Como se vê, há, aí, um desenvolvimento

regulamentar claramente superior ao concitado pelo contrato-promessa. O mesmo Código Vaz

Serra prevê os seguintes direitos legais de preferência:

- a favor do arrendatário, graduando-o imediatamente acima da preferência concedida

ao fundeiro, pelo artigo 1535.º (1091.º);

- a favor do senhorio, no trespasse por venda ou dação em cumprimento do

estabelecimento comercial (1112.º, n.º4);

- a favor do comproprietário (1409.º e 1410.º); tal preferência é excluída no tocante aos

condóminos (1423.º);

- a favor do senhorio direto e do enfiteuta, em preceitos hoje revogados, em função da

extinção da enfiteuse (artigos 1507.º, 1519.º e 1523.º);

- a favor do fundeiro, em último lugar, na superfície (1535.º);

- a favor do proprietário onerado com uma servidão legal de passagem (1555.º);

- a favor do co-herdeiro (2130.º);

- a favor de pessoa designada em testamento, numa obrigação imposta pelo testador

(2235.º).

Trata-se, quanto sabemos, de longe, do Código Civil que mais preferências legais estabelece.

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As funções da preferência: o direito de preferência, quando convencionalmente estabelecido,

tem, no essencial, uma de duas funções:

- a de contrato preparatório: querendo, eventualmente, celebrar um contrato e não

tendo ainda acordado sobre o seu conteúdo, as partes podem, desde logo, pactuar uma

preferência: a haver contrato, ele será concluído preferencialmente com um dos intervenientes;

nada, na lei, impede que seja acordada uma retribuição pela preferência;

- a de pacto de recuperação: alguém aliena uma coisa ou um direito, mas quer reservar-

se a possibilidade de vir, um dia, a recuperá-lo: a preferência convencional será um instrumento

útil, nesse sentido.

Para além disso, temos as inúmeras preferências legais, cujas funções, quando fixadas por

diplomas extravagantes, já acima foram alinhadas e que podemos, agora, sistematizar desta

forma:

- funções privadas: têm fundamentalmente a ver com a solução de conflitos entre

direitos reais, seja de vizinhança, seja de sobreposição; a preferência permite recompor a

propriedade desonerada sobre a coisa, facilitando a vida social;

- funções públicas: pretende-se intervir no tecido social sem usar meios de autoridade,

como a expropriação; em certos casos, recorre-se à iniciativa privada para manter ou melhorar

a tutela do bem comum.

Surgem outras finalidades, como a punitiva, por parte das surrealistas preferências fiscais. Ao

contrário do que vimos suceder com o contrato-promessa. O pacto de preferência não tem

grande apetência para estabelecer um modus vivendi complexo, entre as partes, até ao

momento do (eventual) negócio definitivo. Mas assume algumas potencialidades, nessa

dimensão. Haverá pois que estar atento a eventuais prestações secundárias ou a deveres

acessórios que, de imediato, possam vigorar entre as partes. O pacto de preferência raramente

surgirá isolado. Quando isso sucedesse, ele configurar-se-ia mesmo como uma liberalidade, uma

vez que traduz a concessão, a uma pessoa, de um benefício, sem contrapartida. Em regra, o

pacto de preferência articula-se como uma cláusula no seio de um contrato mais vasto. De resto,

isso explicará porque se usa, no Código, “pacto” de preferência e não, como seria curial,

“contrato” de preferência. Temos, aqui, uma circunstância relevante: a função do pacto de

preferência irá depender da geografia global do contrato em que ele se inclua. Da mesma forma,

a sua interpretação e a sua aplicação devem ocorrer a essa luz.

Figuras afins: na distinção do pacto de preferência das denominadas figuras afins, é útil a

remissão para a delimitação do contrato-promessa. Torna-se fácil, em geral, fazer a transposição

do competente quadro, para a preferência. Não obstante cabe sublinhar algumas

particularidades. O pacto de preferência tem uma estrutura típica não-sinalagmática. Tal como

a lei o desenha, temos uma parte – o preferente – que recebe uma vantagem apreciável,

enquanto a outra nada obtém, estruturalmente, em troca. Pelo contrário: fica obrigada à

comunicação para efeitos de preferência, perdendo, ainda, a plena disposição do seu bem.

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Assim, cabe em especial distingui-lo de figuras onde se verifiquem estruturações desse tipo.

Temos:

- a promessa monovinculante: tal como na preferência, apenas uma das partes fica

obrigada; todavia, na promessa sabe-se, ab initio, que o contrato definitivo irá ocorrer entre as

partes; na preferência, o contrato definitivo é uma incógnita, quanto ao conteúdo, uma vez que

depende, para além da vontade do preferente, daquilo que venha a ser combinado com o

terceiro;

- a opção: figura inominada e atípica, ela traduz o direito potestativo de uma das partes

fazer surgir certo contrato definitivo, uma vez que a outra emite logo a declaração final; o

funcionamento da opção depende, apenas, do beneficiário, enquanto na preferência exige

sempre o mútuo consentimento, aquando da conclusão do definitivo; e na opção, sabe-se, ab

initio, qual o conteúdo do definitivo, o que não sucede com a preferência;

- a venda a retro: uma das partes dispõe do direito potestativo de resolver o contrato

(927.º); embora, por essa via, ela possa provocar um rearranjo nas relações jurídicas presentes,

não está em causa um eventual contrato novo e, para mais, de conteúdo ainda desconhecido.

No plano das preferências legais públicas, há que manter a distinção perante a expropriação por

utilidade pública, mesmo quando esta se conclua por um acordo: a expropriação não tem,

estruturalmente, natureza contratual e o seu epílogo não depende de condições acordadas com

terceiros, como sucede com a preferência.

Modalidades; a interpenetração dos regimes: o universo das preferências, de acordo com

o modelo do BGB alemão, é dominado pela contraposição entre as preferências obrigacionais e

as preferências reais ou com eficácia real. Nestes termos:

- a preferência obrigacional dá lugar a um simples direito de crédito, a cargo do

preferente: o de exigir que, a tanto por tato, o obrigado lhe dê preferência na conclusão de um

negócio que venha a acordar com um terceiro; a preferência real confere, ao preferente, um

aproveitamento da coisa que se traduz em poder exigir que, a tanto por tanto, um negócio

acordado com terceiro seja preferencialmente concluído com ele;

- a preferência obrigacional, quando violada, permite ao preferente exigir, ao obrigado

faltoso, uma indemnização; a preferência real faculta-lhe o fazer seu o negócio faltoso, através

de uma denominada ação de preferência (1410.º, n.º1);

- a preferência obrigacional dá azo a um direito de crédito; a real, na opinião dominante,

a um direito real de aquisição.

Uma segunda contraposição separa as preferências em convencionais e legais. Mais

precisamente:

- a preferência convencional provém de um pacto de preferência, livremente concluído

entre as partes, nos termos do artigo 414.º; a preferência legal advém da lei, sendo

automaticamente associada seja a determinados direitos complexos, seja a particulares

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conjunções de direitos mas, em qualquer caso, independentemente de expressas declarações

de vontade a tanto dirigidas;

- a preferência convencional assume o perfil que seja possível estabelecer através da

interpretação e da integração negociais, centradas no pacto-fonte; a preferência legal é

modelada pela interpretação e pela integração da lei que a preveja;

- a preferência convencional prossegue o escopo eleito pelas partes; a preferência legal

alinha-se pela teleologia própria das normas que a estabeleçam.

As duas contraposições articulam-se, pelo menos tendencialmente, pela forma seguinte:

- as preferências legais são sempre reais; como normas de estilo, os preceitos que as

estabelecem remetem para o artigo 1410.º, n.º1, relativo à ação de preferência;

- as preferências convencionais são ora obrigacionais, ora reais, consoante a opção das

partes e isso desde que, nesta última hipótese, sejam , ainda e por elas, observadas

determinadas formalidades.

No caso das preferências legais, cada situação poderá assumir um perfil próprio: impõe-se,

sempre, a interpretação das normas que as estabeleçam. No entanto, existe uma

interpenetração entre as diversas preferências legais e o regime geral da preferência

convencional. O regime geral da execução da preferência consta dos artigos 416.º a 418.º:

precisamente inserido no domínio do pacto de preferência. E esse regime tem aplicação seja às

preferências obrigacionais, seja às reais. Torna-se, assim, possível a elaboração de uma teoria

geral das preferências.

Importância: o pacto de preferência comporta o regime de uma cláusula possível, em diversos

contratos complexos. Mas o seu papel vai para além desse universo. O regime geral das

preferências, convencionais ou legais, obrigacionais ou reais, surge a propósito dos pactos de

preferência. Os sortilégios que sempre acompanham o Direito Civil e a elaboração dos próprios

códigos, a isso conduziu. O Direito imobiliário português está pejado de direitos de preferência.

O fenómeno intensificou-se, ao longo do século XX, atingindo hoje uma dimensão difícil de

precisar. Outras doutrinas queixam-se de fenómenos paralelos. Deve ainda sublinhar-se que, na

sociedade civil, as preferências assumem uma dimensão de extrema litigiosidade. A liberdade

de alienar, particularmente quando se seja proprietário, pertence à lógica profunda da nossa

cultura. A preferência, pelo contrário, aparentemente ressurgida de um universo medieval,

ainda quando travestida de funções sociais, é sentida como um entrave que é legitimo pôr de

lado. Multiplicam-se as ações de preferência, deixando imobilizados prédios, durante décadas.

Há meandros complexos a ter em conta: civis e processuais. Finalmente e agora num campo

totalmente diferente, temos o Direito das sociedades. Aí, seja a propósito dos aumentos de

capital social, seja no domínio da alienação onerosa de posições sociais, a preferência tem um

papel significativo. É certo que o regime aplicável é o societário; mas supletivamente, desenha-

se, sempre, o Direito das obrigações. As preferências estão ainda muito ligadas aos acordos

parassociais. Em termos práticos, isso significa que não é possível montar uma estratégia

mobiliária, societária ou empresarial sem ter em conta o regime das preferências. Em suma: por

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todas estas vias, o circunspeto pacto de preferência tem um papel muito mais importante do

que o resultante, prima facie, dos artigos 414.º a 423.º do Código Civil.

37.º - O regime do pacto de preferência

Generalidades; a preferibilidade: as análises ao pacto de preferência vivem dominadas pela

ideia subconsciente das preferências legais. Elas animam os litígios e a ocupação dos práticos.

Nessas circunstâncias, compreende-se que se limitem aos aspetos processuais da comunicação

para preferência e da ação de preferência. Quanto aos pactos: tudo se resumiria à questão da

sua forma. O tema não é tão simples. Há que apurar o princípio subjacente e a sua concretização.

Num certo paralelo com o contrato-promessa, a primeira questão a fixar é a de saber que

contratos podem ser objeto de pactos de preferência. Na promessa, como vimos, ficam de fora

os contratos que não comportem, ex lege ou ex iure, adstrições prévias, como o casamento e a

doação. Pois esta mesma regra se aplicará ao pacto de preferência uma vez que, verificados os

pressupostos do seu funcionamento, o adstrito à preferência poder-se-á encontrar na obrigação

de contratar com o preferente. Pergunta-se se, sempre num paralelo com o contrato-promessa,

não se poderá distinguir entre preferibilidade fraca e preferibilidade forte. Agora, nesta base:

- preferibilidade fraca: é admissível o pacto de preferência, mas não a ação de

preferência; caso o pacto seja violado, quada uma indemnização, não podendo o preferente

preterido fazer seu o negócio, manu militari;

- preferibilidade forte: além do pacto de preferência, tem cabimento, quando o mesmo

seja desrespeitado, recorrer à ação de preferência.

A resposta é positiva. Temos contratos precários que, embora válidos e eficazes, podem cessar

a todo o tempo, por iniciativa de alguma das partes, como o comodato ou o mandato. Em

relação a eles, ainda que a preferência faça sentido, já não o faria a ação de preferência. As

mesmas razões que restringem a prometibilidade limitam, também a preferibilidade: o que não

admira, dada a proximidade existente entre a promessa e a preferência.

A forma: o artigo 415.º manda aplicar, ao pacto de preferência, o artigo 410.º, n.º2. Como está

epigrafado “forma”, a doutrina interpreta esse preceito como mandando aplicar, quanto à fora,

o regime da promessa. E isso redundaria no seguinte:

- o pacto de preferência beneficiaria, de acordo com as regras gerais (219.º), de

liberdade de forma;

- porém, quando o contrato preferível exija documento quer autêntico quer particular,

a respetiva preferência teria de ser feita por escrito;

- tal escrito deverá ser assinado pela parte que se vincula ou por ambas, se o pacto for

bivinculante.

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Haveria ainda que ressalvar o pacto de preferência com eficácia real: e a este, por via do artigo

421.º, aplicar-se-iam as regras do artigo 413.º (promessa real). Num pacto de preferência

comum, apenas uma das partes fica vinculada: o obrigado à preferência. Bastaria a assinatura

deste. Todavia, é pouco compaginável uma preferência ad nutum: ou há uma contraprestação

(o prémio da preferência), a pagar pelo preferente ao obrigado ou a preferência se inclui, como

cláusula, num pacto mais vasto, de onde promanam deveres para ambas as partes. Fica-nos,

pois, a ideia: bastará a assinatura do obrigado à preferência, a menos que ambas as partes se

vinculem. E sendo este o caso, mas faltando uma assinatura? O negócio é nulo, podendo, porém,

ser encarada a hipótese da sua redução ou conversão. À semelhança do que sucede com o

contrato-promessa temos, no pacto de preferência, um aligeiramento formal relativamente ao

que se exija para o definitivo. As razões históricas que, no Código Vaz Serra, levaram ao alívio

formal das promessas jogam, no mesmo sentido, nas preferências. De todo o modo, a presença

do princípio da equiparação na forma, em Direitos sensíveis e evoluídos, como o alemão e o

italiano, constitui um sinal que não deve ser minimizado.

A substância: afigura-se insuficiente vir dizer, a propósito do regime substantivo do pacto de

preferência, que se aplicam as regras gerais dos contratos. Há que ir mais longe, uma vez que o

pacto de preferência não pode ser insensível ao contrato definitivo nele prefigurado. E em

abstrato, a regra a formular é muito simples: pelo pacto de preferência, uma das partes poderá

estar obrigada a celebrar um certo contrato; pois bem: não pode, por via da preferência,

conseguir-se algo que a Lei não permita diretamente. Assim, proibindo a lei, salvo determinada

autorização, vender a filhos ou netos (877.º, n.º1, 1.ª parte), proibido fica o pacto de preferência

que beneficie os tais filhos ou netos. O Código Civil não regulou, pelo menos aparentemente, o

regime intrínseco do pacto de preferência: o artigo 415.º reporta-se, sempre à primeira vista, à

forma. Temos, pois, uma lacuna a integrar. Nós próprios já propusemos a aplicação, à

preferência, do princípio da equiparação, próprio do contrato-promessa. Apresentámos três

argumentos nesse sentido:

- um argumento geral: pela preferência pode o obrigado ficar na eventualidade de ter

mesmo de fechar o contrato definitivo; ora não pode, por via da preferência, conseguir-se algo

que o Direito proíba; logo, os requisitos da preferência terão de ser os do definitivo, o que se

consegue pela equiparação;

- um argumento analógico: na preferência, temos um contrato preparatório, que pode

desembocar no dever de contratar; procedem as razões que, na promessa, conduzem à regra

da equiparação; o artigo 410.º, n.º1, que nada tem de excecional, aplica-se, por analogia, à

preferência;

- um argumento jurídico-positivo: o artigo 415.º, embora epigrafado “forma”, limita-se,

no seu teor, a mandar aplicar, ao pacto de preferência, sem distinções nem limitações, o 410.º,

n.º2; ora este preceito, que começa por “porém”, pressupõe a aplicabilidade do 410.º, n.º1.

Podemos, hoje, apontar um quarto argumento, de ordem geral: na base das regras disponíveis,

haverá que compor o regime de outros contratos prévios, como a opção, para os quais não há

normativo disponível expresso. Ora nesses casos, as regras da promessa são básicas, enquanto

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regime geral aplicável a todos os preliminares. Não vemos como excetuar a preferência. A

orientação proposta nunca se mostrou criticada. Pelo contrário: temo-la como reforçada, pela

prática e pelo Direito comparado. Daqui resulta a aplicação, ao pacto de preferência, das regras

aplicadas à capacidade, à conformidade legal e aos demais requisitos atinentes ao objeto (280.º),

próprias do contrato preferível. Ainda nos termos do aqui aplicável artigo 410.º, n.º1, há que

excecionar as regras que, pela sua razão de ser, não caibam na preferência. Estão nessa situação

as normas que, especificamente, se prendam com a execução dos diversos contratos definitivos,

tal como foram relevadas a propósito do contrato-promessa. A aproximação preconizada não

deve conduzir a resultados tão estritos como os que se verificam no contrato-promessa.

Efetivamente, neste último, o definitivo está totalmente prefixado. Na preferência, apenas se

conhece, de antemão, o tipo geral do contrato definitivo. Por isso, a equiparação apenas

determina a aplicação de regras de ordem muito geral. De todo o modo, tem relevo prático.

O modus prealationis; o terceiro: o pacto de preferência origina uma relação complexa e

duradoura entre as partes. Até que se extinga pelo exercício (ou não exercício) da preferência

ou por qualquer outra forma de extinção das obrigações, a preferência existe e deve ser

respeitada. Ao lado da prestação principal e das prestações secundárias, como a de fazer a

competente comunicação e que abaixo consideraremos, devemos lidar com os deveres

acessórios. Apesar de a situação de preferência ser mais lassa do que a da promessa, surge,

entre as partes, uma situação de confiança e, ainda, uma estruturação material: ambas devem

ser respeitadas. Consubstanciam-se, desse modo, deveres de segurança, de lealdade e de

informação, que devem acompanhar as partes. Ao especial relacionamento que, nesse nível, se

estabelece entre o preferente e o obrigado à preferência e à particular coloração que, a essa luz,

recebem os deveres, os ónus e os encargos envolvidos, chamaremos o modo de preferência ou

modus praelationis. Pergunta-se se o terceiro que, eventualmente, pretenda contratar com o

obrigado à preferência, desencadeado o funcionamento do pacto, é afetado, de algum modo,

por ele. A questão prende-se com a denominada eficácia externa das obrigações: e foi

precisamente a propósito de um pacto de preferência que essa doutrina surge, pela primeira

vez, acolhida entre nós. Tendo conhecimento do pacto de preferência, o terceiro deve abster-

se de contratar, por forma a prevenir o incumprimento do mesmo? A resposta, perante o Direito

vigente, deve ser dada à luz da doutrina geral da eficácia externa. Com uma prevenção: numa

situação de preferência, por definição, o facto de se contratar com o terceiro e não com o

preferente não tem, em regra, a ver com a concorrência: as condições de um e de outro são as

mesmas. Tendencialmente, pelo menos, desaparece a justificação que, noutros casos, a

concorrência pode dar, para a atitude do terceiro. Em setores delimitados e havendo

proximidade entre o terceiro e o obrigado faltoso à preferência, podemos apontar um

fenómeno paralelo ao dos contratos com proteção de terceiros: a proteção contra terceiros. A

construção será a seguinte: os deveres acessórios próprios do modus praelationis podem

envolver terceiros, em razão de uma relação de proximidade com as partes ou de outro fator

que, de forma equivalente, dê azo a uma situação de confiança.

38.º - Os procedimentos de preferência

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A comunicação ao preferente: o direito de preferência mostra as suas potencialidades

quando o obrigado à preferência obtenha uma proposta (ou uma aquiescência) firme, por parte

de um terceiro. Nessa altura, entramos num procedimento, isto é, num conjunto articulado de

atos, que poderá levar ao exercício da preferência. O procedimento de preferência é

desencadeado perante uma verdadeira proposta de contrato que se insira no objeto da

preferência, desde que o obrigado à preferência esteja interessado nela. Tal proposta será, em

regra, formulada pelo terceiro; poderá ter sido iniciativa do obrigado à preferência, obtendo a

concordância do terceiro mas sem que, daí, derive um contrato: ou estaríamos, já, perante a

violação da preferência. Não chegam, pois, nem negociações, nem meros convites à contratação.

Requer-se uma proposta firme e completa, de modo que, uma vez dada a forma exigida, uma

aceitação (simples) faça surgir o contrato. Na posse dessa proposta, o obrigado à preferência

deve comunica-la ao preferente; assim dispõe o 416.º, n.º1. Ficam claros os dois requisitos: a

proposta (projeto) de negócio e a intenção do obrigado à preferência de celebrar, com base nela,

o contrato. Temos, de seguida, uma série de pontos para retomar e esclarecer, e que podemos

escalonar da forma seguinte:

- quem deve comunicar: a comunicação deve ser feita pelo obrigado à preferência ou

por alguém que, com poderes bastantes, o represente. Tecnicamente, pelo seguinte: o

preferente, caso aceite, fecha, de imediato, um contrato ou, pelo menos, o contrato-promessa

equivalente;

- a quem deve comunicar: a comunicação deve ser feita ao preferente. Pode haver vários

preferentes: a comunicação para preferência deve, então, ser feita a todos;

- o que deve comunicar: deve ser comunicado o projeto do negócio existente, nos

seguintes termos:

- a proposta, devidamente caracterizada enquanto tal e sobre a qual exista um

acordo de princípio, embora, não o contrato; não chegam intenções não definitivas nem

projetos hipotéticos;

- com o clausulado completo ou, pelo menos, com todos os elementos essenciais

que relevem para a formação da vontade de preferir ou não preferir; a falta de fatores

relevantes ou o facto de, depois da comunicação, se concluir o negócio com o terceiro, mas em

condições diferentes, invalida a comunicação feita;

- identificando a pessoa do terceiro interessado, nessa qualidade; também aqui

a comunicação será ineficaz se, depois, o negócio definitivo for celebrado com pessoa diferente

da indicada na comunicação;

- pedindo uma resposta, quanto ao exercício do direito de preferência: de outro

modo, poderá passar por uma mera informação;

- e chegando a comunicação ao conhecimento efetivo do preferente.

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Apenas se admite que, na comunicação, não seja desde logo inserida a data da

escritura, uma vez que esta depende da colaboração entre os contratantes. A comunicação da

identidade do terceiro interessado, tem levantado algumas dúvidas. Há que repor a perspetiva

privatística do problema. A decisão do preferente é puramente subjetiva: ele decidirá, como

entender, na base de raciocínios económicos, estéticos, sociais ou outros. Uma das funções

históricas da preferência é, justamente, o poder de exclusão de (certos) terceiros das relações

negociais. Além disso, sem se indicar o terceiro interessado, não é possível configurar uma

proposta concreta nem, muito menos, sindicá-la. Assim, quer pela gestão intrinsecamente

privada (e logo subjetiva) dos interesses em jogo, quer pelas funções histórico-sociais da

preferência, quer, finalmente, pelas necessidades de controlo objetivo do processo, a

identificação do terceiro é sempre necessária;

- como deve comunicar: a comunicação não está sujeita, por lei expressa, a nenhuma

forma: e assim já se entendeu que podia ser mesmo verbal. Tratando-se de uma comunicação

relativa a um contrato definitivo para que a lei exija documento, quer autêntico, quer particular,

exige-se, porém, forma escrita, por aplicação do artigo 410.º, n.º2: a comunicação, a ser aceite

pelo preferente, gera um dever de contratar a que se aplicam as regras do contrato-promessa.

Além disso, uma comunicação verbal irá, em regra, colocar grandes dúvidas de prova, sendo que

caberá, depois, ao obrigado à preferência fazer a prova da existência efetiva de uma

comunicação completa. Independentemente da discussão básica, recomenda-se sempre, aos

obrigados à preferência que recorram, pelo menos, à forma escrita. A comunicação pode, ainda,

seguir a forma de notificação judicial.

- quando deve comunicar: a comunicação deve ser feita quando exista uma proposta

contratual eficaz e enquanto tal eficácia se mantiver ou, pelo menos, na presença de um projeto

de contrato firme e sério. A não se verificarem tais requisitos, uma de duas:

- ou o preferente prefere, convicto de que, se o não fizer, o terceiro ficará com

o negócio: e estará enganado, já que o terceiro não celebraria tal contrato;

- ou o preferente rejeita, deixando o negócio para o terceiro que, afinal, não o

quer.

A lei fixa um prazo curto para que o terceiro se pronuncie (oito dias: 426.º, n.º2):

justamente para se assegurar de que a proposta ou o projeto mantêm a sua atualidade.

A resposta do preferente; o contrato definitivo: recebida a comunicação para preferência,

manda o artigo 416.º, n.º2:

«(…) deve o titular exercer o seu direito dentro do prazo de oito dias, sob pena de caducidade,

salvo se estiver vinculado a prazo mais curto ou o obrigado lhe assinar prazo mais longo»

A fortiori, pode suceder que se tenha pactuado um prazo mais longo, altura em que este será o

observável. Como se vê, o legislador pretende que a pendência aqui em jogo, pela instabilidade

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que representa quer para o obrigado quer para o preferente, quer para o terceiro, seja o mais

curta possível. Podemos apresentar o seguinte quadro das possíveis atitudes do preferente:

- ou exerce a preferência, o que significa a aceitação pura e simples do contrato, com o

conteúdo indicado pelo obrigado;

- ou renuncia à preferência, declarando que não está interessado;

- ou nada faz e o seu direito extingue-se por caducidade.

A renúncia antecipada não é válida (809.º, n.º1): apenas perante uma concreta situação de

preferência, já formada e perante todos os elementos da comunicação, é possível, ao preferente,

renunciar. Assim, tal renúncia só é eficaz quando referida a uma transação concreta, quando, ao

preferente, tiver sido dado conhecimento do projeto de venda e das cláusulas do contrato e

quando o preferente seja inequívoco e claro. Na mesma linha, o prazo para a caducidade

prevista no artigo 416.º, n.º2 só começa a correr perante uma comunicação completa e

legitimamente feita e endereçada. A “aceitação” da comunicação para preferência, com

alterações, modificações ou reticências, envolve, de pleno direito, a renúncia, por parte do

preferente, ao seu direito. Havendo aceitação da comunicação de preferência, perfila-se o

contrato definitivo, isto é, o contrato visualizado pelo pacto de preferência e que, por opção do

beneficiário, se vem mesmo a concluir na esfera deste. Temos, agora, três sub-hipóteses:

- ou estão reunidas, pela comunicação/aceitação, os requisitos formais do contrato

definitivo, altura em que o mesmo se deve ter por concluído de imediato;

- ou tal não sucede, mas por haver forma escrita, considera-se perfeito um contrato-

promessa relativo ao definitivo, cabendo a ambas as partes seguir os seus trâmites;

- ou falta esse circunstancialismo e então, por via da boa fé negocial e dos competentes

deveres acessórios, caberá às partes formalizar o definitivo, sob pena, por parte do obrigado, de

violar a preferência e, do preferente, de violar os deveres acessórios ao mesmo ligados.

Havendo contrato-promessa, a sua execução específica não oferece dúvidas, se for necessária:

devemos evitar a transformação do Direito Civil num labirinto burocrático, a pretexto de

formalismos.

A notificação judicial para preferência: a comunicação para efeitos do exercício da

preferência é um momento delicado, quer quanto à substância, quer quanto à forma, quer

quanto à prova. Recordamos que se trata de matéria intrinsecamente litigiosa e que, se não for

bem conduzida, pode originar uma acentuada destruição de riqueza para todos os envolvidos.

Quando se pretenda que alguém seja notificado para exercer o direito de preferência, faz-se o

competente requerimento ao juiz, onde se especificam o preço, as restantes cláusulas do

contrato, a prazo para a resposta e, embora a lei não o diga, a identidade do terceiro interessado

(1458.º, n.º2 CPC). O preferente, se quiser, deve declará-lo, dentro do prazo, por requerimento

ou termo no processo. Posto o que (1458.º, n.º2):

- há 20 dias para celebrar o contrato definitivo;

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- se este não ocorrer, o preferente deve requerer, nos 10 dias subsequentes, que se

designe dia e hora para a parte contrária receber o preço, por termo no processo, sob pena de

ser depositado;

- passados os 10 dias, se a parte contrária não comparecer ou se recusar a receber o

preço, o preferente pode depositá-lo, sendo-lhe os bens adjudicados (1458.º, n.º 2 e 4);

- não seguindo esta tramitação, o preferente perde o seu direito (1458.º, n.º3).

O preferente não se pode opor à notificação invocando vícios no contrato: só o pode fazer pelos

meios comuns (1458.º, n.º5). Perante situações potencialmente, recomenda-se a opção pela

notificação judicial.

Venda da coisa conjuntamente com outras: o artigo 417.º, n.º1 prevê a hipótese de venda

da coisa juntamente com outras. Trata-se de um preceito dirigido à compra e venda e retirado

do BGB. Só que, no BGB, toda esta matéria surge no capítulo da compra e venda, enquanto no

Código Vaz Serra, ela deveria ter um alcance geral. Comecemos pelo regime legal. Segundo o

artigo 417.º, n.º1:

«Se o obrigado quiser vender a coisa juntamente com outra ou outras, por um preço global, pode

o direito ser exercido em relação àquela pelo preço que proporcionalmente lhe for atribuído, sendo lícito,

porém, ao obrigado exigir que a preferência abranja todas as restantes, se estas não forem separáveis

sem prejuízo apreciável.»

O n.º2 tem uma precisão muito importante: a regra aplica-se mesmo quando o direito do

preferente considerado tenha eficácia real. A sequência será a seguinte:

- o obrigado à preferência faz a comunicação da venda da coisa conjuntamente com

outras;

- recebida a comunicação, o preferente pode exercer o seu direito em relação à coisa-

objeto, pelo preço que proporcionalmente lhe caiba;

- caso entenda que a separação lhe traz um prejuízo considerável, o que terá de provar,

pode o obrigado à preferência exigir que a preferência abranja todo o conjunto: a discordância

do preferente envolve oposição ao projeto e renúncia à preferência.

Como se vê, apesar de todo o esforço doutrinário e jurisprudencial dos últimos quarenta anos,

não é possível dar respostas inteiramente precisas às diversas questões práticas que se levantam.

Designadamente, indicação de prazos para as comunicações e respostas. Propomos a aplicação

do prazo de oito dias, fixado no artigo 416.º, n.º2, para a efetivação das diversas comunicações

e respostas: é o único disponível e parece razoável. Uma saída poderá residir na adoção do

esquema de notificação judicial. Aplica-se, então, o artigo 1454.º CPC. No campo processual e

quanto a prazos, aplica-se a regra geral do artigo 153.º CPC: dez dias. Questão complexa será a

generalização do artigo 417.º. Nós próprios admitimos que esse preceito e o artigo 418.º

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visassem as uniões de contratos e os contratos mistos que pudessem envolver elementos

sujeitos a preferência. Menezes Leitão retomou a ideia, indo mais longe: o artigo 417.º visaria

as uniões de contratos e o 418.º os contratos mistos. Receamos, porém, que o problema seja

diverso. Vamos ponderá-lo depois de conhecer o regime da prestação acessória. No seu

conjunto, impõe-se concluir que o regime da venda de coisa conjuntamente com outras é

bastante desfavorável para o obrigado à preferência. Ele perde a capacidade de negociar em

conjunto e retrai, inevitavelmente, os potenciais adquirentes, desejáveis de evitar toda a

possível litigiosidade subsequente, que é péssima para os negócios. Hoje em dia e no campo

imobiliário, os grandes conjuntos preponderam, sempre, em relação às pequenas parcelas. Cabe,

todavia, sublinhar o seguinte: ao celebrar um pacto de preferência, o obrigado assume o

encargo de manter a coisa isolada, para permitir, justamente, o exercício da preferência; de

outro modo, o pacto de pouco ou nada valeria. E quando existam preferências legais, foi o

legislador que optou pela primazia dos interesses do preferente, em relação aos do obrigado e

de terceiros. Impõe-se, aqui, sempre uma sindicância, no sentido de verificar se os valores

prosseguidos pela lei estão a ser concretizados no terreno, ou se há abuso do direito de preferir.

Prestação acessória; uniões de contratos e contratos mistos: o obrigado à preferência

pode, no âmbito do negócio que pretenda celebrar com o terceiro, acordar uma prestação

acessória que o preferente não possa satisfazer (418.º, n.º1, 1.ª parte). Observar-se-á, então, o

seguinte (418.º, n.º1):

- a prestação deve ser compensada em dinheiro;

- não sendo avaliável em dinheiro, é excluída a preferência;

- a menos que seja “lícito presumir” que a venda seria efetuada mesmo sem a prestação

estipulada;

- ou que ela foi convencionada para afastar a preferência.

Neste último caso, mesmo quando avaliável em dinheiro, o preferente não é obrigado a

satisfaze-la. Nos termos da lei, a prestação acessória não avaliável afasta, de facto, a preferência.

Logo, a prova de que ela foi feita (apenas) com essa finalidade é muito difícil, salvo completa

chicana do obrigado e do terceiro. Deve-se, pois, partir da regra (de resto, pacífica) de que tudo

é avaliável em dinheiro e de que o ónus da pessoalidade isenta compete ao obrigado à

preferência: ou esta poderá nunca funcionar. Cumpre agora ponderar a questão, já aludida, das

uniões de contratos e dos contratos mistos: como ordená-los perante os artigos 417.º e 418.º?

Uma venda de coisas em conjunto tanto pode traduzir uma união de contratos como um único

contrato relativo a várias coisas: não há, no nosso Direito da compra e venda, nenhum princípio

de especialidade. De todo o modo, o contrato será seguramente único, quando se reporte a uma

universalidade. As valorações subjacentes ao artigo 417.º apontam, antes, para outras

coordenadas:

- o contrato (ou a união) que inclua a matéria preferível é, ou não, divisível?

- e não sendo divisível, pode, ou não, o preferente satisfazê-lo?

