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IUS GENTIUM Luís de Lima Pinheiro 大象城堡 | 葡京的法律的大学

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IUS GENTIUM Luís de Lima Pinheiro

大象城堡 | 葡京的法律的大学

Luís de Lima Pinheiro

大象城堡

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Índice

Noção de Direito Internacional Privado ................................................................ 3

Caracterização das normas de conflitos de leis no espaço ................................... 6

Planos, processos e técnicas de regulação das situações transnacionais ............. 9

Objeto e função da norma de conflitos ................................................................ 22

A Justiça e os Princípios Gerais do Direito de Conflitos: .................................. 47

Estrutura Geral da Norma de Conflitos ............................................................... 61

Interpretação e aplicação da norma de conflitos ................................................. 69

Do elemento de conexão ........................................................................................ 82

Remissão para ordenamentos jurídicos complexos ............................................ 90

A devolução ou reenvio .......................................................................................... 93

A fraude à lei .......................................................................................................... 110

A qualificação ......................................................................................................... 114

Problemas especiais de interpretação e aplicação do Direito de Conflitos .... 125

Estatuto do Direito Estrangeiro .......................................................................... 132

Limites à aplicação do Direito Estrangeiro ou transnacional .......................... 136

Aproveitamos a oportunidade de, desejando a maior fortuna na empresa de libertação em que consiste o 4.º ano,

reiterar a necessidade de consulta dos manuais

Direito Internacional Privado

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§

Noção de Direito Internacional Privado1

a. As situações transnacionais e o problema da sua regulação jurídica: na organização

atual da sociedade internacional encontramos uma pluralidade de sistemas jurídicos

(correspondendo a Estados soberanos), cada um destes sistemas jurídicos desenvolve-se

com autonomia. Por isso, estes sistemas jurídicos, a par de zonas de convergência,

apresentam divergências importantes na solução de muitos problemas jurídicos. À

pluralidade de sistemas jurídicos corresponde uma diversidade de regulação jurídica das

mesmas situações da vida. As situações da vida juridicamente relevantes podem inserir-se

inteiramente numa só sociedade estadual, sem qualquer contacto significativo com outras

comunidades. Mas é patente que a sociedade humana não para nas fronteiras do Estado e

que por razões de índole económica, cultural e política se estabelecem relações que

apresentam contactos com duas ou mais sociedades estaduais. Em casos como estes o órgão

de aplicação do Direito tem de resolver uma questão privada internacional, tem, antes de

mais, de determinar o sistema jurídico a que há de determinar o sistema jurídico a que há de

pedir a solução do problema. Essa determinação pode ser decisiva quanto à solução do caso.

b. Situações transnacionais e situações privadas. Imunidades de jurisdição e pretensões

de Estados estrangeiros: tradicionalmente, entende-se que o Direito Internacional Privado

regula as situações privadas. Trata-se, então, de situações que dizem respeito ao Direito Civil

ou a Direitos Privados Especiais, como o Comercial. Mas, como de seguida se verá, o objeto

do Direito Internacional Privado também abrange certas situações que, no todo ou em parte,

não são reguladas pelo Direito Privado. Daí que me pareça preferível falar apenas de situações

transnacionais: todas aquelas em que se coloque um problema de determinação do Direito aplicável que deva

ser resolvido pelo Direito Internacional Privado. A maior pate das situações públicas não coloca um

problema de determinação do Direito aplicável, por estarem diretamente submetidas ao

Direito do sujeito público. É o que se verifica com duas categorias de situações:

i. As que não são suscetíveis de regulação na esfera interna, por dizerem

respeito a certas atividades públicas estrangeiras por forma a ficarem

inseridas exclusivamente na esfera de regulamentação de um Estado

estrangeiro por força do Direito Internacional;

ii. As que são primariamente conformadas por Direito Público português.

Na determinação dos limites impostos pelo Direito Internacional Público a esfera de

regulação da ordem local importa estabelecer uma correspondência com a imunidade de

jurisdição dos Estados estrangeiros, das organizações internacionais e dos agentes

diplomáticos e consulares e com a admissibilidade de pretensões de Estados estrangeiros.

Diz-se que uma pessoa goza de imunidade de jurisdição quando, por força do Direito

Internacional Público, não pode ser proposta uma ação contra ela nos tribunais da jurisdição

dos Estados; a tendência dominante vai no sentido de um conceito restritivo de imunidade,

que a limita aos atos soberanos, ou seja, os atos praticados iure imperii, por contraposição aos

atos de natureza comercial ou provada, praticados de iure gestionis, que dela são excluídos.

Portanto, os tribunais de um Estado não têm jurisdição com respeito aos litígios resultantes

de atuação iure imperii de um Estado estrangeiro. Mas a delimitação entre atuação iure imperii

e iure gestionis suscita dificuldades, designadamente com respeito aos contratos celebrados

pelo Estado e outros entes públicos no exercício de uma atividade económica. Apenas se

encontra um certo consenso em torno ao seguinte raciocínio básico: existe um conjunto de

atos típicos que, sendo regulados pelo Direito Privado Comum, podem ser praticados por

particulares; por conseguinte, estes atos são em geral encarados como operações comerciais

ou outros atos de Direito Privado. Uma solução possível consiste em distinguir entre

pretensões que se relacionam com o exercício de poderes de autoridade e pretensões de

1 PINHEIRO, Luís de Lima, Direito Internacional Privado, Volume I, 3.ª Edição; Almedina Editores; Coimbra, outubro 2014

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conteúdo e fundamento semelhante às que sem hesitação qualificaríamos de jurídico-

privadas. Na impossibilidade de expor aqui as teses em confronto, limitar-me-ei a enunciar

a posição que considero preferível. Em minha opinião, a ordem jurídica de um Estado é inteiramente

livre de decidir se tutela ou não juridicamente a pretensão de um Estado estrangeiro fundada no seu Direito

Público. O Direito Internacional Privado coloca alguns limites à regulação das situações em

que estão implicados entes públicos no âmbito de outras ordens jurídicas. Para a

determinação destes limites deve estabelecer-se um paralelo com o exposto relativamente à

imunidade de jurisdição. Chega-se, assim, a um critério comum quer para a propositura de

ações contra Estados estrangeiros quer para a propositura de ações por Estados estrangeiros.

A transposição dos critérios definidores das imunidades de jurisdição e da admissibilidade

de pretensões de Estados estrangeiros para a delimitação do objeto do Direito Internacional

Privado permite concluir que o Direito Internacional Privado português não pode regular as

situações resultantes da atuação iure imperii seja de Estados ou entes públicos autónomos

estrangeiros seja de organizações internacionais. Mas o Direito Internacional Público já não

impede que o Direito Internacional Privado de um Estado regule as relações ligadas à atuação

iure gestionis seja de Estados ou entes públicos autónomos estrangeiros seja de organizações

internacionais. O Direito Internacional Privado pode ainda regular as relações em que o

sujeito público ou internacional gozaria, em princípio, de imunidade de jurisdição, quando

haja renúncia à imunidade. Pode suceder que o Direito Internacional Privado de um Estado

não regule todas as situações internacionais que são suscetíveis de regulação na esfera interna,

autolimitando a sua esfera de aplicação. Assim, não seria inconcebível que o sistema jurídico

português excluísse a aplicação do Direito Internacional Privado a certas relações em que

estão implicados Estados ou entes públicos autónomos estrangeiros, no quadro de uma

atuação iure gestionis, quando essas relações ficassem sujeitas primariamente ao Direito

Público português, caso nelas se encontrasse implicado o Estado ou ente público autónomo

português. Mas uma coisa é certa: sempre que os tribunais portugueses tenham de se ocupar

de litígios emergentes de relações em que estejam implicados Estados ou entes públicos

autónomos estrangeiros coloca-se um problema de determinação do Direito aplicável. Por

conseguinte, caso se verificasse uma autolimitação do Direito Internacional Privado

português, ou se procederia a um correspondente alargamento da imunidade da jurisdição,

por forma a que as ações relativas a estas relações não pudessem ser propostas nos tribunais

portugueses, ou teria de se desenvolver soluções específicas para a determinação do Direito

aplicável a essas relações. Ora, até ao momento, além de não ter sido adotado qualquer

regime interno sobre a imunidade de jurisdição, o legislador não criou tais soluções

específicas, nem a jurisprudência sentiu a necessidade de suprir a eventual omissão do

legislador. Por isso parece de partir do princípio que o Direito Internacional Privado português é

aplicável a todas as relações que, embora implicando Estados ou entes públicos autónomos estrangeiros,

organizações internacionais ou agentes diplomáticos ou consulares de Estados estrangeiros sejam suscetíveis de

regulação na esfera interna.

c. Caráter transnacional das situações reguladas: é corrente afirmar-se que o Direito

Internacional Privado regula situações de caráter internacional. Por internacional quer-se

significar a existência ade contactos relevantes com mais de um Estado soberano, com mais

de uma sociedade politicamente organizada em Estado Soberano. O recurso ao adjetivo

transnacional permite evitar esta ambiguidade do termo internacional com o Direito

Internacional Privado. Trata-se, com efeito, de situações que transcendem a esfera social de

um Estado soberano, entrando em contacto com outras sociedades estaduais. São múltiplos

os fatores que podem dar à situação este caráter transacional: a nacionalidade dos sujeitos, o

seu domicílio ou residência habitual, o lugar do seu estabelecimento, o lugar da sede do ente

coletivo, o lugar onde está situada uma coisa, designadamente. As situações jurídicas

carecidas de regulação jurídica são, na maioria dos casos, apreciadas segundo o Direito

Internacional Privado de uma ordem jurídica estadual. Daí que a internacionalidade da

situação seja vista, na perspetiva desta ordem jurídica, como uma estraneidade: como

Direito Internacional Privado

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§

produto de certos elementos de estraneidade. Os elementos e estraneidade são os laços que

ligam a situação a outros Estados. Esta perspetiva impõe-se ao legislador estadual de Direito

Internacional Privado que tem em vista situações que, além dos laços existentes com o seu

Estado, apresentam elementos de estraneidade. Esta perspetiva também vale, até certo ponto,

para os órgãos nacionais de aplicação do Direito Internacional Privado. O tribunal estadual

aplica o Direito Internacional Privado vigente na respetiva ordem jurídica a situações que, a

par dos laços que apresentam com o Estado do foro, e que normalmente fundamentam a

competência internacional dos seus tribunais também estão conectados com outros Estados.

Mas já para estes órgãos o problema se pode colocar de modo diferente quando tenham de

aplicar normas de Direito Internacional Privado de fonte internacional. Com efeito, a

transnacionalidade relevante para a aplicação de normas de conflitos internacionais já não se

apresenta como uma estraneidade relativamente a um determinado Estado, uma vez que

estas normas são aplicáveis numa pluralidade de ordens jurídicas estaduais. Para os órgãos

internacionais e transnacionais de aplicação do Direito Internacional Privado a

transnacionalidade nunca pode ser encarada numa ótica da estraneidade, porque estes órgãos

não estão radicados na ordem jurídica de um Estado. O critério da transnacionalidade

relevante depende das normas de Direito Internacional Privado em jogo e consoante a

matéria em causa. No que toca ao Direito de Conflitos geral, a determinação da

transnacionalidade está facilitada quando os laços que se verificam com mais de um Estado

soberano constituem elementos de conexão utilizados pelas normas de conflito aplicáveis.

Mas o problema já não se deixa resolver com tanta facilidade nas matérias em que se admite

a designação do Direito aplicável pelos interessados ou, mesmo noutras matérias, quando se

adota uma perspetiva de iure condendo. Nestes casos é necessária uma valoração. Nesta

valoração têm de ser tidos em conta os fins e princípios subjacentes à norma de conflitos em

causa e ao sistema de Direito Internacional Privado em que se integra, bem como o conjunto

das circunstâncias do caso concreto.

d. Processo conflitual: O Direito Internacional Privado regula as situações transnacionais

através de um processo conflitual. Tradicionalmente, entende-se que o núcleo essencial do

Direito Internacional Privado é constituído por normas de conflitos. As normas de conflitos de

Direito Internacional Privado são proposições que perante uma situação em contacto com uma pluralidade de

sociedades estaduais determinam o Direito aplicável. Enquanto ramo de Direito, o Direito

Internacional Privado será, pois, um Direito de Conflitos. Mas convém evitar os equívocos

a que a expressão conflitos de lei se presta. No uso corrente que é feito na doutrina

jusinterncacionalista a expressão conflitos de leis não se deve confundir com:

i. Conflitos de soberania: o nosso ramo do Direito pretende determinar o Direito

aplicável a uma situação transnacional e não de regular competências legislativas dos

Estados;

ii. Conflito de normas: por certo que o Direito Internacional Privado pressupõe a

vigência de uma pluralidade de sistemas jurídicos que apresentam um certo grau de

diversidade entre si. É ainda certo que para a escolha do Direito aplicável ter em

conta um sentido prático tem de haver uma diferença na regulação da situação entre

os sistemas em presença. Mas esta divergência entre os sistemas em presença não

constitui um conflito de normas na ordem jurídica local, visto que estes sistemas

não são simultaneamente aplicáveis na ordem jurídica local. Só será aplicável o

sistema que for chamado por uma norma de conflitos da ordem jurídica local. Por

isso, em princípio, é sempre necessário determinar o Direito aplicável a uma situação

transnacional.

iii. Conflito de sistemas de Direito Internacional Privado: diz-se que há um

conflito de sistemas em Direito Internacional Privado quando os Direitos de

Conflitos divergem entre si sobre qual deles deve ser aplicado ao caso. Quando

falamos de conflitos de leis em Direito Internacional Privado queremos tão-somente

identificar o problema de determinação do Direito aplicável, gerado por uma

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situação da vida que está em contacto com a esfera social de mais um Estado. É este

o problema que a norma de conflitos resolve, no quadro do sistema de Direito de

Conflitos a que pertence. Outra coisa é a possibilidade de um sistema de Direito de

Conflitos atender à posição que outros sistemas assumem quanto à determinação

do Direito aplicável, possibilidade adiante examinada. Não quer isto dizer que a

missão do Direito Internacional Privado se esgote com a designação do Direito

aplicável. Há todo um caminho a percorrer até à obtenção da solução do caso

concreto.

A função do Direito de Conflitos é, em primeira linha, a de regular situações transnacionais.

O Direito de Conflitos opera esta regulação por meio de um processo de regulação indireta:

regula as situações transnacionais mediante a remissão para o Direito aplicável. De outro

ponto de vista pode até certo ponto dizer-se, como faz Batiffol, que a norma de conflitos

coordena ou articula as ordens jurídicas nacionais. São duas perspetivas da mesma realidade.

Num mundo dominado pelas sociedades políticas organizadas em Estados, a que

correspondem ordenamentos jurídico autónomos, a norma de conflitos, para regular as

situações transnacionais, tem de coordenar e articular estes sistemas. Em todo o caso, o

acento deve ser colocado na função reguladora, uma vez que não está excluído que o Direito

de Conflitos, para realizar essa função, possa em certos casos remeter para o Direito não

estadual. Na regulação das situações transnacionais o Direito Internacional Privado não

opera apenas através do Direito de Conflitos, entendido stricto sensu, mas também mediante

o reconhecimento das situações jurídicas fixadas por decisão estrangeira, sob certas

condições. Assim, o Direito Internacional Privado, enquanto ramo do Direito de Conflitos

e o Direito de Reconhecimento. O processo de regulação operado por via do

reconhecimento autónomo de efeitos de decisões estrangeiras ainda é um processo conflitual

ou indireto. Com efeito, as normas que determinam o reconhecimento desses efeitos e

estabelecem as suas condições não disciplinam materialmente a situação. A definição da

situação jurídico-material resulta da remissão para o Direito do Estado de origem, i.e., o

Estado cujo órgão praticou o ato. São os efeitos jurídicos desencadeados pelo ato segundo

o Direito do Estado de origem que se produzem na ordem jurídica do Estado de

reconhecimento. Em todo o caso, entendo que as normas substantivas de reconhecimento

não são simples normas de remissão, como sugere Kegel. São uma categoria de especial de

normas de remissão que poderemos distinguir por normas de reconhecimento. A norma de

reconhecimento estabelece que determinado resultado material ou que efeitos jurídicos de

uma determinada categoria se produzirão na ordem jurídica do foro caso sejam

desencadeadas por um Direito estrangeiro. A norma de reconhecimento é uma norma de

remissão porque determina a aplicação do Direito estrangeiro à produção do efeito.

Caracterização das normas de conflitos de leis no espaço

a. Aspetos gerais: são tradicionalmente atribuídas às normas de conflitos de leis no espaço

três características fundamentais:

i. São normas de regulação indireta;

ii. São normas de conexão;

iii. São normas fundamentalmente formais.

b. Normas de regulação indireta: as normas de regulação indireta ou remissivas contrapõem-

se às normas de regulação:

i. Material: desencadeiam efeitos jurídicos que modelam as situações jurídicas das

pessoas. As normas materiais determinam o regime aplicável à situação descrita na

sua previsão. A consequência jurídica destas normas modela situações jurídicas,

designadamente por via da atribuição de direitos e da imposição de deveres, da

definição do estado e da capacidade das pessoas e do estabelecimento de requisitos

de validade ou da eficácia de atos jurídicos;

Direito Internacional Privado

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Assim, as

ii. Normas de regulação indireta: mandam aplicar à situação descrita na sua previsão

outras normas ou complexos normativos. No caso das normas de conflitos de

Direito Internacional Privado, a consequência jurídica consiste no chamamento do

Direito aplicável. Por conseguinte, as normas de conflitos, enquanto normas de

regulação indireta, não modelam, de per si, as situações jurídicas das pessoas. A

função destas normas é antes a de designar a ordem jurídica que fornecerá a

disciplina material desta situações, que as regulará diretamente. Isto não quer dizer

que as normas de conflitos não tenham ou procurem ter uma função reguladora,

orientadora da conduta das pessoas. Há que entenda que só as normas materiais são

normas de conduta (regulae agendi), ao passo que as normas de conflitos, em princípio,

só têm por destinatários os órgãos de aplicação do Direito, são meras regras de

decisão (regulae decidendi). Esta é a opinião de Ferrer Correia. Esta conceção assenta

numa visão judiciária do Direito Internacional Privado: este ramo do Direito só

entraria em ação quando um tribunal se ocupasse de um litígio emergente de uma

relação transnacional. Esta visão judiciária deve ser recusada. Os sujeitos das

situações transnacionais necessitam de determinar o Direito aplicável para poderem

orientar por ele as suas condutas. Por isso, sigo o entendimento de Isabel Magalhães

Collaço, segundo o qual a norma de conflitos é uma norma de conduta, embora de regulação

indireta.

c. Normas de Conexão: as normas de conflito que integram o sistema de Direito de Conflitos

são, por forma geral, as normas de conexão, porque conectam uma situação da vida ou um

seu aspeto, com o Direito aplicável, mediante um elemento ou fator de conexão. No dizer

de RAAPE, o legislador de Direito Internacional Privado é um Pontifex que lança a ponte

entre a situação e uma ordem jurídica. Esta conexão estabelece-se mediante a seleção de

determinados laços que o Direito Internacional Privado considera juridicamente relevantes

e decisivos para a determinação do Direito aplicável: os elementos de conexão. Como veremos

oportunamente, os elementos de conexão apresentam importantes diferenças estruturais

entre si, designadamente quanto ao caráter jurídico ou fático do seu conteúdo. Pode

antecipar-se que os fatores de conexão podem consistir:

i. Em vínculos jurídicos que se estabelecem diretamente entre um elemento da

situação e um Direito;

ii. Em laços fáticos entre a situação e a esfera social de um Estado que, apontando

para um determinado lugar no território deste Estado, permite à norma de conflitos

chamar o Direito que vigora neste Estado;

iii. Em factos jurídicos.

Além das tradicionais normas de conflitos de leis no espaço, que são normas bilaterais,

porque tanto chamam o Direito do foro como um Direito estrangeiro, há normas de

conflitos universais, que só desencadeiam a aplicação do Direito do foro convém, porém,

adiantar que as normas de conflitos unilaterais e, entre elas, as normas de conflitos ad hoc que

se reportam a normas ou conjuntos de normas materiais individualizadas, também são

normalmente normas de conexão. A seleção dos elementos de conexão em função das

matérias implica uma valoração. A norma de conexão veicula uma justiça própria, a justiça

da conexão, que se exprime na escolha dos elementos de conexão mais adequados às matérias

em causa. Não é só o Direito Internacional Privado que utiliza normas de conexão. As

normas de conexão também surgem noutros Direitos de Conflitos como o Direito

Intertemporal, o Direito Interlocal e o Direito Interpessoal. O que, em geral, distinguem as

normas de conflitos de Direito Internacional Privado das normas de conexão de outros

Direitos de Conflitos é o seu objeto: as situações transnacionais. Nem todas as normas sobre

a determinação do Direito aplicável utilizadas pelo Direito Internacional Privado são normas

de conexão, no sentido atribuído a esta expressão. Por certo que o fator de conexão não tem

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de consistir necessariamente num laço objetivo de caráter espacial entre um elemento de

situação e um Estado. As fórmulas clássicas segundo as quais os conflitos de leis se resolviam

mediante a determinação do Estado onde a relação jurídica tem a sua sede (Savigny) ou o

seu centro de gravidade (Otto Von Gierke) apontavam exclusivamente para uma averiguação

dos laços de natureza espacial com um determinado Estado. Esta visão das coisas é hoje

insuficiente. Por um lado, certas normas de conflitos admitem que o objeto da designação

das partes não seja Direito estadual, mas Direito Internacional Público ou Direito Autónomo

do Comércio Internacional (lex mercatoria). Já não preenchem todas as notas do conceito de

normas de conexão as normas de conflitos com conceito designativo do elemento de

conexão indeterminado. Cabe ao intérprete, perante o conjunto das circunstâncias do caso

concreto, averiguar qual o laço ou qual a combinação de laços que exprimem a conexão mais

estreita. Como as normas de conexão, estas normas de conflitos também estão ao serviço da

justiça da conexão. Mas trata-se agora de uma justiça da conexão no caso concreto, de uma

equidade conflitual, e não da consagração do elemento de conexão mais adequado por via

geral e abstrata. Por isso, estas proposições sobre a determinação do Direito aplicável só

poderão ser consideradas normas de conexão num sentido amplo, que abranja todas as

normas que estão ao serviço da justiça da conexão. Chegados a este ponto, cabe questionar

se devem ser consideradas normas de conflitos todas as normas sobre a determinação do

Direito aplicável ou só as que são normas de conexão. Em vasta medida é uma questão

meramente terminológica. Por minha parte, entendo que o Direito Internacional Privado,

enquanto ramo do Direito, continua a ser caracterizado essencialmente pelo processo de

regulação indireta, e este processo tanto pode ser realizado por normas de conexão como

por outras normas sobre a determinação do Direito aplicável. A expressão norma de

conflitos mostra-se adequada para designar o conjunto das normas que realizam este

processo de regulação indireta. Por conseguinte, adiro à posição segundo a qual a

característica essencial das normas de conflitos é o seu caráter remissivo ou de regulação

indireta.

d. Norma formal: as normas de conflitos que integram o sistema de Direito de Conflitos são

normas fundamentalmente formais. As normas de conflitos são formais quando na

designação do Direito aplicável não atendam ao resultado material a que conduz a aplicação

de cada uma das leis em presença. Na expressão de Cavers, no método conflitual o juiz

atuaria de olhos vendados. O caráter formal tem que ver com o conteúdo valorativo das

normas de conflitos. Isto é particularmente claro no caso das normas de conflitos que sejam

normas de conexão. A justiça da conexão atende ao significado dos laços que a situação

estabelece com os Estados em presença e não às soluções materiais ditadas pelos Direitos

destes Estados. Por isso a justiça de conexão é também contraposta, como justiça formal ou

conflitual, à justiça material, que diz respeito à solução material do caso. As normas de

conflitos que não sejam normas de conexão podem ou não ser fundamentalmente formais.

Uma norma de conflitos que mandasse aplicar o Direito que dá a melhor solução material

ao caso (na linha da chamada better rule approach) não seria formas, porque a determinação do

Direito aplicável seria feita com base em critérios de justiça material. Na ordem jurídica

portuguesa não vigora uma norma de conflitos com este conteúdo. Mas há normas de

conflitos vigentes que atendem até certo ponto à justiça material, com se verá em seguida. O

formalismo do Direito de Conflitos tem limitações:

i. O Direto de Conflitos nunca é absolutamente formal, porque não se

desinteresse completamente do resultado a que conduz a aplicação do Direito

competente. O Direito de Conflitos reserva em certo controlo sobre o resultado

material através da cláusula de ordem pública internacional, consagrada no artigo

22º. CC. A ordem pública internacional permite afastar o resultado a que conduz o

Direito estrangeiro competente quando ele for manifestamente incompatível com

normas e princípios fundamentais de ordem jurídica portuguesa;

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ii. Há normas de conflitos materialmente orientadas, que atendem ao resultado

material. Algumas normas do sistema de Direito de Confltios favorecem um certo

resultado material. Estas normas não prescindem da ideia de conexão, pois utilizam

elementos de conexão. Mas estão formuladas de modo a que de entre as leis

designadas por dois ou mais elementos de conexão será aplicada a que permita salvar

a validade do negócio ou tomar medidas de proteção do menor, por exemplo. Por

conseguinte, o conteúdo valorativo destas normas combina elementos de justiça da

conexão e de justiça material;

iii. O Direito de Conflitos realiza até certo ponto uma função modeladora na

disciplina das situações transnacionais, mesmo quando atua simplesmente

através de normas de conflitos tradicionais. Esta função modeladora tem duas

vertentes:

1. A interpretação da norma de conflitos comanda a resolução de

muitos problemas suscitados pela concretização dos elementos de

conexão e pela conjugação das ordens jurídicas chamadas a reger

diferentes aspetos da mesma situação;

2. O Direito dos Conflitos também não se desinteressa do ajustamento

da solução material às circunstâncias do caso, atendendo à

especificidade do caráter internacional da situação, dentro dos

limites em que tal for permitido ao órgão de aplicação.

Enfim, em ligação com a função modeladora do Direito de Conflitos seja

complementado, com respeito a certas questões bem delimitadas, pela formulação

de regras materiais de Direito Internacional Privado ou pela remissão para normas

de Direito comum interno.

Planos, processos e técnicas de regulação das situações transnacionais

1. Preliminares: quanto aos processos de regulação das situações transnacionais é tradicional

contrapor o processo conflitual, ou de regulação indireta, a determinados processos materiais

ou diretos, designadamente:

a. A aplicação direta do Direito material comum;

b. A criação de Direito material especial de fonte interna;

c. A unificação internacional do Direito material.

A distinção entre regulação indireta e direta deve fazer-se em função da necessidade ou

desnecessidade de uma valoração conflitual. A valoração conflitual consiste tradicionalmente

na avaliação do elemento de conexão mais adequado para a determinação do Direito

aplicável a uma categoria de situações que a uma questão jurídica com vista a formular uma

norma de conflitos; mas pode consistir também numa apreciação casuística dos laços que

uma situação concreta apresenta com os Estados envolvidos ou num juízo sobre a adequação

material de determinado Direito para reger uma determinada categoria de situações. O

processo indireto ou conflitual consiste no recurso a uma norma de conflitos ou mais

amplamente, a uma valoração conflitual, para a determinação do Direito material aplicável.

Ao passo que no processo direto ou material se procede diretamente à aplicação do Direito

material, i.e., sem valoração conflitual. Só em três casos se verifica uma regulação direta de

situações transnacionais no seio da ordem jurídica estadual:

a. Quando o Direito material comum do foro for aplicado a quaisquer situações

independentemente de comportarem elementos de estraneidade,

independentemente dos laços que apresentem com o Estado local;

b. Quando soluções ad hoc ou Direito material especial de fonte interna forem

aplicados a situações que comportam determinados elementos de

estraneidade, independentemente dos laços que apresentem com o Estado

local;

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✒ c. Quando Direito material especial de fonte supraestadual for aplicado a

situações transnacionais, independentemente de uma conexão entre estas

situações e um dos Estados em que vigora esse Direito.

A regulação das situações transnacionais na ordem jurídica estadual é, em regra, indireta. A

grande maioria dos ditos métodos de regulação material são técnicas de regulação indireta.

Por conseguinte, a assinalada pluralidade de métodos tem mais que ver com uma pluralidade

de fontes de regulação e de técnicas de regulação conflituais do que com um verdadeiro

pluralismo metodológico. Mas há um outro aspeto que é essencial para o enquadramento

dos processos e técnicas de regulação das situações transnacionais: o plano em que opera

esta regulação. Na ótica tradicional, as situações transnacionais são sempre reguladas na

esfera de uma ordem jurídica estadual e, por conseguinte, o único plano de regulação

considerado é o que corresponde à ordem jurídica estadual. Uma ordem jurídica tem, entre

outras:

a. Dimensão normativa: as situações transnacionais são reguladas numa ordem

jurídica estadual quando as normas e princípios em primeira linha aplicáveis são

aqueles que vigoram nesta ordem jurídica;

b. Dimensão institucional: as situações transnacionais são reguladas numa ordem

jurídica estadual quando os órgãos competentes para a aplicação do Direito a estas

situações pertencem ao respetivo Estado.

Em termos práticos, decorre da ótica tradicional que as partes das situações transnacionais

devem orientar-se exclusivamente pelas normas e princípios vigentes nas ordens jurídicas

estaduais conectadas com a situação, em especial pelas normas e princípios aplicáveis pelos

tribunais estaduais que forem internacionalmente competentes. A tarefa do nosso advogado

poderá complicar-se se houver mais de uma jurisdição internacionalmente competente.

Neste caso, deverá ter em conta os tribunais conflituais das diferentes jurisdições estaduais

competentes que podem divergir entre si e atribuir competência a leis diferentes. Esta

avaliação pode ser relevante, designadamente, para decidir qual a jurisdição estadual que, na

perspetiva do seu cliente, é mais conveniente para a propositura da ação. Seja como for,

decorre desta ótica transnacional que o único plano de regulação considerado é o que

corresponde à ordem jurídica estadual: o Direito Internacional Público, o Direito da União

Europeia ou o Direito Autónomo do Comércio Internacional (lex mercatoria) só relevam, para

a regulação de situações transnacionais, no quadro de uma receção ou de uma remissão

operada por determinada ordem jurídica estadual. A evolução entretanto verificada, porém,

torna necessário atender à regulação de situações transnacionais no plano do Direito

Internacional Público, do Direito da União Europeia e do Direito Autónomo do Comércio

Internacional.

2. Regulação pelo Direito Estadual: a. Aspetos gerais. Regulação pelo sistema de Direito de Conflitos: entende-se

por regulação pelo Direito estadual aquela que opera na esfera de uma ordem

jurídica estadual. Isto significa que a situação é em primeira linha regulada pelo

Direito vigente na ordem jurídica estadual em causa e que este Direito é aplicado

pelos tribunais estaduais ou por outros órgãos estaduais de aplicação do Direito. Na

medida em que numa ordem jurídica estadual vigorem, a par das normas de fonte

interna, normas de fontes supraestaduais, esta regulação pode ser feita tanto por

normas internas, como por normas internacionais ou europeias. É o que se verifica

com a ordem jurídica portuguesa. Tradicionalmente todas as situações

transnacionais eram reguladas na ordem jurídica estadual pelo sistema de Direito de

Conflitos. Em ordem jurídicas como a portuguesa, o sistema de Direito dos

Conflitos é formado essencialmente por um conjunto de normas de conflitos

bilaterais (i.e., que remetem para o Direito do foro como para o Direito estrangeiro)

e de normas sobre a interpretação e aplicação destas normas bilaterais. No Direito

português estas normas são, em geral, de fonte legal. Na atualidade, em matéria de

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Direito pessoal, as situações transnacionais continuam a ser na sua generalidade

reguladas na esfera de uma ordem jurídica estadual. O mesmo não se pode dizer

com respeito às relações comerciais internacionais e, em especial, no que toca aos

contratos comerciais internacionais. Por outro lado, no seio da ordem jurídica

estadual surgiram alternativas à regulação pelo sistema de Direito de Conflitos.

Sublinhe-se, novamente, que não se trata de uma sequência de processos de

regulação, mas de técnicas de regulação. Processos de regulação são, em rigor,

apenas dois:

i. A regulação direta, ou material; e

ii. A regulação indireta, ou conflitual.

b. Aplicação direta do Direito material comum: considera-se, como primeira

alternativa ao Direito de Conflitos, a regulação das situações transnacionais

mediante a aplicação direta do Direito material comum. Neste caso, as situações

internacionais seriam reguladas como se de situações internas se tratasse. Trata-se

de uma técnica de regulação direta que prescinde de normas de conflitos. Esta

técnica tem uma vantagem óbvia: é a via mais fácil para os órgãos de aplicação do

Direito que, além de não terem de aplicar o Direito de Conflitos, estão mais

familiarizados com o Direito material interno do que com Direito estrangeiro. Mas

as desvantagens desta técnica são menos evidentes. Esta técnica comprometeria a

continuidade das situações transnacionais, colocando um risco a segurança jurídica

e a harmonia internacional de soluções, e seria inconcebível com o Direito

Internacional Público. Com efeito, o Direito aplicável não seria previsível, porque

variaria consoante o Estado em que a questão se colocasse. Isto conduziria à

incerteza sobre as situações jurídicas existentes. O que poderia levar à frustração de

expectativas objetivamente fundadas dos interessados, em contradição com o

princípio da confiança. Por acréscimo, esta técnica fomentaria o forum shopping. Claro

que enquanto houver divergências entre os Direitos de Conflitos dos diferentes

Estados há uma certa possibilidade de forum shopping. Mas ele seria muito facilitado

se os tribunais de cada Estado aplicassem sempre o seu Direito interno. Enfim, a

exclusiva aplicação do Direito material do foro seria incompatível com o Direito

Internacional Público que obriga os Estados a assegurar aos estrangeiros um padrão

mínimo de proteção. Na verdade, tal levaria a negar, injustificadamente, direitos

adquiridos pelos estrangeiros segundo Direito estrangeiro (designadamente direitos

constituídos no estrangeiro).

c. Criação de um Direito material especial de fonte interna: em lugar de aplicar o

seu Direito material comum, os Estados podem criar um Direito material especial

aplicável exclusivamente às relações transnacionais. O Direito material especial

encontra precedente no ius gentium romano. Quando os outros provos da península

itálica conquistada e, depois, com os povos da bacia do Mediterrâneo, os litígios

entre estrangeiros – peregrinos – e entre estrangeiros e romanos, em Roma, vêm a

ser decididos pelo pretor peregrino segundo um Direito romano especial por ele

criado. Este Direito não se distingue do Direito romano comum – o ius ciuile – pela

estrutura e fonte das suas normas mas sim pela especialidade do seu objeto. O ius

gentium é um corpo de normas materiais só aplicável às relações internacionais, e que

se pretendia fundado na naturalis ratio (razão natural). O ius gentium regulava

sobretudo o tráfico de bens e serviços. Não era um sistema jurídico completo. As

questões de Direito da Família e das Sucessões já não seriam submetidas a este

Direito material especial mas, provavelmente, a algo semelhante à lei pessoal dos

estrangeiros. Genericamente, esta técnica de regulação oferece a vantagem de uma

maior adequação à especificidade das relações internacionais. Esta especificidade é

bastante visível no domínio do tráfico corrente de bens e serviços, designadamente

as cláusulas específicas dos contratos internacionais, os problemas específicos do

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✒ comércio à distância e a prossecução pelos Estados de políticas jurídicas específicas

do comércio internacional. Mas até que ponto constitui este Direito material especial

uma alternativa ao sistema de Direito dos Conflitos? O Direito material de fonte

interna só constituirá uma técnica de regulação direta se for aplicável a quaisquer

situações que comportem elementos de estraneidade independentemente de uma

ligação com o Estado do foro. Ora, neste caso, o Direito material especial de fonte

interna apresente todas as desvantagens que foram assinaladas a respeito da

aplicação direta do Direito material comum. Se esta técnica de regulação direta é de

rejeitar como alternativa global ao processo conflitual, já nada obsta a que

relativamente a certas questões bem delimitadas se possa justificar a formulação de

normas de Direito material especial diretamente aplicável. Poderemos designá-las

por normas de Direito Internacional Privado material. O recurso a normas de

Direito Internacional Privado material justifica-se nos casos excecionais em que a

atuação do Direito de Conflitos não permite alcançar uma solução adequada. Isto

pode dever-se seja a problemas gerados pela técnica conflitual seja à especificidade

da situação transnacional em causa. Noutros sistemas, também se recorreu a

soluções de Direito Internacional Privado material para os casos em que o

funcionamento do Direito de Conflitos conduz a contradições insanáveis entre os

diferentes Direitos chamados a reger diversos aspetos da mesma situação. Em regra,

como se assinalou, o Direito material especial vê a sua aplicação depender de uma

ligação com o Estado do foro. Trata-se, então, de uma das técnicas de regulação

indireta, que não prescinde de normas de conexão. No quadro da regulação indireta,

a aplicabilidade do Direito material especial pode depender do sistema de normas

de conflitos ou de normas de conexão especiais. No primeiro caso, diz-se que o

Direito material especial é dependente. O Direito material especial de aplicação

dependente não constitui qualquer alternativa à regulação pelo sistema de Direito de

Conflitos. A única especialidade está em que o objeto da remissão operada pelo

Direito de Conflitos, quando este remete para o Direito do foro, não é Direito

material comum mas Direito material especial. Diz-se independente o Direito

material especial cuja aplicação depende de normas de conexão especiais. Na

atualidade, o Direito material especial é, em regra, de aplicação independente. Este

Direito material especial, como assinala Wengler, delimita o seu âmbito de aplicação

no espaço através de dois pressupostos:

i. Uma conexão com um Estado estrangeiro (elemento de

estraneidade);

ii. Uma conexão com o Estado do foro: esta conexão é definida por normas

de conexão ad hoc, i.e., normas de conflitos unilaterais que se reportam a

normas ou conjunto de normas materiais individualizadas.

A tendência de evolução mais recente não se tem mostrado favorável à elaboração

de corpos de Direito material especial de fonte interna, que constituam uma

alternativa à aplicação do Direito material comum por via do sistema de Direito de

Conflitos. Os esforços têm sido principalmente dirigidos à criação de Direito

material unificado ou de modelos de regulação. O que se verifica é, antes, o

desenvolvimento de certas normas de Direito material especial relativamente a

questões bem delimitadas que limitam ou complementam o funcionamento do

sistema de Direito de Conflitos e que, em certos casos, constituem um instrumento

de intervenção, económica do Estado nas relações privadas internacionais. De

harmonia com o anteriormente exposto, podemos agrupar estas normas de Direito

material especial em dois grupos:

i. Normas de aplicação dependente do sistema de Direito de Conflitos;

ii. Normas cuja aplicação resulta de conexões especiais.

Direito Internacional Privado

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§

d. Unificação internacional do Direito material aplicável: temos agora em vista a

unificação internacional do Direito material aplicável, principalmente por via de

Convenções Internacionais. Para a criação de Direito material de fonte convencional

têm contribuído muito a Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial

Internacional (CNUDCI) e o Instituto Internacional para a Unificação do Direito

Privado (UNIDROIT). Para averiguar do significado desta unificação internacional

para a regulação das situações transnacionais é fundamental distinguir entre

diferentes métodos de unificação internacional; que, tradicionalmente, são três:

i. A uniformização: consiste na criação, por uma fonte supraestadual, de

Direito uniforme, i.e., Direito aplicável tanto nas relações internas como

nas internacionais. Dentro do seu âmbito material de aplicação, o Direito

uniforme substitui o Direito comum de fonte interna. Nas matérias

reguladas pelo Direito uniforme, cessa ou suspende-se a vigência do Direito

comum interno. É o que se verifica com as Convenções de Genebra

contendo:

1. Lei Uniforme em Matéria de Letras e Livranças (1930);

2. Lei Uniforme em Matéria de Cheques (1931).

Estas Convenções uniformizam o Direito material aplicável. Não devem

ser confundidas com as Convenções de Genebra sobre:

3. Os conflitos em matéria de letras e livranças (1930);

4. Os conflitos em matéria de cheques (1931).

Estas últimas Convenções unificam o Direito de Conflitos, são fonte de

Direito Internacional Privado e não de Direito material aplicável. Deve

observar-se que a vigência das leis uniformes nas ordens jurídicas dos

Estados envolvidos não elimina o problema da determinação do Direito

aplicável, por haver matérias que não são reguladas por estas leis e por terem

surgido orientações jurisprudenciais divergentes quanto à sua interpretação

e integração. As Convenções Internacionais têm sido a principal fonte de

Direito uniforme. Mas não são a única. Também vigora na ordem jurídica

portuguesa Direito uniforme de fonte europeia.

ii. A unificação: consiste na criação, por uma fonte supraestadual, de Direito

material unificado, i.e., Direito material especial de fonte supraestadual. Ao

lado do Direito comum de fonte interna passa a vigorar na ordem interna

um Direito especial aplicável às situações internacionais.

iii. A harmonização: traduz-se no estabelecimento de regras ou princípios

fundamentais comuns. É um método com objetivos mais modestos que a

uniformização ou a unificação. Não se visa estabelecer um regime idêntico

nos diversos sistemas nacionais, mas tão-somente aproximar estes regimes.

A harmonização tem instrumentos específicos tais como:

1. Leis modelo: corpos de regras uniformes propostos ou

recomendados para adoção no Direito interno ou para que a

legislação interna neles se inspire;

2. Diretivas europeias: atos normativos de Direito da União

Europeia que vinculam os Estados Membros quanto ao resultado

a atingir, mas deixam aos membros dos Estados a escolha da forma

e dos meios para a escolha da forma e dos meios para o realizar no

âmbito da ordem jurídica interna.

Além destes instrumentos específicos, existem modelos de regulação que

frequentemente desempenham outras funções, mas também constituem

um instrumento de harmonização. É o caso de:

Luís de Lima Pinheiro

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✒ 3. Princípios: conjunto sistematizado de regras elaboradas numa

base predominantemente comparativa, em que o legislador

nacional, europeu ou internacional se pode inspirar;

4. Outros métodos promovidos por organizações internacionais.

iv. Criação de Direito material optativo de fonte supraestadual: trata-se

agora de regimes privativos de situações transnacionais cuja aplicação

depende de uma opção dos interessados. O Direito comum continua a ser

aplicável não só às situações internas mas também às situações

transnacionais em que os interessados não optem pela aplicação do Direito

especial. Os instrumentos desta natureza que vigoram na ordem jurídica

portuguesa são principalmente de fonte europeia.

Passe-se agora à apreciação do significado destes métodos para a regulação das

situações transnacionais. Quanto à harmonização, é bom de ver que em nada vem

alterar o normal funcionamento do sistema de Direito dos Conflitos, uma vez que

não elimina as diferenças entre os ordenamentos em presença, limitando-se a

atenuar estas diferenças mediante uma aproximação das normas de fonte interna

que neles vigorem. No que se refere ao Direito uniforme e ao Direito unificado,

importa distinguir, em primeiro lugar, conforme a aplicação destes Direitos depende

ou não do sistema de Direito de Conflitos. Se depende do sistema de Direito de

Conflitos, trata-se de uma regulação de situações transnacionais por meio deste

sistema. A única especialidade está em que o objeto da remissão operada pelo

Direito e Conflitos não é constituído por normas materiais internas mas por normas

materiais supraestaduais. É o que se verifica, em regra, com o Direito uniforme. Se

a aplicação desse Direito não depende do sistema de Direito de Conflitos, é o ato

supraestadual que o cria que define os seus pressupostos de aplicação no espaço. É

o que sucede, em regra, com o Direito unificado. A este respeito interessa ter

presente o conceito de esfera espacial de aplicação da regulação convencional. As

Convenções de Unificação delimitam as situações reguladas pelo Direito unificado

em atenção à matéria jurídica em causa. Trata-se então do domínio material de

aplicação da Convenção. Outra coisa é delimitar as situações reguladas em função

das suas conexões especiais, i.e., dos laços que estabelecem com Estados

contratantes. Geralmente as Convenções de Direito Material Unificado delimitam a

sua esfera espacial de aplicação prevendo, por um lado, laços com mais de um

Estado soberano e, por outro, que algum ou alguns destes laços se verifiquem com

um Estado contratante. A ideia de conexão surge assim a dois níveis: na definição

do critério de internacionalidade relevante e na exigência de uma ligação apropriada

com um Estado contratante. Se a aplicação do Direito unificado depende de uma

conexão com um Estado contratante, definida por normas de conexão espaciais,

trata-se de um processo de regulação indireta. Estas normas de conexão especiais

são normas de conflitos perante o conceito de normas de conflito atrás adotado. Há,

em todo o caso, uma diferença de técnica de regulação relativamente ao sistema de

Direito de Conflitos. A aplicabilidade do Direito unificado resulta da atuação de

normas de conexão ad hoc, contidas numa Convenção internacional, que se reportam

às normas unificadas desta Convenção. Esta técnica de regulação apresenta

inegáveis vantagens:

i. Primeiro, o Direito material especial de fonte supraestadual atende à

especificidade das situações transnacionais e o processo da sua elaboração

tende a conduzir à adoção das soluções mais adequadas;

ii. Segundo, desde que uma situação transnacional caia diretamente dentro da

esfera espacial e do domínio material da aplicação do regime convencional

elimina-se o problema da escolha do sistema local aplicável, com todas as

dificuldades que acarreta. Em especial, a atividade dos tributos é facilitada

Direito Internacional Privado

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§

não só porque evita estas dificuldades mas também porque é sempre

aplicável Direito vigente na ordem jurídica interna;

iii. Terceiro, os Estados contratantes assumem uma posição uniforme sobre a

regulação jurídica da situação. Por conseguinte, desde que todos os estados

em contacto com a situação sejam partes na Convenção internacional,

garante-se a harmonia internacional de soluções e a previsibilidade das

soluções;

iv. Quarto, como o regime material aplicável, nos diferentes Estados

contratantes, é o mesmo, facilita-se o conhecimento da disciplina jurídica

da situação por parte dos interessados, diminuindo os custos de transação.

Enfim, a criação de Direito uniforme é uma técnica de regulação particularmente

adequada a situações que surgem em conexão com meios de comunicação global,

como a internet, ou que de outro modo apresentam contactos relevantes com um

número elevado de Estados. Tudo considerado, parece uma solução ótica que tende

a garantir a justiça, designadamente a adequação às situações transnacionais, e a

segurança jurídica: certeza na determinação do regime jurídico-material aplicável e

facilidade no conhecimento deste regime. Na realidade, porém, esta solução tem um

alcance limitado.

i. Por razões práticas, o processo de unificação internacional do Direito material é moroso,

difícil e tem custos elevados;

ii. A supressão dos conflitos de leis, i.e., a desnecessidade de determinar o Direito

nacional aplicável, só seria atingida se a unificação fosse:

1. Universal: se abrangesse todos os Estados. Não é isso que se

verifica. Nem todos os Estados são partes nas Convenções de

Direito material unificado.

2. Geral: se abrangesse todas as áreas jurídicas. São limitadas as áreas

jurídicas objeto da unificação. A unificação é mais difícil em

domínios como o Direito Civil das pessoas, o Direito da Família e

o Direito das Sucessões. Estes ramos do Direito são mais sensíveis

aos valores ético-jurídicos de cada comunidade estadual, e a que

cada Estado não está disposto a renunciar, mesmo na regulação das

relações transnacionais.

As normas de Direito material unificado suscitam, naturalmente, problemas de

interpretação. A interpretação do Direito material unificado deve ser autónoma

relativamente ao Direito material dos Estados contratantes e obedecer aos critérios

de interpretação aplicáveis aos tratados internacionais. Até onde for possível, o

conteúdo atribuído a um conceito utilizado numa norma convencional deve ser o

mesmo qualquer que seja o órgão estadual de aplicação. As lacunas da regulação

convencional devem ser preenchidas, em primeira linha, através da aplicação

analógica de normas da Convenção e, na falta de analogia, com recurso aos

princípios gerais que inspiram o regime convencional. Mas não é possível evitar, em

absoluto, que venham a surgir soluções divergentes entre os tribunais de diferentes

Estados e, até, a firmar-se jurisprudência em torno a soluções divergentes. Quando

isto se verifique, não se deverá atender à solução jurisprudencialmente consagrada

no ordenamento competente segundo o sistema de Direito dos Conflitos? Creio que

se deve distinguir conforme a jurisdição competente for:

i. Estadual: parece que a resposta, aqui, deve ser afirmativa. Neste sentido

pesa o interesse das partes, que se devem poder orientar pelo sistema

nacional do Estado que apresenta o laço mais significativo com a situação.

É também a posição que mais favorece a harmonia internacional de

soluções.

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✒ ii. Arbitral: só será pertinente atender à orientação de uma particular

jurisprudência nacional quando as partes tenham escolhido o respetivo

sistema jurídico para reger a situação. Não sendo este o caso, o tribunal

arbitral deverá procurar a solução mais apropriada atendendo,

designadamente, aos princípios comuns aos sistemas dos Estados

conectados com a situação, aos princípios dos contratos comerciais

internacionais formulados pelo UNIDROIT e à jurisprudência arbitral.

Por último, a relação do Direito material de Direito de Conflitos também pode ser

variável e suscita dúvida em alguns casos. Em princípio, a aplicabilidade destes

regimes especiais não depende do sistema de Direito de Conflitos, mas da

verificação de pressupostos autónomos que incluem necessariamente um domínio

material de aplicação e uma opção dos interessados. Entre estes pressupostos pode

também contar-se laços relevantes com mais de um Estado, que exprimem um

determinado critério de internacionalidade, como sucede com os mesmos

regulamentos europeus.

e. Regulação por normas de Direito comum do foro autolimitadas e relevância

de normas imperativas estrangeiras. Remissão: referi-me atrás à existência de

normas de Direito material especial de fonte interna cuja aplicação, por resultar de

normas de conexão especiais, é independente do sistema de Direito de Conflitos. A

moderna doutrina internacional privatista tem chamado a atenção para a existência

de normas de Direito Comum cuja aplicação a situações transnacionais também não

depende do sistema de Direito dos Conflitos. Fala-se a este respeito de normas

autolimitadas e de normas de aplicação imediata ou necessária. Diz-se autolimitada

aquela norma material que, apesar de incidir sobre situações reguladas pelo Direito

Internacional Privado, tem uma esfera de aplicação no espaço diferente da que

resultaria da atuação do sistema de Direito de Conflitos. Isto pode resultar, em

primeiro lugar, de esta norma material ser acompanhada de uma norma de conflitos

especial (explícita ou implícita). Em certos sistemas nacionais admite-se que a

autolimitação também possa ser o produto de uma valoração casuística, feita pelo

intérprete face ao conjunto das circunstâncias do caso. Perante sistemas jurídicos

como o português, porém, a possibilidade de estabelecer uma autolimitação com

base numa valoração casuística depende da revelação de uma lacuna que deve ser

integrada mediante a criação de uma solução conflitual ad hoc e é, por conseguinte,

excecional. A regulação por normas autolimitadas configura uma técnica de

regulação das situações transnacionais em que o sistema de Direito de Conflitos é

substituído por normas de conflito ad hoc ou por uma valoração conflitual casuística.

A discussão sobre as normas autolimitadas também veio suscitar a questão de saber

e em que termos deverá ser dada relevância a normas autolimitadas de

ordenamentos estrangeiros que não são os chamados pelo sistema de Direito de

Conflitos a regular a questão. Em minha opinião, esta questão deve ser colocada em

termos mais amplos: o da relevância de normas imperativas estrangeiras, que não

estão integradas no ordenamento aplicável segundo o sistema de Direito de

Conflitos, quer sejam ou não autolimitadas.

f. Reconhecimento de situações definidas perante uma ordem jurídica

estrangeira: foi atrás assinalado que o Direito Internacional Privado também regula

as situações transnacionais mediante o reconhecimento autónomo das situações

jurídicas fixadas por decisão estrangeira. Sublinhei que o processo de regulação

operado por via do reconhecimento de efeitos de decisões estrangeiras ainda é em

um processo conflitual ou indireto. Dão-se aqui por reproduzidas as considerações

que então foram formuladas a este respeito. Diversos autores, por umas vezes

inspirados em aplicações da teoria dos direitos adquiridos ao Direito dos Conflitos,

ou, mais recentemente, por algumas decisões do TJUE (Tribunal de Justiça da União

Direito Internacional Privado

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§

Europeia), e por um princípio do reconhecimento mútuo que lhes estaria subjacente,

estendem esta técnica de regulação a situações constituídas ou consolidadas numa

ordem jurídica estrangeira – ou, pelo menos, na ordem jurídica de outro Estado da

União Europeia –, independentemente de uma decisão estrangeira. Numa primeira

aproximação, a ideia geral é a seguinte: a partir do momento em que a situação se

constitui ou consolida numa ordem jurídica estrangeira, o Estado do foro deve

reconhecer esta situação, sem fazer depender esse reconhecimento da lei

competente segundo o Direito de Conflitos gera. Esta técnica de regulação

apresenta duas diferenças fundamentais relativamente à consubstanciada pelo

sistema de Direito de Conflitos:

i. Por um lado, esta técnica de regulação só opera quando uma situação

privada foi previamente definida perante uma ordem jurídica

estrangeira. Por conseguinte, esta técnica de regulação nunca pode

constituir uma alternativa global ao sistema de Direito de Conflitos visto

que é inaplicável quando é apreciada uma situação que não foi previamente

definida ou consolidada perante uma ordem jurídica estrangeira;

ii. Por outro lado, em lugar das normas de conflitos gerais, são atuadas

uma categoria especial de regras remissivas. As normas de

reconhecimento só remetem para o Direito estrangeiro e condicionam a sua

aplicação à produção de um efeito ou de uma determinada categoria de

efeitos. As normas de reconhecimento autónomo de efeitos de decisões

estrangeiras determinam a aplicação do Direito do Estado de origem da

decisão aos efeitos da decisão. Nos outros casos, as normas de

reconhecimento determinam a aplicação, a constituição das situações, do

Direito perante o qual estas se constituíram ou consolidaram.

Pelas razões que serão melhor esclarecidas mais adiante, uma técnica de

reconhecimento com este alcance não deve ser acolhida. A técnica conflitual de

reconhecimento deve ser reservada aos efeitos de decisões jurisdicionais e de certas

decisões administrativas estrangeiras, operante então a par do sistema de Direito de

Conflitos, e à tutela da confiança depositada na válida constituição de certas

categorias de situações seguindo o Direito de Conflitos de um Estado estrangeiro

que apresenta determinada ligação especialmente significativa com a situação, com

base em normas especiais que completam esse sistema.

g. Conclusões: a primeira conclusão, já antecipada é a de que esta regulação é, em

regra, indireta ou conflitual. A aplicação direta de Direito material só se justifica,

excecionalmente, relativamente a certas regras de Direito material especial, que

designei por Direito Internacional Privado material. Por conseguinte, as alternativas

que se colocam ao sistema de Direito de Conflitos dizem fundamentalmente

respeito à técnica de regulação conflitual. Segundo, só o Direito material unificado

constitui uma alternativa global ao sistema de Direito de Conflitos. Mas embora se

registe um inegável progresso no processo de unificação internacional do Direito

material, principalmente no domínio do comércio internacional, o alcance do

Direito material unificado é limitado, constituindo ainda o sistema de Direito de

Conflitos a principal técnica de regulação das situações transnacionais. A atuação do

sistema de Direito de Conflitos é não só uma solução de recurso, perante o caráter

parcial e fragmentário do Direito material unificado, mas também a resposta mais

adequada naquelas matérias em que as divergências entre os sistemas jurídicos

resultam de diferentes valorações ético-jurídicas e, mais em geral, do respeito da

identidade cultural das diferentes sociedades estaduais. Por último, o

reconhecimento de situações definidas perante uma ordem jurídica estrangeira

constitui uma técnica de regulação conflitual, que no caso do reconhecimento

autónomo de decisões estrangeiras se coloca a par do sistema de Direito de Conflitos,

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✒ e noutros casos complementa esse sistema, caracterizando-se por pressupor a

definição da situação jurídica por um ordenamento estrangeiro e por utilizar normas

de reconhecimento.

3. Regulação pelo Direito Internacional Público e pelo Direito da União Europeia:

a. Regulação pelo Direito Internacional Público: entende-se por regulação pelo

Direito Internacional Público aquela que opera na esfera da ordem jurídica

internacional. A situação é regulada na ordem jurídica internacional quando lhe for

imediatamente aplicável Direito Internacional Público. As situações de que

tradicionalmente se ocupa o Direito Internacional Privado são situações que, apesar

da sua internacionalidade, relevam primariamente nas esferas institucional e de

regulação dos Estados. Inscrevem-se na esfera institucional dos Estados porque

órgãos de aplicação do Direito que são chamados a aplica-las são órgãos estaduais.

Relevam primariamente da esfera de regulação dos Estados porque não são

imediatamente reguladas por norma de Direito Internacional. Os sujeitos destas

situações não são sujeitos de Direito Internacional e, portanto, não podem ser

destinatários das suas normas. Mas a par destas situações surgem agora outras que

ao mesmo tempo que colocam um problema de determinação do Direito aplicável

são relevantes na ordem jurídica internacional. Dado o caráter evolutivo da ordem

jurídica internacional, não parece haver limites materiais à regulação, por este ramo

do Direito, de relações privadas internacionais, nem uma delimitação rígida entre

situações reguladas na ordem jurídica internacional. É indiscutível que as situações

transnacionais relevam na ordem jurídica internacional quando os particulares

sujeitos destas situações têm acesso a jurisdições internacionais e justamente um dos

elementos mais importantes a ter em conta para afirmar a subjetividade internacional

dos particulares. Segundo a conceção tradicional, o acesso às jurisdições

internacionais e reservado aos Estados. Assim, o artigo 34.º, n.º1 ETIJ determina

que só os Estados podem ser partes em causas perante o tribunal. Mas esta conceção

tradicional tem perdido terreno, quer face do Direito Internacional Público geral,

quer perante o Direito Internacional Público convencional e derivado. Na atualidade,

abstraindo da responsabilidade penal internacional os particulares podem ser partes

na arbitragem quási-internacional pública e em algumas jurisdições de organizações

internacionais em matéria de direitos fundamentais. O que é a arbitragem quási-

internacional pública? Trata-se de uma arbitragem organizada pelo Direito

Internacional mas tendo por objeto litígios emergentes de relações estabelecidas

com particulares. Os particulares têm acesso direto a estas jurisdições, que podem

apreciar a título principal os direitos e obrigações dos particulares, e que não aplicam

necessariamente, ao fundo da causa, o Direito Internacional. Portanto, coloca-se um

problema de determinação do Direito aplicável relativamente à questão principal.

Perante estas arbitragens parece seguro que o Direito Internacional Público mostra

vocação para regular certas situações transnacionais e que aos particulares sujeitos

destas relações é conferida uma personalidade jurídica internacional limitada. Passe-

se agora às relações com organizações internacionais. Em alguns casos, as jurisdições

internacionais estabelecidas pelos atos constitutivos de organizações internacionais,

ou por atos dos seus órgãos fundados nos atos constitutivos, para conhecerem de

litígios emergentes de relações estabelecidas com particulares. Também se verifica o

acesso de particulares a jurisdições internacionais em caso de violação por Estados

contratantes de Convenções em matéria de direitos fundamentais. Não se deve

confundir regulação no plano do Direito Internacional Público com aplicação de

um regime material de Direito Internacional Público. A ordem jurídica internacional

pode regular a situação, ou um aspeto da situação mediante remissão para um

Direito estadual. Inversamente, no plano da ordem jurídica estadual, uma situação

pode ser submetida a normas internacionais. Nestes casos, o Direito Internacional

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§

Público é aplicado por força de uma receção na ordem jurídica interna ou de uma

norma de conflitos vigente na ordem jurídica interna. Os casos de regulação pelo

Direito Internacional Público aqui visados são outros: aqueles em que o Direito

Internacional Público é imediatamente aplicável, independentementeda mediação de

uma ordem jurídica estadual. Importa sublinhar que são ainda limitados os casos em

que situações transnacionais são reguladas imediatamente pelo Direito Internacional

Público. É justamente isto que permite distinguir Direito Internacional Privado de

Direito Internacional Público.

b. Regulação pelo Direito da União Europeia: uma vez que o Direito da União

Europeia constitui uma ordem jurídica autónoma, coloca-se o problema da

relevância direta de situações transnacionais perante esta ordem jurídica em termos

paralelos ao da relevância direta perante a ordem jurídica internacional. O Direito

da União Europeia apresenta uma vocação mais ampla que o Direito Internacional

Público atual para regular imediatamente situações transnacionais. Com efeito,

seguindo o entendimento seguido pelo Tribunal de Justiça da União Europeia

(TJUE), e que parece merecer certo favor na doutrina portuguesa, o Direito da

União Europeia autoexecutório tem eficácia para os particulares independentemente

do Direito interno dos Estados Membros. A seguir-se este entendimento, o Direito

da União Europeia é suscetível de eficácia direta para os particulares e, por

conseguinte, certas relações entre particulares (bem como entre particulares e entes

públicos) podem ser imediatamente conformadas e reguladas pelo Direito da União

Europeia. No entanto, deve reconhecer-se que a relevância das relações entre

particulares na esfera institucional da União Europeia é limitada: as jurisdições

competentes para conhecerem dos litígios emergentes das relações entre particulares

são normalmente estaduais ou arbitrais. Estas jurisdições não estão

hierarquicamente subordinadas ao TJUE. O mecanismo do reenvio prejudicial,

embora faculte, e imponha em certos casos, que o tribunal nacional solicite o

concurso da jurisdição do TJUE com respeito à validade de disposições do Direito

derivado e à interpretação do Direito da União Europeia (artigo 267.º TFUE),

representa ainda uma forma de cooperação entre instâncias nacionais e europeias.

Na verdade, o TJUE não pode anular a decisão do tribunal estadual e o

incumprimento pelo Estado das suas obrigações com respeito à conformação do

Direito interno ou o incumprimento pelo tribunal estadual das suas obrigações só

desencadeia o processo geral previsto nos artigos 258.º e seguintes TFUE, em que

o Estado responde por tais violações do Direito da União Europeia. Para que as

jurisdições estaduais atuassem como órgãos da União Europeia seria necessário que

o seu estatuto fosse definido pelo Direito da União Europeia e que, assim, a

aplicação do Direito da União Europeia decorresse do próprio Direito da União

Europeia e não das normas de receção da Constituição nacional. Embora esta

posição encontre acolhimento na jurisprudência do TJUE e num setor importante

da doutrina, o melhor entendimento, que prevalece entre nós, é o de que na ordem

interna a Constituição nacional tem supremacia sobre o Direito da União Europeia.

Por conseguinte, as jurisdições estaduais, quando aplicam o Direito da União

Europeia fazem-no por força de normas da ordem jurídica estadual (mormente as

normas constitucionais de receção). Creio que este entendimento pode ser mantido

mesmo perante disposições constitucionais como a que consta do artigo 8.º, n,º.4

CRP, e que a situação não foi substancialmente alterada pelo Tratado de Lisboa. Em

suma, a situação atual caracteriza-se por um certo compromisso ou transição entre

o quadro que corresponde ao relacionamento do Direito Internacional derivado

clássico com o Direito interno dos Estados por eles vinculados e o que resulta da

integração das normas jurídicas destes Estados numa ordem jurídica complexa. Em

certos casos, porém, as jurisdições europeias têm competência para decidir litígios

Luís de Lima Pinheiro

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✒ emergentes de relações transnacionais. Com efeito, o TJUE tem competência para

conhecer dos litígios relativos à responsabilidade extracontratual para decidir com

fundamento em cláusula compromissória contante de um contrato de Direito

Público ou de Direito Privado, celebrado pela União ou por sua conta (artigo 272.º

TFUE). Nestes casos, verificamos que um tribunal da União Europeia tem

competência para decidir, a título principal, certas questões transnacionais e que é

facultado o acesso de particulares a esta jurisdição. No entanto, o Direito da União

Europeia não dispõe atualmente de regimes jurídico-materiais aplicáveis a estas

questões. Para a obtenção do critério de decisão do caso o Tratado sobre o

Funcionamento da União Europeia aponta em dois sentidos diferentes. No que toca

à responsabilidade extracontratual, o artigo 340.º, n.º2 TFUE remete para os

princípios gerais comuns aos Direitos dos Estados Membros. No que se refere aos

litígios emergentes de contratos de Direito privado ou de Direito Público celebrados

pela União ou por sua conta, o artigo 340.º, n.º1 TFUE determina que a

responsabilidade contratual da União é regulada pela lei aplicável ao contrato em

causa. Quer isto dizer que cabe ao TJUE determinar o Direito estadual aplicável.

Portanto, nestes casos, a relevância direta de situações transnacionais na ordem

jurídica da União Europeia é plena: estas situações transnacionais são reguladas

imediatamente pelo Direito da União Europeia. Mas, à semelhança do que se verifica

com Direito Internacional Público, as normas europeias imediatamente aplicáveis

são, em princípio, normas de conflitos, que operam uma regulação indireta.

4. Regulação por Direito Autónomo do Comércio Internacional:

a. Aspetos gerais: a formação, no seio de grupos sociais formados por pessoas que se

dedicam profissionalmente ao comércio, de regras e princípios reguladores das

relações que entre si estabelecem é uma constante na História do Direito Comercial

e de todo o Direito relativo ao tráfico corrente de bens e serviços. O que não obsta

a que importância das fontes não-estaduais deste Direito tenha variado de época

para época e que sejam diversas as atitudes que as ordens jurídicas estaduais têm

adotado a seu respeito. O fenómeno é suscetível de se manifestar tanto no comércio

local como nas relações transfronteiriças. Por Direito Autónomo do Comércio

Internacional entendo aquelas regras e princípios aplicáveis às relações do comércio

internacional que se formam independentemente da ação dos órgãos estaduais e

supraestaduais, a nova lex mercatória. Tenho em vista, designadamente, os usos e

costumes do comércio internacional e as regras criadas no âmbito da autonomia

associativa dos operadores do comércio internacional ou por entidades gestoras de

mercados regulamentados de instrumentos financeiros. Naturalmente que estas

regras e princípios podem ser relevantes na ordem jurídica interna. As fontes do

Direito Autónomo do Comércio Internacional podem ser objeto de uma receção na

ordem jurídica interna. Também é concebível que normas de conflitos vigentes na

ordem jurídica interna remetam na ordem jurídica de certas questões para Direito

Autónomo do Comércio Internacional.

b. Conclusões: em primeiro lugar, confirma-se que há um setor importante das

situações transnacionais que, em regra, é objeto de regulação imediata pelo Direito

Autónomo do Comércio Internacional. Este setor corresponde fundamentalmente

aos contratos do comércio internacional. Segundo, esta hipótese verifica-se quando

as partes estipulam uma convenção de arbitragem. Na falta de uma convenção de

arbitragem, os litígios emergentes das relações do comércio internacional são

apreciadas por tribunais estaduais segundo as técnicas de regulação próprias do

Direito Estadual. Não obstante, a regulação imediata pelo Direito Autónomo do

Comércio Internacional não subtrai inteiramente as situações em causa a regulação

pelo Direito Estadual. Isto decorre, por um lado, de haver questões que, por não

serem consideradas arbitráveis, só podem ser apreciadas por tribunais estaduais e,

Direito Internacional Privado

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§

por outro, de os tribunais arbitrais deverem ter em conta as diretrizes emanadas dos

Estados que apresentam um laço especialmente significativo com a arbitragem ou

em que possa previsivelmente ser pedida a execução da sentença.

5. Considerações finais: a indagação realizada permite concluir que o processo de regulação

depende do plano em que a regulação é operada. No plano do Direito estadual, opera-se

uma regulação essencialmente indireta ou conflitual. A regulação direta ou material é

excecional. E apesar dos progressos realizados pela unificação internacional do Direito

material aplicável é ainda o sistema de Direito de Conflitos que desempenha a principal

missão da regulação das situações transnacionais. O panorama é muito diferente no plano

do Direito Internacional Público e do Direito da União Europeia e no plano do Direito

Autónomo do Comércio Internacional. Nestes planos a regulação tanto pode ser direta ou

material como indireta ou conflitual. Nenhuma razão de fundo obriga a que regulação direta

ou material tenha caráter excecional. Mas também se verifica uma diferença importante entre

estes dois planos. No plano do Direito Internacional Público e do Direito da União Europeia

a regulação indireta ou conflitual ainda é regra. Isto relaciona-se com o estádio de

desenvolvimento destes Direitos. Naturalmente que o Direito de Conflitos aplicável não é o

sistema de Direito de Conflitos de um particular Estado, mas um Direito Internacional de

conflitos, que regula indiretamente as situações relevantes na ordem jurídica internacional ou

na ordem jurídica da União Europeia e que é aplicado pelas jurisdições internacionais ou

europeias. No plano do Direito Autónomo do Comércio Internacional, a regulação é em

parte indireta e um parte direta. Regista-se o recurso ao Direito de Conflitos para determinar

o Direito aplicável à situação, mas, concorrentemente, são tomados um consideração os

erros do comércio internacional. O Direito de Conflitos aplicável também não é o sistema

de Direito de Conflitos de um particular Estado. Dentro dos limites que decorrem da tomada

em consideração das diretrizes emanadas dos Estados que têm uma ligação especialmente

significativa com a arbitragem ou em que previsivelmente a decisão possa ter de ser executada,

trata-se de um Direito de Conflitos autónomo, que integra o Direito transnacional da

arbitragem.

Processos e Técnicas de Regulação

Regulação indireta o conflitual

Não se dão soluções aos casos privados internacionais. Conclui-se

apenas que existe uma lei de conflitos que remete para a Lei:

L1 -> Ln

Muitos destes contêm aplicação na regulação direta

Regulação direta ou material

Refere que se tem uma lei a regular o caso e, nisso, surgem várias formas

de regular:

I – Aplicar o Direito Material Comum;

II – Criar e aplicar Direito Material Especial;

III – Unificar o Direito Material.

Planos de Regulação

Plano Estadual Contemplado no Direito de Conflitos da lei do Foro, v.g. CC

Plano Supranacional Divide-se em: I – Direito Internacional Público (Convenções de Haia)

II – Direito da União Europeia (Regulamentos Roma I, II, IV e V)

Plano Autónomo do Comércio Internacional

A nova Lex Mercatoria; v.g. Inconterms

Luís de Lima Pinheiro

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✒ Objeto e função da norma de conflitos

1. Objeto e função das normas de conflitos bilaterais e unilaterais:

a. Generalidades. Normas de conflitos bilaterais e unilaterais: o objeto da norma

é a realidade que a norma regula. Por função da norma pode entender-se o fim que

prosseguem, a sua teleologia. A função que agora se tem em vista é a função jurídica

ou técnico-jurídica: o problema jurídico que a norma tem por missão resolver e o

processo por que o resolve. Para examinar o objeto e a função das normas de

conflitos importa distinguir entre:

i. Normas unilaterais: só determinam a aplicação do Direito do próprio

foro;

ii. Normas bilaterais: tanto remetem para o Direito do foro como para o

Direito estrangeiro.

b. As teses clássicas e da escola nacionalista italiana: para os universalistas, como

também para os primeiros particularistas, o objeto da norma de conflitos são

conflitos de soberanias. Na aplicação de uma lei estrangeira estaria em causa o

reconhecimento da soberania do Estado de onde essa lei promana. Os interesses

que estão em causa seriam interesses dos Estados. A função jurídica da norma de

conflitos é a de resolver estes conflitos de interesses mediante a repartição da

competência legislativa entre Estados. No polo diametralmente oposto, a escola

nacionalista italiana, opõe que as normas de conflitos não têm por objeto resolver

verdadeiros conflitos de leis, dada a impossibilidade de conceber uma norma de

Direito interno com esta função. Na ordem jurídica interna só vigoram as normas

que reconduzem às fontes próprias desta ordem. A norma de conflitos é uma norma

reguladora de relações interindividuais, que nada tem que ver com a repartição das

competências legislativas dos Estados. O objeto da norma de conflitos são as

relações interindividuais. O Direito de Conflitos opera uma regulação especial para

relações interindividuais com certos elementos de estraneidade, que o legislador

entende não dever sujeitar ao Direito comum estrangeiro recebido pela norma de

conflitos do foro. As normas estrangeiras só podem valer na ordem local através de

incorporação na ordem local. Têm de ser nacionalizadas. Seria esta, justamente, a

única função (técnico-jurídica) da norma de conflitos. A norma de conflitos é uma

norma de incorporação.

c. Posição adotada. Objeto da norma de conflitos. Teleologia da norma de

conflitos. Função técnico-jurídica da norma de conflitos em geral: a

construção do nacionalismo italiano sobre o objeto e a função da norma de conflitos

constituiu uma primeira resposta à realidade de um Direito Internacional Privado

que, apesar de ser, à época, principalmente de fonte estadual, tem de remeter tanto

para o Direito do foro como para o Direito estrangeiro. Com efeito, na aplicação ou

não aplicação do Direito estrangeiro não está, em princípio, em causa um problema

de respeito da soberania estrangeira ou de ofensa da soberania estrangeira. Em

primeira linha, trata-se antes de regular uma situação privada, mediante a

determinação da ordem jurídica que vai fornecer a disciplina material aplicável. Ao

chamar o Direito de um Estado a reger a situação, com base num dado elemento de

conexão, a norma de conflitos não vem determinar que, perante o Direito

Internacional Público, só esse Estado tem competência legislativa para regular a

situação. O objeto da norma de conflitos é pois o mesmo que o objeto do Direito

Internacional Privado enquanto ramo de Direito: a situação transnacional. A Escola

de Coimbra (Ferrer Correia) segue um entendimento diferente: o objeto da norma

de conflitos seriam normas materiais, porquanto as normas de conflitos são

encaradas como normas sobre normas e não como normas de regulação indireta.

Também quanto à teleologia da norma de conflitos é certo que os interesses a ter

Direito Internacional Privado

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§

em conta não são só os interesses dos Estados. É a realização da justiça do Direito

Internacional Privado. Os interesses particulares assumem grande importância para

este ramo do Direito. Mas não se pode excluir que na determinação do Direito

aplicável a situações transnacionais entrem em jogo fins gerais da comunidade

política em postos a cargo do Estado e fins de política legislativa que não concernem

só à tutela de interesses particulares. No próprio Direito privado material não estão

apenas em causa interesses particulares. O Direito Internacional Privado não pode

ser alheio à prossecução, na regulação das situações transnacionais, de políticas

estaduais de índole social, económica, ambiental, cultural, designadamente, bem

como de fins políticos em fim estrito. Quanto à função técnico-jurídica, o que há de

comum a todas as normas de conflitos é a regulação das situações transnacionais

mediante um processo conflitual ou indireto. Num segundo momento, surgem

aspetos específicos da função dos diferentes tipos de normas de conflitos:

i. Normas bilaterais;

ii. Normas unilaterais gerais;

iii. Normas unilaterais ad hoc.

Não se concorda com a escola nacionalista italiana quando encara a norma de

conflitos como uma norma de incorporação do Direito estrangeiro, que só se aplica

às situações que são submetidas ao Direito estrangeiro. Desde logo, isto levaria a

negar a existência das normas de conflitos que só remetem para o Direito do foro,

como o são as normas unilaterais. E também não corresponde à realidade que a

norma de conflitos só se aplique às situações que são submetidas ao Direito

estrangeiro, e que, por conseguinte, o Direito material português se aplique

diretamente às restantes situações internacionais. A aplicação do Direito material

português a situações transnacionais também depende, em princípio, da remissão

operada pelo Direito de Conflitos. A função reguladora do Direito de Conflitos é

realizada tanto através da remissão para o Direito estrangeiro como mediante a

remissão para o Direito do foro. Perante o sistema de Direito de Conflitos de base

bilateral, o Direito material do foro surge colocado, em princípio, no mesmo plano

que os Direitos materiais estrangeiros. O sistema de Direito de Conflitos de base

bilateral, ao admitir que as normas de conflitos remetam a disciplina para uma ordem

jurídica estrangeira, reconhece implicitamente que as ordens jurídicas estrangeiras

existem autonomamente, com uma dada esfera espacial de vigência,

independentemente da remissão operada pela norma de conflitos do foro. Por

conseguinte, a necessidade de fundamentar a aplicação do Direito estrangeiro na

ordem interna com base numa proposição jurídica desta ordem não pode confundir-

se com a negação de juridicidade das outras ordens jurídicas.

d. A dupla função técnico-jurídica das normas de conflitos bilaterais: as normas

de regulação indireta, operam através da remissão para um Direito. As normas de

conflitos que integram o sistema de Direito de Conflitos remetem, geralmente, para

uma ordem jurídica nacional. Através da atribuição de competência a esta ordem

local, a norma de conflitos contribui para reconhecer determinada esfera de

aplicação no espaço quer ao Direito do foro quer ao Direito estrangeiro. Daí que

Maury fale de um duplo objeto da norma de conflitos e Isabel Magalhães Collaço,

bem como parte da doutrina italiana, de uma dupla função da norma de conflitos.

Nesta ordem de ideias, as teses clássica e nacionalista não seriam completamente

irredutíveis quanto ao objeto e função da norma de conflitos. Mas ao reconhecer

uma certa esfera de aplicação do Direito estrangeiro a norma de conflitos não regula

a competência legislativa doestado estrangeiro. Trata-se somente de lhe atribuir, na

ordem jurídica interna, uma determinada relevância. Por conseguinte, a tese clássica

deve ser globalmente rejeitada. Em meu entender a dupla função técnico-jurídica

das normas de conflitos bilaterais consiste no seguinte:

Luís de Lima Pinheiro

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✒ i. A norma de conflitos determina o Direito aplicável:

ii. A norma de conflitos, quando remete para Direito estrangeiro ou

extraestadual, confere-lhe um título de aplicação na ordem jurídica interna.

Quando a norma de conflitos remete para o Direito do foro, não é necessário que a

norma de conflitos lhe confira um título de aplicação na ordem jurídica interna, uma

vez que o Direito do foro vigora nesta ordem jurídica. A remissão operada pela

norma de conflitos é não recipienda. A proposição jurídica estrangeira ou

extraestadual não se converte num elemento da ordem jurídica do foro enquanto

critério de conduta ou de decisão. O Direito estrangeiro ou extraestadual é aplicado

enquanto Direito estrangeiro ou extraestadual. Isto é confirmado pela doutrina

comummente aceite em matéria de reserva de ordem pública internacional.

Enquanto limite à aplicação do Direito estrangeiro ou extraestadual, a reserva de

ordem pública internacional atua apenas com respeito aos efeitos que esse Direito

desencadeia com respeito à situação concreta carecida de regulação. Estriba-se

também na tão em voga unidade entre interpretação e aplicação de uma norma. Com

efeito, se as normas estrangeiras são interpretadas como elementos do sistema a que

pertencem, isto significa que são aplicadas como normas estrangeiras.

2. Objeto e função das normas de conflitos unilaterais. Bilateralização:

a. Bilateralismo e unilateralismo:

i. Sistemas unilateralistas: foi anteriormente assinalado que os

universalistas defenderam a existência de um sistema de Direito

Internacional Privado com validade universal que se impõe aos

ordenamentos nacionais. A partir de finais do século XIX faz-se sentir no

Direito Internacional Privado uma reação particularista ou nacionalista às

construções unilateralistas. Sublinharam que não há um sistema universal

de Direito de Conflitos mas uma pluralidade de Direitos de Conflitos de

fonte interna diferentes entre si. Mas os primeiros particularistas não

divergem dos universalistas quando à função do Direito de Conflitos, que

consistiria na repartição de competência legislativa entre os Estados. Como

conciliar esta função com a natureza interna da norma de conflitos? Um

Estado não pode, por meio das suas normas de conflitos, delimitar a

competência legislativa de outros Estados. Daí que no final do século XX

uma corrente doutrinal tenha salientado que o legislador de Direito

Internacional Privado deve unicamente fixar os limites de aplicação do seu

próprio Direito material. O juiz que tivesse de resolver uma questão que se

encontrasse fora da esfera de aplicação definida para o seu Direito nacional

aplicaria o Direito estrangeiro que se declarasse competente. O

unilateralismo permaneceu uma construção teórica em hibernação até aos

anos 30. Desde então o unilateralismo foi retomado por uma série de

autores nos EUA e na Europa. Estas tendências unilateralistas mais

próximas já não se baseiam na conceção clássica sobre o objeto e a função

do Direito Internacional Privado, mas, em primeira linha, na vocação da

norma material para um determinado domínio espacial de aplicação. Cada

norma material conteria necessariamente, a par da determinação do seu

domínio material de aplicação, também a determinação dos seus limites de

aplicação no tempo e no espaço. Ignorá-los ou isolar um destes elementos

representaria uma falsificação da norma. As normas de conflitos de uma

ordem jurídica estadual seriam incindíveis ou indissociáveis das suas normas

materiais. O renovar do unilateralismo surge também ligado às intervenções

legislativas que acompanham a mudança de conceções económicas,

políticas e sociais. A delimitação do domínio de aplicação das leis no espaço

seria mais adequada que os métodos tradicionais do Direito Internacional

Direito Internacional Privado

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§

Privado à evolução do Direito interno sob a influência da intervenção do

Estado nas relações privadas. Ao mesmo tempo, não é estranha a este

unilateralismo a preocupação de assegurar a continuidade da vida jurídica

dos indivíduos. Enfim, o unilateralismo serviria melhor a promoção da

harmonia internacional de soluções que o bilateralismo. Estes argumentos

invocados a favor dos sistemas unilateralistas, merecem, porém, muitas

reservas:

i. Não há uma ligação mecânica entre as normas materiais e as

normas de conflitos: a determinação do Direito aplicável obedece,

assim, a valorações autónomas, que podem ter nexos mais ou

menos íntimos com os valores subjacentes às normas materiais,

mas não perdem, em qualquer caso, a sua autonomia. De onde

decorre que o relacionamento entre normas materiais e normas de

conflitos não obriga ao unilateralismo e que a aplicação de normas

materiais estrangeiras que não são consideradas aplicáveis pelo

Direito de Conflitos é perfeitamente concebível.

ii. A vantagem do unilateralismo quanto à prossecução da

harmonia internacional de solução só pode ser invocada

perante um sistema, como era o italiano, em que se negava a

devolução: por meio da devolução os sistemas bilateralistas

podem ter em conta a vontade de aplicação do Direito estrangeiro

quando tal for justificado pela promoção da harmonia

internacional. Pelo contrário, deste ponto de vista, o unilateralismo

fica numa clara posição de desvantagem relativamente a um

sistema bilateralista que admita a devolução. Em princípio, na

norma bilateral o chamamento do Direito estrangeiro decorre do

mesmo elemento de conexão que define a esfera de aplicação da

lei do foro. Quer isto dizer que o Direito estrangeiro é aplicado em

igualdade de circunstâncias com o Direito do foro ou que há uma

paridade de tratamento entre eles. De onde decorre que o Direito

de Conflitos do foro traça um âmbito de aplicação no espaço ao

seu Direito material interno igual ao que traça ao Direito

estrangeiro. Nada garante que este equilíbrio seja mantido quando

se formulam normas unilaterais.

iii. O unilateralismo é suspeito de levar a um favorecimento da

esfera de aplicação do Direito do foro em detrimento do

Direito estrangeiro: as normas unilaterais podem servir o

desígnio de maximizar a aplicação da lei do foro. O que conduz à

desarmonia internacional de soluções: aumenta o risco de os

tribunais dos diferentes Estados apreciarem segundo Direitos

diversos a mesma situação, se esta lhes for submetida. Com

respeito às situações que se encontram fora da esfera de aplicação

do Direito do foro o unilateralismo manda atender ao Direito

estrangeiro que se considera competente. Mas pode acontecer que

dois Direitos estrangeiros se reclamem simultaneamente

competentes, ou que nenhum Direito estrangeiro se considere

aplicável. Sob pena de denegação de justiça, o juiz tem de escolher

entre os Direitos em presença que reclamam aplicação, no primeiro

caso e, no segundo, de chamar à aplicação algum dos Direitos em

presença, apesar de nenhum deles mostrar disposição para o efeito.

ii. Coexistência de bilateralismo e unilateralismo nos atuais sistemas de

Direito Internacional Privado: como assinala Vischer, no Direito

Luís de Lima Pinheiro

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✒ Internacional Privado pós-estatutário não há sistemas puramente

unilateralistas nem puramente bilateralistas. Desde o fim da Segunda

Guerra Mundial que a crescente importância dada a políticas económicas e

sociais no Direito privado e o desenvolvimento do Direito Público da

Economia foram acompanhados de um reforço do unilateralismo. O

legislador quis assegurar que as suas políticas legislativas seriam

prosseguidas em situações que apresentam determinadas conexões com o

Estado do foro mesmo quando estas conexões não são as relevantes para

determinar a aplicação do Direito do foro perante as normas de conflitos

bilaterais. Noutros casos, a preferência por soluções unilaterais parece estar

relacionada com a complexidade ou com o caráter inovador de certos

regimes. Nestes casos, o legislador limita-se a estabelecer as conexões de

que depende a aplicação de uma lei, não se abalançando ainda a formular

regras de conflitos bilaterais. Este reforço do unilateralismo relaciona-se

com o conceito de normas autolimitadas. Também a teoria da conexão

especial sobre a relevância de normas imperativas de terceiros Estados,

seguida pelo artigo 7.º Convenção de Roma sobre a Lei Aplicável às

Obrigações Contratuais (Convenção de Roma, doravante), adotou uma

abordagem unilateral. Com efeito, a cláusula geral aí proposta indaga da

vontade de aplicação da regra imperativa estrangeira. A renovação do

unilateralismo que se tem assistido em muitos ordenamentos distingue-se

do unilateralismo clássico por não se colocar como alternativa global ao

sistema de Direito de Conflitos de base bilateral, mas a par deste sistema ou

como seu elemento. Temos aqui um unilateralismo limitado. Para uma

melhor compreensão deste ponto será útil aprofundar o nosso

conhecimento das normas unilaterais, que podem ser:

i. Gerais: referem-se normalmente a estados ou categorias de

relações jurídicas.

ii. Especiais: encontram-se numa relação de especialidade com

outras normas de conflitos, bilaterais ou unilaterais. Estas normas

unilaterais especiais podem assumir, quanto à sua previsão, três

modalidades:

1. Normas unilaterais que se reportam a estados ou categorias de

relações jurídicas, embora se encontrem numa relação de especialidade

com outras normas de conflitos que se reportam a categorias

normativas mais amplas;

2. Normas unilaterais que se reportam a questões parciais que, em

princípio, estariam englobadas no domínio de aplicação de outras

normas de conflitos;

3. Norma ou lei material individualizada – norma de conflitos ad hoc:

estas normas de conflito ad hoc têm normalmente uma

relação íntima e direta com a norma ou lei material a que

se reportam. Estão impregnadas de preocupações jurídico-

materiais, segundo o juízo de valor do legislador. Não é

propriamente a vocação intrínseca da norma ou lei

material para um determinado campo de aplicação no

espaço mas uma intencionalidade normativa – integrada

por valorações conflituais – que se afere, em primeiro

lugar, pela intenção real do legislador histórico.

Um sistema de Direito de Conflitos como o português assenta em normas

de conflitos bilaterais que estão conjugadas com normas sobre a sua

interpretação e aplicação. Este sistema é enformado por um conjunto de

Direito Internacional Privado

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7

§

princípios e valores conflituais. As normas unilaterais especiais e, em

especial, as normas de conflitos ad hoc são frequentemente encaradas como

normas adversas ou, pelo menos agnósticas, em relação ao sistema de

normas de conflitos, e às quais, em termos jurídico-positivos, não se

aplicariam as normas coadjuvantes das normas de conflitos gerais. Mas este

modo de ver as coisas é demasiado simplista. Não é de excluir que certas

normas unilaterais, à luz das finalidades que prosseguem, possam ser

encaradas como conformes ao sistema e que certas normas sobre a

interpretação e aplicação das normas de conflitos bilaterais também lhes

sejam aplicáveis. Nem é sequer líquido que as normas de conflitos ad hoc,

incluindo as que privilegiam o Direito do foro, sejam sempre adversas ou

estranhas ao sistema. O problema de inserção destas soluções no sistema

de Direito de Conflitos tenderá a ser encarado por forma muito distinta

consoante se adote uma ótica mais favorável ou menos favorável ao sistema

de Direito de Conflitos de base bilateral. Creio que a melhor perspetiva é a

que encara os elementos unilateralistas como complemento necessário do

sistema de Direito de Conflitos de conexão ad hoc ligadas a normas ou leis

individualizadas podem apresentar-se como estranhas ao sistema e como

um limite ao funcionamento do sistema de Direito de Conflitos. Mas deve

fornecer-se o seu enquadramento sistemático, mediante a sua generalização

e bilateralização e tendo em conta as finalidades gerais do sistema de Direito

Internacional Privado.

b. Normas autolimitadas: já sabemos que se diz autolimitada aquela norma

material que, apesar de incidir sobre situações reguladas pelo Direito

Internacional Privado, tem uma esfera de aplicação no espaço diferente da

que resultaria da atuação do sistema de Direito de Conflitos. E que isto

pode resultar de esta norma material ser acompanhada de uma norma de

conflitos unilateral ad hoc, que se reporta exclusivamente a uma norma ou

lei material determinada da ordem jurídica do foro, ou de uma valoração

casuística, feita pelo intérprete face ao conjunto das circunstâncias do caso.

As normas autolimitadas podem ser divididas em quatro categorias:

i. Normas que têm uma esfera de aplicação no espaço mais

vasta do que aquela que decorreria do Direito de Conflitos

geral (norma de tipo I): estas normas são aplicáveis sempre que

o Direito do foro é chamado pelo Direito de Conflitos geral e ainda

noutros casos.

ii. Normas que têm uma esfera de aplicação no espaço que só

em parte coincide com aquela que decorreria do Direito de

Conflitos geral (norma de tipo II): estas normas autolimitadas

aplicam-se em alguns casos em que o Direito do foro é chamado

pelo Direito de Conflitos em geral, mas não em todos, e também

se aplicam noutros casos em que o Direito do foro não é

competente.

Estas duas categorias de normas autolimitadas que acima se expõem são as

mais importantes na prática. Mas são concebíveis outras duas categorias de

normas autolimitadas:

iii. Normas que têm uma esfera de aplicação no espaço mais

restrita do que aquela que decorreria do Direito de Conflitos

geral (norma de tipo III).

iv. Normas que têm uma esfera de aplicação no espaço

inteiramente diferente da que decorreria do Direito de

Conflitos em geral (norma de tipo IV).

Luís de Lima Pinheiro

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✒ Em obras anteriores defendi que as normas de aplicação necessária (lois

de police) são uma modalidade de normas autolimitadas: aquela em que a

norma reclama uma esfera de aplicação mais vasta do que aquela que

decorreria do Direito de Conflitos em geral. O desenvolvimento da

tipologia de normas autolimitadas que antecede levou-me, porém, a rever

esta posição. Com efeito, verifica-se que as normas autolimitadas das

categorias mais importantes (tipos I e II) podem nuns casos ser aplicadas

como elementos de ordem jurídica competente segundo o Direito de

Conflitos geral e noutros casos como normas de aplicação necessária. Por

conseguinte, entendo que as normas de aplicação necessária não são

uma modalidade de normas autolimitadas, uma categoria de normas,

mas um modo de atuação de certas normas autolimitadas. A admitir-

se este ponto de vista é mais rigoroso dizer que uma norma atua como

norma de aplicação necessária ou que é suscetível de aplicação necessária.

Nesta ótica, as normas suscetíveis de aplicação necessária são definidas por

um critério formal: são normas que em determinados casos reclamam

aplicação apesar de ser competente, segundo o Direito de Conflitos em

Geral, uma lei estrangeira. Este critério formal também resulta do artigo 9.º,

n.º1 Regulamento Roma I (RRI) e do artigo 16.º Regulamento Roma II

(RRII). A questão de saber se a aplicabilidade de uma norma imperativa

depende, além deste critério formal, de um critério material, que diga

respeito ao conteúdo ou fim da norma, tem dividido a doutrina. Muitos

autores têm defendido que só são de aplicação necessária aquelas normas

que prosseguem fins com determinada natureza ou intensidade valorativa.

Neste sentido, para Francescakis seriam normas de aplicação imediata as

normas cuja observação é necessária para a salvaguarda da organização

política, social ou económica do país. Em sentido convergente, a doutrina

dominante na Alemanha entende que o artigo 9.º, n.º1 RRI permite apenas

a aplicação das normas de intervenção [Eingniffsnormen], entendidas

geralmente como aquelas que tutelam principalmente interesses públicos.

Estas formulações respondem à preocupação legítima de restringir as

normas imperativas que podem ser consideradas de aplicação imediata ou

necessária, mas o caminho seguido não é o melhor. É certo que a atual

importância das normas autolimitadas suscetíveis de aplicação necessária

está até certo ponto relacionada com o fenómeno da ordenação e

intervenção estadual por via normativa mas relações privadas. Mas nem

sempre tais normas autolimitadas são expressão do intervencionismo

estadual. É amplamente aceite que muitas normas suscetíveis de aplicação

necessária não são expressão do intervencionismo estatal, mas visam, antes,

proteger a parte contratual tipicamente mais fraca, sem que prossigam,

simultaneamente um fim coletivo. Além de certas normas que têm por fim

a proteção da parte contratual mais fraca, encontramos ainda outro

exemplo de normas suscetíveis de aplicação necessária nos embargos e

outras sanções económicas decretadas por organizações internacionais.

Trata-se, neste caso, de normas imperativas de fonte supraestadual que

operam como limite autónomo à aplicação do Direito competente. Por

conseguinte, as normas de aplicação imediata ou necessária podem

prosseguir múltiplas finalidades. Não parece possível caracterizá-las pelo

seu conteúdo e fim. Dentro dos limites que resultam de normas

internacionais ou europeias, se, por indicação expressa do legislador

português, uma norma se sobrepõe à ordem jurídica chamada pelo Direito

de Conflitos geral, esta norma é suscetível de aplicação imediata ou

Direito Internacional Privado

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9

§

necessária, independentemente de quaisquer outras considerações. A

excecionalidade das normas de aplicação imediata ou necessária deve ser

essencialmente garantida pela contenção do legislador estadual na

atribuição a normas ou leis imperativas internas de uma esfera de aplicação

no espaço mais ampla que resultaria do Direito de Conflitos geral, bem

como pela formulação de exigências metodológicas muito estreitas com

respeito à possibilidade de, na omissão do legislador, o intérprete

determinar a aplicação imediata ou necessária de uma determinada norma

ou lei imperativa. O certo, porém, é que um critério material que combina

as duas formulações anteriormente referidas foi acolhido no n.º1 do artigo

9.º RRI que define normas de aplicação imediata. A par da consagração do

critério do interesse público, esta definição aponte para o caráter excecional

das normas de aplicação necessária, entendimento que é confirmado pelo

Considerando n.º 37 RRI. E um critério semelhante foi adotado pelo TJUE,

no seu mais recente acórdão no caso Unamar (2013). Neste acórdão o

Tribunal afirmou que a qualificação de disposições nacionais como normas de

aplicação imediata visa as disposições cuja observância foi considerada crucial para a

salvaguarda da organização política, social ou económica do Estado membro em causa,

a ponto de impor o seu respeito a qualquer pessoa que se encontre no território nacional

desse Estado Membro ou a qualquer relação jurídica nele localizada. Em ligação com

isto, o tribunal sublinhou a excecionalidade das normas de aplicação

imediata ou necessária em termos particularmente claros e inequívocos: para

atribuir eficácia plena ao princípio da autonomia da vontade das partes no contrato, pedra

angular da Convenção de Roma I, há que fazer com que a escolha livremente efetuada

pelas partes quanto à lei aplicável no âmbito da sua relação contratual seja respeitada,

em conformidade com o artigo 3.º Convenção Roma, de modo a que a exceção relativa à

existência de uma disposição imperativa na aceção da legislação do Estado Membro em

causa, tal com referida no artigo 7.º, n.º2 desta Convenção, deva ser interpretada em

termos estritos. Deste modo, o caráter restritivo da definição contida no artigo

9.º, n.º1 RRI, é introduzido, por via interpretativa, nas previsões do artigo

7.º Convenção de Roma. A atribuição de um caráter excecional à

intervenção de normas suscetíveis de aplicação necessária vai ao encontro

da posição que tenho defendido. O conceito de interesse público utilizado

no preceito terá de ser interpretado extensivamente, incluindo a proteção

da parte contratual mais fraca. Isto mesmo resulta dos acórdãos Arblade

(relação contratual de trabalho) e Unamar (agente comercial). Com isto,

porém, o critério do interesse público perde muita da sua utilidade como

critério de delimitação das normas imperativas que podem prevalecer sobre

a lei competente. Daí que a excecionalidade destes casos tenha de continuar

a ser assegurada, essencialmente, pela contenção do legislador estadual e

pela sujeição dos órgãos de aplicação do Direito a exigências metodológicas

muito estreitas. A questão fundamental que se coloca nesta matéria é a de

saber quando é que o intérprete deve entender que determinada regra é

autolimitada. Se o legislador formular expressamente uma norma de

conflitos ad hoc com respeito a determinada regra ou lei material, o problema

é de fácil resolução: a norma ad hoc, como norma de conflitos especial que

é, prevalece sobre o Direito de Conflitos geral, dentro dos limites traçados

por normas internacionais ou europeias. Sucede que, contrariamente ao que

se verifica com o Direito material especial, são reduzidos os casos em que

o legislador estabelece uma norma de conflitos ad hoc para normas ou leis

individualizadas de Direito comum. Na falta de uma determinação

legislativa, surgem na doutrina duas teses principais:

Luís de Lima Pinheiro

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0

✒ i. Coloca o acento no estabelecimento da autolimitação por

via interpretativa, principalmente com recurso a um critério

teleológico que atenda ao fim político-jurídico prosseguido

pela norma material: parece muto duvidoso que a interpretação

de uma norma possa ser conclusiva quanto à sua esfera de

aplicação no espaço. O conteúdo e o fim da norma podem

fornecer indicações importantes para o efeito, mas não parece

que a interpretação da norma material possa por si conduzir a

uma solução conflitual. A formulação de uma norma de conflitos

ad hoc ou uma valoração casuística sobre a aplicabilidade de uma

regra material no espaço passam necessariamente por um

raciocínio conflitual, por uma avaliação dos laços que a situação

estabelece com os diversos Estados em presença, que é exterior

ao processo interpretativo da regra material a que diz respeito. É

necessário um raciocínio conflitual, que valore o significado dos

diferentes elementos de conexão. As normas autolimitadas

suscetíveis de aplicação necessária não constituem pois uma

alternativa ao processo conflitual ou de regulação indireta, mas

uma manifestação de um certo tipo de unilateralismo, que coloca

o problema do Direito aplicável em função de normas

individualizadas. Este método de colocar o problema aproxima-

se daquelas correntes de pensamento, fortemente representadas

entre os internacionalprivatistas estadunidenses, que favorecem

uma consideração do fim prosseguido com normas e regimes

jurídicos individualizados. Se a aplicação da norma material do

foro depende de uma norma de conflitos ad hoc ou de uma

valoração conflitual casuística, esta norma nunca é, por certo,

imediatamente aplicável. Trata-se de um processo de regulação

indireta. A diferença relativamente à regulação por via do sistema

de Direito de Conflitos é técnica: resulta da substituição deste

sistema por normas de conflitos ad hoc ou por uma valoração

conflitual casuística. Por esta razão, prefiro a expressão aplicação

necessária a aplicação imediata. A expressão norma autolimitada

também suscita reservas. As normas materiais não autolimitam a

sua esfera de aplicação no espaço. A especial esfera de aplicação

no espaço de uma norma material não resulta de valoração

material nela contida mas de uma valoração conflitual que lhe é

exterior. É com esta reserva que, por falta de melhor alternativa,

é aqui utilizada a expressão norma autolimitada. Perante o

exposto, na falta de solução expressa, são três as vias que, em

teoria, se abrem para a qualificação de uma regra material como

sendo suscetível de aplicação necessária, e, mais amplamente,

como norma autolimitada:

a. A inferência de uma norma de conflitos ad hoc implícita;

b. A criação de uma solução conflitual ad hoc à luz da teoria das

lacunas da lei;

c. A vigência de uma cláusula geral que permita colocar o problema

da aplicabilidade da norma material em função das circunstâncias

do caso concreto.

ii. Na omissão do legislador o intérprete não pode qualificar

uma norma como sendo de aplicação necessária.

Direito Internacional Privado

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1

§

Por minha parte, tenho por justificada uma posição intermédia. Da

excecionalidade das normas de aplicação imediata ou necessária decorre que

a possibilidade de o intérprete qualificar como uma norma material como

autolimitada tem de estar sujeita a diretrizes metodológicas muito estritas:

i. A norma de conflitos implícita deve inferir-se das

proposições legais ou de práticas acompanhadas de uma

convicção de vinculatividade: uma norma de conflitos implícita

também se pode inferir, relativamente às regras materiais que sejam

concretização de direitos fundamentais, da norma de conflitos

especial que tenha sido estabelecida com respeito à aplicação no

espaço da regra constitucional que consagre este direito

fundamental.

ii. A criação de uma solução conflitual, na falta de norma de

conflitos implícita, pressupõe a revelação de uma lacuna que

deva ser integrada dessa forma: na maioria dos casos, pelo

menos, só pode tratar-se de uma lacuna oculta, porque a situação

se encontra em princípio abrangida por uma norma do sistema de

Direito de Conflitos. Por conseguinte, a revelação da lacuna

pressupõe uma interpretação restritiva ou uma redução teleológica

da norma de conflitos geral. A restrição ou redução do âmbito de

aplicação da norma de conflitos geral pode ser justificada pela

circunstância de esta norma não tutelar o valor que está subjacente

à norma ou lei material em causa, quando esta falta de tutela se

apresente como uma falha do sistema conflitual. Por outro lado, o

sistema conflitual que resulta do Regulamento Roma I admite

desvios às regras de conflitos gerais quando regimes especiais são

justificados pela necessidade de proteção da parte contratual

tipicamente mais fraca, em determinadas modalidades contratuais

em que se verifica normalmente um grande desequilíbrio entre o

poder económico e a força negocial das partes. Será porventura

defensável que existe uma lacuna no sistema conflitual perante

outras modalidades contratuais em que se verifique normalmente

um grande desequilíbrio entre o poder negocial das partes.

iii. A vigência de uma cláusula geral que permita ao intérprete

uma valoração conflitual casuística tem sido ponto

controvertido perante alguns sistemas estrangeiros. A sua

compatibilidade com a excecionaldade das normas

suscetíveis de aplicação imediata ou necessária não deixa de

oferecer dúvida. Na ordem jurídica portuguesa, perante um

sistema codificado de Direito de Conflitos que não contém

qualquer indicação nesse sentido, não vejo fundamento para

a vigência desta cláusula geral. Pelo sacrifício da certeza e

previsibilidade jurídicas e pela potencial restrição injustificada da

autonomia negocial que acarretaria, a sua introdução também seria

indesejável. Apesar do acento colocado no objeto e fins da norma,

creio, pelas razões atrás expostas, que é sempre necessário um

raciocínio conflitual. Aliás, uma disposição desta natureza vem a

traduzir-se numa modalidade de cláusula geral que permite uma

valoração conflitual casuística. A adoção de cláusulas gerais deste

tipo não é recomendável e, como já se observou, não deixa de

oferecer dúvida a sua compatibilidade com o Direito de Conflitos

europeu das obrigações. Se, excecionalmente, certas normas ou leis

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2

✒ materiais devem ter uma esfera de aplicação no espaço diferente

daquela que resulta do sistema de Direito dos Conflitos, a remissão

do legislador é a de formular as normas de conflitos ad hoc

apropriadas e não a de passar um cheque em branco aos tribunais.

Uma cláusula geral que permita ao órgão de aplicação do Direito

estabelecer a autolimitação com base numa valoração casuística

prejudica gravemente a certeza e a previsibilidade jurídicas e limita

muito a função orientadora de condutas do Direito dos Conflitos.

De onde decorre que, na falta de norma de conflitos ad hoc ou de

revelação de uma lacuna que deva ser integrada mediante a criação

de uma solução conflitual ad hoc, o intérprete não pode atribuir a

uma regra material o caráter de norma autolimitada. Esta norma só

pode relevar através da cláusula de ordem pública internacional,

como limite à aplicação do Direito estrangeiro. Mas para isso é

necessário que se trate de uma norma fundamental de ordem

jurídica portuguesa e que o resultado concreto a que conduza o

Direito estrangeiro competente seja manifestamente incompatível

com esta norma.

Em suma, esta técnica de regulação não constitui uma alternativa global ao sistema

de Direito de Conflitos, mas um limite ao funcionamento deste sistema que só se

verifica em casos excecionais. Dentro do âmbito de aplicação de regimes

internacionais e europeus, a sobreposição de normas autolimitadas à lei competente

tem de respeitar o disposto nesses regimes. O já referido artigo 9.º RRI permite a

sobreposição das normas de aplicação imediata do foro à lei designada pelas normas

de conflitos do Regulamento (nº.2), bem como a sobreposição das normas de

aplicação imediata do país da execução do contrato na medida em que, segundo

essas normas, a execução do contrato seja ilegal (n.º3). Também o artigo 16.º RRII

permite apenas a sobreposição das normas de aplicação imediata do Estado do foro.

No entanto, o artigo 17.º RRII, que permite a tomada em consideração das regras

de segurança e de conduta do lugar do facto, também pode ser relevante a este

respeito. Para além de outras disposições, o artigo 16.º Convenção de Haia sobre a

Lei Aplicável aos Contratos de Mediação e Representação de 1979 (doravante,

Convenção Haia 1979) permite a aplicação de normas de aplicação necessária do

Estado com o qual a situação apresente uma conexão efetiva (tanto pode ser o

Estado do foro como um terceiro Estado). Estes preceitos limitam-se a permitir a

sobreposição à lei competente de normas autolimitadas, e, em certos casos, como

vimos, condicionam a possibilidade de o Estado Membro ou Contratante

determinar a sua aplicação necessária. Sublinhe-se que pressuposto mínimo da

aplicação necessária de normas do Estado do foro é sempre que, do ponto de vista

do Direito Internacional Privado deste Estado, essas normas sejam aplicáveis

independentemente da lei primariamente competente. A este respeito estes preceitos

em nada alteram os critérios de solução anteriormente expostos.

c. As funções das normas de conflitos unilaterais no Direito vigente: as normas

de conflitos unilaterais também têm por função realizar um processo de regulação

indireta de situações transnacionais. Mas realizam esta função exclusivamente por

meio do chamamento do Direito do foro. Por conseguinte, não têm uma dupla

função nem podem servir para conferir um título de aplicação ao Direito estrangeiro.

A função da norma de conflitos unilateral assume certa especificidade conforme o

tipo de norma unilateral em causa. Ficou atrás traçada a distinção entre normas

unilaterais gerais e normas unilaterais especiais. No Direito português não vigoram

normas unilaterais gerais de Direito Internacional Privado. Quanto às normas

unilaterais especiais, temos:

Direito Internacional Privado

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3

§

i. Artigo 28.º, n.º1 CC: refere-se à questão parcial da capacidade para celebrar

um negócio jurídico. A capacidade é, em princípio, regida pela lei pessoal

(artigo 25.º CC). O artigo 28.º, n.º1 CC, porém, estabelece que o negócio

jurídico celebrado em Portugal por pessoa que seja incapaz segundo a lei

pessoal competente não pode ser anulado com fundamento na

incapacidade no caso de a lei interna portuguesa, se fosse aplicável,

considerar essa pessoa como capaz. Esta norma é de algum modo

bilateralizada pelo n.º3 do artigo 28.º CC.

ii. Artigo 3.º, n.º1, 2.ª parte CSC: refere-se ao estatuto pessoal da sociedade

comercial. O estatuto pessoal da sociedade comercial é, em princípio, regido

pela lei da sede principal e efetiva da sua administração. Quando a sociedade

tenha sede da administração no estrangeiro e sede estatutária em Portugal,

porém, a 2.ª parte do n.º1 do artigo 3.º CSC determina a aplicação da lei

portuguesa nas relações com terceiros.

A maior parte das normas unilaterais especiais vigentes na ordem jurídica portuguesa

são, porém, normas de conflitos ad hoc. É o que se verifica com as normas unilaterais

ligadas às normas de Direito material especial. É o que sucede também com as

normas unilaterais que autolimitam normas de Direito material comum. A função

destas normas unilaterais, se ainda consiste na determinação do Direito aplicável a

uma situação transnacional, apresenta-se, em primeira linha, como uma delimitação

da esfera de aplicação no espaço das normas autolimitadas atrás apresentada que as

normas unilaterais ad hoc que se reportam a normas de Direito material comum tanto

pode afastar o Direito de Conflitos geral como atual conjugadamente com ele,

estendendo ou restringindo a esfera de aplicação no espaço que resulta deste Direito

de Conflitos.

d. O problema da bilateralização das normas unilaterais. A generalização de

normas unilaterais ad hoc: já se assinalou que perante as lacunas que acompanham

as normas unilaterais os tribunais procederam geralmente à sua bilateralização. Nem

sempre, porém, esta bilateralização é possível. Tem-se entendido que a

bilateralização só é possível quando a regra unilateral valha como revelação em

princípio geral, i.e. como conexão adequada à situação ou questão parcial em causa.

Isabel de Magalhães Collaço afirma que a bilateralização não é admissível quando a

norma unilateral visa estender o âmbito de aplicação da lei interna, quer com vista à

proteção de certos interesses locais, quer com vista à defesa de interesses dos seus

nacionais no estrangeiro. Neste caso poderá apenas haver uma generalização da ratio

subjacente. À ideia de proteção de interesses locais mediante a aplicação de lei do

foro corresponde um método unilateralista de regulação e, por conseguinte, se a

ordem jurídica do foro adota esta solução tem a sua lógica que admite que outros

Estados assumam posição semelhante e que reconhece relevância esta posição. O

que abre a porta à generalização da ratio subjacente. Inclino-me a pensar que o

problema tem de ser colocado em dois níveis diferentes:

i. Saber se existe uma lacuna: para responder a esta questão é importante

distinguir os diferentes tipos de normas unilaterais, a saber, normas

unilaterais gerais, normas unilaterais especiais que se referem a estados ou

categorias de situações jurídicas e normas especiais que se referem a

questões parciais. Quando relativamente a certos estados ou categorias de

relações jurídicas, um sistema jurídico não dispõe de normas bilaterais, mas

tão-somente de normas unilaterais, surge uma lacuna sempre que não seja

aplicável o Direito do foro. A questão pode oferecer mais dúvidas quando

tais normas de conflitos unilaterais, embora se refiram a estados ou

categorias de relações jurídicas, tenham caráter espacial relativamente a

normas de conflitos bilaterais. Aí cabe questionar, quando não é aplicável,

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4

✒ ao estado ou à relação jurídica visados na norma unilateral, o Direito do

foro, se há uma lacuna ou se deve simplesmente aplicar-se a norma de

conflitos geral. Para determinar se há lacuna, uma falha no plano do sistema,

é legítimo tomar em conta todos os valores e princípios do sistema. As

dúvidas sobre a existência de uma lacuna também são prementes quando as

normas de conflitos unilaterais se refiram a questões parciais que, em

princípio, estariam englobadas no domínio de aplicação de normas de

conflitos bilaterais. O mesmo se diga das normas unilaterais ad hoc, que se

reportam a normas individualizadas ou conjuntos determinados de normas.