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A primeira tanto abrange as uniões de contratos como os contratos mistos. Dependendo das

circunstâncias, podem umas e outros ser desagregados, sem prejuízo para o interessado. Nessa

altura, as valorações do 417.º permitem a divisão, de modo que o preferente exerça o seu direito

no que lhe competia. À partida, os negócios (e as uniões) não são divisíveis, pelo que há, aqui,

um beneficium divisionis a favor do preferente. Não pode é prejudicar o obrigado, sendo o

critério o comum, do valor ou da perda do valor. O regime legal é simples e claro: sendo o

negócio divisível, procede-se à desarticulação e ao exercício da preferência na parcela respetiva;

não o sendo, o preferente ou desiste ou prefere no conjunto. Há um fenómeno de expansão da

preferência. A segunda valoração tem a ver com a fungibilidade do negócio projetado. Saindo

do estrito plano da preferência e, portanto, quando esta recaia em objeto ou em conteúdo

inseridos em negócio mais vasto e não sendo eles divisíveis, o exercício do direito do preferente

sobre o conjunto implica que o mesmo seja fungível. Sendo-o, caímos na hipótese anterior: ele

preferirá, ou não, sobre o conjunto, consoante a decisão jurídico-económica que possa ou

entenda tomar. Não o sendo, a lei permite:

- ou a conversão da parte não fungível em dinheiro;

- ou o afastamento da preferência quando isso não seja possível;

- ou o afastamento da parte não fungível, quando não seja essencial ou quando tenha

fins fraudulentos.

O artigo 418.º, mau grado a sua epígrafe, contém doutrina que não se limita aos contratos

complementares: antes se deve estender a todo o universo das uniões de contratos e dos

contatos mistos, quando não sejam desagradáveis e se apresentem não fungíveis.

Pluralidade de preferentes: o artigo 419.º soluciona, à luz dos princípios gerais, as hipóteses

de pluralidade de titulares do direito de preferência. Temos três possibilidades básicas, que

abrem sempre na indivisibilidade dos direitos – ou cada um exerceria a sua parte:

- preferências conjuntas: só podem ser exercidas por todos os preferentes, em bloco e

o obrigado só perante todos eles se exonera (419.º, n.º1, 1.ª parte); mas se o direito se extinguir

em relação a algum deles ou ele não o quiser exercer, acresce aos restantes (419.º, n.º1, 2.ª

parte);

- preferências disjuntas: só um deles pode exercer o direito, afastando, com isso, os

restantes: não havendo processo de escolha, abre-se licitação, revertendo o excesso para o

obrigado (419.º, n.º2);

- preferências sucessivas: existe uma ordem de prevalência entre os diversos

preferentes, designadamente nas preferências legais: o direito é submetido ao primeiro,

passado ao segundo se ele não quiser exercê-lo e assim sucessivamente.

Em termos de comunicação: ela deve ser feita, sempre, a todos os preferentes, só depois se

abrindo o processo de escolha entre eles. E na mesma linha: não pode um preferente exercer

validamente o seu direito se não mostrar que todos os outros foram avisados e que não

quiseram ou não puderam preferir. Quando muito, entender-se-á que, nas preferências

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sucessivas, preferindo o de grau superior, não há que indagar de comunicações aos restantes.

O modo de colocar, na prática, todas estas regras e as respetivas bifurcações é complexa. De

novo se recomenda o recurso ao processo de notificação prevista no Código de Processo Civil,

onde tudo isto vem regulamentado. Perante a pluralidade de preferentes, recomenda-se que a

matéria seja seguida por um advogado experiente. Segundo o artigo 419.º, o direito e a

obrigação (convencionais) de preferência não são transmissíveis em vida nem por morte, salvo

estipulação em contrário. O direito de preferência é, assim, intuito personae. Além disso,

previne-se o agravamento que adviria, para a posição do obrigado à preferência, da passagem

do direito a herdeiro e legatários.

39.º - A preferência com eficácia real

Aspetos gerais: o artigo 421.º, n.º1 permite os pactos de preferência com eficácia real. Na

versão original, isso dependia:

- de convenção das partes nesse sentido;

- de respeitar a imóveis ou a móveis sujeitos a registo;

- de constar de escritura pública;

- de estar registado, nos termos da competente legislação.

O Decreto-Lei n.º 379/86, 11 novembro, substitui a exigência de escritura pública e de registo

nos termos da competente legislação por serem:

«(…) observados os requisitos de forma e de publicidade exigidos no artigo 413.º»

Damos por reproduzidas as considerações então feitas, incluindo a de, por esta via, se ter

conferido eficácia constitutiva ao registo em jogo. Havendo eficácia real, a preferência produz

efeitos perante os terceiros adquirentes da coisa em jogo, através de uma ação a tanto

destinada: a ação de preferência. É esse o sentido da remissão para o artigo 1410.º, feita no

artigo 421.º, n.º2. A preferência com eficácia real ou preferência real resultou da junção,

operada nas revisões ministeriais do anteprojeto de Código Civil, das propostas de Vaz Serra que

previam, de acordo com o esquema alemão, um direito real de preferência, ancorado no Livro

sobre o Direito das coisas e um direito (obrigacional) com eficácia real, recebida através de uma

prenotação no registo e que caberia ao Livro das obrigações. E como o legislador nacional

mandou, em ambos os casos, aplicar o regime do artigo 1410.º, próprio dos direitos reais,

podemos adiantar que a junção se fez na figura da preferência real: ainda que denominada “com

eficácia real”. Pergunta-se se, pactuada uma preferência com eficácia real, esta opera na

primeira alienação da coisa ou se, pelo contrário e tal como sucede com as preferências reais,

ela se mantém indefinidamente, gravando a coisa até que venha a ser exercida, como nas

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preferências legais. Depende: uma vez que a lei prevê essa possibilidade, podem as partes

combinar: ou uma preferência com eficácia real boa, apenas, para a primeira transmissão ou

uma outra que perdure, através de transmissões ulteriores e até que seja exercida. O registo

protegerá a confiança dos sucessivos adquirentes, os quais ficarão obrigados à competente

obrigação de comunicação. Nada dizendo, e dada a natureza real da preferência, entender-se-á

que, estando registada, ela perdura através das transmissões ulteriores. Em todo o Direito,

enxameiam os casos de preferências legais, sabidamente de tipo real.

Âmbito da ação de preferência e legitimidade passiva: a ação de preferência vem regulada

no artigo 1410.º, aquando do direito de preferência do comproprietário. Essa aparente

deslocação do instituto tem duas razões de ordem:

- razão histórica: o preceito adveio do artigo 1566.º, §1.º do Código de Seabra, situado

na compropriedade e a propósito de um dos poucos direitos de preferência legal então

reconhecidos;

- razão sistemática: o Livro III do Código Civil, relativo ao Direito das coisas, não tem

parte geral; é a propósito da propriedade que vamos encontrar muitas das regras gerais,

aplicáveis a direitos reais.

A natureza genérica do artigo 1410.º, em especial articulação com os artigos 416.º a 418.º, para

os quais, de resto e em conjunto, remetem numerosas disposições, não oferece dúvidas. A ação

de preferência permite ao preferente, em caso de violação de uma preferência real, fazer o seu

negócio faltoso, isto é: afastar o terceiro adquirente e subingressar na posição dele. O artigo

1410.º, n.º1, redação atual, dispõe:

«O comproprietário a quem se não dê conhecimento da venda ou da dação em

cumprimento tem o direito de haver para si a quota alienada, contanto que o requeira dentro do

prazo de seis meses, a contar da data em que teve conhecimento dos elementos essenciais da

alienação, e deposite o preço devido nos 15 dias seguintes à propositura da ação.»

Para a ação de preferência ter um efetivo papel, ela não é prejudicada, bem como o direito de

preferência que vise realizar, pela modificação ou distrate da alienação faltosa, ainda que

resultantes de confissão ou transação judicial (1410.º, n.º2). De outro modo, nenhuma ação de

preferência teria um sentido útil, esvaziando-se o conteúdo da preferência real. A ação de

preferência coloca uma série de questões, que podemos sintetizar nos pontos seguintes:

- o âmbito: embora o preceito legal fale em “comproprietário” e “quota alienada”,

estamos em face de uma efetiva figura de âmbito geral. Assim, ela aplica-se aos diversos direitos

de preferência real e perante qualquer contrato preferível;

- a legitimidade passiva: responde à questão de saber contra quem deve ser intentada a

ação. Duas opiniões

- a de Antunes Varela, segundo a qual ela devia ser intentada contra o

adquirente e o alienante faltoso, em litisconsórcio;

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- a da restante doutrina, que propende para a necessidade de se demandar,

apenas, o terceiro adquirente ou, melhor, o possuidor atual da coisa.

A opção de Antunes Varela, assentava no emprego, na versão original do Código

Civil, do plural “citação dos réus”, plural esse que, pelos preparatórios, se teria destinado a

impor o litisconsórcio passivo, para resolver dúvidas anteriores. Mais interessante é a ideia, por

ele expressa, de que a ação de preferência reage a uma violação perpetrada pelo alienante

(obrigado a dar a preferência), pelo que este não poderia deixar de estar em juízo. A melhor

opinião mantém-se contrária. A menos que se pretenda aproveitar a ação de preferência para

demandar o alienante em indemnização ou que se queira suscitar o problema de uma simulação

relativa, normalmente de preço, no negócio faltoso, o alienante não tem interesse efetivo em

contradizer: tanto se lhe dá, objetivamente, que a coisa-objeto caiba ao preferente ou ao

terceiro. Questões deste tipo não se devem resolver com declarações abstratas de

conformidade com doutrinas ou construções: devemos, no terreno e pela experiência, ter a

sensibilidade necessária para ponderar as consequências do que se defenda. O intérprete-

aplicador tem o dever se ponderar as soluções mais simples e eficazes. Não é indiferente

demandar uma pessoa ou duas: neste último caso haverá, em regra, duplicação de contestações,

com dois advogados na defesa e toda uma complicação suplementar em todos os aspetos

processuais subsequentes, incluindo a audiência de julgamento e os recursos. Ora se ao

alienante nada for pedido, qual o seu papel em juízo? E se tiver havido várias alienações

intercalares: o preferente tem de demandar todos os intervenientes? Só o conseguir uma

citação é, por vezes, um calvário. O terceiro judicialmente convencido, tendo recuperado o

preço pago, ficar-se-á, em regra, por aí: não há que abrir mais uma frente contra o alienante. Só

assim não será se, a este, se pedir uma indemnização ou se for invocada uma simulação em que

ele tenha participado. Finalmente: o facto de o obrigado à preferência não ser parte na ação de

preferência até pode facilitar a descoberta da verdade: ele poderá depor como testemunha.

Nunca se devem multiplicar as exigências processuais injustificadas: encarecem o processo,

demoram a justiça, dificultam o apuramento da verdade e ampliam a litigiosidade social dos

problemas. Quanto à questão de fundo: é um erro de perspetiva ver, na ação de preferência,

uma reação a um incumprimento da obrigação de preferência, por parte do obrigado. Trata-se

de uma miragem derivada de um pacto de preferência quando, na verdade, se vão discutir, em

tribunal, situações absolutas. Na preferência real, o preferente adquire potestativamente a

coisa e vai reclamá-la a quem for o seu possuidor. As vicissitudes anteriores são-lhe indiferentes

ou não estaríamos já perante uma verdadeira eficácia real. Só assim não será, como foi dito, se

se pedirem indemnizações ao alienante ou se for invocada a simulação. Quanto à jurisprudência:

aquando da aprovação e entrada em vigor do Código Vaz Serra, mau grado as imediatas tomadas

de posição de Antunes Varela, o Supremo Tribunal de Justiça manteve que bastava demandar o

terceiro, adquirente e possuidor da coisa. Seja pelo individualismo dos julgadores, seja pelo peso

das insistências do Professor Antunes Varela, de justo prestígio e que vieram a subir de tom,

surgiram decisões contrárias, a exigir o litisconsórcio passivo entre alienante e adquirente,

mesmo que não se colocassem questões de indemnização ou de simulação de preço. Por pouco

tempo: opta pela boa solução, mas regressa ao litisconsórcio. Como seria de esperar: a partir

daqui, nenhum advogado consciencioso vai correr o risco de sofrer uma absolvição da instância

contra o preferente, por preterição de litisconsórcio obrigatório passivo: as preferências são,

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por cautela, intentadas contra o alienante e o preferente. Este episódio ilustra mais um

discutível serviço prestado à justiça do nosso País e aos interesses privados que, nela, se

debatem;

- o prazo para intentar a ação: segundo o artigo 1410.º, n.º1, a ação de preferência deve

ser intentada no prazo de seis meses a contar da data em que o preferente teve conhecimento

“dos elementos essenciais da alienação”. O preceito parece claro. Não basta, para se iniciar o

decurso desse prazo, o conhecimento genérico de que houve uma transmissão: o preferente

tem de ter acesso ao objeto do contrato, ao preço e à identidade do adquirente. Em termos

processuais, o preferente, quando intente ação passados os seis meses sobre a alienação faltosa,

sujeitar-se-á a que lhe seja levantada a exceção da caducidade; caber-lhe-á, então, demonstrar

o momento em que teve conhecimento das condições essenciais da venda ou, pelo menos, que

dele não teve conhecimento há mais de seis meses sobre a data da ação. O prazo de seis meses

é assaz confortável para permitir, ao preferente, preparar a ação e reunir os fundos necessários

para fazer o depósito do preço;

- o alcance do preço a depositar: o artigo 1410.º, n.º1, na redação atual, exige ainda o

“depósito do preço devido nos 15 dias seguintes à propositura da ação”. Quanto ao preço,

surgiram dois entendimentos:

- o de Antunes Varela, segundo o qual o “preço” abrangeria outras despesas

suportadas necessariamente pelo adquirente, como os custos de escritura e a sis (hoje, IMT);

- o predominante na jurisprudência, segundo o qual estaria em causa o preço

estrito, isto é, a quantia paga ao alienante.

Para além de argumentos formais, retirados da expressão “preço” e da

consideração de que as outras despesas terão, no final, de se mostrar pagas, como é óbvio, há

que atentar nos aspetos básicos. Está aqui em causa não a totalidade do que o preferente deva

pagar, mas apenas um depósito inicial, para que a ação possa prosseguir. Esse depósito equivale,

de resto, a um preço pago ad nutum, enquanto o terceiro adquirente, provavelmente, terá

podido fracioná-lo. Mas o essencial reside noutro ponto: a ser necessário depositar o valor de

outras despesas: que despesas? Qual o seu preciso montante? Tudo isso depende de regimes

fiscais imponderáveis e de contas notariais ignotas. Basta que o notário se tenha deslocado à

residência do interessado para diverso ser o custo da escritura. Em suma: teríamos, aqui, mais

um fator de incerteza e de litigiosidade, sem vantagens. Bem anda a jurisprudência em cortar

cerce o problema: o depósito inicial reporta-se ao preço proprio sensu. Depois se vai ao resto.

Outra questão: o preço deve ser depositado em dinheiro ou poderá, em vez disso, oferecer-se

uma garantia bancária, designadamente: à primeira solicitação? A jurisprudência tem

respondido pela negativa, exigindo o dinheiro. A razão deve ser procurada no terreno prático:

admitir uma garantia bancária exigiria que a outra parte se pronunciasse sobre a sua idoneidade

e que, sobre a matéria, fosse produzida prova. Nunca mais se sairia da fase inicial do processo.

Tanto basta para aplaudir a jurisprudência prevalente.

A simulação: a preferência com eficácia real e a daí derivada ação de preferência colocam um

problema complicado, quando a alienação feita pelo obrigado à preferência, a um terceiro,

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assente num contrato simulação. Várias situações são configuráveis, das quais, algo frequente:

a de se estar perante uma simulação relativa na qual, para poupar no IMT e, ainda, no IRS ou

IRC, se declare um preço inferior ao real. Segundo o artigo 240.º, há simulação quando se

reúnam três requisitos:

a) Um acordo entre o declarante e o declaratário;

b) No sentido de uma divergência entre a declaração e a vontade das partes;

c) Com o intuito de enganar terceiros.

Estes elementos devem ser invocados e provados por quem pretenda prevalecer-se da

simulação ou de aspetos do seu regime. O acordo entre as partes é importante para

prevenir a confusão com o erro ou a reserva mental; a divergência entre a vontade e a

declaração surge como dado existencial da simulação; o intuito de enganar terceiros – a

não confundir com a intenção de os prejudicar – prende-se com a atuação de criar uma

aparência. “Terceiros” será qualquer pessoa alheia ao negócio ou acordo simulatório: não

necessariamente ao contrato simulado. Há diversos tipos de simulação:

- fraudulenta ou inocente: consoante vise prejudicar alguém – portanto: assuma

animus nocendi ou animus decipiendi;

- absoluta: quando as partes não pretendam celebrar qualquer negócio;

- relativa: sempre que, sob a simulação, se esconda um negócio

verdadeiramente pretendido: o negócio dissimulado;

- objetiva: quando a divergência voluntária recaia sobre o objeto do negócio ou

sobre o seu conteúdo;

- subjetiva: sempre que ela incida sobre as próprias partes. Aqui, temos a

interposição fictícia de pessoas: A vende a B e ambos combinam que se declare vender

a C.

O negócio dissimulado e a posição dos terceiros: o artigo 240.º, n.º2 considera,

lapidarmente, o negócio simulado como nulo. Não obstante, não se trata de verdadeira

nulidade, uma vez que, visto o disposto nos artigos 242.º e 243.º, ela não pode – contra

o artigo 286.º – ser invocada por qualquer interessado nem – a fortiori – ser declarada

oficiosamente pelo tribunal. Fica, todavia, a ideia de que o negócio simulado não produz

efeitos entre as partes e perante terceiros que conheçam ou devessem conhecer a

simulação: os terceiros de “má fé”. O artigo 241.º, n.º1 tem uma regra da maior

importância prática: a simulação não prejudica a validade do negócio simulado. Apenas

se dispõe que, quando tenha natureza formal, ele só seja válido se houver sido

observada a forma exigida pela lei. Esta exigência não pode ser tomada no sentido de

todos os elementos do contrato simulado constarem da lei, ou não haveria

aproveitamento possível. O artigo 242.º, n.º1 dá legitimidade aos próprios simuladores ,

mesmo na simulação fraudulenta, para arguirem a simulação. Trata-se de um preceito

que visa ladear a eventual invocação do tu quoque: ninguém poderia prevalecer-se de

ilícito próprio. O artigo 242.º, n.º2 dá uma legitimidade particular aos interessados

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prejudicados, nos seus direitos legitimários, pela sucessão. Sendo o contrato nulo, a

nulidade pode ainda ser invocada por qualquer terceiro interessado, nos termos gerais

do artigo 286.º, contra os simuladores ou os seus herdeiros. O ponto cadente é o da

invocação da simulação pelos próprios simuladores e contra terceiros. O artigo 243.º,

n.º.1 impede tal invocação perante terceiros de boa fé. O n.º2 desse preceito veio dar

uma definição incompleta de boa fé subjetiva: sabemos, todavia, pelas coordenadas

jurídico-cientificas gerais e pela interpretação sistemática e teleológica, que se trata de

uma boa fé subjetiva ética. O artigo 243.º, n.º3 determina a má fé perante o registo da

ação de simulação. É evidente: havendo registo, qualquer interessado em conhecer a

realidade tem o dever de se inteirar do seu teor. Chegando ao nosso ponto, verifica-se

que a regra da inoponibilidade da simulação a terceiros de boa fé suscita um delicado

problema de justiça, no confronto com as preferências dotadas de eficácia real. Com

efeito, uma das simulações mais frequentes é, na prática, a venda por um preço

declarado inferior ao real, para defraudar o fisco. Nessa altura, se tiver sido preterido

um preferente que disponha de eficácia real, este pode mover uma ação de preferência,

pagando o suposto valor real, apenas; e se os simuladores explicarem – e provarem –

que o preço fora, na realidade, o valor real que o preferente havia pagado, poderá o

preferente escudar-se com o artigo 243.º, n.º1: os simuladores não podem arguir a

simulação contra terceiros de boa fé. O preferente teria um enriquecimento

escandaloso. O Direito Civil português podia hoje considerar-se estabilizado: os terceiros

preferentes não podem invocar “boa fé” para obterem por um preço inferior ao real;

isso equivaleria a um enriquecimento estranho ao espírito legislativo. A tutela da

confiança só se justifica quando haja um investimento da confiança, isto é: quando o

confiante adira à preferência e, nessa base, erga um edifício jurídico e social que não

possa ser ignorado sem dano injusto. Ora o preferente por valor simulado inferior ao

real não fez qualquer investimento de confiança. A sua posição não pode invocar a tutela

dispensada, à aparência, pela boa fé. A simulação pode, nos termos gerais, ser

constatada na própria ação de preferência: aí será, então, declarada a competente

nulidade, de modo a poder preferir-se pelo preço real. Só na hipótese de ter surgido

uma ação de simulação autónoma será necessário, ao preferente, aguardar pelo trânsito

em julgado da decisão que declare a nulidade, para preferir por esse preço podendo, em

alternativa, preferir desde logo pelo preço real. Também podem ocorrer simulações

inversas: justamente para afastar o preferente, as partes declaram um preço superior

ao efetivamente combinado e praticado. Quando isso suceda, não oferece dúvidas de

que o preferente pode invocar a nulidade do negócio simulado e preferir pelo preço real.

Na mesma linha, pode o preferente invocar a nulidade de uma doação, quando esta vise

encobrir uma compra e venda dissimulada, tendo-se recorrido a tal esquema

justamente para afastar a preferência.

A prova da simulação: na verdade, o artigo 394.º, n.º2 parece proibir a prova

testemunhal do acordo simulatório e do negócio dissimulado, quando invocados pelos

simuladores. Trata-se de uma regra que remonta ao Direito napoleónico e que visava

dificultar a declaração de nulidade dos atos. Todavia, a simulação é, só por si, difícil de

provar. Impedir a prova testemunhal equivale, muitas vezes, a restringir, de modo

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indireto, a prescrição do artigo 240.º, n.º2, quanto à nulidade da simulação. Recordamos

que a confiança de terceiros de boa fé está, sempre, devidamente acautelada pelo artigo

243.º. Assim, tem vindo a ser definido um entendimento restritivo do artigo 395.º, n.º2:

visa-se, no fundo, fazer prevalecer a verdade dos factos. A jurisprudência acolhe essa

interpretação restritiva. Havendo um princípio de prova escrita, é admissível

complementá-la através de testemunhas. Os próprios simuladores podem ser ouvidos

sobre a simulação, em depoimento de parte. Em termos práticos, admite-se, como

princípio de prova escrita, uma escritura de retificação. Contra este entendimento veio

manifestar-se Luís Menezes Leitão recordando o objetivo da lei: evitar que, com base

numa prova testemunhal de “conteúdo altamente duvidoso, se venha a pôr em causa,

a fiabilidade do documento autêntico”. Tem a sua razão: só com muita cautela o juiz

poderá validar factos derivados de depoimentos e desde que, como foi dito, haja um

início de prova documental minimamente consistente. Como se sabe, vigora o princípio

da livre apreciação da prova testemunhal, pelo que o juiz tem toda a margem para não

se deixar convencer. Mas um Direito contemporâneo deve ser transparente e leal

quanto às suas soluções: quando queira impor uma saída deve fazê-lo, diretamente e

não recorrendo a circunlóquios de limitar a priori as vias para descobrir a verdade. No

artigo 394.º, n.º2 para a inoponibilidade da simulação aos preferentes não está em

causa a punição dos simuladores a qual, de toda a forma, teria de passar pela medida

da culpa de cada um deles. Está, sim, a de saber se a necessária proteção de terceiros

vai ao ponto de lhes proporcionar um enriquecimento escandaloso, que podem ficar a

dever ao puro acaso. Não estamos a falar de “pequenas simulações”, mas de saltos

vertiginosos, que se documentam nos tribunais. Nem o preferente acreditará, jamais,

na veracidade deste último valor. Por isso mantemos que nenhum investimento de

confiança pode ser feito na base de semelhantes discrepâncias. De toda a maneira, as

despesas e demais danos causados ao preferente, quando ele próprio esteja de boa fé,

devem ser ressarcidos.

40.º - A natureza da preferência

As teorias e o seu relevo: com o fito de explicar a natureza da preferência e do pacto

que lhes dê azo, têm sido apresentadas as mais diversas teorias. Algumas delas surgem

como meras curiosidades. Todavia, elas são úteis para esclarecer meandros dogmáticos

da temática em jogo. Podemos enumerar:

- a teoria do ingresso: o preferente assumiria a qualidade de parte no negócio

preferível, através de uma cessão (ou assunção) da posição contratual. Tecnicamente,

esta orientação não é defendível, uma vez que o regime aplicável à preferência não é o

dos artigos 424.º e seguintes, relativos a cessão da posição contratual. Mas

economicamente retrata o fenómeno ativo da preferência;

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- a teoria do contrato-promessa: constata que, pela declaração do preferente,

surge o contrato definitivo entre este e o obrigado à preferência. Temos uma “espécie”

de contrato-promessa monovinculante, pelo qual uma das partes se vincula à conclusão

de um contrato definitivo. Aqui podemos contrapor: é indubitável que o pacto de

preferência surge como um contrato preparatório, que não vale por si; ele visa a

conclusão, ainda que futura e eventual, de um outro contrato. Todavia, no contrato-

promessa, há uma estrita definição prévia do contrato a celebrar, o que não sucede na

preferência. OS regimes são, assim, claramente distintos;

- a teoria da legitimação: o pacto de preferência equivaleria à outorga de uma

procuração irrevogável ao preferente que lhe permitiria, através de um negócio consigo

mesmo, fazer surgir o contrato prometido. Sendo curiosa, esta orientação, de resto

isolada, não joga com os regimes em presença: nem da preferência, nem da procuração;

- a teoria da oferta: caracteriza o exercício do direito de preferência como a

aceitação de uma proposta de contrato irrevogável, derivada do pacto de preferência.

Esta orientação tem interesse em Direitos que admitem uma revogabilidade de princípio

das propostas contratuais, até que se forme o contrato por elas visado. Mas no Direito

português, a aproximação à proposta seria total. E não faria sentido: o pacto de

preferência não tem, à partida, o conteúdo fixo, exigido pela proposta. De todo o modo,

Schuring acaba por se fixar nesta teoria: o obrigado faria uma oferta irrevogável de

concluir um contrato ajustado com um terceiro, mas com o preferente, se este

acompanhar as condições;

- a teoria da dupla condição: bastante representada na doutrina e na

jurisprudência defende, tratar-se, na preferência, de um contrato de compra e venda

condicionado ao titular que vender a coisa por tanto a terceiro e ao preferente querer

comprá-la, a tanto por tanto. Descritivamente, a teoria parece correta, apenas com a

ressalva de se lidar com condições impróprias: si volet. Todavia, é de recear que o regime

não coincida com o da condição;

- a teoria do direito potestativo: o preferente receberia, na realidade, o poder

de, unilateralmente, fazer nascer determinada relação jurídica. Esta orientação surge

um tanto vaga: a presença de um direito potestativo é comum perante o destinatário

de qualquer proposta, assim como potestativa é a reação ao incumprimento: na

promessa, na preferência e nos diversos contratos.

As preferências obrigacional e real: na preferência obrigacional, temos uma relação

complexa que se estabelece entre o preferente e o obrigado dar preferência e nos

termos da qual este deve:

- abster-se de contratar com terceiros, sem seguir o procedimento de

preferência;

- comunicar ao preferente o projeto de contrato, firme e completo, a que

chegue, com um terceiro;

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- concluir o contrato em causa, nas condições fixadas, com o preferente, desde

que este as acompanhe.

A prestação principal é, seguramente, eta última: trata-se de um facere jurídico. Não é

exato, contra o que defendem os seguidores da prestação negativa, que o

incumprimento do preferente (só) surja quando ele contrate com o terceiro: tal

incumprimento ocorre caso o obrigado à preferência, depois de o preferente ter emitido

a sua declaração de preferência, se recusar a celebrar o contrato definitivo. Pode,

mesmo, sujeitar-se à execução específica e/ou a responsabilidade contratual. Além

disso, afigura-se-nos uma visão desconforme com o Direito privado o ver, na preferência,

um objetivo geral de não contratar com terceiro. Tal contratação só é condenável

porque impede o contrato definitivo com o preferente. O aguardar pelo procedimento

de preferência e o efetuar a comunicação de preferência surgem como prestações

secundárias: instrumentais, em relação ao que interessa. Verificados os pressupostos, o

preferente recebe o direito potestativo de interferir. Mas isso não esgota a preferência

obrigacional, bem pelo contrário: tal direito potestativo é o passo final de um iter

complexo que compõe o conteúdo da preferência. Também se podem ler, nos

“pressupostos”, conditiones: a parte debitoris (o obrigado a querer contratar com um

certo terceiro, com determinadas cláusulas) e a parte creditoris (o preferente querer

contratar e querer acompanhar as cláusulas ajustadas com o terceiro). Mas condições si

volet cruzadas, para mais impróprias, retiram consistência a qualquer figura: todo o

contrato é, a essa luz, uma proposição duplamente condicionada: alguém propõe e

alguém aceita. Fica-nos, pois, o facere jurídico: dar preferência. Mas isso não esgota a

relação, que se assume como duradoura e complexa. Além das apontadas prestações

secundárias, o obrigado deve observar deveres acessórios de segurança, de lealdade e

de informação que podem, mesmo, envolver terceiros. Trata-se do já referido modus

praelationis. A preferência real implica uma afetação de uma coisa corpórea, em termos

de aquisição. Entre o seu titular e o proprietário da coisa onerada estabelecem-se

relações jurídicas (reais), moldadas sobre a relação obrigacional de preferência. Esta

pode, pelo prisma do Direito das obrigações, considerar-se como dobrada, junto à

prestação principal, por um direito real de aquisição. Tal direito toma corpo pela ação

de preferência, estruturalmente potestativa (absoluta) e dirigida ao aproveitamento da

coisa, em termos de aquisição.

Dimensão compreensiva: histórica e cultural: em suma: tudo isto permite-nos

apresentar a preferência como um instituto unitário, a se, traduzido numa relação

duradoura, de facere jurídico, com prestações secundárias típicas de procedimento e de

comunicação e que visa uma conclusão preferencial de certo contrato definitivo.

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Capitulo 6

O Pacto de Opção

41.º - Aspetos gerais e regime da opção

Noção Básica, origem e desenvolvimento: o pacto de opção é um contrato pelo qual uma

das partes (o beneficiário, o titular ou o optante) recebe o direito de, mediante uma simples

declaração de vontade dirigida à outra parte (o vinculado ou o adstrito à opção), fazer um

contrato entre ambas combinados: o contrato definitivo. Assim, a opção não se confundo:

- com o contrato-promessa: este exige, no cumprimento, declarações de ambas as

partes, tendentes à conformação do contrato definitivo; na opção, basta a declaração do

beneficiário;

- com o contrato-promessa monovinculante (unilateral): temos, aqui, um verdadeiro

contrato-promessa, que exigirá, na execução, a celebração, por ambas as partes, do definitivo,

o qual, todavia, só deverá ter lugar se uma das partes quiser; ora na opção, embora uma das

partes tenha o poder unilateral de fazer surgir o definitivo, este não depende da intervenção da

parte vinculada;

- com o pacto de preferência: de facto, o preferente tem o direito potestativo de

contratar com o obrigado ou, na preferência real, de fazer seu negócio preferível, em caso de

violação; simplesmente, não se sabe ab initio qual será o contrato definitivo, o qual depende de

o obrigado à preferência querer contratar e de o preferente querer preferir; na opção, o

contrato definitivo está prefixado e a concretização deste depende da vontade única do optante.

- com a condição suspensiva: a opção equivale a um contrato sujeito à condição

suspensiva si volet, por parte do beneficiário; teríamos um negócio sujeito a uma condição

potestativa; sucede, todavia, que a opção tem um papel próprio e uma existência a se, enquanto

a condição se dilui no contrato que a comporte, colocando-o em modo condicional; a

proximidade das figuras permite aproveitar regras aplicáveis à condição, como veremos;

- com a venda a retro: apresentada, pelo Código Vaz Serra, omo uma modalidade de

compra e venda, ela permite, ao vendedor, resolver o contrato (927.º); trata-se de uma figura

que deixa, nas mãos deste, o direito potestativo de (re)aver a propriedade; a opção, todavia,

encaixa numa prévia compra e venda e assume prazos longos (929.º) bem como um regime

pesado (930.º), que não se coaduna com as exigências do moderno pacto de opção.

Um pouco mais delicada é a distinção entre o pacto de opção e a proposta contratual irrevogável,

pelo menos, no prazo em que o seja. Com efeito, a proposta dá azo ao contrato (definitivo) pela

mera aceitação. A proposta, em princípio, tem uma margem temporal de irrevogabilidade, que

mais a aproxima da opção. Uma análise anteciapada dos regimes mostra as diferenças de fundo:

- a proposta é de formulação unilateral, enquanto a opção é um contrato, derivado, nos

termos gerais, das competentes proposta e aceitação;

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- a proposta liga proponente e destinatário, não sendo transmissível; a opção pode

circular, sendo, de resto, uma das vantagens;

- à proposta aplica-se o regime dos artigos 224.º a 235.º; à opção, as regras adotadas

pelas partes, com as especificações acima apontadas.