Nestes casos tem de se demonstrar que há lacuna, que, na impossibilidade

de determinar o Direito aplicável às referidas situações ou aspetos de

situações por meio da norma de conflitos unilateral, se não deverá recorrer

às normas de conflitos gerais. No caso de certas normas unilaterais ad hoc,

designadamente as que se reportam a normas proibitivas, a circunstâncias

de não se verificar a conexão proibitiva do Estado do foro pode apenas

significar que a licitude do ato deve ser apreciada exclusivamente segundo

o Direito chamado pela norma de conflitos geral. Quanto a estas normas

unilaterais ad hoc, trata-se portanto de saber se segundo o plano do foro

deem ter um campo de aplicação de aplicação diferente do que decorreria

da norma de conflitos geral ou se, porventura, igual desvio deve ser

admitido com respeito a normas e regime estrangeiros com conteúdo e

função semelhantes.

ii. Integração da lacuna: a considerar-se que existe uma falha no plano

legislativo coloca-se a questão de saber se esta lacuna deve ser preenchida

no mesmo modo que a suscitada pelas normas unilaterais gerais, i.e., por

mais de uma bilateralização. A resposta é, em princípio, positiva, mas

importa atender ao tipo de norma unilateral em causa e às finalidades por

ele prosseguidas. No que toca às normas unilaterais ad hoc, que se reportam

a normas materiais determinadas, parece que a bilateralização terá sempre

de ser condicionada à existência no sistema designado de normas e regimes

com o mesmo conteúdo e função, embora se possa não ver aí mais que uma

concretização dos princípios gerais em matéria de qualificação. Outra

questão é a de saber se a bilateralização da norma de conflitos unilateral

deve ser condicionada à dita vontade de aplicação de tais normas e regimes

materiais estrangeiros por forma distinta da devolução. Poderá pensarse que

para um sistema de base bilateralista não se deve partir da vontade de

aplicação de quaisquer normas estrangeiras. Em princípio, a circunstância

de as normas e regimes materiais em causa não serem aplicáveis perante as

normas de conflitos gerais ou especiais da ordem jurídica a que pertencem

só pode relevar no quadro da devolução, uma vez que está em causa a

competência desta ordem jurídica. Mas também nada obsta a que, no

interesse da harmonia internacional e da confiança objetivamente

fundamentada das partes, a ordem jurídica do foro possa condicionar a

aplicação de tais normas estrangeiras à posição assumida pela ordem

estrangeira. É o que se verifica, por exemplo, no artigo 28.º, n.º3 CC. Por

estas razões, é também porque frequentemente há uma impugnação da

norma unilateral ad hoc por preocupações materiais, parece defensável, de

iure condendo, que a bilateralização desta norma se venha a traduzir na

formulação de regras de remissão condicionada. Isto justifica-se, em

especial, quando a norma unilateral tem por finalidade a proteção da

confiança depositada no Direito local. Quais os impedimentos que podem

colocar-se à bilateralização? Entre as diversas razões, pode estas justamente

Direito Internacional Privado

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5

§

a circunstância de não se terem generalizado, noutros sistemas nacionais,

regimes com conteúdo e finalidades semelhantes, o nexo existente com

certas atividades realizadas pelo Estado e outros entes públicos no âmbito

desta gestão pública, do desígnio de proteger interesses públicos nacionais

ou de proteger interesses privados locais, perante interesses estrangeiros ou

em função de condições locais específicas. Adversos à bilateralização se

apresentam em geral os regimes que vão em primeira linha orientados a

promover interesses privados nacionais ou a defender interesses privados

locais perante interesses estrangeiros ou em função das condições

específicas de âmbito estritamente local, ou que digam respeito à

organização administrativa ou a atividades realizadas por entes públicos no

âmbito da gestão pública. A unilateralidade associada a normas

organizativas e a certas atividades públicas é um problema específico que

diz essencialmente respeito à aplicação no espaço do Direito Público e não

ao Direito Internacional Privado. Quanto à prossecução de interesses

nacionais ou locais, sublinhe-se que não é, por si, incompatível com o

Direito de Conflitos bilateral. A generalidade das normas de Direito interno

tem em princípio um vista relações internas e, neste sentido, interesses

nacionais ou locais. Também não constitui impedimento a prossecução de

interesses públicos, uma vez que há interesses públicos comummente

tutelados pela generalidade das ordens jurídicas. De um ponto de vista dos

interesses em jogo, o que pode constituir um impedimento dirimente à

bilateralização e à circunstância de os interesses nacionais serem protegidos

perante interesses específicos de âmbito estritamente local. Isto é

verdadeiramente excecional. No Direito Internacional Privado português

não me ocorre nenhum exemplo de norma unilateral que esteja nestas

circunstâncias. Por conseguinte, perante a verificação de uma lacuna, as

normas unilaterais são, em regra, bilateralizáveis. As normas unilaterais

insuscetíveis de bilateralização podem ser designadas por normas de

delimitação. A bilateralização das normas unilaterais ad hoc envolve um

processo mais amplo que, em sentido próximo ao adotado por Kegel,

poderemos designar por generalização. A generalização compreende dois

processos:

1. O alargamento da previsão: com passagem de uma norma ou lei

individualizada para uma categoria de relações jurídicas ou questão

parcial;

2. A bilateralização.

Com efeito, a bilateralização de uma norma unilateral ad hoc pressupõe o

alargamento da previsão. A norma ad hoc reporta-se a normas materiais

determinadas do Direito do foro. É necessário que a sua previsão seja

reformulada, por forma a abranger normas materiais estrangeiras com o

mesmo conteúdo e função.

e. Normas bilaterais imperfeitas: as normas bilaterais imperfeitas são as que,,

podendo determinar a aplicação tanto do Direito do foro como de Direito

estrangeiro, limitam o seu objeto a certos casos que têm uma ligação especial com o

Estado do foro, não fornecendo pois, diretamente, a solução para as situações do

mesmo tipo abstrato, mas em que falta a referida ligação. No Código Civil vigente,

temos o caso do artigo 51.º, n.º1 e 2. A norma de conflitos geral em matéria de forma

do casamento consta do artigo 50.º CC e determina a aplicação da lei do lugar da

celebração. O artigo 51.º CC vem introduzir desvios a esta regra geral. O n.º1 prevê

o casamento de dois estrangeiros em Portugal. O n.º2 o casamento de dois

portugueses ou de um português e um estrangeiro no estrangeiro. Fica de fora o

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✒ casamento de dois estrangeiros, em país terceiro, perante os respetivos agentes

diplomáticos ou consulares. Estas normas também colocam a questão de saber se

há uma lacuna. Caso a resposta seja afirmativa esta lacuna pode, em princípio, ser

integrada mediante uma aplicação analógica da norma bilateral imperfeita. Mas tem

de ser examinado, relativamente a cada caso, se por esta via é possível formular uma

norma bilateral perfeita, ou se a bilateralização perfeita é limitada e, eventualmente,

condicionada a pressupostos adicionais.

Normas de aplicação imediata

São a exceção às Normas de conflitos

Queremos apenas aplicar: I – A lex fori; ou

II – também pode ser uma lei estrangeira se a lex fori não quiser ser aplicada, nem a lex causae

São tipicamente regras bilaterais

Tanto chamam

I – A lex fori; II – A lex causae

Podem ser:

I – Normas excecionais

II – Normas unilaterais ad

hoc Podem ser:

Sendo normas unilaterais

especiais cuja norma ou lei

material é individualizada

na sua aplicação.

expressas

implícitas Consuetudinárias

Implícitas stricto

sensu

Marques dos

Santos

por mera interpretação

Lima Pinheiro

reconhecimento com valorização

conflitual

Baptista Machado e Ferrer Correia

Existe uma cláusula geral implícita

sempre

As normas de aplicação imediata têm 4 tipos (LP)

Tipo I Estende a lex fori no seu âmbito de

aplicação Mais comuns e

importantes

Tipo II Desvia o âmbito de aplicação da lex fori

Tipo III Têm uma esfera de aplicação no espaço mais restrita do que aquela que decorreria

do Direito de Conflitos geral Mais raras

Tipo IV Têm uma esfera de aplicação no espaço inteiramente diferente da que decorreria do

Direito de Conflitos em geral

Direito Internacional Privado

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7

§

3. Normas de remissão condicionada e normas de reconhecimento:

a. Normas de remissão condicionada: a doutrina diverge na caracterização das

normas de remissão condicionada. Para Pierre Lalive há uma conexão condicional

quando a regra de conflitos incorpora, enquanto condição de aplicação, a posição

assumida pelo Direito Internacional Privado da lei designada. É o que se verifica,

por exemplo, com o artigo 47.º CC. Já Wengler adota um conceito de remissão

condicionada que permite pensar que a condição pode ser simplesmente o resultado

material. Para este autor a remissão condicionada à vontade de aplicação do Direito

estrangeiro é apenas o tipo mais importante de remissão condicionada. Considero

preferível o conceito mais restrito, segundo o qual é regra de remissão condicionada

aquela que tem em conta a competência de lei estrangeira segundo o respetivo

Direito Internacional Privado. Isto permite relacionar estas normas com um reforço

atual do unilateralismo. O que não obsta a que a remissão possa ser cumulativamente

condicionada a um determinado resultado material ou à existência de normas com

determinado conteúdo ou intencionalidade normativa. Assim, devem considerar-se

que na remissão condicionada as contidas nas seguintes disposições do Código Civil:

Artigo 28.º, n.º3;

Artigo 31.º, n.º2;

Artigo 36.º, n.º1, in fine;

Artigo 45.º, n.º3;

Artigo 65.º, n.º2.

Uma vez que na remissão condicionada está sempre em causa a posição do Direito

Internacional estrangeiro, cabe perguntar pela diferença entre a remissão

condicionada e a devolução. Numa primeira aproximação, podemos dizer que

aceitar a devolução significa que se a lei estrangeira designada pela nossa norma de

conflitos não aceitar a competência, porque o seu Direito de Conflitos remete para

a lei portuguesa (retorno de competência) ou para uma terceira lei (transmissão de

competência), nós vamos aplicar a lei portuguesa ou a terceira lei. Para Pierre Lalive,

a distinção com a devolução estará em que a remissão condicionada não abandona

a solução ao Direito Internacional Privado estrangeiro mas se cinge, dentro de

limites definidos, a tomá-lo em consideração. Mas o ponto carece de um exame mais

atento. Nuns casos, a consideração do Direito Internacional Privado estrangeiro

parece limitar-se à vontade de aplicação, já não se atendendo ao retorno de

competência ou à transmissão de competência. Manifestar-se-ia aqui uma

abordagem unilateralista, que se distingue claramente da devolução. Noutros casos,

designadamente aqueles em que se prefigura um determinado resultado material,

parece que o Direito Internacional Privado estrangeiro pode ser considerado

ilimitadamente. A vontade de aplicação das normas em causa também não tem de

ser especial ou excecional face às normas de conflitos gerais do sistema a que

pertencem. Ela pode resultar do respetivo Direito de Conflitos geral. A técnica da

remissão condicionada parece justificar-se principalmente em dois tipos de situações:

i. Quando se admita um desvio excecional à lei normalmente

competente, que só se justifica quando a situação esteja ligada por

determinado elemento de conexão a outro Estado e a ordem jurídica

deste Estado reclama aplicação.

ii. No que diz respeito à remissão para normas ou regimes imperativos

contidos numa ordem jurídica estrangeira que não é a primariamente

competente para reger a situação. Este último tipo de situações diz

respeito ao tema da relevância das normas imperativas de terceiros Estados.

Luís de Lima Pinheiro

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✒ b. Normas de reconhecimento: a expressão norma de reconhecimento é empregue

em várias aceções. Hart utiliza-a no sentido de norma sobre as fontes do Direito.

Para quem entenda que as normas de conflitos são normas de receção formal todas

as normas de conflitos suscetíveis de desencadearem a aplicação do Direito

estrangeiro são normas de reconhecimento. Este entendimento foi atrás rejeitado.

Mas a expressão pode ser utilizada noutro sentido, para designar certas normas de

Direito Internacional Privado que não são simples normas de conflitos. Assim,

designo por norma de reconhecimento aquela que estabelece que determinado

resultado material ou que efeitos jurídicos de uma determinada categoria se

produzirão na ordem jurídica do foro caso se verifiquem noutro Direito. É o

caso das normas sobre o reconhecimento de efeitos de sentenças estrangeiras. É

também o caso das normas que reconhecem situações constituídas ou consolidadas

segundo uma ordem jurídica estrangeira, mesmo que não se tenham constituído

validamente segundo a lei primariamente competente por força do nosso Direito de

Conflitos. A norma de reconhecimento não é uma norma de receção, como por

exemplo as normas de reconhecimento do Direito estrangeiro ou extraestadual não

é recebido como fonte da ordem jurídica interna. A norma de reconhecimento é

uma norma de remissão porque determina a aplicação do Direito estrangeiro ou

extraestadual à produção do efeito. Assim, no regime do reconhecimento dos efeitos

das sentenças estrangeiras está implicada uma proposição segundo a qual o Direito

do Estado de origem da decisão é aplicável ao efeito de caso julgado. Em todo o

caso, entendo que as normas de reconhecimento não são simples normas de

remissão gerais, como sugere Kegel. A norma de reconhecimento distingue-se das

normas de remissão gerais porque se reporta a um resultado material ou a uma

categoria de efeitos jurídicos e porque conserva um maior controlo sobre a solução

material. Este maior controlo da solução material pode resultar de a norma de

reconhecimento se reportar a uma categoria de efeitos jurídicos, a consequência

jurídica que se produz na ordem jurídica do foro pode ser modelada, não sendo

sempre uma pura receção de efeitos jurídicos produzidos na ordem jurídica

estrangeira. Assim, deve entender-se que no reconhecimento do efeito de caso

julgado da sentença estrangeira são excluídos certos efeitos da ordem jurídica do

Estado de reconhecimento. A norma de reconhecimento pode ou não ser uma

norma de conexão. Assim, as normas de reconhecimento de efeitos de atos públicos

estrangeiros serão normas de conexão se condicionarem o reconhecimento à

existência de uma conexão adequada entre o Estado de origem da decisão e a

situação. Isto pode resultar da conjugação do regime de reconhecimento de efeitos

de atos públicos estrangeiros com regras de competência internacional unificadas

ou, na sua falta, pelo controlo da competência do tribunal de origem (competência

internacional indireta). As normas de reconhecimento podem ter por objeto efeitos

desencadeados por um ato público estrangeiro constitutivo, modificativo, extintivo

ou outros efeitos que se produzem independentemente de ato público (ope legis ou

por força de outro negócio jurídico). As normas de reconhecimento podem ser

utilizadas para o reconhecimento de situações jurídicas fixadas por atos públicos

estrangeiros (como é o caso do reconhecimento de efeitos de sentenças estrangeiras).

As normas e reconhecimento também podem ser utilizadas para o favorecimento

de resultados materiais determinados; v.g., artigo 31.º, n.º2 CC.

4. O problema da relevância das normas imperativas estrangeiras:

a. Identificação do problema: já se assinalou que, no contexto da discussão sobre as

normas autolimitadas, surgiu a questão de saber se e em que termos deverá ser dada

relevância a normas autolimitadas de ordenamentos jurídicos estrangeiros que não

são os chamados pelo sistema de Direito de Conflitos a regular a questão (terceiros

ordenamentos). As normas imperativas estrangeiras só podem ser aplicadas na

Direito Internacional Privado

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§

ordem jurídica local por força do título de aplicação que uma proposição vigente

nesta ordem jurídica lhes conceda. A esta luz, cabe distinguir entre:

i. As normas imperativas da lex causae: são, em princípio, aplicáveis no

quadro do título de aplicação conferido a essa lei pelas normas de conflitos

gerais. Mas há quem defenda que a aplicabilidade de certas categorias de

normas imperativas, designadamente, as normas de intervenção, põe em

jogo interesses conflituais específicos, diferentes dos que são tutelados pelas

normas de conflitos gerais, devendo por isso depender exclusivamente de

normas de conflitos especiais. Com efeito, as normas de conflitos especiais

limitam o domínio de aplicação das normas de conflitos gerais. Isto terá por

consequência a implicabilidade das normas imperativas da lex causae que

sejam reconduzíveis à categoria normativa prevista na norma de conflitos

especial. Só não será assim se for configurada uma conexão cumulativa, por

forma a que tais normas imperativas sejam aplicáveis quer quando integram

a lex causae quer quando vigoram na ordem jurídica do Estado que apresenta

a conexão especial com a situação. Este raciocínio, porém, pressupõe a

vigência de uma norma de conflitos especial ou a possibilidade de o

intérprete introduzir um desvio às normas de conflitos gerais mediante a

criação de uma solução ad hoc. Outra dificuldade quanto à aplicação de

normas imperativas da lex causae surge quando estas normas forem

autolimitadas, excluindo a sua aplicação à situação que são chamadas a

disciplinar. Esta dificuldade deve resolver-se segundo duas regras:

1. Se a negação da aplicabilidade da norma não põe em causa a

competência da ordem jurídica a que pertence a

autolimitação deve ser respeitada;

2. Se a negação da aplicabilidade da norma põe em causa a

competência da ordem jurídica a que pertence, a

autolimitação só poderá relevar no quadro das regras sobre

devolução.

ii. As normas imperativas de terceiros ordenamentos: coloca-se a questão

de saber se a ordem jurídica local lhes confere um título de aplicação

mediante proposições jurídicas especiais ou se, de outro modo, permite a

sua tomada em consideração. Um exemplo importante de norma sobre a

relevância de normas imperativas de terceiros ordenamentos é o n.º1 do

artigo 7.º Convenção Roma. O artigo 9.º, n.º3 RRI também contém uma

norma relevante nesta matéria, mas que permite apenas dar prevalência às

normas de aplicação imediata do país de execução do contrato, na medida

em que segundo essas regras a execução do contrato seja ilegal. Trata-se

agora apenas das normas de aplicação imediata de um país que apresenta

uma conexão determinada com o contrato e que tenham um certo conteúdo.

Assinale-se, em princípio, que estes preceitos só conferem relevância às

normas imperativas de terceiro Estado que sejam de aplicação necessária.

Se as normas imperativas do terceiro Estado forem aplicáveis a título de

Direito regulador do contrato, estes preceitos não lhes conferem relevância.

Isto exprime a tendência para encarar o problema da relevância de normas

imperativas de terceiros Estados como uma das vertentes do tema das

normas de aplicação necessária. Ora isto é a meu ver justificado. Porque

razão se há-de tratar diferentemente as normas imperativas de terceiros

Estados, que apresentam uma ligação significativa com a situação,

conforme na ordem jurídica estrangeira sejam ou não encaradas como

normas de aplicação necessária? A distinção conduzirá, designadamente, a

que normas imperativas de conteúdo e finalidade semelhantes e que são

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✒ consideradas aplicáveis no caso pelo Direito Internacional Privado do

sistema onde promanam sejam tratadas de modo diferente, conforme a sua

aplicação depende ou não, segundo o mesmo Direito Internacional Privado,

de integrarem o estatuto obrigacional. Por conseguinte, o problema diz

respeito à relevância de quaisquer normas imperativas estrangeiras, que não

estejam integradas na ordem jurídica competente segundo o Direito de

Conflitos geral. Observe-se, por outro lado, que o artigo 7.º, n.º1

Convenção de Roma configura uma cláusula geral que, pelo menos, permite

ao órgão de aplicação do Direito à sobreposição a lei designada pelas

normas de conflitos da Convenção (lex causae) das normas de aplicação

necessária de qualquer país que apresente uma conexão estreita com a

situação. Ao órgão de aplicação cabe não só indagar da existência de uma

conexão estreita e apreciar as consequências da aplicação ou não aplicação

das normas imperativas, mas também determinar o critério segundo o qual

verificará se em função do seu conteúdo e fim essas normas devem ser

aplicadas. Acrescente-se que o n.º1 do artigo 7.º Convenção de Roma não

vigora na ordem jurídica portuguesa, porque Portugal fez a reserva prevista

na alínea a), n.º1 do artigo 22.º Convenção Roma.

b. Principais teses sobre a relevância das normas imperativas estrangeiras: com

respeito à relevância de normas imperativas de terceiros ordenamentos em matéria

de obrigações contratuais fazem-se representar na doutrina duas teses fundamentais:

i. Teoria do estatuto obrigacional: as normas imperativas estrangeiras só

serão aplicadas quando integrem a lex causae. Normas de terceiros

ordenamentos só poderão relevar enquanto pressupostos de facto de

normas da lex causae.

ii. Teoria da conexão especial: não corresponde a uma conceção unitária:

1. Na formulação que lhe foi dada pelo primeiro Wengler:

traduz-se numa cláusula geral segundo a qual serão aplicadas, além

das normas jurídicas que pertencem ao estatuto obrigacional, as de

qualquer outra ordem jurídica, dispostas a aplicar-se, desde que

exista uma relação suficientemente estreita entre a ordem jurídica

em causa e o contrato e tendo como limite a sua conformidade

com a ordem pública internacional do foro. Esta cláusula geral

utiliza um conceito designativo, indeterminado (a relação estreita)

e contém uma remissão condicionada à vontade de aplicação das

normas em causa. São variantes desta conceção as soluções

consagradas no n.º1 do artigo 7.º Convenção Roma e artigo 16.º

Convenção Haia 1979.

2. Marques dos Santos: partindo da ideia básica de reconhecimento

no Estado do foro da vontade de aplicação das normas de

aplicação imediata estrangeiras propôs a adoção de uma regra de

reconhecimento que dê um título e legitime a relevância, no

Estado do foro, de tais regras, de acordo com as condições e

dentro dos limites fixados por este último Estado. Como

limites ao reconhecimento colocou, Marques dos Santos, a

exclusão de pretensões de aplicação exorbitante e das

normas que colidam com interesses do Estado do foro ou

com interesses afins aos de este Estado.

Que dizer destas teses?

i. A teoria do estatuto obrigacional: promove a harmonia internacional

entre a ordem jurídica do foro e a lei primariamente aplicável à situação,

que é aquela que apresenta ligação mais significativa com a situação

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§

considerada no seu conjunto, e evita o cúmulo de normas imperativas de

diferentes Estados, mas não tem em conta o bem comum universal que

postula uma determinada relevância de normas imperativas de terceiros

ordenamentos que prossigam finalidades relevantes para a ordem jurídica

do foro ou amplamente acolhidas na comunidade internacional, nem a

harmonia internacional com outros ordenamentos que podem ter uma

conexão significativa com o caso, nem tão pouco as exigências que podem

decorrer da cooperação entre Estados Membros da União Europeia.

Levada às suas últimas consequências, a teoria impediria qualquer

desenvolvimento e aperfeiçoamento do sistema pela jurisprudência e pela

ciência jurídica. Estaria vedado o desenvolvimento de normas de conflitos

especiais ou de cláusulas gerais, com caráter bilateral, mesmo no caso de,

na ordem jurídica do foro, o legislador haver consagrado normas unilaterais

ad hoc ou uma cláusula geral com respeito à aplicabilidade de certas normas

materiais do foro. Ora esta atitude é contrária à tendência atual para

reconhecer o papel criativo da jurisprudência e da ciência jurídica e

dificilmente se vê a razão por que ao intérprete há-de ser negada, em relação

às normas unilaterais ad hoc, aquela possibilidade de bilateralização que, em

princípio, lhe é reconhecida com respeito a outras normas unilaterais;

ii. A teoria da conexão especial: permite ter em conta a harmonia

internacional com terceiros ordenamentos que tenham uma conexão

significativa com o caso, eventualmente, o bem comum universal

(dependendo do modo como seja entendida), e as exigências da cooperação

regional, mas tão-pouco parece adequada. Primeiro, não tem

suficientemente em conta a importância da harmonia internacional com a

lei primariamente aplicável à situação por força do Direito de Conflitos

geral. Segundo, recorre à técnica da cláusula geral, que deixa uma larga

margem de apreciação ao intérprete, com as correlativas incerteza sobre o

regime jurídico aplicável e imprevisibilidade de soluções. Terceiro, aumenta

o risco de cúmulo de normas imperativas de diferentes Estados que, além

dos conflitos de deveres que podem originar, implica uma desigualdade de

tratamento das situações transnacionais e uma indesejável restrição da

autonomia privada nestas situações. Uma maior certeza, previsibilidade, e

adequação das soluções só pode ser alcançada mediante uma determinação

das conexões relevantes e das exigências que devem ser postas ao conteúdo

e fim das normas imperativas estrangeiras. O que aponta para o

desenvolvimento de normas e conflitos especiais.

Para o efeito poderá apostar-se mais na bilateralização das soluções consagradas para

as normas autolimitadas de Direito interno ou na criação de normas de conflitos

bilaterais independentemente de um processo de bilateralização.

c. Posição adotada de iure condendo: de irue condendo, dou preferência à criação de

normas de remissão condicionada a certas categorias de normas imperativas vigentes

em Estados que apresentam determinada conexão com a situação. A remissão será

condicionada à disposição a aplicar-se das normas em causa, que se trate de normas em

causa, quer se trate de normas e regimes materiais individualizados, mas também o

conjunto de princípios e ideias orientadoras do Direito Internacional Privado,

designadamente os princípios relativos à conformação global do sistema e a tutela

dos interesses típicos das partes. Frequentemente estas normas deverão estabelecer

a aplicação cumulativa das normas imperativas do Estado que apresenta a conexão

especial com a situação com as normas imperativas da lex causae que reclamem

aplicação do caso. Observe-se que esta solução encerra menor risco de cúmulo de

normas imperativas da lex causae, incluindo normas de Direito Público com

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✒ incidência sobre a situação transnacional, só serão aplicáveis na medida em que

sejam abrangidas pela esfera espacial de aplicação que lhes seja atribuída pelo Direito

Internacional Privado ou pelas normas de conflitos da lex causae, de cariz jurídico-

público.

d. Posição adotada de iure constituto: não vigora na ordem jurídica portuguesa

qualquer regra geral sobre a relevância de normas imperativas de terceiros

ordenamentos. Todavia, o Direito Internacional Privado português contém algumas

regras relevantes em domínios específicos. A mais importante é a que consta do n.º3

do artigo 9.º RRI. Este preceito converge com a posição que defendo de iure condendo,

embora redigido de forma mais restritiva e apenas permita a relevância de normas

de aplicação imediata. Não obstante, parece defensável o entendimento segundo o

qual abrange não só as normas de aplicação imediata relativas à execução do

contrato mas também as que estabelecem requisitos de validade do conteúdo e do

fim do contrato. Também é sugerido que possam ser aplicadas não só regras

imperativas proibitivas mas também regras imperativas prescritivas que regulem as

obrigações das partes. Por outro lado, embora o preceito tenha claramente uma

intenção restritiva, deve entender-se que ele se refere apenas à aplicabilidade das

normas de aplicação imediata de terceiros ordenamentos, e já não à sua relevância

como pressupostos de facto das normas materiais da lex causae (artigo 9.º, n.º3 RRI

que se refere expressamente à aplicação dessas normas). Parece também de admitir

que não exclui em absoluto a própria aplicabilidade de normas imperativas que não

pertençam à lei do lugar da execução, quando se demonstre claramente uma lacuna

no Regulamento, como parece verificar-se, por exemplo, com a incidência sobre a

validade do contrato das normas de Direito da Concorrência. Na verdade, não

parece coerente que sistemas que dispõem de regimes de promoção e defesa da

concorrência com determinado âmbito de aplicação no espaço façam depender a

relevância de regimes estrangeiros com um âmbito espacial de aplicação semelhante

da posição assumida pela lei reguladora do contrato, que pode não conter tais

regimes e não ter qualquer conexão objetiva com o contrato. O ponto, no entanto,

é muito controverso, e deverá ser clarificado pelo TJUE. Embora o artigo 16.º RRII

apenas permita a aplicação das normas de aplicação imediata do Estado do foro, o

seu artigo 17.º determina que ao avaliar o comportamento da pessoa cuja

responsabilidade é invocada, são tidas em conta, a título de matéria de facto e na

medida em que for apropriado, as regras de segurança e de conduta lesiva como

facto no quadro das normas materiais da lei do lugar do dano, mas também, em

certos casos, uma verdadeira aplicação de normas imperativas de uma lei que não é

a primariamente competente para reger a situação (lei do lugar do dano),

independentemente de serem ou não normas de aplicação imediata do ponto de

vista da sua ordem jurídica de origem. O artigo 16.º Convenção de Haia 1979

estabelece que na aplicação da presente Convenção poderá atribuir-se efeito às

disposições imperativas de qualquer Estado com o qual a situação apresente uma

conexão efetiva, se e na medida em que, segundo o Direito desse Estado, tais

disposições forem aplicáveis, qualquer que seja a lei designada pelas suas regras de

conflitos. Nesta matéria, portanto, consagra-se a teoria da conexão especial. Há

ainda certas normas de remissão condicionada que permitem ter em conta a vontade

de aplicação de normas estrangeiras (artigos 36.º, n.º1, in fine, 45.º, n.º3, 47.º e 65.º,

n.º2 CC e 11.º, n.º5 RRI). De modo geral , pode dizer-se que o legislador português

tem mostrado alguma relutância perante a teoria da conexão especial, sendo

especialmente significativa a reserva formulada com respeito à aplicação do artigo

7.º, nº.1 Convenção Roma. Segundo um setor da doutrina germânica, seguido por

alguns autores portugueses (Moura Ramos e Moura Vicente), a reserva criou uma

lacuna patente de regulação, cuja integração não deve ser influenciada pelas

Direito Internacional Privado

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3

§

considerações formuladas no processo legislativo. A formulação da reserva não

pode ser entendida como uma consagração legislativa da teoria segundo a qual só

são aplicáveis as normas imperativas da lei reguladora do contrato e as normas

imperativas de terceiro ordenamentos só podem relevar enquanto pressupostos de

facto na aplicação das normas materiais dessa lei (teoria do estatuto obrigacional).

Pertencerá antes ao intérprete a resolução do problema, devendo para o efeito

utilizar os critérios gerais que regem a integração de lacunas no Direito Internacional

Privado. Para uma parte dos autores que assim pensava, estes critérios conduziriam

à adoção da teoria da conexão especial, segundo a qual, no essencial, poderiam ser

atuadas todas as normas de aplicação imediata ou necessária vigentes em qualquer

ordem jurídica que apresente uma relação suficientemente estreita com o contrato.

A tese oposta, que prevaleceu na doutrina inglesa, entendia que a aplicação de regras

imperativas de terceiros ordenamentos não é compatível com a reserva feita ao

artigo 7.º, n.º1 Convenção Roma. Embora a reserva não significasse

necessariamente a insusceptibilidade de aplicação de normas de terceiros

ordenamentos, parece-me seguro que ela manifestou um claro desfavor

relativamente à teoria da conexão especial e que, por conseguinte, essa aplicabilidade

teria de depender de critérios mais restritivos. O mesmo se diga do legislador

europeu à luz do disposto nos Regulamentos que Unificam o Direito de Conflitos.

Nenhum dos Regulamentos adota a teoria da conexão especial e só em alguns deles

se admite a aplicabilidade de normas imperativas de terceiros ordenamentos com

base em critérios mais restritivos que convergem com a solução que tenho

defendido de iure condendo. A fundamentação jurídico-positiva da aplicabilidade de

normas imperativas de terceiros ordenamentos no princípio da harmonia jurídica

internacional também não se afigura viável, não só devido ao limitado alcance desse

princípio no nossos sitema de Direito de Conflitos, mas também porque uma

relevância de normas imperativas de terceiros ordenamentos independentemente da

lei primariamente aplicável à situação, se pode promover a harmonia com um certo

ordenamento, é suscetível de gerar desarmonia com outros ordenamentos e,

moramente, com a lei primariamente aplicável à situação, que, como já se assinalou,

é aquela que apresenta a conexão mais significativa com a situação considerada no

seu conjunto. Assim, na falta de norma especial que dê um título de aplicação a

normas imperativas de terceiros ordenamentos os tribunais portugueses estão, em

princípio, vinculados pelo sistema de Direito dos Conflitos e aplicar exclusivamente

as normas imperativas da lei competente. Mas isto não exclui em absoluto, a

possibilidade de se fundamentar a aplicação de normas imperativas de terceiros

ordenamentos na analogia ou em soluções especiais criadas pelo intérprete. Desde

logo, existe a possibilidade de uma aplicação analógica de normas de conflitos

especiais consagradas pelo legislador para regras imperativas estrangeiras relativas a

certas questões. Penso aqui, exclusivamente, na aplicação destas normas a casos

análogos. Com efeito, não vejo que de soluções muito específicas e heterogéneas,

como as consagradas pelo artigo 16.º Convenção Haia 1979, no n.º2 do artigo 23.º

do regime das cláusulas contratuais gerais. É ainda de sublinhar que a maioria das

soluções vigentes nesta matéria na nossa ordem jurídica não recorre a cláusulas

gerais ou a conceitos designativos indeterminados, mas a conexões especializadas,

que utilizam elementos de conexão determinados, aproximando-se assim da solução

atrás preconizada de iure condendo. Excluo, por conseguinte, a relevância de normas

imperativas de terceiros ordenamentos com base na dita analogia iuris. A criação, pelo

intérprete, de soluções conflituais especiais, que atribuam um título de aplicação a

normas imperativas de terceiros Estados, deve ser orientada por diretrizes

metodológicas estritas. Ela pressupõe a revelação de uma lacuna oculta mediante

interpretação restritiva ou redução teleológica das normas de conflitos gerais em

Luís de Lima Pinheiro

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✒ causa. E deve obedecer aos critérios estabelecidos, na ordem jurídica portuguesa,

para a sua integração. Se o próprio legislador introduzir limites às normas de

conflitos gerais com respeito a normas autolimitadas do foro por meio de normas

unilaterais ad hoc, encontra-se muito facilitada a revelação de uma lacuna oculta com

respeito à aplicabilidade de normas imperativas semelhantes contidas em

ordenamentos estrangeiros. Na falta de demonstração em contrário é de supor que

as normas unilaterais ligadas às normas autolimitadas do foro consagram, como

resultado de uma valoração conflitual, soluções que se revelam adequadas para todas

as normas que apresentam conteúdo e função equivalentes, quer sejam normas do

foro ou normas estrangeiras. Razão porque as normas unilaterais ad hoc são, em

princípio, bilateralizáveis (por forma a remeterem tanto para normas do foro como

para normas estrangeiras). É o caso, atrás referido, da norma unilateral que delimita

a esfera espacial de aplicação do Direito interno da Concorrência, quando esteja em

causa a validade de um contrato restritivo da concorrência, nas condições e com as

reservas então formuladas. Deste modo, embora seja defensável o desenvolvimento

de mais normas de remissão condicionada a regras imperativas de terceiros

ordenamentos, ainda se afigura até certo ponto possível, no processo de

interpretação-aplicação do Direito, complementar as soluções vigentes. A ideia geral

orientadora é sempre a de conciliar a promoção do bem comum universal, que

postula uma determinada relevância das normas imperativas de terceiros

ordenamentos que prosseguem finalidades relevantes para a ordem jurídica do foro

ou amplamente reconhecidas pela comunidade internacional, bem como da

harmonia internacional com terceiros ordenamentos que apresentam uma conexão

significativa com o caso relativamente a certas categorias de situações, e as exigências

que podem decorrer da cooperação entre Estados Membros da União Europeia, por

um lado, com a promoção da harmonia internacional com a lei primariamente

aplicável à situação, com a certeza e previsibilidade jurídicas, com a salvaguarda das

finalidades coletivas prossrguidas pelo Direito do Estado do foro, com a igualdade

de tratamento das situações transnacionais quanto à incidência de normas

imperativas e, por ultimo, mas não menos importante, com o respeito da autonomia

dos sujeitos das situações transnacionais, por outro.

e. Relevância das normas imperativas de terceiros Estados no quadro do

Direito material da lex causae: nos casos em que a ordem jurídica local não atribui

um título de aplicação a normas imperativas de terceiros Estados, estas normas

podem ainda ter relevância no quadro do Direito material da lex causae. Tomando

em consideração das normas imperativas de terceiros Estados no quadro do Direito

material da lex causae, verifica-se indubitavelmente nos casos em que a norma é

considerada como um pressuposto de facto da aplicação de uma norma material da

lex causae. A hipótese de escola é a da relevância da norma proibitiva do país de

execução do contrato como facto gerador de impossibilidade de cumprimento.

Parece de exigir, para o efeito, que a vigência da norma constitua um impedimento

efetivo à execução da prestação quer pela impossibilidade material de realizar

(mormente sem colaboração de órgãos públicos), quer pelo risco efetivo de uma

sanção em caso de inobservância da proibição. Além desta hipótese, coloca-se o

problema das consequências que advêm, para a validade de um negócio jurídico, da

contrariedade do seu objeto ou fim a normas imperativas de terceiros ordenamentos.

Quando o Direito português for chamado a reger o negócio jurídico, a violação de

uma norma imperativa estrangeira só poderia constituir fundamento de nulidade por

contrariedade à lei do objeto ou do fim do negócio, perante os artigos 280.º e 281.º

CC, se a norma imperativa fosse aplicada. Ora aqui trata-se justamente da possível

relevância de normas imperativas que não são aplicáveis. A jurisprudência de

diversos países e, designadamente, a alemã,, tem superado esta dificuldade,

Direito Internacional Privado

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§

entendendo que a invalidade do negócio cujo objeto seja contrário a normas

imperativas de terceiros Estados pode decorrer da contrariedade aos bons costumes.

Com respeito aos contratos, decorre do anteriormente exposto que, segundo o meu

entendimento, o artigo 9.º, n.º3 RRI não limita esta relevância de normas imperativas

de terceiros ordenamentos no quadro do Direito material da lex causae. No entanto,

para quem entenda o artigo 9.º, n.º3 RRI nos termos atrás propugnados, o problema

não se colocará frequentemente com respeito aos contratos, uma vez que pelo

menos as normas de aplicação imediata da lei do lugar da execução sobre a validade

do objeto ou fim do contrato são aplicáveis independentemente da sua relevância

perante o Direito material da lex causae. Em todo o caso, fica ressalvada a invocação

da contrariedade aos bons costumes do objeto ou do fim do contrato, como válvula

de segurança do sistema, com respeito a normas que não sejam aplicáveis nestes

termos, designadamente por não pertencerem à ordem jurídica do lugar da execução

ou não serem, nessa ordem jurídica, de aplicação imediata. Assinale-se, por último,

que o órgão de aplicação dispõe de uma certa margem de apreciação, quando

determina se a violação de uma norma imperativa estrangeira constitui, na perspetiva

do Direito material da lex causae, uma conduta ofensiva dos bons costumes.

“Lei de Estado terceiro que se quer aplicar”

Não se permite

Concebemos a permissão

Bilateralização Unilateralização

Pegar Norma de Aplicação Imediata

portuguesa, remeter para o

artigo 38.º CC e

aplicar-se

Só funciona, porém,

quando há equivalência na lex fori;

Marques dos Santos

Lima Pinheiro

No entanto, assim,

desconsidera-se se a lei do Estado 3.º

quer ou não aplicar-se

Reconhecimento de cláusula geral

de reconhecimento

implícita

Conexão especial

I – Vontade da lei do Estado 3.º se

aplicar; II –

conexão especial com o caso

Acórdão TJUE Ingmar

* + *

artigos 16.º Convenção Haia 1979 e 9.º, n.º3 RRI

Assim,

1. Identificar o elemento de conexão;

2. Identidicar lex fori;

3. Identificar lex estrangeira;

a. O Estado 3.º tem vontade em aplicar-se?

b. Existe conexão especial?

c. Qual o título de aplicação?

[ver artigo 9.º, n.º3 RRI]

Luís de Lima Pinheiro

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Agradecemos ao nosso assistente, Professor Miguel C. Machado na disponibilização do esquema.

Direito Internacional Privado

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§

A Justiça e os Princípios Gerais do Direito de Conflitos:

1. Justiça do Direito de Conflitos: o Direito é uma ordem orientada à realização de valores

socialmente reconhecida. A ideia de justiça surge, numa aceção muito ampla, como ideia

unificadora destes valores. A evolução do Direito Internacional Privado tem sido dominada

por tendências que põem em relevo o seu conteúdo valorativo. Por um lado, através do

reexame das soluções tradicionais à luz de considerações tecnológicas e do

desenvolvimento de novas soluções mais adequadas aos fins. Por outro lado, por via de

novos entendimentos sobre as operações metodológicas envolvidas na interpretação e

aplicação da norma de conflitos, que orientando-se pelas finalidades específicas do Direito

Internacional Privado também tomam em conta o conteúdo e função das normas materiais

dos ordenamentos em presença. São diferentes as valorações subjacentes às normas

materiais e às normas de conflito. Isto tem sido reconhecido quanto às normas de conexão.

Estas normas fundamentam-se numa valoração, que tem por objeto os diferentes

elementos de conexão que podem ser utilizados para individualizar o Direito aplicável a

uma determinada categoria de situações ou a um seu aspeto, com vista a determinar o

elemento de conexão mais adequado para o efeito. Por isso, a justiça da conexão atende ao

significado dos laços que a situação estabelece com os Estados em presença e não as

soluções materiais ditadas pelos Direitos destes Estados. O que permite contrapor a justiça

da conexão,, como justiça formal ou conflitual à justiça material, que diz respeito à solução

material do caso. Nem todas as normas sobre a determinação do Direito aplicável utilizadas

pelo Direito Internacional Privado são normas de conexão. As normas com conceito

designativo indeterminado estão ainda ao serviço da justiça da conexão, mas de uma justiça

de conexão no caso concreto, de uma equidade conflitual, uma vez que não estabelecem

por via geral e abstrata o elemento de conexão mais adequado, antes remetem o intérprete

para uma valoração conflitual perante o conjunto das circunstâncias do caso concreto. O

mesmo se diga das cláusulas de exceção, quando permitem o afastamento da lei

primariamente aplicável de um país quando a situação apresenta uma conexão

manifestamente mais estreita com outro país. A justiça do Direito Internacional Privado,

ou justiça conflitual, é mais ampla do que a justiça da conexão. A justiça conflitual pode

exprimir a adequação de um Direito supraestadual, como o Direito Autónomo do

Comércio Internacional, para reger uma determinada categoria de situações transnacionais,

sem que aqui esteja em causa, como é óbvio, qualquer laço entre a situação em causa e um

Estado. A justiça conflitual pode atender a considerações jurídico-materiais para reger

determinada categoria de situações transnacionais ou um seu aspeto. Mesmo quando atua

através das tradicionais normas de conflitos, que são normas de conexão, o Direito

Internacional Privado não se desinteressa completamente do resultado material. O Direito

Internacional Privado realiza a justiça em dois estágios, como observou Neuhaus:

a. Através da escolha do elemento de conexão adequado;

b. Através de um contro e de uma modelação da solução material do caso.

Por via da reserva de ordem pública internacional os princípios fundamentais da ordem

jurídica do foro atuam como princípios do Direito Internacional Privado, que limitam a

aplicação do Direito estrangeiro ou transnacional competente. E, se admitirmos que,

independentemente da ordem pública internacional, o Direito Internacional Público e o

Direito da União Europeia também estabelecem limites à aplicação do Direito estrangeiro

ou transnacional, os princípios de Direito Internacional e de Direito da União Europeia

aplicáveis a situações transnacionais também operam como princípios do Direito

Internacional Privado. Pelas razões expostas, a contraposição clara que é possível

estabelecer entre justiça de conexão e justiça material esbate-se quando consideramos a

justiça conflitual no seu conjunto. A evolução do Direito Internacional Privado também

tem sido marcada por uma certa materialização do Direito de Conflitos, que se traduz

Luís de Lima Pinheiro

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✒ designadamente na orientação material de certas normas de conflitos e na admissibilidade

de soluções unilaterais que complementam o sistema de Direito de Conflitos de base

bilateral, tendo em conta os fins de normas e leis individualizadas. Quando é que se justifica

o favorecimento de resultados materiais? Desde logo, o favorecimento de um certo

resultado material só se justifica quando no Direito material interno há uma finalidade

subjacente a um ramo do Direito ou a um instituto jurídico que aponta nesse sentido. É de

algum modo paradoxal que o Direito de Conflitos prossiga finalidades materiais com

especial intensidade quando no Direito material interno tais finalidades são secundarizadas.

Mas não basta que o Direito material interno aponte para o favorecimento de certo

resultado material. Por um lado, porque deve ser respeitada a autonomia do Direito de

Conflitos relativamente ao Direito material interno. Por outro lado, porque a harmonia

internacional é comprometida sempre que os sistemas de Direito Internacional Privado

divirjam no favorecimento de resultados materiais. Daí que as normas de conflitos só

devam ser materialmente orientadas quando se manifeste uma tendência internacional para

a prossecução de determinada finalidade jurídico-material. A orientação material das

normas de conflitos também pode fundamentar-se na necessidade de compensar

desvantagens decorrentes do caráter internacional da situação. Acrescente-se anda que o

favorecimento de resultados materiais deve ser compatibilizada com as exigências de

certeza e previsibilidades jurídicas. Por esta razão, este favorecimento deve resultar em

primeira linha de normas de conflitos gerais e abstratas e não de valorações casuísticas feitas

pelo órgão de aplicação do Direito. A justiça concretiza-se em valores e princípios jurídicos.

Mesmo que se admita que certos valores e princípios jurídicos podem hoje ser reconhecidos

como universais, não há um sistema universal de valores e princípios jurídicos válidos para

todas as ordens jurídicas estaduais. Por conseguinte, não há um sistema universal de valores

e princípios jurídicos do Direito Internacional Privado. Registam-se divergências mais ou

menos profundar entre os sistemas nacionais de Direito Internacional Privado quer na

escolha e hierarquia dos valores a realizar quer na conformação dos princípios orientadores.

O Direito de Conflitos assenta em valorações específicas e utiliza um método de regulação

próprio. Por isso, a sua autonomia relativamente ao Direito material deve ser reconhecida.

Mas o Direito de Conflitos não é imune aos grandes vetores que percorrem a ordem jurídica

a que pertence. Há valores e princípios jurídicos que dominam toda a ordem jurídica,

assumindo diferentes concretizações no Direito material e no Direito de Conflitos. A

justiça concretiza-se na ideia de supremacia do Direito, bem como num conjunto de valores

materiais e formais, conforme se ligam ou não ao conteúdo das soluções jurídicas. Da ideia

de supremacia do Direito decorre, para a regulação das relações transnacionais, que o

Direito deve orientar os aspetos essenciais da conduta social dos sujeitos destas relações

por meio de critérios vinculativos e que deve assegurar a resolução dos conflitos sociais

através de meios jurisdicionais e segundo regras jurídicas. Esta ideia relaciona-se

intimamente com os valores formais do Direito de Conflito que, de entre eles, cumpre

referir:

a. Certeza e previsibilidade: as normas de conflitos aplicáveis devem ser conhecidas

pelos destinatários e devem permitir a determinação do Direito aplicável com

facilidade e certeza. Isto aponta para a preferência por regras de conflitos gerais e

abstratas e pela utilização de elementos de conexão facilmente cognoscíveis por

todos os interessados;

b. Harmonia internacional: as divergências entre os sistemas nacionais de Direito de

Conflitos prejudicam a certeza e a previsibilidade do Direito aplicável. Estas

divergências poem originar conflitos de deveres para os sujeitos das situações

transnacionais e situações coxas, que se constituíram segundo um dos Direitos em

presença mas não são reconhecidas por outro dos Direitos envolvidos. A unificação

internacional do Direito de Conflitos assume a maior importância. Só o Direito de

Direito Internacional Privado

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9

§

Conflitos unificado pode garantir a harmonia internacional de soluções. Daí a

importância da ação de organismos internacionais que têm por fim a unificação do

Direito Internacional Privado, designadamente a Conferência de Haia de Direito

Internacional Privado, de que Portugal é membro, e, num âmbito regional, o

processo de europeização do Direito Internacional Privado no Âmbito da União

Europeia e a ação da Comissão Especializada Interamericana sobre Direito

Internacional Privado, que funciona sob a égide da Organização dos Estados

Americanos. Na falta de Direito de Conflitos de fonte supraestadual, deve o

legislador estadual de Direito Internacional Privado atender à conveniência de

estabelecer soluções internacionalmente uniformes. Também o legislador da União

Europeia, quando elabora instrumentos de âmbito europeu, deve ter em conta esta

máxima. Perante a inevitabilidade de divergências entre as soluções adotadas pelos

Estados, esta exigência aponta para a admissibilidade da devolução nos casos em

que tal sirva a obtenção da harmonia internacional. O valor da harmonia

internacional de solução não é, por certo, um valor absoluto e, como veremos, o

princípio de conformação global do sistema que inspira não é o princípio supremo

do Direito de Conflitos português. Mas é, em todo o caso, um dos valores básicos

do Direito de Conflitos que deve ter grande peso na conformação do sistema e na

escolha das soluções particulares.

Ligadas à ideia de supremacia do Direito e aos valores formais do Direito de Conflitos

surgem ainda duas exigências:

c. Limites à aplicação no tempo e no espaço do Direito de Conflitos: que decorre

antes do mais da consideração da norma de conflitos como critério social de conduta

e da tutela da confiança;

d. Um certo favorecimento da validade dos negócios e da legitimidade dos

estados: para além do fundamento pela tutela da confiança, que pode encontrar

justificação na justiça igualitária este favorecimento pode compensar as incertezas e

dificuldades acrescidas que resultam do contacto da situação com diversos Estados.

De entre os valores materiais do Direito assumem especial relevância no Direito

Internacional Privado:

a. Dignidade da pessoa humana: dela decorre, ao nível da escolha das conexões, o

princípio do respeito da personalidade dos indivíduos (princípio da personalidade),

ligado à noção de estatuto pessoal, e a conformidade dos elementos de conexão com

os direitos fundamentais. Este valor também impõe o Direito competente à luz dos

direitos fundamentais;

b. Igualdade: exprime-se, no Direito dos estrangeiros, no princípio da equiparação

entre nacionalidade e estrangeiros. Ao nível do Direito de Conflitos tem como

decorrências:

i. O caráter bilateral das normas de conflitos;

ii. A aplicação dos mesmos elementos de conexão a nacionais e a estrangeiros;

iii. A igualdade de tratamento das situações internas e das situações transnacionais,

designadamente quanto à incidência de normas imperativas e à eliminação de conflitos de

deveres;

iv. A exclusão de elementos de conexão discriminadores, designadamente em matéria de

relações de família a nacionalidade do marido;

v. A paridade de tratamento entre Direito material estrangeiro e o Direito material do foro

(Resolução Instituto de Direito Internacional sobre a igualdade de tratamento entre a lei

do foro e a lei estrangeira, adotada na sessão de Santiago de Compostela – 1989), que

não pode ser absoluta, por haver limites à aplicação do Direito estrangeiro

e casos residuais em que o Direito material do foro é subsidiariamente

aplicável.

Luís de Lima Pinheiro

大象城堡

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0

✒ A igualdade também postula a harmonia internacional de soluções, porquanto a

divergência dos Direitos de Conflitos, aliada à frequente existência de competências

concorrentes dos tribunais de vários Estados, leva ao favorecimento do titular da

ação, através da possibilidade de escolha do foro que aplica o Direito mais favorável

à sua pretensão.

c. Adequação: ínsita na própria ideia de justiça da conexão e, mais amplamente, em

toda a justiça conflitual, para a sua realização importa, em primeiro lugar, atender à

especificidade do domínio jurídico-material a regular na escolha do elemento de

conexão. Esta consideração não permite indicar sempre o elemento de conexão

decisivo mas permite delimitar o leque de elementos de conexão relevantes. Segundo,

deve atender-se às políticas legislativas prosseguidas por certas normas ou regimes

materiais individualizados, consideração que se liga com o tema das normas

autolimitadas e com as manifestações atuais de unilateralismo. A chamada de

atenção para estas políticas representa um contributo de autores norte-americanos

como Cavers, Currie e Ehrenzweig. A consideração destas políticas não permite

prescindir de um raciocínio conflitual, mas pode constituir um importante elemento

de valoração e orientação. Terceiro, justifica-se a criação de Direito material especial

de fonte supraestadual para aqueles problemas de regulação que apresentam

acentuada especificidade nas situações transnacionais. Quarto, importa ter em conta

as circunstâncias particulares do caso, consideração que, apontando para a justiça

conflitual do caso concreto, é limitada pelas exigências ligadas à supremacia do

Direito.

d. Equilíbrio: é especialmente importante naquelas matérias em que sobrelevam os

interesses das partes, designadamente os contratos obrigacionais. É este valor que

justifica regras de conflitos especiais que visam a proteção da parte contratual mais

fraca, por exemplo, nos contratos com consumidores e nos contratos de trabalho;

e. Ponderação: exigindo uma harmonização de bens e interesses é importante nos

casos em que se utilizam conceitos designativos indeterminados e cláusulas de

exceção, bem como na resolução de problemas de concurso e de falta de normas

aplicáveis;

f. Liberdade: por força deste valor tem de se respeitar que, na medida do possível,

cada ser humano decida sobre a sua vida (Autodeterminação individual). Este valor

tem como corolário o princípio da subsidiariedade que, neste contexto, postula, em

primeiro lugar, que só se justifique a regulação pelo Direito daqueles aspetos da vida

social que, pela sua essencialidade ou especificidade, reclamam uma intervenção de

órgãos públicos. Assim, o Direito não deverá regular aspetos da vida social e da vida

privada que não careçam de regulação normativa nem aqueles em que a regulação

pode ser suficientemente assegurada por outras ordens ou complexos normativos

(espaço livre de Direito). Em segundo lugar, o Estado, bem como as organizações

internacionais formadas por Estados, só têm de tomar a seu cargo as tarefas de

regulação que não podem ser realizadas de modo adequado pelos interessados,

mediante a autorregulação negocial, ou no quadro de sociedades de fins específicos

por meio de centros autónomos ou processos espontâneos. Isto projeta-se, ao nível

das escolhas das conexões relevantes para a regulação das situações transnacionais,

no crescente alcance do princípio da autonomia privada. Mas tem outras projeções,

designadamente ao nível da regulação de situações transnacionais num plano

autónomo relativamente às ordens jurídicas estaduais e supraestaduais. É nesta

ordem de ideias que foi anteriormente defendido que as relações de comércio

internacional sejam, em primeira linha, reguladas pelos respetivos sujeitos

(autorreguladas), por costumes e usos do comércio internacional, pelo costume

jurisprudencial arbitral e por regras criadas por centros autónomos, só intervindo os

Estados e as organizações por eles formuladas para suprir as insuficiências da

Direito Internacional Privado

葡京的法律大学

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1

§

autorregulação e da heterorregulação autónoma na realização dos valores da ordem

jurídica.

g. Tutela da confiança: deve evitar-se a invocação desta valor quando estão em causa

meras exigências de certeza e previsibilidade jurídicas. Tão pouco se deve confundir

a tutela da confiança com a proteção de expectativas naturais, ideia que não tem

qualquer relevo na concretização da justiça conflitual. A tutela da confiança tem

relevância para a conformação global do sistema de Direito Internacional Privado,

a tutela da confiança constitui um dos fundamentos para a aplicação do Direito

estrangeiro, nisto que a aplicação do Direito material do foro à generalidade das

situações transnacionais frustaria expectativas objetivamente fundadas. A tutela da

confiança também releva, neste plano, quando ocorre uma confiança objetivamente

justificada em situações que se constituíram ou consolidaram segundo uma lei

diferente daquela que lhes é aplicável por força das normas de conflitos gerais e que

deve ser protegida à luz do sistema de Direito Internacional Privado considerado na

sua globalidade. Isto pode verificar-se fundamentalmente em três tipos de casos:

i. Quando renha sido depositada confiança numa situação constituída, sob o império de

uma lei competente segundo um Direito de Conflitos estrangeiro que apresenta uma

ligação especialmente significativa com a situação, mas não segundo a lei competente por

força do Direito de Conflitos do foro;

ii. Quando exista uma confiança legítima na definição proferida num Estado estrangeiro,

mesmo que a solução seja diferente daquela a que conduziria o Direito de Conflitos do

foro;

iii. Quando a sucessão de leis aplicável a uma situação jurídica em virtude de uma alteração

dos laços existentes com os Estados em presença ponha em causa a estabilidade e

continuidade da situação.

h. Bem comum: é um valor bifrontal em Direito Internacional Privado:

i. Está em causa o bem comum da sociedade estadual que se dota de

um sistema de Direito de Conflitos: este bem comum justifica que na

formulação das soluções conflituais se tenham e conta interesses públicos

postos a cargo do Estado e as políticas prosseguidas para sua realização,

desde que tal não represente um sacrifício inaceitável de outros valores do

sistema. Em especial isto pode justificar normas de conflitos especiais sobre

a aplicação no espaço de determinadas leis ou categorias de normas, com

sucede como sucede com certas normas autolimitadas.

ii. Temos o bem comum universal, que sendo um dos fundamentos do

primado do Direito Internacional Privado sobre o Direito Estadual,

é um valor que também deve ser realizado pelo Direito de Conflitos:

por forma geral este valor postula que as soluções conflituais devem

contribuir para o bem estar económico, social, cultural e ambiental da

humanidade. Em particular, esta orientação valorativa justifica:

1. Que o Direito Internacional Público constitua um limite à

aplicação do Direito estrangeiro (bem como ao

reconhecimento de atos públicos estrangeiros);

2. A bilateralização de normas unilaterais ligadas a regras

materiais do foro que prossigam fins coletivos, por forma a

permitir a aplicação de normas estrangeiras que prossigam

fins indenticos;

3. A formulação de regras de remissão condicionada para

normas imperativas de terceiros ordenamentos que

prosseguem finalidades relevantes para a ordem jurídica do

foro ou amplamente reconhecidas pela comunidade

internacional.

Luís de Lima Pinheiro

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2

✒ Em ambas as vertentes, o bem comum reclama ainda a aplicação ao Direito de

Conflitos de instrumentos de análise económica, por forma a ter em conta, na

formulação das soluções conflituais, os seus efeitos económicos.

Uma parte das orientações contemporâneas nos EUA defende soluções individualizadas

para as situações interlocais ou transnacionais. Aponta-se para uma justiça do caso concreto,

que pode ser conflitual, material ou mista, conforme na determinação do Direito aplicável

se atenda às conexões existentes, ao conteúdo dos Direitos em presença ou a ambos os

aspetos. Esta viragem para soluções individualizadoras suscita as seguintes observações:

a. A individualização das soluções entra em conflito com as exigências da supremacia

do Direito e da certeza e previsibilidade jurídicas. A formulação de normas de

conflitos com um conteúdo designativo determinado é indispensável para que o

Direito de Conflitos com um conteúdo designativo determinado e indispensável

para que o Direito de Conflitos possa realizar a sua função reguladora, de orientação

de condutas. Esta função só pode ser exercida se a solução conflitual for previsível;

b. As teorias dos autores destas orientações têm de ser lidas e compreendidas no

contexto de sistemas jurídicos em que o Direito de conflitos não só não se encontra

codificado, como também não contém na maioria das matérias soluções claramente

estabelecidas e adequadas aos fins;

c. O Direito de Conflitos nos Estados da União Europeia tem evoluído no sentido de

uma flexibilização, através da admissibilidade da determinação da conexão em

função das circunstâncias do caso concreto em certos casos. Portanto, as

divergências entre conceções dominantes na Europa e nos EUA são menores do

que à primeira vista poderia parecer;

d. Convém acrescentar que a norma geral e abstrata não é única condição para a

decisão justa, mas é uma das condições: permite que o igual seja igualmente tratado.

Isto é verdade tanto para as normas materiais como para as normas de conflitos. É

só através de normas de conflitos com conceito designativo determinado se pode

promover a certeza jurídica, a previsibilidade de soluções e a harmonia internacional.