A potabilidade e o preço da opção: perante a figura da opção, põe-se desde logo o tema de

saber se ela pode reportar-se a quaisquer definitivos. Assim, podemos introduzir o conceito de

“optabilidade”, isto é: a suscetibilidade que os contratos tenham de poder ser objeto de pactos

de opção. No domínio do Direito das Obrigações vigora a autonomia privada. A liberdade

contratual (405.º) permite às partes, em regra, introduzir em opção a conclusão de quaisquer

contratos. De resto: a opção é, apesar de tudo, um minus em relação ao contrato definitivo. Se

as partes podem concluir certos contratos, poderão, relativamente a eles, fechar opções. Temos

de entender que contratos como o de doação ou o de casamento, por força dos regimes

respetivos e dos inerentes valores subjacentes, não comportam opções. Aplicam-se, aqui,

diretamente ou por analogia, as regras sobre a prometibilidade em sentido forte: o que não é

prometível não é, a fortiori, opcionável. Podemos ir mais longe: não é possível a opção

relativamente aos contratos que excluam a execução específica ou que exijam, na conclusão,

operações que transcendam a mera declaração unilateral do optante. Quanto a opções relativas

a contratos reais quod constitutionem: podemos admiti-las se, previamente, o optante (ou

alguém por ele) já tiver detido o controlo material da coisa. A hipótese de uma “opção” que,

uma vez exercida, obrigaria o adtrito a entregar a coisa para, assim, se completar o definitivo é

lícita e eficaz… mas não é uma opção. A opção representa, para o seu beneficiário, uma

vantagem evidente. Particularmente nas áreas sensíveis do mercado, onde ela se torna mais

interessante, a opção permite, a uma pessoa, adquirir, por sua exclusiva vontade, uma

determinada posição jurídica. Em compensação, ela traduz, para o adstrito, uma desvantagem

de conteúdo inverso. Nessas condições, compreende-se que, aquando da concessão de uma

opção, haja uma contrapartida monetária: um preço. O optante paga, ao adstrito, pela

constituição da opção. A cláusula de pagamento tem natureza acessória, pelo que pode escapar

à forma imposta à opção (221.º).

Regime e construção dogmática: o regime do pacto de opção é enformado pelo princípio da

equiparação: ele segue o regime do contrato definitivo, exceto no que tanja ao cumprimento

deste. A opção não é um tipo de contrato, mas uma figura geral, isto é, um modo de estar in

contrahendo. Temos, assim, opções de compra, opções de venda, opções de locação, opções de

mandato, opções de empreitada e assim por diante. Perante cada uma dessas hipóteses, a

opção, por mera declaração unilateral, dá azo ao contrato definitivo. Logo, só será válida e eficaz

se, perante o contreto contrato definitivo em causa, ela reunir os diversos requisitos

prefigurados. Fixado esse aspeto fundamental, podemos precisar:

- quanto à forma: aplica-se, sem aligeiramento, a forma do definitivo pois a opção,

tornando-se eficaz a declaração do optante, é o definitivo;

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- quanto aos pressupostos: funcionam os do definitivo; poderíamos hesitar no tocante

à legitimidade, uma vez que esta, faltando ab initio, poderia ser recuperada antes do exercício

do direito; nessa eventualidade teremo (aí sim) o misto de opção com o dever de adquirir a coisa;

- quanto à execução: a opção cessa com o seu exercício, passando a integrar o definitivo;

consequente e logicamente, as regras deste só nessa altura se manifestam.

A aplicabilidade do princípio da equiparação é ainda reforçada pela proximidade entre a opção

e o inerente definitivo condicionado à vontade do beneficiário (si volet). Nessa eventualidade,

teríamos um único negócio, com a cláusula si volet: uma condição potestativa, ligada à pura

opção do beneficiário e que poria em ação um contrato já acordado. Por razões funcionais, com

projeções dogmáticas, essa via não pode ser seguida, uma vez que a ação é mais do que uma

mera condição. A opção tem uma especialidade: normalmente pactuada pelas partes mas, em

certos domínios, ditada pela prática comum e apoiada nas circunstâncias que a rodeiam. Ela dá

azo, na esfera do optante, a uma posição livremente disponível. Na verdade, aquando do estudo

das suas funções, a opção visa justamente promover a circulação, no mercado, da posição de

contratante e do valor que ela representa.

Direitos e deveres, execução e incumprimento: o pacto de origina direitos e deveres para

ambas as partes. No que toca ao optante, ele recebe o direito potestativo de, por uma simples

manifestação da sua vontade, provocar o aparecimento do contrato definitivo. Durante quanto

tempo? Cabe às partes, aquando da conclusão do pacto, estabelecer um prazo durante o qual a

opção possa ser exercida, sob pena de caducidade. A hipótese de nada terem clausulado nesse

domínio e uma vez que a aplicação do artigo 777.º, n.º1 poderia ser gravosa para o optante,

pondo em causa a utilidade do seu direito, haverá que aplicar, por analogia, o artigo 411.º: o

vinculado pede, ao tribunal, que fixe um prazo razoável para o seu exercício. O optante deve

satisfazer as cláusulas acessórias a que, porventura, esteja sujeito, com relevo para o pagamento

do preço da opção, quando pactuado. Além disso, ele fica inserido numa teia de deveres

acessórios (762.º, n.º2) que, entre outros aspetos, o obrigam a não complicar a posição do

adstrito à opção. Sobre ele irão recair os nossos conhecidos deveres de segurança, de lealdade

e de informação. O adstrito à opção fica imerso numa situação de sujeição. Esta, em si, nem

pode ser violada, pela natureza das coisas. Não obstante, o vinculado não se remete, licitamente,

a uma mera inação: sobre ele recaem prestações secundárias e deveres acessórios, de modo a

permitir, ao optante, o exercício eventual da opção, retirando, dela, todas as vantagens que,

pela natureza das coisas, ela possa proporcionar. Como princípio geral, há que lhe aplicar,

diretamente, o artigo 762.º, n.º2 e, por analogia, o artigo 272.º: na pendência da opção, ele deve

agir segundo os ditames da boa fé, de modo a não comprometer a integridade da posição da

contraparte. A execução do pacto em estudo centra-se na comunicação de opção: uma

declaração recipienda (224.º), dirigida pelo optante ao adstrito, com um conteúdo simples de

exercício do direito: opto. A declaração deve ser feita no prazo de eficácia da opção, isto é: antes

de, pelo decurso do tempo, ela ter caducado. Qual a forma dessa declaração? Duas teorias:

- a declaração poderia ser meramente consensual (Vaz Serra);

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- a declaração deve assumir a forma exigida para o contrato definitivo (Soares da

Fonseca).

A declaração de opção é um ato jurídico unilateral: comporta liberdade de celebração, mas não

de estipulação, uma vez que tudo foi decidido no próprio pacto. Aplica-se-lhe o regime dos

negócios, por via do artigo 295.º, mas na medida em que a analogia das situações o justifique,

segundo esse mesmo preceito. A declaração de opção é um ato sobre um negócio: vai alterar a

eficácia que já advinha deste. As razões especiais que, junto da lei, determinem uma forma

solene são-lhe aplicáveis (221.º, n.º2). A regra será, pois: a declaração de opção deve seguir a

forma legalmente prescrita para o contrato definitivo a que se reporte, por via dos artigos 295.º

e 221.º, n.º2. Complementarmente, já se vê ser esta a solução mais razoável. Na verdade, o

exercício da opção era dar, ao definitivo, a estrutura subjetiva final. A forma deste deve ser

observada na própria declaração. A opção tem uma estrutura que não permite encarar com

facilidade o seu próprio incumprimento. No seu cerne, temos um direito potestativo e uma

sujeitção. Esta não pode ser violada, por natureza e como já foi referido. O incumprimento da

uma opção residirá, fundamentalmente, na inobservância de prestações secundárias que

tenham sido pactuadas ou na desatenção pelos deveres acessórios que recaiam, ex bona fide,

em qualquer das partes. Põe-se a hipótese de o adstrito à opção alienar, a terceiros, a coisa que

era suposto manter para o optante. Nessa eventualidade, aplica-se, por analogia, o artigo 274.º:

a venda a terceiro torna-se ineficaz quando a opção seja exercida; o optante adquire a

propriedade da coisa onde quer que ela esteja, podendo exigir, depois, a sua entrega. Apenas

se ressalvam as hipóteses de o terceiro poder, por razões próprias, invocar a usucapião ou a

aquisição tabular Além disso, assiste-se à violação de prestações secundárias e de deveres

acessórios, pelo que o adstrito deverá indemnizar o optante pelas maiores despesas que tenha

ocasionado. Dizemos, propositadamente, que a venda feita nas condições apontadas é

(meramente) ineficaz, no caso de exercício de opção. Fora isso, ela será válida e legítima,

produzindo efeitos até ao exercício da opção. Fora isso, ela será válida e legítima, produzindo

efeitos até ao exercício da opção, exercício esse que, de resto, poderá nunca ocorrer.

Decorrências diferentes serão a de o adstrito destruir a coisa ou a de se recusar a entrega-la. Em

qualquer dos casos, o optante pode exercer o seu direito, o qual visa o contrato e não a coisa.

Caso o exerça e a coisa haja sido destruída, verifica-se a violação da propriedade e do contrato

definitivo; de igual modo, a recusa da entrega da coisa implica a inobservância do definitivo e o

desrespeito pela propriedade. O optante pode reagir, lançando mão dos competentes remédios:

exceptio non adimpleti contractus, indemnização por incumprimento ou por via aquiliana ou/e

reivindicação da coisa, quando ainda seja possível. Atuação a opção, surge o contrato definitivo,

o qual deve ser cumprido. Assim, a parte compradora deverá pagar o preço e a vendedora

entregar a coisa, quando se trate de opção relativa à compra e venda (879.º). Nos outros casos,

seguir-se-ão os regimes dos contratos concretamente em causa.

42.º - Funções, Natureza e aplicação

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Funções; a cláusula de opção: o conhecimento dos aspetos gerais e do regime da opção

facilitará a apreensão das suas funções. Podemos distinguir:

- diminuição do risco;

- especulação;

- financiamento;

- remuneração

Celebrando uma opção, as partes congelam as condições da venda. A partir daí, ser-lhes-á

indiferente a evolução do mercado; o risco desaparece, designadamente para a parte optante,

que exercerá o seu direito se o entender. Pelo mesmo diapasão, entende-se a função

especulativa que a opção pode assumir: o optante irá exercer (ou não) o seu direito conforme a

mais-valia que lhe confira o aparecimento, no momento escolhido, do definitivo. Além disso,

evita que um terceiro possa aproveitar o bem.

A natureza: na determinação da natureza da opção, cumpre aproveitar os elementos antes

coligidos sobre o seu regime e as suas funções. Principiando pela sua construção dogmática,

encontramos duas grandes teorias:

- a teoria unitária: a opção e o contrato principal constituiriam um único contrato. A

opção seria, no fundo um contrato condicionado à emissão da vontade do optante;

- a teoria da separação: contrapõe o papel específico da opção, o seu teor criativo e a

descontinuidade entre a opção e o principal. Posta a questão nestes termos, a teoria da

separação é a recomendável: de facto, a opção suscita valorações próprias e um regime distinto,

que não se dilui no definitivo.

Afastamos, deste modo, a recondução da opção a um elemento de um contrato sub conditione

suspensiva: a do exercício da opção pelo seu beneficiário. Mas esse afastamento tem, como

consequência, o perguntar-se pelo contrato definitivo e pela autonomia deste. Por parte do

obrigado, o contrato definitivo não tem qualquer voluntariedade, uma vez que ele nem é

chamado a dizer seja o que for; e da parte do optante, ele opera, apenas, como o produto de

um ato unilateral. Em termos analíticos, de facto, o pacto de opção consome o essencial da

autonomia das partes, surgindo o definitivo como uma decorrência do exercício de um direito

potestativo. Todavia, estes não se esgotam na dimensão lógica. Comportam um peso

institucional histórico-cultural, que interfere em toda a sua estrutura e na conformação do seu

regime. O contrato não se limita ao seu próprio processo de formação: antes se espraia no

regime subsequente. O contrato definitivo, mesmo quando se apresente como mero produto

de uma opção que o haja precedido e que lhe dê a sua forma, proporciona uma regulação de

interesses entre as partes que antes, de todo, não existia. Ele irá legitimar uma série de atuações

subsequentes, enquanto a opção apenas permite a emissão de declaração de vontade de optar.

Mantém, pois, uma autonomia dogmática, ainda que com o sacrifício da sua (livre) formação. A

opção, em contrapartida, fica fortalecida. Ela é tomada como um conceito de enquadramento,

pela sua generalidade e por facultar as mais diversas concretizações. Além disso, apresenta-se

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como um preliminar aleatório, sinalagmático (em regra) e sui generis. Constitui uma figura geral

dotada de tipicidade social. No plano do seu conteúdo, o pacto de opção dá corpo a uma relação

obrigacional complexa, sem prestações principais: estas são substituídas pela dupla direito

potestativo/sujeição, a cargo, respetivamente, do optante e do adstrito. Ambas as partes ficam,

todavia, envolvidas na teia de prestações secundárias e dos deveres acessórios. Com o contrato

definitivo surgem as prestações principais, a este inerentes, e toda a demais sequência

secundária e acessória.

Capítulo 7 – Contrato a favor de terceiro

43.º - origem, desenvolvimento e aplicações

Noção; Direito romano e padectística: o artigo 443.º do Código de Vaz Serra abre uma

subsecção dedicada ao contrato a favor de terceiro. E fá-lo com uma noção que, de facto,

adianta já parte da regulamentação aplicável a essa figura. Sintetizando, diremos que pelo

contrato a favor de terceiro, uma das partes (o promitente) assume, perante a outra

(promissário), uma obrigação de prestar a uma pessoa estranha ao negócio (o terceiro), a qual

adquire um direito à prestação. A figura do contrato a favor de terceiro entra em conflito com o

princípio da relatividade das obrigações. Transposto para os contratos: manda a lógica

geométrica que eles apenas produzam efeitos entre as próprias partes. Um envolvimento de

terceiros, mesmo quando destinado a beneficiá-los, não seria compaginável. Todavia,

valorações específicas podem levar a saídas diversas. Não foi fácil o caminho que,

modernamente, levou a considerar a figura do contrato a favor de terceiro. No Direito Romano

clássico, o contrato a favor de terceiro não era admissível, Segundo Gaio: «(…) per extraneam

personam nobis adquiri non posse.», ou seja, nada pode ser adquirido pra nós através de uma

pessoa estranha. A ideia é retomada por Ulpiano e pelas Institutiones de Justiniano, através da

célebre máxima: «alteri stipulari(…)nemo potest», ou seja, nada pode ser estipulado, a favor de

ninguém (sugerimos alguém para que se não entre na dupla negativa), por outrem. Trata-se de um princípio

cuja aplicação é possível seguir em numerosas fontes clássicas. Pois bem: ele vinha pôr em causa

não só a representação como os subsequentes contratos a favor de terceiro. No período pós

clássico, surgiram desvios à regra alteri stipulari. Com Justiniano, admite-se a doação com

cláusula de prestar a terceiros, a administração contratada pela qual o administrador se obriga

a fornecer uma coisa a terceiro e outros. O Direito comum manteve a conceção de base restritiva.

As exceções foram, todavia, sendo alargadas. O naturalismo fez regredir a máxima alteri stipulari

non potest: de facto, se fundamento do vinculo reside na vontade e na razão, porque não admitir

a vinculação de alguém, que o queira, perante um terceiro? Esta doutrina fez carreira no espaço

jurídico da língua alemã. As primeiras codificações foram restritivas, admitindo figura, apenas,

quando o terceiro, aderindo ao contrato, desse o seu assentimento. No período pandectístico,

o tema suscitou grande atenção e obteve muitas reflexões. Windscheid, que teria um peso

decisivo no então futuro BGB, distingue duas questões, a propósito da admissibilidade do

contrato a favor de terceiro:

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- a de saber se uma pessoa pode, por contrato com um promissário (o que recebe a

promessa ou vinculação), obrigar-se a prestar a um terceiro;

- a de apurar se o terceiro recebe, por essa via, uma pretensão eficaz.

A ambas as questões dá Windscheid uma resposta positiva, invocando a evolução do

pensamento germânico que teria, inclusive, conduzido a um Direito consuetudinário a tanto

favorável.

O BDB e os códigos subsequentes: o desenvolvimento doutrinário antecedente e a pessão

das realidades enconómicas levaram a que o BGB alemão consagrasse, latamente, a figura do

contrato a favor de terceiro. Em Itália, o Código Civil de 1865 comportava, no artigo 1128.º, um

preceito de estilo napoleónico. O Código de 1942 acusando a receção da Ciência Jurídica alemã,

complementada com reflexões próprias, acolheu genericamente a figura, nos seus artigos

1411.º a 1413.º. Trata-se de preceitos que teriam, em conjunto com os alemães, influencia no

Código Vaz Serra.

Direito Inglês e Direito Europeu: a matéria presta-se a reflexões no Direito comparado, sendo

interessante relevar a recente experiência britânica. Ficou celebre a afirmação do Visconde

Haldane, em decisão da Câmara dos Lordes de 26 de abril de 1915:

«My Lords, in the Law of England certain principles are fundamental. One is that only a

person who is party to a contract can sue on it. Our Law knows nothing of a ius quaesitum tertio

by way of property, as, for example, under a trust, but it cannot be conferred on a stranger to a

content a right to enforce the contract in personam».

Na base da recusa está a doctrine of privity of contract: os direitos e deveres entre as partes

surgem, por contrato e este não produz efeitos para além delas. A estreiteza daqui decorrente

foi sendo contornada com recurso a vários expedientes:

. o trust: o interessado, constituindo-o e investindo-o nos necessários poderes, poderia

conseguir o benefício para o terceiro; todavia, este esquema pressupõe grandes valores, pois

implica despesas;

- a representação: o interessado poderia, através dela, ser associado ao contrato;

- contratos laterais: por seu intermédio, o terceiro adquiriria o benefício pretendido;

- leis especiais que o permitiriam, designadamente nos seguros.

Aplicações: as aplicações mais significativas da figura do contrato a favor de terceiros ocorrem

na área dos seguros, designadamente na área vida. Logo o artigo 1.º da Lei de Contrato de

Seguro, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 72/2008 de 16 abri, veio apresentar, como conteúdo

típico do contrato em causa: «(..) o segurador cobre um risco determinado do tomador de seguro

ou de outrem(…)». O contrato a favor de terceiros é também importante no domínio do

transporte. Este pode ser apresentado como o contrato pelo qual uma pessoa (o transportador)

se obriga, perante outro (o interessado ou expedidor), a providenciar a deslocação de pessoas

ou de bens de um local para outro. Pode suceder que o transporte seja contratado em benefício

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de um terceiro: o destinatário. Assim sucederá sempre que o expedidor contrate um

transportador justamente para fazer chegar uma mercadoria à mãos de um terceiro. Temos,

ainda, o caso das doações com encargos. Alguém pode doar determinados bens com o encargo,

para o destinatário, de pagar uma pensão a um terceiro. Neste ponto, a parcela relativa à pensão,

sendo aceite, é um contrato a favor de terceiro. O campo das garantias é, ainda, fértil na

aplicação da figura ora em estudo. O promitente obriga-se, perante o promissãrio, a garantir

uma dívida de terceiro, o que pode consistir numa hipoteca, num penhor ou numa garantia

pessoal. São configuráveis formas de garantias atípicas. Como se vê, trata-se de uma figura

intensamente praticada, concretizando-se para além dos roteiros clássicos, há muito fixados.

44.º - A experiência Lusófona

Precodificação, o Código de Seabra e Código Brasileiro de 1916: no período da pré codificação

oitocentista, a possível implicação de terceiros em contratos era conhecida: seja por referência

ao Direito comum, seja através dos códigos europeus então existentes, com relevo para o ALR

prussiano e o Código de Napoleão. Côrrea Telles deu, ao tema, um tratamento, sintético mas

bastante completo. Também Coelho da Rocha fez considerações favoráveis à figura. Apesar

destes antecedentes promissores, o Código de Seabra não consagrou a figura do contrato a favor

de terceiro. O seu artigo 646.º dispunha:

«os contratos feitos em nome de outrem, sem a devida autorização, produzem o seu

efeito, sendo ratificados antes que a outra parte se retracte.»

Conhecedor da evolução europeia, da experiência alemã e das opções brasileiras, Guilherme

Moreira tratou largamente o tema dos contratos a favor de terceiros e manifestou-se, de

princípio, favorável à sua presença no Direito português. Cunha Gonçalves, embora discordando,

nalguns pontos, do desenvolvimento de Guilherme Moreira, conclui nestes termos:

«Todavia, já ante do Decreto n.º19126, a ampla definição do artigo 641.º, conjugada

com o preceituado nos artigo 672.º e 702.º sôbre a liberdade contratual, e com os casos previstos

em diversos outros textos dêsse código e doutras leis, permitiam-nos afirmar que é

perfeitamente legal contratar em nome próprio a favor de terceiro.»

As duvidas haviam, de facto, sido desfeitas pela reforma do Código de Seabra levada a cabo pelo

Decreto n.º19216, de 16 dezembro de 1930. Este diploma acrescentou, ao artigo 646: «o

cumprimento dos contratos feitos em benefício de terceiro pode ser exigido pelos beneficiários».

Deve ser divulgado, a propósito do tema em estudo, o artigo 1089.º do Código Civil Brasileiro de

1916. Dipõe:

«O que estipula em favor de terceiro pode exigir o cumprimento da obrigação.

§único. Ao terceiro, em favor de quem se estipulou a obrigação, também é permitido

exigi-la, ficando todavia, sujeito ás condições e normas do contrato, se a elle anuir, e o

estipulante não o innovar, nos termos do artigo 1100.º.»

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154

Este preceito, densamente anotado por Paulo Merêa, tratou-se de uma primeira consagração

explícita do contrato a davor de terceiros, em lei lusófona, sendo, por certo, do conhecimento

de Guilherme Moreira e de Vaz Serra.

Os preparatórios: ao tema do contrato a favor de terceiro dedicou Vaz Serra um estudo

importante, pelo prisma da preparação do então futuro Código Civil. O Autor faz uma resenha

histórica e comparatística. Concluindo pelas vantagens de o acolher na lei civil, Vaz Serra

considera a sua compleição e as regras a aplicar. Vaz Serra apresentou um anteprojeto de

articulado bastante extenso. Na versão conjunta simplificada do anteprojeto, esta matéria foi

reduzida a onze preceitos (651.º a 661.º). Novas simplificações ocorreriam nas revisões

ministeriais, reduzindo-se quer o número de artigos, quer a sua densidade.

O Código Vaz Serra e o Código brasileiro de 2002: na sequência dos apontados preparatórios, o

Código Vaz Serra veio dedicar, ao contrato a favor de terceiros, os artigo 443.º a 451.º. Vai, na

pormenorização do regime, além do BGB e do Código Italiano. Destes preceitos, apenas o 450.º

sofreu alterações, desde 1966. Mais precisamente, foi, no seu n.º2, suprimida a referência à

(revogação das doações) por superveniência de filhos legítimos. Em ponderação global,

podemos dizer que a matéria relativa ao contrato a favor de terceiros é uma derivação do Direito

alemão, embora conceitualmente afeiçoada à realidade jurídico-científica local. No tocante ao

Código Civil brasileiro de 2002: mais útil do que tentar uma síntese será revelar, entre nós, a

pertinente regulação:

Artigo 436.º. O que estipula em favor de terceiro pode exigir o cumprimento da

obrigação.

§único. Ao terceiro, em favor de quem se estipulou a obrigação, também é permitido

exigi-la, ficando, todavia, sujeito às condições e normas do contrato, se a ele anuir, e o

estipulante não o inovar nos termos do artigo 438.º.

Artigo 437.º. Se ao terceiro, em favor de quem se fez o contrato, se deixar o direito de

reclamar-lhe a execução, não poderá o estipulante exonerar o devedor.

Artigo 438.º. O estipulante pode reservar-se o direito de substituir o terceiro designado

no contrato, independentemente da sua anuência e da do outro contratante.

§único. A substituição pode ser feita por ato entre vivos ou por disposição de última

vontade.

Estamos perante um texto claramente mais sintético do que o de Vaz Serra. Não obstante, ainda

é reconduzível à mesma família. A ordem jurídica brasileira tem, neste domínio, uma experiência

que remonta 1916. Afigura-se que convive bem com normas simples e impressivas.

45.º - Dogmática geral

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Figuras afins: a dogmática do contrato a favor de terceiro fica mais clara com a sua

contraposição às figuras afins:

- da representação: embora, nesta, também haja três intervenientes, verifica-se que o

representante, agindo em nome e por conta do representado e com poderes para o ato, age de

tal modo que os efeitos do negócio se repercutem imediata e automaticamente na esfera do

representado; há, pois, duas partes, embora uma delas seja representada; o negócio não produz

efeitos perante terceiros;

- do mandato sem representação ou representação indireta: aí, o contrato é celebrado

entre uma parte e o mandatário, que também é parte; este deverá, depois e através de um

segundo contrato, transmitir os direitos que haja adquirido, para o mandante (1181.º); temos

dois contratos e não um único; além disso, não existe uma vontade comum de produzir efeitos

perante terceiros;

- da representação sem poderes: alguém conclui um negócio em nome e por conta de

outra pessoa, mas sem ter os poderes de representação necessários (268.º, n.º1); exige-se

ratificação, para que os efeitos previstos se produzam; tais efeitos operam inter partes e não a

favor de terceiros;

- do contrato para pessoa a nomear: temos duas partes, reservando-se uma delas (ou,

até, as duas) a faculdade de indicar um terceiro que adquira os direitos ou assuma as obrigações

provenientes desse contrato(452.º, n.º1); não há, aqui, propriamente, um terceiro, dado que

este, uma vez designado, passa a parte;

- do contrato a três: todos intervêm, no negócio, estipulando-se prestações e obrigações

que a todos vinculem; o contrato será comum, entre partes, surgindo viável ao abrigo da

autonomia privada (405.º);

- da cessão da posição contratual: uma das partes, com o acordo da outra, transmite,

por negócio, a sua posição a um terceiro (424.º): tudo se explica em termos puramentes

contratuais;

- da gestão de negócios: uma pessoa (o gestor) desenvolve um atuação em nome e por

conta de outra (o dono), sem ter autorização bastante (464.º); podem ser praticados atos que,

todavia, só serão imputados ao dono se houver ratificação ou, quando o negócio seja praticado

em nome próprio, se se seguir o regime do mandato sem representação (471.º).

Já mais próximas do núcleo verdadeiro dos contratos a favor de terceiros, encontramos as

seguintes figuras que, com ele, não se confundem:

- o contrato comum com prestação feita a terceiro (770.º): aí, seja por combinação

prévia, seja por autorização do credor, seja por outra das razões legalmente apontadas, o

devedor presta perante um terceiro: não porque o contrato a tanto se destinasse, mas por via

do fator legitimamente surgido; poderá, porventura, haver aqui um contrato a favor de terceiro

não autentico;

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- o contrato com prestação de terceiro: as partes acordam entre si que um terceiro

efetuará, a favor de uma delas, um prestação; à outra caberá convencer o terceiro a fazê-lo; em

tal eventualidade, o terceiro não tem direitos, devendo dar o seu acordo para efetuar a

prestação que lhe é pedida;

- o contrato com proteção de terceiros: um contrato comum confere, pelo jogo dos seus

deveres acessórios, uma proteção a determinados terceiros; embora a figura tenha uma

dogmática própria, distinta da do contrato a favor de terceiros, ela costuma ser estudada a

propósito deste, com o qual tem contactos;

- o contrato com proteção por terceiros: também um contrato comum proporciona, por

um jogo de deveres ex bona fide, uma tutela a conceder por certos terceiros; temos uma

dogmática próxima da do contrato com proteção de terceiros, a ver nesse ensejo.

Modalidades: o contrato a favor de terceiros é uma figura de ordem geral. Ele apenas traduz

um modo no qual se podem encontrar os mais diversos contratos. Todas as classificações e todas

as tipologias deste lhe são, pois, aplicáveis, ainda que com adaptações. No que toca a

modalidades que, expressamente, tenham sido reconhecidas na lei, podemos apontar contratos

a favor de terceiros (443.º, n.º2):

- remissivos de dívidas;

- transmissão de créditos;

- constitutivos, modifictivos, transmissivos ou extintivos de direitos reais.

A promessa de liberação de dívida envolve uma vantagem para o promissário, sendo o

pagamento ao terceiro meramente instrumental em relação ao escopo último deste contrato:

será um falso contrato a favor de terceiro, segundo Menezes Leitão. Todos esses efeitos

secundários resultarão da prestação a efetuar, pelo promitente ao terceiro. O artigo 451.º

permite, ainda, isolar a figura da promessa por morte: o contrato é celebrado entre o

promissário e o promitente, a favor de um terceiro, com a especial característica de a promessa

dever ser efetuada após a morte do promissário. O n.º2 versa a hipótese de o terceiro morrer

antes do próprio promissário, altura em que os herdeiros deste são chamados à titularidade da

promessa.

Relações básica e de atribuição; a prometibilidade a terceiro: celebrando um contrato a favor

de terceiros, surgem duas relações jurídicas:

- uma relação básica ou de cobertura; entre o promitente e o promissário, partes no

contrato;

- uma relação de atribuição ou de valuta: entre o promitente e o terceiro.

A relação básica estabelece:

- as posições relativas do promitente e do promissário: pode haver uma relação onerosa,

uma relação sinalagmática ou uma situação diversa;

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- as prestações que, porventura, devam ser trocadas entre as partes;

- o regime concreto de tais prestações;

- a prestação que o promitente deva fazer ao terceiro.

A própria relação básica é, ainda, acompanhada por prestações secundárias e pelos deveres

acessórios a que, ex bona fide, haja lugar. A natureza concreta do contrato a favor de terceiro

que esteja em causa joga-se na relação básica. A prestação a efetuar ao terceiro poderá

equivaler à totalidade prevista pela relação básica ou de cobertura ou, apenas, a parte. A

liberdade de celebração e a liberdade de estipulação exercem-se a propósito da relação básica.

O terceiro apenas poderá aceitar ou recusar a prestação: qualquer outra alternativa faria, dele,

uma parte.

A relação de atribuição fixa:

- o direito do terceiro à prestação;

- quaisquer condicionalismos que a rodeiam.

O terceiro adquire o direito à prestação, independentemente de ter dado o seu acordo (444.º,

n.º1). Este ponto marca o abandono do estrito alteri stipulari nemo potest, constituindo a

grande mais-valia da figura ora em estudo. Como se vê, a relação de atribuição é algo pobre e

resulta, estritamente, da relação básica: o que não admira, uma vez que a esta cabe exprimir a

autonomia privada e o seu exercício. A relação de atribuição depede da perfeição da relação

básica, como se alcança do artigo 449.º. Pergunta-se se qualquer tipo contratual pode integrar

o formato de um contrato a favor de terceiro. A resposta é negativa: não será possível um

contrato de casamente a favor de terceiro. A resposta geral a esta questão implica repristinar o

correspondente princípio aplicável no contrato-promessa. O que se pode “prometer” a uma

parte pode prometer-se a favor de terceiro: apenas isso.

46.º - O Regime

A posição do promissário: de acordo com a geografia própria do contrato a favor de terceiro,

o promissário é a pessoa perante a qual o promitente assume a obrigação de prestar ao terceiro.

Exige o artigo 443.º, n.º1 que o promissário tenha, na promessa, um interesse digno de proteção

legal. Nos preparatórios, Vaz Serra deu muita importância a este ponto. Todavia, se bem se

atentar no seu teor, o problema de Vaz Serra era outro: o de dispensar o promissário da

necessidade de term na promessa a um terceiro, um interesse material. Com isto, caímos no

debate, já havido, a propósito do artigo 392.º, n.º2: aí se diz que a prestação não necessita de

ter valor pecuniário, mas deve corresponder a um interesse do credor digno de proteção legal.

A propósito do contrato a favor de terceiro reafirma-se, inútil e parcialmente, a mesma regra.

De facto, a exigência do interesse do promissário, digno de proteção legal, permite, tal como no

artigo 392.º, n.º2, retirar dois corolários:

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- que tal interesse não tem de ser patrinomianal;

- que a relação básica deve ter juridicidade.

O último ponde, que corresponde à linha de interpretação preconizada para o artigo 392.º, n.º2,

permite excluir, deste domínio, as situações de pura obsequiosidade. Fora disso, quando

exerçam a autonomia privada, os contratos a favor de terceiros são possíveis e válidos mesmo

quando o promissárioprossiga interesses estéticos, inconfessáveis(desde que não haja

ilegalidade ou atentado aos bons costumes) ou, até, ignotos para o próprio (desde que não haja

erro). A exigência de “interesse digno de proteção legal” visa, apenas, chamar a atenção para a

necessidade de um efetivo exercício das prerrogativas jurígenas. O promissário tem as

pretensões seguintes:

- a de exigir, em geral, do promitente, a efetivação da promessa ao terceiro, excepto de

outra tiver sido a vontade dos contraentes (444.º, n.º2);

- a de exigir, especificamente, do promitente, a exoneração do promissário de uma

dívida perante terceiro, quando esse seja o conteúdo da promessa; nessa altura, apenas o

promissário pode exigir o cumprimento da promessa.

Além disso, cumpre ainda reconhecer, ao promissário, outras pretensões:

- a de exigir, ao promitente, as prestações ou outras vantagens que, porventura, lhe

possam advir da relação básica (045.º);

- a de dispor do direito à prestação ao terceiro ou de autorizar a sua modificação (446.º,

n.º1 a contrario e 448.º, n.º1, 1.ª parte);

As aludidas pretensões do promissário conservam-se ainda quando a prestação agendada com

o promitente seja a favor de um conjunto indeterminado de pessoas ou no interesse público

(445.º). O exercício, pelo promissário, da pretensão de exigir a prestação ao terceiro tem uma

estrutura fiduciária. Embora, como abaixo será referido, ele exerça um direito próprio, deve

fazê-lo no interesse do terceiro beneficiário: de outro modo, o direito deste não teria significado,

podendo ser inutilizado, na prática. Caberá ao promissário, no âmbito dos deveres acessórios

que tudo isto origina, orientar devidamente a sua atuação.