Por conseguinte, só se justifica o recurso à justiça conflitual do caso concreto em duas

hipóteses:

a. Quando as partes acordem num julgamento segundo a equidade e se trate

de relações disponíveis (trata-se de uma justiça do caso concreto mista);

b. Quando não for possível realizar a justiça da conexão por meio de uma norma

de conflitos com conceito designativo determinado. É o que sucede quando

não for possível encontrar um elemento de conexão adequado À matéria em causa.

Neste caso justifica-se o recurso a conceitos designativos indeterminados. Mas

mesmo quando se dispõe de uma norma de conflitos com elemento de conexão

adequado à matéria em causa, a justiça da a situação apresenta laços manifestamente

mais estreitos com um Estado diferente daquele cujo Direito é designado por essa

norma de conflitos. Por isso, defendo a introdução no Direito de Conflitos

português de uma cláusula geral de exceção, que permita afastar o Direito

primariamente aplicável em benefício do Direito do Estado que apresenta laços

manifestamente mais estreitos com a situação.

Por último, a justiça do Direito de Conflitos deve ser enquadrada pela justiça do Direito

Internacional Privado considerado no seu conjunto. Enquanto disciplina jurídica, o Direito

Internacional Privado poder ser representado por um triângulo. Os vértices são ocupados

por três complexos normativos:

Direito de Conflitos;

Direito de Competência Internacional;

Direito de Reconhecimento.

Direito Internacional Privado

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3

§

A cada um destes complexos normativos corresponde um ângulo de visão do objeto

comum (as soluções transnacionais). Os lados do triângulo representam os nexos

funcionais que se estabelecem entre esses complexos normativos.

A consciência desta realidade triangular é fundamental para a coerência do sistema, para a

adequação das soluções e para o ensino do Direito Internacional Privado. A coerência do

sistema reclama a articulação interna destes complexos normativos. No Direito positivo

manifesta-se por vezes uma falha de articulação que chega a repercutir-se em graves

contradições valorativas. A evolução recente do Direito positivo não se tem mostrado

sensível a esta preocupação e tem mesmo agravado os desajustamentos e antinomias entre

os complexos normativos em jogo. Isto é resultado, em vasta medida, de uma falta de visão

de conjunto; da pouca atenção prestada aos nexos entre os complexos normativos em jogo,

do empolamento do aspeto processual dos problemas da competência internacional e do

reconhecimento de decisões estrangeiras, que leva à busca de soluções completamente

desligadas do Direito de Conflitos, enfim, da tradição académica em certos países que isola

o estudo do Direito de Conflitos relativamente ao Direito da Competência Internacional e,

até, do Direito de Reconhecimento. Urge inverter esta tendência. A integração das soluções

num sistema global e coerente traduzir-se-á em soluções mais adequadas à vida jurídica

transnacional, reduzindo os fatores de incerteza e imprevisibilidade, tutelando a confiança

depositada no Direito de Conflitos e atenuando o desequilíbrio entre as partes criado pelo

forum shopping e pelo aproveitamento abusivo do instituto de reconhecimento de decisões

judiciais estrangeiras. Esta integração deve encontrar expressão na inserção do Direito de

conflitos, do Direito de Competência Internacional e do Direito de Reconhecimento num

mesmo diploma. Afigura-se igualmente defensável que, pelo menos em certas matérias, os

instrumentos internacionais ou europeus adotem a mesma perspetiva integradora. Uma

convergência entre foro competente e Direito aplicável oferece vantagens evidentes.

2. Os princípios do Direito de Conflitos:

a. Preliminares: a expressão princípio jurídico é empregue em vários sentidos mas é

no sentido de proposições jurídicas com elevado grau de indeterminação que,

exprimindo diretamente um fim ou valor da ordem jurídica, constituem uma

diretriz de solução que aqui se fala de princípios do Direito de Conflitos. Quanto

à distinção entre princípios e regra jurídica e ao modo de revelação direi apenas que

o princípio, ou se encontra consagrado na lei ou tem de ser obtido a partir de um

exame das razões que justificam várias soluções particulares. Esta tarefa é

indispensável com respeito aos princípios do Direito Internacional Privado, visto

que estes não se encontram legalmente consagrados. Os princípios desempenham

várias funções:

DIPr

Direito dos Conflitos

Direito da Competência

Internacional Direito de

Reconhecimento

situações transnacionais

Luís de Lima Pinheiro

大象城堡

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4

✒ i. Resolução de problemas de interpretação, em especial quando se trate

de conceitos carecidos de preenchimento valorativo;

ii. Integração de lacunas, pelo menos quando não seja possível supri-las

mediante o recurso à norma aplicável a casos análogos;

iii. Redução teleológica, pela não aplicação de uma norma a situações que, em

princípio, caberiam na sua previsão.

Enquanto ideia orientadora de um determinado conjunto de soluções particulares,

os princípios estão subjacentes à maior parte das regras jurídicas. Segundo uma tese,

perfilhada por Batista Machado, os princípios prevalecem sobre as normas de

conflitos singularmente consideradas. As regras de conflitos seriam simples critérios

instrumentais que cederiam perante e teleologia intrínseca do Direito Internacional

Privado à face das circunstâncias do caso. Em resultado, esta posição, se não leva a

entender que as normas de conflitos são meras diretrizes interpretativas, conduz

pelo menos à afirmação de que em todo o sistema de Direito Internacional Privado

vigora uma cláusula de exceção. Não concordo com esta posição. Entendo que as

normas de conflitos são tão vinculativas como as normas materiais. E que o nosso

sistema não consagra genericamente uma cláusula de exceção. Considera-se as

normas de conflitos como meras diretrizes interpretativas só será defensável –

mesmo de iure condendo –, para quem lhes nega o caráter de normas de conduta, e

entra em contradição com as exigências da supremacia do Direito. Os valores e os

princípios estão subjacentes às regras, servem para a sua interpretação e podem

justificar uma extensão analógica ou uma redução teleológica. Mas, segundo o

entendimento que perfilho, não derrogam as regras legais. Neste sentido, pode

invocar-se o princípio da divisão de poderes e o dever de obediência à lei (artigos

203.º CRP e 8.º, n.º2 CC). Este entendimento não só é seguido pela generalidade

dos autores positivistas e neopositivistas e pelos críticos do pensamento sistemático,

como também se conforma com o pensamento de autores muito representativos da

área neojusracionalista, como Larenz e Canaris. Os princípios do Direito de

Conflitos poem dizer respeito à escolha das conexões relevantes ou a características

gerais do sistema de Direito de Conflitos que são independentes da escolha de

conexões individualizadas.

b. Princípios de conformação global do sistema: Ferrer Correia esboçou uma

sistematização dos princípios que dizem respeito à conformação global do sistema,

baseada nos estudos feitos pelo primeiro Wengler à face do Direito alemão.

Acrescenta-lhe um quadro de interesses que se inspira na análise feita por Kegel à

face do mesmo Direito. A indagação a que me proponha tem por objetivo a

sistematização dos princípios do Direito de Conflitos Português. Os estudos feitos

por Wengler e Kegel têm muito interesse para esta indagação, porque há muito em

comum entre os sistemas de Direito dos Conflitos alemão e português. Para Ferrer

Correia, a segurança e a certeza jurídica são os valores predominantes no Direito

Internacional Privado. Por conseguinte, na esteira do primeiro Wengler, elege um

princípio fundamental do Direito Internacional Privado:

i. Harmonia jurídica internacional: deve ser o mesmo o Direito aplicável

a uma situação qualquer que seja o Estado em que venha a ser apreciada.

Este princípio tem múltiplas implicações:

1. Deve adotar-se um sistema de Direito dos Conflitos de base bilateral;

2. As normas de conflitos estabelecidas por cada legislador estadual devem ser

universalizáveis; cada sistema nacional de Direito Internacional Privado deve

constituir o modelo de um sistema universal de resolução de conflitos de leis;

3. Na escolha dos elementos de conexão deve atender-se à sua difusão internacional;

4. Deve aceitar-se a devolução quando tal permita alcançar a harmonia

internacional;

Direito Internacional Privado

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5

§

5. Deve adotar-se um sistema que permita o reconhecimento, sob condições

apropriadas, de atos públicos estrangeiros.

É certo que este princípio se manifesta claramente na configuração do

sistema português de Direito Internacional Privado. No entanto, é um

princípio que conhece limites importantes no nosso Direito de Conflitos.

Em regra, o nosso sistema não admite a devolução, praticando referência

material. O que decorre, em parte, do sacrifício da harmonia internacional

em benefício da competência da lei da nacionalidade em matéria de estatuto

pessoal (artigo 17.º, n.º2 e 18.º, n.º2 CC), e em benefício do favor negotii

(artigo 19.º, n.º1 CC), e, noutra parte, da inadmissibilidade de devolução em

determinadas matérias. Não posso por isso concordar que lhe seja atribuído

o caráter de princípio supremo do Direito de Conflitos português.

ii. Harmonia material ou interna: exprime a ideia de unidade do sistema

jurídico. Esta unidade postula, em primeiro lugar, a uniformidade de

valoração das mesmas situações dentro de cada ordem jurídica. Este

princípio postula também a coerência na regulação das situações da vida, o

que obriga à eliminação de contradições normativas ou valorativas entre as

normas contidas nas leis aplicáveis a diferentes segmentos da mesma

situação, designadamente através da adaptação. Em terceiro lugar, este

princípio aponta no sentido de uma limitação do dépeçage, do fracionamento

das situações da vida pelo Direito de Conflitos, por forma a preservar a

unidade de regulação de cada situação globalmente considerada. Nesta

medida, há uma tensão entre o princípio da harmonia material e a exigência

de adequação do elemento de conexão à matéria a regular. Esta exigência

conduz à especialização de soluções e, com ela, à formulação de normas de

conflitos para diferentes segmentos de uma mesma categoria de situações.

O dépeçage apresenta-se assim como uma consequência até certo ponto

inevitável da prossecução, pelo Direito Internacional Privado, da justiça

conflitual. Por último, o princípio da harmonia material aconselha a que

questões interdependentes sejam submetidas ao mesmo Direito. Isto pode

justificar a preterição da lei primariamente aplicável a uma situação em favor

da lei aplicável a outra situação que esteja interligada com a primeira

(conexão acessória).

iii. Confiança: justifica, no contexto do Direito de Conflitos, que sejam

reconhecidas as situações jurídicas que se constituíram ou consolidaram

validamente perante o Direito Internacional Privado de uma ordem jurídica

estrangeira que apresenta uma conexão especialmente importante com a

situação, mesmo que não sejam válidas perante as normas primariamente

aplicáveis no Direito Internacional Privado do foro. Isto pode ser

justificado perante uma divergência do Direito de conflitos do foro

relativamente ao Direito de Conflitos da ordem jurídica estrangeira que

apresenta uma conexão especialmente importante. São considerações desta

natureza que justificam o disposto no artigo 31.º, n.º2 CC. Mas também

deveria ser relevante a circunstância de a situação jurídica ser definida por

uma decisão estrangeira proferida pelo órgão de uma ordem jurídica que

apresenta uma conexão especialmente importante com a situação, ou

reconhecida nesta ordem jurídica, apesar de a decisão não ser, em princípio,

reconhecível ou ainda não ter sido reconhecida (nos casos em que o

reconhecimento dependa de um procedimento prévio) no Estado do foro.

A tutela da confiança justifica ainda alguns desvios à lei normalmente

competente, designadamente a relevância da lei do lugar de celebração em

matéria de capacidade negocial (artigos 13.º RRI e 28.º CC) e a relevância

Luís de Lima Pinheiro

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✒ da sede estatutária das sociedades comerciais, nas relações com terceiros

(artigo 3.º, n.º1, in fine CSC). O princípio da confiança também exige o

respeito da estabilidade e continuidade das situações jurídicas, quando não

haja razões objetivas suficientemente ponderosas que imponham a sua

modificação ou extinção. Isto tem consequências na escolha de elementos

de conexão estáveis em matéria de estatuto pessoal, como a nacionalidade

ou a residência habitual, bem como na solução dos problemas de

concretização no tempo do elemento de conexão. Assim, em matéria de

sucessão de estatutos, justifica-se a transposição de certos princípios do

Direito Intertemporal, como o da irretroatividade e o da continuidade das

situações jurídicas. Enfim, este princípio também se manifesta no Direito

de Reconhecimento, para além do aspeto anteriormente referido. Em geral,

a confiança depositada pelos sujeitos jurídicos na definição da situação,

contribui para justificar o reconhecimento de sentenças estrangeiras.

iv. Efetividade: na resolução de conflitos de leis haverá que atender à

circunstância de certos Estados se encontrarem em posição privilegiada

para imporem o seu ponto de vista sobre a regulação do caso. Este princípio

pode contribuir para a fundamentação da própria conexão primária.

Noutros casos, o princípio justifica um desvio à lei normalmente

competente. Para designar esta vertente do princípio da efetividade também

se fala do princípio da maior proximidade. Mas há autores, como Lagarde,

que utilizam esta expressão num sentido diferente: no de princípio da

conexão mais estreita. O princípio da maior proximidade tem um alcance

muito limitado no nosso sistema.

v. Favor negotii: devem ser favorecidas a validade dos negócios jurídicos e a

legitimidade dos estados. Este princípio leva à paralisação da devolução, no

artigo 19.º, n.º1 CC, fundamenta autonomamente a devolução em matéria

de forma dos negócios jurídicos nos artigo 36.º, n.º2 e 65.º, n.º1 CC e artigo

11.º RRI com respeito à forma do negócio jurídico. O legislador português

parece ter ido demasiado longe na consagração deste princípio,

designadamente quando sacrifica a harmonia internacional alcançada

através da devolução para salvar a validade de um negócio ou a legitimidade

de um estado.

vi. Reserva jurídico-material: o Direito de Conflitos não opera sem limites

colocados pela justiça material. A justiça da conexão cede perante a justiça

material quando estão em causa seja normas e princípios supraestaduais seja

normas e princípios fundamentais da ordem jurídica portuguesa. Estas

normas e princípios formam uma reserva jurídico-material do sistema

português de Direito Internacional Privado que limita o funcionamento do

Direito de Conflitos. Este princípio fundamenta diversos limites à aplicação

do Direito estrangeiro ou não estadual competente segundo o sistema de

Direito de Conflitos: a reserva de ordem pública internacional, o Direito

Internacional Público, o Direito da União Europeia e a Constituição. Já a

ideia de boa administração da justiça não constitui um princípio do Direito

Internacional Privado português. Quer o regime da devolução quer o

disposto no artigo 23.º, n.º1 CC, para o caso de impossibilidade de

averiguar o conteúdo da lei estrangeira aplicável, demonstram que o nosso

sistema não favorece a aplicação do Direito do foro. Em todo o caso, foi

atrás assinalado que as vantagens que resultam da coincidência entre forum

e ius são um dos elementos de aplicação que têm de entrar na valoração feita

pelo legislador e pelos órgãos da aplicação do Direito quando criam e

desenvolvem o Direito de Conflitos.

Direito Internacional Privado

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7

§

c. Princípios de conexão: a doutrina fornece indicações sobre as fonalidades

específicas das normas de conflitos, mas não formulou os princípios a que estas

finalidades se reconduzem. As linhas que se seguem representam uma primeira

tentativa de sistematização dos princípios de conexão vigentes no Direito de

Conflitos português:

i. Conexão mais estreita: pode traduzir a própria justiça da conexão no seu

conjunto e, por conseguinte, abranger todos os elementos de valoração,

designadamente os princípios e ideias orientadoras da escolha da conexão.

A ideia de conexão mais estreita pode também exprimir a justiça da conexão

objetiva em matéria de contratos obrigacionais (artigos 4.º Convenção

Roma e 4.º, n.º3 e 4 RRI). Aqui tem-se em vista um outro sentido: o de

aplicação do Direito com que o interessado ou interessados estão mais

ligados ou familizarizados. Há uma relação entre este princípio e a

supremacia do Direito, a atuação da norma de conflitos como critério de

conduta: as pessoas só podem orientar-se por um Direito cuja aplicação seja

previsível e tendem a orientar-se por um Direito a que estão mais ligadas.

Mas o princípio da conexão mais estreita é também uma expressão da

justiça da conexão, da busca do laço mais significativo para individualizar o

Direito competente. Tratar-se- de um princípio de conteúdo especialmente

indeterminado. O princípio da conexão mais estreita tanto contribui para

fundamentar uma norma de conflitos com conceito designativo

indeterminado, ou uma cláusula de exceção, como para a consagração, por

via mais geral e abstrata, de um determinado elemento de conexão. Qual o

caminho a seguir depende em parte da natureza da matéria em causa e,

noutra parte, dos princípios que orientam a conformação global do sistema.

Em qualquer caso, o princípio dificilmente permite eleger um único

elemento de conexão como conflitualmente justo. Na maior parte dos casos

permite apenas delimitar o leque de elementos de conexão entre os quais se

deve fazer a seleção.

ii. Personalidade: quando referido à ideia de respeito da personalidade dos

indivíduos é, como já se assinalou, uma decorrência do princípio mais geral

da dignidade da pessoa humana. Este princípio manifesta-se, em primeiro

lugar, na noção de lei pessoal. Certas qualidades e situações jurídicas são

atributos ou irradiações substanciais da pessoa humana, que toda a ordem

jurídica deve reconhecer na sua identidade essencial, onde quer que ela se

manifeste (Ferrer Correia). Por conseguinte, o início e termo da

personalidade,, as relações de família e as sucessões por morte devem ser

regidos pelo Direito individualizado por um elemento de conexão que

exprime uma ligação não só íntima mas também permanente com os

interessados. Daí resulta uma limitação dos elementos de conexão

suscetíveis de revelarem em matéria de estatuto pessoal à nacionalidade,

domicílio e residência habitual. O princípio da personalidade exige o

respeito, na medida do possível, da inserção do indivíduo na esfera sócio-

cultural de um Estado, por forma a respeitar a sua identidade cultural. O

respeito da identidade cultural dos indivíduos também é uma expressão do

direito Constitucional à identidade pessoal (artigo 26.º, n.º1 CRP). Enfim,

perante o Direito positivo o respeito da competência da lei pessoa pode

levar ao sacrifício da harmonia internacional alcançada através da devolução

(artigos 17.º, n.º2 e 18.º, n.º2 CC). Mas o princípio da personalidade não

justifica este sacrifício, uma vez que a harmonia internacional é necessária

ao respeito por todas as ordens jurídicas de qualidade e situações jurídicas

do estatuto pessoal.

Luís de Lima Pinheiro

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8

✒ iii. Territorialidade: saber se este princípio pode ser encarado como um

princípio geral do Direito de Conflitos vigente suscita mais hesitações. O

conceito de territorialidade das leis é ambíguo e dá azo a equívocos.

Machado Villela deu conta da insuficiência da classificação das leis segundo

a sua competência (territorial ou extraterritorial), introduzindo no seu

sistema a noção de valor territorial ou extraterritorial das leis. Esta distinção

representa um progresso importante, mas a termonilogia empregue por

Machado Villela não me parece a mais esclarecedora. Proponho que em

lugar de valor territorial se utilize a expressão territorialismo quanto aos

órgãos de aplicação e, em lugar de competência territorial, territorialismo

quanto às situações reguladas.

1. Uma lei é territorial quanto aos órgãos de aplicação quando

só é aplicada pelos órgãos do Estado que a edita (inversamente,

a lei é extraterritorial quanto aos órgãos de aplicação quando é

aplicada por órgãos de outros Estados).

2. Uma lei é territorial quanto às situações que têm uma dada

conexão quando se aplica a todas as situações que têm uma

dada conexão com o território do Estado que a edita

(inversamente, é extraterritorial quanto às situações reguladas de

uma conexão com o território do Estado que a edita).

É neste segundo sentido de territorialidade que a expressão lei territorial é

utilizada no artigo 24.º, n.º1 CC. Trata-se da lei que é designada por via de

um elemento de conexão que aponta para um determinado lugar no espaço.

Há ainda uma terceira aceção de territorialidade, segundo a qual:

3. Uma lei só produz diretamente efeitos para o território do

Estado que a edita: quer isto dizer que a lei de um Estado só se

aplica aos factos ocorridos no seu território.

A territorialidade entendida nesta terceira aceção é excecional. Também é

claro que não vigora um princípio de territorialidade quanto aos órgãos de

aplicação. Já é certo que no domínio do Direito patrimonial a maior parte

dos elementos de conexão utilizados pelo Direito de Conflitos geral

apontam para um lugar no território de um Estado como forma de designar

o Direito aí vigente. Nesta medida, poderia dizer-se que até certo ponto

vigora um princípio da territorialidade. Mas isto é limitado pela tendência

para admitir, cada vez mais amplamente, a designação pelos interessados do

Direito aplicável e para flexibilizar os critérios de conexão, atendendo a

todos os laços significativos. Não creio, por conseguinte, que vigora no

Direito de Conflitos Internacional Privado português um princípio da

territorialidade.

iv. Autonomia privada: veicula, como ficou atrás assinalado, o valor liberdade,

relaciona-se com determinados direitos fundamentais que, a nível

internacional, europeu e nacional, são inspirados por esse valor. Enquanto

princípio de escolha das conexões atua a dois níveis;

1. Exprime-se na utilização de elementos de conexão cujo

conteúdo concreto pode ser modelado pelos interessados: há

aqui uma relevância indireta da vontade na determinação do

Direito aplicável;

2. A conexão alternativa cria um espaço de autonomia, sem que,

porém, conceda relevância direta à vontade na determinação

do Direito aplicável.

Tradicionalmente, as atenções incidem sobre a liberdade de designação do

Direito aplicável, admitida pelo Direito de Conflitos geral em matéria de

Direito Internacional Privado

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9

§

contratos obrigacionais e pessoas coletivas internacionais (artigos 3.º

Convenção Roma e RRI, artigo 5.º Convenção Haia 1979 e o artigo 34.º

CC) e, mais amplamente, pelo Direito de Conflitos especial da arbitragem

transnacional (artigo 52º, n.º1 LAV(. Em virtude do crescente peso do

princípio da autonomia privada no Direito de Conflitos geral, a escolha do

Direito aplicável também é presentemente admitida, pela Convenção Haia

1979, com respeito às relações que se estabelecem entre o representado e o

terceiro e entre o intermediário e o terceiro (artigos 14.º e 15.º Convenção),

e pelo Regulamento de Roma II, em matéria de obrigações extracontratuais

(artigo 14.º) bem como , mais limitadamente, pelo Protocolo de Haia sobre

a Lei aplicável às obrigações de alimentos (artigos 7.º e 8.º), pelo

Regulamento Roma IV (artigo 5.º) e pelo Regulamento Roma V, sobre

sucessões, em matéria de sucessões por morte (artigo 22.º). Veremos que

há outras manifestações da autonomia privada cujo caráter material ou

conflitual oferece dúvida. Na liberdade de designação do Direito aplicável

manifesta-se a autodeterminação dos interessados. Para a justificação da

eficácia jurídica da Convenção sobre o Direito aplicável a relações jurídicas

concorrem razões de certeza, previsibilidade e facilidade – pelo menos para

os interessados –, na determinação da disciplina material do caso, ligadas À

proteção da confiança recíproca. Enfim, é a partir do princípio que a

conexão operada mediante a designação feita pelos interessados exprime,

numa concreta situação da vida, uma solução adequada aos seus interesses.

Estas razões justificam que, mesmo à face do Direito de Conflitos em geral,

se admita a designação do Direito aplicável pelos interessados na

generalidade das relações disponíveis e mesmo, ainda que muito

limitadamente, em relações indisponíveis. Assim, entendo que em matéria

de estatuto pessoal (submetida, em princípio, à lei da nacionalidade) o

interessado deveria poder optar pela lei da residência habitual quando esta

residência tiver durado cinco ou mais anos. Em ambos os casos a relevância

da autonomia privada teria de ser acompanhada de certos

condicionamentos. Também este princípio prevalece sobre a harmonia

internacional, com o demonstra o n.º2 do artigo 19.º CC.

v. Favorecimento de pessoas que são merecedoras de especial proteção:

designadamente por se encontrarem em posição de especial vulnerabilidade

ou serem a parte contratual mais fraca, este princípio manifesta-se

designadamente em dois tipos de normas de conexão:

1. Normas de conflito materialmente orientadas, que favorecem

determinados resultados materiais mediante a utilização de

conexões alternativas, cumulativas ou optativas;

2. Normas de conflitos especiais que conduzem à aplicação da

lei do Estado em que a pessoa carecida de proteção tem o seu

centro da vida pessoal ou profissional.

Este princípio manifesta-se principalmente nos seguintes casos:

No favorecimento da criança: artigo 57.º, n.º1, in fine CC,

Convenções de Haia de 1961 e 1996 em matéria de proteção de

crianças e artigo 4.º Protocolo de Haia sobre a lei aplicável às

obrigações de alimentos);

No favorecimento do consumidor: artigos 5.º Convenção Roma

e 6.º RRI);

No favorecimento do trabalhador: artigos 6.º Convenção Roma

e 8.º RRI);

Luís de Lima Pinheiro

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0

✒ No favorecimento de certos credores de alimentos: artigo 4.º

Protocolo de Haia sobre a lei aplicável às obrigações de alimentos);

No favorecimento do lesado por danos ambientais: artigo 7.º

RRII.

d. Integração dos princípios: os princípios do Direito de Conflitos complementam-

se reciprocamente mas também entram frequentemente em contradição entre si,

exigindo limitações exclusivamente num dos princípios, mas é mais frequente que

as soluções decorram de uma articulação de diferentes princípios.

Valores de Direito Internacional Privado

Formais

Certeza e previsibilidade Limites à aplicação no tempo e no espaço do

Direito de Conflitos; Um certo favorecimento da validade de negócios

jurídicos e da legitimidade dos estados

Harmonia Internacional

Materiais

Dignidade da pessoa humana

Igualdade

Adequação

Equilíbrio

Ponderação

Liberdade

Confiança

Bem comum Da sociedade estadual

universal

Princípios do Direito Internacional Privado

De conformação do sistema

Harmonia internacional

Harmonia interna ou Unidade da ordem jurídica portuguesa

Confiança ou continuidade das situações jurídicas adquiridas/previsibilidade

Efetividade

Favor negotii

Reserva juríico-material

De escolha da conexão

Conexão mais estreita

Territorialidade

Autonomia privada

Favorecimento de pessoas que são merecedoras de especial proteção

Direito Internacional Privado

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1

§

Estrutura Geral da Norma de Conflitos

1. Elementos da norma de conflitos.

a. Razão de ordem: ao procedermos à análise da estrutura da norma de conflitos

corremos o risco de antecipar o tratamento de questões que só num momento

ulterior – designadamente aquele em que estudarmos a qualificação –, poderão ser

devidamente apreciadas. Por isso, neste capítulo, vou limitar-me às noções essenciais

sobre a estrutura da norma de conflitos, por forma algo descritiva.

b. Previsão:

i. Objeto da norma de conflitos: a previsão da norma de conflitos define os

pressupostos de cuja verificação depende a sua aplicação. Através destes

pressupostos, a previsão da norma delimita o seu objeto e delimita o alcance

material da remissão. O objeto da norma de conflitos é, como ficou atrás

assinalado, a situação transnacional ou um seu aspeto. As normas de

conflitos do tipo utilizado no Direito de Conflitos geral delimitam as

situações da vida através de conceitos técnico-jurídicos que atendem ao

conteúdo típico e a notas funcionais. Os conceitos utilizados na previsão

das normas de conflitos são de extensão variável. Em média, esta extensão

depende do maior ou menor número de normas de conflitos que compõem

o sistema. Num sistema que disponha de umas poucas normas de conflitos

os conceitos tendem a ter um alcance muito vasto. Num sistema muito

especializado, o objeto de cada uma das normas tende a ser muito mais

restrito. A extensão do objeto da norma de conflitos deve ser aquela que

convenha à sua estatuição, à remissão. Ao eleger os diferentes elementos de

conexão, o legislador tem em vista aqueles que, em função da especificidade

das diferentes categorias de situações ou dos seus diferentes aspetos, são os

mais adequados para designar o Direito que lhes há-de ser aplicado.

Importa pois que a previsão de uma norma de conflitos compreenda

aquelas situações, e só aquelas, para as quais, segundo o juízo de valor

legislativo, é adequada a conexão. Na formação dos conceitos utilizados na

previsão das normas de conflitos o legislador deve atender ao Direito

Comparado. Por um lado, no interesse da harmonia internacional de

soluções, importa ter em conta a tendência seguida por outros Direitos de

Conflitos. Por outro lado, estes conceitos devem tanto quanto possível

abranger a generalidade dos institutos jurídicos, incluindo institutos

jurídicos desconhecidos do ordenamento do foro. Já assinalei que existem

normas unilaterais ad hoc, que se reportam à aplicação do Direito material

unificado ou de determinadas normas ou leis de fonte interna. Estas normas

também têm por objeto situações da vida, ou aspetos de situações da vida.

A principal diferença relativamente às normas de conflito do tipo

anteriormente referido decorre de a delimitação destas situações da vida ser

feita, no caso das normas de conexão do Direito material unificado, por

normas sobre o domínio material de aplicação da Convenção e, no caso de

outras normas de conexão ad hoc, pela previsão da norma material cuja

aplicabilidade está em causa. Uma parte das Convenções de unificação do

Direito de Conflitos também utiliza, na previsão das suas normas de

conflitos, conceitos técnico-jurídicos que se reportam a categorias de

situações jurídicas e a questões parciais. Noutras Convenções, porém,

manifesta-se uma preferência por conceitos eminentemente fáticos, que

procuram evitar as dificuldades suscitadas pelos conceitos técnico-jurídicos

e preservar a unidade funcional entre normas e regimes de diferentes ramos

do Direito. A preferência por conceitos funcionais deste tipo é manifestada

Luís de Lima Pinheiro

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2

✒ por alguns autores, mas dificilmente se poderia generalizar a todas as

matérias. Os conceitos utilizados na previsão da norma de conflitos não

desempenham apenas a função de delimitar o objeto da norma. Eles

também delimitam o alcance material da remissão operada pela norma, na

medida em que, como veremos adiante, a norma de conflitos só chama à

aplicação as normas e princípios materiais que sejam reconduzíveis a esses

conceitos (artigo 15.º CC). Neste sentido, pode dizer-se que os conceitos

utilizados na previsão da norma de conflitos desempenham uma dupla

função

1. Delimitam o objeto da norma; e,

2. Delimitam o alcance material da remissão.

ii. O fenómeno do dépeçage e suas implicações: muitas normas de

conflitos não se reportam a situações típicas globalmente consideradas mas

apenas a certos aspetos parcelares. Estas normas reportam-se a questões

parciais. Muitas normas de conexão ad hoc também se reportam só a aspetos

parcelares. Mesmo as normas de conflitos que se reportam a categorias de

relações jurídicas causam fracionamento na regulação das situações da vida

dado o cruzamento de diferentes domínios do Direito material na disciplina

de uma concreta situação da vida. Para definir a disciplina aplicável a uma

relação internacional de compra e venda é necessário atual uma pluralidade

de normas de conflitos, designadamente as relativas à substância do

contrato, à forma do contrato e aos efeitos reais. Estas normas de conflitos

podem desencadear a aplicação de uma pluralidade de Direitos a diferentes

aspetos da relação. A especialização do Direito de Conflitos acentua o

fracionamento na regulação das situações transnacionais. Este fenómeno

de fracionamento das situações nacionais pelo Direito de Conflitos é

geralmente designado por dépeçage. O dépeçage vem realçar a função

reguladora do Direito de Conflitos. A conceção savignyana de Direito

Internacional Privado favorece a ideia segundo a qual cada relação jurídica

está inserida numa determinada ordem jurídica, que é justamente aquela

onde tem a sua sede. Esta ideia não corresponde à realidade jurídico-

positiva. Em regra, a globalidade da disciplina de uma concreta relação da

vida internacional só pode ser definida pela atuação de uma pluralidade de

normas de conflitos. Acresce que, por vezes, a mesma norma de conflitos

admite o chamamento de mais de um Direito para reger diferentes questões.

Daí decorre que, em regra, cada relação da vida internacional é suscetível

de ser regulada mediante a remissão para uma pluralidade de Direitos. Esta

realidade jurídico-positiva exprime, como foi anteriormente assinalado,

uma preocupação de justiça conflitual objetiva, de busca das soluções mais

adequadas à matéria a regular. A regulação das situações transnacionais pelo

Direito de Conflitos não se traduz, por conseguinte, na sua inserção numa

determinada ordem jurídica, mas no estabelecimento de uma disciplina

material coerente com base numa pluralidade de remissões para diferentes

Direitos. A busca de soluções mais adequadas à matéria, que leva a uma

crescente especialização de soluções, colide com outra exigência da justiça

conflitual, que é a da harmonia material. Com efeito, o dépeçage traz consigo

o risco de contradições normativas ou valorativas, ou de dessintonias, entre

as proposições jurídicas que são pedidas a diferentes ordens jurídicas. Este

risco é tanto menor quanto mais vasto for o alcance da previsão da norma

de conflitos. Na formação dos conceitos que delimitam o objeto da norma

este risco pode ser atenuado. É necessário que estes conceitos respeitem,

tanto quanto possível, as unidades de regulação em que estão inseridas as

Direito Internacional Privado

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3

§

normas singulares e os conjuntos normativos interdependentes. Mesmo

que se siga este caminho, porém, o risco de antinomias não pode ser evitado.

A preservação da harmonia material exige então do Direito Internacional

Privado a reconstrução da unidade e coerência perdidas com o

fracionamento do Direito aplicável, mediante a conjugação dos diferentes

estatutos. Para o efeito, as normas de conflitos têm de desempenhar uma

função modeladora do resultado material, que pode passar nomeadamente

por uma adaptação.

c. Estatuição:

i. A estatuição da norma de conflitos: a estatuição da norma de conflitos,

a consequência jurídica que desencadeia, é tradicionalmente identificada

com a conexão. A conexão é o chamamento de um ou mais Direitos a

regular a questão. A estatuição da norma de conflitos carece de uma

concretização. Esta resulta da concretização do elemento de conexão que é

co-gerador da consequência jurídica concreta. Pode todavia pensar-se que

à dupla função técnico-jurídica da norma de conflitos corresponde uma

dupla consequência jurídica ou, com mais rigor, uma consequência jurídica

complexa. Por um lado, a norma de conflitos remete para um Direito. Esta

remissão é geralmente feita através de uma conexão, mas como já sabemos

que nem todas as normas de conflitos são normas de conexão, é preferível

designar esta primeira consequência por remissão. Quando a remissão é

feita para uma ordem jurídica estrangeira suscita-se o problema da

determinação do alcance conflitual da remissão, i.e., a questão de saber se a

remissão abrange o Direito Internacional Privado da ordem jurídica

designada. Um segundo problema, que se coloca tanto quando a remissão

é feita para o Direito estrangeiro como quando é feita par ao Direito do

foro, diz respeito ao alcance material da remissão. Trata-se de determinar,

no seio do Direito designado pela norma de conflitos, quais as proposições

jurídico-materiais que são chamadas por esta norma. Quando a remissão é

feita para um Direito estrangeiro ou extra-estadual produz-se uma segunda

consequência jurídica que se traduz na atribuição de um título de aplicação

ao Direito material estrangeiro ou extra-estadual. O conjunto de

proposições jurídico-materiais que são chamadas por uma norma de

conflitos é geralmente designado por estatuto. Em certos casos a palavra

estatuto também pode designar o conjunto de proposições jurídico-

materiais que são chamadas pelas várias normas de conflitos que regulam

determinado âmbito de matérias. Já as expressões Direito aplicável, lei

aplicável ou lex causae são polissémicas: tanto podem significar o mesmo

que estatuto como podem abranger o Direito Internacional Privado

aplicável da ordem jurídica designada pela norma de conflitos.

ii. Modalidades de conexão em geral: a conexão pode ser:

1. Singular: quando, em resultado, desencadeia a aplicação de um só

Direito para reger a questão. Esta conexão singular subdivide-se

em:

a. Simples: a norma de conflitos designa por forma direta e

imediata um único Direito aplicável à questão;

b. Subsidiária: a norma de conflitos dispõe de uma série de

elementos de conexão que operam em ordem sucessiva,

por forma a que a atuação do elemento de conexão

seguinte depende da falta de conteúdo concreto do

elemento de conexão anterior;

Luís de Lima Pinheiro

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4

✒ c. Alternativa: a norma de conflitos contém dois ou mais

elementos de conexão, suscetíveis de designarem dois ou

mais Direitos, sendo efetivamente aplicado aquele que, no

caso concreto, se mostrar mais favorável à produção de

determinado efeito jurídico;

d. Optativa: a norma de conflitos também dispõe de dos ou

mais elementos de conexão, suscetíveis de designarem

dois ou mais Direitos, mas é agora a vontade de uma

determinada categoria de interessados que vai determinar

o Direito efetivamente aplicável. Esta modalidade de

conexão é pouco frequente no Direito de Conflitos

português. A norma de conexão optativa pode favorecer

resultados materiais. É certo que na conexão optativa

também há uma manifestação da autonomia privada. Mas

há uma diferença importante com outras manifestações da

autonomia da vontade na escolha da lei aplicável.

Geralmente, quando se fala de liberdade de escolha da lei

aplicável, tem-se em vista um acordo entre os sujeitos de

uma relação. Na conexão optativa a escolha pertence a um

dos sujeitos da relação. Esta escolha, se for feita para uma

relação determinada, favorece os resultados materiais

pretendidos por um dos seus sujeitos.

2. Plural: quando, em resultado, desencadeia a aplicação de mais de

um Direito para regular a questão. Esta conexão, que não se deve

confundir com a aplicação distributiva de dois Direitos, pode

assumir duas modalidades:

a. Cumulativa simples: a norma de conflitos exige, para

que se produza certo efeito jurídico, a concorrência de dois

ou mais Direitos; o efeito tem de ser desencadeado ou

reconhecido simultaneamente por dois ou mais Direitos.

A conexão cumulativa simples apresenta-se como

simétrica relativamente à conexão alternativa. A alternativa

favorece a produção de um efeito jurídico, a cumulativa

simples dificulta a sua produção. Em certos casos, este

desfavorecimento de um efeito jurídico pode ser

intencional. Mas nem sempre é assim. Por vezes a conexão

cumulativa simples resulta de certos problemas específicos

de regulação, sem exprimir uma valoração negativa do

legislador de Direito Internacional Privado relativamente

a determinado efeito jurídico.

b. Cumulativa condicionante: difere da cumulativa simples

porque não há uma atribuição de competência paritária a

dois ou mais Direitos. A norma de conflitos chama um

Direito como primariamente competente, mas atribui a

outro sistema uma função limitativa ou condicionante

quanto à produção de certo efeito. Como a cumulativa

simples, também a conexão condicionante pode resultar

de um juízo de valor desfavorável específicos de regulação

ou na promoção da harmonia jurídica internacional. Assim,

a necessidade de conjugar estatutos, i.e., conjuntos

normativos que se vão pedir a Direitos diferentes para

reger diversos aspetos de uma mesma situação, pode

Direito Internacional Privado

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§

frequentemente levar a conexões condicionantes. Do

mesmo modo, a conexão condicionante pode ter

subjacente a preocupação de evitar a criação de situações

coxas, i.e., que não são reconhecidas num dos Estados

com elas mais estreitamente conexos. Parece este ser o

caso do artigo 6.º CC.

Segundo um outro critério, as conexões podem classificar-se como:

3. Autónomas: porque a respetiva norma de conflitos dispõe de um

elemento de conexão que opera a designação do Direito aplicável;

4. Dependentes: quando é necessário recorrer a outra norma de

conflitos para determinar o Direito aplicável, porque a norma de

conflitos não dispõe de um elemento de conexão autónomo.

d. Elemento de conexão:

i. Noção e função: segundo a noção tradicional, o elemento de conexão é

um laço entre uma situação da vida e dado ordenamento de um Estado

soberano que se entende ser o determinante para a escolha do ordenamento

aplicável. Esta noção tradicional suscita-me alguma reserva: a situação da

vida, enquanto realidade social, situa-se num plano da realidade diverso do

das ordens jurídicas, que são realidades jurídicas. Razão porque, em meu

entender, o elemento de conexão pode consistir:

1. Num laço fático entre um dos elementos da situação da vida

e um determinado lugar no espaço que permita

individualizar o Direito aí vigente;

2. Num vínculo ou qualidade jurídica que permita

individualizar o Direito que o estabelece;

3. Numa consequência jurídica que se projeta num

determinado lugar no espaço possibilitando a

individualização do Direito aí vigente;

4. Num facto jurídico, tal como a designação pelas partes do

Direito aplicável.

O elemento de conexão é diferente da conexão. O elemento de conexão

individualiza o Direito a ser aplicado. A conexão é o chamamento de uma

ou mais ordem jurídicas. O elemento de conexão estabelece a ponte entre a

situação e a ordem jurídica aplicável. O elemento de conexão tem um

caráter bifrontal. Para estabelecer a ponte tem de relacionar-se, mergulhar

as suas raízes na situação da vida em causa. Por outro lado, se o elemento

de conexão participa da previsão, também aponta, individualiza, serve a

estatuição. Nesta medida integra também a estatuição. O elemento de

conexão é um elemento essencial da norma de conexão. A norma de

conexão tem uma estrutura tripartida (previsão/estatuição/elemento de

conexão) que a distingue das restantes normas que têm uma estrutura

bipartida (previsão/estatuição). Para quem adota um conceito restritivo de

norma de conflitos, todas as normas de conflitos serão normas de conexão

e, portanto, poderá pensar que a estrutura tripartida é característica da

norma de conflitos. Não será assim para quem adote uma conceção ampla

de norma de conflitos, que inclua todas as proposições sobre a

determinação do Direito aplicável. Segundo esta conceção ampla, atrás

adotada, há normas de conflitos que não são normas de conexão e que,

portanto, não têm elemento de conexão. Também há normas que contêm

um elemento de conexão e que não são normas de conflitos, como é o caso

das normas de competência internacional. Estas normas também não são

Luís de Lima Pinheiro

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✒ normas de conexão, porque o elemento de conexão nelas contido não serve

para conectar uma situação com o Direito aplicável.

ii. Classificações do elemento de conexão: segundo uma primeira

classificação os elementos de conexão podem ser:

1. Pessoais: referir-se às pessoas, i.e., aos sujeitos da relação.

Referem-se às pessoas a nacionalidade, o domicílio, a residência

habitual e a sede da pessoa coletiva;

2. Reais: referir-se ao seu objeto ou a factos materiais.

a. Referem-se ao objeto o lugar da situação da coisa e o lugar

do destino das coisas em trânsito.

b. Referem-se a factos materiais, designadamente, o lugar

onde é praticado o delito, o lugar da celebração de um ato

e o lugar onde se desenrola um processo.

Esta classificação não é exaustiva. Uma segunda classificação atende ao

modo como os elementos de conexão realizam a sua função de designação

do Direito aplicável. Esta função é realizada:

3. Por via direta: quando o elemento de conexão aponta diretamente

o Direito aplicável, sem a mediação de um preciso ponto no espaço;

4. Por via indireta: quando o elemento de conexão aponta para um

determinado lugar no espaço, como via para, indiretamente,

designar como aplicável o Direito vigente nesse lugar.

Uma terceira classificação atende à estrutura do elemento de conexão. Já a

propósito da noção de elemento de conexão esboçámos uma classificação

que atende à estrutura. Segundo vimos, o elemento de conexão pode

consistir num laço fático, num vínculo jurídico, numa consequência jurídica

e num facto jurídico. Deste ponto de vista, também se podem classificar os

elementos de conexão conforme os conceitos designativos são

5. Descritivos (ou de facto);

6. Técnico-jurídicos (ou normativos).

A determinação do conteúdo dos conceitos descritivos baseia-se na

experiência social do intérprete e nos usos linguísticos gerais, ao passo que

a determinação do conteúdo dos conceitos técnico-jurídicos exige o

recurso a outras normas ou à elaboração realizada pela ciência jurídica.

Repare-se que os conceitos técnico-jurídicos se podem reportar tanto a

dados normativos, designadamente vínculos jurídicos como a

nacionalidade e factos jurídicos como a designação pelas partes, como a

dados puramente fáticos. Esta distinção tem um alcance relativo, uma vez

que a determinação do alcance dos conceitos fáticos utilizados numa

norma pode suscitar problemas de interpretação a resolver, entre outros

critérios, à luz da intenção do legislador histórico e do fim de política

legislativa prosseguido com a norma. Uma quarta classificação atente à

modificabilidade temporal do conteúdo concreto do elemento de conexão.

Segundo este critério os elementos de conexão são:

7. Móveis: são os elementos de conexão cujo conteúdo concreto é

suscetível de variar no tempo;

8. Imóveis: são os elementos de conexão cujo conteúdo é invariável

no tempo.

Não se devem confundir os elementos de conexão móveis com elementos

cujo conteúdo concreto pode ser modelado pelos interessados. Esta última

categoria de elementos de conexão tem relevância para a fraude à lei. Mas

Direito Internacional Privado

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7

§

há elementos de conexão que são imóveis apesar do seu conteúdo concreto

poder ser modelado pelos interessados.

Regra de Conflitos

Previsão Conceito-quadro Problema em causa no caso

Estatuição conexão

Podendo ser o operador deôntico da norma

Chamamento de um ou mais Direitos

2. A determinação da remissão em função das circunstâncias do caso concreto:

a. Em geral: foi atrás sublinhado que entre as tendências recentes do Direito

Internacional Privado se conta uma certa viragem para soluções individualizadoras,

para uma justiça do caso concreto. A determinação do Direito aplicável não resulta,

então, da concretização do elemento de conexão fixado numa norma de conflitos,

mas de critérios flexíveis que deixam uma margem de apreciação ao intérprete.

Observou-se igualmente que esta justiça do caso concreto pode ser material,

conflitual ou mista. Os sistemas positivos de Direito Internacional Privado, embora

consagrem certas normas e conflitos materialmente orientadas, não admitem uma

escolha do Direito aplicável exclusivamente em função do resultado material. Já em

certos casos se admite que a escolha do Direito aplicável se baseie inteiramente

numa justiça da conexão do caso concreto. É o que se verifica no Regulamento

Roma I quando, subsidiariamente, se submete o contrato à lei do país com o qual

apresente a conexão mais estreita (artigo 4.º, n.º4). Noutros casos, admite-se que

sem prejuízo de considerações de tipo conflitual também possa de algum modo ser

tido em consideração o conteúdo das leis em presença. A tendência recente para

soluções individualizadoras vem a exprimir-se em proposições conflituais de novo

tipo. Na estrutura destas proposições conflituais não encontraremos um conceito

designativo do elemento de conexão. Este é substituído por um conceito altamente

indeterminado, como o de conexão mais estreita (artigo 4.º, n.º4 RRI), Direito mais

apropriado ao litígio (artigo 33.º, n.º2 LAV 1986) ou centro dos principais interesses

do devedor (artigo 3.º, n.º1 e 4.º, n.º1 Regulamento sobre processos de insolvência).

Trata-se de conceitos carecidos de preenchimento valorativo, uma vez que a sua

concretização exige uma valoração conflitual e, por vezes, também uma valoração

jurídico-material. Algumas destas proposições jurídicas poderão ser consideradas

cláusulas gerais, dado que a sua previsão, muito ampla, carece de ser preenchida com

recurso a critérios valorativos. Nestes casos, verifica-se uma elevada

indeterminabilidade quer com respeito à previsão da norma quer pelo que toca à sua

estatuição. Estas cláusulas gerais distinguem-se das outras normas de conflitos por

não utilizarem na sua previsão categorias de situações jurídicas ou de questões

parciais. Outras normas de conflitos delimitam a sua previsão com recurso a

categorias de situações jurídicas, tais como obrigações contratuais, relações entre

cônjuges e processos de insolvência, mas utilizam conceitos indeterminados para

designarem critérios gerais de conexão, tais como a lei do país com o qual o contrato

apresente uma conexão mais estreita, a lei com a qual a vida familiar se ache mais

estreitamente conexa ou a lei do pais em que se situa o centro dos principais interesse

do devedor.

b. O critério da conexão mais estreita: o critério da conexão mais estreita surge, no

nosso Direito de Conflitos, no artigo 4.º, n.º4 RRI, em matéria de contratos

obrigacionais, no artigo 52.º, n.º2, 2.ª parte CC, em matéria de relações entre

cônjuges no artigo 60.º, n.º2, in fine CC, em matéria de adoção, e no artigo 52.º, n.º2

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✒ LAV, para a determinação do Direito aplicável ao mérito da causa na arbitragem. O

conceito de conexão mais estreita é, como já se assinalou, um conceito carecido de

preenchimento valorativo. Trata-se, em primeira linha, de uma valoração conflitual,

que atende aos laços existentes entre a situação em causa e a esfera social dos

Estados. Esta valoração não se destina necessariamente a determinar qual o laço

mais significativo; a conexão mais estreita pode resultar de uma combinação de

diferentes laços. Qual o peso relativo que o intérprete deve atribuir aos diferentes

laços, designadamente aos laços objetivos e subjetivos, é um problema de

interpretação da norma de conflitos que utiliza o conceito. É também um problema

de interpretação o de saber se, e até que ponto, podem ser levadas em conta

considerações legadas ao conteúdo dos Direitos em presença.

c. A cláusula de exceção: a cláusula de exceção é uma proposição que permite afastar

o Direito primariamente aplicável de um Estado, quando a situação apresenta uma

ligação manifestamente mais estreita com outro Estado. Enquanto as normas de

conflitos com conceito designativo indeterminado a justiça do caso concreto

intervém na designação do Direito primariamente aplicável, nas cláusulas de exceção

a equidade conflitual intervém para corrigir a designação do Direito estadual

primariamente aplicável, quando a situação apresenta uma ligação manifestamente

mais estreita com outro Estado. Podemos distinguir a cláusula geral de exceção, que

se aplica na generalidade das categorias de situações transnacionais que não sejam

dela excluídas, das cláusulas especiais de exceção, que são privativas de matérias

específicas. No Direito de Conflitos português não vigora uma cláusula geral de

exceção. Certamente que quem entenda que as normas de conflitos como simples

critérios instrumentais, que podem ser afastados quando se demonstre que a

conexão mais estreita se estabelece com um Direito diferente do por elas designado,

admitirá, no mínimo, a vigência de uma cláusula de exceção implícita. Não se

estranhará, por isso, que Moura Ramos defenda a vigência desta cláusula de exceção,

com base no princípio da proximidade e em algumas soluções particulares que, em

seu entender, constituem cláusulas de exceção fechadas. Não é este, porém, o meu

entendimento. Primeiro, porque como já afirmei anteriormente, considero as

normas de conflitos tão vinculativas como as normas materiais. Segundo, porque o

legislador de 1966 optou conscientemente por regras de conflitos de tipo tradicional

que, em geral, utilizam conceitos designativos do elemento de conexão

determinados, mostrando-se desfavorável a critérios de remissão flexíveis. A

introdução por via interpretativa de uma cláusula de exceção não se afigura

compatível com a intenção do legislador histórico. Enfim, embora hoje vigorem na

nossa ordem jurídica cláusulas de exceção especiais, em matérias bem delimitadas,

não se pode inferir daí uma cláusula geral de exceção. Antes dos Regulamentos RI

e RII, era discutível que vigorasse no Direito de Conflitos português qualquer

cláusula especial de exceção. O n.º5 do artigo 4.º Convenção Roma tem sido

encarado, pela doutrina dominante, como uma cláusula de exceção, mas creio que

injustificadamente, porque resulta da conjugação dos n.º1 e 5 do artigo 4.º

Convenção que a lei da conexão mais estreita é, na falta de escolha pelas partes, a

conexão primária em matéria de contratos obrigacionais. Com os Regulamentos de

Roma I e Roma II passaram a integrar o Direito de Conflitos português diversas

cláusulas especiais de exceção em matéria de contratos obrigacionais e obrigações

extracontratuais (designadamente artigos 4.º, n.º3 ambos Regulamentos).

De iure condendo, defendo a introdução no Direito de Conflitos português

de uma cláusula geral de exceção, uma vez que a justiça da conexão é

posta em causa quando a norma de conflitos remete para o Direito de

um Estado e a situação apresenta uma ligação manifestamente mais

estreita com outro Estado. Neste caso, o resultado a que conduz a regra

Direito Internacional Privado

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§

de conflitos entra em contradição com as finalidades visadas com esta

regra. Não obstante, creio que esta cláusula deve ser aplicada

prudentemente, como cláusula excecional, que só atua com a ligação

com a lei primariamente competente é ostensivamente mais fraca, e deve

ser acompanhada do enunciado de critério orientadores próximos dos

que constam do Código belga de Direito Internacional Privado.

Também decorre do anteriormente exposto que deve ser tida em conta a

circunstância de se ter constituído ou consolidado uma situação duradoura segundo

uma lei que, embora diferente da primariamente chamada pelo Direito de Conflitos

português, é competente de acordo com o Direito de Conflitos do Estado que

apresenta (ou apresentava no momento da constituição da situação) uma conexão

especialmente importante com a situação. A consagração de uma cláusula de

exceção nestes termos não obsta a que a norma de conflitos desempenhe a sua

função orientadora de condutas bem nem prejudica a sua vinculatividade. Enfim,

merece reflexão se na aplicação quer do critério da conexão mais estreita quer da

cláusula de exceção não poderá aceitar-se uma margem de apreciação dos interesses

das partes e dos valores e finalidades que as leis dos países envolvidos visam

promover.

Interpretação e aplicação da norma de conflitos

1. Interpretação da norma de conflitos:

a. Generalidades: no Direito de Conflitos português vigoram essencialmente normas

de fonte supraestadual e de fonte interna. Os critérios de interpretação aplicáveis

são os que regem a interpretação de cada uma destas categorias de fontes.

Relativamente às normas de fonte interna deve ter-se em conta o disposto nos

artigos 8.º e 9.º CC e a metodologia desenvolvida pela ciência jurídica. Quanto às

normas de fonte internacional há que atender às regras próprias que se estudam no

Direito Internacional Público e, designadamente, ao disposto no artigo 31.º

Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados. No que toca às normas de fonte

europeia valem os critérios de interpretação reconhecidos pela jurisprudência e pela

doutrina europeias, em que se salientam os critérios teleológicos que atendem às

finalidades prosseguidas com os tratados instituintes e aos princípios gerais de

Direito da União Europeia. Também podem suscitar-se problemas de interpretação

de normas de conflitos estrangeiras quando haja lugar à aplicação de Direito

Internacional Privado estrangeiro, como sucede, designadamente, na devolução e na

aplicação de normas de remissão condicionada. As normas de conflitos estrangeiras

devem ser interpretadas segundo os critérios que lhes forem aplicáveis no sistema a

que pertencem. Os problemas de interpretação podem dizer respeito a qualquer dos

elementos da norma de conflitos:

i. Com respeito aos conceitos utilizados na delimitação do objeto da remissão;

ii. Quanto aos conceitos que exprimem o elemento de conexão, sobretudo

quando forem conceitos técnico-jurídicos;

Enfim, a estatuição da norma de conflitos, quanto à determinação das normas

materiais que irão ser efetivamente aplicadas, também suscita problemas de

interpretação e aplicação.

b. Normas de conflitos de fonte interna: as normas de conflitos de fonte interna

têm de ser interpretadas como parte do sistema jurídico português. Na determinação

do sentido e alcance dos conceitos técnico-jurídicos utilizados quer para delimitar o

objeto da remissão quer para designar o elemento de conexão há que partir do

Direito material interno, do conteúdo aí atribuído. Mas se a interpretação é ancorada

no Direito material interno, ela não lhe está subordinada. A especialidade do Direito

de Conflitos, que tem de lidar com ordens jurídicas estrangeiras e, por vezes, com

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✒ Direito extra-estadual, obriga a que a interpretação dos conceitos da norma de

conflitos tenha em conta os fins próprios do Direito Internacional Privado. Daí

decorre que se possa atribuir a estes conceitos um sentido e alcance diferente do dos

conceitos homólogos do Direito material interno. A interpretação da norma de

conflitos é, por isso, uma interpretação autónoma relativamente ao Direito material

interno.

c. Normas de conflitos de fonte supraestadual: de entre as normas de conflitos de

fonte supraestadual avultam as contidas em Convenções Internacionais de

unificação do Direito de Conflitos e em Regulamentos Europeus. No caso das

normas de conflitos convencionais, decorre do sentido e do fim das Convenções de

unificação do Direito de Conflitos que a interpretação da norma de conflitos tem de

ser autónoma relativamente às ordens jurídicas nacionais individualmente

consideradas e assentar numa comparação de Direitos. Só desta forma se pode

promover a uniformidade de interpretação das normas convencionais pelas

diferentes jurisdições nacionais. A Convenção de Roma sobre a Lei Aplicável às

Obrigações Contratuais contém no seu artigo 18.º um preceito sobre interpretação,

inspirado no n.º1 do artigo 7.º da Convenção das Nações Unidas sobre Venda

Internacional de Mercadorias. Naturalmente que nesta interpretação deverão ser

tidos em conta os fins do Direito Internacional Privado que estão subjacentes ao

Direito de Conflitos unificado, bem como os fins gerais do Direito Internacional

Privado comuns aos sistemas dos Estados contratantes. Também a interpretação

das normas de conflitos contidas em Regulamentos da União Europeia deve ser

autónoma. Isto significa que não deve ser feita referência ao Direito de um Estado

Membro em presença, mas antes ter em conta o contexto da disposição e o objeto

prosseguido pelas normas e causa e a conformidade com os direitos fundamentais

protegidos pela ordem jurídica comunitária ou com outros princípios gerais do

Direito Comunitário. Tratando-se de Convenções que estão ligadas à União

Europeia ou de regulamentos da União Europeia justifica-se, a par de outros

critérios de interpretação relevantes, o recurso a uma interpretação comparativa que

atenda aos princípios gerais que resultam do conjunto das ordens jurídicas dos

Estados Membros. Na falta de concordância geral seria defensável que se atendesse

às soluções reconhecidas nos Estados Membros mais interessados, mas o TJUE e a

doutrina tendem a ter em conta as soluções reconhecidas na maioria dos Estados

Membros.