A posição do promitente; a prestação principal: o promitente tem, fundamentalmente, o

dever de prestar ao terceiro beneficiário: ele assume, pelo contrário, a obrigação de efetuar a

correspondente prestação (443.º, n.º1). Essa adstrição pode-lhe ser exigida pelo próprio terceiro

(44.º, n.º1) e pelo promissário, se outra não tiver sido a vontade dos contraentes (444.º, n.º2).

A exigência do cumprimento da prestação do terceiro (a “promessa”) traduz-se:

- na possibilidade de interpelar, quando a prestação não tenha um prazo fixado (777.º,

n.º1);

- na interpelação moratória (805.º, n.º1);

- na interpelação admonitória (808.º, nº1);

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- na possibilidade de resolução por impossibilidade culposa (801.º, n.º2) ou por

incumprimento;

- na passagem ao incumprimento definitivo, não sendo respeitado o prazo admonatório

ou perdendo o credor o seu interesse na pestação (808.º);

- nas medidas relativas à realização coativa da prestação (817.º a 830.º, conforme casos).

Pergunta-se quem é o titular das posições correspondentes às possíveis iniciativas acima

elencadas e, sendo ambos, como conciliá-las quando haja divergência entre eles, no seu

exercício. Pelo própria estrutura do contrato a favor de terceiro, quer o promissário, quer o

terceiro, são redores do promitente. O primeiro, todavia – e salvo no que respeita a prestação

a que, ex contratu, porventura tenha diretamente direito – exerce uma posição própria, mas no

interesse do terceiro. Por isso dissemos que a posição era fiduciária. O terceiro, designadamente

quando adira à promessa, adquire uma posição de confiança que deve ser respeitada. Quanto à

hierarquia das pretensões a que o promitente deve submeter-se: ela depende de ter, ou não,

havido adesão do terceiro beneficiário. Enquanto tal adesão não ocorrer, os contraentes podem

revogar a promessa (448.º, n.º1), a qual pode ser, ainda, modificada (446.º, n.º1). Assim sendo

e por maioria de razão, cabe ao promissário concretizar, como entender, o conteúdo potestativo

da sua posição. Havendo adesão, o terceiro beneficiário consolida a posição. Uma vez que a

prestação lhe compete, ele pode exercer as pretensões do credor, passando, a partir daí, a

prevalecer sobre o próprio promissário. Exceciona-se, em regra, a eventualidade de a “promessa”

consistir e exonerar o promissário de uma dívida para com o terceiro (444.º, n.º3). Nessa

hipótese, a ideia de que a remissão é contratual (863.º, n.º1) e evidência de que o verdadeiro

beneficiário é o próprio promissário, justificam a inversão do regime. O promitente fica adstrito,

nos termos apontados, à realização da prestação principal, perante o terceiro, por exigência

deste e do próprio promissário. Esta é a configuração básica da figura. Recorde-se que o terceiro

não é parte. A prestação em jogo depende do contrato celebrado, podendo variar até ao infinto.

As únicas limitações derivam da prometibilidade a terceiro, acima sublinhada.

A posição do terceiro: o terceiro adquire, pelo contrato a seu favor, imediatamente, o direito

à prestação: independentemente da aceitação. Na hipótese de lhe dever ser feita uma prestação,

mas sem que o inerente direito lhe tenha sido atribuído: teremos um contrato a favor de terceiro

não autêntico. A precisa determinação do direito de terceiro, com a conclusão de saber se se

trata de um efetivo contrato a favor de terceiro, depende do que tenha sido estipulado e da

interpretação do contrato. Alguma doutrina salienta a necessidade de se apurar a “intenção” de

atribuir o direito ao terceiro. Não há, todavia, nenhuma “intenção” diferente da que preside a

qualquer negócio jurídico. O sentido “a favor de terceiro” resultará das regras comuns da

interpretação, tal como emergem do artigo 236.º, n.º1. No entanto, há que ter presente a regra

do artigo 237.º: tendo a (eventual) prestação a terceiro elementos de gratuitidade, prevalecerá,

na dúvida, a interpretação mais favorável ao disponente. Pode, daí, retirar-se que o fator

“direito do terceiro”, que não retribui, deve ser claramente expresso, no negócio de base.

Perante um contrato a favor de terceiro, o beneficiário pode rejeitar ou aderir à promessa (447.º,

n.º1) ou, ainda, nada fazer. A lei dispõe o seguinte:

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- a rejeição faz-se mediante declaração ao promitente, o qual deve comunicá-lo ao

promissário; o promitente que não faça culposamente essa comunicação responde perante o

promissário em causa (447.º, n.º2);

- a adesão faz-se mediante declaração, tanto ao promitente como ao promissário (447.º,

n.º3).

Esta minúcia regulamentadora, que serviu de inspiração a Vaz Serra, no anteprojeto, e guião de

Antunes Varela nas revisões ministeriais, encobre uma certa desconfiança pelo contrário a favor

de terceiro: provavelmente um resquício napoleónico do Direito anterior. Podemos, ao abrigo

das regras gerais (217.º), admitir que as competentes “declarações” ocorrem tacitamente e, em

especial: pela rejeição ou pela aceitação da própria prestação. A rejeição extingue o direitodo

terceiro à prestação. O que sucede ao dever de prestar, a cargo do promitente? O Código Civil

italiano prevê que a prestação caiba ao promissário, exceto se resultar diversamente da vontade

das partes ou da natureza do contrato (1441.º, III). Essa mesma regra deverá singrar entre nós,

mau grado o silêncio do Código: trata-se de uma saída a confirmar, em face da interpretação do

contrato. À partida, o terceiro não pode exonerar o promitente da sua prestação principal, uma

vez que ela foi assumida perante o promissário. A adesão tem as consequências seguintes:

- torna a promessa irrevogável (448.º, n.º1, a contrario): quando ela ocorra, os

contraentes já não podem, mesmo de comum acordo, voltar atrás, assim como não pode fazer

o promissário, quando a revogação lhe compita, por via do artigo 448.º, n.º2;

- torna a promessa firme (446.º, n.º1, a contrario e a fortiori): não pode haver disposição

nem modificação no seu objeto.

Pergunta-se se a adesão não traduzirá o ingresso do terceiro no contrato, de tal modo que, no

fundo, o negócio a favor de terceiro mais não seria do que uma contratação a três, na qual o

terceiro aceitaria uma proposta feita por promitente e promissário. O terceiro adquire o direito

à prestação independentemente de “aceitação” (444.º, n.º1) e, logo, de adesão. Esta apenas

consolida um contrato que, por não ter sido celebrado com o terceiro, é, antes dela, instável.

Especificidades e vicissitudes: o regime do contrato a favor de terceiros prevê, no Código Vaz

Serra, ainda algumas especificidades e vicissitudes. Vamos vê-las. A prestação a favor de terceiro

pode ter sido estipulada em benefício de um conjunto indeterminado de pessoas ou no interesse

público. Nessa eventualidade, os visados pelo interesse protegido não estão em condições de

assegurar a sua tutela. Por isso, o artigo 445.º, para além de retomar a regra geral (o direito de

reclamar pertence ao promissário ou aos seus herdeiros), confere legitimidade, às autoridades

competentes para defender os interesses em jogo. Antes de haver adesão do terceiro, o

contrato é revogável, mas apenas enquanto o promissário for vivo (448.º, n.º1). Nem os

herdeiros do promissário nem as autoridades competentes previstas no artigo 445.º têm

poderes para dispor do direito à prestação ou autorizar qualquer modificação no seu objeto

(446.º,n.º1). Pergunta-se como funciona a revogação. Em princípio, ela deveria operar por

mútuo consentimento, uma vez que assenta num contrato. O artigo 448.º, n.º2, desviando-se

dessa regra, admite que a revogação caiba ao promissário, salvo promessa feita no interesse de

ambos os outorgantes, altura em que depende do consentimento do promitente. Temos de o

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interpretar de modo restritivo, sob pena de se vir precarizar um contrato que deveria ser

dignificado. Quando se celebre um contrato, ambos os outorgantes têm, em princípio, interesse

nele. Mesmo na hipótese de um contrato não-sinalagmático, a parte que nada receba não

quererá ficar liberta do seu dever contra vontade: isso pode não lhe convir ou ser humilhante.

Tenha-se presente a natureza contratual da remissão (863.º, n.º1). A regra será, pois, a do

mútuo interesse em qualquer contrato, pelo que a revogação pressuporá, o mútuo acordo de

promitente e promissário (448.º, n.º2, 2ª parte). A posição do terceiro beneficiário está

confinada ao que resulte do contrato. Por isso, pode o promitente opor-lhe os meios de defesa

que resultem de não cumprimento ou alteração de circunstâncias, como exemplo. Não pode é

usar dos meios que lhe advenham de outra relação que tenha com o promissário, como,

também, como exemplo, a que conduza uma compensação. É o que se retira do artigo 449.º. O

contrato a favor de terceiros pode ter, na sua raiz, uma contribuição do promissário para o

promitente que, depois, irá prestar ao terceiro. Segundo o artigo 450.º, n.º1, a interação de

institutos como a colação a imputação e redução de doações e a impugnação pauliana, usadas

para sindicar as transmissões patrimoniais, designadamente quando gratuitas, dá-se, apenas,

no segmento da contribuição do promissário. Evita-se, com isso, envolver o terceiro numa

discussão cujos termos ele não conhece. Enquanto beneficiário do direito, o terceiro não tem,

sobre si e em princípio, outros encargos. Porém, se a designação tiver um sentido de liberalidade,

são aplicáveis, com as necessárias adaptações, as normas relativas à revogação das doações po

ingratidão do donatário (450.º, n.º2): artigos 970.º a 979.º. Finalmente, o artigo 451.º, n.º1

dispõe para a eventualidade de a prestação a um terceiro dever ser feita após a morte do

promissário. Nessa altura, presume-se que só depois do falecimento ele adquire direito à

prestação em causa; pode-se, pois, provar que outra foi a vontade das partes. Caso o terceiro

morra antes do promissário, os seus herdeiros são chamados à titularidade da promessa (451.º,

n.º2): adquirirão o direito nos precisos termos em que isso sucederia com o terceiro de cuius.

O papel dos deveres acessórios: num contrato a favor de terceiro, há um equilíbrio muito

especial: exigido pelo facto de o beneficiário não ser parte no contrato. Deste modo, podemos

apontar as fragilidades seguintes:

- o promitente, quando se desempenhe perante o terceiro, não tem, sobre si, a

fiscalização da contraparte; pode ser menos diligente ou até, no limite, falsificar a conduta a que

se encontra adstrito;

- o promissário, por não ser o destinatário da prestação acordada, pode desinteressar-

se dela oou, pelo menos: pode não dispor dos elementos necessários para se assegurar da sua

integralidade;

- o terceiro, não sendo parte no contrato, desconhece os precisos termos envolvidos,

ficando em inferioridade no momento do cumprimento.

Estas fragilidades são especialmente candentes nos contratos a favor de terceiro que devam

produzir efeitos depois da morte do promissário, como sucede com os seguros de vida. De tal

modo que, nessa área, se justifica uma especial supervisão do Estado, através do Instituto de

Seguros de Portugal. Em termos civilisticos, a fraqueza estrutural do contrato a favor de terceiros

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deve ser ultrapassada através de uma adequada teia de deveres acessórios, impostos pelo

sistema, através da regra da boa fé (762.º, n.º2). As duas partes e o próprio terceiro ficam

envolvidos em deveres de segurança, de lealdade e de informação, de maneira a que seja

retirado um máximo de eficácia do negócio acordado. O terceiro deve receber a efetiva

prestação acordada: o promitente não pode desencantar o promissário o qual deve, por seu

turno, não piorar a posição do promitente e não desamparar a confiança do terceiro. O

promissário paga, muitas vezes, o benefício que o promitente irá repercutir no terceiro: pense-

se na hipótese do seguro. Nessa eventualidade, funciona o nexo de sinalagmaticidade, com as

devidas consequências. O contrato a favor de terceiro representa uma das evoluções mais

avançadas do moderno Direito Civil. Pressupõe, deste modo, uma sociedade com padrões éticos

elevados e com uma capacidade especial de positivar valores básicos, através da concretização,

adequada e previsível, dos seus conceitos indeterminados. Em suma: a integração harmoniosa

do contrato a favor de terceiros na ordem jurídica implica uma Ciência Jurídica de nível superior,

capaz de concretizar os deveres acessórios e de, no terreno, colocar os valores básicos do

ordenamento.

Capítulo 8 – O Contrato Para Pessoa a Nomear

47.º - configuração geral

Noção e origem: contrato para pessoa a nomear é aquele cujos termos permitem que uma das

partes tenha o direito de designar um terceiro que encabece os direitos e as obrigações deles

derivados. Num primeiro tempo, o contrato é concluído entre duas partes: uma delas pode,

porém, indicar um terceiro que irá ocupar o seu lugar. Na linguagem deste subsetor, usa-se a

seguinte terminologia:

- promitens: a parte firme (o promitentes);

- stipulans: a parte que pode nomear um terceiro, para ocupar o seu lugar (o estipulante);

- amicus: o terceiro;

- eligendus: o amicus, antes de ter ocorrido a sua nomeação;

- electio ou electio amici: a escolha ou a escolha do amigo ou terceiro, para ocupar o

lugar definitivo no contrato;

- electus ou amicus electus: o terceiro nomeado, que passa a parte definitiva, no

contrato;

- facultas amicum eligendi: a faculade de designar o terceiro ou o amicus, para integrar

o contrato.

A figura do contrato para pessoa a nomear era desconhecida no Direito Romano. Dada a

natureza específica das obrigações e o envolvimento pessoal das partes, repugnava ao espírito

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jurídico romano a possibilidade de, num contrato, haver qualquer indeterminação relativa a

alguma delas. O seu aparecimento é imputado ao droit coutumier francês. Surgiu com especial

acuidade no domínio dos leilões públicos. Aí, as pessoas de classe social mais elevada teriam

repugnância em surgir publicamente: seja para não aproveitar a desgraça dos executados; seja

para não correrem o risco de serem batidas nas licitações; seja, finalmente, para não fazer subir

os lances. Em tal conjuntura, poder-se-ia fazer intervir um mandatário ou fiduciário sem

representação. Mas essa saída comportava uma dupla desvantagem: obrigava o fiduciário

adquirente a retransmitir os bens para o interessado, o que poderia implicar uma dupla

tributação; pressupunha uma especial fidelidade do fiduciário, capaz de honrar o combinado. O

contrato para pessoa a nomear daria azo a uma saída particularmente aprazível: o interessado

mantinha o seu anonimato e não haveria, depois, lugar à dupla tributação, uma vez que ele iria,

com a electio, ocupar a posição do licitante. O contrato para pessoa a nomear teve, depois, uma

expansão no campo comercial, particularmente nos países do Sul. Apenas a partir de uma fase

bastante ulterior ele sofreu o influxo dogmático da representação que, entretanto, se foi

afirmando; antes disso, ele desempenhou um papel dogmático autónomo que se iria conservar.

Manteve-se, de todo o modo, no campo comercial.

A experiência lusófona: o Código de Seabra não referia, de modo expresso, o contrato para

pessoa a nomear. Ele ocorreria, por força do modelo italiano de 1882, no Código Comercial Veiga

Beirão (1888). Dispõe o seu artigo 465.º:

«O contrato de compra e venda mercantil de cousa móvel pode ser feito, ainda que

diretamente, para pessoas que depois hajam de nomear-se.»

Guilherme Moreira deu atenção especial ao preceito, na sua obra básica de Direito Civil.

Construiu-a com precisão: a reserva do direito de nomeação de outra pessoa seria uma condição

resolutiva quanto aos efeitos que o negócio imediatamente produz e uma condição suspensiva

quanto à eficácia do mesmo negócio, em relação à pessoa a declarar. Com uma consequência

dogmática importante: não haveria, aqui, nem contrato a favor de terceiros, nem representação,

nem gestão de negócios. O Código Civil italiano de 1942 operou a unificação do Direito privado:

acolheu, no seu seio, a matéria mercantil, enquanto o velho Código de Comério de 1882 foi

revogado. Consequentemente vamos encontrar, nos seus artigos 1401.º a 1405.º, o contrato

para pessoa a nomear e o seu regime. A opção do Código Civil italiano, para além da tradição

civilística de Guilherme Moreira, pesou em Vaz Serra. Este, no âmbito da preparação do Código

Civil, dedicou, ao tema, um escrito específico: ainda hoje o nosso maior desenvolvimento sobre

o tema. Relativamente ao Direito vigente (o artigo 465.º do Código Comercial), verificou-se-lhe

a estreiteza de regulação e o facto de só ser aplicável a móveis. Vaz Serra ponderou as várias

soluções e propôs um articulado: embora limitado a três requisitos, tínhamos:

1.º legitimidade, requisitos de nomeação e do assentimento do nomeado;

2.º Publicidade;

3.º efeitos.

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Esse articulado manteve-se, comsimplificações, no anteprojeto conjunto (662.º a 664.º). Nas

subsequentes revisões ministeriais, a matéria foi simplificada e desdobrqada, assim se chegando

ao texto vigente. O Código Civil de 1966 trata, em subsecção própria, o contrato para pessoa a

nomear. Concede-lhe cinco artigos, no que se pode considerar um espaço alargado.

Sinteticamente, temos: 452.º, noção; 453.º, nomeação; 454.º forma de ratificação; 455.º,

efeitos; 456.º, publicidade. Também por influência italiana, o Código Civil brasileiro de 2002

consagrou uma secção ao contrato com pessoa a declarar.

48.º - Regime, efeitos e natureza

Funções e figuras afins: contrato para pessoa a nomear servirá, naturalmente, as funções que

as pessoas, nele partes, hajam por convenientes. Estamos no campo do Direito privado. Todavia,

para efeitos de interpretação, podemos apontar-lhe algumas funções típicas:

- discrição: certas figuras públicas não podem surgir em público sem serem incomodadas;

a presença de procuradores, atuando em seu nome, nem sempre resolve o problema;

- vantagem negocial: o resguardo de conhecidos comerciantes ou intermediários pode

evitar perturbações no mercado;

- negociação em dois tempos: um adquirente pode reservar-se a faculdade de manter o

bem para si ou de o passar a outrem;

- rapidez: pretendendo concluir um negócio por conta de outrem e não tendo podere

de representação, o agente pode recorrer ao contrato para pessoa a nomear como modo

expedito de, mais tarde, se redocumentar;

- benefício fiscal: a alternativa para uma contratação por conta de outrem, sem

representação, é o mandato; este obriga a uma dupla transmissão, com duplicação fiscal; este

aspeto, conquanto que tradicional, tem vindo a perder o peso mercê do cerco fiscal às diversas

facilidades.

O contrato para pessoa a nomear ocupa, em sobreposição, funções que podem ser asseguradas

por outros institutos. Todavia, não e confunde com eles. É distinto:

- da representação: nesta, os efeitos produzem-se imediata e automaticamente na

esfera do representado e não, num primeiro momento, na do representante requerendo uma

atuação específica para passar à do representado;

- da representação sem poderes: o “representante” atua em nome e por conta do

“representado”, embora lhe faltem os poderes; no contrato para pessoa a nomear, o stipulans

age em nome próprio;

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- da cessão da posição contratual: aqui os contraentes iniciais são os definitivos, não

havendo cláusula de pessoa a nomear; simplesmente, em momento posterior e eventual, um

deles, com o acordo do outro, cede a sua posição (direitos e deveres) a um terceiro (428.º);

- da venda de bens alheios: o alienante, quando eles sejam tomados como futuros

(893.º), deve procurar adquiri-los, para regularizar a situação; isso implica, logicamente, um

contrato distinto, inexistente no contrato para pessoa a nomear;

- do contrato a favor de terceiro: este é o beneficiário de uma prestação; não ocupa,

mesmo quando adira ao contrato, a posição de parte;

- do mandato sem representação: o mandante, em tal conjuntura, vem,

supervenientemente, a receber os direitos adquiridos por sua conta pelo mandatário; ele não

vai ocupar, ab initio, a posição deste;

- da gestão de negócios: tem um âmbito mais vasto, sem que o gestor venha a ocupar a

posição de dominus.

Regime e efeitos: a cláusula a pessoa a nomear consta, em princípio, do próprio contrato que

a contenha. Nada obsta a que se insira num texto à parte ou, até, subsequente: revestirá, todavia,

a forma exigida para o contrato em si: procedem as mesmas razões justificativas, nos termos do

artigo 221.º, n.º2 e isso além da regra incontornável do 262.º, n.º2, quanto à forma da

procuração. Nem todos os contratos comportam semelhante cláusula: o artigo 452.º, n.º2 exclui:

- os casos em que não é admitida a representação;

- aqueles em que a determinação dos contraentes é indispensável.

A representação é, hoje, universalmente admitida; mesmo no casamento (1600.º), desde que

se indique, na procuração, o outro nubente e a modalidade do casamento. Já a “determinação

dos contratantes” obedece a critérios vários. Podemos apontar:

- negócios intuitu personae em que as qualidades pessoas da contraparte sejam

essenciais;

- negócios de tipo não-patrimonial;

- negócios em que os valores subjacentes impliquem a imediata indicação do

contratante em jogo.

Caso a caso haverá que ponderar os aspetos envolvidos. Concluído o contrato para pessoa a

nomear, inicia-se um procedimento que poderá culminar na colocação do amicus na posição do

stipulans. Temos a sequência seguinte:

- conclusão do contrato;

- concordância do amicus;

- electio.

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A conclusão do contrato com cláusula de pessoa a nomear é o pressuposto básico de todo o

desenvolvimento subsequente. O amicus dará ou não o seu assentimento, sendo que, neste

último caso, o processo cessa. Embora a lei não o diga, a concordância do amicus é necessária

pelas regras gerais do Direito privado (ninguém poderá encabeçar um contrato que não queira)

e pelo artigo 453.º, n.º2, que manda seja a nomeação acompanhada do instrumento de

ratificação ou de procuração anterior à celebração do próprio contrato: ambas exigem a

concordância em causa. Quanto à electio: ela deverá ser feita por escrito, ao outro contratante,

no prazo convencionado ou dentro dos cinco dias posteriores à conclusão do contrato. Se o

contrato não indicar outro prazo e mesmo havendo procuração anterior, a nomeação deve ser

feita no prazo de cinco dias, sob pena de o contrato produzir efeitos (ou não, se assim se tiver

estipulado) perante os contratantes iniciais. Diferente será a hipótese de, num contrato-

promessa, se exarar que o definitivo será concluído com o promitente em causa ou com quem

ele indicar: nessa altura, a electio poderá ocorrer, apenas, na celebração do definitivo. A

ratificação deve constar de documento escrito (454.º, n.º1) ou de documento de força

probatória equivalente à do contrato, quando superior (454.º, n.º2). Como casos paralelos,

temos a forma exigida para a ratificação geral (268.º, n.º2) e para a procuração (62.º, n.º2). Feita

regularmente e comunicada a designação, a pessoa nomeada (amicus electus) adquire os

direitos e assume as obrigações provenientes do contrato concluído a partir da celebração

(455.º, n.º1). A electio tem, pois, eficácia retroativa, tal como sucede com a ratificação (262.º,

n.º2 in fine). Se a declaração de nomeação não for feita nos termos legais o negócio consolida-

se na esfera do stipulans: produz efeitos em relação ao contraente originário. Só assim não

sucederá se houver estipulação em contrário (455.º, n.º2), altura em que o contrato ficará em

efeito. O Código Civil rege, ainda, o regime da publicidade (456.º). Estando o contrato sujeito a

registo, pode o mesmo der feito em nome do contraente originário, com indicação da cláusula,

para pessoa a nomear, fazendo-se, depois, os averbamentos necessários (n.º1). A mesma regra

aplica-se, com adaptações, a qualquer outra forma a que o contrato esteja sujeito.

Natureza: resta-nos fixar a natureza jurídica do contrato para pessoa a nomear: uma

oportunidade para precisar alguns dos aspetos dogmáticos em presença. Trata-se de um tema

particularmente discutido em Itália, tendo sido apresentadas as teorias seguintes:

- teoria da condição: presente no nosso Guilherme Moreira e dominante na doutrina

portuguesa, o contrato para pessoa a nomear seria o contrato definitivo sujeito a uma dupla

condição: resolutiva quando à aquisição pelo estipulante e suspensiva quanto à aquisição pelo

amicus. Todavia, ela não dá corpo às valorações em jogo. O contrato não é concluído tendo em

vista algo de incerto quanto à sua verificação: ele antes visa, funcionalmente, a electio e a

colocação, por essa via, de um contratante final no negócio. Além disso, ele escapa ao

automatismo próprio da condição. O regime desta, quando apropriado, pode, todavia, ser

invocado e quiçá, aplicado, em certos pontos, por analogia;

- teoria do duplo contrato: muito conhecida pela sua defesa por Enrieti, descobre no

contrato para pessoa a nomear, dois contatos:

- um contrato entre o promitens e o stiuplans;

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- um contrato ente o promitens e o elegendis;

Num primeiro tempo, o promitens contrataria, a título provisório, com o stipulans.

Desde logo, porém, estaria subjacente um segundo contrato, agora definitivo entre o mesmo

promitens e o eligendus. De novo temos uma orientação a não rejeitar com o ânimo ligeiro: ela

é muito coerente. Todavia, não se configura um contrato entre o promitens e o amicus, uma vez

que este apenas contrata com o stipulans. A menos que se veja, aí, uma representação: mas

nessa hipótese, bastaria o primeiro contrato. Esta tese, mesmo quando não satisfatória, salienta

um aspeto pouco enfocado: o da necessidade do assentimento do eligendus;

- teoria da concentração subjetiva: corresponde a uma formulação de Falzea. A incerteza

reinante no contrato para pessoa a nomear respeitaria, apenas, à identidade do sujeito. Este

seria inicialmente indeterminado, até ocorrer a imputação individualizante. Temos, aqui, uma

fórmula descritiva: mais do que dogmática. Ora o que se pretende explicar é, justamente, como

opera essa imputação individualizante e quis as suas consequências para o contrato;

- teoria da faculdade alternativa: é uma variante da da concentração subjetiva,

apresentada por Gazzoni. A obrigação surgiria encabeçada pelo stipulans, mas com a

possibilidade, a cargo deste, de se fazer substituir. Poderíamos fazer, aqui, apelo às obrigações

com faculdade alternativa, mas aplicando a facultas ao próprio sujeito. De novo deparamos com

um quadro descritivo: mais do que com uma leitura dogmática;

- teoria da formação sucessiva: explica que, bem vistas as coisas, teríamos, no contrato

para pessoa a nomear, um procedimento complexo, que culminaria com o contrato definitivo.

No processo aí implicado encontraríamos, sucessivamente:

- a dissociação entre a formação do ato e a realização da relação, que facultaria

uma distinção entre partes num sentido formal e partes num sentido substancial;

- a atuação sucessiva da previsão, que comporta, além do contrato, a designação

de um terceiro e a exibição dos necessários instrumentos de legitimação;

- a suspensão provisória da relação;

Pela nossa parte, afigura-se-nos, de novo, estar na presença de uma descrição

do regime e não de uma dogmatização do problema:

- teoria da sub-rogação legal: corta cerce: o amicus surge, na relação “pessoa a nomear”,

por força do artigo 452.º. Não havendo lugar a uma representação, caberia a sub-rogação legal.

Verificados os requisitos a que a lei submete a designação e a sua eficácia, o terceiro ingressaria

na posição do stipulans, num típico fenómeno de sub-rogação. É inegável a presença de uma

previsão legal. Mas em compensação, não parece adquirido que, na sua falta, a cláusula “pessoa

a nomear” não seja possível: cabe recordar a experiência alemã. Alem disso, a sub-rogação é

reservada, no nosso Direito, para a transmissão de créditos (589.º e seguintes). Aqui, o terceiro

assume, por inteiro, uma posição contratual: créditos, débitos e toda uma teia de deveres

acessórios. A explicação não é, pois, convincente;

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- teoria do negócio per relationem: aparece-nos como uma especialização da ideia da

sub-rogação. No fundo, diz ela, nós teríamos, no contrato para pessoa a nomear, uma situação

enfraquecida: a do promitens ou parte firme. Este admitiria (autorizaria) a que, do outro lado,

operasse uma substituição da parte. A diferença em relação a uma comum cessão da posição

contratual, que exige consentimento ou autorização da parte fixa (424.º, n.º1, do Código Vaz

Serra), estaria em que esta opera ex nunc (para o futuro), equanto a electio funciona ex tunc

(desde o ínicio ou retroativamente). A ideia de negócio per relationem assenta numa conceção

estrutural. As partes concluem um regulamento de interesses, regulamento no qual intervém

uma determinada indicação. A ideia de unidade na valoração das partes é significativa. Estamos,

todavia, a caracterizar algo a que falta uma qualificação mais precisa.;

- teoria da representação: por fim, ainda que sob diversas configurações, reúne uma

maioria dos atuais sufrágios, em Itália. Fazendo uma transposição para o Direito português,

bastará sublinhar que a chave da eficácia da electio está no artigo 453.º, n.º2, cujo texto

dispensará glosas:

«A declaração de nomeação deve ser acompanhada, sob pena de ineficácia, do

instrumento de ratificação do contrato ou de procuração anterior à celebração deste.»

Pois bem: o contrato para pessoa a nomear andará, perante isso, na clara órbita da

representação. Temos problemas: na representação, o representante age em nome do

representado (cotemplatio domini). No contrato para pessoa a nomear, isso não sucede, sendo

inaceitável uma contempaltio domini, que já não teria significado. A aproximação à

representação sem poderes suscita, ainda, outros problemas: o amicus pode não ser, na

conclusão, conhecido pelo próprio promitens. Logo, a figura terá de ser outra, embora seja

evidente que tudo isto é tornado possível pelo rasgar de paredes permitido pela representação.

Todas estas teorias são úteis, por contarem parcelas da verdade. Mas nenhuma, só por

si, esgota a figura do contrato para pessoa a nomear ou faz, dele, mais do que uma simples

descrição. Somos levados, por isso, a manter a posição que já defendemos: a do contrato para

pessoa a nomear como categoria típica e autónoma. Ele implica, num todo coerente, a cláusula

pessoa a nomear, a electio com os seus requisitos e as alternativas: ou o amicus electus, ou o

stipulans ou a ineficácia do conjunto. A moderna obrigacionista reforça a ideia de unidade

estrutural: tudo isto é interligado por deveres acessórios, ex bona fide, que mandam que se

respeite a confiança dos intervenientes e a materialidade subjacente. O stipulans não pode

piorar a situação do promitens, aumentando as suas incertezas ou fazendo designações

inconvenientes; o amicus não pode defraudar as expectativas legítimas do promitens; e este não

deve tirar partido das circunstâncias, mais do que o próprio contrato o permite. A essa luz, todas

as obrigações envolvidas recebem uma coloração específica, própria do grande subsistema

axiológico e regulativo em que se inserem: o do contrato para pessoa a nomear.

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Rememoriações de TGDC úteis

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Eficácia Jurídica

Eficácia jurídica; situação e modelo de decisão: há eficácia jurídica quando algo ocorra no

mundo do Direito, isto é, sempre que se verifiquem determinadas consequências nas quais,

através de critérios reconhecidos, ainda que discutíveis, seja possível apontar as características

da juridicidade. As consequências juridicamente relevantes são sempre respeitantes a pessoas:

sem Humanidades, não há cultura, não há Ciência e logo Direito. Assim sendo, a eficácia jurídica

reporta-se, de modo necessário, a situações jurídicas. A situação jurídica, por seu turno, resulta

de uma decisão jurídica, ou seja, assume-se como o ato e o efeito de realizar o Direito,

solucionando um caso concreto. A decisão jurídica é uma decisão humana, em sentido cognitivo-

volitivo: implica Ciência – ou seja arbitrária – e implica opção – ou surgiria automática. A opção,

ainda que pressupondo sempre uma margem maior ou menor de manobra, baseia-se em fatores

colhidos nas fontes e que, por se mostrarem aptos a infletir a vontade humana, se apresentam

como argumentos em sentido próprio. Os argumentos relevantes perante cada caso concreto

concatenam-se, com as suas conexões, os seus valores e o seu peso relativo, em modelos de

decisão, isto é, em complexos articulados que habilitem o intérprete-aplicador a decidir com

legitimidade. A eficácia jurídica resulta, assim, afinal, de modelos de decisão, emergindo estes

de argumentos, o que é dizer, dos fatores que componham um regime jurídico-positivo aplicável.

Estudar a eficácia jurídica implica o levantamento, a análise e a explicação dos regimes que a

ditem e a justifiquem. Numa linguagem tradicional - e prevenindo, pelas explicações acima

alinhadas, o perigo de retrocessos conceptuais ou subsuntivo – poder-se-ia dizer eu a eficácia

jurídica é o produto da aplicação de regras jurídicas (normas e ou princípios). O ponto de partida

para o estudo dogmático do Direito civil há-de, em quaisquer circunstancias ser constituído pela

eficácia jurídica e não por normas ou fontes. Convém, efetivamente, ter presente que todo o

esforço desenvolvido pela Ciência Jurídica, a partir dos finais do século XX, para superar o

irrealismo metodológico, assenta na natureza constitutiva dessa mesma Ciência e no facto, hoje

já não discutível, de apenas no caso concreto decidido aparecer o verdadeiro Direito.

Eficácia constitutiva, transmissiva, modificativa e extintiva: a eficácia é a dimensão

dinâmica das situações jurídicas: do movimento depende a existência. Tendo em conta a

ordenação, perante a situação jurídica, da eficácia, pode-se falar em eficácia:

- constitutiva, caso se forme (se constitua) uma situação antes inexistente na ordem

jurídica;

- transmissiva, sempre que uma situação já existente, na ordem jurídica, transite da

esfera de uma pessoa para a de outra;

- modificativa, na hipótese de uma situação centrada numa determinada pessoa aí de

conservar com alterações no seu conteúdo;

- extintiva, por fim, na eventualidade de se dar o desaparecimento, da ordem jurídica,

de uma situação antes existente.