2. A integração de lacunas no Direito de Conflitos: como é sabido, há diferentes tipos de

lacunas. Geralmente têm-se em vista as lacunas da lei, que são falhas no plano do legislador.

Numa primeira aproximação, podemos dizer que há uma lacuna da lei no Direito de

Conflitos quando não encontramos uma norma de conflitos de fonte legal que indique a lei

reguladora de determinada situação transnacional que, segundo o sentido regulador do

sistema, deve estar submetida ao regime especial constituído pelo Direito de Conflitos. A

situação apresenta-se por forma bastante diferente perante um sistema de Direito

Internacional Privado não codificado e perante uma regulação sistemática do Direito

Internacional Privado como a que se verifica na ordem jurídica portuguesa. Aparentemente,

perante um sistema codificado as lacunas seriam raras. Sucede, porém, que a lacuna pode

não ser patente, mas oculta. A lacuna oculta descobre-se mediante a interpretação restritiva

ou a redução teleológica de uma norma de conflitos existente. Afirma-se frequentemente que

as lacunas de Direito Internacional Privado são necessariamente patentes (Baptista Machado

e Moura Ramos). Quer-se com isto significar que perante a falta de uma norma de conflitos

aplicável a uma situação transnacional surge necessariamente uma lacuna, sendo de excluir

que a situação deva ser regulada por uma aplicação direta do Direito material interno. É

ponto controverso. Por minha parte entendo que o Direito material de um Estado não tem,

em princípio, uma vocação de aplicação universal que justifique a sua aplicação direta a

Direito Internacional Privado

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situações transnacionais e que a função reguladora do Direito de Conflitos abrange

potencialmente todas as situações transnacionais. Pelo menos à face do sistema português

de Direito dos Conflitos, pode assentar-se que todas as situações transnacionais carecidas de

regulação jurídica colocam um problema de determinação do Direito aplicável. Na falta de

normas de conflitos que resolva o problema surge necessariamente uma lacuna que deve ser

integrada por uma solução conflitual. Mas isto não significa que não possa haver lacunas

ocultas. Pode suceder que uma situação transnacionais se encontre à primeira vista abrangida

pela previsão de uma norma de conflitos, mas que por via de uma interpretação restritiva ou

de uma redução teleológica se venha a concluir que existe uma lacuna. Isto é particularmente

importante em ligação com os temas das normas suscetíveis de aplicação necessária do foro

e da relevância de normas imperativas de terceiros Estados. Na integração da lacuna, devem

ter-se em conta os critérios referidos no artigo 10.º CC e a metodologia desenvolvida pela

ciência jurídica.

a. Em primeiro lugar, deve recorrer-se à norma aplicável a caso análogo (dita

analogia legis). Suscita alguma dificuldade a distinção entre a interpretação dos

conceitos utilizados na previsão de uma norma de conflitos e a aplicação analógica

da norma. E isto porque o conteúdo destes conceitos é, em elevado grau,

determinado teleologicamente. Daí que alguns autores, como Monaco, Baptista

Machado e Moura Ramos, entendam que o raciocínio por analogia intervém no

próprio plano da interpretação da norma de conflitos, por forma que a norma de

conflitos é diretamente aplicável a todos os casos análogos. De onde resultaria que

a analogia legis não constitui um processo de integração de lacunas em Direito

Internacional Privado. Não perfilho este ponto de vista. Penso que a fronteira entre

interpretação e aplicação analógica é ainda aqui traçada em função do sentido literal

possível da proposição jurídica. Uma extensão do âmbito de aplicação da norma ou

uma redução deste âmbito que vá além ou fique aquém do sentido literal possível

não é interpretação mas, respetivamente, aplicação analógica e redução teleológica.

b. Na falta de norma aplicável a um caso análogo, a solução do caso deve ser

obtida mediante uma concretização dos princípios e ideias orientadoras do

Direito de Conflitos (dita analogia iuris). Também aqui divirjo de Monaco e

Baptista Machado quando entendem que o conjunto das normas de Direito

Internacional Privado vigentes num dado ordenamento não dá vida a um sistema

jurídico dominado por princípios gerais específicos aptos a colmatarem lacunas.. Ao

tratarmos da justiça e princípios gerais do Direito de Conflitos verificámos que este

complexo normativo se apresenta dominado por certos princípios que justificam as

soluções particulares. Mediante a concretização destes princípios e ideias

orientadoras é possível encontrar soluções para certas lacunas do Direito

Internacional Privado. Assinale-se ainda que este processo de integração de lacunas

tem grande afinidade com a metodologia a seguir na aplicação das normas que

utilizam critérios gerais de conexão.

c. Não sendo possível integrar a lacuna por um dos processos anteriores, caberá

ao intérprete criar um critério de decisão dentro do espírito do sistema. Na

formulação do critério de decisão o intérprete tem de respeitar os valores e os

princípios do Direito Internacional Privado, sem que, porém, a solução decorra da

concretização destes valores e princípios. A solução tem de ser compatível com o

sistema. Acrescente-se que o intérprete tem de formular o critério de decisão soba

forma de uma proposição geral e abstrata, de uma regra de conflitos, que seja

suscetível de ser seguida em casos semelhantes.

d. Embora o costume interno não seja uma fonte importante de Direito Internacional

Privado português, importa ainda observar que as lacunas do Direito de Conflitos

de fonte legal podem ser integradas pelo costume praeter legem e que, por conseguinte,

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✒ só haverá lugar para o recurso aos processos de integração atrás referidos na

falta de norma de conflitos de fonte consuetudinária que seja aplicável.

3. A aplicação no tempo e no espaço do Direito de Conflitos:

a. Preliminares. A norma de conflitos como norma de conduta: afirma-se

frequentemente que todo o Direito estadual é situado no tempo e no espaço. À

semelhança do que se verifica no domínio da física com o princípio da relatividade,

também o Direito estadual é relativo no espaço – perante a coexistência de uma

pluralidade de sistemas –, e no tempo, dada a mutabilidade das ordens jurídicas. Mas

esta afirmação é geralmente pensada para as normas materiais de conduta. Poderá

ela ser transposta para o Direito de Conflitos? Uma primeira questão que se suscita

é a de saber se as normas de conflito serão normas de conduta, i.e., se têm por

missão orientar a atuação dos sujeitos jurídicos. Quem sejam os principais

destinatários das normas de conflitos é um ponto controverso, designadamente na

doutrina portuguesa:

i. Para a Escola de Coimbra, designadamente Ferrer Correia e Baptista

Machado, as normas de conflitos têm por principais destinatários os

tribunais, não os particulares. São normas que teriam por principal escopo

resolver um conflito de leis, i.e., eliminar uma situação de concorrência ou

de concurso entre preceitos materiais procedentes de ordenamentos

distintos. Segundo esta doutrina, a norma de conflitos em sentido estrito,

enquanto norma que tem por função específica resolver um concurso de

leis, tem um âmbito de aplicação ilimitado no espaço e é no tempo, é de

aplicação imediata. No entanto, estes autores admitem que a norma de

conflitos pode eventual e indiretamente operar como norma de conduta

quando a lex fori for uma das leis interessadas, i.e., quando há uma conexão

entre a situação da lei do foro. Enquanto norma agendi, a norma de conflitos

tem o âmbito de aplicabilidade limitado pela existência de uma conexão

espacial e temporal. Com efeito, as partes só podem ter orientado a sua

atuação pelo Direito de Conflitos do foro se no momento da conduta havia

um laço significativo entre a situação e o Estado do foro. Mas, repare-se,

que para esta doutrina a existência de um laço com o Estado do foro não é

um pressuposto de aplicação no espaço do Direito de Conflitos. O ponto

de partida é antes o oposto: em regra as normas de conflitos são de

aplicação universal e são de aplicação imediata às situações que no

momento da constituição não apresentavam conexão com o Estado do foro.

A escola de Coimbra modera as consequências deste entendimento

mediante o recurso à doutrina dos direitos adquiridos (Baptista Machado)

ou de um sistema e conexões alternativas (Ferrer Correia).

ii. Segundo o entendimento atrás adotado, as normas de conflitos são

normas de regulação indireta e que, por regra, têm por função orientar a

conduta dos sujeitos jurídicos. Só excecionalmente as normas de conflitos

são aplicadas como meros critérios de decisão. Refira-se, aliás, que quando

se coloca a questão da regulação de uma situação face ao Direito de

Conflitos português há normalmente algum laço com o Estado português.

Isto é claro quando pensamos nos casos submetidos a tribunais portugueses:

a competência internacional pressupõe uma ligação, por ténue ou indireta

que seja, da situação com o Estado do foro. Normalmente há mais do que

uma ligação ténue ou indireta, há uma ligação significativa. Do

reconhecimento de uma função reguladora à norma de conflitos hão-de

advir consequências para as questões sobre a aplicação no tempo e a

aplicação no espaço do Direito de Conflitos. Designadamente, não há razão

para a priori considerar que as normas de conflitos portuguesas sejam, no

Direito Internacional Privado

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3

§

tempo, de aplicação imediata e que, no espaço, reclamem uma esfera de

aplicação universal. Todavia, daqui também se não podem deduzir as

soluções concretas para os problemas de aplicação no tempo e no espaço.

É preciso aprofundar estes problemas atendendo à especificidade de cada

um.

b. Aplicação no tempo do Direito de Conflitos:

i. Identificação do problema: o início e termo da vigência das normas de

conflitos não suscita dificuldades especiais, resolvendo-se por aplicação das

regras gerais, designadamente as da vacatio legis. O problema que aqui

interessa examinar é o da sucessão no tempo das normas de conflitos. Este

problema coloca-se quando muda a regulação conflitual de uma situação

transnacional. Qual a norma de conflitos aplicável? Perante uma sucessão

no tempo de normas de conflitos torna-se necessário delimitar o âmbito de

aplicação da norma de conflitos antiga e da norma de conflitos nova. Por

outras palavras, trata-se de determinar se a situação transnacional a regular

está submetida à norma de conflitos antiga ou à norma de conflitos nova,

ou de distinguir os aspetos da situações que continuam a ser regidos pela

norma de conflitos antiga daqueles que passam a ser regulados pela norma

de conflitos nova. O problema da sucessão de leis no tempo ou conflitos

intertemporais não é só o de delimitar o domínio recíproco de aplicação da

lei antiga e da lei nova. Quanto às situações jurídicas que são em parte

regidas pela lei antiga e em parte pela lei nova é também necessário

coordenar as duas leis por forma a fornecer uma regulação coerente e a

evitar que, sem justificação suficiente, se comprometa a continuidade das

situações. Não deve confundir-se a questão da aplicação no tempo das

normas de conflitos com o problema da sucessão no tempo das normas

materiais do Direito aplicável.

ii. Solução: o problema pode ser resolvido pelo legislador por meio de normas

transitórias que disponham expressamente sobre a aplicação no tempo do

Direito de Conflitos. Na omissão do legislador, deve recorrer-se ao Direito

Intertemporal da ordem jurídica em que estão integradas as normas de

conflitos em causa. É a tese dominante na Alemanha e em França, defendia,

entre nós, por Isabel de Magalhães Collaço e seguida pelo Supremo

Tribunal de Justiça e pelo Tribunal Constitucional. Já assinalei que o

legislador pode formular regras especiais de Direito Intertemporal sobre a

sucessão no tempo das normas de conflitos. Tais regras porem, não existem

no Direito de fonte interna. Por conseguinte, são em princípio aplicáveis as

regras gerais contidas nos artigos 12.º e 13.º CC. O artigo 12.º CC consagra

como é consabido a doutrina do facto passado. A valoração jurídica dos

factos ocorridos na vigência da lei antiga não é, em princípio, prejudicada

pela lei nova. A existência destas regras gerais não obsta, como ficou

assinalado, a que o legislador adote normas especiais de Direito transitório,

e também não significa que, na omissão do legislador, a doutrina e a

jurisprudência não possam desenvolver soluções adequadas às

especificidades dos diferentes complexos normativos, dentro de certos

parâmetros. Em princípio, também se aplicam as regras especiais de Direito

Transitório sobre a aplicação no tempo de certo diploma legal que contenha

normas de conflitos. Mas pode suceder que um diploma legal, contendo

normas materiais e normas de conflitos, só inclua regras especiais de Direito

Transitório relativamente às suas normas materiais. Neste caso, a aplicação

às normas de conflitos de regras especiais de Direito Transitório que se

reportem apenas a normas materiais tem de se fundamentar em analogia.

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✒ De todo o modo, importa não esquecer que visando a norma de conflitos

a regulação das situações transnacionais é sempre relativamente à efetiva

sucessão dos sistemas materiais aplicáveis que em última análise têm de

colocar-se os problemas da sucessão no tempo das normas de conflitos. A

lei fundamental não obriga a uma revaloração de todas as situações já

constituídas. Por um lado, porque também as normas constitucionais

conhecem limites temporais de aplicação. A menos que os comandos da lei

fundamental reclamem aplicação retroativa, o que, em princípio, não se

verifica, não há que estender o império da lei fundamental a factos passados.

Por outro lado, como se assinalou, os problemas de sucessão no tempo das

normas de conflitos têm sempre de ser examinados à luz da sucessão de

sistemas materiais por ela desencadeada. Ora, a aplicação da norma de

conflitos antiga é imposta pelo princípio da continuidade das situações

jurídicas, que é um princípio fundamental de Direito Intertemporal. Esta

doutrina foi acolhida pelo Tribunal Constitucional, no seu Acórdão n.º

90/03, 14 fevereiro 2003, bem como pelo Supremo Tribunal de Justiça no

seu Acórdão 12/9/2006.

c. Aplicação no espaço do Direito de Conflitos:

i. Identificação do problema. Os conflitos de sistemas de Direito

Internacional Privado: cada ordem jurídica tem o seu próprio Direito

Internacional Privado. Os progressos realizados na unificação do Direito

de Conflitos e do regime de reconhecimento de decisões estrangeiras não

eliminaram as divergências entre os sistemas nacionais de Direito

Internacional Privado. Já sabemos que nos casos em que não há harmonia,

entre os sistemas nacionais em presença, quanto à determinação do Direito

aplicável a uma situação transcional, se fala em conflitos de sistemas de

Direito Internacional Privado. A divergência entre sistemas nacionais de

Direito Internacional Privado, designadamente a utilização de elementos de

conexão diferentes, podem conduzir a dois resultados diversos:

1. Se a atuação dos dois ou mais sistemas conduz à competência de

dois Direitos para regular a mesma situação temos um dito conflito

positivo;

2. Se nenhum dos Direitos em presença reclama aplicação temos um

dito conflito negativo.

Os conflitos de sistemas de Direito Internacional Privado podem levar à

existência de situações coxas. Os conflitos de sistemas também podem

conduzir a conflitos de deveres, quando dois ou mais Direitos que se

consideram aplicáveis à situação impõem a um sujeito obrigações de

conduta diferentes e inconciliáveis entre si. O atual Direito Internacional

Privado não é alheio a estes problemas. Razão por que, em alguns casos, o

Direito Internacional Privado de um Estado permite tomar em

consideração o Direito de Conflitos estrangeiro. O instituto da devolução,

nomeadamente, relaciona-se com o conflito negativo de sistemas. O

princípio da maior proximidade opera em casos de conflito positivo. O

problema da questão prévia tanto pode relacionar-se com um conflito

negativo como com um conflito positivo. Mas num momento logicamente

anterior ao da resolução dos problemas suscitados pelos conflitos de

sistemas de Direito Internacional Privado coloca-se o problema da

aplicação no espaço da cada sistema de Direito Internacional Privado.

Pergunta-se agora se o Direito de Conflitos vigente numa ordem jurídica

estadual regula todas as situações transnacionais que ocorram no mundo,

quaisquer que sejam os seus laços com o Estado do foro, e mesmo que não

Direito Internacional Privado

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§

haja qualquer conexão entre a situação e o Estado do foro, ou se existem

certos limites à sua esfera de aplicação no espaço. Por outras palavras, se

este Direito de Conflitos tem ou não validade universal. Alguns autores

entendem que a esfera de aplicação do Direito de Conflitos de um Estado

é limitada casos em que são internacionalmente competentes os respetivos

órgãos de aplicação do Direito. Por isso haveria coincidência entre a

competência dos tribunais de um Estado e a aplicabilidade do seu Direito

de Conflitos. Esta tese foi atrás refutada. Rejeitada a coincidência necessária

entre a competência internacional e o Direito de Conflitos aplicável, coloca-

se a questão de saber se os órgãos de aplicação do Direito de um Estado

devem aplicar, em certos casos, em lugar do Direito de Conflitos do foro,

Direito de Conflitos estrangeiro. Uma primeira advertência é a da extrema

complexidade deste ponto. Limito-me a expor algumas conceções mais

divulgadas e a formular algumas reflexões pessoais. Cabe também observar

que a questão é colocada exclusivamente com respeito à regulação conflitual

de situações transnacionais na esfera estadual. E quanto ao Direito

Internacional de Conflitos, que opera a regulação das relações

transnacionais na ordem jurídica internacional? O Direito Internacional de

Conflitos também pode ter limites à aplicação no espaço, designadamente

quando for de fonte convencional. Estes limites decorrem das normas

sobre aplicação no espaço da Convenção que o contém. Mas também pode

ser de aplicação universal, como sucede quando se trate de regras ou

princípios conflituais de Direito Internacional Público geral. Na exposição

que se segue refiro-me exclusivamente ao Direito de Conflitos que regula

situações que só relevam na ordem jurídica estadual.

ii. Conceções tradicionais: são duas as conceções tradicionais nesta matéria:

1. Alcance universal e territorialismo quanto aos órgãos de

aplicação do Direito de Conflitos: toda e qualquer designação da

lei competente para regular uma situação transnacional passa

exclusivamente pelo Direito de Conflitos do foro. Associa caráter

universal e territorialismo quanto aos órgãos de aplicação, as

normas de conflitos de uma ordem estadual são as únicas que

podem ser aplicadas pelos órgãos do respetivo Estado. O

fundamento desta posição encontram-no uns na função

internacional exercida pelo legislador estadual de Direito

Internacional Privado e outros no alegado caráter público das

normas de conflitos. Não importam as divergências com outros

Direitos de Conflitos estaduais e, designadamente, a existência de

situações constituídas com base em Direitos diferentes dos

designados pela norma de conflitos do foro e que se considerem

competentes. Para quem aceite que o Direito de Conflitos

Internacional Privado tem uma função reguladora de relações

transnacionais e é fundamentalmente Direito Privado esta tese é

privada do seu fundamento. O objeto, função e natureza da norma

de conflitos não obstam à existência de limites à sua aplicação no

espaço como também não obstam a que uma norma da ordem

jurídica do foro atribua relevância ao Direito de Conflitos

estrangeiro;

2. Limitação do Direito de Conflitos pelo princípio dos Direitos

adquiridos: para a escola de Pillet, que contou com Machado

Villela como um dos seus continuadores, o conflito de leis e o

reconhecimento dos direitos adquiridos são problemas

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✒ perfeitamente distintos. O problema dos conflitos de leis suscita-

se quando no momento da constituição de uma situação é

necessário escolher entre várias leis em contacto com os factos

constitutivos. O respeito internacional dos direitos adquiridos

concerne ao efeito no estrangeiro de um direito subjetivo

regularmente adquirido. Quando os factos constitutivos, ao tempo

da sua verificação, estavam todos em contacto com um só país

surgiria um problema de reconhecimento da situação. Isto é,

porém, contestado. O problema do reconhecimento de uma

situação que se constitui exclusivamente em contacto com um

Estado só se coloca quando a situação entra em contacto com

outros Estados. A partir do momento em que a situação está em

contacto com vários Estados coloca-se um problema de

determinação do Direito aplicável. O órgão de aplicação terá de

determinar o Direito aplicável à constituição da situação. Só depois

de aplicada a lei competente pode afirmar-se que há um direito

adquirido. Resta saber se as proposições sobre a determinação da

lei competente aplicáveis nestas hipóteses serão as normas de

conflitos gerais ou se atuarão aqui normas ou princípios especiais.

Para Ferrer Correia, há uma lacuna no sistema jurídico do foro,

lacuna que se deve preencher com a formulação de uma norma

específica que determine a aplicação da lei estrangeira da qual a

relação sub iudice exclusivamente dependa. Com respeito à

regulação das situações transnacionais, a doutrina de Pillet não

introduz qualquer limitação à esfera de aplicação no espaço do

Direito de Conflitos. Quando a situação se constitui em contacto

com vários Estados, não se pode colocar o respeito dos direitos

como limite ao Direito de Conflitos. Tem de se saber com base em

que ordem jurídica é adquirido o direito. O Direito é sempre

adquirido à sombra de determinada lei. Para o efeito é necessário

escolher a lei aplicável. Daí que a doutrina dos direitos adquiridos

esbarre com a objeção do círculo vicioso. Uma forma de evitar esta

objeção é a adoção de uma perspetiva unilateralista: será aplicável

toda a ordem jurídica que se considere aplicável e que constitui um

direito subjetivo. Mas contra esta variante da doutrina dos direitos

adquiridos procede agora a objeção, já oposta ao unilateralismo,

segundo a qual em caso de conflito positivo o órgão de aplicação

tem de escolher entre as leis em conflito. Enfim, a teoria parece

supor que em todos os conflitos de leis está em causa um direito,

quando na verdade também entram em jogo expectativas jurídicas,

interesses legalmente protegidos e requisitos de validade de

negócios jurídicos.

iii. Novas doutrinas dos direitos adquiridos: estas doutrinas são dominadas

pela ideia de autolimitação geral da esfera de aplicação no espaço dos

sistemas nacionais de Direito de Conflitos. O que distingue as normas de

referência ao ordenamento competente das normas de conflitos gerais é a

circunstância de o ordenamento referido ser considerado em bloco,

incluindo as normas sobre competência internacional e sobre

reconhecimento de efeitos de sentenças estrangeiras e de outros atos

públicos. A delimitação do campo de aplicação destes dois tipos de normas

deve orientar-se segundo a proximidade destas situações em relação ao

ordenamento do foro. As situações jurídicas mais próximas deverão ser

Direito Internacional Privado

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7

§

valoradas mediante uma técnica internancionalprivatistica de referência ao

Direito aplicável, as situações predominantemente estrangeiras mediante a

técnica da referência ao ordenamento competente. A criação de situações

estrangeiras no país do foro depende da suscetibilidade do seu

reconhecimento no ordenamento para que remete a norma de referência ao

ordenamento competente. As situações estrangeiras criadas no estrangeiro

serão reconhecidas automaticamente no ordenamento do foro caso sejam

válidas e eficazes no ordenamento para que remete a norma de referência

ao ordenamento competente. Serão situações estrangeiras aquelas em que

o elemento de conexão individualiza um ordenamento estrangeiro, ou, mais

restritivamente aquelas em que se verifique um elemento de estraneidade

adicional. Passe-se à apreciação crítica destas doutrinas. É certo que a norma de

conflitos, como norma de regulação indireta, não tem a pretensão de regular

todas as situações transnacionais que se verifiquem no mundo. Mas as

construções que se acabam de expor têm uma visão demasiado abstrata do

problema que, em minha opinião, não propicia a obtenção das soluções

mais adequadas. É concebível que um sistema jurídico estabeleça um regime

especial para as situações que se constituem sem qualquer contacto com ou

sem um contacto significativo com o Estado do foro, excluindo a aplicação

das normas de conflitos gerais. Este regime especial pode consistir,

designadamente, numa remissão global para os sistemas de Direito

Internacional Privado dos Estados que apresentam um laço significativo

com a situação no momento relevante. Mas esta via mostra-se desnecessária

para um sistema de Direito Internacional Privado que admita a devolução.

Se todas as leis estrangeiras interessadas estiverem de acordo na aplicação

da lei com base no qual a situação se constitui, a devolução permite

solucionar o problema, o órgão de aplicação do Direito português irá

sempre aplicar esta lei. Se a devolução não permite resolver o problema é

porque não há harmonia entre as leis estrangeiras em presença. Neste caso

é irrenunciável a escolha pelo Direito de Conflitos do foro. Em segundo

lugar, apresentam ainda as desvantagens anteriormente assinaladas com

respeito a uma visão unilateralista da teoria dos direitos adquiridos. Em

terceiro lugar, como assinala Ferrer Correia, dificilmente se concebe o

reconhecimento de direitos adquiridos no estrangeiro sem um controlo,

pelo Direito Internacional Privado do foro, do título de competência da

ordem jurídica ao abrigo da qual se constitui a situação, por outras palavras,

sem uma valoração, pelo Direito do foro, da relevância da conexão existente

entre a situação e essa ordem jurídica. E a partir do momento em que a

relevância da lei com base na qual determinada situação se constitui

dependa da verificação da conexão definida por uma norma de Direito

Internacional Privado do foro, será equívoco entender o princípio de

reconhecimento dos direitos adquiridos como um limite ao Direito de

Conflitos, uma vez que se trata afinal da limitação de uma norma de

conflitos feral por outra norma de conexão do foro. Bucher procura

ultrapassar esta dificuldade por meio de uma delegação da escola no órgão

de aplicação, acompanhada de diretrizes gerais, tais como o respeito das

soluções geralmente reconhecidas e da inserção social e económica da

situação da vida num determinado sistema jurídico. Também Moura Ramos

defendeu que devem ser reconhecidos no Estado do foro os direitos ou

situações jurídicas que no estrangeiro produziram os seus efeitos típicos, À

luz de um sistema legal que apresente, na ótica do Direito Internacional

Privado do foro, uma conexão suficientemente forte com a situação da vida

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8

✒ a regular, e se repute aplicável, quer de um outro a quem o primeiro

considere competente. Mas estas soluções trazem consigo as incertezas e

dificuldade que normalmente acompanham a renúncia a normas de

conflitos com elemento de conexão determinado. Se mediante o recurso às

soluções geralmente reconhecidas fosse possível chegar a um resultado

mais previsível para as partes que aquele a que se chegaria por aplicação da

norma de conflitos geral do Estado do foro, tais incertezas e dificuldades

poderiam ser contrabalançadas. Mas é justamente naquelas matérias em que

há desacordo entre os sistemas em presença que é mais difícil encontrar

soluções geralmente reconhecidas. Segundo, toda a norma de conexão

procura ir ao encontro da inserção social e económica da situação da vida

num determinado sistema jurídico. Enfim, a tutela da confiança justificada

é, como decorre do anteriormente exposto, uma consideração com grande

peso no reconhecimento de determinadas situações, mas a justificação da

confiança, em caso de divergência dos Direitos de Conflitos dos Estados

envolvidos, pressupõe a constituição ou consolidação da situação perante a

ordem jurídica de um Estado que apresenta uma ligação especialmente

significativa com a situação. Da articulação da tutela da confiança com os

valores da certeza e previsibilidade decorre que esta ligação especialmente

significativa deve ser determinada pelo legislador. Já se deu conta que na

União Europeia um setor da doutrina, invocando as liberdades de

circulação e o direito de estabelecimento consagradas nos Tratados

instituintes, e certa jurisprudência TCE/TJUE, sobretudo a partir de 1999,

tem defendido uma técnica de reconhecimento que se inspira, pelo menos

até certo ponto, na teoria dos direitos adquiridos. Foi anteriormente

assinalado que, em meu entender, esta técnica de reconhecimento não é

imposta pelo Direito europeu originário. Por conseguinte, o papel que a

técnica de reconhecimento deve desempenhar no Direito Internacional

Privado depende inteiramente dos valores e princípios que o inspiram,

resultando das considerações anteriormente formuladas e das que passo a

expor.

iv. Posição adotada: o núcleo de verdade comum às diferentes teorias dos

direitos adquiridos parece estar a necessidade de, em certos casos, tutelar a

confiança depositada pelas partes na existência de situação que se

constituíram ou consolidaram perante a ordem jurídica de um Estado que

apresenta um laço particularmente significativo com a situação embora não

seja o Direito considerado competente por aplicação do sistema conflitual

do foro. Mas as teorias dos direitos adquiridos não são a resposta mais

adequada para esta preocupação. Antes de mais cumpre clarificar o seguinte

ponto: ao falarmos de aplicação no espaço do Direito de Conflitos

poderemos ter em vista o Direito Internacional Privado no seu conjunto ou

apenas as normas de conflitos. É obvio que um sistema de Direito

Internacional Privado pode conter regras que limitem a aplicação no espaço

de normas de conflitos gerais e (ou) que deem relevância na ordem interna

ao Direito de Conflitos estrangeiro. São técnicas de que o Direito

Internacional Privado pode lançar mão para a realização dos seus fins na

regulação das situações transnacionais. Se uma norma especial de Direito

Internacional Privado limita a aplicação no espaço de uma norma de

conflitos geral, não há um limite à aplicação no espaço do sistema estadual

de Direito Internacional Privado. A aplicação de Direito Internacional

Privado estrangeiro por força do Direito Internacional do foro tanto pode

estar ligada à limitação da esfera espacial de aplicação de uma norma de

Direito Internacional Privado

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§

conflitos como ser independentemente desta limitação. Os limites à

aplicação no espaço de um sistema estadual de Direito Internacional

Privado no seu conjunto, a existirem, são necessariamente limites externos

à ordem jurídica estadual. Será o caso dos limites que sejam impostos pelo

Direito Internacional Público, por um princípio suprapositivo ou por uma

razão ontológica, ligada à natureza da norma de conflitos. Quanto ao

Direito Internacional Público, o que nos interessa são os limites que

porventura existam quanto à própria aplicação no espaço do Direito

Internacional Privado vigente na ordem jurídica estadual. Estes limites

decorrem, a meu ver, do anteriormente exposto quanto aos princípios

internacionais em matéria de competência legislativa. Em matéria de

regulação de situações transnacionais a atuação destes princípios deve dizer

respeito à aplicação no espaço do Direito Internacional Privado e não à

aplicação no espaço do Direito material. A seguir-se este raciocínio, e de

acordo com o então exposto, o sistema de Direito Internacional Privado de

um Estado não será, em princípio, aplicável:

1. A situações relativamente internacionais, i.e., puramente internas a

outro Estado;

2. A situações que por dizerem respeito à atuação iure imperii de um

sujeito público estrangeiro se inscrevem exclusivamente na sua

ordem jurídica;

3. A outras situações transnacionais quando não se verifique um dos

títulos de competência legislativa anteriormente referidos.

Assim, em princípio, o Direito Internacional Privado de um Estado não

será primariamente aplicável a uma situação transnacional, que não

apresente um laço pessoal ou territorial com o Estado do foro nem produza

aí efeitos. Mas já será aplicável caso se trate de uma matéria em que se

admite o pacto de jurisdição e as partes tenham atribuído competência aos

tribunais deste Estado. Também será excecionalmente aplicável quando

estiverem preenchidos os pressupostos do critério da universalidade. O

Direito Internacional Público já não exclui que o Direito Internacional

Privado de um Estado regule uma situação que após se ter constituído

como situação interna de um Estado estrangeiro venha a entrar em contacto,

pelos seus elementos ou efeitos, com o Estado local. O mesmo se diga do

caso em que uma situação que se constitui exclusivamente em contacto com

dois ou mais Estados estrangeiros vem posteriormente a conectar-se com

o Estado local. É possível que os órgãos de aplicação de um Estado sejam

chamados a decidir questões relativas a situações que estão subtraídas ao

seu Direito Internacional Privado. Coloca-se então a questão de saber como

é que se processará a determinação do Direito aplicável. Não será afinal

necessário recorrer a normas ou princípios do Direito Internacional Privado

deste Estado? Creio que a solução para este problema se deve procurar no

próprio Direito Internacional Público. Deve ser aplicado o Direito

Internacional Privado de um Estado que tenha competência legislativa. Se

houver um concurso de competências legislativas de Estados estrangeiros,

serão aplicáveis os princípios comuns dos seus Direitos de Conflitos. Em

última instância, se houver uma divergência dos Direitos de Conflitos dos

Estados que têm competência legislativa, deverá aplicar-se o Direito

Internacional Privado do Estado que se apresenta com melhor competência

legislativa, o que poderá envolver uma ponderação de bens e interesses no

caso concreto. Quanto à existência de um princípio suprapositivo ou razão

ontológica, há vários entendimentos dos quais salientarei os que dizem

Luís de Lima Pinheiro

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✒ respeito ao princípio dos direitos adquiridos e à manifestação social do

Direito como ordem reguladora de condutas. Resulta do anteriormente

exposto que o princípio dos direitos adquiridos não se mostra idóneo para

constituir um limite à aplicação no espaço de um sistema estadual de Direito

Internacional Privado. No que toca à atuação da norma de conflitos como

norma de conduta, não há dúvida que se aferirmos até onde os particulares

podem ou não orientar-se por dada norma ou complexo normativo

chegamos a limites mais ou menos claros de aplicação da norma no espaço.

Mas os particulares podem orientar-se, ao menos teoricamente, por todas

as ordens jurídicas dos Estados em contacto com a situação. A ideia de

norma de conduta pouco vem acrescentar aos limites que já decorrem do

Direito Internacional Público. Poderia argumentar-se que a constituição de

uma situação relativamente internacional não pode ser apreciada à luz do

Direito de Conflitos do Estado local porque os sujeitos não se poderiam ter

orientado por esse Direito de Conflitos. Mas o argumento reflete uma visão

abstrata do problema. A ideia de norma de conflitos, aliada à tutela da

confiança, intervém aqui como critério para a determinação do momento

relevante da conexão e não como limite à aplicação no espaço da norma de

conflitos do foro. Caso se pretendesse ver aqui um limite à aplicação no

espaço da norma de conflitos geral, sempre haveria que formular, como

parte do sistema de Direito Internacional Privado do foro, uma norma ou

princípio aplicável à determinação do Direito aplicável a situações deste tipo.

Mas este passo parece desnecessário. Por outro lado, já se notou que se a

norma de conflitos desempenha por regra uma função reguladora, esta

regra conhece exceções, à semelhança do que verifica no Direito material.

Também no Direito Intertemporal há razões que em certos casos justificam

a retroatividade da lei. Por conseguinte, não é de excluir que

excecionalmente a norma de conflitos possa aplicar-se como puro critério

de decisão, independentemente da previsibilidade da sua aplicação. Assim,

se no momento da ocorrência do facto constitutivo a situação estava

exclusivamente conectada com dois ou mais Estados estrangeiros, mas

posteriormente a situação entrou em contacto com o Estado local, a norma

de conflitos do Estado local atua, relativamente à valoração do facto

constitutivo, como um puro critério de decisão. Por conseguinte, parece

que a ideia de norma de conduta não se retira qualquer limite externo que

não decorra já do Direito Internacional Público, nos termos que acabei de

expor. Resta examinar até que ponto normas de Direito Internacional

Privado do foro estabelecem limites internos, i.e., limites à aplicação no

espaço das normas de conflitos gerais. No sistema português, como aliás

parece ser o caso da maior parte dos sistemas estrangeiros, não há limites

genéricos à aplicação no espaço das normas de conflitos gerais.

Designadamente, as situações que se constituem sem um contacto relevante

com o Estado do foro não estão, em regra, subtraídas à aplicação das

normas de conflitos gerais. Se estas situações vêm posteriormente a entrar

em contacto com o Estado do foro, por forma a fundamentar a sua

competência legislativa, aplicam-se-lhes as normas de conflitos gerais. Pode

todavia ser questionado se o regime da competência internacional dos

tribunais portugueses e o sistema essencialmente formal de reconhecimento

de sentenças estrangeiras não constituem limites ao âmbito de aplicação no

espaço do sistema de Direito de Conflitos. Com respeito à competência

internacional, concluiu-se que do seu regime não decorre um limite genérico

à aplicação do sistema de Direito de Conflitos. De acordo com o sistema

Direito Internacional Privado

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1

§

essencial formal de reconhecimento de sentenças estrangeiras, o

reconhecimento não depende da lei aplicada pelo tribunal. Não se trata aqui

de um limite à aplicação no espaço do sistema de Direito de Conflitos com

respeito às situações que sejam objeto de uma decisão estrangeira? Foi atrás

assinalado que na regulação das situações transnacionais o Direito

Internacional Privado não opera apenas através do Direito de Conflitos,

entendido stricto sensu, mas também mediante o reconhecimento das

situações jurídicas fixadas por decisão estrangeira, sob certas condições. O

regime de reconhecimento de sentenças estrangeiras, na medida em que

permite reconhecer situações jurídicas fixadas por decisão judicial

estrangeira com base num Direito de conflitos estrangeiro, limita o âmbito

de aplicação do Direito de Conflitos do foro. Mas, para o reconhecimento

de uma situação fixada por uma decisão judicial estrangeira é indiferente

que a situação tenha ou não tenha um contacto significativo com o Estado

do foro no momento da constituição. A situação até pode ter um contacto

mais significativo com o Estado português do que com o Estado em que a

decisão foi proferida. Pode, por conseguinte, tratar-se de situações

reguladas pelo Direito de Conflitos português. A ordem jurídica portuguesa

já conhece limites específicos à aplicação no espaço de certas normas de

conflitos. Com efeito, vigoram na ordem jurídica portuguesa certas normas

de conflitos que de um ou outro modo limitam o campo de aplicação no

espaço de outras normas de conflitos. É o que se verifica com as seguintes

normas e conflitos:

1. O artigo 31.º, n.º2 CC, quando limita a competência da lei

nacionalidade para salvar a validade de negócios que tenham sido

celebrados no país da residência habitual segundo o Direito deste

país que se considere competente (é um limite à norma que resulta

da conjugação do artigo 25.º com o artigo 31.º, n.º1 CC);

2. O artigo 47.º CC, quando consagra um desvio à lei pessoal em

matéria de capacidade para constituir direitos reais sobre imóveis

ou para dispor deles quando a lex rei sitae se considere competente

(é um limite à norma que resulta da conjugação do artigo 25.º com

os artigos 31.º, n.º1 e 32.º CC em que, como se assinalou, se

manifesta o princípio da maior proximidade);

3. O artigo 61.º LAV, quando limita o Direito Internacional Privado

especial da arbitragem transnacional às arbitragens que tenham

lugar em território português.

Observe-se que as duas normas primeiramente referidas são normas de

remissão condicionada que dão relevância ao Direito de Conflitos de

estrangeiro. Entendo também que, na omissão do legislador, não pode o

órgão de aplicação do Direito derrogar as normas de conflitos vigentes

através da formulação jurisprudencial de soluções inspiradas em teorias

doutrinais.

v. Normas que permitem tomar em consideração o Direito

Internacional Privado estrangeiro: além das normas de remissão

condicionada atrás referidas (artigos 31.º, n.º2 e 47.º CC), há outras normas

que permitem tomar em conta a posição do Direito Internacional Privado

estrangeiro, sem contudo limitarem a aplicação no espaço de normas de

conflitos. É o que se verifica:

1. Em matéria de devolução;

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✒ 2. Na resolução de questões prévias, quando excecionalmente

seja de estabelecer uma conexão subordinada;

3. Com outras normas de conexão condicionada.

Estes casos demonstram que a falta de interesses internos à aplicação no

espaço de uma norma de conflitos não implica territorialmente quanto aos

órgãos de aplicação do Direito. Sublinhe-se que em todos estes casos o

Direito Internacional Privado estrangeiro é aplicado por força do título de

aplicação que lhe é dado pelas normas de Direito Internacional Privado

português. E que o Direito Internacional Privado português mantém o

controlo da solução final, designadamente o controlo da solução material

por meio da reserva de ordem pública internacional.

Do elemento de conexão

1. Princípios gerais de interpretação e aplicação:

a. Generalidades: já anteriormente examinei os critérios gerais aplicáveis à

interpretação da norma de conflitos. Estes critérios também valem para a

interpretação dos conceitos designativos do elemento de conexão. Por razões

pedagógicas importa distinguir dois momentos na interpretação e aplicação do

elemento de conexão:

i. A interpretação: trata-se da determinação do conteúdo do conceito que

designa o elemento de conexão;

ii. Concretização: diz respeito à determinação do laço em que se traduz o

elemento de conexão.

b. Interpretação: do ponto de vista da interpretação, há uma diferença relativa entre

os conceitos técnico-jurídicos e os conceitos fáticos. A interpretação dos conceitos

técnico-jurídicos suscita dificuldades particulares: perante a diversidade do conteúdo

atribuído a estes conceitos nos diferentes sistemas nacionais torna-se necessário

determinar quais as regras e princípios jurídicos a que se deve recorrer. Foi atrás

sublinhado que a norma de conflitos deve ser interpretada segundo os critérios

aplicáveis em função da sua fonte (internacional, europeia, transnacional ou interna).

Os conceitos designativos dos elementos de conexão contidos em Convenções

Internacionais e Regulamentos europeus devem ser objeto de uma interpretação

autónoma em relação às ordens jurídicas dos Estados Contratantes/Membros

singularmente consideradas, designadamente o ordenamento do foro. As normas de

fonte interna devem ser interpretadas no contexto do sistema a que pertencem, mas

também com autonomia relativamente ao Direito material vigente neste sistema. Há

que partir das regras e princípios de Direito material interno para obter as notas dos

conceitos designativos técnico-jurídicos, tais como a nacionalidade. Mas as

finalidades prosseguidas pelas normas de conflitos podem justificar a atribuição a

estes conceitos de um sentido e alcance diferente do atribuído aos conceitos

homólogos de Direito material interno. Esta diferença traduzir-se-á normalmente

numa maior indeterminação dos conceitos designativos, o que lhes dá uma maior

abertura a realidades jurídicas estrangeiras.

c. Concretização:

i. Problemas de concretização: na concretização do elemento de conexão

surgem três ordens de problemas:

1. Aspetos gerais da determinação do conteúdo concreto do

elemento de conexão;

2. Casos de conteúdo múltiplo e da falta de conteúdo;

3. Concretização no tempo do elemento de conexão.

ii. Aspetos gerais: a determinação do conteúdo concreto do elemento de

conexão pode não oferecer especiais dificuldades, sobretudo quando se

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3

§

trata de elementos de conexão que consistem em laços fáticos como o lugar

da situação da coisa ou o lugar da celebração de um contrato entre presentes.

Em princípio, trata-se apenas de estabelecer os factos relevantes.

Diferentemente, a concretização de elementos de conexão que se reportam

a um vínculo jurídico, a consequências jurídicas ou a factos jurídicos suscita

diversas questões jurídicas. No caso de elementos de conexão que se

reportam a um vínculo jurídico – como a nacionalidade – suscita-se desde

logo a questão de saber se o elemento de conexão se concretiza lege fori (com

base na ordem jurídica do foro) ou lege causae (com base na ordem jurídica

cuja designação está em causa). No que se refere aos elementos de conexão

que se referem a consequências jurídicas que se projetam num determinado

lugar, também é necessário determinar se a consequência jurídica se

estabelece lege fori ou lege causae. Aqui a determinação do conteúdo concreto

do elemento de conexão relaciona-se com a recondução da situação da vida

à previsão da norma de conflitos e, por conseguinte, deve ser orientada

pelos mesmos critérios que presidem à qualificação. Assim, entendo que se

interpreta com base no Direito de Conflitos em jogo, mas também tem de

se apreciar perante a lei potencialmente aplicável se ocorre no território do

respetivo Estado a lesão de um bem jurídico. Como elemento de conexão

que consiste num facto jurídico temos a designação pelos interessados do

Direito aplicável. Geralmente a designação e objeto de um acordo das

partes, caso em que se suscita a questão de saber se a formação e a validade

do consentimento são apreciadas segundo o Direito material do foro ou

segundo a lei escolhida. Seguindo a melhor doutrina, os Regulamentos

europeus optam geralmente pela segunda solução (artigo 4.º, n.º5 RRI,

artigo 6.º, n.º1 RRIV e artigo 22.º, n.º3 Regulamento sobre sucessões).

iii. Conteúdo múltiplo e falta de conteúdo: há um problema de conteúdo

múltiplo quando no caso concreto surgem vários laços, que se estabelecem

com diferentes Estados, reconduzíveis ao mesmo conceito designativo. Na

hipótese inversa, há falta de conteúdo, quando não existe no caso concreto

o laço designativo. Vejamos quais os critérios de resolução destes

problemas:

1. O problema de conteúdo múltiplo: pode ser resolvido por uma

norma especial. É o que se verifica com a nacionalidade. Os artigos

27.º e 28.º Lei Nacionalidade estabelecem critérios de resolução

dos concursos de nacionalidades. Nos termos do artigo 27.º LN,

se uma das nacionalidades for a portuguesa é esta que prevalece. E

é assim que seja mais efetiva a nacionalidade estrangeira. É uma

solução adotada na maioria das legislações e também em

Convenções Internacionais nesta matéria (de que Portugal não é

parte). Por força do artigo 28.º LN, em caso de concurso de duas

ou mais nacionalidades estrangeiras releva apenas a nacionalidade

do Estado em cujo território o plurinacional tenha a sua residência

habitual. Se não tiver residência habitual num dos Estados de que

é nacional, releva a nacionalidade do Estado com que mantenha a

vinculação mais estreita. Manifesta-se aqui o princípio da

nacionalidade efetiva, há muito acolhido em Convenções

Internacionais e pela jurisprudência internacional. A mesma

solução é seguida, para os casos de concurso de nacionalidades

estrangeiras, pela maioria dos sistemas nacionais. Na determinação

da vinculação mais estreita haverá que atender a todos os laços, de

caráter objetivo ou subjetivo, que exprimam ligação a uma

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4

✒ sociedade estadual. Deverá dar-se especial importância aos laços

que exprimam a identidade cultural do plurinacional,

designadamente a língua por ele falada. Levanta-se a questão de

saber se o artigo 28.º LN também se aplica quando uma das

nacionalidades estrangeiras for a de um Estado da União Europeia.

No acórdão Micheletti2 (1992), o TCE entendeu que para efeitos de

direito de estabelecimento a nacionalidade relevante é sempre a do

Estado Membro. Valerá isto para outros efeitos, designadamente

para a aplicação das normas de conflitos? Marques dos Santos

defendeu que sim. Este entendimento parece de seguir, pois seria

indesejável que em Portugal um plurinacional fosse tratado como

nacional de um Estado para uns efeitos e como nacional de outro

Estado para outros. Na falta de norma especial, o problema deve

resolver-se com base na interpretação da norma de conflitos.

2. O problema da falta de conteúdo: quando se conclui pela falta

de conteúdo concreto do elemento de conexão há que atender, em

primeiro lugar, à norma especial que resolva o problema. Assim, o

artigo 12.º da Convenção de Nova Iorque Relativa ao Estatuto do

Apátrida determina que a lei pessoal do apátrida é a do país do

domicílio que deve ser entendido no sentido de residência habitual.

Se o apátrida não tiver residência habitual, releva a lei do país da

residência ocasional. Creio que esta solução é criticável e contrária

às exigências que a conexão deve satisfazer em matéria de estatuto

pessoal. Seria preferível que na falta de residência habitual se

recorresse à lei do pais com o qual o apátrida apresenta a conexão

mais estreita (tendo especialmente em conta a sua inserção num

determinado meio sócio-cultural). A aplicação da Convenção de

Nova Iorque não alterará substancialmente a situação existente

perante o artigo 32.º, n.º1, 1.ª parte CC, que determina que a lei

pessoal do apátrida é a do lugar onde tiver a residência habitual. E

se o apátrida não tiver residência habitual? O n.º2 do mesmo artigo

resolve o problema, remetendo para o n.º2 do artigo 82.º CC. De

onde decorre que releva a residência ocasional e, se esta faltar, até

o simples paradeiro. Não havendo norma especial que resolva o

problema há que atender ao critério geral estabelecido pelo artigo

23.º, n.º2, 2.ª parte CC, que manda recorrer à lei que for

subsidiariamente competente. Na falta de conexão subsidiária,

resta o recurso ao Direito material do foro, por aplicação analógica

do disposto no artigo 348.º, n.º3 CC. Hipótese algo diversa, que se

pode configurar, é a de o conteúdo concreto do elemento de

conexão ser incerto. Por exemplo, não se consegue apurar ao certo

2 «10 A definição das condições de aquisição e de perda da nacionalidade é, nos termos do direito internacional, da competência de cada Estado-membro, que deve exercê-la no respeito pelo direito comunitário. Em contrapartida, não cabe à legislação de um Estado-membro restringir os efeitos da atribuição da nacionalidade de outro Estado-membro, exigindo um requisito suplementar para o reconhecimento dessa nacionalidade com vista ao exercício das liberdades fundamentais previstas pelo Tratado. «11 Consequentemente, não pode aceitar-se uma interpretação do artigo 52.° do Tratado nos termos da qual, quando um cidadão de um Estado-membro possua simultaneamente a nacionalidade de um Estado terceiro, os outros Estados-membros podem sujeitar o reconhecimento da qualidade de cidadão comunitário a uma condição como a residência habitual do interessado no território do primeiro Estado. «14 Assim, quando os interessados apresentem um dos documentos referidos na Directiva 73/148 que comprove a sua qualidade de nacionais de um Estado-membro, os outros Estados membros não podem contestar essa qualidade pelo facto de os interessados possuírem igualmente a nacionalidade de um Estado terceiro que, nos termos da legislação do Estado de acolhimento, prevalece sobre a do Estado-membro»

Vide VICENTE, Dário

Moura; “Liberdades Europeias

e Direito Internacional Privado”;

in Cuadernos de Derecho

Transnacional (Octubre

2009), Vol. I, N.º2, pp. 179-

220); www.uc3m.es/cdt

Direito Internacional Privado

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5

§

se um indivíduo tem ou não a nacionalidade de determinado

Estado. Se for possível determinar que o indivíduo tem a

nacionalidade de outro Estado, deverá aplicar-se a lei deste Estado.

Caso contrário, entendo que são aplicáveis as soluções que foram

expostas para o caso de falta de conteúdo concreto do elemento de

conexão.

iv. Concretização no tempo: o problema da concretização no tempo é

colocado pelos elementos de conexão móveis que são, como já foi

assinalado, aqueles cujo conteúdo concreto é suscetível de sofrer alteração

no tempo. Com a alteração do conteúdo concreto do elemento de conexão

surge uma sucessão de estatutos ou conflito móvel. Daí que há que se fale

de uma sucessão de estatutos. Em matéria de sucessão de estatutos há duas

teses fundamentais:

1. Há analogia entre a sucessão de estatutos e o conceito de leis

no tempo e, por conseguinte, são aplicáveis analogicamente

as regras gerais do Direito Intertemporal (Baptista Machado);

2. Não é possível formular regras gerais em matéria de sucessão

de estatutos. Para a solução dos problemas de sucessão de

estatutos deve recorrer-se a uma interpretação da norma de

conflitos que suscita o problema (Ferrer Correia e Isabel de

Magalhães Collaço).

Como ponto de partida esta segunda tese oferece uma base metodológica

mais segura. A determinação do momento relevante para a concretização

do elemento de conexão é um problema de interpretação da norma de

conflitos que o utiliza. A fixação dos momentos relevantes da conexão deve

depender, em última instância, do complexo de fins que subjaz à norma de

conflitos em causa e ao sistema de Direito Internacional Privado em que se

integra. A sucessão de estatutos não se confunde com a sucessão de leis no

tempo. Na sucessão de leis no tempo, temos a substituição de uma lei por

outra lei dentro da mesma ordem jurídica. A vigência da lei antiga é

condicionada pela entrada em vigor da lei nova. Na sucessão de estatutos,

estamos em presença de duas ordens jurídicas vigentes. O que muda é a

situação da vida: há um deslocamento da situação da vida relativamente aos

Estados em presença, que leva a que o laço, considerado relevante para

designar o Direito aplicável, se passe a estabelecer com um Estado diferente.

Este elemento espacial está ausente no conflito intertemporal. Embora a

sucessão de estatutos não se confunda com a sucessão de leis no tempo,

pode admitir-se uma certa analogia entre os critérios valorativos que

presidem à escolha do momento relevante da conexão e os que

fundamentam as soluções do Direito Intertemporal, bem como no que toca

à salvaguarda da continuidade das situações jurídicas constituídas. Mas a

aplicação analógica de regras gerais de Direito Intertemporal terá como

limite a compatibilidade dos resultados a que conduz com as finalidades

prosseguidas pela norma de conflitos em causa e com os princípios gerais

do Direito de Conflitos que ela integra. Na resolução dos problemas de

sucessão de estatutos importa distinguir dois aspetos:

1. A determinação do momento relevante da conexão: em certos

casos o legislador fixou o momento relevante; por exemplo, os

artigos 53.º, n.º1 e 2, 2.ª parte, 56.º, n.º1, 2 e 3 CC ou artigo 21.º,

n.º1 Regulamento sobre Sucessões. Na omissão do legislador, a

fixação do momento relevante da conexão é, como se sublinhou,

um problema de interpretação da norma de conflitos em causa. No

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✒ entanto, na medida em que outra coisa não resulte desta

interpretação, são de aplicar analogicamente as regras gerais de

Direito Intertemporal. De onde decorre que releva a conexão no

momento da verificação dos factos (constitutivos, modificativos

ou extintivos das situações jurídicas) que estejam em causa.

2. A conjugação dos estatutos em presença: nesta matéria a

doutrina internacionalprivatista tem afirmado, à face dos diferentes

sistemas locais de Direito Internacional Privado, a existência de um

princípio da continuidade das situações jurídicas preexistentes. À

semelhança do Direito Intertemporal, a destruição ou modificação

essencial das situações constituídas tem de firmar-se em valores ou

princípios supraordenados às exigências gerais da segurança

jurídica e à confiança dos sujeitos jurídicos – quando objetivamente

justificada – na permanência da situação existente. Assim, a

situação validamente constituída sob o império do estatuto anterior

deve persistir em caso de mudança de estatuto, a menos que se lhe

oponham razões suficientemente ponderosas. Certas disposições

especiais sobre sucessão de estatutos podem ser vistas como

manifestações particulares deste princípio. Por exemplo, o artigo

29.º CC. O Princípio da continuidade também pode reclamar o

desenvolvimento de soluções materiais especiais para certos

problemas de sucessão de estatutos. Encontramos exemplos destas

soluções materiais especiais nos n.º2 a 5 do artigo 3.º CSC, no caso

de transferência internacional da sede da sociedade.

2. A nacionalidade dos indivíduos, a residência habitual e a designação pelo

interessado ou interessados:

a. A nacionalidade dos indivíduos: a nacionalidade dos indivíduos tem relevância

na determinação do seu estatuto pessoal, como elemento de conexão primário nos

termos do artigo 31.º, n.º1 CC e, enquanto nacionalidade comum, em matéria de

relações de família (artigos 52.º e 53.º CC e 8.º, alínea c) RRIV). Fora do estatuto

pessoal, a nacionalidade comum releva em matéria de responsabilidade

extracontratual, nos casos residuais em que se aplique o artigo 45.º, n.º3 CC. Nem

sempre, portanto, a lei da nacionalidade é a lei pessoal. Quanto à interpretação deste

conceito designativo, há que partir da noção geral de nacionalidade como vínculo

jurídico-político que une uma pessoa a um Estado. Mas este vínculo pode assumir

diferentes significados. A par do vínculo que une um indivíduo a um Estado

soberano na ordem jurídica internacional, i.e., com capacidade internacional plena,

há também vínculos que unem os indivíduos a Estados não soberanos ou com

soberania reduzida. Por vezes fala-se de nacionalidade a propósito de vínculos entre

indivíduos e entidades supraestaduais que não são Estados. É o que se verifica com

a dita nacionalidade comunitária ou europeia. Esta expressão é incorreta. A

cidadania da União Europeia não é uma nacionalidade. A cidadania europeia

encontra-se prevista nos artigos 9.º e 11.º, n.º3 TUE e na Parte II TFUE (artigos

19.º e seguintes). O estatuto de cidadão da UE compreende o gozo de todos os

direitos e a assunção de todos os deveres imputados às pessoas originárias de

Estados Membros. Mas os Tratados ocupam-se de certos direitos em especial,

designadamente o direito de livre deslocação e permanência, o direito de proteção

diplomática e, como expressão particularmente significativa da existência da

cidadania da EU, o direito de votar e ser eleito para o Parlamento Europeu e nas

eleições municipais do Estado de residência, por parte dos cidadãos da UE que

residam noutros Estados Membros. É cidadão da UE toda a pessoa que tenha a

nacionalidade de um Estado Membro (artigo 9º TUE e 20.º, n.º1 TFUE). A

Direito Internacional Privado

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§

cidadania exprime a participação na definição da vontade política de uma

comunidade. A atribuição da nacionalidade é uma competência de domínio

reservado dos Estados A cidadania da UE não pressupõe qualquer nacionalidade da

UE, que não existe. Atendendo à função da norma de conflitos, a nacionalidade

relevante para o Direito de Conflitos português é a nacionalidade do Estado

soberano (Seja ela a nacionalidade primária ou secundária). Passando agora à

concretização do elemento de conexão, surgem teoricamente duas possibilidades:

i. A concretização lege fori, mediante a aplicação do Direito do foro; e

ii. A concretização da lege causae, mediante a aplicação do Direito do

Estado cuja nacionalidade está em causa.