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A doutrina comum chama, à constituição, “aquisição originária” e à transmissão, “aquisição

derivada”; trata-se, efetivamente, de designações equivalentes entre si, enfocado embora os

fenómenos pelo prisma das esferas jurídicas. Em princípio, evitar-se-á o termo “aquisição”, para

prevenir dúvidas. Registe-se ainda que, em certos casos, pode extinguir-se uma situação e, de

seguida, constituir-se nova situação, em tudo idêntica à anterior, mas noutra esfera jurídica. Não

há, quando isso suceda, transmissão: exige-se, porém, uma cuidada análise do caso concreto

para evitar as dúvidas que a extinção-constituição sempre provocam. Em certas hipóteses, um

efeito pode revelar-se, em simultâneo, constitutivo e modificativo. Estas diversas modalidades

de eficácia têm importância por conduzirem à aplicação de regimes próprios diferenciados, ao

longo das diversas disciplinas civis.

Transmissão e sucessão: ainda que discutível, pode-se operar uma distinção entre

transmissão e sucessão, integrando então esta apenas um conceito amplo de transmissão. Na

transmissão, verifica-se a passagem de uma situação jurídica da esfera de uma pessoa, para a

de outra: na sucessão, ocorre a substituição de uma pessoa por outra, mantendo-se estática

uma situação jurídica a qual, por isso, estando inicialmente na esfera de uma pessoa, surge,

depois da troca, na de outra. Aparentemente idênticas, nos seus resultados, transmissão e

sucessão acabariam, no entanto, por implicar eficácias diferentes, donde o seu particular

interesse: na transmissão, a situação transferida poderia sofrer certas alterações de elementos

circundantes, enquanto na sucessão, ela manter-se-ia totalmente idêntica. A base legal de

distinção reside, sobretudo, na contraposição dos regimes da sucessão na posse e da acessão

da posse, consagrados nos artigos 1255.º e 1256.º do Código Civil. Havendo sucessão a posse,

segundo o artigo 1255.º, esta continua nos sucessores, independentemente da apreensão

material da coisa: ela mantém todas as suas características e dispensa qualquer manifestação

de vontade ou atuação similar específica. Pelo contrário, na transmissão referida no artigo

1256.º, a posse pode mudar de características – pode ter “natureza diferente” – e depende, na

sua continuidade, de uma manifestação de vontade do transmissário.

Eficácia pessoal, obrigacional e real; outros tipos: a eficácia pode ainda classificar-se

consoante a natureza das situações jurídicas a que se reporte. Assim, há eficácia pessoal quando

a situação jurídica que se constitua, transmita, modifique ou extinga não tenha natureza

patrimonial. A eficácia revela-se obrigacional sempre que tenha dessas quatro vicissitudes se

reporte a situações obrigacionais e real quando tal ocorra perante situações próprias de coisas

corpóreas. Nalguns casos, a lei refere expressamente a eficácia real – por exemplo, o artigo 413.º

- ou obrigacional – artigo 1306.º, in fine (“natureza obrigacional”); noutros apenas uma

ponderada consideração de cada caso poderá elucidar a natureza da situação. Ainda de acordo

com a natureza das situações em jogo, outros tipos de eficácia podem ser isolados.

O papel dos factos jurídicos: a decisão constitutiva do Direito, que solucione o caso concreto,

opera uma síntese entre os elementos normativos que compõem o modelo de decisão e os

factos subjacentes nele envolvidos. Embora a fonte da produção de efeitos – portanto, de

eficácia – só possa residir na vontade do intérprete-aplicador, não restam dúvidas de que esta

acompanha certos factos, mais precisamente os factos que o Direito considere relevantes e aos

quais, por isso, entenda associar determinados efeitos. São os factos jurídicos, classicamente

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utilizados como referências para as ulteriores tomadas de decisões jurídicas e, daí, para a própria

eficácia jurídica. O aprofundamento da linha acima referida acabaria por conduzir à afirmação

da função puramente legitimante dos factos jurídicos: a sua presença tornaria legitimas

determinadas decisões. Mais um passo e seria possível considerar que a legitimação se bastaria

com a sua invocação pela entidade decidente. Estes aspetos, que não devem dispensar uma

atuação sindicante da Ciência Jurídica, são importantes: eles recordam que não há, nos factos

isoladamente tomados, um papel juridificante: este assiste ao Direito, a sua Ciência e aos seus

cultores.

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Modalidades de negócios jurídicos

Negócios unilaterais e multilaterais ou contratos: o negócio diz-se unilateral quanto tenha

uma única parte; é multilateral ou contrato quando, pelo contrário, se assuma como produto de

duas ou mais partes. Na sua simplicidade, esta contraposição levanta dúvidas quando se

pretenda desenvolvê-la em termos científicos. A ideia de parte não equivale à de pessoa: num

negócio – unilateral ou multilateral – várias pessoas podem encontrar-se interligadas, de modo

a constituir uma única parte. A aproximar a ideia de parte da de declaração corresponde já a

uma base mais promissora; dir-se-á, então, que nos negócios unilaterais há uma única

declaração – ainda que eventualmente feita por várias pessoas – enquanto nos multilaterais as

declarações são várias. Verifica-se, no entanto, que várias declarações podem dar azo a um mero

negócio unilateral, desde que se encontrem ordenadas de modo paralelo: as declarações

contratuais, teriam, assim, de ser contrapostas. Trata-se, pois, de esclarecer a ideia de

contraposição, quando aplicada a declarações negociais. Uma via seria a de aproximar a

contraposição da multiplicidade de interesses opostos ou, pelo menos, divergentes: no contrato,

eles seriam vários, enquanto no negócio unilateral, o interesse surgiria único, ainda que

compartilhado por várias pessoas. A referência feita a interesses dá uma base extrajurídica à

distinção agora em análise, numa explicitação que não deve ser ignorada. Mas há dificuldades

quando, dos interesses, se pretenda retirar um critério firme de distinção. Pode suceder que os

vários intervenientes num negócio unilateral tenham, sem prejuízo pela sua posição comum,

interesses objetiva e subjetivamente diversos. Estas dificuldades são típicas da metodologia

conceptual: apenas uma renovação mais profunda permitirá superá-las. A distinção entre

negócios unilaterais e contratos não pode repousar em apregoadas diferenças genéticas –

número de pessoas, de declarações ou de interesses – mas sim nos efeitos que venham a ser

desencadeados:

- nos negócios unilaterais, os efeitos não diferenciam as pessoas que, eventualmente

neles tenham intervindo; por isso – e ainda que não de modo fatal – tende, neles, a haver uma

única pessoa, uma única declaração ou um único interesse; a inexistência de tratamentos

diferenciados permite, em termos formais, considerar no seu seio a presença de uma única parte:

apenas se distingue a situação desta da dos restantes – os terceiros;

- nos contratos, os efeitos diferenciam duas ou mais pessoas, isto é: fazem surgir, a cargo

de cada interveniente, regras próprias, que devam ser cumpridas e possam ser violadas

independentemente umas das outras; em moldes formais, há mais de uma parte; e em

consequência, tendem a surgir várias declarações, várias pessoas e vários interesses.

Repare-se que a diferenciação de tratamentos presente nos contratos não pode ir tão longe que

impeça uma convergência entre elas: há um regime conjunto, que absorve as posições em

presença, originando, em regra, situações jurídicas plurissubjetivas complexas. Os negócios

unilaterais completam-se, por definição, com a declaração que os consubstancie; dispensa-se

qualquer anuência de outros intervenientes. Com especificidades, a doutrina comum apresenta

a sua sujeição a um princípio da tipicidade: com base no artigo 457.º, entende-se que apenas

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seria possível celebrar os negócios unilaterais expressamente previstos na lei, não podendo, pois,

compor-se tipos negociais novos, ao abrigo da autonomia privada. Uma melhor estudo das

fontes revela, no entanto, que a tipicidade é, tão só, aparente: o legislador permitiu, através de

vários esquemas que os interessados engendrem, negócios não tipificados em leis. Os contratos

resultam do encontro de duas vontades, através duma proposta e da sua aceitação. Dentro dos

negócios contratuais, importa, pelo seu relevo, referencias as seguintes subdistinções:

- contratos sinalagmáticos e não sinalagmáticos, consoante deem lugar a obrigações

recíprocas, ficando as partes, em simultâneo, na situação de credores e devedores ou, pelo

contrário, apenas facultem uma prestação; alguma doutrina chama ainda, aos contratos

sinalagmáticos e não sinalagmáticos, respetivamente, bilaterais e unilaterais; tal terminologia é,

contudo, deficiente; todos os contratos são, no mínimo, bilaterais – por terem mais de uma

parte – sendo menos correto utilizar depois esses mesmos termos com outro significado;

- contratos monovinculantes e bivinculantes, conforme apenas uma das partes fique

vinculada ou ambas sejam colocadas nessa situação; esta classificação não se confunde com a

anterior: um contrato pode ser sinalagmático, isto é, implicar prestações correlativas e não

obstante, apenas uma das partes se encontrar vinculada à sua efetivação; assim, no contrato-

promessa “unilateral” – artigo 411.º - há sinalagma uma vez que a sua concretização, através do

contrato definitivo, exige declarações de ambas as partes: mas apenas uma das partes deve

prestar, se a outra quiser e esta presta quando quiser e caso queira que a outra preste.

Negócio conjuntos e deliberações: a classificação acima efetuada, entre negócios unilaterais

e multilaterais ou contratos, atende ao número de partes envolvidas. Como, porém, então foi

referido, um negócio pode envolver duas ou mais pessoas sem que de diversas partes de possa

falar, por indiferenciação dos efeitos. Trata-se de um aspeto a aprofundar e que propicia novas

distinções. Quando, não sendo um contrato, um negócio jurídico implique várias pessoas, pode

falar-se em negócio plural. Há, então, duas possibilidades:

- o negócio conjunto: várias pessoas são titulares de posições jurídicas que só podem ser

atuadas no seu conjunto, por todas elas;

- a deliberação: várias pessoas são titulares de posições jurídicas confluentes que podem,

no entanto, ser atuadas em sentido divergente, prevalecendo, então, a posição da maioria; este

esquema é habitual no domínio da formação orgânica da vontade depois imputada a pessoas

coletivas – associações e sociedades – mas pode surgir independentemente desse tipo de

personalização;

A contraposição acima efetuada coloca múltiplos problemas que só podem ser resolvidos em

cada caso concreto, perante os dados aplicáveis do Direito objetivo. Razões de tutela de

confiança, muito ponderosas, levam a uma forte objetivação das deliberações, particularmente

quando sociais. O negócio conjunto pode implicar vontades manifestas em simultâneo ou

sucessivamente, mas todas regidas pelas mesmas normas jurídicas, de modo a conseguir um

determinado efeito. Quando elas integrem normas diversas – correspondendo, portanto, a

regimes diferenciados – não cabe falar em negócio: antes ocorrem vários atos autónomos, ainda

que conectados. Tal será o caso do ato sujeito a autorização, a qual se analisa, também, num

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ato jurídico: ambos os atos ficam interligados, conservando, porém, uma independência

substancializada em regimes autónomos. O fenómeno da conexão – a não confundir com o da

pluralidade – pode ainda dar lugar a outras distinções. Assim, pense-se em conexões paritárias,

subordinadas ou condicionantes, consoante o tipo e relação que se estabeleça entre os atos em

presença. Caso particular de conexão é a processual: vários atos surgem articulados numa

sequência para a obtenção de um fim. Questão delicada é a da distinção entre negócio conjunto

e a deliberação quando, para certa eficácia, se requeira uma concordância unânime dos

membros de uma assembleia. Nessa eventualidade, em termos materiais, o negócio seria

conjunto: cada participante teria, só por si, o direito de facultar a decisão comum. Porém, em

moldes formais, tende a falar-se em deliberação, uma vez que a situação em causa vai encadear-

se num todo onde avultam as deliberações propriamente ditas. Trata-se de mais uma

manifestação do dilema lógica-cultura que domina o universo jurídico.

Negócios inter vivos e mortis causa: numa primeira abordagem, os negócios inter vivos

destinam-se a produzir efeitos em vida dos seus celebrantes. Os negócios mortis causa, pelo

contrário, manifestar-se-iam apenas depois da morte do seu autor. Esta simplicidade não

satisfaz. As partes, ao abrigo da sua autonomia privada, podem estipular que os seus negócios

produzam efeitos com a morte de algumas delas. Não obstante, o negócio é inter vivos por

assentar num tipo de regulação primacialmente destinado a reger relações inter vivos. O

verdadeiro negócio mortis causa é intrinsecamente concebido pelo Direito para reger situações

jurídicas desencadeadas com a morte de uma pessoa. Em termos práticos, ele é regulado pelo

Direito das sucessões. De novo há, pois, que partir dos efeitos, para explicar esta contraposição.

A distinção tem um particular relevo, no tocante aos regimes aplicáveis. O negócio mortis causa

não tem preocupações de equilíbrio, uma vez que surge como liberalidade, e assenta no valor

fundamental da vontade do falecido – o de cuiús. Na mesma linha, ele não envolve, de modo

geral, um problema de confiança dos destinatários que, por isso, careçam de proteção. Implica,

assim, regras próprias de interpretação e de aplicação, estranhas à generalidade dos negócios.

Negócios formais e consensuais: no antigo Direito romano, os negócios eram dominados

pelo formalismo: a sua celebração só era reconhecida, pelo Direito, como válida, aquando

fossem observados determinados rituais exteriores. Uma longa evolução posterior, iniciada

ainda no próprio Direito romano, veio antes valorizar a vontade, em detrimento da forma

exterior. Impôs-se, assim, o consensualismo, isto é, o princípio de que os negócios se concluem

pela simples manifestação de vontade, seja qual for o modo por que ela se exteriorize. O Direito

português recebeu esta evolução, consagrado o consensualismo negocial: segundo o artigo

219.º do Código Civil, os negócios só requerem uma forma especial quando a lei o exigir. Nestes

termos, compreende-se a contraposição entre negócios formais e consensuais. São consensuais

os negócios que, por não caírem sob a estatuição de normas cominadoras de forma especial,

sejam suscetíveis de conclusão por simples consenso. São formais os negócios para cuja

conclusão a lei exija determinado ritual na exteriorização da vontade. As regras que, ainda hoje,

impõem a categoria dos negócios formais, colocam-se um tanto ao arrepio de uma evolução

milenária, levantando dúvidas e perplexidades na sua justificação.

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Negócios reais quoad constitutionem; negócios sujeitos a registo constitutivo: negócios

reais são aqueles cuja celebração dependa da tradição de uma coisa; aos negócios reais, nesta

aceção, chama-se ainda reais quoad constitutionem, como modo de os distinguir dos negócios

também ditos reais, mas por terem eficácia real – reais quoad effectum. O Direito português

vigente reconhece alguns negócios reais (quoad constitutionem): o penhor – artigo 669.º, n.º1

-, o comodato – artigo 1129.º -, o mútuo – artigo 1142.º -, e depósito – artigo 1185.º. Trata-se

de uma categoria românica, que não desempenha hoje uma clara função útil. A exigência de

tradição não pode ser assimilada à forma do competente negócio: não há, na entrega duma

coisa, qualquer manifestação de vontade negocial, minimamente identificável como

correspondendo ao tipo de penhor, do comodato, do mútuo ou do depósito. Por isso, ela deve

ser considerada como uma simples formalidade, a acrescentar à forma propriamente dita, que

poderá ou não ser exigida para as declarações relativas a negócios formais. A natureza

anquilosada dos negócios reais quoad constitutionem coloca a questão de saber se as partes

poderão vincular-se, independentemente da tradição, nos termos que por estar ligado a um

direito real de garantia, obedece a princípios diferentes, que restringem o domínio da

autonomia privada, pergunta-se se pode haver, ao lado dos comodatos, mútuos e depósitos, ou

seja, perfeitos como o acordo das partes. Entre nós, respondem pela afirmativa Vaz Serra e Mota

Pinto numa posição que tem vindo a colher apoios alargados na doutrina e na jurisprudência.

Uma resposta negativa ocorre em Antunes Varela. A doutrina estrangeira que mais tem

ponderado o tema inclina-se, com segurança, para a possibilidade de se prescindir da tradição.

Não se trata de corrigir a lei, por via interpretativa; apenas se reconhece, perante a evidência

dos valores em presença, que as partes interessadas podem, ao abrigo da sua autonomia privada,

constituir, ao lado dos tipos negociais reais, outros negócios, a ele semelhantes, mas sem a

tradição. Como foi dito, o penhor coloca-se numa posição diferente. Trata-se, desta feita, de um

negócio real também quoad effectum, do qual resulta, pois, um determinado direito real. Por

força do princípio da tipicidade, o penhor deve assumir uma determinada configuração, indicada

na lei, não podendo as partes – que nesse domínio veem restringida a sua autonomia privada –

estipular em plena liberdade. A configuração típica do penhor exige uma certa publicidade, que

se consegue, no caso vertente, através da posse, transferida, em princípio, para o titular do

direito de penhor – o credor pignoratício. Sem essa publicidade, não é possível constituir a

competente situação pignoratícia – razão por que se depara aí um fenómeno de publicidade

possessória constitutiva. Noutros casos, essa mesma necessidade de dar a conhecer certas

situações jurídicas consegue-se com recurso a diversos esquemas e, designadamente, ao registo

predial. Assim, as situações jurídicas relativas a imóveis estão sujeitas à publicidade registal,

através da inscrição, em serviços públicos competentes, dos factos jurídicos constitutivos,

transmissivos, modificativos ou extintivos, que se lhes reportem. Em termos gerais, o registo,

embora tenha efeitos substantivos, não é necessário para que operem os negócios a ele sujeitos:

de novo domina, neste campo, o princípio da consensualidade. No caso particular da hipoteca,

as especiais exigências de publicidade que ele coloca levam, contudo, a que o registo seja

constitutivo: segundo os artigos 687.º do Código Civil e 4.º, n.º2 do Código Registo Predial, a

hipoteca não produz quaisquer efeitos, nem mesmo entre as partes, enquanto não se mostrar

registada. Há, pois, um particular domínio do registo constitutivo, isto é, do registo necessário

para que certos negócios jurídicos se produzam como tais. O fenómeno deve ser entendido à

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luz da publicidade jurídica, num paralelo com os negócios reais quoad constitutionem, quando

justificados, como no caso do penhor.

Negócios pessoais, obrigacionais e reais quoad effectum; outros tipos: os negócios

podem classificar-se em pessoais, obrigacionais e reais (quoad effectum) consoante a forma de

eficácia a que deem lugar seja pessoal, obrigacional ou real. Ainda em consonância com outros

tipos de eficácia, novas modalidades de negócio podem ser isoladas. Sem preocupações de

exaustividade, cabe referir negócios comerciais, agrários, económicos ou de trabalho. As regras

aplicáveis a estes negócios variam bastante, sendo objeto de disciplinas diferenciadas, dentro

do Direito Civil. Em princípio, a parte geral do Direito civil deveria ocupar-se do regime geral dos

negócios jurídicos, fosse qual fosse o seu tipo de eficácia. Admitir-se-ia, naturalmente, a

existência de desvios setoriais, desde que impostos por normas específicas, a tanto dirigidas.

Contestar, com generalidade, essa afirmação seria tão irrealista como propugna-la. Impõe-se,

na verdade, uma ponderação cuidadosa, perante cada tipo de negócio, a fim de indagar da

aplicabilidade das regras negociais ditas gerais. Adiante-se, no entanto, que as fraquezas

dogmáticas da parte geral dos Códigos Civis – quando exista, o que se sabe estar em franca

regressão. Boa parte das regras que, como tal, são apresentadas têm, tão-só, imediata aplicação

aos negócios obrigacionais.

Negócios causais e abstratos: a contraposição entre negócios causais e abstratos tem

levantado dúvidas no Direito português. Essas dúvidas são provocadas pela menor clareza que

enforma alguns dos quadros legais em jogo, pela proximidade com a complexa e duvidosa teoria

da causa e pela transposição, nem sempre cuidada, de elementos estrangeiros. Abrindo, de

imediato, caminho por entre as múltiplas construções existentes, apresenta-se a contraposição

em estudo como reportada à eficácia dos negócios, isto é: fala-se em casualidade ou abstração

dos negócios quando perante ume eficácia negocial em si se pergunte pela fonte (=causa) da

situação jurídica originada. O negócio é causal quando a sua fonte tenha de ser explicitada para

que a sua eficácia se manifeste s subsista. O negócio é abstrato quando essa eficácia se produz

e conserve independentemente da concreta configuração que o haja originado. No Direito civil

português, os negócios são, em princípio, sempre causais. A eficácia negocial tornar-se-ia,

efetivamente, incompreensível quando desligada da fonte (= “causa”) que lhe dará lugar: sendo

totalmente abstrata, ela só se torna percetível quando comunicada através da fonte. Numa área

dominada pela autonomia privada, apenas uma ligação estreita entre a eficácia e a sua fonte

permite controlar, em termos sindicantes, a correlação entre as opções voluntárias das pessoas

de cuja autodeterminação se trate e os efeitos desencadeados. Repare-se que problemas como

os da validade ou dos pressupostos dos negócios só podem suscitar-se, de modo direto e com

êxito, perante negócios causais; nos abstratos, isso torna-se impraticável. Pelo contrário, numa

zona onde impere a tutela da confiança no tráfego jurídico, impõe-se a abstração como solução

natural. É o que sucede nos negócios cartulares, isto é, naqueles cuja eficácia emerja de títulos

de créditos: eles subsistem independentemente da fonte que os haja originado, apresentando-

se, pois, como negócios abstratos. Dos negócios abstratos há que distinguir os negócios

presuntivos de causa. Segundo o artigo 458.º, n.º1 do Código Civil, perante uma promessa de

cumprimento ou um reconhecimento de dívida, não é necessário demonstrar a fonte (=causa)

do débito. Mas nem por isso se pode falar de uma situação abstrata: a questão torna-se causal

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desde o momento em que se prove o contrário do que resulta da declaração de cumprimento

ou de reconhecimento. A concluir, retenha-se que a classificação que distingue negócios casuais

e abstratos é, antes de mais, uma classificação que opera a nível de eficácia, isto é, que

contrapõe obrigações ou, mais latamente, situações. A sua transposição para o campo negocial

– que não é isenta de dificuldades, quando alente apenas no negócio em si – corresponde

apenas a uma tradição suscetível de revisão, pelas dúvidas que sempre suscita.

Negócios típicos e atípicos; negócios nominados e inominados: o negócio jurídico é o

produto da autonomia privada no seu mais elevado nível: implica liberdade de celebração e de

estipulação. Mas isso não impede que a lei fixe o regime de verdadeiros negócios jurídicos; fá-

lo, porém, a título supletivo, disponibilizado figurinos que as partes poderão adotar ou, pelo

contrário, abandonar ou adaptar como entenderem. O negócio típico quando a sua regulação

conste da lei; é atípico quando tenha sido engendrada pelas partes. Pode ainda suceder que as

partes vertam, num determinado negócio que celebrem, elementos típicos e atípicos – nesse

sentido depõem, de modo expresso, o artigo 405.º do Código Civil; fala-se, então, em negócio

misto. Figura diversa é a das uniões ou conexões de negócios, na qual dois ou mais negócios

foram colocados, pelas partes, numa situação de interdependência. Tal interdependência

ocasiona diversos efeitos jurídicos. O estudo dos negócios típicos e dos negócios coligados é, no

entanto, feito em Direito das obrigações. Os negócios típicos podem compreender elementos

injuntivos; nessa área, porém, cessa a liberdade de estipulação. Quando a injuntividade seja

total desaparece a natureza negocial. A presença de regras negociais típicas – ou de tipos

negociais – corresponde a uma elaboração histórica, permitindo às partes o remeter para ele e,

assim, poupar todo um esforço regulativo em vão. Por outro, ele exprime uma saída normal,

equilibrada, para os interesses em confronto, forçando as partes a ser explícitas quando, dele,

se queiram desviar. O catálogo negocial típico oferecido pela lei, ainda que ficando na

disponibilidade das partes, não é neutro: antes suporta os valores que o sistema inseriu no

competente domínio. Além do tipos legais, podemos contar com tipos sociais. Desta feita, trata-

se de negócios jurídicos que, embora não previstos na lei, são de tal forma solicitados pela

prática que adotam um figurino comum, por todos conhecido. Desse modo, bastará uma simples

referência ao “tipo social” para, de imediato, as partes de reportarem a todo um conjunto de

regras bem conhecidas, na prática jurídico-social. Os tipos sociais colocam regras próprias de

interpretação e de aplicação, também analisadas em Direito das obrigações. O negócio típico é,

em princípio, nominado: a lei designa-o pelo seu nome – nomen iuris. Pode, porém, assistir-se a

uma dissociação entre as duas características, como demonstrou Pessoa Jorge: um negócio que

tenha regulação supletiva legal mas não seja apelidado senão pela doutrina que tenha regulação

supletiva legal mas não seja apelidado senão pela doutrina será típico e inominado; aquele que

merecer referência legal pelo seu nomen mas que não surja regulado, é nominado e atípico.

Negócios onerosos e gratuitos: um negócio é oneroso quando implique esforços económicos

para ambas as partes, em simultâneo e com vantagens correlativas; pelo contrário, ele é gratuito

quando cada uma das partes dele retire tão só vantagens ou sacrifícios. Da natureza onerosa ou

gratuita dos negócios deriva depois a aplicação de múltiplas regras diferenciadas; para além das

que se prendam com os respetivos tipos, registam-se clivagens no que toca aos pressupostos –

artigo 951.º, n.º2 – à interpretação – artigos 237.º- e aos casos de impugnação – artigos 612.º,

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n.º1. Nos contratos gratuitos, o empobrecimento do património de uma das partes corresponde,

em regra, ao enriquecimento do património da outra. Pode, todavia, não ser sempre assim. Pode

suceder que as partes, ao abrigo da sua autonomia privada, componham um negócio misto que

compreenda uma parte onerosa e outra gratuita. A doutrina chama, por vezes, a atenção para

o relevo da intenção das partes, quando se trata de determinar a natureza onerosa ou gratuita

de um negócio. Este aspeto deve, pela sua importância teórica e prática, ser melhor explicitado.

A problemática da onerosidade ou da gratuitidade de um negócio revela-se e releva na sua

eficácia e através dela: quando se indaguem os efeitos prosseguidos pela atuação de cuja

natureza se trate, afloram as estruturas atribuitivas de base que os enformam. E assim sendo,

poderia parecer que a vontade das partes surge relativamente irrelevante: afinal, perante as

concretas consequências patrimoniais resultantes, para os intervenientes, da efetivação dos

negócios, proceder-se-ia ao competente juízo de onerosidade ou de gratuitidade. Não é assim.

Um negócio pode vir a revelar-se como imensamente lucrativo para uma das partes e ruinoso

para a outra; nem por isso haverá gratuitidade: se as partes o não tiverem querido como tal,

antes se verificando a presença de um negócio em desequilíbrio. No verdadeiro negócio gratuito,

vontade livre do sacrifício determinou-se pela intenção de dar – o animus donandi; apenas na

presença deste fator têm aplicação as regras próprias das liberalidades. Trata-se de um aspetos

da maior importância: como será ponderado em local oportuno, o Direito não admite, em certas

condições, desequilíbrios excessivos entre as posições das partes; quando, porém, apareça um

negócio gratuito, querido enquanto tal, o desequilíbrio é justo e admissível.

Negócios de administração e de disposição: em termos descritivos, a contraposição entre

negócios de administração é bastante simples: estando em jogo determinada situação jurídica

– em regra um direito de dimensão significativa – o negócio de administração implicaria

modificações secundárias ou periféricas no seu conteúdo, enquanto o negócio de disposição

poria em causa a própria subsistência da situação. Existe, no entanto, uma marcada relatividade

entre as duas noções, que obriga a maiores cautelas. A contraposição em causa não pode, pois,

ser feita apenas tendo em conta a situação jurídica atingida pelo negócio, mas antes a esfera

jurídica global que vá ser atingida: a venda de um atuomóvl é umato de administração para o

estabelecimento da especialidade que tenha dezenas de automóveis para esse efeito; mas pode

ser um ato de disposição para o cidadão comum. Perante estas considerações, pode proclamar-

se que os negócios de administração não atingem em profundidade, uma esfera jurídica,

enquanto, pelo contrário, os de disposição o fazem. A distinção fica mais clara se se atentar nos

seus efeitos. Em princípio, os atos de disposição só podem ser livremente praticados pelo

próprio titular da esfera jurídica afetada e quando ele tenha capacidade para o fazer; quando

um ato de disposição deva ser praticado por outrem, o Direito determina a observância de

particulares precauções. Pode ainda suceder que o próprio titular da esfera atingida, por ser

incapaz, não possa praticar atos de disposição, a não ser através de particulares esquemas de

cautela. Em suma: o ato que só possa ser praticado pelo próprio, não é um ato de administração.

Para prevenir dúvidas e em certos casos, a lei define exatamente quais são os atos de

administração. A panorâmica legal portuguesa, que torna difícil a definição abstrata das noções

de administração e de disposição, confere um particular relevo a um fator, em si geral, da

interpretação e da aplicação: a teleologia das normas em jogo. Perante determinada situação,

um ato deverá ser considerado de disposição quando, pela especial gravidade que assuma no

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caso em jogo, apenas o próprio o possa praticar pessoal e livremente, sendo razoável exigir,

quando outrem o pretenda levar a cabo, particulares cautelas. A qualificação de um negócio

como de disposição ou de administração não pode, pois, ser causal em relação ao regime em

jogo: ela liga-se a esse regime, singrando quando ele deva ter aplicação.

Outras modalidades: o Direito vigente e a autonomia das partes promovem ainda numerosas

outras modalidades de negócios jurídicos. Nuns casos, elas poderão apresentar um relativo grau

de generalidade, surgindo em várias disciplinas jurídicas; noutros surgirão particularmente

acantonadas em determinadas áreas normativas. Essas modalidades irão surgir à medida que se

desenrole a matéria. No entanto – e pela sua relevância – faz-se, de seguida, breve menção a

duas delas: negócios parciários e negócios aleatórios. Um negócio diz-se parciário quando

implique a participação dos celebrantes em determinados resultados. Um negócio é aleatório

quando, no momento da sua celebração, sejam desconhecidas as vantagens patrimoniais que

dele derivem para as partes. Repare-se contudo que esse desconhecimento, que dá a margem

de álea, deve ser da própria natureza do contrato, em moldes tais que ele não faça sentido de

outra forma. A precisão é necessária porque qualquer negócio implica sempre flutuação ou

riscos, em função das margens de álea que não se podem nunca evitar. Tais negócios são

celebrados, dentro dum esquema de normalidade social, no entanto, não pela álea que possam

implicar, mas antes pela predeterminação das vantagens que impliquem.

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Modalidades de negócios jurídicos

Negócios unilaterais e multilaterais ou contratos: o negócio diz-se unilateral quanto tenha

uma única parte; é multilateral ou contrato quando, pelo contrário, se assuma como produto de

duas ou mais partes. Na sua simplicidade, esta contraposição levanta dúvidas quando se

pretenda desenvolvê-la em termos científicos. A ideia de parte não equivale à de pessoa: num

negócio – unilateral ou multilateral – várias pessoas podem encontrar-se interligadas, de modo

a constituir uma única parte. A aproximar a ideia de parte da de declaração corresponde já a

uma base mais promissora; dir-se-á, então, que nos negócios unilaterais há uma única

declaração – ainda que eventualmente feita por várias pessoas – enquanto nos multilaterais as

declarações são várias. Verifica-se, no entanto, que várias declarações podem dar azo a um mero

negócio unilateral, desde que se encontrem ordenadas de modo paralelo: as declarações

contratuais, teriam, assim, de ser contrapostas. Trata-se, pois, de esclarecer a ideia de

contraposição, quando aplicada a declarações negociais. Uma via seria a de aproximar a

contraposição da multiplicidade de interesses opostos ou, pelo menos, divergentes: no contrato,

eles seriam vários, enquanto no negócio unilateral, o interesse surgiria único, ainda que

compartilhado por várias pessoas. A referência feita a interesses dá uma base extrajurídica à

distinção agora em análise, numa explicitação que não deve ser ignorada. Mas há dificuldades

quando, dos interesses, se pretenda retirar um critério firme de distinção. Pode suceder que os

vários intervenientes num negócio unilateral tenham, sem prejuízo pela sua posição comum,

interesses objetiva e subjetivamente diversos. Estas dificuldades são típicas da metodologia

conceptual: apenas uma renovação mais profunda permitirá superá-las. A distinção entre

negócios unilaterais e contratos não pode repousar em apregoadas diferenças genéticas –

número de pessoas, de declarações ou de interesses – mas sim nos efeitos que venham a ser

desencadeados:

- nos negócios unilaterais, os efeitos não diferenciam as pessoas que, eventualmente

neles tenham intervindo; por isso – e ainda que não de modo fatal – tende, neles, a haver uma

única pessoa, uma única declaração ou um único interesse; a inexistência de tratamentos

diferenciados permite, em termos formais, considerar no seu seio a presença de uma única parte:

apenas se distingue a situação desta da dos restantes – os terceiros;

- nos contratos, os efeitos diferenciam duas ou mais pessoas, isto é: fazem surgir, a cargo

de cada interveniente, regras próprias, que devam ser cumpridas e possam ser violadas

independentemente umas das outras; em moldes formais, há mais de uma parte; e em

consequência, tendem a surgir várias declarações, várias pessoas e vários interesses.

Repare-se que a diferenciação de tratamentos presente nos contratos não pode ir tão longe que

impeça uma convergência entre elas: há um regime conjunto, que absorve as posições em

presença, originando, em regra, situações jurídicas plurissubjetivas complexas. Os negócios

unilaterais completam-se, por definição, com a declaração que os consubstancie; dispensa-se

qualquer anuência de outros intervenientes. Com especificidades, a doutrina comum apresenta

a sua sujeição a um princípio da tipicidade: com base no artigo 457.º, entende-se que apenas

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seria possível celebrar os negócios unilaterais expressamente previstos na lei, não podendo, pois,

compor-se tipos negociais novos, ao abrigo da autonomia privada. Uma melhor estudo das

fontes revela, no entanto, que a tipicidade é, tão só, aparente: o legislador permitiu, através de

vários esquemas que os interessados engendrem, negócios não tipificados em leis. Os contratos

resultam do encontro de duas vontades, através duma proposta e da sua aceitação. Dentro dos

negócios contratuais, importa, pelo seu relevo, referencias as seguintes subdistinções:

- contratos sinalagmáticos e não sinalagmáticos, consoante deem lugar a obrigações

recíprocas, ficando as partes, em simultâneo, na situação de credores e devedores ou, pelo

contrário, apenas facultem uma prestação; alguma doutrina chama ainda, aos contratos

sinalagmáticos e não sinalagmáticos, respetivamente, bilaterais e unilaterais; tal terminologia é,

contudo, deficiente; todos os contratos são, no mínimo, bilaterais – por terem mais de uma

parte – sendo menos correto utilizar depois esses mesmos termos com outro significado;

- contratos monovinculantes e bivinculantes, conforme apenas uma das partes fique

vinculada ou ambas sejam colocadas nessa situação; esta classificação não se confunde com a

anterior: um contrato pode ser sinalagmático, isto é, implicar prestações correlativas e não

obstante, apenas uma das partes se encontrar vinculada à sua efetivação; assim, no contrato-

promessa “unilateral” – artigo 411.º - há sinalagma uma vez que a sua concretização, através do

contrato definitivo, exige declarações de ambas as partes: mas apenas uma das partes deve

prestar, se a outra quiser e esta presta quando quiser e caso queira que a outra preste.

Negócio conjuntos e deliberações: a classificação acima efetuada, entre negócios unilaterais

e multilaterais ou contratos, atende ao número de partes envolvidas. Como, porém, então foi

referido, um negócio pode envolver duas ou mais pessoas sem que de diversas partes de possa

falar, por indiferenciação dos efeitos. Trata-se de um aspeto a aprofundar e que propicia novas

distinções. Quando, não sendo um contrato, um negócio jurídico implique várias pessoas, pode

falar-se em negócio plural. Há, então, duas possibilidades:

- o negócio conjunto: várias pessoas são titulares de posições jurídicas que só podem ser

atuadas no seu conjunto, por todas elas;

- a deliberação: várias pessoas são titulares de posições jurídicas confluentes que podem,

no entanto, ser atuadas em sentido divergente, prevalecendo, então, a posição da maioria; este

esquema é habitual no domínio da formação orgânica da vontade depois imputada a pessoas

coletivas – associações e sociedades – mas pode surgir independentemente desse tipo de

personalização;

A contraposição acima efetuada coloca múltiplos problemas que só podem ser resolvidos em

cada caso concreto, perante os dados aplicáveis do Direito objetivo. Razões de tutela de

confiança, muito ponderosas, levam a uma forte objetivação das deliberações, particularmente

quando sociais. O negócio conjunto pode implicar vontades manifestas em simultâneo ou

sucessivamente, mas todas regidas pelas mesmas normas jurídicas, de modo a conseguir um

determinado efeito. Quando elas integrem normas diversas – correspondendo, portanto, a

regimes diferenciados – não cabe falar em negócio: antes ocorrem vários atos autónomos, ainda

que conectados. Tal será o caso do ato sujeito a autorização, a qual se analisa, também, num

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ato jurídico: ambos os atos ficam interligados, conservando, porém, uma independência

substancializada em regimes autónomos. O fenómeno da conexão – a não confundir com o da

pluralidade – pode ainda dar lugar a outras distinções. Assim, pense-se em conexões paritárias,

subordinadas ou condicionantes, consoante o tipo e relação que se estabeleça entre os atos em

presença. Caso particular de conexão é a processual: vários atos surgem articulados numa

sequência para a obtenção de um fim. Questão delicada é a da distinção entre negócio conjunto

e a deliberação quando, para certa eficácia, se requeira uma concordância unânime dos

membros de uma assembleia. Nessa eventualidade, em termos materiais, o negócio seria

conjunto: cada participante teria, só por si, o direito de facultar a decisão comum. Porém, em

moldes formais, tende a falar-se em deliberação, uma vez que a situação em causa vai encadear-

se num todo onde avultam as deliberações propriamente ditas. Trata-se de mais uma

manifestação do dilema lógica-cultura que domina o universo jurídico.

Negócios inter vivos e mortis causa: numa primeira abordagem, os negócios inter vivos

destinam-se a produzir efeitos em vida dos seus celebrantes. Os negócios mortis causa, pelo

contrário, manifestar-se-iam apenas depois da morte do seu autor. Esta simplicidade não

satisfaz. As partes, ao abrigo da sua autonomia privada, podem estipular que os seus negócios

produzam efeitos com a morte de algumas delas. Não obstante, o negócio é inter vivos por

assentar num tipo de regulação primacialmente destinado a reger relações inter vivos. O

verdadeiro negócio mortis causa é intrinsecamente concebido pelo Direito para reger situações

jurídicas desencadeadas com a morte de uma pessoa. Em termos práticos, ele é regulado pelo

Direito das sucessões. De novo há, pois, que partir dos efeitos, para explicar esta contraposição.

A distinção tem um particular relevo, no tocante aos regimes aplicáveis. O negócio mortis causa

não tem preocupações de equilíbrio, uma vez que surge como liberalidade, e assenta no valor

fundamental da vontade do falecido – o de cuiús. Na mesma linha, ele não envolve, de modo

geral, um problema de confiança dos destinatários que, por isso, careçam de proteção. Implica,

assim, regras próprias de interpretação e de aplicação, estranhas à generalidade dos negócios.

Negócios formais e consensuais: no antigo Direito romano, os negócios eram dominados

pelo formalismo: a sua celebração só era reconhecida, pelo Direito, como válida, aquando

fossem observados determinados rituais exteriores. Uma longa evolução posterior, iniciada

ainda no próprio Direito romano, veio antes valorizar a vontade, em detrimento da forma

exterior. Impôs-se, assim, o consensualismo, isto é, o princípio de que os negócios se concluem

pela simples manifestação de vontade, seja qual for o modo por que ela se exteriorize. O Direito

português recebeu esta evolução, consagrado o consensualismo negocial: segundo o artigo

219.º do Código Civil, os negócios só requerem uma forma especial quando a lei o exigir. Nestes

termos, compreende-se a contraposição entre negócios formais e consensuais. São consensuais

os negócios que, por não caírem sob a estatuição de normas cominadoras de forma especial,

sejam suscetíveis de conclusão por simples consenso. São formais os negócios para cuja

conclusão a lei exija determinado ritual na exteriorização da vontade. As regras que, ainda hoje,

impõem a categoria dos negócios formais, colocam-se um tanto ao arrepio de uma evolução

milenária, levantando dúvidas e perplexidades na sua justificação.

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Negócios reais quoad constitutionem; negócios sujeitos a registo constitutivo: negócios

reais são aqueles cuja celebração dependa da tradição de uma coisa; aos negócios reais, nesta

aceção, chama-se ainda reais quoad constitutionem, como modo de os distinguir dos negócios

também ditos reais, mas por terem eficácia real – reais quoad effectum. O Direito português

vigente reconhece alguns negócios reais (quoad constitutionem): o penhor – artigo 669.º, n.º1

-, o comodato – artigo 1129.º -, o mútuo – artigo 1142.º -, e depósito – artigo 1185.º. Trata-se

de uma categoria românica, que não desempenha hoje uma clara função útil. A exigência de

tradição não pode ser assimilada à forma do competente negócio: não há, na entrega duma

coisa, qualquer manifestação de vontade negocial, minimamente identificável como

correspondendo ao tipo de penhor, do comodato, do mútuo ou do depósito. Por isso, ela deve

ser considerada como uma simples formalidade, a acrescentar à forma propriamente dita, que

poderá ou não ser exigida para as declarações relativas a negócios formais. A natureza

anquilosada dos negócios reais quoad constitutionem coloca a questão de saber se as partes

poderão vincular-se, independentemente da tradição, nos termos que por estar ligado a um

direito real de garantia, obedece a princípios diferentes, que restringem o domínio da

autonomia privada, pergunta-se se pode haver, ao lado dos comodatos, mútuos e depósitos, ou

seja, perfeitos como o acordo das partes. Entre nós, respondem pela afirmativa Vaz Serra e Mota

Pinto numa posição que tem vindo a colher apoios alargados na doutrina e na jurisprudência.

Uma resposta negativa ocorre em Antunes Varela. A doutrina estrangeira que mais tem

ponderado o tema inclina-se, com segurança, para a possibilidade de se prescindir da tradição.

Não se trata de corrigir a lei, por via interpretativa; apenas se reconhece, perante a evidência

dos valores em presença, que as partes interessadas podem, ao abrigo da sua autonomia privada,

constituir, ao lado dos tipos negociais reais, outros negócios, a ele semelhantes, mas sem a

tradição. Como foi dito, o penhor coloca-se numa posição diferente. Trata-se, desta feita, de um

negócio real também quoad effectum, do qual resulta, pois, um determinado direito real. Por

força do princípio da tipicidade, o penhor deve assumir uma determinada configuração, indicada

na lei, não podendo as partes – que nesse domínio veem restringida a sua autonomia privada –

estipular em plena liberdade. A configuração típica do penhor exige uma certa publicidade, que

se consegue, no caso vertente, através da posse, transferida, em princípio, para o titular do

direito de penhor – o credor pignoratício. Sem essa publicidade, não é possível constituir a

competente situação pignoratícia – razão por que se depara aí um fenómeno de publicidade

possessória constitutiva. Noutros casos, essa mesma necessidade de dar a conhecer certas

situações jurídicas consegue-se com recurso a diversos esquemas e, designadamente, ao registo

predial. Assim, as situações jurídicas relativas a imóveis estão sujeitas à publicidade registal,

através da inscrição, em serviços públicos competentes, dos factos jurídicos constitutivos,

transmissivos, modificativos ou extintivos, que se lhes reportem. Em termos gerais, o registo,

embora tenha efeitos substantivos, não é necessário para que operem os negócios a ele sujeitos:

de novo domina, neste campo, o princípio da consensualidade. No caso particular da hipoteca,

as especiais exigências de publicidade que ele coloca levam, contudo, a que o registo seja

constitutivo: segundo os artigos 687.º do Código Civil e 4.º, n.º2 do Código Registo Predial, a

hipoteca não produz quaisquer efeitos, nem mesmo entre as partes, enquanto não se mostrar

registada. Há, pois, um particular domínio do registo constitutivo, isto é, do registo necessário

para que certos negócios jurídicos se produzam como tais. O fenómeno deve ser entendido à

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luz da publicidade jurídica, num paralelo com os negócios reais quoad constitutionem, quando

justificados, como no caso do penhor.

Negócios pessoais, obrigacionais e reais quoad effectum; outros tipos: os negócios

podem classificar-se em pessoais, obrigacionais e reais (quoad effectum) consoante a forma de

eficácia a que deem lugar seja pessoal, obrigacional ou real. Ainda em consonância com outros

tipos de eficácia, novas modalidades de negócio podem ser isoladas. Sem preocupações de

exaustividade, cabe referir negócios comerciais, agrários, económicos ou de trabalho. As regras

aplicáveis a estes negócios variam bastante, sendo objeto de disciplinas diferenciadas, dentro

do Direito Civil. Em princípio, a parte geral do Direito civil deveria ocupar-se do regime geral dos

negócios jurídicos, fosse qual fosse o seu tipo de eficácia. Admitir-se-ia, naturalmente, a

existência de desvios setoriais, desde que impostos por normas específicas, a tanto dirigidas.

Contestar, com generalidade, essa afirmação seria tão irrealista como propugna-la. Impõe-se,

na verdade, uma ponderação cuidadosa, perante cada tipo de negócio, a fim de indagar da

aplicabilidade das regras negociais ditas gerais. Adiante-se, no entanto, que as fraquezas

dogmáticas da parte geral dos Códigos Civis – quando exista, o que se sabe estar em franca

regressão. Boa parte das regras que, como tal, são apresentadas têm, tão-só, imediata aplicação

aos negócios obrigacionais.

Negócios causais e abstratos: a contraposição entre negócios causais e abstratos tem

levantado dúvidas no Direito português. Essas dúvidas são provocadas pela menor clareza que

enforma alguns dos quadros legais em jogo, pela proximidade com a complexa e duvidosa teoria

da causa e pela transposição, nem sempre cuidada, de elementos estrangeiros. Abrindo, de

imediato, caminho por entre as múltiplas construções existentes, apresenta-se a contraposição

em estudo como reportada à eficácia dos negócios, isto é: fala-se em casualidade ou abstração

dos negócios quando perante ume eficácia negocial em si se pergunte pela fonte (=causa) da

situação jurídica originada. O negócio é causal quando a sua fonte tenha de ser explicitada para

que a sua eficácia se manifeste s subsista. O negócio é abstrato quando essa eficácia se produz

e conserve independentemente da concreta configuração que o haja originado. No Direito civil

português, os negócios são, em princípio, sempre causais. A eficácia negocial tornar-se-ia,

efetivamente, incompreensível quando desligada da fonte (= “causa”) que lhe dará lugar: sendo

totalmente abstrata, ela só se torna percetível quando comunicada através da fonte. Numa área

dominada pela autonomia privada, apenas uma ligação estreita entre a eficácia e a sua fonte

permite controlar, em termos sindicantes, a correlação entre as opções voluntárias das pessoas

de cuja autodeterminação se trate e os efeitos desencadeados. Repare-se que problemas como

os da validade ou dos pressupostos dos negócios só podem suscitar-se, de modo direto e com

êxito, perante negócios causais; nos abstratos, isso torna-se impraticável. Pelo contrário, numa

zona onde impere a tutela da confiança no tráfego jurídico, impõe-se a abstração como solução

natural. É o que sucede nos negócios cartulares, isto é, naqueles cuja eficácia emerja de títulos

de créditos: eles subsistem independentemente da fonte que os haja originado, apresentando-

se, pois, como negócios abstratos. Dos negócios abstratos há que distinguir os negócios

presuntivos de causa. Segundo o artigo 458.º, n.º1 do Código Civil, perante uma promessa de

cumprimento ou um reconhecimento de dívida, não é necessário demonstrar a fonte (=causa)

do débito. Mas nem por isso se pode falar de uma situação abstrata: a questão torna-se causal

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desde o momento em que se prove o contrário do que resulta da declaração de cumprimento

ou de reconhecimento. A concluir, retenha-se que a classificação que distingue negócios casuais

e abstratos é, antes de mais, uma classificação que opera a nível de eficácia, isto é, que

contrapõe obrigações ou, mais latamente, situações. A sua transposição para o campo negocial

– que não é isenta de dificuldades, quando alente apenas no negócio em si – corresponde

apenas a uma tradição suscetível de revisão, pelas dúvidas que sempre suscita.

Negócios típicos e atípicos; negócios nominados e inominados: o negócio jurídico é o

produto da autonomia privada no seu mais elevado nível: implica liberdade de celebração e de

estipulação. Mas isso não impede que a lei fixe o regime de verdadeiros negócios jurídicos; fá-

lo, porém, a título supletivo, disponibilizado figurinos que as partes poderão adotar ou, pelo

contrário, abandonar ou adaptar como entenderem. O negócio típico quando a sua regulação

conste da lei; é atípico quando tenha sido engendrada pelas partes. Pode ainda suceder que as

partes vertam, num determinado negócio que celebrem, elementos típicos e atípicos – nesse

sentido depõem, de modo expresso, o artigo 405.º do Código Civil; fala-se, então, em negócio

misto. Figura diversa é a das uniões ou conexões de negócios, na qual dois ou mais negócios

foram colocados, pelas partes, numa situação de interdependência. Tal interdependência

ocasiona diversos efeitos jurídicos. O estudo dos negócios típicos e dos negócios coligados é, no

entanto, feito em Direito das obrigações. Os negócios típicos podem compreender elementos

injuntivos; nessa área, porém, cessa a liberdade de estipulação. Quando a injuntividade seja

total desaparece a natureza negocial. A presença de regras negociais típicas – ou de tipos

negociais – corresponde a uma elaboração histórica, permitindo às partes o remeter para ele e,

assim, poupar todo um esforço regulativo em vão. Por outro, ele exprime uma saída normal,

equilibrada, para os interesses em confronto, forçando as partes a ser explícitas quando, dele,

se queiram desviar. O catálogo negocial típico oferecido pela lei, ainda que ficando na

disponibilidade das partes, não é neutro: antes suporta os valores que o sistema inseriu no

competente domínio. Além do tipos legais, podemos contar com tipos sociais. Desta feita, trata-

se de negócios jurídicos que, embora não previstos na lei, são de tal forma solicitados pela

prática que adotam um figurino comum, por todos conhecido. Desse modo, bastará uma simples

referência ao “tipo social” para, de imediato, as partes de reportarem a todo um conjunto de

regras bem conhecidas, na prática jurídico-social. Os tipos sociais colocam regras próprias de

interpretação e de aplicação, também analisadas em Direito das obrigações. O negócio típico é,

em princípio, nominado: a lei designa-o pelo seu nome – nomen iuris. Pode, porém, assistir-se a

uma dissociação entre as duas características, como demonstrou Pessoa Jorge: um negócio que

tenha regulação supletiva legal mas não seja apelidado senão pela doutrina que tenha regulação

supletiva legal mas não seja apelidado senão pela doutrina será típico e inominado; aquele que

merecer referência legal pelo seu nomen mas que não surja regulado, é nominado e atípico.

Negócios onerosos e gratuitos: um negócio é oneroso quando implique esforços económicos

para ambas as partes, em simultâneo e com vantagens correlativas; pelo contrário, ele é gratuito

quando cada uma das partes dele retire tão só vantagens ou sacrifícios. Da natureza onerosa ou

gratuita dos negócios deriva depois a aplicação de múltiplas regras diferenciadas; para além das

que se prendam com os respetivos tipos, registam-se clivagens no que toca aos pressupostos –

artigo 951.º, n.º2 – à interpretação – artigos 237.º- e aos casos de impugnação – artigos 612.º,

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n.º1. Nos contratos gratuitos, o empobrecimento do património de uma das partes corresponde,

em regra, ao enriquecimento do património da outra. Pode, todavia, não ser sempre assim. Pode

suceder que as partes, ao abrigo da sua autonomia privada, componham um negócio misto que

compreenda uma parte onerosa e outra gratuita. A doutrina chama, por vezes, a atenção para

o relevo da intenção das partes, quando se trata de determinar a natureza onerosa ou gratuita

de um negócio. Este aspeto deve, pela sua importância teórica e prática, ser melhor explicitado.

A problemática da onerosidade ou da gratuitidade de um negócio revela-se e releva na sua

eficácia e através dela: quando se indaguem os efeitos prosseguidos pela atuação de cuja

natureza se trate, afloram as estruturas atribuitivas de base que os enformam. E assim sendo,

poderia parecer que a vontade das partes surge relativamente irrelevante: afinal, perante as

concretas consequências patrimoniais resultantes, para os intervenientes, da efetivação dos

negócios, proceder-se-ia ao competente juízo de onerosidade ou de gratuitidade. Não é assim.

Um negócio pode vir a revelar-se como imensamente lucrativo para uma das partes e ruinoso

para a outra; nem por isso haverá gratuitidade: se as partes o não tiverem querido como tal,

antes se verificando a presença de um negócio em desequilíbrio. No verdadeiro negócio gratuito,

vontade livre do sacrifício determinou-se pela intenção de dar – o animus donandi; apenas na

presença deste fator têm aplicação as regras próprias das liberalidades. Trata-se de um aspetos

da maior importância: como será ponderado em local oportuno, o Direito não admite, em certas

condições, desequilíbrios excessivos entre as posições das partes; quando, porém, apareça um

negócio gratuito, querido enquanto tal, o desequilíbrio é justo e admissível.

Negócios de administração e de disposição: em termos descritivos, a contraposição entre

negócios de administração é bastante simples: estando em jogo determinada situação jurídica

– em regra um direito de dimensão significativa – o negócio de administração implicaria

modificações secundárias ou periféricas no seu conteúdo, enquanto o negócio de disposição

poria em causa a própria subsistência da situação. Existe, no entanto, uma marcada relatividade

entre as duas noções, que obriga a maiores cautelas. A contraposição em causa não pode, pois,

ser feita apenas tendo em conta a situação jurídica atingida pelo negócio, mas antes a esfera

jurídica global que vá ser atingida: a venda de um atuomóvl é umato de administração para o

estabelecimento da especialidade que tenha dezenas de automóveis para esse efeito; mas pode

ser um ato de disposição para o cidadão comum. Perante estas considerações, pode proclamar-

se que os negócios de administração não atingem em profundidade, uma esfera jurídica,

enquanto, pelo contrário, os de disposição o fazem. A distinção fica mais clara se se atentar nos

seus efeitos. Em princípio, os atos de disposição só podem ser livremente praticados pelo

próprio titular da esfera jurídica afetada e quando ele tenha capacidade para o fazer; quando

um ato de disposição deva ser praticado por outrem, o Direito determina a observância de

particulares precauções. Pode ainda suceder que o próprio titular da esfera atingida, por ser

incapaz, não possa praticar atos de disposição, a não ser através de particulares esquemas de

cautela. Em suma: o ato que só possa ser praticado pelo próprio, não é um ato de administração.

Para prevenir dúvidas e em certos casos, a lei define exatamente quais são os atos de

administração. A panorâmica legal portuguesa, que torna difícil a definição abstrata das noções

de administração e de disposição, confere um particular relevo a um fator, em si geral, da

interpretação e da aplicação: a teleologia das normas em jogo. Perante determinada situação,

um ato deverá ser considerado de disposição quando, pela especial gravidade que assuma no

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caso em jogo, apenas o próprio o possa praticar pessoal e livremente, sendo razoável exigir,

quando outrem o pretenda levar a cabo, particulares cautelas. A qualificação de um negócio

como de disposição ou de administração não pode, pois, ser causal em relação ao regime em

jogo: ela liga-se a esse regime, singrando quando ele deva ter aplicação.

Outras modalidades: o Direito vigente e a autonomia das partes promovem ainda numerosas

outras modalidades de negócios jurídicos. Nuns casos, elas poderão apresentar um relativo grau

de generalidade, surgindo em várias disciplinas jurídicas; noutros surgirão particularmente

acantonadas em determinadas áreas normativas. Essas modalidades irão surgir à medida que se

desenrole a matéria. No entanto – e pela sua relevância – faz-se, de seguida, breve menção a

duas delas: negócios parciários e negócios aleatórios. Um negócio diz-se parciário quando

implique a participação dos celebrantes em determinados resultados. Um negócio é aleatório

quando, no momento da sua celebração, sejam desconhecidas as vantagens patrimoniais que

dele derivem para as partes. Repare-se contudo que esse desconhecimento, que dá a margem

de álea, deve ser da própria natureza do contrato, em moldes tais que ele não faça sentido de

outra forma. A precisão é necessária porque qualquer negócio implica sempre flutuação ou

riscos, em função das margens de álea que não se podem nunca evitar. Tais negócios são

celebrados, dentro dum esquema de normalidade social, no entanto, não pela álea que possam

implicar, mas antes pela predeterminação das vantagens que impliquem.

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A Ineficácia do Negócio Jurídico

Invalidades e Ineficácia

A ineficácia e a sua evolução: a ineficácia dos negócios jurídicos traduz, em termo gerais a

situação na qual eles se encontram quando não produzam todos os efeitos que dado o seu teor,

se destinariam a desencadear Trata-se da ineficácia em sentido próprio ou amplo, a qual

abrange a desencadear. Trata-se da ineficácia em sentido próprio ou amplo, a qual abrange as

diversas invalidades. A definição apresentada é muito genérica: ela não deixará de agrupar uma

multiplicidade de situações diversificadas. Agrava-se, neste domínio, a tendência sempre

presente para, da parte geral do Direito Civil, fazer algo de atemporal; apenas nas últimas

décadas têm sido feitos esforços para situar historicamente a problemática da ineficácia. Como

ponto de partida, pode assentar-se no seguinte: os negócios jurídicos não produzem, sempre,

os efeitos que se destinem a produzir porque a autonomia privada é duplamente limitada. Em

termos extrínsecos, ela cede perante a lei, que apenas a reconhece dentro de determinadas

fronteiras; em moldes intrínsecos, ela pode ser deficientemente exercida pelas partes que,

sendo falíveis, vão, por vezes, falhar na tentativa de configurar situações jurídicas. Assim sendo,

torna-se natural que o tema da ineficácia acompanhe sempre o da própria negociabilidade

privada. No Direito Romano, apareceria já a referência a nullum para designar, em certos casos,

a não produção de efeitos negociais; não houve, contudo, qualquer generalização da figura.

Além disso, a nulidade era sumariamente aproximada duma ideia de inexistência de tipo físico;

apenas uma longa evolução permitiria o acesso a um plano puramente jurídico. No período

medieval também não se deixa localizar uma doutrina, nesse domínio; os próprios humanistas,

dotados já de instrumentalização sistemática, não lograram ir mais longe. A escola do Direito

natural, designadamente graças à sua vertente central dedutivística e generalizadora, foi

acumulando o material que permitiria transcender esse estado de coisas. A Savigny o mérito de

ter apresentado e divulgado um quadro geral de ineficácias, quadro esse que condicionaria toda

a evolução posterior da matéria, até às codificações tardias, através da pandectística e, em

especial, de Windscheid. Apenas à luz do “Direito romano atual” - e, portanto, das fontes

romanas tratadas pelos quadros da terceira sistemática – foi possível aprofundar ideias como a

da invalidade dos negócios. O tema da ineficácia – ou da impugnabilidade dos negócios –

apresentou, no princípio do século XIX, uma grande capacidade de absorção. Ele abrangia, deste

modo, situações que se reportavam:

- à ilicitude dos atos;

- a vícios genéticos dos negócios;

- a ocorrências posteriores que ditassem a cessação de certos efeitos;

- à incompletude dos processos de produção negocial;

- a esquemas processuais destinados a deter o andamento das ações.

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O negócio jurídico seria prejudicado na sua eficácia quando ultrapassasse as margens legais para

ele fixadas ou quando, na sua formação, tivessem ocorrido desconformidades; essa mesma

eficácia pode cessar, na sua vigência, através de atos a tanto destinados, na sua base, à lei pode

exigir um processo complexo de cuja completude dependa uma eficácia plena; por fim, a técnica

processual das ações/exceções oitocentistas apresentava, como instrumento de não eficácia, a

própria possibilidade de mover exceções. A evolução posterior pode ser enquadrada em dois

parâmetros: a simplificação e a substancialização. A simplificação resulta da tendência para

reduzir, através de generalizações ou de depurações, as diversas figuras de ineficácia. A

substancialização exprime a conversão das figuras puramente processuais em realidades

substantivas. O manuseio substantivo das realidades que interferiram nos modelos de decisão

pode considerar-se adquirido para a Ciência do Direito. Em compensação, o movimento

destinado a simplificar o quadro das ineficácias exprime apenas um motor de oscilação pendular

do fenómeno. Uma tendência contrária, ligada ao casuísmo de certas intervenções legislativas,

tem promovido figuras variadas, nem sempre redutíveis aos quadros preestabelecidos da

ineficácia. Pode mesmo afirmar-se que a presente conjuntura vai, entre nós, no sentido duma

certa multiplicação de manifestações de ineficácia. Em Portugal, pode fixar-se o início do

tratamento científico da ineficácia em Guilherme Moreira. A doutrina anterior fazia referências

pouco consistentes ao problema, com claros reflexos no Código de Seabra, onde ela era

embrionária. Guilherme Moreira, fundador da moderna civilística portuguesa, contrapunha já a

ineficácia à invalidade dos negócios jurídicos e distinguia, nesta, a nulidade absoluta ou

inexistência e a nulidade relativa ou anulabilidade, em termos abaixo retomados. Um quadro

mais diversificado foi apresentado por Manuel de Andrade; o Código Civil de 1966 simplificou,

no entanto, os seus termos, numa situação que tem vido a inverter-se, na atualidade, pelo

menos a nível legislativo.

Quadro das ineficácias: a ineficácia acima apresentada ou ineficácia em sentido amplo

analisa-se em vários tipos distintos através dos quais se viabiliza a formação dos modelos de

decisão. A primeira contraposição distingue, no seu seio, a invalidade da ineficácia em sentido

estrito:

- na invalidade, a ineficácia ou não-produção normal de efeitos opera mercê da presença,

no negócio celebrado, de vícios ou desconformidades com a ordem jurídica;

- na ineficácia em sentido estrito, o negócio, em si, não tem vícios; apenas se verifica

ema conjunção com fatores extrínsecos que conduz à referida não-produção.

Na invalidade, por seu turno, cabe subdistinguir a nulidade e a anulabilidade, consoante o

regime em jogo. A essas duas figuras será possível acrescentar a das invalidades mistas ou

atípicas. A tipologia das ineficácias ficará, assim, articulada:

- ineficácia em sentido amplo:

- invalidade:

- nulidade;

- anulabilidade;

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- invalidades mistas;

- ineficácia em sentido estrito.

Esclarecemos que, pela nossa parte, não reconhecemos a figura da inexistência como vício

autónomo. A inclusão da invalidade numa ineficácia em sentido amplo corresponde à tradição

de Windscheid e parece, em si, bastante clara: assenta na ideia global da não-produção de

efeitos. A redução dos casos de ineficácia à invalidade e à ineficácia estrita e, designadamente,

a exclusão da inexistência já suscitam, no entanto, algumas dúvidas, a que será feita, depois,

referência explícita. Outros quadros são possíveis, tendo sido apresentados, entre nós2, como

no estrangeiro. Em última instância, apenas a capacidade para transmitir um determinado

regime jurídico-positivo poderá servir de bitola para ajuizar as vantagens ou desvantagens de

cada um deles. Atualmente perfila-se uma certa tendência para abdicar de cuidados quadros

gerais introdutivos, a favor da explanação das diversas figuras em jogo. Pode, de facto, admitir-

se que, geradas embora num ambiente jusracionalistico central, as diversas formas de ineficácia

e tenham constituído como tipos dotados de relativa autonomia, desenvolvidos na periferia e,

nessa medida, insuscetíveis de suportar classificações geométricas. Nessa linha, será mais

oportuno falar em tipologia de ineficácia do que na sua classificação. Outras distinções por vezes

frequentes, distinguem-se as ineficácias totais das parciais, consoante o negócio jurídico fosse

atingido no seu todo ou apenas nalguma ou nalgumas das suas cláusulas e as iniciais das

supervenientes, conforme atinjam o negócio à nascença, ou derivem de posteriores alterações

legislativas. Trata-se, no entanto, de aspetos que melhor ficam ponderados através dos diversos

tipos de ineficácia.

Em especial: a nulidade e a anulabilidade; invalidades mistas: a primeira figura a

considerar, no domínio da ineficácia do negócio jurídico, é a da nulidade: quer por razões

históricas, quer pelo esquema vigente, ela ergue-se como tipo-matriz no seio da matéria das

ineficácias. A lei portuguesa faz surgir a nulidade dos negócios jurídicos nas seguintes situações

de ordem geral:

2 Guilherme Moreira, Institutiones, distinguia a nulidade, mas restrita e implicando um vício, da ineficácia, mais ampla, que incluiria situações em si idóneas, mas incompletas ou condicionadas do exterior; contrapunha, depois, a nulidade ou inexistência à anulabilidade ou nulidade relativa e excluía a inexistência como vício autónomo. Manuel de Andrade, Teoria Geral, admitia, em termos similares, a ineficácia como conceito mais amplo e a nulidade como mais restrita, consoante fosse extensiva a todos – mesmo as partes – ou se limitasse a terceiros; contrapunha, depois, uma nulidade absoluta a outra relativa, mas admitia, junto à nulidade, a figura da inexistência. Galvão Telles, Manual dos contratos em geral, apresenta um quadro semelhante ao aqui propugnado e que correspondia, também, em traços largos, ao de Paulo Cunha, embora com a adenda da inexistência. Castro Mendes, Teoria Geral, apresentando o que chama de “quadros dos valores negativos do negócio jurídico”, considera: a invalidade e a irregularidade e, como “valores negativos de menor importância”, a inoponibilidade e a impugnabilidade; na invalidade, distinguia a inexistência, a nulidade e a anulabilidade. Mota Pinto, Teoria Geral, adota o esquema de Manuel de Andrade, embora atualizando a terminologia. Carvalho Fernandes, Teoria Geral, parte duma distinção entre eficácia e validade, na base do negócio ter, em si, suscetibilidade de produção de efeitos ou de subsistência e apresenta um quadro que reúne a inexistência, a invalidade e a irregularidade. Oliveira Ascensão, O Direito, admite a ineficácia em sentido amplo e descobre nela, a inexistência, a invalidade e a ineficácia em sentido restrito.

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- falta de forma legal: artigo 220.º;

- simulação: artigo 240.º, n.º2;

- reserva mental conhecida pelo declaratário: artigo 244.º, n.º2;

- declaração não séria: artigo 245.º, n.º1;

- declaração feita sem consciência negocial ou sob coação física: artigo 246.º;

- objeto física ou legalmente impossível, contrário à lei ou indeterminável: artigo 280.º,

n.º1;

- contrariedade à ordem pública ou aos bons costumes: artigo 280.º, n.º2;

- fim contrário à lei ou à ordem pública ou ofensivo dos bons costumes, quando seja

comum a ambas as partes: artigo 282.º;

- contrariedade à lei imperativa: artigo 294.º.