Aqui impõe-se referir o princípio, de Direito Internacional Público geral, da

liberdade dos Estados na determinação dos seus nacionais. Decorre deste princípio

que a nacionalidade se tem de estabelecer segundo o Direito do Estado cuja

nacionalidade está em causa. A concretização faz-se, portanto, lege causae. Quando

esteja em causa a aquisição e perda da nacionalidade portuguesa há que ter em conta

o disposto na Constituição (artigos 4.º e 26.º), na Convenção Europeia sobre a

Nacionalidade (Estrasburgo, 2997), na Convenção de Nova Iorque para a Redução

dos Casos de Apatrídia (1961) e, principalmente, nos artigos 1.º a 8.º LN. Quanto

aos concursos de nacionalidades e à falta de nacionalidade remete-se para o

anteriormente exposto. Resta fazer uma referência à questão prévia de Direito

Internacional Privado suscitada na determinação da nacionalidade. Trata-se, pois, da

apreciação de uma situação transnacional para efeito de determinar a aquisição ou

perda de uma nacionalidade estrangeira. Esta questão prévia resolve-se por aplicação

do Direito Internacional Privado do Estado cuja nacionalidade está em causa, pois

só assim se assegura o princípio da liberdade de cada Estado na determinação dos

seus nacionais.

b. Residência habitual: no Direito Internacional Privado português, a residência

habitual desempenha tradicionalmente o papel o elemento de conexão subsidiário

geral em matéria de estatuto pessoal. Encontra-se estabelecido, para os apátridas, no

artigo 32.º, n.º1 CC, bem como, com base numa interpretação autónoma dos

preceitos, no artigo 12.º, n.º1 Convenção Nova Iorque Relativa Estatuto Apátridas

e no artigo 12.º, n.º1 Convenção Genebra Relativa Estatuto Refugiados. O mesmo

elemento de conexão releva, enquanto residência habitual comum, na falta de

nacionalidade comum, nos artigos 52.º, n.º2, 53.º, n.º2, 54.º, 57.º, n.º1 e 60.º, n.º3

CC. Observe-se que a residência habitual comum é a residência habitual no mesmo

Estado soberano (e, não quiçá, a residência no mesmo lugar ou em conjunto). É um

conceito específico do Direito de Conflitos. Este elemento de conexão também

surge na já referida norma de reconhecimento do artigo 31.º, n.º2 CC. Por força de

fontes internacionais e europeias, a residência habitual é hoje o elemento de conexão

mais importante em muitas matérias. O conceito de residência habitual é geralmente

menos carregado de elementos técnico-jurídicos que o conceito de domicílio. É mais

fácil de aplicar e gera menos divergências na sua aplicação. Daí a preferência que lhe

é concedida em Convenções Internacionais, designadamente nas Convenções de

Haia e Regulamentos Europeus. No entanto, este conceito designativo também

suscita alguns problemas de interpretação. Por residência habitual dos indivíduos é

de entender o seu centro da vida pessoal (independentemente de uma autorização

de residência). O conceito de residência já contém uma nota de permanência. Mas a

residência pode ser ocasional, caso em que há um centro de vida que, embora dotado

de certa permanência, é precário. O qualificativo de habitual exige um elevado grau

de estabilidade e permanência. Uma residência só passa a ser habitual quando, tendo

sido estabelecida sem um limite temporal próximo, dure efetivamente durante um

considerável lapso de tempo. Poderemos então definir residência habitual, dando

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✒ azo a um problema de conteúdo múltiplo. Neste caso deve relevar a residência

habitual do Estado a que o indivíduo esteja mais estreitamente ligado. Na falta de

residência habitual, as Convenções aplicáveis, mandam atender no caso dos

apátridas e dos refugiados políticos à residência simples, convergindo com o

disposto no artigo 32.º, n.º2 CC, que remetia para a residência ocasional. Isto é

contraditório com a ideia de o estatuto pessoal deve ser submetido a uma lei que

apresenta uma conexão íntima e permanente com o interessado. Como já se

observou, seria mais adequado recorrer à lei do Estado com o qual o apátrida

apresenta uma conexão mais estreita. A utilização do elemento de conexão

residência habitual com respeito a entes coletivos, nos RRI e RRII, vem introduzir

uma pluralidade de conceitos de residência habitual (artigo 19.º RRI e 23.º RRII).

Com efeito, relativamente aos entes coletivos, o conceito de residência habitual tem

natureza técnico-jurídica, entendendo-se que corresponde ao local onde se situa a

administração central ou, no caso de o contrato, o facto danoso ou o dano dizer

respeito a um estabelecimento situado noutro país, o local onde se situa este

estabelecimento.

c. A designação pelo interessado ou interessados: a designação pelas partes é o

elemento de conexão primário em matéria de negócios obrigacionais, como decorre

do artigo 3.º RRI, do artigo 41.º CC e, ainda, do artigo 5.º CH 1979. A escolha do

Direito aplicável também é admitida, por esta Convenção da Haia, com respeito às

relações que se estabeleçam entre o representado e o terceiro e entre o intermediário

e o terceiro (artigos 14.º e 15.º). Este elemento de conexão surge ainda em matéria

de pessoas coletivas internacionais no artigo 34.º CC. Com o Regulamento Roma II,

a designação pelas partes passou a constituir também o elemento de conexão

primário em matéria de obrigações extracontratuais (artigo 14.º), embora, na prática,

sejam reduzidos os casos em que ocorre uma designação nesta matéria. O mesmo

se diga da designação permitida pelo Protocolo de Haia Sobre a Lei Aplicável às

Obrigações Alimentares (2007) (artigos 7.º e 8.º) e, muito limitadamente, em matéria

de divórcio e separação (artigo 5.º RRIV) e em matéria de sucessões por morte

(artigo 22.º Regulamento sobre sucessões). Enfim, é o elemento de conexão

primário, e agora com um âmbito de aplicação mais vasto, no Direito de Conflitos

especial da arbitragem internacional (artigos 52.º, n.º1 LAV).

3. Outros elementos de conexão:

a. O domicílio: o elemento de conexão domicílio, enquanto entendido como vínculo

jurídico entre uma pessoa e um lugar situado num determinado espaço territorial,

tem um papel muito limitado no nosso Direito de Conflitos. Perante o artigo 32.º

CC, em matéria de estatuto pessoal, era a lei da residência habitual – e não a do

domicílio –, a conexão subsidiária geral na falta de nacionalidade. Com a entrada em

viro na nossa ordem jurídica da Convenção de Nova Iorque Relativa ao Estatuto

dos Apátridas (1954), poderá ser questionado se a situação é alterada. Na verdade,

o artigo 12.º, n.º1 CNI 1954, à semelhança do artigo 12.º, n.º1 Convenção Genebra

Relativa ao Estatuto Refugiado (1951), submete o estatuto pessoal do apátrida à lei

do país do domicílio. Sucede, porém, que estas Convenções não definem o relevante

conceito de domicílio, por forma que os Estados Contratantes são livres de o

determinarem. No interesse de uma interpretação uniforme das Convenções, esta

determinação não deverá ser feita com base no Direito (material ou conflitual)

interno, mas com recurso a uma interpretação autónoma. Esta interpretação

autónoma aponta no sentido da relevância do centro efetivo e estável da vida pessoal

do apátrida, que corresponde à noção de residência habitual. Por conseguinte,

embora formalmente o elemento de conexão também releve para a determinação da

lei pessoal dos apátridas e dos refugiados políticos, em resultado apenas desempenha

um papel residual em determinados casos. É o que se verifica, em matéria de

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§

representação voluntária, quando seja competente a lei do domicílio profissional nos

termos do artigo 39.º, n.º3 CC, e quanto à validade formal das disposições por morte

(artigo 27.º, n.º1 Regulamento sobre Sucessões). No entanto, o elemento de conexão

domicílio cobra grande importância na aplicação de Direito de Conflitos estrangeiro,

designadamente na devolução. Nos diferentes sistemas nacionais encontramos uma

variedade de regulamentações materiais do domicílio que se projeta numa

pluralidade de conceitos de domicílio. As divergências são particularmente vincadas

entre sistemas da Europa continental e sistemas anglo-saxónicos, mas também se

verificam entre sistemas continentais. Quanto à interpretação, já sabemos que

relevam os critérios aplicáveis às fontes das normas de conflitos em causa. No

conceito de domicílio, quando utilizado em normas de conflitos de fonte interna,

devem incluir-se uma nota objetiva de permanência num determinado lugar e uma

nota subjetiva de intenção de aí permanecer. De resto o conceito deve ser aberto a

vínculos de domicílio diferentes dos estabelecidos pela ordem jurídica do foro,

contanto que comparáveis. Já um domicilie of origin, configurado pelo Direito inglês,

que não exprima uma permanência num determinado lugar, não pode ser

reconduzido a este conceito de domicílio. No que se refere à concretização do

elemento de conexão domicílio também surge aqui a alternativa entre uma

concretização lege fori e uma concretização lege causae. Esta alternativa corresponde

até certo ponto às duas teses tradicionais da matéria:

i. Tese da dita qualificação lege fori, tradicionalmente seguida nsos

sistemas de Common Law, o domicílio determina-se sempre segundo as

regras do Direito do foro; representa um processo mais expedito, que evita

o surgimento de problemas de conteúdos múltiplos e de falta de conteúdo.

Mas com o preço de gerir conflitos ocultos. Estes conflitos ocultos

contribuem para a desarmonia internacional de soluções.

ii. Tese dita da qualificação territorial, defendida designadamente por

Zitelmann, manda atender à lei do Estado em cujo território se sita o

domicílio em causa, para a sua determinação. Suscita mais dificuldades,

exigindo um método de tentativas, em que são consultados vários Direitos.

Mas mostra-se mais favorável à harmonia internacional de soluções. Por

isso, em tese geral, deve preferir-se a concretização lege causae do

elemento de conexão domicílio quando utilizado em normas de fonte

interna, designadamente em matérias de estatuto pessoal, em que a

estabilidade é particularmente importante.

É a solução que deveria valer para o domicílio legal utilizado no artigo 32.º, n.º1 CC.

O artigo 85.º CC só deveria ser aplicado quando está em causa o domicílio legal em

Portugal. Para se saber se o apátrida está legalmente domiciliado num Estado

estrangeiro teria de se atender ao disposto sobre o domicílio legal no Direito deste

Estado. O mesmo se diga da concretização do elemento de conexão domicílio,

utilizado pelo Regulamento sobre sucessões, com respeito à validade formal das

disposições por morte. Já o conceito de domicílio utilizado no artigo 12.º, n.º1 CNI

1954 deve ser entendido, por força de uma interpretação autónoma, como residência

habitual, nos termos anteriormente expostos. Por outro lado, quanto ao domicílio

profissional do artigo 39.º, n.º3 CC, poderá admitir-se uma concretização lege fori.

Encontramo-nos aqui fora do âmbito do estatuto pessoal, num domínio em que tem

de se atender mais à proteção de terceiros que à estabilidade. A concretização lege

fori permite a determinação do Direito aplicável com mais facilidade e certeza. Quer

isto dizer que estabelecer o domicílio profissional, em Portugal ou no estrangeiro,

será aplicável o disposto no artigo 83.º CC.

b. A sede da pessoa coletiva: este elemento de conexão é o relevante para a

determinação da lei pessoal das pessoas coletivas. Surge no artigo 33.º CC e no artigo

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✒ 3.º, n.º1, 1.ª parte CSC, enquanto sede principal e efetiva da administração. Mas a

sede estatutária também releva em matéria de sociedades comerciais (artigo 3.º, n.º1,

2.ª parte CSC) e de pessoas coletivas internacionais (artigo 34.º CC).

c. O lugar da celebração: o elemento de conexão da celebração é utilizado, em

matéria de forma do negócio jurídico, nos artigo s36.º, 50.º e 51.º CC, artigo 11.º

RRI, 21.º RRII e 27.º Regulamento sobre sucessões, designadamente. Foi também

acolhido relativamente às obrigações voluntárias no artigo 42.º, n.º2 CC. Está é uma

solução bastante criticável que suscita frequentemente problemas no que toca à

determinação do lugar da celebração nos contratos entre ausentes.

d. O lugar da situação da coisa: o lugar da situação da coisa é o principal elemento

de conexão em matéria de posse e direitos reais. É o que resulta do artigo 46.º, n.º2

e 2 CC. O lugar da situação da coisa também é utilizado em matéria de capacidade

para constituir direitos reais sobre imóveis, e para dispor deles, nos termos do artigo

47.º CC. Enfim, o lugar da situação da coisa releva residualmente ainda no domínio

da representação voluntária, quando esta se refira à disposição ou administração de

bens imóveis, nos termos do artigo 39.º, n.º4 CC.

e. O lugar da produção do efeito lesivo: o lugar da produção do efeito lesivo

(formalmente lugar onde ocorre o dano) releva em matéria de responsabilidade

extracontratual (artigo 4.º, n.º1 RRII). O artigo 45.º, n.º1 CC, que passou a ter um

âmbito de aplicação residual perante o Regulamento Roma II, utiliza o elemento de

conexão lugar da atividade causadora do prejuízo, que se encontra mais próximo da

solução tradicional, que consistia na aplicação da lei do lugar do delito. O artigo 45.º,

n.º2 CC também concede determinada relevância do lugar da produção do efeito

lesivo.

f. Outros elementos de conexão: no nossos sistema de Direito de Conflitos surgem

ainda outros elementos de conexão, designadamente:

i. o lugar do comportamento negocial, quanto ao valor negocial do

comportamento (artigo 35.º, n.º2 CC);

ii. o lugar quanto ao valor negocial do silêncio (artigo 35.º, n.º3 CC);

iii. o lugar onde são exercidos os poderes representativos, em matéria de

representação voluntária (artigo 39.º, n.º1 CC);

iv. o lugar da atividade do gestor de negócios (artigo 11.º, n.º3 RRII);

v. o lugar onde a matrícula tiver sido efetuada no que se refere aos direitos

sobre meios de transporte (artigo 46.º, n.º3 CC);

vi. o lugar do estabelecimento profissional do intermediário (artigos 6.º, n.º1 e

11.º, n.º1 CH 1979);

vii. o lugar onde o intermediário deva exercer a título principal a sua atividade

ou onde agiu (artigos 6.º, n.º2 e 11.º, n.º2 CH 1979); e

viii. o lugar do centro dos principais interesses do devedor em matéria de

insolvência (artigos 3.º, n.º1 e 4.º, n.º1 Regulamento sobre processos de

insolvência).

Remissão para ordenamentos jurídicos complexos

1. Caracterização do problema: os ordenamentos jurídicos complexos suscitam ao Direito

de Conflitos dois problemas:

a. Quanto é que a norma de conflitos remete para o ordenamento jurídico

complexo?

b. Supondo que a norma de conflitos remete para o ordenamento jurídico

complexo, como se determina, entre os vários sistemas que nele vigoram, o

aplicável ao caso?

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§

Os textos legislativos a considerar são o artigo 20.º CC, o artigo 19.º, n.º1 Convenção Roma,

artigo 22.º, n.º1 RRI, artigo 25.º, n.º1 RII, artigo 19.º CH1979, os artigos 14.º e 15.º RRIV e

os artigos 36.ºe 37.º Regulamento sobre sucessões.

2. Princípios gerais de solução. O regime vigente.

a. Quanto é que a norma de conflitos remete para o ordenamento jurídico

complexo no seu conjunto? A primeira questão que se coloca é a de saber quando

é que a norma de conflitos remete para a ordem jurídica complexa no seu conjunto

e quando é que remete diretamente para um dos sistemas que nela coexistem. O

artigo 20.º CC só se refere à remissão feita pelo ordenamento de conexão

nacionalidade. Como proceder quando o elemento de conexão seja a residência

habitual, o domicílio, o lugar da celebração, o lugar do efeito lesivo, o lugar da

situação da coisa, etc.? Há duas posições:

i. Para Ferrer Correia: entende que quando o elemento de conexão aponta

diretamente para determinado lugar no espaço será competente o sistema

em vigor neste lugar;

ii. Isabel de Magalhães Collaço: defende que a remissão da norma de

conflitos é feita, em princípio, para o ordenamento do Estado soberano.

Esta segunda posição parece-me de preferir, porque ao Direito Internacional

Privado compete determinar o Direito aplicável, quando a situação está em contacto

com mais de um estado sobreano, e não resolver conflitos internos. Em princípio,

a norma de conflitos de Direito Internacional Privado, quando remete para o Direito

estadual, fá-lo para o Direito de um Estado soberano. Neste sentido, apontam os

artigos 36.º e 37.º Regulamento sobre sucessões. Já em matéria de obrigações

contratuais e extracontratuais e de contratos de mediação e representação resulta do

disposto nos artigos 22.º, n.º1 RRI, 25.º, n.º1 RRII e 19.º CH1979 que a remissão

seja feita pelas normas de conflitos contidas nestes instrumentos é entendida como

uma referência direta a um dos sistemas locais. O legislador internacional e europeu,

porém, não contemplou a hipótese em que as partes designem a ordem jurídica

complexa no seu conjunto. Neste caso, é inevitável considerar a remissão como feita

ao ordenamento local do Estado soberano e proceder à determinação do sistema

aplicável nos termos que se seguem. O Regulamento Roma III adotou uma posição

intermédia em matéria de divórcio e separação judicial: a remissão feita pelas normas

de conflitos no caso de uma ordem jurídica complexa de base territorial é, em

princípio, entendida como uma referência direta a um dos sistemas locais (artigo

14.º, alíneas a) e b)); mas a referência à lei da nacionalidade, bem como a referência

no caso de ordem jurídica complexa de base pessoal, são entendidas como uma

referência feita, em princípio, à ordem jurídica complexa no seu conjunto (artigos

14.º, alínea c) e 15.º).

b. Como determinar, de entre os sistemas que vigoram no ordenamento jurídico

complexo, o aplicável? Os princípios que orientam a determinação do sistema

aplicável, dentro do ordenamento complexo, são dois:

i. Pertence ao ordenamento jurídico complexo resolver os conflitos de leis

internos e, por isso, determinar qual o sistema interno aplicável;

ii. Se, porém, o ordenamento complexo não resolver o problema, deve aplicar-

se, de entre os sistemas que vigoram no âmbito do ordenamento complexo,

o que tem uma conexão mais estreita com a situação a regular.

Vejamos como estes princípios se concretizam quando a remissão para o

ordenamento jurídico complexo é feita pelo elemento de conexão nacionalidade:

iii. Ordenamentos complexos de base territorial: em conformidade com o

primeiro princípio, o n.º1 do artigo 20.º CC determina que pertence ao

ordenamento jurídico complexo fixar o sistema interno aplicável. No

mesmo sentido dispõem os artigos 36.º, n.º1 e 37.º Regulamento sobre

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✒ sucessões. É o que se verifica quando ao ordem jurídica complexa dispuser

de um sistema unitário de Direito Interlocal ou quando todos os

ordenamentos locais estejam de acordo sobre o ordenamento aplicável.

Parece que na falta de concordância entre todos os ordenamentos locais

será suficiente o acordo daqueles que estão em contacto com a situação

sobre a competência de um deles. Não sendo possível resolver a questão

com base no Direito Interlocal vigente na ordem jurídica complexa, o n.º2

do artigo 20.º CC presume analogia com o Direito Internacional Privado e

prescreve o recurso ao Direito Internacional privado unificado. E se

também não houver Direito Internacional Privado unificado? O n.º2 do

artigo 20.º CC manda atender à lei da residência habitual. Esta parte do

preceito suscita divergências de interpretação.

1. Para Isabel Magalhães Collaço só releva a residência habitual

dentro do Estado da nacionalidade. Há uma lacuna descoberta

através de interpretação restritiva do artigo 20.º, n.º2, in fine CC. A

função deste preceito é indicar o sistema aplicável de entre os que

integram o ordenamento complexo. Como este preceito não

fornece um critério para determinar o sistema aplicável quando a

residência habitual se situa fora do Estado da nacionalidade, surge

uma lacuna. Esta lacuna deve ser integrada com recurso ao

princípio da conexão mais estreita.;

2. Para a escola de Coimbra aplica-se a lei da residência habitual

mesmo que esta se situe fora do Estado da nacionalidade.

Creio ser o melhor entendimento o formulado por Isabel Magalhães

Collaço. Por certo que o recurso à lei da residência habitual, quando o

ordenamento complexo não dispõe de Direito Interlocal ou de Direito

Internacional Privado unificados, evita certas dificuldades na determinação

da lei aplicável. Mas é de rejeitar, porque significa tratar como apátrida quem

tem uma nacionalidade e menospreza a primazia da nacionalidade em

matéria de estatuto pessoal. Por conseguinte, em matéria de estatuto pessoal,

quando a residência habitual for fora do Estado da nacionalidade, devemos

aplicar, de entre os sistemas que integram o ordenamento complexo, aquele

com que a pessoa está mais ligada. Neste sentido também pode invocar-se

a analogia com o disposto no artigo 28.º LN, relativo ao concurso de

nacionalidades. Para determinar esta conexão mais estreita há que atender

a todos os laços objetivos e subjetivos que exprimam uma ligação entre a

pessoa em causa e um dos sistemas vigentes no ordenamento complexo e,

designadamente, ao vínculo de subnacionalidade que nos Estados federais

se estabeleça com os Estados federados, ao vínculo de domicílio e, na sua

falta, à última residência habitual ou último domicílio dentro do Estado da

nacionalidade.

iv. Ordenamentos complexos de base pessoal: o artigo 20.º, n.º3 CC

também consagra o princípio de que pertence ao ordenamento complexo

determinar o sistema pessoal competente. Assim, são aplicáveis as normas

de Direito Interpessoal da ordem jurídica designada, incluindo tanto as

normas de conflito interpessoais como as normas de Direito material

especial. O legislador supôs que o ordenamento complexo de base pessoal

disporá sempre de critérios para determinar o sistema pessoal aplicável. Mas

isto pode não se verificar. Neste caso devemos aplicar o sistema com o qual

a situação a regular tem uma conexão mais estreita.

Passe-se agora à determinação do sistema aplicável quando a remissão para o

ordenamento jurídico complexo é operada por um elemento de conexão que não

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3

§

seja a nacionalidade: este caso não é contemplado pelo artigo 20.º CC, razão por

que, fora do âmbito de aplicação e instrumentos supraestaduais, e seguindo-se o

entendimento de Isabel Magalhães Collaço, há uma lacuna. Esta lacuna deve ser

integrada por aplicação analógica do artigo 20.º CC. Quer isto dizer que, no caso de

remissão para um ordenamento complexo de base territorial se deve sempre atender

ao Direito Interlocal e ao Direito Internacional Privado unificados de que o

ordenamento complexo disponha. Como proceder se não houver Direito Interlocal

nem Direito Internacional Privado unificados? Se a remissão operada pela norma de

conflitos apontar para um determinado lugar no espaço ou diretamente para

determinado sistema local há que entender a remissão operada pela norma de

conflitos como uma remissão para o sistema local. Quando os elementos de conexão

apontam para um determinado lugar no espaço, há que considerar os sistemas locais

como se fossem autónomos e entende-se que a norma de conflitos, ao remeter para

um lugar no espaço, está a remeter indiretamente para o sistema que aí vigora.

Quanto aos elementos de conexão que não indiquem um preciso lugar no espaço,

atender-se-á igualmente ao sistema local para que diretamente remetam. No caso de

o elemento de conexão ser a designação pelas partes e de as partes terem designado

a ordem jurídica complexa no seu conjunto deverá aplicar-se o sistema local que

apresenta a conexão mais estreita com a situação. No plano dos resultados a

diferença entre as doutrinas do Isabel Magalhães Collaço e de Ferrer Correia é

menor do que parece, por duas razões:

i. Ferrer Correia admite a transmissão de competência dentro do

ordenamento complexo, dando assim relevância às soluções dos conflitos

interlocais aí vigentes;

ii. Isabel de Magalhães Collaço concede que quando a ordem jurídica

complexa não resolve o problema haverá que entender a remissão feita pela

norma de conflitos como referência a um dos sistemas locais.

No caso de remissão para um ordenamento complexo de base pessoal operada por

um elemento de conexão que não seja a nacionalidade deve sempre atender-se, por

aplicação analógica do artigo 20.º, n.º3 CC, às normas de Direito Interpessoal da

ordem jurídica designada. Na falta de normas de Direito Interpessoal que resolvam

o problema deve ser aplicado o sistema com o qual a situação a regular tem uma

conexão mais estreita (é a solução consagrada pelo artigo 37.º Regulamento sobre

sucessões).

A devolução ou reenvio

1. Introdução ao problema da devolução:

a. Identificação do problema: quando a norma de conflitos portuguesa remete para

uma ordem jurídica estrangeira pode suceder que esta ordem jurídica, por ter uma

norma de conflitos idêntica à nossa, também considere aplicável o seu Direito

material. Mas pode suceder igualmente que esta ordem jurídica, por ter uma norma

de conflitos diferente da nossa, não se considere competente e remeta para outra lei.

Surge então o problema da devolução. O problema é o seguinte: devemos aplicar a lei designada, mesmo que esta não se considere competente, ou devemos ter em conta o Direito Internacional Privado da lei designada? A resposta a da

a este problema depende do sentido e alcance que atribuímos à referência feita pela

nossa norma de conflitos. Será que esta referência se dirige direta e imediatamente

ao Direito material da lei designada ou será que, diferentemente, esta referência pode

abranger o Direito Internacional Privado da lei designada?

i. Quando a referência se dirige direta e imediatamente ao Direito material da

lei designada dizemos que é uma referência material.

Luís de Lima Pinheiro

大象城堡

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4

✒ ii. É global a referência que tem em conta o Direito Internacional Privado da

lei designada.

São três os pressupostos de um problema de devolução:

i. Que a norma de conflitos do foro remeta para uma lei estrangeira;

ii. Que a remissão possa não ser entendida como uma referência

material;

iii. Que a lei estrangeira designada não se considere competente

(verifica-se quando a norma de conflitos estrangeira utiliza um elemento de

conexão diferente da norma de conflitos do foro ou quando, embora

utilizando o mesmo elemento de conexão, seja interpretada por forma

diferente).

iv. Tipos de devolução: na formulação destas hipóteses de devolução

designamos a lei do foro como L1, a lei designada como L2, a lei estrangeira

como L3 e assim sucessivamente a devolução pode apresentar-se como:

1. Um retorno de competência: o Direito de Conflitos estrangeiro

remete a solução da questão para o Direito do foro. Podemos ter:

a. Retorno direto: quando L2 remete para L3 com referência

global e L3, por sua vez, devolve para L1.

2. Uma transmissão de competência: o Direito de Conflitos

estrangeiro remete a solução da questão para outro ordenamento

estrangeiro. Podemos ter:

a. Transmissão em cadeia: quando L2 remete para L3,

com referência global e esta lei também não se considere

competente, devolvendo para uma L4.

b. Transmissão com retorno: quando, por exemplo, L3

remeta para L2 (uma vez que a L2 assumir-se-á como L1 face á L3, que se assumirá como L2 neste retorno3).

2. Critérios gerais de solução:

a. Tese da referência material: segundo esta tese a referência feita pela norma de

conflitos é sempre e necessariamente entendida como uma referência material, i.e.,

como uma remissão direta e imediata para o Direito material da lei designada. Não

interessa o Direito de Conflitos da lei designada. A tese da referência material

contrapõe-se a qualquer sistema de devolução, a qualquer sistema em que se tenha

em conta o Direito de Conflitos estrangeiro, ainda que este Direito de Conflitos não

seja sempre e necessariamente aplicado. Esta esse era seguida pelo Direito

Internacional Privado italiano antes de 1995 e encontra-se atualmente consagrada

em matéria de obrigações, no artigo 15.º Convenção Roma, artigo 20.º RRI (em

regra) e no artigo 24.º RRII; e no artigo 11.º RRIV, em matéria de divórcio e

separação. As Convenções de Haia também excluem geralmente a devolução. Hoje

o principal argumento a favor da tese da referência material é o respeito pela

valoração feita pelo legislador na escolha da conexão mais adequada, a justiça da

conexão veiculada pelo Direito de Conflitos. Aceitar a devolução implica abdicar da

escolha consagrada na norma de conflitos do foro. Contra a tese da referÊncia

material pode no entanto invocar-se o princípio da harmonia jurídica internacional.

Ao ignorar o Direito de Conflitos estrangeiro a tese da referência material

fomentaria a desarmonia internacional de soluções. No âmbito de Convenções

Internacionais e Regulamentos europeus a exclusão do reenvio pode ter em vista

evitar que, no caso de remissão para o Direito de um dos Estados

Contratantes/Membros, se vá aplicar o Direito de Conflitos de fonte interna.

3 Esta precisão é 大象城堡 que a faz como clarificação da alteração.

Em cadeia:

L1 -> L2 -> L3 -> L4

Com retorno:

L1 -> L2 -> L3 -> L2

Transmissão

L1 -> L2 -> L3

Direto

L1 -> L2 -> L3 (rg) -> L1

Retorno

L1 -> L2 -> L1

Ou seja:

L1 -> L2 -> L3 -> L2 Assumir-se-á, a partir de L2:

L1 -> L2 -> L1

Direito Internacional Privado

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5

§

Naturalmente que isto deve ser excluído, porque é contrário ao sentido unificador

da Convenção ou do Regulamento. Mas no caso de remissão para o Direito de um

terceiro Estado – i.e. de um Estado não vinculado pela Convenção ou pelo

Regulamento –, a referência material fomenta a desarmonia internacional de

soluções.

b. Teoria da referência global: segundo esta teoria, a remissão da norma de conflitos

para uma ordem jurídica estrangeira abrange sempre e necessariamente o seu Direito

de Conflitos. Emboras as normas de conflitos tenham por função designar o Direito

material competente, quando remetam para uma ordem jurídica estrangeira a

designação das normas materiais aplicáveis não é feita direta e imediatamente, é

antes feita com a mediação do Direito de Conflitos da ordem jurídica estrangeira.

Vejamos os fundamentos desta teoria:

i. Princípio da harmonia jurídica internacional: isto é em vasta medida

correto. Ao ter-se em conta o Direito de Conflitos da lei para que se remeta

fomenta-se a harmonia de soluções, pelo menos com esta lei.

ii. Incindibilidade ou indissociabilidade das normas de conflitos em

relação às normas materiais: tal decorreria da unidade do sistema jurídico

ou da integração das normas de conflitos na previsão das normas materiais.

Este entendimento deve ser rejeitado. Dentro do sistema jurídico, o Direito

material e o Direito de Conflitos são subsistemas suficientemente

autónomos para que seja perfeitamente concebível que outra ordem jurídica

determina a aplicação desse Direito material apesar de ele não ser

competente segundo o Direito de Conflitos do sistema a que pertence.

Ainda que se admita a complementariedade do Direito de Conflitos

relativamente ao Direito material quanto à modelação das condutas na vida

transnacional, só aparentemente esta complementariedade se estabelece

apenas entre Direito de Conflitos e Direito material da mesma ordem

jurídica. À face de um sistema bilateralista os sujeitos jurídicos não podem

atender só ao campo de aplicação atribuído por cada Direito de Conflitos

às normas materiais da mesma ordem jurídica. O sujeito tem de contar com

o âmbito de aplicação que às normas materiais dessa ordem local é atribuído

por Direito de Conflitos estrangeiro.

Contra a referência global podem invocar-se:

i. Objeções de fundo: ao fazer a referência global o Direito de Conflitos do

foro vai renunciar ao seu juízo de valor sobre a conexão mais adequada para

acompanhar o critério de conexão do Direito de Conflitos estrangeiro. É,

porém, de rejeitar a crítica que se estriba no alegado territorialismo do

Direito de Conflitos, segundo a qual o órgão de aplicação está sujeito ao

Direito de Conflitos do foro, não podendo aplicar Direito de Conflitos

estrangeiro. Nada obsta a que uma norma de Direito Internacional Privado

do foro confira relevância ao Direito de Conflitos estrangeiro.

ii. Objeções de natureza prática:

1. Transmissão ad infinitum: pode acontecer que L2 remeta para

L3, L3 para L4, L4 para L5 e assim sucessivamente, sem que se

chegue definitivamente a nenhuma lei. Creio que o valor desta

objeção é diminuto. Em toda a regra as situações internacionais

estão em contacto com um número limitado de Estados, pelo que

as hipóteses de transmissão em cadeia são raras e não colocam

outra dificuldade que não seja a necessidade de ter em conta dois

ou três Direitos de Conflitos estrangeiros.

2. Pingue-pongue perpétuo ou círculo vicioso: tem razão de ser.

Em caso de retorno entre dois sistemas que praticam referência

Luís de Lima Pinheiro

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✒ global, L1 acompanha a remissão feita por L2 para L1 e L2

acompanha a remissão feita por L1 para L2. Só é possível quebrar

o círculo vicioso se um deles praticar referência material. A

referência global é uma teoria desenvolvida fundamentalmente pela

doutrina, que assume menor relevo na prática. Às objeções de

natureza prática que suscita obviam outros sistemas

devolucionistas muito divulgados: a devolução simples e a

devolução integral.

c. Teoria da devolução simples: a remissão da norma de conflitos do foro abrange

as normas de conflitos da ordem estrangeira, mas entende-se necessariamente a

remissão operada pela norma de conflitos estrangeira como uma referência material.

A devolução simples surge historicamente ligada ao favorecimento da aplicação do

Direito do foro. Com efeito, em França e na Alemanha a devolução simples foi

aplicada em primeiro lugar e mais frequentemente em casos de retorno. Em Portugal,

parece que foi sempre aplicada em casos de retorno. Na legislação atual, esta

tendência mantém-se, uma vez que as recentes legislações espanhola, alemã, italiana

e suíça consagram a devolução simples em caso de retorno direto. A devolução

simples tem a vantagem de ser relativamente fácil de aplicar e de evitar as situações

de pingue-pongue perpétuo. Mas verifica-se que só casualmente a devolução simples

leva à harmonia internacional de soluções. Com efeito, a devolução simples leva a

aceitar o retorno direto mesmo que L2 não aplique L1. A devolução simples também

leva a aceitar a transmissão de competência para L3 mesmo que esta lei não seja

aplicada por L2 nem se considere competente.

d. Teoria da devolução integral (foreign coutry theory): na devolução simples

atende-se à norma de conflitos estrangeira, mas não se respeita o tipo de remissão

feito pelo Direito de Conflitos estrangeiro. Na devolução integral, o tribunal do foro

deve decidir a questão transnacional tal como ela seria julgada pelo tribunal do país

da ordem jurídica designada. Em princípio a devolução integral assegura que o

tribunal de L1 aplicará a mesma lei e dará a mesma solução ao caso que o tribunal

de L2. Garante a harmonia entre L1 e L2. A grande novidade da devolução integral

reside no seguinte: a norma de conflitos remete para a ordem estrangeira no seu

conjunto, incluindo as próprias normas de L2 sobre a devolução. Assim, atende ao

tipo de referência feito por L2. A tese da devolução integral é dificilmente

generalizável. Pressupõe, em caso de retorno, que a ordem jurídica designada não

pratica também devolução integral, sob pena de círculo vicioso ou pingue-pongue

perpétuo. Para quebrar o círculo é preciso recorrer à devolução simples ou à

referência material. É ainda de observar que o juiz do foro não pode colocar-se

exatamente na posição do juiz estrangeiro. Como assinalou Kahn-Freund, há

diversos fatores que limitam a atuação prática da devolução integral, designadamente

a não aplicabilidade de regras processuais estrangeiras, as maiores dificuldades na

averiguação do Direito estrangeiro e na sua interpretação e o limite colocado pela

forma pública internacional.

e. Balanço: sopesados os argumentos a favor e contra a devolução, parece que não se

justifica a radical atitude pré-devolucionária ou anti-devolucionária. Uma larga

corrente doutrinal – em que se salienta Isabel Magalhães Collaço – entende mesmo

que se deve renunciar a qualquer regra geral em matéria de devolução. O problema

deveria ser resolvido no plano da interpretação de cada norma de conflitos, à luz das

finalidades por ela prosseguidas. Mais moderadamente, os legisladores nacionais têm

frequentemente adotado uma regra geral acompanhada de importantes desvios.

Assim, o sistema português parte de uma regra geral de referência material mas aceita

a devolução em certos casos. Também uma parte das codificações recentes se

mostra desfavorável à admissão geral do reenvio, mas não o exclui em determinadas

Direito Internacional Privado

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7

§

hipóteses. Por forma geral, pode dizer-se que a devolução deve ser admitida como um mecanismo

de correção do resultado a que conduz no caso concreto a aplicação da norma de conflitos do foro,

quando tal seja exigido pela justiça conflitual. No quadro da justiça conflitual, é principalmente o

princípio da harmonia internacional de soluções que pode fundamentar a aceitação da devolução. É

este princípio que está subjacente ao regime consagrado nos artigos 17.º, n.º1 e 18.º,

n.º1 CC. No entanto, o princípio do favor negotii e a ideia de favorecimento de pessoas

que são merecedoras de especial proteção também têm um papel a desempenhar e,

justificam, designadamente, que perante normas de conflitos que visam favorecer

estes resultados materiais a devolução só seja admitida quando favoreça ou, pelo

menos, não prejudique, estes resultados materiais. É mesmo concebível que estas

ideias orientadoras possam fundamentar autonomamente a devolução, levando, por

exemplo, a aceitar a transmissão de competência para uma lei que é mais favorável

à produção de um resultado material mesmo que esta lei não se considere

competente. O grau em que a devolução deve ser posta ao serviço destas ideias

orientadoras depende essencialmente das finalidades prosseguidas pelas normas de

conflitos em jogo e da articulação dessas ideias com outros princípios e valores do

sistema conflitual. Veremos que o sistema português foi demasiado longe ao admitir

que o favor negotii paralise a devolução mesmo quando a norma de conflitos em causa

não é materialmente orientada.

3. O regime vigente:

a. A regra geral da referência material: o artigo 16.º CC estabelece que a referência

das normas de conflitos a qualquer lei estrangeira determina apenas, na falta de

preceito em contrário, a aplicação do Direito interno dessa lei. Quando o artigo 16.º

CC se refere a Direito interno quer significar o Direito material. Na verdade, o

Direito material de L2 tanto pode ser de fonte interna, como de fonte supraestadual

ou transnacional. O mesmo se diga da utilização da mesma expressão nos artigos

17.º e 18.ºCC. Deste preceito resulta que a referência material é enunciada como

regra geral. Mas não resulta a adoção da tese da referência material, visto que se

admite preceito em contrário, i.e., que se aceite a devolução nos casos em que a lei

o determine. Isto verifica-se desde logo nos artigo 17.º, 18.º, 36.º, n.º2 e 65.º, n.º1,

in fine CC. Para Baptista Machado, o artigo 16.º CC não contém um princípio geral,

mas uma regra pragmática que admite desvios nos casos em que se aceita a

devolução. Indo mais longe, poderia pretender-se que o preceito do artigo 16.º CC

tem um alcance residual, porque a regra seria a devolução. Posição diametralmente

oposta seria a que entendesse como excecionais os casos em que se admite a

devolução. Esta posição dificultaria a possibilidade de extensões analógicas.

b. Transmissão de competência: o artigo 17.º CC permite sob certas condições a

transmissão de competência. Nos termos do seu n.º1, se, porém, o Direito

Internacional Privado da lei referida pela norma de conflitos portuguesa remeter

para outra legislação e esta se considerar competente para regular o caso, é o Direito

interno dessa legislação que deve ser aplicado. Remeter deve entender-se como

aplicar. O que interessa é que L2 aplique uma terceira lei. Como já assinalei, por

Direito interno deve entender-se Direito material vigente na ordem jurídica do

sistema para que remete L2. Os pressupostos da transmissão de competência são,

portanto, dois:

i. Que o Direito estrangeiro designado pela norma de conflitos

portuguesa aplique outra ordem jurídica estrangeira;

ii. Que esta ordem jurídica estrangeira aceite a competência.

A transmissão de competência também é de admitir num caso de transmissão em

cadeia, em que L2 aplique L4 e L4 se considere competente. Esta hipótese não é

diretamente visada pelo texto do artigo 17.º, n.º1 CC, mas abrangida pela sua ratio.

Isto é de admitir mesmo que uma lei instrumental fique em desarmonia, por

Luís de Lima Pinheiro

大象城堡

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8

✒ exemplo, quando L2 aplicar L4, e L4 se considerar competente mas L3 aplicar L3.

Se não se atinge a harmonia com todas as leis do circuito alcança-se, pelo menos, a

harmonia com L2 e com a lei aplicada por L2. Logo pode dizer-se, com Marques

dos Santos, que os pressupostos são:

i. Que L2 aplique Ln (pode ser L3, L4, etc.);

ii. Que Ln se considere competente.

Só podemos aplicar através da transmissão de competência uma lei que L2 aplique

e que se considere competente. A lei aplicada por L2 pode considerar-se direta ou

indiretamente competente. Baptista Machado e Ferrer Correia defendem, em certos

casos, que no âmbito do estatuto pessoal se aceite a transmissão de competência

mesmo que Ln não se considere competente. Seria o caso de tanto a lei da

nacionalidade como a lei da residência habitual ou domicílio estarem de acordo na

aplicação de Ln. Considero esta solução incompatível com o Direito positivo que

claramente estabelece que, na falta de preceito em contrário, as nossas normas de

conflitos operam uma referência material à lei estrangeira (artigo 16.º CC). Já de iure

condendo creio que esta proposta merece consideração, quando limitada ao acordo

entre a lei da nacionalidade e a lei da residência habitual. A confiança depositada

pelos interessados na solução conflitual comum dos Estados da nacionalidade e da

residência habitual pode justificar, em matéria de estatuto pessoal, que se abdique

da solução avançada pelo Direito de Conflitos português. O artigo 17.º, n.º2 CC

determina que cessa o disposto no n.º1 do mesmo artigo, se a lei referida pela norma

de conflitos portuguesa for a lei pessoal e o interessado residir habitualmente em

território português ou em país cujas normas de conflitos considerem competente

o Direito interno do Estado da sua nacionalidade. Este preceito aplica-se em matéria

de estatuto pessoal. Nesta matéria, a transmissão de competência, estabelecida nos

termos do n.º1, cessa em duas hipóteses:

i. O interessado tem residência habitual em Portugal;

ii. O interessado tem residência habitual noutro Estado que aplica o

Direito material do Estado da nacionalidade.

Uma primeira dificuldade de interpretação deste preceito surge quando a lei pessoal

não for a lei da nacionalidade. Á luz da ratio deste preceito também não faria sentido

aplica-lo quando a lei pessoal fosse a da residência habitual. Em princípio, L2 tem

de ser a lei da nacionalidade chamada a reger matéria do estatuto pessoal. Outra

dificuldade é determinar o interessado. Deve entender-se que é interessado aquele

que desencadeou o funcionamento do elemento de conexão que designou L2. A

concretização no tempo do elemento de conexão residência habitual também pode

suscitar dificuldades. Qual a razão de ser do artigo 17.º, n.º2 CC? Por que razão se

dificulta a transmissão em matéria de estatuto pessoal? Aqui dá-se relevância ao

elemento de conexão residência habitual, mas para dificultar a aplicação de uma lei

diferente da lei da nacionalidade. É a primazia da conexão nacionalidade que sai

realçada. Vejamos as razões apresentadas no Anteprojeto de 1964, que é da autoria

de Ferrer Correia e contou com a colaboração de Baptista Machado:

i. Quando o interessado tem residência habitual em Portugal, existe uma

conexão estreita com o Estado do foro. Se o Estado do foro é o da

residência do interessado, o Estado do foro não deve abdicar da solução

que elegeu por mais justa: a lei competente continuará a ser para ele a lei

nacional. Neste caso, o critério de justiça subjacente à escolha da lei da

nacionalidade prevalece sobre a harmonia internacional;

ii. Quando o interessado tem residência habitual no Estado da nacionalidade

ou no Estado para que remete a lei da nacionalidade, o problema não se

coloca, visto que obviamente neste caso a lei da residência habitual não

aplica a lei da nacionalidade. A 2.ª parte do artigo 17.º, n.º2 CC releva

Direito Internacional Privado

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9

§

quando o interessado tem residência habitual noutro Estado que aplica a lei

da nacionalidade. Nesta hipótese, verificamos que a lei da nacionalidade

remete para um Estado que não é o da residência habitual. Portanto, a lei

da nacionalidade não consagra, em princípio, relativamente a dada matéria

que para nós se integra no estatuto pessoal, os elementos de conexão

normalmente relevantes neste matéria: a nacionalidade, o domicílio ou a

residência habitual. E verificamos que face à lei da residência habitual é

aplicável a lei da nacionalidade. Neste caso, se aplicarmos a L3 conseguimos

harmonia com a lei da nacionalidade, mas não com a lei da residência

habitual; e vamos aplicar uma lei que porventura não tem uma ligação

íntima nem estável com o interessado. Se aplicarmos a lei da nacionalidade,

ficamos em desarmonia com o Direito Internacional Privado desta lei mas

de harmonia com o Direito Internacional Privado da residência habitual.

Nestas circunstâncias, a harmonia internacional não justificaria o abandono

da conexão julgada mais adequada para reger o estatuto pessoal, a lei da

nacionalidade. Por isso cessa a devolução e aplicamos a lei da nacionalidade.

Esta fundamentação tem a sua lógica, mas suscita algumas reservas:

i. Observe-se que o artigo 17.º, n.º2 CC também faz cessar a devolução

quando L3 a lei do domicílio, se este não coincidir com a residência habitual,

e a lei da residência habitual aplicar a lei da nacionalidade.

ii. A harmonia internacional é especialmente importante em matérias do

estatuto pessoal e, em princípio, é mais importante a harmonia com a lei da

nacionalidade do que a harmonia com a lei da residência habitual.

Em certos casos, porém, o artigo 17.º, n.º3 CC vem repor a transmissão de

competência: assim como o artigo 17.º, n.º2 CC só se aplica quando há transmissão

de competência face ao artigo 17.º, n.º1 CC, o artigo 17.º, n.º3 CC só se aplica

quando antes se tenham verificado as previsões das normas contidas no n.º1 e 2.

Determina este preceito que ficam, todavia, unicamente sujeitos à regra do n.º1 do

artigo 17.º CC os casos de tutela e curatela, relações patrimoniais entre os cônjuges,

poder paternal, relações entre adotante e adotado e sucessão por morte, se a lei

nacional indicada pela norma de conflitos devolver para a lei da situação dos bens

imóveis e esta se considerar competente. São quatro os pressupostos deste preceito:

i. Que se trate de uma das matérias nele indicadas;

ii. Que a lex rei sitae se considere competente;

iii. Que se verifique um dos casos de cessação da transmissão de

competência previstos no n.º2.

Temos aqui, como foi atrás assinalado, um afloramento do princípio da maior

proximidade. Nos termos do artigo 17.º, n.º3 CC, o Direito de Conflitos de

português admite abandonar o seu critério de conexão, para assegurar a efetividade

das decisões dos seus tribunais, quando o Direito da nacionalidade estiver de acordo

na aplicação da lex rei sitae.

c. Retorno: o artigo 18.º CC vem admitir, sob certas condições, o retorno de

competência. O artigo 18.º, n.º1 CC estabelece que se o Direito Internacional

Privado da lei designada pela norma de conflitos devolver para o Direito interno

português, é este o Direito aplicável. O retorno de competência depende, pois, em

principio, de um único pressuposto: que L2 aplique o Direito material português.

A razão de ser deste pressuposto é fácil de entender: só neste caso o orno é condição

necessária e suficiente para assegurar a harmonia com L2. Logo, se L2 remete para

o Direito português, mas não se aplica a lei portuguesa, não aceitamos o retorno.

Como L2 não aplica L1, não aceitamos o retorno, e aplicamos L2, nos termos do

artigo 16.º CC. Por forma geral, pode dizer-se que nunca aceitamos o retorno direto

Luís de Lima Pinheiro

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✒ operado por um sistema que pratica devolução simples. O retorno pode ser indireto.

O que interessa é que L2 aplique o Direito material português. Assim, se L2 remete

para L3, com devolução simples, e L3 remete para o Direito português, L2 aplica o

Direito material português. Também neste caso é de admitir o retorno mesmo

que uma lei instrumental fique em desarmonia, por não aplicar o Direito material

português. Com efeito, a harmonia com L2 é mais importante que a harmonia com

L3. Maiores dificuldades suscita a hipótese de retorno direto em que L2 não remeta

direta e imediatamente para o Direito material português, mas antes condicione a

resposta ao sistema de devolução português. Por outras palavras, um sistema que

aplique ou não o Direito material português conforme o nosso Direito de Conflitos

aceite ou não o retorno. Isto pode suceder no caso de retorno direto operado seja

por um sistema que faça devolução integral seja por uma lei que tenha um sistema

de devolução igual ao nosso. Para o caso de L2 fazer devolução integral, Baptista

Machado defendeu que seria de aceitar o retorno, porque se o Direito português

aceitar o retorno L2 aplicará o Direito material português. Invocou ainda, neste

sentido, que a aplicação da lei portuguesa facilita a administração da Justiça. O

argumento, salvo o devido respeito, encerra um paralogismo, visto que tem de entrar

com a conclusão nas premissas: nós aceitamos o retorno se L2 aplicar o Direito

material português; L2 aplica o Direito material português se nós aceitarmos o

retorno. Temos um raciocínio circular: só podemos dizer que L2 aplica o Direito

material português depois de afirmarmos que L1 aceita o retorno. Mas há razões

de fundo para não aceitarmos neste caso o retorno: o retorno não é necessário para

haver harmonia; se nós aplicarmos L2, L2 considera-se competente. Não se justifica

sacrificar o nosso critério de conexão. E o nosso Direito de Conflitos assenta na

ideia de paridade da lei do foro e da lei estrangeira. Não favorece a maximização do

âmbito de aplicação da lei do foro. Noutros casos em que L2 não remete

incondicionalmente para o Direito material português, dificilmente o retorno

poderá ser aceite, porquanto, em princípio, não será condição necessária ou

condição suficiente para haver harmonia com L2. O retorno também é limitado em

matéria de estatuto pessoal. Com efeito, o artigo 18.º, n.º2 CC estabelece que quando,

porém, se trate de matéria compreendida no estatuto pessoal, a lei portuguesa só é

aplicável se o interessado tiver em território português a sua residência habitual ou

se a lei do país desta residência considerar igualmente competente o Direito interno

português. Este preceito só se aplica quando há retorno nos termos do n.º1.

em matéria de estatuto pessoal, o retorno só é aceite em duas hipóteses:

i. Quando o interessado tem residência habitual em Portugal;

ii. Quando o interessado tem residência habitual num Estado que

aplica o Direito material português.

A razão de ser deste preceito também é a da ideia de primazia da conexão lei da

nacionalidade. Mas é difícil de entender por que se dificulta mais o retorno do que

a transmissão de competência. Perante o artigo 17.º, n.º2 CC, a transmissão de

competência só cessa em duas hipóteses. Perante o artigo 18.º, n.º2 CC o retorno só

se mantém em dois casos. Nos casos em que a lei da residência habitual se considera

competente ou aplica a uma lei estrangeira que não é a da nacionalidade há

transmissão mas não há retorno. A explicação está em que, em caso de retorno, se

o elemento de conexão da lei da nacionalidade designa a lei portuguesa, tal significa,

por regra, que há uma conexão forte com a ordem jurídica do foro. Se há, por regra,

forte conexão com o foro, também por regra a harmonia com a lei da nacionalidade

não justifica o abandono do critério de conexão do foro. A harmonia internacional

só justificaria neste caso o retorno quando este for condição necessária e suficiente

para se alcançar a harmonia entre a lei portuguesa, a lei da nacionalidade e a lei da

residência habitual. É o que se verifica quando o interessado tiver residência habitual

Direito Internacional Privado

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§

num Estado que aplique o Direito material português ou em Portugal. Nesta

segundo a hipótese, quando a lei da nacionalidade remete para o Direito português

a título de lei da residência habitual não há uma divergência essencial entre o nosso

Direito de Conflitos e o da nacionalidade quanto à natureza da matéria e a finalidade

da norma de conflitos aplicável: em ambos os casos releva uma ligação íntima e

estável. Daí que a abdicação do critério de conexão do foro não pareça um sacrifício

exagerado da justiça conflitual.

d. O favor negotii como limite à devolução: é o seguinte o teor do artigo 19.º, n.º1

CC:

«Cessa o disposto nos dois artigos anteriores, quando da aplicação deles resulte a

invalidade ou a ineficácia de um negócio jurídico que seria válido ou eficaz segundo

a regra fixada no artigo 16.º, ou a ilegitimidade de um estado que de outro modo

seria legítimo».

Neste preceito, o favor negotii paralisa a devolução. A nota do Anteprojeto manifesta

a preocupação de facilitar e desenvolver o comércio internacional por meio do

favorecimento da validade e eficácia dos negócios jurídicos. E isto, sublinhe-se, vem

a significar uma primazia do favor negotii sobre a harmonia internacional. O preceito

tem enorme alcance: sempre que haja devolução por força dos artigos 17.º e 18.º CC

esta devolução é paralisada se L2 for mais favorável à validade ou eficácia do negócio

ou à legitimidade de um estado que a lei aplicada através da devolução. Não é fácil

de entender uma solução com este alcance e, entretanto, Ferrer Correia e Baptista

Machado vieram defender uma dita interpretação restritiva que limita o alcance do

preceito com base na ideia de tutela da confiança. Para estes autores, o artigo 19.º,

n.º1 CC só seria aplicável às situações já constituídas – e não à sua constituição em

Portugal com a intervenção de uma autoridade pública –, e desde que a situação

esteja em contacto com a ordem jurídica portuguesa ao tempo da sua constituição.

Só neste caso o interessado ou interessados poderiam ter confiado na válida

constituição da situação segundo a lei designada pela nossa norma de conflitos. Não

posso concordar com esta doutrina. A interpretação tem de respeitar o sentido

possível do texto legal. A restrição proposta parece ir além de uma interpretação

restritiva, tratando-se antes de uma verdadeira redução teleológica. Esta redução

teria de ser justificada à luz do fim da norma ou de outros princípios ou valores do

sistema de Direito de Conflitos. Ora, tudo indica que o legislador quis dar primazia

ao princípio do favor negotii relativamente à harmonia internacional. As notas do

Anteprojeto de 1964 (artigo 4.º, n.º4) não fazem qualquer distinção entre situações

constituídas e a constituir nem subordinam a atuação do princípio do favor negotii à

tutela da confiança. Por outro lado, fundamentar o disposto no artigo 19.º, n.º1 CC

na tutela da confiança pressuporia que os sujeitos das situações transnacionais se

podem orientar pelas nossas normas de conflitos, mas não pelas nossas normas

sobre devolução. Tal restrição do Direito de conflitos que desempenha uma função

orientadora da conduta dos sujeitos das situações transnacionais afigura-se muito

duvidosa.

e. Casos em que não é admitida a devolução: à face do Direito de Conflitos de

fonte interna, a devolução não é admitida quando a remissão é feita pelo elemento

de conexão designação pelos interessados, utilizado mormente nos artigos 34.º e

41.º CC. Com efeito, o n.º2 do artigo 19.º CC determina que cessa igualmente o

disposto nos mesmos artigos , se a lei estrangeira tiver sido designada pelos

interessados, nos casos em que a designação é permitida. Em rigor, não se trata de

fazer cessar ou paralisar a devolução. Não se aplicam os artigos 17.º e 18.º CC dada

a natureza do elemento de conexão. Pode ver-se aqui um afloramento da ideia de

que há conexões adversas ao reenvio. A devolução também não é admitida em certas

matérias reguladas por Direito de Conflitos europeu e internacional. No que toca às

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02

✒ obrigações, o artigo 15.º Convenção Roma, o artigo 20.º RRI (em princípio) e o

artigo 24.º RRII excluem o reenvio, quer se trate da lei designada pelas partes quer

da lei objetivamente determinada. O mesmo se verifica com o artigo 11.º RRIV.

Pelo menos em matéria de obrigações, estes preceitos não excluem que as partes

designem aplicável um sistema globalmente considerado, incluindo o respetivo

Direito de Conflitos. Neste caso, tem de ser tomado em conta o Direito de Conflitos

da lei designada. Mas aqui trata-se de respeitar a vontade das partes e não de

devolução. Outras matérias em que a devolução não é admitida por Convenções

Internacionais de unificação do Direito de Conflito são as obrigações alimentares, a

representação voluntária e os contratos de mediação. Com efeito, a maioria das

normas de conflitos das Convenções de Haia de 1979 (relativa à Lei Aplicável aos

Contratos de Mediação e à Representação), de 1973 (relativa à Lei Aplicável às

Obrigações Alimentares), remetem para a lei interna, no sentido de Direito material.