Para além dos referidos, numerosos outros preceitos preveem casos particulares de nulidade.

As partes especiais do Código Civil compreendem, por seu turno, variadas outras previsões de

nulidade; outro tanto acontece em relação a leis extravagantes, com relevo para o diploma

relativo às cláusulas contratuais gerais. As previsões acima explanadas permitem apurar, no seu

conjunto, dois grandes fundamentos para a nulidade:

- a falta de algum elemento essencial do negócio como, por exemplo, a vontade ou o

objeto;

- a contrariedade à lei imperativa ou, mas latamente, ao Direito.

Os preceitos em jogo não se articulam, entre si, num tofo harmónico: o Código Civil de

1966 dispersou a matéria, distribuindo-a, por vezes, sem tipos desfocados. Tem-se

tentado autonomizar a ideia de nulidade a partir de certos valores subjacentes: ela seria

cominada perante os vícios a partir pesados do negócio, designadamente quando se

colocassem em questão os denominados interesses públicos. As contingências históricas

e culturais do Direito não permitem, no entanto, seguir tal via. Basta pensar numa das

mais precisas nulidades cominadas pelo Direito: a nulidade formal; não há aí, valores

substantivos em jogo claramente determinados. A nulidade deriva, assim, de qualquer

dos dois fatores referidos – a falta de elementos essenciais ou a contrariedade à lei

imperativa – sendo o de interpretação. Em conjunto, esses dois fatores esgotam o

universo lógico das falhas negociais. Assim – e ainda que por via interpretativa, dado o

silêncio da lei – pode concluir-se que a nulidade é o tipo residual da ineficácia: perante

uma falha negocial, quando a lei não determine outra saída, a consequência é a nulidade.

A nulidade atinge o negócio em si. Segundo o artigo 286.º e na linha do Direito anterior,

verifica-se que:

- a nulidade é invocável a todo o tempo;

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- por qualquer interessado;

- podendo ser declarada oficiosamente pelo tribunal.

Embora a invocação da nulidade produza certos efeitos, designadamente no campo

processual, quando ocorra em juízo, deve entender que ela opera ipso iure, isto é,

independentemente de qualquer vontade a desencadear. A invocação da nulidade não

depende duma permissão normativa específica de o fazer: a permissão é genérica.

Acresce que o próprio tribunal, quando dela tenha conhecimento e quando caiba no

princípio do dispositivo, deve, ex officio, declará-la. Não há, pois, um direito potestativo

de atuar a nulidade. É importante frisar que o Tribunal não constitui a nulidade do

negocio: limita-se a declará-la, de modo a que não restem dúvidas. O facto de nulidade

ser invocável a todo o tempo não significa que não possam subsistir efeitos semelhantes

aos que o negócio jurídico propiciaria, quando fosse válido. Ao contrário da nulidade, a

anulabilidade não traduz uma falha estrutural do negócio. Ela apenas nos diz que o

interesse duma determinada pessoa não foi suficientemente atendido, aquando da

celebração do negócio. E assim, a lei concede a esse interessado o direito potestativo de

impugnar o negócio. Por isso, a anulabilidade:

- só pode ser invocada pelas “… pessoas em cujo interesse a lei estabelece…”:

artigo 287.º, n.º1;

- e no prazo dum ano subsequente à cessação do vício – idem;

- admitindo a confirmação: artigo 288.º.

Caberá, pela interpretação das regras em jogo, verificar se se está perante uma

anulabilidade oi se se cai na regra geral da nulidade. Por razões diversas, a lei tem vido

a criar hipóteses de invalidades que não se podem reconduzir aos modelos puros da

nulidade e da anulabilidade. Trata-se das chamadas invalidades mistas ou atípicas. Assim

sucede com a hipótese da invalidade por simulação: ela não pode ser invocada por

qualquer interessado, como vimos. Outras hipóteses surgem em regras especiais; tal o

caso do artigo 410.º, n.º3, na redação dada pelo Decreto-lei n.º 379/86, 11 novembro,

e a aprofundar em Direito das obrigações. Quando ocorram, há que, pela interpretação,

delucidar os exatos contornos do seu regime.

A invocação das invalidades: coloca-se o problema de saber como devem ser

invocadas as invalidades. Frente a frente, temos dois sistemas: o dos Direitos latinos,

que exige uma invocação judicial e o do Direito alemão, que admite uma anulação por

mera declaração extrajudicial dirigida à contraparte. Aquando da preparação do Código

Civil, Rui de Alarcão propôs, para a anulabilidade, a possibilidade de invocação

extrajudicial. Tal proposta foi suprimida nas revisões ministeriais, sem que, no entanto,

se introduzisse qualquer preceito de sinal contrário. De todo o modo, a supressão foi

suficientemente incisiva para levar alguma doutrina a defender a necessidade de

invocação judicial, seja para a anulação, seja para as invalidades em geral. A necessidade

de recorrer ao Tribunal para exercer um direito é uma formalidade pesadíssima. Assim,

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ela só se impõe quando previstas por lei – artigo 219.º - lei essa que, a surgir, será

excecional. O Código Civil não contém qualquer norma que obrigue à invocação judicial.

Pelo contrário: os artigos 186.º e 187.º falam em invocar a nulidade e arguir a

anulabilidade sem inserirem qualquer rasto duma necessidade de invocação judicial.

Não parece viável, na falta de base legal, exigir tal procedimento. É certo que o artigo

292.º, n.º1 pressupõe ações de declaração de nulidade ou de anulação. Mas isso explica-

se por, aí, se pretenderem fazer valer posições contrárias ao que resulta do registo

predial: ora a nulidade deste, seja substantiva seja registal, só pode ser invocada depois

de declarada por decisão judicial com trânsito em julgado – artigo 17.º CRP. O panorama

legal é, pois, o seguinte: a lei é omissa quanto ao regime geral da invocação das

invalidades, o que depõe no sentido da desformalização, mau grado os preparatórios;

no entanto, há uma diretriz que impõe o recurso a juízo – ou um acordo – perante

invalidades que atinjam situações registadas. Trata-se de construir um sistema coerente,

nesta base. A invocação de nulidades ou a declaração de anulação surgem como atos

subordinados aos principais: os próprios negócios viciados. Assim, elas deverão seguir a

forma exigida para esses mesmos negócios. Mal se compreenderia que para invocar um

vício que atingisse um negócio corrente verbalmente concluído, houvesse que recorrer

ao tribunal ou a outra fórmula solene. A esta regra básica ocorrem desvios: no caso de

bens sujeitos a registo, queda o acordo – sob a forma exigida para negócio em curse –

ou a ação judicial, como vimos. É evidente que se a declaração de nulidade ou a anulação

“informais” não foram aceites, como tais, pelos destinatários, há litígio, a dirimir em

juízo. Mas o tribunal limitar-se-á, então, a apreciar se a invocação da nulidade ou se a

anulação foram devidamente atuadas. Perante a exigência do cumprimento dum

negócio inválido, a parte visada pode defender-se por exceção. Antes disso, porém, ela

já podia, licitamente, recusar a prestação. O possuidor duma coisa por via dum negócio

inválido deixará de estar de boa fé assim que conheça o vício – artigo 1260.º, n.3. Não

se exige, para tanto, qualquer ação. Temos indícios no sentido de se dispensar a

invocação judicial, com os desvios apontados: situações registadas e situações de litígio.

O problema da inexistência: a inexistência constitui uma categoria controversa,

dentro do universo da ineficácia dos negócios jurídicos. Ela surge em termos

conjunturais, na doutrina napoleónica, para resolver uma questão de interpretação

suscitada pelo Código Civil francês e pela doutrina subsequente. Procurando, ainda no

rescaldo da Revolução Francesa, que admitiria o divórcio em larga escala, restringir os

casos de dissolução do casamento, e doutrina e a jurisprudência fixaram a regra de que

“não há nulidade do casamento sem um texto que a pronuncie de modo expresso”.

Simplesmente, o texto do Código Napoleão não continha referências à nulidade do

casamento em três situações graves. Para ultrapassar o bloqueio representado pelo

brocardo pas de nulité sans texte, optou-se, nesses casos, pela presença de um vício

ainda mais pesado, que nem careceria de lei expressa: o da inexistência. Adquirida, por

esta via, e no Direito matrimonial, a ideia de inexistência, alguma doutrina francesa

procedeu à sua generalização, alargando-a aos diversos atos jurídicos. Desde sempre,

porém, houve críticos, diretos ou indiretos. Planiol, por exemplo, tentava questionar a

regra pas de nullité sans texte. Em Portugal, a doutrina francesa da inexistência não

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penetrou com facilidade. Guilherme Moreira considerava-a idêntica à nulidade; apenas

no Direito da família admitiria, a título excecional, a possibilidade da inexistência como

vício, mais grave do que a nulidade. Pires de Lima ia mais longe: mesmo no Direito do

casamento, a nulidade seria suficiente para enquadrar todas as falhas. Cunha Gonçalves,

no entanto, veio admitir, por nítido influxo francês, essa figura. Raúl Ventura votou

contra a inexistência – que equipara à nulidade – e Manuel de Andrade, a favor,

limitando-o, embora, ao domínio do casamento. Galvão Telles tomou posição contrária:

os casos pretensamente apresentados como de inexistência legal ou são de inexistência

material – não há nada – ou de nulidade (absoluta). O surto exegético que se seguiria à

publicação do Código Civil seria favorável à inexistência, dada a sua consagração verbal

no domínio do casamento. Na discussão quanto à possibilidade de autonomizar a

inexistência jurídica, no seio dos vícios do negócio, há que ter clara uma importante

distinção, conhecida, aliás, pela generalidade da doutrina: a que separa a unexistência

material da inexistência jurídica. Na inexistência material, não haveria nada: faltariam

os próprios elementos materiais de que depende o negócio jurídico; pelo contrário, na

inexistência jurídica, surgiria ainda uma configuração negocial, a que o Direito retiraria,

no entanto, qualquer tipo de ineficácia. Apenas a inexistência jurídica releva a discussão

subsequente. A inexistência material é puramente descritiva: em qualquer momento, o

número de negócios que nunca chegara a existir é infinito: é impensável tomá-los um

por um para, daí, fazer uma categoria jurídica operacional. Neste pé, a autonomia da

inexistência (jurídica) depende de, dela, se inferir um regime diferente do de outras

ineficácias e, designadamente, do da nulidade. Logo no Direito da família, a questão é

fortemente discutível, na tradição, aliás, Pires de Lima. A lei portuguesa distingue, no

casamento, os vícios da inexistência e da anulabilidade – artigo 1627.º. A contraposição

deveria dar-se entre a nulidade e a anulabilidade: só assim não sucede porque o Código

pretendeu deixar disponível a “nulidade” para os casamentos católicos – artigo 1647.º,

n.º3. Com esta prevenção, regresse-se à inexistência. Ela distinguir-se-ia da nulidade ou

da anulabilidade por vedar, por completo, a produção de quaisquer feitos. O casamento

declarado nulo ou anulado produz efeitos entre os cônjuges de boa fé e os próprios

terceiros – casamento putativo, artigo 1647.º: aquele que acredita na aparência dum

casamento não deve ser prejudicado pela ineficácia dele. Isso não sucederia com o

casamento inexistente; a própria lei o afirma – artigo 1630.º, n.º1. Porém, os vícios que

conduzem à inexistência – artigo 1628.º - não são de molde a questionar a aparência do

casamento: a pessoa que, de boa fé, acredite nele, merece tanta tutela quanta a

concedida a quem creia num casamento declarado nulo ou anulado. No próprio Direito

da família, deve considerar-se em aberto a possibilidade de restringir, pela interpretação,

o artigo 1630.º, n.º1 do Código Civil: elaborado com meras preocupações conceptuais,

esse preceito – bem como os que se reportam à inexistência – acaba por não ponderar

os interesses e os valores em jogo. A transposição da inexistência para o negócio jurídico

em geral, num passo que nenhuma lei, aliás, indicia, conduziria a resultados ainda mais

inadequados. O negócio nulo pode produzir alguns efeitos. A ter consistência, a

inexistência jurídica não propicia nenhum desses efeitos. Desse modo, o adquirente de

boa fé através de negócio nulo – por exemplo, por simulação, artigo 240.º, n.º1 – ou

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anulável – por exemplo, por coação, artigo 256.º - pode beneficiar daqueles esquemas;

mas sendo o negócio inexistente – e isso sucederia, porventura, no caso do artigo 246.º

- tudo ficaria bloqueado. Repare-se: o adquirente pode ignorar totalmente a “coação

física” de que esteja a ser vítima a contraparte – pense-se numa contratação por telefax

– ou a sua “falta de consciência da declaração”. Os pretensos casos de inexistência

jurídica são, pois, casos de nulidade, sob pena de gravíssimas injustiças, enquadradas

por puros conceptualismos. As preocupações conceptuais que levaram alguns autores a

introduzir, na doutrina geral do negócio jurídico, a inexistência, tem ainda outro efeito

pernicioso: facultaram uma expansão dessa pretensa figura noutras áreas, sempre com

efeitos nocivos. Assim sucedeu no caso do registo predial. O registo, quando realizado,

produz alguns efeitos substantivos. Quando, porém, ele tenha sido efetuado com certos

vícios, tais efeitos podem ficar comprometidos. Não obstante, essa ineficácia deixa

salvaguardados alguns direitos de terceiros de boa fé: a pessoa que acredite num registo

– organizado, para mais, pelo Estado – merece proteção. O Código de Registo Predial de

1967 enumerava as causas da nulidade do registo; no seu artigo 85.º ressalvava as

posições de terceiros de boa fé. Na mesma linha, o Código do Registo Predial de 1984,

refere as causas de nulidade, enquanto o seu artigo 17.º, n.º2, garante os terceiros de

boa fé. Simplesmente, levado por meras preocupações de simetria concetuais, o

legislador de 1984 consagrou, também, “causas de inexistência” do registo – artigo 14.º

- associado a esse vício uma total ausência de efeitos – artigo 15.º, n.º1 – e logo, a uma

primeira leitura, a total desproteção de terceiros, mesmo de boa fé. Uma análise dos

vícios que conduzem a “inexistência” – e que antes de 1984 levavam à nulidade – não

permitem, no entanto, descobrir qualquer razão de fundo para desamparar os terceiros

de boa fé: há casos de nulidade que são tão ou mais greves do que os da inexistência.

De novo a construção da inexistência, que tende a estender-se, ainda, a outras áreas,

conduz a resultados nefastos, havendo que tentar minimizá-los pela interpretação. De

todo o modo nada, na lei geral, impõe a inexistência, no domínio do negócio jurídico. E

pelas razões expostas, nenhuma razão científica recomenda a sua autonomização. Os

casos previstas na lei como “não produzindo quaisquer efeitos” são, a realidade,

nulidades. Resta acrescentar que, na prática, não é possível declarar inexistências, até

por razões de Direito notarial. A referência doutrinária a essa figura mais não faz do que

impedir o funcionamento de figuras como a falta de consciência da declaração ou a

coação física.

As ineficácias em sentido estrito: a ineficácia em sentido estrito traduz a situação do

negócio jurídico que, não tendo, em si, quaisquer vícios não produza, todavia, todos os

seus efeitos, por força de fatores extrínsecos. As ineficácias deste tipo só surgem nos

casos específicos previstos pela lei. O negócio jurídico sem vícios produz os seus efeitos:

apenas razões muito particular e expressamente predispostas poderão levar a que assim

não seja. Alguns exemplos da ineficácia podem ser apontados em leis processuais e

comerciais e na própria lei civil. Temos, aqui, uma categoria residual; as figuras a ela

redutíveis assumem regimes particulares, a apurar caso a caso pela interpretação.

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A irregularidade: o problema da ineficácia dos negócios jurídicos deve ser delimitado

do da sua irregularidade. A eficácia do negócio jurídico depende do seu enquadramento

dentro da autonomia privada. Pode no entanto suceder que, perante um negócio,

tenham aplicação, além das da autonomia privada, outras regras muito diversas. A

inobservância dessas regras provoca a irregularidade do negócio atingido, sem

prejudicar a sua eficácia. Os exemplos tradicionais de irregularidade negocial ocorriam

no domínio matrimonial. O menor que casar sem autorização dos pais ou do tutor

celebra um casamento eficaz, mas sujeita-se a certas sanções quanto aos bens – artigo

1649.º; o casamento celebrado com impedimento é válido, mas dá lugar a determinadas

consequências, também no domínio dos bens – artigo 1650.º. Há outras possibilidades;

por exemplo, a compra e venda de imóvel sem que tenha sido exigido o registo da coisa

a favor do alienante é irregular, perante o artigo 9.º CRP; não prejudica, porém, a

validade do negócio; o negócio será irregular mas é eficaz.

O Regime

Consequências das invalidades; a restituição: uma visão mais imediatista das

invalidades tinha em mente, de modo vincado, a nulidade. Além disso, esta era

aproximada duma prua e simples inexistência jurídica. Os atos nulos não produziriam,

deste modo, quaisquer efeitos, num modelo subjacente ao pensamento jurídico

napoleónico. A terceira sistemática veio impor um cenário diferente. O ato inválido

coloca-se numa dimensão diversa da da autonomia privada. Mas ele existe: quer social,

quer juridicamente. Ele vai produzir alguns efeitos, variáveis consoante as circunstâncias.

Tais efeitos são imputáveis a lei. Todavia, devemos estar prevenidos para eles

dependerem, primacialmente, da vontade das partes. Desde logo esta domina os

institutos da redução e da conversão, ainda que na versão objetiva da “vontade

hipotética”. Mas ela condiciona, também, os próprios deveres de restituição,

resultantes, no essencial, da conformação do contrato viciado. Trata-se dum ponto

fundamental, a não esquecer no desenvolvimento subsequente. A declaração de

nulidade e a anulação do negócio têm efeito retroativo, segundo o artigo 289.º, n.º1.

Desde o momento em que uma e outra sejam decididas, estabelece-se, entre as partes,

uma relação de liquidação: deve ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a

restituição em espécie não for possível, o valor corresponde, nos termos desse mesmo

preceito. Nos contratos de execução continuada em que uma das partes beneficie do

gozo de uma coisa – como no arrendamento – ou de serviços – como na empreitada, no

mandato ou no depósito – a restituição em espécie não é, evidentemente, possível.

Nessa altura, haverá que restituir o valor correspondente o qual, por expressa

convenção das partes, não poderá deixar de ser o da contraprestação acordada. Isto é:

sendo um arrendamento declarado nulo, deve o “senhorio” restituir as rendas recebidas

e o “inquilino” o valor relativo ao gozo de que disfrutou e que equivale, precisamente,

às rendas. Ambas as prestações restituitórias se extinguem, então, por compensação

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tudo funcionando, como se não houvesse eficácia retroativa, nestes casos. O dever de

restituição predisposto no artigo 289.º, n.º1 tem natureza legal. Ele prevalece sobre a

obrigação de restituir o enriquecimento, meramente subsidiário. No entanto, já haverá

que recorrer às regras do enriquecimento sem a mera obrigação de restituir não

assegurar que todas as deslocações ou intervenções patrimoniais injustamente

processadas, ao abrigo do negócio declarado nulo ou anulado, foram devolvidas. Não

será assim quando, mau grado a invalidação, ocorra uma outra causa de atribuição

patrimonial. O próprio artigo 289.º, n.º3 manda aplicar, diretamente ou por analogia, o

disposto nos artigos 1269.º e seguintes e, portanto: o regime da posse, incluindo as

regras sobre a perda ou deterioração da coisa, sobre os frutos, sobre os encargos e sobre

as benfeitorias. Caso a caso será necessário indagar a boa ou má fé do obrigado à

restituição. Para além das regras sobre a posse, outras poderão infletir, num ou noutro

sentido, o dever de restituição. Pode a parte obrigada à restituição ter alienado

gratuitamente a coisa que devesse restituir: ficará obrigada a devolver o seu valor.

Porém, se a restituição deste não puder tornar-se efetiva, fica o beneficiário da

liberalidade obrigado em lugar daquele, mas só na medida do seu enriquecimento –

artigo 289.º, n.º2. Trata-se dum afloramento da regra prevista no artigo 481.º, n.º1. O

dever de restituir é recíproco. A doutrina estrangeira já intentou por via doutrinária,

construir aqui um sinalagma, de modo a permitir a aplicação de institutos que garantam

as posições das partes. A lei portuguesa solucionou, de modo expresso, o problema, no

artigo 290.º. Outros institutos, como o direito de retenção, podem ter aplicação, desde

que se verifiquem os respetivos requisitos. A nulidade ou a anulação dum negócio são,

ainda, suscetíveis de causar danos ilícitos. Podem intervir institutos de responsabilidade

civil e, designadamente, a culpa in contrahendo. Invalidade dum negócio pode não

prejudicar a manutenção dos deveres de segurança, de informação e de lealdade que

acompanham qualquer obrigação, por força da boa fé. Esta, na linguagem de Canaris,

manter-se-á, então, mau grado a falta do dever de prestar principal. Tais deveres irão

acompanhar toda a relação de liquidação, podendo ainda manter-se post factum finitum.

Tutela de terceiros: a declaração de nulidade ou a anulação dum negócio jurídico

envolve a nulidade dos negócios subsequentes, que dependam do primeiro. Trata-se

duma consequência inevitável da retroatividade dessas figuras: se A vende a B que

vende a C, a nulidade da primeira venda implica a da segunda, por ilegitimidade – artigo

892.º; se D vende a E que, nessa base, se obriga a prestar a F, a nulidade da venda implica

a nulidade da obrigação, por impossibilidade legal. Em certos casos coloca-se, todavia,

um problema de tutela da confiança de terceiros: quid iuris se alguém, acreditando na

validade de negócios antecedentes, celebra um contrato na base do qual efetue um

investimento de confiança considerável? O Direito português conhece uma especial

tutela de terceiros, quando estejam em causa direitos reais, local onde este tema será

aprofundado. No caso de bens móveis, o terceiro que haja adquirido, de boa fé, o em a

um comerciante que negoceie em coisa do mesmo ou semelhante género, tem o direito

à restituição do preço pago, a efetuar pelo beneficiário da restituição – artigo 1301.º.

Como resulta deste preceito, o terceiro só é tutelado se tiver comprado a coisa, isto é:

adquirido a título oneroso. É o investimento de confiança. No campo dos imóveis

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sujeitos a registo, vale o artigo 291.º: não são prejudicados os direitos de terceiros,

adquiridos de ao fé e a título oneroso e que registem antes de inscrita qualquer ação de

nulidade ou de anulação ou qualquer acordo quanto à validade do negócio – n.º 1,

todavia, esse regime só opera passados três anos sobre a conclusão do negócio.

Atentem-se bem nos requisitos:

- um negócio nulo ou anulado;

- um terceiro de boa fé;

- que adquire, a título oneroso;

- e sendo decorridos 3 anos sobre a celebração do negócio em causa.

Os terceiros são protegidos por estarem de boa fé e por terem realizado o investimento

de confiança: o título oneroso e o decurso dos 3 anos atestam-no. Este preceito não se

confunde com o artigo 17.º, n.º2 CRP: exige-se, aqui, um registo prévio, nulo ou anulado,

não requerido pela lei civil. Tem-se suscitado, na jurisprudência, a dúvida de saber se o

artigo 291.º se aplica aos casos de ineficácia stricto sensu dos negócios. A questão

coloca-se, designadamente, no tocante a contratos praticados com violação de direitos

de preferência: pode o terceiro adquirente prevalecer-se do artigo 291.º? Algumas

decisões respondem negativamente: a (mera) eficácia não permitiria a tutela de

terceiros. Tais decisões estão, em princípio, corretas. Mas não as fundamentações. As

razões que levam à tutela dos terceiros – boa fé, investimento de confiança e inação das

partes interessadas – podem proceder tanto nas invalidades como nas ineficácias. Além

disso, tal tutela não tem nada de excecional: a letra da lei, só por si, não permitiria a

exclusão. No caso das preferências legais, todavia, o artigo 291.º - tal como o 17.º, n.º2

CRP – não se aplica pela razão simples de elas não estarem sujeitas a registo.

Consequentemente, não só os preferentes não têm modo de as publicitar como os

próprios terceiros adquirentes não têm especial fundamento para clamar a ignorância

da sua existência. De resto e na generalidade dos casos, a preferência legal deduz-se da

situação de fundo, pelo que – visto o artigo 291.º, n.º3 – não há, sequer, boa fé.

A redução: a invalidação dos negócios jurídicos não impede, ainda, a produção de

efeitos – ou de alguns efeitos – nas hipóteses de redução ou de conversão – artigos 292.º

e 293.º. Recordamos que estes preceitos devem ser trabalhados em conjunto com os

artigos 236.º e 239.º: apenas por preocupação de análise iremos, aqui, proceder ao seu

estudo isolado. O artigo 292.º admite a redução dos negócios jurídicos nos seguintes e

precisos termos:

«A nulidade ou anulação parcial não determina a invalidade de todo o

negócio, salvo quando se mostre que este não teria sido concluído sem a parte

viciada.»

O primeiro requisito é o de uma nulidade ou anulação meramente parciais. Na base

desta fórmula, alguma doutrina e jurisprudência têm admitido uma regra da

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divisibilidade dos negócios. De modo algum: o que a leu diz é o seguinte: a nulidade ou

anulação (quando seja) parcial não determina a invalidade do conjunto. Repare-se: a lei

não permite que a prestação seja realizada por partes, havendo pois um princípio da

integralidade do cumprimento – artigo 763.º: não se compreenderia como facultar uma

desarticulação de princípio dos negócios, a pretexto da invalidade. Teremos de, pela

interpretação e em momento logicamente anterior, determinar o alcance de qualquer

invalidade. O segundo requisito tem a ver com a vontade das partes no tocante ao ponto

da redução: esta não opera quando se mostre que o negócio não teria sido concluído

sem a parte viciada. Bastará provar, pelas circunstâncias objetivas ou pela vontade real

duma das partes, conhecida pela outra – artigo 236.º - ou pela sua vontade hipotética e

pela boa fé – artigo 239.º - que, sem a parte viciada, aquele concreto negócio não teria

visto a luz. Em termos de ónus da prova, a situação será a seguinte:

- o interessado na salvaguarda do negócio deverá invocar e provar os factos

donde decorra a natureza meramente parcial da invalidade;

- ao seu opositor caberá invocar e provar os factos donde se infira que, sem a

parte viciada, não teria havido negócio.

Embora o artigo 292.º não o diga, temos de acrescentar dois outros requisitos:

- o respeito pela boa fé;

- o respeito pelas regras formais.

A boa fé surge no artigo 239.º devendo funcionar perante a redução e a conversão: não

há redução quando ela atente contra a confiança legítima das partes ou contra a

materialidade subjacente. Esta última é claramente percetível quando o negócio

reduzido não permita prosseguir os fins ou as funções vertidos, pelas partes, no negócio

inválido. As regras formais foram salvaguardadas nos artigos 238.º e 293.º. Mas também

aqui elas se impõem: não pode, pela redução, chegar-se a um tipo negocial com

exigências de forma não satisfeitas no negócio a reduzir. O grande tema que levou à

discussão, perante o Direito Civil português, das potencialidades da redução, prende-se

com o contrato-promessa. Embora os meandros deste tenham a ver com o Direito das

Obrigações podemos, aqui, enunciar o essencial do debate. O cotrato-promessa pode

ser bilateral (bivinculante), quando ambas as partes fiquem adstritas a celebrar o

contrato definitivo, ou unilateral (monovinculante) quando apenas uma parte fique

obrigada ao definitivo: a outra será, então, livre de decidir. O contrato-promessa relativo

a contrato formal exige forma escrita; todavia, sendo o contrato monovinculante,

admite-se que baste a assinatura da pessoa que irá ficar obrigada – artigo 410.º, n.º2,

depois alterado. Quid Iuris se um contrato-promessa bivinculante surgir assinado apenas

por uma das partes? Pouco depois da entrada em vigor do Código Civil, veio decidir-se

que, havendo apenas uma assinatura, tal contrato valia como monovinculante. Contra

manifestou-se Vaz Serra: esta transmutação só seria possível se se verificassem as regras

de redução. As dúvidas suscitadas levaram a novo acórdão, com as secções cíveis

reunidas, onde foi confirmada a primeira orientação do Supremo: na presença duma só

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assinatura, valia o contrato como monovinculante. Durante algum tempo, o Supremo

conservou esta orientação. Todavia, em 1977, o Supremo decidiu de modo diverso:

apenas verificados os requisitos dos artigos 292.º e 293.º se poderia preservar, como

monovinculante, um contrato-promessa assinado só por uma das partes- Em novo

acórdão tirado com as secções cíveis reunidas, o Supremo consagrou esta orientação. O

Supremo, em repetidos acórdãos, renovou esta orientação: numa posição respeitada

pelas Relações. As dúvidas voltaram a suscitar-se, surgindo decisões que admitiam a

imediata convolação para a promessa monovinculante, na presença duma única

assinatura. O Supremo, com todo o formalismo então aplicável, tirou um assento, assim

lavrado:

«No domínio do texto primitivo do n.º2 do artigo 410.º do Código Civil vigente,

o contrato-promessa bilateral de compra e venda de imóvel, exarando em documento

assinado apenas por um dos contraentes é nulo, mas pode considerar-se válido como

contrato-promessa unilateral, desde que essa tivesse sido a vontade das partes.»

Resolveu-se um problema, mas criou-se outro: o assento impedia transmutações

automáticas, mas não dizia se o aproveitamento da promessa inválida se fazia pela

redução ou pela conversão. A doutrina dividiu-se: Almeida Costa, com base na

fundamentação do assento, inclinou-se para a redução, enquanto Antunes Varela

preferiu a conversão. A jurisprudência subsequente passou a tentar interpretar o

ambíguo assento de 29 Novembro de 1989. Houve arestos no sentido da conversão e

no sentido da redução, com insistência do Supremo nesta última. A questão não é de

mera qualificação: envolve o regime. A redução pode ser travada mostrando-se que o

negócio não teria sido concluído sem a parte viciada – 292.º - o que constitui um aceno

à vontade real; a conversão pelo contrário, apela a uma vontade hipotética modelada

pelo fim, mais objetiva – 293.º. Pela nossa parte, sempre temos preconizado uma

interpretação-aplicação conjunta dos dois preceitos, a que acrescentaríamos ainda, pelo

menos, o artigo 239.º, com o seu apelo à boa fé, devidamente concretizado. A

jurisprudência tem vindo, de resto, a aproximar-se desse caminho. De todo o modo e no

tocante ao contrato-promessa, não podemos deixar de sublinhar o seguinte: uma

promessa monovinculante é visceralmente diferente da bivincualnte: na primeira, surge

uma parte sujeita ao livre arbítrio de outra, o que não sucede na segunda. Não há aqui,

um mero problema de “invalidade parcial”: o ponto é tão importante que todo o

contrato fica atingido. Apenas a conversão podia salvá-lo. Só que, surpreendentemente,

a redução poderá, in concreto, salvaguardar melhor os interesses do contratante

vinculado. Donde a importância do papel da boa fé, para assegurar o predomínio da

solução mais justa. As regras da redução podem ter aplicação aos contratos coligados,

isto é: às situações nas quais as partes celebrem dois ou mais contratos formalmente

distintos, mas genética ou funcionalmente unidos. Pense-se em várias vendas

simultâneas ou numa compra para revenda imediata. Nessa altura, a invalidade de um

dos contratos coligados poderá acarretar a do outro (ou outros), salvo a aplicação das

regras da redução. Apenas haverá, aqui, uma diferente distribuição do ónus da prova: a

situação de coligação deve ser invocada e provada por quem, delas, se queira prevalecer.

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A conversão: pela conversão um negócio jurídico nulo ou anulado pode aproveitar-se,

como negócio diverso, desde que reunidos determinados requisitos legais. No Direito

romano, admitia-se, em diversos atos, a possibilidade da conversão: tal hipótese era,

contudo, negada noutras situações. Como figura geral, todavia, a conversão foi ignorada

no período intermédio. O primeiro reconhecimento geral dessa figura deveu-se a

Harpprecht, tendo sido apresentado em 1747: trata-se, assim, duma manifestação

racionalística do usus modernus. As dificuldades em atingir a conversão em termos

periféricos explicarão o silêncio de Domat e de Pother e, dái, o facto de ela não ser

referida na primeira geração de códigos civis: nem o Código Napoleão nem o nosso

Código de Seabra se lhe reportam. De todo o modo a pandectística acolheu-o,

aperfeiçoando-o e logrando a sua consagração no BGB. Na doutrina portuguesa, as

primeiras referências gerais à conversão datarão do Tratado, de Cunha Gonçalves, tendo

sido expendidas a propósito do artigo 10.º do Código de Seabra. Mais tarde, ela foi

acolhida pela generalidade da doutrina, com relevo para Manuel de Andrade: estava

assegurada a sua consagração no Código Civil de 1966. Bastante importante foi o

tratamento da conversão no Código Civil italiano, mas precisamente no artigo 1424.º.

Na construção jurídica da conversão encontramos uma primeira orientação que, nela,

via a passagem dum primeiro para um segundo negócio, através do aproveitamento de

alguns elementos naquele contidos: é a tese dualista. Subsequentemente impôs-se uma

outra opção, mais realista e adequada: apenas há um negócio; simplesmente, verificada

uma falha que impeça a sua validade e eficácia pelas, impõe-se, pela interpretação, um

conteúdo que não suscite tais óbices: a orientação monista. Efetivamente, a conversão

exprime, no fundo, uma interpretação melhorada do negócio, de modo a, dele, fazer

uma leitura sistemática e cientificamente correta. No fundo, não há qualquer conversão

de “negócios”: convertem-se, sim, meras declarações. Os requisito legais da conversão

resultam do artigo 293.º:

- a manutenção dos requisitos essenciais de substância e de forma;

- o respeito pela vontade hipotética das partes.