O artigo 12.º Protocolo de Haia sobre a Lei Aplicável às Obrigações Alimentares

(2007) também exclui a devolução. Por minha parte, tenho em princípio por

injustificada a exclusão geral do reenvio feita nas Convenções internacionais atrás

mencionadas e Regulamentos RI, RII e RIII. O objetivo visado com a unificação

justifica a exclusão do reenvio quando as normas de conflitos unificadas remetam

para a lei de um Estado vinculado pelo instrumento de unificação, mas já não

quando remetam para a lei de um terceiro Estado. É pois de aplaudir a mudança de

orientação ocorrida com o Regulamento sobre Sucessões. Enfim, o artigo 42.º CVM

(valores mobiliários) exclui a devolução em certas matérias relativas a valores

mobiliários, introduzindo assim um desvio em relação ao regime aplicável a outras

normas de conflitos internas que e dificilmente compreensível à luz das finalidades

prosseguidas pelo Direito de Conflitos.

f. Regimes especiais de devolução: no Código Civil, encontramos disposições

especiais sobre devolução em matéria de forma, nos artigos 36.º, n.º2 e 65.º, n.º1, in

fine. Aqui o favor negotii atua como fundamento autónomo de devolução. É o

favorecimento da validade formal do negócio e não apenas a harmonia jurídica

internacional o objetivo que é prosseguido pela admissibilidade da devolução nestes

casos. O n.º1 do artigo 36.º CC contém uma conexão alternativa, que abre a

possibilidade de o negócio obedecer à forma prescrita por uma das duas leis aí

indicadas. O n.º2 cria uma terceira possibilidade: a observância da forma prescrita

pela lei para que remete a norma de conflitos da lei do lugar da celebração. Não se

exige que L3 se considere competente. Está aqui a grande diferença com o

regime contido no artigo 17.º, n.º1 CC. Tem-se entendido que o artigo 36.º, n.º2 CC

adota um sistema de devolução simples. Neste sentido pode argumentar-se que o

preceito manda atender à norma de conflitos da lei do lugar da celebração, nada

referindo sobre o seu sistema de devolução. Mas será de entender o termo remete

de modo diferente no artigo 36.º, n.º2 CC e no artigo 17.º, n.º1 CC? Creio que não.

O que releva é a lei aplicada pela lei do lugar da celebração. O favorecimento da

validade formal não deve ser cego à importância da harmonia com L2 e À confiança

depositada no Direito Internacional Privado desta lei. Por isso creio que este caso

de devolução deve ser entendido em termos de devolução integral. E se a lei do

lugar da celebração aplicar o Direito material português? A ideia reguladora parece

abranger esta hipótese. Mas para quem entenda, como é o meu caso, que não está

excluída a aplicação do artigo 18.º CC à remissão operada pela norma de conflitos

do artigo 36.º, n,.º1 CC, pode configurar-se uma hipótese de retorno nos termos

desse preceito, sem que seja necessário recorrer ao artigo 36.º, n.º2 CC. O que ficou

expresso quanto ao artigo 36.º, n.º2 CC aplica-se à hipótese de devolução admitida

pelo artigo 64.º, n.º1, in fine CC. Aqui a devolução vem abrir uma quarta

possibilidade para salvar a validade formal de uma disposição por morte. Fora do

Direito Internacional Privado

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03

§

Código Civil encontramos regimes especiais de devolução em matéria de nome,

direitos de propriedade intelectual e sucessões. A Convenção de Munique sobre a

Lei Aplicável aos Nomes Próprios e Apelidos (1980; CIEC n.º19) remete para a lei

da nacionalidade. Esta remissão para a lei da nacionalidade deve ser entendida como

uma referência global, que abrange o Direito de Conflitos desta lei. Também em

matéria de direitos de propriedade intelectual a remissão para o Direito do Estado

de proteção deve ser entendida como referência global. Isto decorre do fundamento

desta conexão. O Regulamento sobre Sucessões, alterando a orientação até aí

seguida pelos regulamentos europeus, adite a devolução em caso de remissão para a

lei de um terceiro Estado (i.e, um Estado que não é vinculado pelo Regulamento).

Neste caso, a devolução é admitida quando as normas de Direito Internacional

Privado do terceiro Estado remetam (artigo 34.º, n.º1 Regulamento - RRV):

i. Para a lei de um Estado Membro; ou

ii. Para a lei de outro Estado terceiro que se considere competente.

A devolução não opera quando a lei aplicável à sucessão resultar da cláusula de

exceção (artigo 21.º, n.º2 RRV) ou escolha pelo autor da sucessão (artigo 22.º RRV),

em matéria de validade formal das disposições por morte feitas por escrito (artigo

27.º RRV) e da aceitação ou do repúdio da herança (artigo 28.º RRV), nos termos

do artigo 34.º, n.º2 RRV. O preceito contido no artigo 34.º, n.º1 RRV suscita

diversos problemas de interpretação:

iii. Coloca-se a questão de saber se a remissão operada pela lei do Estado

terceiro para outro ordenamento deve ou não ser entendida em termos de

aplicabilidade da lei deste ordenamento. A referência às normas de Direito

Internacional Privado do terceiro Estado sugere que serão tidas em conta

não só as suas normas de conflitos mas também o seu sistema de devolução;

o princípio da harmonia jurídica internacional aponta no mesmo sentido.

Por conseguinte, a resposta deve ser afirmativa.

iv. Parece que o preceito admite a devolução sempre que a lei de um terceiro

Estado considera aplicável a lei de um Estado Membro, mesmo que não

seja o Estado Membro do foro. Isto abrange, por conseguinte, casos de

transmissão de competência (para a lei de um Estado-Membro que não é o

do foro) e casos de retorno. A aceitação do retorno parece justificada, neste

caso, desde que se entenda que ele só opera quando a lei do terceiro Estado

considere aplicável o Direito material do foro ou de outro Estado Membro.

g. Caracterização do sistema de devolução: são três as características do sistema de

devolução vigente na ordem jurídica portuguesa:

i. A regra geral é a da referência material: isto decorre não tanto dos

pressupostos da devolução enunciados nos n.º1 dos artigos 17.º e 18.º CC

mas dos limites colocados à devolução pelos n.º2, em matéria de estatuto

pessoal, pelo artigo 19.º CC e pela maioria dos instrumentos internacionais

e europeus.

ii. Os artigos 17.º e 18.º CC contêm regras especiais: que admitem a

devolução, configurando um sistema de devolução sui generis, visto que

não corresponde à devolução simples nem à devolução integral. No entanto,

parece mais próximo na sua inspiração da devolução integral, visto que a

devolução depende sempre do acordo com L2.

iii. Em matéria de forma do negócio jurídico admite-se a transmissão de

competência para uma lei que não esteja disposta a aplicar-se para

obter a validade formal do negócio (artigos 36.º e 65.º CC).

h. Apreciação crítica: o sistema de devolução configurado pelos n.º1 dos artigos 17.º

e 18.º CC tem a sua lógica. À semelhança da devolução integral, promove a harmonia

com L2, mas mostra-se superior à devolução integral, porquanto evita o círculo

Vide MOTA, Helena; “A

autonomia conflitual e o

reenvio no âmbito do

Regulamento (UE) n.º

650/2012 do PE e do

Conselho de 4 julho 2012”;

in Revista Eletrónica de

Direito – RED

(fevereiro 2014), N.º1,

pp. 2-22);

http://www.cije.up.pt/

content/autonomia-

conflitual-e-o-reenvio-

no-%C3%A2mbito-do-

regulamento-ue-

n%C2%BA-6502012-

do-pe-e-do-conselho

Luís de Lima Pinheiro

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04

✒ vicioso em caso de retorno direto por parte de um Direito que faça devolução

integral ou tenha um sistema de devolução semelhante ao nosso e faz depender a

transmissão de competência da harmonia com a lei aplicada por L2. Já suscitam

reservas os limites colocados à devolução em matéria de estatuto pessoal, como foi

assinalado. É justamente em matéria de estatuto pessoal que a harmonia

internacional é mais importante. Estes limites vão ao arrepio da tendência geral que

se manifesta nos principais sistemas estrangeiros. Ainda mais difícil de entender é

que, nesta matéria, se dificulte mais o retorno que a transmissão. Já indaguei da razão

de ser desta diferença de tratamento: nos casos de retorno haverá em regra uma

conexão significativa com o ordenamento do foro, visto que o elemento de conexão

da lei da nacionalidade aponta para o nosso ordenamento. Este argumento, porém,

não oferece uma explicação completamente satisfatória. Tem de haver sempre uma

conexão com o ordenamento português tanto nos casos de retorno como nos de

transição, pois caso contrário o Direito de Conflitos português não será aplicável.

Afigura-se exagerada a primazia concedida ao princípio do favor negotii sobre o

princípio da harmonia internacional, isto sem pôr em causa o mérito do princípio

do favor negotii em certas matérias. O mais importante no domínio do estatuto pessoal

não é considerar a todo o custo que um casamento, um testamento, ou uma adoção

são válidos, mas sim determinar a lei que está melhor posicionada para os regular.

Já se compreenderá que no domínio do Direito patrimonial o princípio do favor

negotii tenha um valor superior àquele que lhe é de conceder em matéria de estatuto

pessoal. Mas mesmo aí creio que não se justifica sempre um favorecimento da

validade do negócio jurídico. Em suma, levou-se demasiado longe o favor negotii e

sacrificou-se excessivamente a harmonia jurídica internacional. Enfim, os limites

colocados em matéria de estatuto pessoal e para salvaguardar o favor negotii tornam o

sistema excessivamente complexo o que acarreta uma elevada imprevisibilidade do

resultado. Poderá pensar-se que é um sistema que só funciona quando o órgão de

aplicação examina o caso. Ora, o Direito de Conflitos não deve ser dirigido

principalmente aos tribunais, mas sim diretamente à vida jurídica internacional. Isto

é agravado pelos regimes especiais de devolução. Em certos casos estes regimes

podem ser justificados pela natureza da matéria (por exemplo, em matéria de

validade formal de negócios jurídicos e direitos de propriedade intelectual). Nos

restantes caso, porém, seria de privilegiar uma uniformização das regras sobre

devolução.

Direito Internacional Privado

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05

§

Ou seja:

Devolução e Reenvio

Referência

Material Global

Quando a referência se dirige direta e

imediatamente ao Direito material da lei designada

(artigo 16.º CC, 20.º RRI, 24.º RRII e 11.º RRIV)

Quando a referência tem em conta o Direito

Internacional Privado da lei designada

L1 -> L2 L1 -> L2

Requisitos para a devolução

I – a norma de conflitos do foro remete para a lei

estrangeira

II – A remissão possa ser entendida como não operando referência

material

III – a lei estrangeira designada não se considera

competente

L1 -> L2 L1 “ -> ” L2 não é -> L2 -> Ln

Ou seja:

L1 -> L2 ->* Ln

* (tanto pode ser referência material como global)

Tipos de devolução

Devolução simples L1 -> L2 -> L3

Retorno (direto) [artigo 18.º CC]

L1 -> L2 -> L3

Transmissão de Competência

L1 -> L2 ->* L3

Em cadeia [artigo 17.º CC]

L1 -> L2 -> L3 ->* L4

Com retorno L1 -> L2 -> L3*

Devolução Dupla (Reino Unido)

L1 -> L2 ->* L3

*(a L2 aplicará o que os Tribunais de L3 aplicarem e

decidirem)*

Análise aos artigos presentes no Código Civil

Artigo 16.º

L1 -> L2

Luís de Lima Pinheiro

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06

Artigo 17.º

n.º1 L1 -> L2 -> Ln

n.º2

Se L2:

I – é lei de estatuto pessoal II – o interessado residir

habitualmente em território português (onde se aplica o artigo

25.º CC) ou em país cujas normas de conflitos considere

competente o Direito interno do Estado da nacionalidade desse

interessado

L1 -> L2 -/> Ln

A devolução cessa e chamar-se-á a regular a situação transnacional a lei da nacionalidade

n.º3

|

L1 -> L2 -> Lex rei sitae*

V

Esta devolução retoma-se

se, neste estatuto pessoal, a L2 devolver para a lei da situação

dos imóveis e, esta, se considerar competente

Artigo 18.º

n.º1

L1 -> L2*

n.º2

I – Se for L2 em estatuto pessoal II1 – Se o interessado residir em Portugal; ou

II1 – Se a lei da sua residência habitual considerar competente o Direito Português

L1 -> L2*

I – Se for L2 em estatuto pessoal

Lei nacionalidade

Estatuto pessoal

Estatuto pessoal

Direito Internacional Privado

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07

§

Mas não se aplicar II1 nem II1

Cessa o retorno

Aplicamos a regra geral da referência material

L1 -> L2

Artigo 19.º

Volta a remeter para a regra geral do artigo 16.º se:

I – Existir um favor negotii; II – se houver sido dada às partes a possibilidade de

escolha da lei aplicável, e estas o tenham feito.

Regulamentos

RRI

Referência Material (20.º RRI)

RRII

Referência Material 24.º RRII

RRIV

Referência Material 11.º RRIV

RRV

Regime semelhante ao do Código Civil

mas que opera do seguinte modo (artigo 34.º RRV):

I – Ln é lei de um Estado Membro;

L1 -> Ln (Estado Membro)

II – Ln seja Estado terceiro e se aplique

L1 -> Ln

Apenas se aceita o reenvio quando na remissão de L1, havendo referência global,

as normas de DIPr da Ln aplique:

I – a lei de um Estado Membro; II – A lei de outro Estado (um Estado terceiro) que se considere competente

Estatuto pessoal

Luís de Lima Pinheiro

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Artigo 16.º

(Referência à lei estrangeira. Princípio geral)

A referência das normas de conflitos a qualquer lei estrangeira determina apenas, na falta de preceito em contrário, a aplicação do direito interno dessa lei.

[Regra Geral]

Artigo 17.º

(Reenvio para a lei de um terceiro Estado)

1. Se, porém, o direito internacional privado da lei referida pela norma de conflitos portuguesa remeter para (chamar o) outra legislação e esta se considerar competente para regular o caso, é o direito interno desta legislação que deve ser aplicado.

2. Cessa o disposto no número anterior, se a lei referida pela norma de conflitos portuguesa for a lei pessoal e o interessado residir habitualmente em território português ou em país cujas normas de conflitos considerem competente o direito interno do Estado da sua nacionalidade.

3. Ficam, todavia, unicamente sujeitos à regra do n.º 1 os casos da tutela e curatela, relações patrimoniais entre os cônjuges, poder paternal, relações entre adotante e adotado e sucessão por morte, se a lei nacional indicada pela norma de conflitos devolver para a lei da situação dos bens imóveis e esta se considerar competente.

Artigo 18.º

(Reenvio para a lei portuguesa)

1. Se o direito internacional privado da lei designada pela norma de conflitos devolver para o direito interno português, é este o direito aplicável.

2. Quando, porém, se trate de matéria compreendida no estatuto pessoal, a lei portuguesa só é aplicável se o interessado tiver em território português a sua residência habitual ou se a lei do país desta residência considerar igualmente competente o direito interno português.

Artigo 19.º

(Casos em que não é admitido o reenvio)

1. Cessa o disposto nos dois artigos anteriores, quando da aplicação deles resulte a invalidade ou ineficácia de um negócio jurídico que seria válido ou eficaz segundo a regra fixada no artigo 16.º, ou a ilegitimidade de um estado que de outro modo seria legítimo.

2. Cessa igualmente o disposto nos mesmos artigos, se a lei estrangeira tiver sido designada pelos interessados, nos casos em que a designação é permitida.

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§

Agradecendo mais uma vez ao nosso Professor Assistente, exercite-se:

Luís de Lima Pinheiro

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✒ A fraude à lei

1. Caracterização da figura: a fraude à lei é reconhecida como um instituto jurídico de alcance

geral em alguns sistemas (como o francês). Não é o caso dos sistemas do Common Law nem

do Direito alemão. No Direito português, o ponto é controverso. Não é este o lugar para

tomar posição nesta querela. Por certo que a posição que se adote em teoria geral poderá

influenciar o entendimento seguido no Direito de Conflitos. Mas, perante um sistema de

Direito de Conflitos, como o português, em que o instituto está legalmente consagrado, essa

influência é necessariamente limitada. O problema da fraude à lei em Direito privado material

surge-nos principalmente no domínio dos negócios jurídicos, quando os sujeitos procurar

tornear uma proibição legal através da utilização de um tipo negocial não proibido. Para

quem admite a autonomia da fraude à lei esta apresenta-se, então, como uma violação indireta

de uma norma proibitiva. No Direito de Conflitos Internacional Privado, a ideia geral é a

mesma, mas o processo é diferente. Trata-se geralmente de alcançar o resultado que a norma

proibitiva visa evitar, mas a manobra defreaudatória consiste no afastamento da lei que

contém essa norma proibitiva, na fuga de uma ordem jurídica para outra. Mas também é

concebível a defraudação de normas imperativas não proibitivas através do afastamento da

lei que as contém (v.g. requisitos de forma dos negócios jurídicos). Historicamente, foi o

caso Bibesco4, julgado por tribunais franceses no século XIX, que chamou a atenção para a

fraude à lei em Direito Internacional Privado. O instituto da fraude à lei suscitou sempre

muita controvérsia no Direito de conflitos Internacional Privado. A doutrina dominante na

Itália e alguns autores germânicos negam a relevância autónoma da fraude à lei neste ramo

do Direito. Mas isto tem por consequência ou a complacência com as manobras

defraudatórias ou remeter para o plano da interpretação de cada norma de conflitos a questão

de saber se a manobra contra a lei normalmente competente é ou não eficaz, o que gera uma

indesejável incerteza. Um importante setor da doutrina menos recente encarava a fraude à

lei como um caso particular da ordem pública internacional. Hoje tende-se a estabelecer uma

clara distinção entre os dois institutos:

a. Na ordem pública internacional: está em causa a compatibilidade do resultado a

que conduz a aplicação da lei estrangeira com a justiça material da ordem jurídica do

foro;

b. Na fraude à lei: está em causa o afastamento da lei normalmente competente e o

desrespeito da norma imperativa nela contida, ainda que o Direito do foro não

contenha uma norma equivalente.

Os regulamentos europeus também são omissos sobre a relevância da fraude à lei no Direito

de Conflitos. Para além de ser desejável que este instituto fosse abrangido por uma

codificação europeia do Direito Internacional Privado, entendo que a jurisprudência do

TCE/TJUE não condiciona a atuação das normas internas dos Estados Membros nesta

matéria, será, porém, bem vinda uma clarificação do TJUE sobre a possibilidade de a fraude

à lei ser autonomamente sancionada dentro do domínio de aplicação destes Regulamentos.

Tal como é conformado pelo Direito de Conflitos português, o instituto da fraude à lei constitui um instrumento

da justiça da conexão e um limite ético colocado à autonomia privada na modelação do conteúdo concreto dos

elementos de conexão. Quanto à tipologia da fraude à lei em Direito dos Conflitos, podemos

distinguir:

a. Manipulação do elemento de conexão: para afastar a lei normalmente

competente, o agente da fraude vai modelar o conteúdo concreto do elemento de

conexão.

4 A princesa Bauffremont era uma súbdita francesa. A lei francesa não admitia, à época (antes de 1884), o divórcio, mas apenas a separação. A princesa obteve a separação e, em seguida, naturalizou-se num Estado alemão o ducado do Saxe-Altemburgo. Valendo-se da sua nova lei nacional, que assimilava a separação ao divórcio, a princesa casou em Berilm com o principe romeno Bibesco. Os tribunais franceses consideraram nulo o divórcio bem como o segundo casamento.

Direito Internacional Privado

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11

§

b. Internacionalização fictícia de uma situação interna: para afastar o Direito

material vigente na ordem jurídica interna, que é exclusivamente aplicável a uma

situação interna, estabelece-se uma conexão com um Estado estrangeiro, por forma

a desencadear a aplicação de Direito estrangeiro.

Os elementos da fraude são dois:

a. Elemento objetivo: consiste na manipulação com êxito do elemento de

conexão ou na internacionalização fictícia de uma situação interna. Para que

se verifique a manipulação com êxito do elemento de conexão, tem de haver, em

primeiro lugar, uma manobra contra a lei normalmente aplicável. Tal não ocorre

quando se dá às partes a possibilidade de escolher a lei normalmente competente,

como sucede, designadamente, em matéria de contratos obrigacionais (desde que o

contrato seja internacional). Entende-se geralmente que é necessário que na lei

normalmente competente exista efetivamente uma norma imperativa que é objeto

da fraude. Como conciliar isto com a afirmação de que é a norma de conflitos o objeto da

fraude feita por autores como Kegel, Ferrer Correia e Baptista Machado? Creio que

importa esclarecer em que sentido se fala de objeto de fraude. A fraude visa afastar

uma norma material utilizando a norma de conflitos como um instrumento. A

norma de conflitos não é objeto de fraude no sentido de ser afastada pela manobra

defraudatória. Mas a norma de conflitos já é objeto da fraude no sentido em que há

uma atuação sobre esta norma que conduz à frustração das suas finalidades. A

instrumentalização da norma de conflitos põe em causa a justiça da conexão que ela

veicula. Em suma, a fraude à lei em Direito de Conflitos pressupõe que haja uma

norma material defraudatória mas tutela a justiça da conexão e não a justiça material.

A manipulação tem de ter êxito, i.e., tem de desencadear o chamamento de uma lei

diferente. Com Ferrer Correia, podemos ainda afirmar que não haverá fraude no

caso de a conduta fraudulenta consistir na mudança de nacionalidade e o

naturalizado se integrar seriamente na sua nova comunidade nacional. Neste caso,

poderá dizer-se que há inicialmente fraude à lei – porque a naturalização é feita com

o intuito de afastar a lei da nacionalidade anterior –, mas que a fraude é sanada pela

integração efetiva na nova comunidade nacional.

b. Elemento subjetivo: consiste na vontade de afastar a aplicação de uma norma

imperativa que seria normalmente aplicável. É necessário dolo, não há fraude

por negligência. O dolo incide sobre a modelação do conteúdo concreto do

elemento de conexão ou sobre a internacionalização fictícia da situação interna. Este

elemento subjetivo tem geralmente de ser inferido dos factos, com base em juízos

de probabilidade fundados em regras de experiência.

Antes de passar à sanção da fraude, importa referir casos em que o legislador qualifica o

elemento de conexão de modo a evitar ou dificultar a fraude. Fala-se, a este respeito, de

medidas preventivas da fraude:

a. Assim, no artigo 33.º, n.º1 CC, quanto à lei pessoal da pessoa coletiva, o legislador

manda atender à sede principal e efetiva da administração da pessoa coletiva. Evita-

se assim a relevância de uma sede fictícia, i.e., de uma sede em que não funcionam

quaisquer órgão das pessoa coletiva. Não é de excluir, porém, que possa verificar-se

uma manipulação fraudulenta da própria sede da administração, caso em que a

fraude deve ser sancionada.

b. Assim também em certos casos de imobilização do elemento de conexão em que se

fixa definitivamente o momento da sua concretização. Por exemplo, no artigo 55.º,

n.º2 CC, quando se determinava que em caso de mudança de lei competente na

constância do matrimónio só pode fundamentar a separação ou o divórcio algum

facto relevante perante a lei competente ao tempo da sua verificação. Pretendia-se

evitar a alteração da relevância do facto mediante a mudança da lei aplicável. Hoje

esta matéria é regulada pelo RRIV.

Luís de Lima Pinheiro

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12

✒ 2. A sanção da fraude: quanto à sanção da fraude existem duas posições:

a. Fraus omnia corrumpit, considera que todos os atos integrados no processo

fraudulento, incluindo, por exemplo, a própria naturalização no estrangeiro,

são nulos ou para todos os efeitos inoperantes (desenvolvida pela jurisprudência

francesa e seguida, entre nós, por Fernando Olavo);

b. A outra posição, aceite posteriormente na doutrina portuguesa, assinala que o

Estado do foro não pode declarar inválida a aquisição de uma nacionalidade

estrangeira. O que o Direito de Conflitos do foro pode fazer é recusar a essa

naturalização qualquer efeito na aplicação da norma de conflitos. O caminho

seguido pelo legislador português, no artigo 21.º CC, vai neste segundo

sentido. Dispõe este preceito que na aplicação das normas de conflitos são

irrelevantes as situações de facto ou de direito criadas com o intuito fraudulento de

evitar a aplicabilidade da lei que, noutras circunstâncias, seria competente. Do texto

do artigo 21.º CC decorre claramente que a sanção da fraude à lei no Direito de

conflitos se confina àquilo que respeite à aplicação das normas de conflitos. Sendo

irrelevante a manipulação do elemento de conexão ou a internacionalização fictícia

com intuito fraudulento, a sanção da fraude consiste em aplicar a lei normalmente

competente. Irrelevante é a manipulação ou a internacionalização, não os atos

praticados. Outro ponto controverso tem sido o da sanção da fraude à lei estrangeira.

Segundo uma orientação, que no passado foi dominante na Alemanha e em Franca,

só deveria ser sancionada a fraude à lei do foro. Hoje é geralmente aceite que a

fraude à lei estrangeira também deve ser sancionada.

Outra questão é a de saber se no tratamento da fraude à lei estrangeira se deve ter em conta

a posição da lei defraudada. Esta questão divide a doutrina portuguesa:

a. Ferrer Correia e Baptista Machado não diferenciam entre a sanção da fraude À

lei do foro à sanção da fraude à lei estrangeira;

b. Isabel Magalhães Collaço defende que enquanto à fraude à lei do foro é

sempre sancionada a fraude à lei estrangeira só é sancionada em dois casos:

i. Se a lei estrangeira defraudada também sanciona a fraude;

ii. Se embora a lei estrangeira defraudada não sancione a fraude está em

causa, na perspetiva do Direito Internacional Privado do foro, um

princípio do mínimo ético nas relações internacionais, que não se

conforma com o desrespeito da proibição contida na lei normalmente

competente.

A favor desta diferenciação pesa a harmonia internacional de soluções. Se não

atendermos à posição da lei estrangeira defraudada perante a fraude arriscamo-nos

a sancionar uma fraude que esta lei não sanciona, o que conduz à desarmonia de

soluções. Claro que este resultado também poderia ser evitar mediante a aceitação

da devolução operada pela lei normalmente competente quando esta não reage à

fraude. Mas perante um sistema de devolução como o nosso, em que a regra geral é

a referência material, parece necessário atender à harmonia internacional no próprio

plano da sanção da fraude. Em minha opinião, a fraude à lei estrangeira que

não reaja à fraude deve ser sancionada, excecionalmente, quando seja

eticamente intolerável à face do Direito de Conflitos português. O afastamento

de uma norma imperativa estrangeira através de uma manipulação do elemento de

conexão pode ser inaceitável à luz de valores éticos que integram a justiça da

conexão. Mesmo neste caso, portanto, é a justiça da conexão e não a justiça material

que está em causa, mantendo-se uma distinção clara entre fraude à lei e ordem

pública internacional.

Direito Internacional Privado

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13

§

Fraude à Lei (artigo 21.º CC) Tem como requisitos

1 - objetivo Manipulação com êxito do Direito de Conflitos

2 - subjetivo

Vontade de afastar a aplicação da norma imperativa normalmente aplicável [dolo]

Tem como sanção

Fraude à lex fori

Fraude à lex causae

Fernando Olavo

Fraus omnia corrumpit,

considera que todos os atos integrados no

processo fraudulento,

incluindo, por exemplo, a

própria naturalização no estrangeiro, são nulos ou para

todos os efeitos inoperantes

Ferrer Correia e Baptista Machado

entre a sanção da fraude À lei do foro à sanção da fraude à lei

estrangeira;

Lima Pinheiro

Estado do foro não pode

declarar inválida a aquisição de

uma nacionalidade estrangeira. O

que o Direito de Conflitos do foro

pode fazer é recusar a essa naturalização

qualquer efeito na aplicação da

norma de conflitos

Isabel Magalhães Collaço e

Lima Pinheiro

só é sancionada em dois casos:

I – Se a lei estrangeira defraudada também sanciona a fraude; II - Se embora a lei

estrangeira defraudada não sancione a fraude está em

causa, na perspetiva do Direito Internacional Privado do foro, um

princípio do mínimo ético nas relações internacionais, que não se conforma com o

desrespeito da proibição contida na lei normalmente

competente.

Luís de Lima Pinheiro

大象城堡

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✒ A qualificação

1. Enquadramento e método:

a. Generalidades a qualificação é um tema central do Direito Internacional Privado:

i. Numa aceção ampla: trata-se de resolver os problemas de interpretação

e aplicação da norma de conflitos que dizem respeito aos conceitos técnico-

jurídicos utilizados na sua previsão. Estes conceitos delimitam o objeto da

remissão. O que é objeto da remissão, a matéria que a norma de conflitos

remete para dado Direito? Como decorre do estudado a propósito da

estrutura da norma de conflitos, o objeto da remissão são situações da vida

ou aspetos de situações da vida transnacional.

ii. Em sentido amplo: a qualificação é tradicionalmente concebida como a

operação pela qual se subsume uma situação da vida, ou um seu aspeto, no

conceito técnico-jurídico utilizado para delimitar o objeto da remissão.

O interesse e a dificuldade da qualificação está, em primeira linha, em saber se dada

realidade se reconduz à previsão de determinada norma, designadamente se é

reconduzível à norma x ou á norma y. É o problema da delimitação do âmbito de

aplicação das diferentes normas. A qualificação é um processo que se verifica quer

na aplicação das normas de conflitos quer na aplicação das normas materiais. Para

o Direito Internacional Privado vale muito da temática geral, mas soma-se-lhe uma

problemática específica que advém de não se operar apenas com um sistema de

normas materiais. A qualificação em Direito Internacional Privado tem de ter em

conta dois níveis:

i. O Direito material: e

ii. O Direito de Conflitos;

e a pluralidade de ordens jurídicas em presença. O nosso sistema de Direito de

Conflitos dispõe de uma norma relevante em matéria de qualificação. Nos termos

do artigo 15.º CC, a competência atribuída a uma lei abrange somente as normas

que, pelo seu conteúdo e pela função que têm nessa lei, integram o regime do

instituto visado na regra de conflitos. Não vamos tomar este preceito como ponto

de partida por duas razões:

iii. Ele não responde a todos os problemas compreendidos na qualificação em

sentido amplo;

iv. Ele supõe entendida a essência do problema.

b. Operações envolvidas na qualificação: não deve isolar-se a interpretação da

aplicação, nem a delimitação do âmbito de aplicação da norma do apuramento das

circunstâncias do caso relevantes para a sua aplicação. O aplicador tem de fazer um

vaivém entre a norma e o caso, o qual se vem a traduzir quer numa adaptação da

norma às circunstâncias do caso quer num enriquecimento do conteúdo dos

conceitos a que recorre a previsão normativa. Os problemas que estudarmos dentro

da qualificação em sentido amplo são, pois, fundamentalmente, problemas de

interpretação da norma de conflitos. Tradicionalmente, a qualificação é encarada

segundo um esquema subsuntivo, baseado na lógica formal, o silogismo de

subsunção. Assim, em sentido amplo, o problema da qualificação envolve três

momentos:

i. Estabelece-se a premissa maior, que é a previsão da norma de

conflitos: o estabelecimento desta permissão envolve a interpretação da

proposição jurídica, por forma a determinar a previsão normativa, mediante

um enunciado das suas notas concetuais.

ii. Estabelece-se a premissa menor, por meio de uma delimitação do

objeto da remissão: i.e., a determinação das situações da vida que se vão

subsumir. Esta delimitação é feita tendo em atenção notas características

Vide CORREIA, Ferrer;

“O Problema da

Qualificação Segundo o

Novo Direito Internacional

Privado Português”; in

Boletim da Faculdade de

Direito, Vol. XLIV;

Coimbra, 1968; pp.39-

81.

Direito Internacional Privado

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15

§

jurídicas, envolvendo pois uma caracterização das situações da vida. Em

rigor, a premissa menor não é constituída por factos, mas por um

enunciado de que as notas características da previsão normativa se

encontram preenchidas em determinada situação da vida.

iii. Subsunção: traduzindo-se na recondução da matéria delimitada na

previsão normativa. Corresponde à qualificação em sentido estrito. É um

momento largamente pré determinado pelos dois anteriores.

Relativamente a este esquema subsuntivo cabe fazer duas advertências:

i. Tende hoje a admitir-se que na maioria dos casos a interpretação-

aplicação não poderá ser reconduzida exclusivamente a operações

lógico-formais. Frequentemente será necessária uma valoração. Isto

assume especial importância perante conceitos caracterizados por uma

elevada indeterminabilidade, como são os conceitos utilizados na previsão

das normas de conflitos. Já é controverso se o esquema subsuntivo pode

ou não ser mantido:

1. Alguns autores entendem que a recondução dos factos à previsão normativa

pode assentar não só numa subsunção mas também num raciocínio de

coordenação valorativa;

2. Outros defendem que as operações envolvidas na aplicação da regra, apesar de

envolverem uma valoração, ainda podem ser configuradas segundo um esquema

subsuntivo.

Parece que pela simples circunstância de o preenchimento de uma nota

concetual ser objeto de uma valoração não fica excluída a sua idoneidade

para a subsunção. Todavia, há conceitos carecidos de preenchimento

valorativo que são insuscetíveis de uma definição, mesmo perante as

modernas teorias de definição. Daí que se me afigure duvidoso que ainda

se possa falar de subsunção a respeito da recondução dos factos a estes

conceitos. Enfim, é certo que isto diz respeito ao estabelecimento da

premissa menor do silogismo judiciário – a recondução dos factos à

previsão normativa – e não impede que a aplicação destas regras seja

silogisticamente fundamentada. Por outras palavras, o silogismo judiciário

parece possível sem o silogismo de subsunção. Sendo também certo que

este silogismo judiciário não permite fundamentar a solução segundo

processos lógico-formais, mas tão-somente assegurar a racionalidade desta

fundamentação. A elevada indeterminabilidade dos conceitos utilizados na

previsão das normas de conflitos não obsta, de per si, ao enunciado das suas

notas características. Estas notas tanto podem ser estruturais como

funcionais e na apreciação do seu preenchimento é frequentemente

necessária uma valoração. O esquema subsuntivo pode geralmente ser

mantido, mas a aplicação da norma de conflitos transcende frequentemente

as operações lógico-formais.

ii. O esquema subsuntivo apresentado não é um esquema para a

resolução de casos práticos, serve apenas para a compreensão das

várias operações incluídas na qualificação em sentido amplo.

c. Interpretação dos conceitos que delimitam o objeto da remissão: no Código

Civil, o legislador optou por utilizar na previsão das normas de conflitos conceitos

técnico-jurídicos que se reportam a categorias de situações jurídicas definidas pelo

seu conteúdo típico e por notas funcionais ou a questões parciais. A secção do

Código Civil dedicada ao Direito de Conflitos reproduz grosso modo toda a

sistemática do Código Civil e, com ela, a classificação germânica das situações

jurídicas em obrigações, direitos reais, relações de família e sucessões por morte. É

sabido que esta classificação não obedece a um critério unívoco, nem permite uma

Luís de Lima Pinheiro

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✒ inserção adequada de todas as figuras. É um classificação que reparte as matérias em

centros de regulação numa ótica pragmática e que reflete certos elementos culturais.

As obrigações e os direitos reais são situações jurídicas agrupadas segundo um

critério estrutural, i.e., atendendo ao conteúdo da situação jurídica. Em matéria de

obrigações, a secção do Código dedicada ao Direito de Conflitos também distingue,

seguindo o critério das fontes das obrigações, em obrigações provenientes de

negócio jurídica, a gestão de negócios, o enriquecimento sem causa e a

responsabilidade extracontratual. Esta distinção também é seguida pela Convenção

de Roma, pelo Regulamento Roma I e Roma II. Já o critério de agrupamento

seguido relativamente às relações de família e às sucessões parece ser outro. É um

critério de pendor funcional e institucional. A propósito da estrutura da norma de

conflitos já observei que certas normas de conflitos se reportam a questões parciais,

tais como a capacidade negocial e a forma, que são requisitos de validade de negócios

jurídicos. No mesmo lugar, sublinhei que a extensão do objeto da norma de conflitos

deve ser aquele que convenha à sua estatuição, à remissão. A interpretação da norma

de conflitos tem pois de atender às finalidades por ela prosseguidas, designadamente

ao fundamento da conexão. Mas também deve atender aos fins gerais do sistema de

Direito Internacional Privado. A primeira questão que se coloca relativamente à

interpretação dos conceitos técnico-jurídicos utilizados na previsão das normas de

conflitos de fonte interna é a de saber a que Direito recorrer para o efeito. A solução

clássica consiste no recurso aos conceitos homólogos do Direito material do foro.

Neste sentido, invoca-se a união pessoal entre o legislador do Direito de Conflitos

e o legislador de Direito material interno ou, uma forma mais ajustada às atuais

conceções metodológicas, o princípio da unidade do sistema jurídico. Contra esta

tese é de assinalar que se os conceitos que delimitam o objeto da remissão tiverem

o conteúdo que decorre expressamente ou por via da construção jurídica do Direito

material interno eles vão deixar de fora realidades jurídicas diferentes existentes no

Direito estrangeiro. Em suma, há a necessidade de uma maior abertura dos

conceitos das normas de conflitos. Esta insuficiência clássica levou Rabel a formular

uma conceção diferente, segundo a qual na formulação e, em todo o caso, na

interpretação dos conceitos das normas de conflitos nos deveríamos basear no

Direito Comparado. À conceção de Rabel é de objetar que não pode ser o Direito

Comparado a decidir qual o sentido e alcance dos conceitos das normas de conflitos.

De iure condendo, é uma questão de política jurídica. Depende dos fins que se querem

prosseguir como se conformam as previsões das normas de conflitos, qual a

extensão que lhes deve ser dada. O Direito Comparado pode ser um instrumento

útil para este efeito, mas não é ele que decide. De iure constituto, como o Direito

comparado não é Direito positivo, não pode ser o Direito comparado a decidir qual

o alcance do conceito de uma norma de conflitos. Saber até onde o conceito

utilizado na previsão da norma de conflitos abarca conteúdos jurídicos estrangeiros

estranhos ao Direito do foro é um problema de interpretação da norma que o

intérprete tem de resolver mediante o emprego dos critérios de interpretação do

sistema em que se integra a norma de conflitos. O Direito comparado apenas auxilia

esta tarefa. Enfim, é dificilmente viável a elaboração de todo um novo sistema de

conceitos, que mais não seja à face da variabilidade que caracteriza as ordens

jurídicas. Como afirma Isabel Magalhães Collaço, o método da comparação de

Direitos é um instrumento, não uma solução. Pelas mesmas razões, também não se

deve, em princípio, abandonar a determinação do conceito utilizado pela norma de

conflitos do foro à lex causae, como defendeu até certo ponto Martin Wolff. O

sentido e alcance do conceito utilizado na norma de conflitos depende das

finalidades proesseguidas pelo Direito Internacional Privado do foro, e não das

opções feitas pela lex causae. A posição adotada com respeito às normas de

Direito Internacional Privado

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17

§

conflitos de fonte interna é, e seguindo Isabel Magalhães Collaço, a de partir do

Direito material do foro, retirando da sua análise notas para a determinação

do conceito empregue pela norma de conflitos, mas tendo em conta as

finalidades específicas prosseguidas pelo Direito de Conflitos. A especialidade

do Direito de conflitos leva, em primeiro lugar, a uma certa indeterminabilidade dos

conceitos aqui utilizados, de modo a ponderem abranger realidades jurídicas

diferentes ou desconhecidas do Direito material do foro. Como escreve Ferrer

Correia,

«o Direito Internacional Privado é por natureza um Direito aberto a todas as

instituições e conteúdos jurídicos conhecidos do mundo: a sua perspetiva transcende

forçosamente os horizontes do sistema jurídico interno».

Em suma, a interpretação das normas de conflitos de fonte interna é ancorada no

Direito material do foro, mas autónoma. Esta abertura dos conceitos utilizado para

delimitar o objeto da remissão a realidades jurídicas estrangeiras diferentes ou

desconhecidas do Direito material do foro é por vezes expressamente enunciada no

texto legal. Por exemplo, o artigo 30.º CC quando se reporta à tutela e instituições

análogas de proteção aos incapazes. Quando as finalidades do Direito Internacional

Privado e a necessidade de prevenir ou solucionar certos problemas técnico-

jurídicos de atuação da norma de conflitos o exigirem, pode mesmo justificar-se a

formulação de regras especiais que se reportam exclusivamente a institutos jurídicos

estrangeiros desconhecidos do Direito do foro. Por exemplo, o artigo 64.º CC

reporta-se à validade de um testamento de mão comum, que não é admitido pelo

nosso Direito material. No que toca às normas de conflitos de fonte supraestadual,

a interpretação dos conceitos utilizados na sua previsão deve obedecer aos critérios

atrás enunciados. No caso das normas de conflitos contidas em Convenções

internacionais, a interpretação tem de ser autónoma relativamente às ordens

jurídicas nacionais individualmente consideradas e assentar numa comparação de

Direitos. No que toca às normas de conflitos contidas em Regulamento da União

Europeia, a interpretação também deve ser autónoma: não deve ser feita referência

ao Direito de um dos Estados em presença, mas antes ter em conta o contexto da

disposição e o objetivo prosseguido pelas normas em causa e a conformidade com

os direitos fundamentais protegidos pela ordem jurídica comunitária ou com outros

princípios gerai do Direito comunitário. A interpretação comparativa também

constitui, como vimos, um importante critério de interpretação destes instrumentos.

d. Delimitação do objeto da remissão: coloca-se agora a questão de saber como

delimitamos as situações da vida que se hão de reconduzir aos conceitos

interpretados nos termos atrás expostos. Já sabemos que o objeto da norma de

conflitos são situações da vida ou aspetos destas situações, mas para a sua

delimitação, a previsão das normas de conflitos utiliza conceitos técnico-jurídicos

que atendem ao conteúdo jurídico típico e (ou) a critérios funcionais. O objeto da

remissão e um concretum, uma situação da vida ou um seu aspeto. A caracterização

tem de incidir sobre a situação da vida em causa e consiste na determinação da

relevância jurídica desta situação. A que sistema pedir a caracterização da situação

da vida? São possível duas respostas fundamentais:

i. Ao Direito material do foro: mas tal opção apresenta vários

inconvenientes e é contrária à ideia de paridade de tratamento entre a lei e

a lei estrangeira. Com efeito, se determinarmos a relevância da situação

segundo o Direito material do foro e a lei estrangeira. Com efeito, se

determinarmos a relevância da situação segundo o Direito material do foro

e, nesta base, designarmos uma lei estrangeira como competente, podemos

ser levados a aplicar, por força de uma norma de conflitos, normas materiais

estrangeiras que não correspondem à categoria normativa utilizada na

Luís de Lima Pinheiro

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✒ previsão da norma de conflitos. Isto contraria a justiça da conexão e a ideia

de adequação que lhe está ínsita. O nexo de adequação entre a previsão e a

estatuição da norma não seria respeitado. A competência atribuída a um

Direito deve ter em conta o conteúdo e os fins das normas materiais que,

neste Direito, são aplicáveis à situação. Só assim se garante a adequação do

elemento de conexão à especificidade do domínio jurídico-material a

regular. Por conseguinte, só devemos aplicar por força de um norma de

conflitos as normas materiais que correspondem à categoria normativa

utilizada na previsão da norma de conflitos. É por esta razão que o alcance

material da remissão é limitado.

ii. Ao Direito material da lex causae, i.e., da lei competente: Por outro

lado, se determinarmos a relevância jurídica da situação segundo o Direito

material do foro, para nesta base designarmos a lei estrangeira competente,

mas excluirmos a aplicação das normas desta lei, quando não

corresponderem à categoria normativa utilizada pela previsão da norma de

conflitos, vamos gerar, desnecessariamente, problemas de falta de normas

aplicáveis. Enfim, pode acontecer que a situação seja juridicamente

relevante perante o sistema ou sistemas com que está mais estreitamente

conexa e não o seja perante o Direito material do foro. Uma caractetização

lege fori levaria neste caso a negar tutela jurídica de uma situação que é

tutelada pelo sistema ou sistemas com que está mais conectada, o que

contradiz a justiça da conexão. Daí que pareça preferível a caracterização

lege causae. Mas não haverá aqui um círculo vicioso, visto que não sabemos

qual é a lei competente antes de completarmos o processo de qualificação?

Não há círculo vicioso porque procedemos segundo um raciocínio

hipotético, atendendo à relevância jurídica dos factos perante cada uma das

ordens jurídicas potencialmente aplicáveis. Quais são as ordens jurídicas

potencialmente aplicáveis? São as de todos os Estados com as quais a

situação concreta tenha alguma das conexões relevantes para o Direito de

Conflitos português. Procederemos segundo um método de tentativas, à

semelhança do que fizemos para a determinação da nacionalidade de uma

pessoa, em que fomos perguntar ao Direito dos Estados cuja nacionalidade

pudesse estar em causa se consideram ou não essa pessoa como seu

nacional. Na delimitação do objeto da remissão, perguntamos às várias

ordens jurídicas em presença qual a relevância jurídica que dariam aos factos

se lhes fossem aplicáveis. A caracterização só tem de ser feita segundo o

Direito material do foro quando a ordem jurídica do foro for uma das

potencialmente aplicáveis, i.e., quando a lex fori for também uma potencial

lex causae. É frequente que isto suceda. A caracterização é feita por via de

uma indagação acerca das proposições jurídico-materiais aplicáveis ao caso

em cada uma das ordens jurídicas potencialmente competentes. Nesta

indagação, atendemos ao conjunto dos efeitos jurídicas estatuídos pelas

normas materiais em causa, designadamente à definição de poderes e

deveres. Atendemos, necessariamente, aos institutos em que estas normas

se inserem, e, mais em geral, aos nexos intrassistemáticos existentes, às

finalidades prosseguidas por essas normas ou institutos e à função jurídica

dos institutos, i.e., ao papel que desempenham no sistema jurídico. A

importância relativa das notas estruturais (relativas ao conteúdo) e das notas

funcionais pode depender da categoria normativa em causa. Foi

anteriormente assinalado que há categorias que são definidas pelo seu

conteúdo típico e categorias agrupadas segundo critérios funcionais. Isto

não quer dizer que face a categorias como obrigações contratuais,

Direito Internacional Privado

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19

§

responsabilidade extracontratual ou direitos reais sejam irrelevantes as notas

funcionais. Até porque essas categorias não são apenas definidas

estruturalmente. A inserção na sistemática legal de um preceito pode

constituir um indício para a qualificação. Mas mesmo que se trate de um

preceito de Direito material português a sua inserção numa parte do Código

Civil apenas indicia a sua qualificação. Este critério de delimitação do objeto

da remissão, baseado numa caracterização lege causae, foi desenvolvido com

respeito ás normas de conflitos de fonte interna, mas ajusta-se igualmente

às normas de conflitos de fonte internacional e europeia que utilizam

conceitos técnico-jurídicos que se reportem ao conteúdo e função de

situações jurídicas.

e. Qualificação em sentido estrito: no terceiro momento – qualificação em sentido

estrito –, trata-se de reconduzir a matéria, o concretum caracterizado juridicamente

nos termos anteriormente expostos, ao conceito empregue na previsão da norma de

conflitos. Esta operação tem:

i. Vertente positiva: a recondução da matéria ao conceito utilizado na

previsão da norma de conflitos, que desencadeia a aplicação desta norma;

ii. Vertente negativa: não recondução da matéria aos conceitos utilizados na

previsão de outras normas de conflitos, que determina o seu afastamento.

Isto sem prejuízo da possibilidade concurso de normas de conflitos. Entre Direitos

vizinhos, i.e., sistemas jurídicos pertencestes à mesma família de Direitos, pode

presumir-se a equivalência de qualificações. Uma matéria que no Direito italiano,

alemão ou francês é vista como relativa aos Direitos Reais e presumivelmente de

qualificar do mesmo modo perante o Direito de Conflitos português. Mas atenção:

é uma presunção que pode e deve ser ilidida sempre que à luz do conteúdo e função

do instituto jurídico estrangeiro se imponha uma qualificação diferente perante o

Direito de Conflitos português. Em suma, embora o objeto da qualificação, as

situações da vida ou aspetos parcelares, tenha de ser caracterizado à face da lei ou

leis potencialmente aplicáveis, a última palavra sobre a qualificação do objeto deve

ser proferida segundo o critério de qualificação do sistema a que pertencem as

normas de conflitos em jogo. Este critério de qualificação é definido com base na

estrutura e nas finalidades prosseguidas pelo sistema de Direito de Conflitos

aplicável. Como o Direito de Conflitos aplicável é, em primeira linha, o Direito de

Conflitos do foro, o critério de qualificação é, em primeira linha, o critério de

qualificação do foro. Mas nos casos em que haja aplicação do Direito de Conflitos

estrangeiro, o critério de qualificação há-de ser definido perante o respetivo sistema

de Direito de Conflitos. Quando as normas de conflitos em presença forem de fonte

supraestadual, o critério de qualificação deve fundar-se, em primeira linha, na

estrutura e finalidades do Direito de Conflitos contido na Convenção Internacional

ou Regulamentos europeus. Mas porquanto, frequentemente, entram em jogo

simultaneamente normas de conflitos supraestaduais e internas, o critério de

qualificação tem de resultar de uma integração sistemática das normas de conflitos

de diferentes fontes. A circunstância de a lex causae qualificar dado instituto como

processual não obriga a que o Direito de Conflitos do foro também o qualifique

como processual. Embora a caracterização seja feita lege causae, a

qualificação é feita lege fori, rectius, segundo o sistema de Direito de

Conflitos que for aplicável.

f. Especialidades das normas de conflitos ad hoc e das normas de remissão

condicionada: já assinalei que a norma de conflitos ad hoc tem uma característica

estrutural própria: não carece de delimitar ela própria a categoria de situações

jurídicas ou a questão parcial a que se reporta, visto que só atua em função de uma

determinada norma ou conjunto de normas materiais. A norma de conflitos ad hoc

Luís de Lima Pinheiro

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✒ tem por objeto as situações ou aspetos de situações suscetíveis de serem

disciplinadas pela norma ou conjunto de normas materiais a que está

indissociavelmente ligada. Não se coloca, portanto, um problema específico de

qualificação no plano do Direito Internacional Privado. Passe-se agora às normas

de remissão condicionada. Para operar a remissão condicionada tem, em princípio,

de se encontrar uma situação da vida ou um aspeto de uma situação da vida,

juridicamente caracterizada, que seja reconduzível à previsão da norma. Isto é

comum às normas de conflitos tradicionais. Se houver uma condição adicional

relativa ao resultado material, esta condição integra a previsão da norma e, por

conseguinte, a previsão não se verifica se no Direito estrangeiro não se verificar o

resultado ou não existirem determinadas normas. Todavia, pode acontecer que na

previsão da norma de remissão condicionada não se encontre outro conceito

delimitador do objeto da remissão que não seja o conceito relativo à condição

material da remissão. Por exemplo, quando a validade de um negócio seja objeto de

uma remissão condicionada para determinada lei, na condição de esta lei considerar

o negócio válido.

2. Dificuldades suscitadas pelo fracionamento conflitual das situações da vida. Delimitação: já anteriormente, ao tratar da estrutura geral da norma de conflitos, me referi

ao dépeçage, ao fracionamento conflitual das situações da vida. Este fracionamento suscita

vários tipos de problemas. Cuidando, por agora, apenas daqueles problemas que concernem

diretamente à qualificação, temos, por um lado, as dificuldades que suscita a delimitação dos

aspetos que são abrangidos por uma e outra das normas de conflitos em jogo e, por outro,

o do concurso e falta de normas aplicáveis.

a. O problema da delimitação surge principalmente quando as situações, com o

conteúdo que lhes é atribuído pelas leis em presença, têm um caráter misto, pondo

em jogo mais do que uma norma de conflitos que se reporta a categorias de situações

jurídicas. As questões jurídicas suscitadas por diferentes aspetos de uma mesma

situação da vida são designadas questões parciais. A delimitação vem a traduzir-se

na recondução das questões parciais a uma ou outra das normas de conflitos

aplicáveis. O problema não se coloca naturalmente em relação às questões parciais

que são objeto de normas de conflitos especializadas. Noutros casos, o legislador

indica que determinadas questões estão submetidas a uma norma de conflitos. Por

exemplo, o artigo 12.º RRI. Relativamente a estas questões o problema de

delimitação está resolvido. Em muitos casos, porém, não se pode contar com uma

indicação do legislador. Podemos distinguir entre um

i. Núcleo ou conteúdo mínimo determinado do conceito utilizado para

delimitar pela previsão da remissão: abrange o conjunto de questões

jurídicas que são indubitavelmente abrangidas pela previsão da norma,

razão por que não suscitam dificuldades de delimitação;

ii. Zonas cinzentas ou periféricas: suscitam um problema específico de

interpretação dos conceitos que delimitam o objeto da remissão das normas

de conflitos em jogo. A resolução deste problema exige uma apreciação dos

fundamentos que subjazem às normas de conflitos em presença, tendo

também em atenção os fins gerais do Direito de Conflitos. Esta apreciação

há de fornecer o critério orientador, que aponta uma direção na resolução

dos problemas de delimitação. Este critério orientador deve exprimir os

nexos funcionais e axiológicos entre as normas de conflitos em presença.

Estes nexos podem corresponde, por exemplo, a uma preordenação de uma

norma relativamente a outra ou a uma prejudicabilidade. Por vezes estes

nexos poderão valer como critério geral, para a resolução de todos os

problemas de delimitação que venham a surgir; outras vezes será mais difícil

superar uma apreciação casuística. O legislador, pode, em vasta medida,

Direito Internacional Privado

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§

obviar a este tipo de dificuldades por meio de uma especialização de

soluções, i.e., adotando normas de conflitos especializadas para as questões

que suscitam tais dificuldades. Em todo o caso, não é de excluir que certas

questões parciais, que se inscrevem na zona cinzenta entre duas normas de

conflitos, possam, conforme o contexto em que se suscitam no caso

concreto, ser apreciadas segundo uma ou outra das normas de conflitos em

jogo. Isto bem sublinhar que o objeto da remissão está ancorado na

realidade e que, em última instância, não há uma equivalência entre a

perspetiva da norma de conflitos bilateral e a da determinação da esfera de

aplicação no espaço de normas ou categorias de normas. Um segundo tipo

de problemas decorre de uma combinação do fracionamento com

valorações contraditórias dos mesmos aspetos das situações da vida ou do

recurso a meios técnico-jurídicos diferentes para tutelar valores

substancialmente idênticos por parte das leis em presença. Da ação

combinada destes fatores vai resultar que, pelo menos em primeira linha,

nos possam surgir, como simultaneamente aplicáveis ao mesmo aspeto de

uma situação da vida, duas ou mais leis, por força de duas ou mais normas

de conflitos, ou que, ao contrário, não surjam como aplicáveis quaisquer

normas das leis em presença.

3. Exegese do artigo 15.º CC. Articulação entre a qualificação e o alcance jurídico-material da remissão: segundo o artigo 15.º CC

«A competência atribuída a uma lei abrange somente as normas que, pelo seu conteúdo e pela

função que têm nessa lei, integram o regime do instituto visado na regra de conflitos».

Este preceito só faz alusão ao primeiro momento da qualificação – interpretação dos

conceitos que delimitam o objeto da remissão –, quando se refere ao regime do instituto visado

na regra de conflitos. Instituto é um termo pouco feliz, porque grande parte dos conceitos que

delimitam o objeto da remissão não se reportam a institutos. O preceito não define um

critério de interpretação destas categorias normativas. Esta tarefa tem sido desempenhada

pela ciência jurídica. Quanto à delimitação do objeto da remissão, o artigo 15.º CC já contém

uma indicação importante: manda atender ao conteúdo das normas aplicáveis e à função que

têm no sistema a que pertencem. Aponta-se aqui claramente no sentido de uma

caracterização lege causae. Acentua-se a necessidade de inserir as normas da lei competente no

sistema a que pertencem e de atender a notas funcionais. A qualificação em sentido estrito é

indiretamente visada no início do preceito: a competência atribuída a uma lei abrange somente.

Diretamente esta parte do preceito diz respeito ao alcance jurídico-material da remissão e,

por conseguinte, à sua estatuição. Já sabemos que não podem ser reconduzidas à previsão de

uma norma de conflitos situações da vida que, com a relevância jurídica que lhes seja

atribuída pela lei para que aponta o respetivo elemento de conexão, não sejam reconduzíveis

ao conceito que delimita o objeto da norma. A letra do artigo 15.º CC parece sugerir que o

objeto da qualificação são normas, e não situações da vida. Mas ao legislador não cabe tomar

posição em questões de dogmática jurídica. O que interessa é que na caracterização e

qualificação em sentido estrito a lei aponta no sentido que vem sendo defendido pela

doutrina portuguesa, designadamente por Isabel Magalhães Collaço e Ferrer Correia. A

formulação dada ao artigo 15.º CC deve antes ser entendida à luz da correlação entre

qualificação e estatuição da norma de conflitos. A determinação do sentido e alcance do

conceito utilizado na previsão da norma e a delimitação do objeto da remissão (que ocorrem

nos dois primeiros momentos da qualificação) pré-determinam o alcance jurídico-material

da remissão (que integra a estatuição da norma de conflitos). Com efeito, da repartição de

matérias operada pelas categorias normativas utilizadas nas normas de conflitos pode resultar

que diversos aspetos da mesma situação sejam reconduzíveis a normas de conflitos diferentes.