O primeiro requisito deve ser integrado com os elementos a retirar dos artigos 236.º,

n.º2 e 238.º, n.º2: não faria sentido, pela simples interpretação, obter, de declarações

negociais, negócios inatingíveis pela conversão. Os requisitos essenciais terão de ser

imputáveis à vontade comum das partes, antes depois da conversão, enquanto a forma

deve ser aferida de acordo com as suas razões determinantes. O segundo requisito leva-

nos à integração. A vontade hipotética aqui dominante – e que constitui o motor de

conversão – deve ser aferida segundo a boa fé e os demais elementos atendíveis. Trata-

se duma questão de direito, que não deve ser requisitada. Todavia, os elementos fáticos

de que ela se depreenda – e que podem, eventualmente, transcender o mero contrato

– têm de ser invocados e provocados e provados pelos interessados, nos termos gerais.

O funcionamento prático da conversão tem sido entravado por pressupostos legalistas

e conceptuais. Assim, a 8 de abril de 1969, o Supremo Tribunal de Justiça recusou-se a

conversão duma adoção (não reconhecida à luz do Código de Seabra) em doação mortis

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causa por de tratar dum negócio inexistente e não nulo; uma pura violência, dado ser

claríssima e lícita a vontade das partes aí envolvidas. Posteriormente, a maioria das

invocações de conversão tem a ver com o aproveitamento de contratos, nulos por falta

de forma, na modalidade dos correspondentes contratos-promessa. Tem havido alguma

dificuldade em manusear o instituto: as partes interessadas ora omitem os elementos

necessários à determinação da vontade hipotética ora não invocam a própria conversão.

Mas também se exacerba o aspeto conceptual da forma: a conversão poderia levar à

frustração ao sujeitar certos negócios à escritura pública. Não é assim: se o negócio

resultante da conversão não estiver sujeito a escritura, nada haverá a objetar. A vontade

hipotética ou conjetural tem sido sublinhada. Em data mais recente, o Supremo tem

vindo a acolher a conversão, para ressalvar contratos formalmente nulos: é invocada a

justiça e o sistema e a necessidade duma “revalorização” (Carvalho Fernandes), em

nome do fim económico-social. Trata-se duma via animadora. O Direito conhece

hipóteses de conversão legal: perante certas desconformidades, indica, de imediato,

qual o destino dos negócios atingidos Caso a caso deveremos verificar, pela

interpretação se é possível bloquear a “conversão legal” pela não ocorrência dos

requisitos previstos no artigo 293.º. À partida, a resposta é positiva: estamos no Direito

Civil.

A confirmação: a confirmação é específica dos negócios anuláveis. Trata-se dum ato

unilateral, a praticar pelo beneficiário da anulabilidade e que põe termo à invalidade –

artigo 288.º, n.º 1 e 2. Compreensivelmente, a confirmação só é eficaz quando posterior

à cessação do vício que conduziu à anulabilidade e, ainda, desde que o seu autor tenha

conhecimento do vício e do direito à anulação. A lei admite a confirmação tácita, não a

sujeitando a qualquer forma especial – 288.º, n.º3. Uma vez praticada, a confirmação

tem eficácia retroativa: sana a anulabilidade ab initio, mesmo em relação a terceiro –

288.º, n.º4. Na prática, põe-se o problema da distinção entre a confirmação e a

renovação do negócio: esta última, ao contrário da primeira, não é retroativa. Partindo

do princípio que a situação é confirmável, a renovação do contrato envolve-a,

tacitamente: só assim não será se outra for a vontade das partes.

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A Boa Fé

Evolução geral e sentido atual: A boa fé surge referida no Código Civil português vigente em

setenta artigos, dispersos pelos seus cinco livros. Institutos parcelares, de índole muito variada,

têm-na em conta e fazem dela o seu cerne. As razões desse emprego multifacetado e o seu

sentido atual só são compreensíveis perante a evolução geral do instituto ao longo da História.

Das questões em causa pode, tão só, dar-se aqui um breve apanhado. No início encontra-se a

fides romana, do período arcaico. Em termos semânticos, ela tinha, então várias aceções: sacras,

expressas no culto da Deusa Fides e patentes em sanções de tipo religioso contra quem

defraudasse certas relações de lealdade; fáticas, presentes em garantias de tipo pessoal,

prestadas pelos protetores aos protegidos; éticas, expressas nas qualidades morais

correspondentes a essas mesmas garantias. As dúvidas levantadas por estas proposições

levaram os especialistas a uma reconstrução histórica do tema a partir de aplicações concretas.

Verificou-se, assim:

- uma fides-poder, própria das relações entre o patronus e o cliens, que evoluiu para a

virtude do mais forte;

- uma fides-promessa, característica de quem assumisse determinada adstrição que,

centrada primeiro num ritual exterior, progride depois para a ideia de respeito pela palavra dada;

- uma fides-externa, que sujeitava os povos vencidos ao poder de Roma.

Esta evolução da fides antiga permite documentar três pontos: ela perde força significativa,

como a prova a sua presença em situações diversas e, até, contraditórias; ela conheceu uma

utilização pragmática, sem preocupações teoréticas; ela traduz um divórcio entre a linguagem

comum e a linguagem jurídica. No limite a fides aparece sem um sentido útil preciso,

transmitindo uma vaga ideia apreciativa. Estava, assim, disponível para dar cobertura a

inovações jurídicas. O Direito romano assentava em ações. Nele, o protótipo da situação jurídica

ativa era protagonizado não por um direito subjetivo, mas por uma actio: a pessoa que

pretendesse uma tutela jurídica dirigia-se ao pretor e solicitava uma ação; este quando

entendesse o pedido juridicamente justificado, concedia a actio, expressa numa fórmula,

dirigida ao juiz, segundo a qual, se se provassem determinados factos alegados pelo autor

interessado, o réu deveria ser condenado; no caso negativo, seguir-se-ia a absolvição. As

actiones dadas pelo pretor, mesmo quando de origem consuetudinária, baseavam-se em leis

expressas. Chegou-se, assim, a um esquema formal, bastante rígido, incapaz de se adaptar e de

enquadrar situações económico-sociais inteiramente novas. O bloqueio tornou-se claro quando

as conquistas romanas através do Mediterrâneo vieram colocar o Direito perante tarefas

inteiramente novas, designadamente nas áreas das trocas comerciais. O pretor interveio: em

casos particulares, ele veio conceder ações sem base legal expressa, assentes, simplesmente, na

fides, precedida do adjetivo bona fides ou boa fé. A inovação deve-se, provavelmente, ao próprio

Quintus Mucius Scaevola – apontado como o primeiro cientista do Direito, no século I a.C. – e

permitiu criar, enquanto bonae fidei iudicia, figuras como a tutela, a sociedade, a fidúcia, o

mandato, a compra e venda e a locação. Nos século subsequentes, a lista foi aumentando. As

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figuras jurídicas introduzidas pelo engenho criativo romano, em nome da bona fides, foram

ainda dobradas pelo engenho criativo romano, em nome da bona fides, foram ainda dobradas

por um novo regime jurídico. Sem entrar em particularidades técnicas, pode dizer-se que esse

regime era de maior elasticidade do que o anterior, permitindo encontrar soluções mais

consentâneas com a realidade e em termos que possibilitam uma ponderação dos interesses

em presença. A bona fides permitiu, no Direito romano clássico, a criação de figuras essenciais

que constituem ainda hoje, o cerne do moderno Direito das obrigações; além disso, ela facultou

um esforço geral no sentido de desformalizar o Direito, de modo a obter soluções fundadas no

próprio mérito substancial das causas a decidir. Mas essa vitória foi a sua perda momentânea:

criados os institutos e implantado o regime, a bona fides perdeu um sentido técnico, tornando-

se apta, apenas, para transmitir uma vaga ideia apreciativa. Ainda no Direito romano, tornou-se

necessário, em determinado momento da sua evolução, aperfeiçoar institutos nos quais uma

pessoa, por exercer certos poderes, se tornava titular da posição jurídica correspondente. Tal

sucedeu com a usucapio, base da atual usucapião – artigos 1287.º e seguintes do Código Civil –

pela qual quem tivesse em seu poder, durante determinado período, uma coisa, se tornava seu

proprietário. O aperfeiçoamento destinava-se a possibilitar o funcionamento desse instituto

apenas a favor de quem não tivesse consciente de prejudicar outrem. E para o efeito, recorreu-

se à locução bona fides: quem estivesse de boa fé (=desconhecesse lesar outrem) beneficiaria

de regras mais favoráveis. A subjetivação da bona fides, assim alcançada – pois ela passa a

exprimir um estado do próprio sujeito – deve ser entendida como um fenómeno de colonização

linguística técnica: o termo estava disponível tendo, por isso, sido utilizado pelos juscientistas

na criação do Direito. Nas compilações de Justinianus, onde, apesar das interpolações, se

refletem os diversos passos do Direito romano ao longo duma evolução secular, os múltiplos

empregos da boa fé conduzem à diluição do instituto: contagiada pela retórica grega, a bona

fides chega a uma situação singular: ela surge, a cada passo e a propósito dos mais diversos

institutos e, quando isolada, nada quer dizer. No Direito canónico, a bona fides, conserva uma

utilização subjetiva semelhante à que se viu consubstanciar no Direito romano, a propósito da

usucapio. O teor geral do canonismo conduziu, no entanto, a alguns desvios, conferindo à boa

fé tonalidades éticas que se podem exprimir equiparando-a à ausência de pecado. A boa fé não

implica só ignorância: exige ausência de censura. No Direito germânico desenvolveu-se, com

raízes próprias, também uma ideia de boa fé (Treu und Glauben): ela partiu das ideias de crença,

confiança, honra e lealdade à palavra dada. Posteriormente, ela veio a objetivar-se, exprimindo

valores ligados ao ritual, ao padrão social e à exterioridade do comportamento, de modo a

ajuizar do seu acordo com bitolas sócio-culturais de atuação, sem a intervenção da Ciência do

Direito. A boa fé traduz a tutela da aparência. A evolução posterior, até aos nossos dias, liga-se

à riqueza dos fenómenos culturais no Direito, patentes nas receções do Direito romano. Num

primeiro momento, a boa fé da receção é fundamentalmente subjetiva, traduzindo um estado

de ignorância do sujeito, em termos de promover a aplicação de um regime mais favorável. Com

o humanismo, os estudiosos vieram a descobrir um emprego polissémico da boa fé nas fontes.

E em obediência ao sistema periférico por eles preconizado, os humanistas reuniram as

referências dispersas feitas à boa fé pelos textos romanos. Os jusracionalistas aproveitaram

também a expressão bona fides, rica em história, designadamente para melhor justificar a

necessidade de respeitar os contratos celebrados. O uso assim feito era fraco: o contrato deve,

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como é evidente, ser respeitado, sem que o apoio da boa fé seja útil. A prática que antecedeu a

codificação francesa dava, à boa fé, um relevo subjetivo, nos termos por que, desde o Direito

romano tardio, ela era conhecida. No espaço alemão ocorreu, no entanto, um fenómeno diverso,

de maior importância: no termo de uma confluência entre a boa fé germânica e os textos

romanos, sempre presentes mercê da receção, verificou-se, desde o princípio do século XIX, o

recurso à bona fides por parte dos tribunais comerciais, como forma de enquadrar questões

inteiramente novas, ligadas ao surto económico então verificado. O fenómeno foi tanto mais

importante quanto é certo que, mercê da situação política interna então vivida, não era possível

dotar o espaço alemão de leis comerciais unitárias e atualizadas. O progresso foi simplesmente

assegurado pelos tribunais comerciais, em decisões baseadas na boa fé. Nas diversas

codificações, a boa fé teria um destino bastante diferente. O Código de Napoleão, fiel às

tradições em que assentou, consagrou a boa fé com duas aceções: o alcance subjetivo, pelo qual

a boa fé corresponde a um estado de ignorância do sujeito, que merece, do Direito, a concessão

de um regime mais favorável e o alcance objetivo, de cariz jusracionalista, em cujos termos a

boa fé reforça o vínculo contratual. A evolução subsequente daria conteúdo, apenas, à primeira

versão. A boa fé objetiva, tolhida pela fraqueza do seu uso contratual e bloqueada pela

incapacidade da doutrina francesa em elevar-se seja acima da exegese, seja acima da sistemática

central, perdeu-se, não tendo conteúdo útil e não dando lugar, até aos nossos dias, a quaisquer

soluções particulares. O Código alemão, na sequência, também, das suas raízes, deu uma dupla

dimensão à boa fé. Em sentido subjetivo (guter Glauben)ela exprime a não consciência de

prejudicar outrem; em sentido objetivo (Treu und Glauben) ela corporiza-se numa regra de

conduta, a observar pelas pessoas no cumprimento das suas obrigações. Posteriormente,

assistiu-se a uma aplicação prática intensa de ambos os termos e a um enorme desenvolvimento

do segundo. Na linha possibilitada por uma Ciência Jurídica sensível às realidades e capaz –

através dos mecanismos da sistemática integrada – de alterar, em função delas, o próprio

sistema, a boa fé esteve na base de praticamente todas as inovações jurídicas verificadas, no

Direito Civil, nos últimos cem anos. No espaço jurídico português, a boa fé traduz os passos

acima esquematizados, com algumas adaptações. O Código de Seabra sofreu, como é conhecido,

o influxo do modelo napoleónico e da Ciência Jurídica francesa, embora com raízes profundas

na tradição românica nacional. No tocante à boa fé, isso traduziu-se, desde logo, na salvaguarda

do instituto, em aceção subjetiva. A objetiva – numa originalidade única – desapareceu pura e

simplesmente do texto do Código. Na verdade, o conhecimento havido de que a consagração

objetiva da boa fé, no texto napoleónico, não tivera quaisquer efeitos práticos recomendou,

naturalmente, a sua proscrição. A viragem cultural para a pandectística teve como efeito uma

redescoberta da boa fé objetiva; agora, no entanto, ela apresentava-se já como instituto

comprovado pelas múltiplas inovações que fora capaz de propiciar e não como mera referência

genérica. O Código Civil de 1966, neste seguimento evolutivo, veio pois:

- consagrar a boa fé subjetiva de feição românica e tradicional;

- consagrar a boa fé objetiva, de origem românico-germânica, dinamizada pela terceira

sistemática e evolução subsequente;

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- referenciar, expressamente, vários institutos – ou sub institutos – que não constam do

Código alemão e que foram alcançados, no correspondente espaço, apenas por via cientifica e

jurisprudencial, assente na boa fé.

Num aparente paradoxo que só a natureza cultural do Direito permite explicar, pode assim

afirmar-se que o Código português foi o que mais longe levou as potencialidades históricas da

boa fé; para tanto, aproveitou as lições de História e de Ciência do Direito universal. O sentido

atual da voa fé exige, para ser referenciado em termos assumidos – uma vez que, subjacente,

está ela, por definição, a todos os passos jurídico-científicos – uma longa pesquisa que atente

em todos os sub institutos que a ela recorram e, ainda, nas diversas soluções que eles propiciem.

Algumas das conclusões assim obtidas podem ser sumariadas como segue. O Direito é uma

Ciência que se constitui na resolução de casos concretos. Porquanto Ciência, o Direito surge

sistemático por natureza. O sistema deve, porém, ser entendido em termos integrados –

portanto com um núcleo de princípios e uma periferia atuante, ambos interligados por vias de

sentido duplo – e com uma série de limitações originadas, entre outros aspetos, por lacunas e

por quebras ou contradições no seu seio. Apesar de tudo, há um sistema nas ordens jurídicas da

atualidade, traduzido pela preocupação científico-cultural de descobrir uma unidade figurativa

e ordenadora ou um fio condutor que reúna os diversos institutos que a História colocou nos

espaços jurídicos dos nossos dias. Esse sistema tem exigências que se mantêm, de modo

contínuo – ainda que com efeitos e configurações muito variáveis – nos diversos pontos onde o

Direito deve intervir. A boa fé tem justamente esse papel: ela traduz, até aos confins da periferia

jurídica, os valores fundamentais do sistema; e ela carreia, para o núcleo do sistema, as

necessidades e as soluções sentidas e encontradas naquela mesma periferia.

Consagrações objetivas e subjetivas; conceção psicológica e conceção ética: na

sequência da evolução histórica acima sumariada, a boa fé concretiza-se, no Direito Civil

português vigente, num instituto objetivo e num instituto subjetivo. A boa fé objetiva remete

para princípios, regras, ditames ou limites por ela comunicados ou, simplesmente, para um

modo de atuação dito “de boa fé”. Artigos 3.º, n.º 1, 227.º, n.º1, 239.º, 272.º, 334.º, 437.º, n.º1

e 762.º, n.º2, respetivamente. A boa fé atua como uma regra imposta do exterior e que as

pessoas devem observar. Nalguns casos, a boa fé surge como um corretivo de normas

suscetíveis de comportar uma aplicação contrária ao sistema; noutros, ela surge como a única

norma atendível. Em todos eles, todavia, ela concretiza-se em regras de atuação. Na boa fé

subjetiva está em causa um estado do sujeito. Esse estado é caracterizado, pela lei portuguesa,

ora como um mero desconhecimento ou ignorância de certos factos ora como um seu

desconhecimento sem culpa ou ignorância desculpável ora, finalmente, pela consciência de

determinados fatores. Estas flutuações de legislador português encobrem uma querela clássica,

resolvida no século XIX mas que, ao que supomos por falta de divulgação científica, não tem

encontrado, entre nós, uma saída uniforme. Vamos, por isso, fazer uma referência breve às duas

conceções então em presença. A boa fé subjetiva podia ser usada em dois sentidos diversos:

- um sentido puramente psicológico: estaria de boa fé quem pura e simplesmente

desconhecesse certo facto ou estado de coisas, por muito óbvio que fosse;

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- um sentido ético: só estaria de boa fé quem se encontrasse num desconhecimento não

culposo; noutros termos: é considerada de má fé a pessoa que, com culpa, desconheça aquilo

que deveria conhecer.

A conceção ética postula a presença de deveres de cuidado e de indagação: por simples que

sejam, sempre que exigiria, ao agente, uma consideração elementar pelas posições dos outros.

A opção por uma ou por outra das duas conceções não deve ser feita de ânimo leve: ela é obra

de toda uma tradição científico-cultural, que não pode ser alijada. No Direito romano, a bona

fides subjetiva tinha a ver, apenas, com o conhecimento humano. Ela seria, então, puramente

psicológica. Mas no período intermédio, como reflexo, entre outros, do pensamento jurídico-

canónico, a boa fé enriqueceu-se com um contributo ético: apenas o desconhecimento não-

censurável seria relevante. No século XIX, particularmente por via dum certo regresso a um

romanismo mais primitivo, o problema voltou a colocar-se. Ficaria célebre uma polémica entre

Wächter e Bruns: o primeiro optando por uma conceção psicológica e, o segundo, por uma

conceção ética, no sentido acima referido. A posição ética de Bruns viria a prevalecer, estando

hoje consagrada nos ordenamentos alemão e italiano. Há três argumentos decisivos que

amparam essa opção:

- a juridicidade do sistema: o Direito não associa consequências a puras casualidades

como o ter ou não conhecimento de certa ocorrência; o Direito pretende intervir nas relações

sociais; ora, ao lidar com uma boa fé subjetiva ética ele está, de modo implícito, a incentivar o

acatamento de deveres de cuidado e de diligência;

- a adequação do sistema: uma conceção puramente psicológica de boa fé equivale a

premiar os ignorantes, os distraídos e os egoístas, que desconheçam mesmo o mais evidente;

paralelamente, ir-se-ia penalizar os diligentes, os dedicados e os argutos, que se aperceberiam

do que escapa ao cidadão comum;

- a praticabilidade do sistema: não é possível (nem desejável) provar o que se passa no

espírito das pessoas; assim e em última análise, nunca se poderá demonstrar que alguém

conhecia ou não certo facto; apenas se poderá provar que o sujeito considerado, dados os factos

disponíveis, ou sabia ou devia saber; em qualquer das hipóteses, há má fé.

Os referidos argumentos jogam plenamente no Direito português. Além disso, há que

interpretar sistematicamente as múltiplas referências feitas, na lei civil, à boa fé. Por tal via,

chegamos à solução de que a boa fé subjetiva é, entre nós, sempre ética: só pode invocar boa

fé que, sem culpa, desconheça certa ocorrência. Alguma doutrina menos atenta – e sem, sequer,

dar razões – mantém uma referência à boa fé “psicológica” com isso provocando hesitações na

jurisprudência. Trata-se dum ponto a corrigir, sob pena de enorme retrocesso científico, numa

área que há bem mais de cem anos estava conquistada pela Ciência do Direito.

Concretizações da boa fé objetiva; os princípios mediantes: a boa fé objetiva concretiza-

se, essencialmente, em cinco institutos, todos de filiação germânica:

- a culpa in contrahendo – artigo 227.º, n.º1;

- a integração dos negócios – artigo 239.º;

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- o abuso do direito – artigo 334.º;

- a modificação dos contratos por alteração das circunstâncias – artigo 437.º, n.º1;

- a complexidade das obrigações – artigo 762.º, n.º 2.

Antes de fazer uma breve referência a estes institutos, cumpre sublinhar que nenhum deles

deriva da boa fé, em termos conceptuais: de resto, pela sua vaguidade, nem seria possível retirar

da boa fé seja o que for. Todos estes cinco institutos tiveram origens históricas diferentes,

concretizando-se, por várias vias, antes de se acolherem à boa fé. Apenas a reconstrução

possibilitada pela terceira sistemática levou a uma certa aproximação dogmática entre eles. A

culpa in contrahendo corresponde a uma descoberta de Rudolph von Jhering. No fundamental,

ela diz-nos que antes da formação do contrato, as partes já têm diversos deveres a respeitar e,

designadamente, deveres de proteção, de lealdade e de informação. Tais deveres visam

prevenir que, nessa fase pré-contratual, alguma das partes possa atingir a confiança da outra,

provocando-lhe danos. Além disso, eles recordam que a negociação contratual, embora livre,

não deve ser usada para fins danosos, alheios à finalidade em jogo: a de procurar a eventual

celebração dum contrato. A integração dos negócios desenvolveu-se a partir das regras de

interpretação negocial e, designadamente: quando elas tiveram de enfrentar uma especial

escassez de material expressamente subscrito pelas partes. Nessa eventualidade, o intérprete-

aplicador deverá ter e conta a lógica imanente ao negócio e as exigências substanciais do sistema,

de acordo com as expectativas que as partes tenham, legitimamente, depositado no processo.

O abuso do direito teve origem na jurisprudência francesa de meados do século XIX, embora

tenha sido retomado, em termos muito diversos, pelo pensamento jurídico alemão. Hoje, ele

agrupa diversas figuras; será objeto, de seguida, dum excurso autónomo. A modificação dos

contratos por alteração das circunstância surgiu nos comentadores do século XIII; sofreu, depois,

uma evolução atormentada até ser, já neste ´seculo, aproximada de boa fé. No fundamental,

este instituto permite, em certas condições, modificar ou resolver a contratos que, mercê de

alterações registadas após a sua conclusão, venham a assumir feições injustas para alguma das

partes. Trata-se dum instituto do Direito das obrigações, que recorda a materialidade do sistema

e a defesa das expectativas justificadas das partes. A complexidade das obrigações advém, ela

própria, da junção de dois institutos: a violação positiva do contrato, assente numa descoberta

de Staub, em 1902 a ideia de obrigação como uma estrutura complexa, desenvolvida nos

princípios do século XX por vários autores. Acolhida, no artigo 762.º, n.º2, sob a referência à boa

fé, a complexidade das obrigações promove, a propósito de cada vínculo, um conjunto de

deveres de proteção, de lealdade e de informação que asseguram, nesse nível, a tutela da

confiança das partes e do princípio que, em qualquer caso, prevalecem os interesses reais

protegidos do credor. Também este instituto pertence ao Direito das Obrigações. Os cinco

referidos institutos tornam-se incompatíveis e inaplicáveis sem a intervenção da Ciência do

Direito. Com efeito, eles lidam com conceitos indeterminados e com construções técnicas de

alguma complexidade. Todos eles têm origem na resolução de questões concretas e não,

propriamente, em desenvolvimentos teoréticos. Além disso, todos eles requerem uma

sindicância muito atenta da Ciência do Direito, com recurso a proposições firmes e pensadas: de

modo algum eles poderão propiciar um Direito assente no sentimento ou um mero decisionismo

imponderado. Em medidas diversas, em todos eles afloram dois princípios que – trata-se duma

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imagem científica auxiliar – atuam como fatores de mediação entre a boa fé e o instituto

considerado: o principio da confiança e o princípio da materialidade subjacente. Tais princípios

são induzidos das suas concretizações da boa fé e, depois, usados a consecução de novas

soluções.

A tutela da confiança: a confiança das pessoas é protegida desde o Direito romano,

documentando-se, também, no Direito comparado. A proteção mantém-se, por certo, hoje em

dia, tendo sido, aliás, consideravelmente alargada. Mas é uma proteção delicada: o

reconhecimento geral e absoluto da tutela da confiança levaria a que boa parte das soluções

cominadas, em termos expressos, fosse desviada a favor daquilo em que por uma razão ou outra,

as pessoas acreditassem. O Direito positivo tem uma palavra importante a dizer. A ponderação

de análises históricas e comparativas mostra que ele é influenciado por fatores sócio-culturais.

Assim, no Direito privado, quando se pretenda sedimentar um sistema que dê primazia à

manutenção estática dos bens, a confiança é postergada; quando, pelo contrário, as

preferências caminhem para a sua circulação, a confiança é protegida. Neste domínio como

noutros, não há modelos puros; apenas oscilações em favor de um ou de outro dos extremos

possíveis. No entanto, não é arriscado adiantar que o momento atual é de dinamismo no

aproveitamento de bens e de segurança na posição dos administrados: a confiança surge, em

consequência, valorizada. No Direito português vigente – de acordo, aliás, com o que ocorre nas

outras ordens jurídicas – a proteção da confiança efetiva-se por duas vias:

- através de disposições legais específicas;

- através de institutos gerais.

As disposições legais específicas de tutela da confiança surgem quando o Direito retrate

situações típicas nas quais uma pessoa que, legitimamente, acredite em certo de estados de

coisas – ou o desconheça – receba uma vantagem que, de outro modo, não lhe seria reconhecida.

Os institutos gerais suscetíveis de proteger a confiança aparecem ligados aos valores

fundamentais da ordem jurídica e surgem associados, por forte tradição românica, a uma regra

objetiva da boa fé. Preconiza-se, a propósito dessa tutela da confiança, no Direito positivo

português vigente, a construção seguinte:

- a confiança é protegida quando se verifique a aplicação de um dispositivo específico a

tanto dirigido;

- fora desses casos, ela releva quando os valores fundamentais da ordem jurídica e

surgem associados, por forte tradição românica, a uma regra objetiva da boa fé. Preconiza-se, a

propósito dessa tutela da confiança, no Direito positivo português vigente, a construção

seguinte:

- a confiança é protegida quando se verifique a aplicação de um dispositivo específico a

tanto dirigido;

- fora desses casos, ela releva quando os valores fundamentais do ordenamento,

expressos como boa fé ou sob outra designação, assim o imponham.

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Um estudo apurado das previsões legais específicas que tutelem situações de confiança e das

consagrações jurisprudenciais dos institutos genéricos, onde tal tutela tenha lugar, permite

apontar os pressupostos da sua proteção jurídica. São eles:

1.º uma situação de confiança conforme com o sistema e traduzida na boa fé subjetiva

e ética, própria da pessoa que, sem violar os deveres de cuidado que ao caso caibam, ignore

estar a lesar posições alheias;

2.º uma justificação para essa confiança, expressa na presença de elementos objetivos

capazes de, em abstrato, provocarem uma crença plausível;

3.º um investimento da confiança consistente em, da parte do sujeito, ter havido um

assentar efetivo de atividades jurídicas sobre a crença consubstanciada;

4.º a imputação da situação de confiança criada à pessoa que vai ser atingida pela

proteção dada ao confiante: tal pessoa, por ação ou omissão, terá dado lugar à entrega do

confiante em causa ou ao fator objetivo que a tanto conduziu.

A situação de confiança pode, em regra, ser expressa pela ideia de boa fé subjetiva: a posição

da pessoa que não adira à aparência ou que o faça com desrespeito de deveres de cuidado

merece menos proteção. A justificação da confiança requer que esta se tenha alicerçado em

elementos razoáveis, suscetíveis de provocar a adesão de uma pessoa normal. O investimento

de confiança exige que a pessoa a proteger tenha, de modo efetivo, desenvolvido toda uma

atuação baseada na própria confiança, atuação essa que não possa ser desfeita sem prejuízos

inadmissíveis; isto é: uma confiança puramente interior, que não desse lugar a comportamentos,

não requer proteção. A imputação da confiança implica a existência de um autor a quem se deva

a entrega confiante do tutelado. Ao proteger-se a confiança de uma pessoa vai-se, em regra,

onerar outra; isso implica que esta outra seja, de algum modo, a responsável pela situação criada.

Os quatro requisitos acima apontados devem ser entendidos e aplicados com duas precisões

importantes. As previsões específicas de confiança dispensam, por vezes, algum ou alguns dos

pressupostos referidos. Os requisitos para a proteção da confiança articulam-se entre si nos

termos de um sistema móvel. Isto é: não há, entre eles, uma hierarquia e não são, em absoluto,

indispensáveis: a falta de algum deles pode ser compensada pela intensidade especial que

assumam alguns – ou algum – dos restantes. A mobilidade, assim entendida, dos requisitos em

causa, ilustra-se, desde logo, com as situações acima sumariadas da aquisição pelo registo. A

tutela da confiança, genericamente dispensada pela boa fé, tem uma teleologia relevante para

se determinar o âmbito da proteção. À partida, podemos considerar a confiança como um

elemento imprescindível na manutenção do grupo social. Na sai falta, qualquer sociedade

humana se esboroa. Em termos interpessoais, a confiança instalada coloca os protagonistas à

mercê uns dos outros: o sujeito confiante abranda as suas defesas, ficando vulnerável.

Seguidamente, todos os investimentos, sejam eles económicos ou meramente pessoais,

postulam a credibilidade das situações: ninguém dá hoje, para receber (apenas) amanhã, se não

houver confiança nos intervenientes e nas situações. Por fim, a confiança e a sua tutela

correspondem a aspirações éticas elementares. A pessoa defraudada na sua confiança é, desde

logo, uma pessoa violentada na sua sensibilidade moral. Paralelamente, o agente que atinja a

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confiança alheia age contra um código ético imediato. A confiança torna-se um elemento

importante. O Direito não o pode ignorar: trata-se de um sujeito confiante pela mesma bitola

dispensada a um outro não confiante equivale a tratar o diferente de modo igual. Haveria, então,

uma violação do princípio da igualdade, previsto no artigo 13.º CRP. Podemos ir mais longe. O

princípio da igualdade implica a harmonia e a adequação do sistema no seu conjunto. Em jogo

estará, sempre, uma confiança conforme com o sistema. E assim sendo, encontraremos, na

tutela da confiança, um modo de concretização dos valores últimos do sistema.

A primazia da materialidade subjacente: a tutela da confiança constitui um princípio

fundamental de concretização da boa fé objetiva. Mas ela não esgota o âmbito regulativo desta.

Na base de múltiplas soluções genéricas propiciadas pela boa fé, encontramos um segundo e

também fundamental princípio: o da primazia da materialidade subjacente. A ideia que aflora

na regra da primazia da materialidade subjacente é de fácil exteriorização: o Direito visa, através

dos seus preceitos, a obtenção de certas soluções efetivas; torna-se, assim, insuficiente a adoção

de condutas que apenas na forma correspondam aos objetivos jurídicos, descurando-os, na

realidade, num plano material. A boa fé exige que os exercícios jurídicos sejam avaliados em

termos materiais, de acordo com as efetivas consequências que acarretem. Para facilidade de

concretização – e sempre na base duma pesquisa assente em caso práticos – podemos apontar

três grandes vias de realização do princípio ora em estudo:

- a conformidade material das condutas;

- a idoneidade valorativa;

- o equilíbrio no exercício das posições.

A conformidade material exige que, no exercício de posições jurídicas, se realizem, com

efetividade, os valores pretendidos pelo ordenamento: não, apenas, o ritualismo exterior. Será

pois contrária à boa fé qualquer conduta que apenas na forma dê corpo ao que o Direito

determine. A idoneidade valorativa recorda a harmonia do sistema. Este não admitiria que

alguém utilize a própria situação jurídica que tenha violado para, em função do seu ilícito, tirar

partido contra outrem. Assim – e se normas específicas não existissem – seria contrário à boa fé

provocar um dano e exigir, a outrem, a sua reparação. O equilíbrio no exercício das posições

jurídicas recorda a permanente necessidade de sindicar, à luz da globalidade do sistema, as

diversas condutas, mesmo permitidas. Temos, por esta via, dois tipos de posturas vedadas pela

boa fé:

- o ato emulativo e, portanto: a atuação gratuitamente danosa para outrem;

- a atuação gravemente desequilibrada, ou seja: a conduta que, para conseguir uma

vantagem mínima para o próprio gere um dano máximo para outrem.

A primazia da materialidade subjacente não tem, à partida, o potencial inovatório da tutela da

confiança. No fundo, ela conduz a uma melhor articulação do sistema com a periferia,

permitindo uma interpretação e uma aplicação melhoradas das mais diversas mensagens

normativas. Por esta via, poderíamos ser levados a pensar que a primazia da materialidade

subjacente ria perdendo terreno à medida que o ordenamento lograsse densificar as suas

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normas e soluções. E inevitável uma certa perda de importância, por esta via. Mas à medida que

as sociedades se aperfeiçoem, o sistema torna-se mais exigente. Áreas antes a ele alheias

exigem, subitamente, soluções que o prolonguem. A boa fé, apelando para a primazia

subjacente da materialidade subjacente, está vocacionada para o fazer.