Luís de Lima Pinheiro

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22

✒ Essas categorias normativas delimitam o objeto da remissão com recurso a notas jurídicas e,

por conseguinte, a recondução de diversos aspetos da situação a várias categorias normativas

é feita em função da conformação jurídica da situação por diferentes complexos normativos

contidos no Direito ou Direitos aplicáveis. Daí resulta que a remissão operada por cada uma

das normas de conflitos em causa para determinado Direito só pode, em princípio, abranger

o complexo normativo que conforma o aspeto da situação que é reconduzível à categoria

normativa utilizada na sua previsão. No mesmo sentido depõe o nexo de adequação entre a

previsão e a estatuição da norma de conflitos. Para utilizar uma imagem, os conceitos

utilizados na previsão das normas de conflitos para delimitar o objeto da remissão

atuam como uma janela através da qual o aplicado do Direito olha duas vezes:

a. Num primeiro olhar, a janela recorta as situações da vida que podem ser

reconduzidas à previsão da norma;

b. Num segundo olhar, a janela delimita as proposições jurídico-materiais que

podem ser chamadas pela norma.

Por isso se afirmou que estes conceitos desempenham uma dupla função:

a. Delimitam o objeto da norma;

b. Delimitam o alcance material da remissão.

Daí resulta que as normas de conflitos portuguesas desencadeiam uma remissão de alcance

jurídico-material limitado. Sublinhe-se, de novo, que esta consequência, embora

interrelacionada com a qualificação, diz respeito à estatuição da norma de conflitos.

Qualificação Lato sensu Stricto sensu

Trata-se de resolver os problemas de interpretação e aplicação da norma de

conflitos que dizem respeito aos conceitos técnico-jurídicos utilizados na previsão da

norma (qual o conceito-quadro)

Trata-se da operação de subsunção da situação da vida transnacional (ou um seu

aspeto) no conceito técnico-jurídico apurado na qualificação lato sensu.

Resolve-se (estruturalmente)*:

Consiste na subsunção (III)

I – Estabelece-se a premissa maior (a previsão da norma de conflitos – o conceito

quadro); II – Estabelece-se a premissa menor, por

meio de uma delimitação do objeto da remissão (determinar as situações da vida);

III - Subsunção

*(não é esquema para resolver casos)*

Assim:

I – Delimitação dos conceitos

Código Civil (artigo 15.º CC)

Regulamentos

(Ac. TJUE Eurocontrol,

Tacconi, Lechoniton)

Os conceitos utilizados são

técnico-jurídicos e seguem a repartição romano-germânica

das codificações civis (2.ª geração)

Segue a mesma repartição mas os

seus conceitos devem ser

interpretados de forma autónoma

dos consagrados no

Direito Internacional Privado

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23

§

Direito dos Estados Membros.

O que implica

Partir do Direito material do foro, retirando da sua

análise notas para a determinação do

conceito empregue pela norma de

conflitos, mas tendo em conta as finalidades

específicas pelo Direito de Conflitos.

A interpretação não deve ser feita referência ao

Direito de um dos Estados em

presença, mas antes ter em conta o

contexto da disposição e o

objetivo prosseguido pelas normas em causa e

a conformidade com os direitos fundamentais

protegidos pela ordem jurídica

comunitária ou com outros princípios gerai do Direito

comunitário

II – Delimitação do objeto da remissão

A que sistema pedir a caracterização da situação da vida?

I – Ao Direito material do foro: só devemos aplicar por força de uma norma de conflitos as normas materiais que

correspondem à categoria normativa utilizada na previsão da norma de

conflitos. É por esta razão que o alcance material da remissão é limitada.

II – Ao Direito material da lex causae (lei

competente): perguntamos às várias ordens jurídicas em presença qual a relevância jurídica que dariam aos factos se lhes

fossem aplicáveis5. A caracterização é feita por via de uma indagação acerca das

proposições jurídico-materiais aplicáveis ao caso em cada uma das ordens jurídicas

potencialmente competentes. Nesta indagação, atendemos ao conjunto dos efeitos jurídicas estatuídos pelas normas materiais em causa, designadamente à

definição de poderes e deveres.

5 A caracterização só tem de ser feita segundo o Direito material do foro quando a ordem jurídica do foro for uma das potencialmente aplicáveis, i.e., quando a lex fori for também uma potencial lex causae.

Luís de Lima Pinheiro

大象城堡

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III – Subsunção

Reconduzir a matéria ao conceito empregue na previsão da norma de

conflitos

Verificar-se a correspondência funcional entre a lex fori e a lex causae

(exercerem o mesmo tipo de funções):

1 – Vertente positiva: recondução da matéria ao conceito utilizado na previsão da norma de conflitos, que desencadeia a aplicação desta

norma; 2 – Vertente negativa: não recondução da

matéria aos conceitos utilizados na previsão de outras normas de conflitos, que

determina o seu afastamento.

Assim, em conclusão:

Embora a caracterização seja feita lege causae, a qualificação é feita lege fori,

rectius, segundo o sistema de Direito de Conflitos que for aplicável.

Ou seja:

1 – A qualificação existe porque há conceitos jurídicos a interpretar;

2 – E porque existem sempre 2 ou mais leis chamadas em qual se concentra a qualificação.

Na realização dos casos realizam-se seis (6) passos:

Na realização dos casos realizam-se seis (6) passos

Previamente à ação de qualificação (latu e

stricto sensu)

1

Determinar os ordenamentos jurídicos

potencialmente aplicáveis

2 Identificar o objeto da

qualificação

3 Identificar as normas

materiais

II 4 Caracterizar as normas

materiais

I 5 Interpretar a norma de

conflitos

III 6 Subsumir

Direito Internacional Privado

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25

§

Problemas especiais de interpretação e aplicação do Direito de Conflitos

1. Razão de ordem. A adaptação:

a. Generalidades: seria errado supor que depois de resolvidos os problemas

anteriormente estudados bastaria aplicar o Direito material competente. A missão

de realizar a justiça nas relações transnacionais posta a cargo do do Direito

Internacional Privado não termina, porém, com a designação da lei competente. O

Direito Internacional Privado não pode ignorar certas dificuldades que do processo

conflitual advêm para a solução do caso, nem se desinteressa, em geral, da adequação

da solução às circunstâncias do caso concreto, sobretudo aquelas que resultam do

caráter internacional das situações em causa. O método a seguir na interpretação e

aplicação dos conceitos que delimitam o objeto da remissão foi, em geral, estudado

no capítulo anterior. Os problemas especiais que agora examinarei também estão

intimamente relacionados com a estrutura e os fins do sistema de Direito de

Conflitos e, em especial, com o problema da delimitação das situações da vida e dos

seus diferentes aspetos regulados por duas ou mais normas de conflitos. De entre

estes problemas especiais salientam-se:

i. A questão prévia;

ii. O concurso;

iii. A substituição;

iv. A transposição.

Para alguns autores, estes problemas, ou uma parte deles, são apenas problemas de

aplicação do Direito material competente, em especial quando se trate de um Direito

estrangeiro. Diferentemente, entendo que assim como a qualificação é orientada

pelo critério definido pelo sistema de Direito Internacional Privado a que pertence

a norma de conflitos, também a solução a dar a estoutros problemas especiais não

pode deixar de ser orientada por critérios que o intérprete deve construir a partir da

estrutura e dos fins do sistema conflitual relevante. Mas, como vimos, a

caracterização lege causae não obsta a que o critério de qualificação seja fornecido pelo

sistema de Direito Internacional Privado a que pertence a norma de conflitos e que

a qualificação seja um problema de interpretação das normas de conflitos. Do

mesmo modo, também a resolução dos problemas especiais de interpretação e

aplicação das normas de conflitos é orientada pela sua interpretação, ainda que

atendendo ao conteúdo regulativo e aos fins das ordens jurídicas em presença.

b. A adaptação: o termo adaptação pode ser utilizado em duas aceções distintas:

i. Adaptação-problema;

ii. Adaptação-solução.

O termo começa por ser utilizado com respeito a determinados casos em que a

aplicação de dois Direitos materiais competentes a uma mesma situação

transnacional origina dificuldades, que são solucionadas por meio de um

ajustamento das normas em presença. Por exemplo, o artigo 26.º, n.º2 CC (ver,

também, artigo 32.º RRV). Adaptação é a solução, encarada geralmente como uma

modificação das normas materiais ou das normas de conflitos. Em rigor, porém, as

normas não são modificativas. A adaptação consiste entes numa modelação do

critério de decisão do caso concreto, através de uma extensão ou restrição da

previsão da norma ou de uma alteração dos efeitos que desencadeia no caso

concreto. Mas a adaptação-solução é nestes casos aplicada para resolver problemas

de contradição normativa ou valorativa ou de incoerência na regulação da mesma

situação da vida por normas que se vão pedir a diferentes leis. Estes casos passam a

ser exemplos paradigmáticos de adaptação, que recortam a adaptação como

problema. Sucede, porém, que há outros problemas cuja solução passa por uma

modelação da solução material. Primeiro, como consequência da intervenção da

Luís de Lima Pinheiro

大象城堡

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26

✒ ordem pública internacional, podemos ter de introduzir ajustamentos na aplicação

da lei estrangeira. Segundo, na resolução de problemas de sucessão de estatutos

poderemos ter de ajustar soluções materiais; trata-se geralmente de casos de

transposição que têm de ser solucionados por meio de adaptação. Terceiro, pode

suceder excecionalmente que o problema jurídico-material seja alterado

essencialmente por circunstâncias decorrentes da internacionalidade da situação.

Isto pode justificar um ajustamento do critério da decisão à especificidade do caso.

Portanto, a adaptação-solução tem lugar em casos que não são adaptação-problema.

Por outro lado, há casos de contradição normativa ou valorativa ou de incoerência

entre normas, que seriam casos de adaptação-problema, e que não são solucionados

por uma modelação do critério da decisão. É o que se verifica com a maioria dos

casos de concurso de normas aplicáveis. A adaptação-solução é uma técnica que

pode ser utilizada na resolução dos problemas mais diversos. E não parece feliz

utilizar a palavra adaptação para problemas de contradição normativa ou valorativa

ou de incoerência entre normas que não são solucionados por uma modelação do

critério de decisão. Será antes preferível agrupar estes problemas em concurso de

normas aplicáveis, falta de normas aplicáveis e outros casos de contradição

normativa ou valorativa ou de incoerência. Por conseguinte, entendo que adaptação

não deve ser encarada como um problema especial de interpretação e aplicação do

Direito de Conflitos nem, de outro modo, como uma figura da teoria geral do

Direito Internacional Privado. Há em todo o caso algumas considerações sobre a

técnica da adaptação que vem a talhe de foice referir aqui. Trata-se agora, sublinhe-

se, da adaptação-solução. A adaptação deve introduzir o mínimo de modificações

necessárias à resolução do problema. É estas modificações, tanto quanto possível,

devem ser feitas ao nível do Direito de Conflitos. Com efeito, a adaptação das

normas materiais encerra sempre uma certa dose de incerteza jurídica e multiplica

soluções irreais. A adaptação ao nível do Direito material vem a traduzir-se em

soluções que podem não corresponder a nenhuma das ordens jurídicas em presença

e que são formuladas a posteriori pelo órgão de aplicação do Direito. Acresce que a

adaptação das normas de conflitos favorece a harmonia jurídica internacional,

porquanto as soluções conflituais são mais facilmente generalizáveis que as soluções

materiais. Quando não for possível solucionar o problema ao nível do Direito de

Conflitos, e tiver de se recorrer à adaptação ao nível do Direito material, esta deve

ser guindada pelo princípio do mínimo dano à lei ou leis competentes, à semelhança

do que se verifica no caso de atuação da reserva da ordem pública internacional, mas

com aplicação a todas as leis competentes sujeitas a adaptação, sejam elas

estrangeiras ou do foro. A proliferação de casos de adaptação-solução pode ser uma

consequência de uma atitude demasiado formalista na interpretação e aplicação quer

das normas de conflitos quer do Direito material competente às situações da vida

transnacional. A necessidade de adaptar a norma às circunstâncias do caso concreto

e hoje geralmente reconhecida pela ciência jurídica. O trabalho criativo do intérprete

na aplicação de uma norma de Direito material comum a uma situação transnacional

é uma adaptação da solução ao caso, no sentido de uma concretização do Direito,

mas não envolve, necessariamente uma modificação do critério de decisão. Por

outro lado, cobrou hoje igual reconhecimento que o sistema jurídico não é um mero

conjunto de normas com conteúdo determinado. Na resolução do caso tem de se

atender aos princípios jurídicos, tem de se atuar cláusulas gerais, tem de se

concretizar conceitos indeterminados, o que possibilita uma maior flexibilidade no

ajustamento à especificidade da situação internacional concreta, sem haver

necessidade de modificar os critérios de decisão. Claro é, no entanto, que a norma

estrangeira tem de ser entendida como o seria pelos respetivos órgãos de aplicação

do Direito, pelo que não se pode excluir uma maior rigidez na aplicação de

Direito Internacional Privado

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27

§

determinado Direito estrangeiro. Na necessidade de ter em conta a

internacionalidade da situação na aplicação do Direito material tem sido

especialmente sublinhada, na doutrina mais recente, pelos defensores da chamada

teoria dos dois degraus, designadamente Jayme, Siehr e Egon Lorenz. Estou de acordo

com estes autores quando defendem que não só na determinação do Direito

competente mas também na aplicação do Direito material se deve ter em conta a

internacionalidade do caso. Assim, designadamente, no quadro da aplicação do

Direito material competente, pode ser tomado em consideração, como pressuposto

de facto, qualquer outro Direito. As dificuldades surgem quando se trata de

estabelecer os limites que se colocam a esta margem de apreciação. Uma coisa é ter

em conta a especificidade da situação na concretização de normas e cláusulas gerais

materiais, outra é realizar uma adaptação ao nível do Direito material com este

fundamento. Creio que uma modificação do critério de decisão só se justifica

excecionalmente, quando se verifique uma alteração essencial do problema jurídico-

material em consequência da internacionalidade da situação. A tipologia de

problemas especiais de interpretação e aplicação do Direito de Conflitos que se

segue não é exaustiva. Há designadamente problemas de conjugação de estatutos

que não se podem configurar como casos de concursos de normas de conflitos, falta

de normas aplicáveis, substituição ou transposição. Assim, verifica-se em certos

casos que do fracionamento da situação entre a lei aplicável ao regime de bens e a

lei aplicável à sucessão resulta que a posição é menos vantajosa do que a que

decorreria de qualquer das ordens jurídicas em presença, se fosse exclusivamente

aplicável à sucessão e aos direitos matrimoniais. A solução para estes casos tem de

passar por uma adaptação ao nível do Direito material. Torna-se necessário formular

uma solução ad hoc que represente um compromisso entre as soluções materiais dos

Direitos em presença, limitado ao aspeto quantitativo. Esta adaptação ao nível do

Direito material também é frequentemente necessária em casos de incoerência

regulativa entre estatutos diferentes.

2. A questão prévia: são quatro os pressupostos de um problema de questão prévia no Direito

de Conflitos:

a. Na previsão da norma material aplicável por força de uma norma de conflitos

integra-se um pressuposto cuja verificação constitui matéria abrangida por

outra norma de conflitos;

b. Para reger a questão principal é competente uma lei estrangeira. Se um

sistema de Direito Internacional Privado contiver normas especiais para a

determinação do Direito aplicável às questões prejudiciais, como é propugnado por

Wengler, já a natureza principal ou preliminar da questão se levanta mesmo que o

Direito competente para a questão principal seja o Direito material interno. Neste

caso, a qualificação da questão como preliminar significa que se aplicarão normas

especiais, em lugar das normas de conflitos gerais. Todavia, como tais normas de

conflitos especiais não existem no Direito Internacional Privado português, atenho-

me ao entendimento tradicional, que coloca como pressuposto do problema a

competência da lei estrangeira para reger a questão principal.

c. Há uma divergência entre a norma de conflitos portuguesa aplicável à

questão prévia e a norma de conflitos da lei reguladora da questão principal

aplicável à questão prévia.

d. A divergência entre o Direito Internacional Privado da lex fori e o da lex causae, i.e., da lei aplicável à questão principal, leva à apreciação da questão

prévia segundo leis diferentes que dão solução diferente à questão prévia.

Assim caracterizado o problema tem fundamentalmente duas soluções:

a. Tese da conexão autónoma: aplicar a norma de conflitos do foro para determinar

o Direito aplicável à questão prévia. Esta tese é a que corresponde ao entendimento

Luís de Lima Pinheiro

大象城堡

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28

✒ tradicionalmente seguido na generalidade dos sistemas nacionais. Perante este

entendimento, o problema, a bem dizer, nem existe, sendo óbvio que as normas de

conflitos de um sistema se aplicam quer a questão se suscite como principal ou como

prévia. A descoberta do problema deve-se, assim, aos defensores da tese da conexão

subordinada, designadamente a Wengler, seguido entre nós e Baptista Machado.

Para estes autores, não faria sentido dar à questão prévia uma solução diferente da

dada pelo Direito Internacional Privado da lei reguladora da questão principal. Entre

nós, a tese da conexão autónoma foi defendida em primeiro lugar na minha

dissertação sobre A Venda com Reserva da Propriedade em Direito Internacional

Privado e contou com a adesão de Helena Brito e, mais limitadamente, de Moura

Vicente;

b. Tese da conexão subordinada: aplicar a norma de conflitos da lei reguladora da

questão principal para determinar o Direito aplicável à questão prévia. Entretanto,

tem ganho crescente importância a orientação segundo a qual o problema da questão

prévia não deve ser resolvido mediante um critério geral, mas em função da questão

jurídica ou da norma de conflitos em causa (Gamillscheg, Cavers, Gotlier,

Batifoll/Lagarde). A favor da tese da conexão subordinada são invocados diversos

argumentos. Segundo um primeiro argumento, se a norma do ordenamento

estrangeira aplicável à questão principal coloca como pressuposto da respetiva

consequência jurídica um determinado facto ou situação jurídica só a esse

ordenamento cabe decidir se este pressuposto se verifica no caso concreto. Tendo

presente, porém, a já assinalada autonomia entre o problema da determinação do

Direito aplicável e o problema jurídico-material, bem como entre valorações

conflituais e valorações materiais, parece claro que, se devem ser respeitados os

critérios de qualificação jurídico-material próprios do ordenamento estrangeiro

aplicável à questão principal, já nada obriga a seguir as soluções conflituais contidas

neste ordenamento relativamente a questões prévias. O argumento mais importante

é a harmonia internacional de soluções. A aplicação do Direito Internacional

Privado do foro à questão preliminar encerra o risco de uma divergência entre a

ordem jurídica do foro e a ordem jurídica reguladora da questão principal na

resolução da questão preliminar. Isto pode desencadear uma desarmonia na solução

dada ao caso por estas ordens jurídicas. A aplicação do Direito Internacional Privado

da ordem jurídica reguladora da questão principal à questão preliminar contribui

para a harmonia entre a ordem jurídica do foro e a ordem jurídica reguladora da

questão principal. Mas não será suficiente, ou até mais adequada, para promover

esta harmonia, a devolução? A afinidade entre questão prévia e devolução tem sido

negada desde Martin Wolff na seguinte base: a devolução surge no processo de

determinação do Direito material competente, a questão prévia suscita-se no

momento da interpretação das normas de Direito material anteriormente

determinado. Isto oferece as maiores dúvidas, pelo menos face à metodologia

adotada entre nós com respeito à qualificação: se a recondução de uma situação da

vida à previsão de uma norma de conflitos requer a sua caracterização à face das

diferentes ordens jurídico-materiais em presença, então, todas as questões prévias se

revelam antes da devolução. É certo que noutros casos o resultado poderá não ser

o mesmo. Mas então é porque não há acordo entre todas as leis estrangeiras em

presença sobre o Direito aplicável à questão que se suscita a título preliminar. Ora,

neste caso, a tese da conexão subordinada também não permite alcançar a harmonia

internacional com todas as leis em presença. E por que razão preferir sempre a

harmonia com a lei reguladora da questão principal à harmonia com outras leis,

designadamente, à harmonia com a lei reguladora da questão prévia? Há outros

argumentos invocados pelos defensores da conexão subordinada que procuram

justificar esta proeminência da lei reguladora da questão principal. Segundo uma

Direito Internacional Privado

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29

§

linha de pensamento, representada entre nós por Baptista Machado, seria possível

estabelecer entre normas materiais e complexos regulativos de um sistema nexos de

causalidade e de pressuponência. Quando a relação entre o complexo regulativo

aplicável à questão principal e o complexo regulativo aplicável à questão prévia fosse

de pressuponência, seria de apreciar a questão prévia segundo a tese da conexão

subordinada. O contrário se passaria quando houvesse um nexo de causalidade. Esta

recondução dos nexos intrassistemáticos a relações de causalidade e pressuponência

parece-me dificilmente exequível. Entre as normas materiais e os complexos

regulativos de um sistema há uma complexa teia de nexos axiológicos, que não se

deixam reconduzir a relações unívocas de causalidade e pressuponência. Por regra,

a mesma questão pode suscitar-se como principal ou como prejudicial, tudo

dependendo do enquadramento processual do caso concreto. Por vezes, pode até

depender inteiramente do modo como o autor formula a pretensão o suscitar-se

dada questão como principal ou prejudicial. Não há uma precedência lógica nem

uma hierarquia entre a questão que se suscita a título principal e a que se suscita a

título prejudicial. Assim, nenhuma precedência lógica ou hierarquia se descobre. Por

acréscimo, podem ainda ser invocados três argumentos contra a tese da conexão

subordinada:

i. O princípio da harmonia interna: se aplicarmos às mesmas situações da vida leis

diferentes, consoante tais situações forem apreciadas a título principal ou a

título prejudicial, chegaremos frequentemente a soluções contraditórias.

ii. A certeza jurídica sobre a lei aplicável: as dificuldades com que se têm debatido

os autores para delimitar a questão prévia, bem como para recortar as

exceções mais ou menos extensas que são introduzidas por todos os

partidários da conexão subordinada, prejudicam a certeza na determinação

da lei aplicável e tornam ainda mais complicado o processo de regulação

conflitual.

iii. A própria estrutura de sistemas de Direito de Conflitos: como o português, o modo

como espelham o caráter analítico do Direito Internacional Privado, ao

submeterem diversos aspetos das situações a diferentes normas de conflitos,

parece não se compatível com uma regra geral de conexão subordinada.

Pense-se na autolimitação de questões parciais como a capacidade, a forma,

o início e termo da personalidade jurídica e a representação; na preferência

pela solução fori relativamente à questão do início e termo da personalidade

jurídica, solução discutida à face do Código de Seabra.

Mesmo que a tese da conexão subordinada fosse de preferir de iure condendo, que não

é a minha opinião, cumpriria reconhecer que não é compatível com o Direito vigente,

seja de fonte interna, de fonte europeia ou, na maioria dos casos, de fonte

internacional. No plano jurídico-positivo, a tese da conexão subordinada teria de

justificar perante o sistema legal do foro o abandono da norma de conflitos que

regula a questão que ora se suscita como prejudicial. Ora, os defensores da tese da

conexão subordinada não demonstram que o princípio da harmonia jurídica

internacional, com o alcance que lhe é reconhecido pelo Direito português, justifica

a não aplicação do Direito de Conflitos do foro às questões que se suscitam a título

prejudicial. Quando examinei os princípios gerais do Direito Internacional Privado

português, bem como a devolução, assinalei que o legislador português concedeu

uma relevância limitada ao princípio da harmonia internacional. Mesmo que o

legislador tivesse reconhecido maior alcance ao princípio da harmonia internacional,

seria necessário demonstrar que a harmonia com a lei reguladora da questão

principal é mais importante que a harmonia com a lei chamada pela norma de

conflitos do foro a reger a questão prévia. O exposto não exclui que,

excecionalmente, possa ser de seguir a tese da conexão subordinada. Isto verifica-

Luís de Lima Pinheiro

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✒ se, perante o Direito vigente, em certas matérias em que vigora Direito de Conflitos

unificado: artigo 10.º, n.º1 Convenção Haia sobre a Lei Aplicável às Obrigações

Alimentares (1973) e artigo 11.º, alínea a) Protocolo da Haia sobre a Lei Aplicável

às Obrigações Alimentares, mas não é o imposto por este instrumento. Nestes casos,

a opção pela conexão subordinada explica-se pelo desígnio de harmonia de soluções

entre os Estados contratantes. Não se quis apenas unificar o Direito de Conflitos

sobre a obrigação alimentar mas assegurar que os pressupostos de que dependem

são apreciados pela mesma lei. O preço pago é, no entanto, elevado: o risco de

divergências na apreciação das mesmas relações e, designadamente, das mesmas

relações de família, conforme são ou não suscitadas a título prejudicial por uma

pretensão de alimentos. De iure condendo, e por força do princípio da efetividade,

entendo que a conexão subordinada também se justificaria relativamente aos bens

imóveis situados no estrangeiro. A validade de um contrato de compra e venda de

imóvel, quando se suscitasse como pressuposto para a produção de um efeito real,

designadamente a transferência da propriedade, seria de apreciar segundo o Direito

Internacional Privado da lex rei sitae, e não pela lei designada pelas normas da

Convenção de Roma ou do Regulamento Roma I. Nos casos em que seja de seguir

a conexão subordinada, esta deve, em princípio, ser entendida no sentido de se

aplicar o Direito Internacional Privado da ordem jurídica reguladora da questão

principal, no seu conjunto, e não só a sua norma de conflitos geral. Isto inclui,

designadamente, as normas sobre a devolução, o sistema de reconhecimento de

decisões estrangeiras e as normas de conflitos especiais (nomeadamente as ligadas a

normas autolimitadas). É igualmente concebível que, excecionalmente, se formule

uma norma de conexão alternativa para certas questões que se suscitem a título

preliminar, como sugeriu o Wengler, e conta com o apoio de Jayme. No entanto,

em regra, as normas especiais que tenham em vista respeitar situações duradouras

constituídas ou consolidadas à face de uma ordem jurídica que tem com elas uma

conexão importante, embora não seja a conexão primariamente relevante para o

Direito Internacional Privado do foro, são aplicáveis quer tais situações sejam

apreciadas a título de questão principal ou prejudicial. Portanto, as exceções não

desvirtuam a regra segundo a qual da circunstância de uma questão se suscitar a

título preliminar não decorre um tratamento conflitual diferente. Razão por que não

se justifica a introdução de uma regra geral sobre a resolução das questões prévias,

seja no Direito de Conflitos de fonte interna, seja numa codificação europeia do

Direito Internacional Privado.

3. Concurso e falta de normas aplicáveis: como foi atrás assinalado, os problemas de

concurso e de falta de normas aplicáveis decorrem do fracionamento de situações da vida

pelo Direito de Conflitos. Em princípio, este fracionamento traduz-se na sujeição de aspetos

diferentes das mesmas situações a diversas normas de conflitos.

a. Temos um concurso de normas de conflito se, no entanto, em consequência de

diferentes valorações dos mesmos aspetos das situações da vida ou do recurso a

meios técnico-jurídicos diferentes para tutelar valores substancialmente idênticos

por parte das leis em presença, surgirem como simultaneamente aplicáveis ao

mesmo aspeto de uma situação da vida, duas ou mais leis, por força de duas ou mais

normas de conflitos. O concurso de normas de conflitos pode apresentar três

configurações:

i. Existe uma contradição entre as normas materiais das leis em presença, por estas

desencadearem consequências jurídicas incompatíveis entre si;

ii. As consequências jurídicas das normas materiais das leis em presença são compatíveis

entre si, mas a sua aplicação simultânea constituiria uma contradição valorativa;

iii. Nada obsta à aplicação simultânea das normas materiais das leis em presença.

Direito Internacional Privado

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31

§

Só nos dois primeiros casos há um problema especial de interpretação e aplicação

do Direito de Conflitos que carece de resolução. Embora o concurso de normas de

conflitos implique um concurso de normas materiais, o elemento conflitual é o

determinante. Isto exprime-se na delimitação dos problemas colocados pelo

concurso e na sua resolução. Desde logo, a questão de saber se há uma contradição

valorativa na aplicação simultânea das normas materiais das leis em presença tem de

ser respondida segundo um critério definido à luz do sistema de Direito de Conflitos.

A interpretação dessas normas materiais apenas fornece a base da decisão. Em

segundo lugar, a resolução dos problemas de concurso é orientada pelas finalidades

do sistema de Direito de Conflitos.

b. Dos mesmos fatores, temos falta de normas aplicáveis se resultar que não surjam

como aplicáveis quaisquer normas das leis em presença. Nesta situação, estes casos

são, em princípio, simétricos aos casos de concurso de normas aplicáveis. São casos

em que a situação é juridicamente relevante perante duas ou mais leis em presença,

mas, em virtude de valorações contraditórias ou do recurso a meios técnico-jurídicos

diferentes, não surgem como aplicáveis quaisquer normas materiais. Em suma, a

solução dos problemas de falta de normas aplicáveis passa, em primeira linha, por

uma adaptação ao nível do Direito de Conflitos.

4. Substituição e transposição: a substituição e a transposição têm algo de comum com a

adaptação-problema: são problemas que surgem quando uma situação da vida suscita

questões que devem ser apreciadas segundo Direitos materiais diferentes. Mas não se trata

agora de contradições ou incoerências entre as leis de presença que importa eliminar, mas da

sua conjugação segundo nexos de prejudicabilidade e de preordenação. Na substituição, o

preenchimento de um elemento da previsão da norma material de uma ordem jurídica deve

ser apreciado segundo uma ordem jurídica diferente. Parte-se da primeira ordem jurídica para

a segunda. O conteúdo jurídico conformado pela segunda ordem jurídica é um mero

pressuposto de aplicação da norma da primeira ordem jurídica (norma pressuponente). Entre

estas ordens jurídicas estabelece-se um nexo de prejudicabilidade ou pressuposição. A

doutrina tradicional – designadamente Lewald – configurou a substituição como um

problema de equivalência funcional entre uma relação de Direito interno, considerada pelo

Direito interno como condição de um determinado efeito jurídico, e uma relação análoga de

Direito estrangeiro. Seria um problema de aplicação do Direito material. Entendo,

diferentemente, que se trata de reconduzir uma situação da vida, ou um seu aspeto, com o

conteúdo jurídico que lhe é atribuído por uma ordem jurídica, à previsão da norma material

de outra ordem jurídica. Sublinha-se, assim, que não é um problema de equivalência de

institutos jurídicos, mas de qualificação jurídico-material de uma situação concreta. Este

modo de colocar as coisas é especialmente relevante no caso de relações conformadas por

negócios jurídicos. Neste caso o que se conta é a relação contratual concretamente em causa,

com o conteúdo e o sentido que as partes lhes imprimiram, e não um dado tipo normativo

de contrato. Acrescente-se que este problema de qualificação jurídico-material tem de

específico a circunstância de surgir no contexto da regulação de situações transnacionais pelo

Direito Internacional Privado e, portanto, de na colocação do problema e, porventura, na

sua solução, se dever ter em conta as finalidades prosseguidas pelo Direito de Conflitos. O

problema da substituição tem em primeira linha de ser resolvido à luz da interpretação da

norma material pressuponente. É esta interpretação que fornece as notas concetuais que a

situação jurídica conformada por outra ordem jurídica deve preencher para poder ser

reconduzida à previsão da norma pressuponente. Se a interpretação da norma pressuponente

não fornecer indicações em sentido contrário,, a substituição envolve um raciocínio de

analogia. Quando um elemento da previsão da norma pressuponente se reporta a uma

situação jurídica, tem em vista, em princípio, uma situação conformada por outras normas

materiais da mesma ordem jurídica. Quando, porém, a situação pressuposta for submetida

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✒ pelo Direito de Conflitos a uma ordem jurídica diferente, torna-se necessário examinar se a

situação conformada por esta ordem jurídica é suficientemente análoga com uma situação

conformada pela ordem jurídica da norma pressuponente para que se justifique a mesma

valoração. Mas como se trata da qualificação jurídico-material de uma situação concreta,

devem ser tidas em conta todas as circunstâncias do caso, incluindo, no caso de relações

contratuais, o conteúdo definido por estipulação das partes. Em princípio, o Direito de

Conflitos do foro deve respeitar as soluções em matéria de substituição seguidas na ordem

jurídica da norma pressuponente. Não é de excluir, porém, que as finalidades prosseguidas

pelo Direito de Conflitos possam justificar desvios a estas soluções. A substituição pode

exigir uma adaptação ao nível do Direito material pressuponente. Nem sempre a conjugação

de estatutos diferentes pode ou deve – à luz da interpretação das normas de conflitos em

presença –, ser feita segundo uma ótica de substituição. Em muitos casos, uma abordagem

segundo esta ótica é inconclusiva. Na transposição postula-se que o conteúdo jurídico que

uma situação tem à face de determinado Direito, deve, tanto quanto possível, ser respeitado

à face de outra ordem jurídica, designadamente quando esta for chamada a reger a produção

de certos efeitos. Parte-se da ordem jurídica que dá conteúdo jurídico à situação e não da

ordem jurídica que rege a produção dos efeitos. Entre as duas ordens jurídicas estabelece-se,

por isso, uma relação de preordenação. A situação é primariamente conformada por uma

ordem jurídica diferente daquelas que vai disciplinar a produção de certos efeitos. A situação

não releva somente enquanto pressuposto de produção de efeitos perante o estatuto dos

efeitos, apresenta-se como uma situação pré-conformada e preordenada à produção de

certos efeitos. Lewald utilizou o conceito de transposição principalmente para dois casos:

a. Interpretação de negócio jurídico impregnado por ordem jurídica diferente da que é chamada para o reger;

b. Destino das situações duradouras em caso de estatutos.

Relativamente ao primeiro caso, entendo que se trata de um puro problema de interpretação

do negócio jurídico, em que não cabe entrar nesta sede. Já há um problema especial de

aplicação do Direito de Conflitos quando o Direito de Conflitos regula separadamente a

formação, validade, interpretação de um negócio jurídico, por um lado, e os seus efeitos, ou

parte deles, por outro. Há que transpor os efeitos ordenados pelo contrato, segundo a lex

contractus, para o estatuto dos efeitos. A transposição do estatuto do negócio para o estatuto

dos efeitos pode justificar uma adaptação das normas materiais do estatuto dos efeitos, por

exemplo, do estatuto real. No caso da sucessão de estatutos, é o princípio da continuidade

das situações jurídicas que leva a adotar a ótica de transposição. Em certos casos de

transposição suscitada pela sucessão de estatutos também pode ser necessária uma adaptação

das normas materiais do novo estatuto. Para quem entenda deste modo a transposição a

diferença com a substituição não é de mera perspetiva. Na substituição, a receção do

conteúdo jurídico estrangeiro depende, em princípio, do sentido da norma pressuponente.

A transposição traduz um nexo diferente, em que é postulado, pelo Direito de Conflitos do

foro, o reconhecimento, perante uma ordem jurídica, de certas situações da vida com o

conteúdo jurídico que lhes atribui outra ordem jurídica. A opção pela ótica de substituição

ou de transposição depende do Direito Internacional Privado do foro, da interpretação das

normas de conflitos em presença.

Estatuto do Direito Estrangeiro

1. Identificação do problema: tradicionalmente, o Direito aplicável às situações

transnacionais é necessariamente o Direito vigente numa ordem jurídica estadual: a ordem

jurídica do foro ou uma ordem jurídica estrangeira. Quando a norma de conflitos remete

para uma ordem jurídica estrangeira levantam-se certas questões, designadamente quanto à

interpretação, conhecimento e prova do Direito aplicável. Já sabemos que é hoje de admitir

que certas situações transnacionais possam ser reguladas imediatamente por Direito

Internacional Público ou por Direito Transnacional, independentemente da sua receção por

Direito Internacional Privado

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§

uma ordem jurídica estadual. Veremos adiante que também é de admitir, em certos casos,

que uma norma de conflitos que regula a situação no seio da ordem jurídica estadual possa

remeter para o Direito Internacional Público. O problema que nos ocupa aqui diz

estreitamente respeito àqueles casos em que a norma de conflitos que regula a situação no

contexto da ordem jurídica portuguesa remete para uma ordem jurídica estrangeira.

2. Direito estrangeiro aplicável: 3. Direito estrangeiro aplicável : é aplicável o Direito Estrangeiro que vigora na ordem jurídica

designada pelo Direito de Conflitos. Não têm de ser normas que emanam diretamente de

fonte estadual; podem ser normas de fonte não estadual que segundo o sistema de fontes da

ordem jurídica estrangeira, incluindo o seu sistema de relevância do Direito Internacional na

ordem interna, vigoram nessa ordem jurídica. Para saber quais são as normas juridicamente

vigentes atende-se ao sistema de fontes da ordem jurídica em causa. Assim, se na ordem

jurídica estrangeira designadas vigora um sistema de precedent law, em que as decisões dos

tribunais superiores estabelecem um precedente que deve ser respeitado em decisões futuras

(pelo menos dos tribunais inferiores), o órgão de aplicação do Direito Português também

respeitará as decisões proferidas nos casos precedentes. Já é discutido se o órgão de aplicação

português deve respeitar a jurisprudência estrangeira constante ou dominante, quando na

ordem jurídica em causa não vigora um sistema de precedente vinculativo. Em princípio,

creio que a questão deve ser respondida afirmativamente. Também será respeitada a

hierarquia das fontes da ordem jurídica estrangeira, o que pode ser importante,

designadamente, quanto à relação entre o costume e a lei. Quanto ao controlo da

constitucionalidade das normas materiais estrangeiras à face da Constituição estrangeira, é

de entender que o tribunal português o pode exercer em dois casos:

a. Se a inconstitucionalidade foi declarada com força obrigatória geral na

ordem jurídica estrangeira;

b. Se, e nos termos em que, os tribunais do Estado estrangeira possam exercer

este controlo, como se verifica com o sistema de controlo difuso da

constitucionalidade. Já não perante os sistemas de controlo concertado de

constitucionalidade em que este controlo está reservado a um órgão especial.

O Direito estrangeiro aplicável não tem de ser emanado de órgãos estaduais legítimos ou

reconhecidos pelo Estado português. Neste contexto sobrelevam as considerações de

efetividade, designadamente a aplicação dos complexos normativos em causa pelos órgãos

do poder político e um mínimo de observância destes complexos normativos, considerados

no seu conjunto, pelos destinatários. Não é sequer inconcebível a aplicação do Direito de

um Estado não reconhecido pelo Estado português. O Direito que é aplicado por um poder

político juridicamente organizado e que efetivamente vigora num território será em princípio

aplicável por força do Direito de Conflitos português mesmo que o Estado português não

reconheça o Estado em causa. Não tem de ser necessariamente privado. Também serão

aplicáveis as normas de Direito Público e que ocupam zonas cinzentas entre o público e o

privado que regulem ou tenham incidência sobre situações reguladas pelo Direito

Internacional Privado. Decorre do exposto relativamente à qualificação, que a circunstância

de o Direito estrangeiro competente conter um instituto jurídico desconhecido da ordem

jurídica do foro não obsta ao seu chamamento pelo Direito de Conflitos Português. A

divergência entre o conteúdo do Direito estrangeiro competente e o Direito material do foro

só excecionalmente releva como limite à sua aplicação. Resta acrescentar que a aplicação do

Direito estrangeiro pode também não ser possível em dois casos:

a. Quando este Direito exija a intervenção de uma autoridade pública e não exista, no Estado local,

nenhuma autoridade com competência para praticar atos necessários;

b. Quando a sua aplicação requeira procedimentos especiais que sejam de todo incompatíveis com o

Direito processual do foro.

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✒ Afora estes casos, verdadeiramente excecionais, os órgãos portugueses de aplicação do

Direito devem colocar-se ao serviço da aplicação do Direito estrangeiro, esforçando-se por

adaptar o Direito processual interno ao Direito substantivo estrangeiro.

4. Interpretação do Direito estrangeiro: o Direito estrangeiro tem de ser interpretado em

conformidade com os critérios de interpretação seguidos no país de origem e com a

jurisprudência e doutrina aí dominantes (artigo 23.º, n.º1 CC). O intérprete encontra-se

menos familiarizado com o Direito estrangeiro e, por isso, deve atuar com especial prudência.

Goldschmidt afirmou que na construção do próprio Direito somo arquitetos ao passo que

apenas fotografamos o Direito estrangeiro. Há algum exagero nesta afirmação: o intérprete

local tem a margem de apreciação e a competência de um desenvolvimento do Direito que

a ordem jurídica estrangeira reconhece aos seus juízes e, mais em geral, aos seus interpretes

Mas devem ser mais prudente e seguir a opinião dominante na cultura jurídica estrangeira. A

circunstância de o mesmo preceito vigorar simultaneamente em várias ordens jurídicas não

impede que a respetiva interpretação seja diferente.

5. Conhecimento e prova do Direito estrangeiro: para decidir, o tribunal precisa de

conhecer os factos e o Direito. Segundo o princípio do dispositivo, os factos têm, em regra,

de ser alegados e provados pelas partes. Já o Direito deve ser conhecido pelo tribunal, deve

ser investigado e determinado por sua própria iniciativa, em conformidade com o princípio

da oficiosidade (artigo 664.º CPC6). Poderá exigir-se o conhecimento oficioso do Direito

estrangeiro? Nos Direitos anglo-saxónicos, entende-se tradicionalmente que não. Há um

ónus de alegação e prova do Direito estrangeiro pelas partes. Este entendimento mantém-se

no sistema inglês. Já nos EUA existe legislação que modificou a regra do Common Law em

muitos Estados federados e especialmente em relação aos tribunais federais, em muitos casos

aproximando-se dos sistemas que encaram a lei estrangeira como Direito, sem, contudo,

dispensar a colaboração das partes7. Em Portugal, a questão é resolvida pelo artigo 348.º,

n.º1 e 2 CC. Há um dever de colaboração da parte que invoca o Direito estrangeiro na

determinação do seu conteúdo. Não hã um ónus da prova. O incumprimento do dever de

colaboração não tem por consequência o indeferimento da pretensão nem, necessariamente,

a aplicação do Direito material português, embora possa contribuir para uma situação de

impossibilidade de determinar o conteúdo da lei estrangeira. O Direito estrangeiro é de

conhecimento oficioso, tem o estatuto de Direito. A mesma posição é assumida pelos

sistemas alemão e italiano. Por conseguinte, os tribunais portugueses, quando conheçam de

uma relação controvertida transnacional seja em primeira instância seja como instância de

recurso, estão obrigados a aplicação ex officio o Direito de Conflitos vigente na ordem jurídica

portuguesa e, sendo o caso, o Direito estrangeiro designado por este Direito de Conflitos.

Observe-se, a este respeito, que não existe qualquer ónus de alegação da competência da lei

estrangeira quer perante o tribunal de primeira instância quer perante tribunais de recurso. A

aplicação oficiosa do Direito de Conflitos e o conhecimento oficioso do Direito estrangeiro

para que remeta são, em princípio, postulados pela justiça do Direito Internacional Privado,

que inclui valores e princípios que transcendem a vontade das partes. Ela assegura que a

situação transnacional é apreciada segundo o Direito designado pelo elemento de conexão

mais adequado à matéria. Ao mesmo tempo, porém, deve atender-se à primazia que o

6 Não encontramos o artigo equivalente, mas suspeitamos que seja o equivalente, no novo cpc, ao artigo 412.º CPC 7 A existência de um ónus da prova não significa necessariamente que o Direito estrangeiro seja tratado como um facto. É preciso esclarecer o que se entende aqui por ónus da prova. É preciso esclarecer o que se entende aqui por ónus da prova. Qual é a sanção da falta de prova: indeferimento da pretensão ou aplicação subsidiária do Direito do foro. Só no primeiro caso é que o Direito estrangeiro seria tratado como um facto. Quando se discute se o Direito estrangeiro é ou não de conhecimento oficioso a questão que se coloca não é idêntica ao ónus da prova dos factos. No Direito Internacional Privado português, em que o Direito material do foro é de aplicação subsidiária, seria só a aplicabilidade do Direito estrangeiro que poderia estar dependente de um ónus. Por forma geral, a tendência, mesmo nos sistemas que enunciam uma regra de ónus da prova, é para a aplicação subsidiária de lei do foro. É o que se verifica nos Direitos do Common Law.

Direito Internacional Privado

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§

princípio da autonomia privada tende a alcançar neste ramo do Direito em matéria de

relações disponíveis, que são a regra no Direito patrimonial. Deve também ter-se em conta

as dificuldades para a administração da justiça que resultam do crescente peso das situações

transnacionais no conjunto de casos submetidos aos tribunais. Contra uma aplicação

facultativa do Direito de Conflitos e/ou um ónus de alegação e prova do Direito estrangeiro

por ele designado em matérias disponíveis, podem invocar-se o risco de que as partes, ou os

seus representantes forenses, não prestem a devida atenção à relevância da questão para a

decisão do litígio. Uma solução equilibrada poderia consistir no seguinte: o Direito de

Conflitos continuaria a ser, como todo o Direito, de aplicação oficiosa. Em matérias

disponíveis, no caso de o Direito de Conflitos remeter para uma lei estrangeira e de nenhuma

das partes o ter invocado, o tribunal convidaria as partes a alegarem e provarem o conteúdo

desta lei, sob pena de ser aplicada a lei do foro. Isto poderia ser complementado por soluções

especiais, que poderiam restringir esta regra relativamente a determinadas matérias

disponíveis, ou estendê-la a determinadas matérias indisponíveis. Os sistemas nacionais de

Direito Internacional Privado também se dividem quanto ao controlo pelos tribunais

supremos da interpretação e aplicação do Direito estrangeiro. Este controlo não é em

princípio efetuado em países como a Alemanha e a França. Solução contrária é adotada entre

nós, à semelhança do que se verifica em Itália. Com efeito, o artigo 674.º CPC (de 2013)

estabelece que o erro na determinação e aplicação das normas legais estrangeiras constitui

fundamento do recurso de revista (n.º2). O erro na determinação de costume, nacional ou

estrangeiro, é excluído do recurso de revista. Mas isto não prejudica que o costume

estrangeiro tenha estatuto de Direito. O tribunal, ao determinar o conteúdo do Direito

estrangeiro, deverá contentar-se com um conhecimento suficiente para formar a sua

convicção. A dúvida não deve levá-lo a concluir pela impossibilidade. Quanto aos meios de

averiguação do conteúdo do Direito estrangeiro, os tribunais, devem contar, em primeiro

lugar, com a colaboração das partes, que podem juntar aos articulados elementos tais como

textos legais traduzidos, pareceres jurídicos, cópias de decisões judiciais, informações

prestadas pelas representações diplomáticas ou consulares do Estado de origem do Direito

em causa, bem como solicitar depoimentos de peritos sobre o conteúdo do Direito

estrangeiro. Se os elementos trazidos ao processo pelas partes não forem suficientes ou

conclusivos, os tribunais também podem tomar a iniciativa de obter esses elementos e têm

ao seu dispor certos mecanismos para o conhecimento do Direito estrangeiro estabelecidos

em Convenções internacionais. No âmbito da União Europeia, há também a referir o sítio

na internet da Rede Judiciária Europeia em Matéria Civil e Comercial, que contém

informações sobre os Estados Membros, sobre o Direito da União Europeia e sobre certas

matérias de Direito Civil e Comercial nas ordens jurídicas dos Estados Membros. Está

prevista a migração desta informação para o Portal Europeu da Justiça. Estes mecanismos

deveriam ser reforçados. Seria também desejável que Portugal dispusesse de uma instituição

independente que fornecesse aos tribunais pareceres sobre o Direito estrangeiro. O Gabinete

de Documentação e Direito Comparado, dependente da Procuradoria Geral da República,

tem a atribuição de prestar informação jurídica, designadamente sobre Direito estrangeiro,

mas os seus recursos são bastante limitados. Tem sido defendido que, em caso de dificuldade,

o tribunal pode mesmo recorrer a presunções para fixar o conteúdo do Direito estrangeiro.

Assim, o tribunal poderia recorrer aos sistemas jurídicas da mesma família que

presumivelmente sejam mais semelhantes (kegel e Schuring falam do princípio da maior

semelhança). Tenho muitas dúvidas sobre a conveniência deste recurso a presunções, uma

vez que pode conduzir a soluções completamente diferentes das que decorreria do Direito

competente. Em qualquer caso, não me parece que o Direito positivo autorize o recurso a

presunções sobre o conteúdo do Direito estrangeiro. Havendo real impossibilidade de

determinar o conteúdo do Direito estrangeiro aplicável, o n.º2 do artigo 23.º CC manda

passar à conexão subsidiária. Só na falta de conexão subsidiária é que, de acordo com o n.º3

do artigo 348.º CC, há lugar à aplicação do Direito material português. Isto vale apenas para

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✒ o Direito material estrangeiro. Se, para efeitos de devolução, não for possível determinar o

conteúdo do Direito de Conflitos estrangeiro, deve entender-se a remissão operada pela

nossa norma de conflitos como uma referência ao Direito material da ordem jurídica

estrangeira designada, em conformidade com a regra geral do artigo 16.º CC. A

impossibilidade de determinar o conteúdo do Direito estrangeiro aplicável pode ser parcial,

quando o tribunal só obtenha conhecimento de certos princípios gerais ou de algumas regras

que não permitem resolver inteiramente o caso. Nesta hipótese, entendo que o tribunal deve

aplicar as regras do Direito competente que conhece. O Direito subsidiariamente aplicável

ou o Direito material do foro só devem ser aplicados às questões que não sejam resolvidas

por essas regras e, em qualquer caso, desde que não contrariem os princípios fundamentais

do Direito competente. Atenua-se assim o risco de a solução do caso ser manifestamente

contrária à que decorreria do Direito que apresenta a ligação mais significativa com a situação.

Quanto aos outros órgãos de aplicação do Direito, designadamente aos notários e

conservadores, a lei não exige expressamente que conheçam oficiosamente o Direito

estrangeiro aplicável. Parece-me que perante o Direito vigente os notários não estão

obrigados a conhecer oficiosamente do Direito estrangeiro aplicável (artigo 85.º, n.º2 C.

Not.). Desta solução particular parece inferir-se que, por forma geral, os notários não têm o

dever de conhecer oficiosamente o Direito estrangeiro aplicável. Mas isto não significa que,

na falta de prova pelos interessados do Direito estrangeiro competente, os notários possam

realizar o ato segundo o Direito material português. Deve entender-se que, perante situações

transnacionais, os notários estão sempre obrigados a determinar o Direito competente e que,

no caso de ser competente um Direito estrangeiro, só devem realizar o ato se conhecerem o

conteúdo deste Direito ou se as partes fizerem a prova do mesmo. Quanto aos conservadores,

parece que, na falta de disposições especiais, se lhes deva aplicar analogicamente o regime

estabelecido para os tribunais. Como solução especial, avulta o artigo 43.º-A CRPr. No caso

do casamento de estrangeiro, o CRCivil determina que o nubente deve apresentar um

certificado passado pela entidade competente do Estado da nacionalidade, destinado a

provar que a lei pessoal não coloca impedimento à celebração do casamento (artigo 166.º,

nº.1). Se, por falta de representação diplomática ou consular do país da nacionalidade, ou por

outro motivo de força maior, o nubente não puder apresentar o certificado, a sua falta pode

ser suprida por um processo de verificação de capacidade matrimonial de estrangeiros,

organizado na conservatória (artigos 166.º, n.º2 e 261.º e seguintes), em que o Direito

estrangeiro competente é de conhecimento oficioso.

Limites à aplicação do Direito Estrangeiro ou transnacional

1. Reserva de ordem pública internacional: a. A reserva geral de ordem pública internacional enquanto cláusula geral que

veicula princípios e normas fundamentais da ordem jurídica do foro: a reserva

de ordem pública internacional encontra-se desde logo consagrada no artigo 22.º

CC. Há outras disposições de fonte interna que se referem à ordem pública

internacional, designadamente:

i. Artigo 1651.º, n.º2 CC;

ii. Artigo 980.º, alínea f) CPC;

iii. Artigo 6.º, n.º1 CRC.

A reserva de ordem pública internacional consta ainda de diversas Convenções

internacionais e Regulamentos europeus de unificação do Direito de Conflitos e

sobre reconhecimento de sentenças estrangeiras vigentes na ordem jurídica

portuguesa. A reserva de ordem pública internacional é um limite à aplicação do

Direito estrangeiro ou transnacional competente segundo o Direito de Conflitos ou

ao reconhecimento de uma decisão estrangeira. Perante a diversidade das situações

em que o resultado a que conduz a aplicação do Direito estrangeiro ou transnacional

ou o reconhecimento de decisão estrangeira pode ser intolerável perante a conceção

Direito Internacional Privado

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§

A cláusula geral da ordem pública internacional é um veículo para a atuação dos

princípios e normas fundamentais da ordem jurídica portuguesa. Não é possível

determinar, a priori, o conteúdo desta cláusula geral, i.e., formular um conjunto de

regras que esgotem o seu conteúdo. Isto resulta não só da dificuldade em enumerar

taxativamente os princípios e normas fundamentais da ordem jurídica portuguesa,

mas também, e principalmente, de a atuação da reserva de ordem pública

internacional depender do conjunto das circunstâncias do caso. Só perante as

circunstâncias do caso concreto se pode dizer se uma determinada violação de um

princípio ou norma fundamental é intolerável. Esta ordem pública é internacional

porquanto é específica do Direito Internacional Privado, e não, porventura, por ser

uma ordem pública de Direito Internacional. Pelo contrário, diz-se que a ordem

pública internacional é nacional, porque veicula princípios e normas fundamentais

da ordem jurídica do foro. Mas não deve confundir-se a ordem jurídica do foro com

o Direito de fonte interna. O caráter nacional da ordem pública internacional

prestase a equívocos. Numa ordem jurídica em que o Direito Internacional é objeto

de receção automática, como é o caso da ordem jurídica portuguesa (artigo 8.º CRP),

a ordem pública internacional é também informada por normas e princípios

fundamentais de Direito Internacional. A ordem pública de Direito Internacional

integra necessariamente a ordem jurídica portuguesa. Os princípios fundamentais de

Direito da União Europeia e a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia

(artigo 6.º TUE) também enformam a nossa ordem pública internacional. O mesmo

se diga de Convenções internacionais em vigor na ordem jurídica portuguesa. Por

outro lado, os Estados podem obrigar-se por Convenção internacional a só

recorrerem a esta reserva em situações especialmente qualificadas. Também o artigo

16.º Convenção Roma, o artigo 21.º RRI, o artigo 26.º RRII, o artigo 12.º RRIV e o

artigo 35.º RRV exigem uma manifesta incompatibilidade da lei designada com a

ordem pública do foro. Além disso, o TJUE pode exercer algum controlo sobre os

limites no quadro dos quais um Estado Membro pode invocar a ordem pública

internacional ao abrigo destes preceitos, designadamente quando esteja em causa a

aplicação do Direito de outro Estado Membro. Este controlo prende-se, por um

lado, com o caráter necessariamente excecional da intervenção da ordem pública

internacional. Por nosso lado, o Considerando n.º 25.º RRIV refere expressamente

que os tribunais de um Estado Membro não deverão poder aplicar a exceção de

ordem pública para recusar uma disposição da lei de outro Estado quando tal seja

contrário à Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, em especial ao seu

artigo 21.º, que proíbe qualquer forma de discriminação. No mesmo sentido se

pronuncia o Considerando n.º 58 RRV. A ordem pública internacional estrangeira

pode ser relevante nos casos em que o Direito de Conflitos estrangeiro seja aplicado

por força do Direito Internacional Privado do foro. É o que se verifica em sede de

devolução. É usual contrapor-se a ordem pública internacional à ordem pública de

Direito material, referida designadamente nos artigos 271.º, n.º1, 280.º, n.º2 e 281.º

CC. Há algo de comum a estes dois preceitos de ordem pública: certos princípios e

regras, pela sua importância, não podem ser afastados na solução de um caso. Mas

há diferenças óbvias entre os dois conceitos. O conceito de ordem pública de Direito

material é controverso. Parece que, enquanto conceito científico, incluirá as regras

e os princípios gerais imperativos, ao passo que nos preceitos atrás referidos se

reportará apenas aos princípios gerais imperativos. A ordem pública de Direito

material constitui um limite à autonomia privada no contexto do Direito material e,

em especial, à liberdade contratual de estipulação. Os princípios e regras veiculados

pela ordem pública internacional representam um núcleo mais restrito do que

aqueles que subjazem à ordem pública de Direito material. Mesmo que se trate de

um princípio que é veiculado tanto pela ordem pública de Direito material como de

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✒ justiça do foro, o legislador formulou uma cláusula geral. Esta cláusula geral atua

quando, perante o conjunto das circunstâncias do caso concreto, esse resultado seja

incompatível com princípios e normas fundamentais da ordem jurídica portuguesa.

pela ordem pública internacional, nem todas as violações sancionadas pela ordem

pública de Direito material são suficientemente graves para justificarem a atuação

da ordem pública internacional. Enquanto contraproposta à ordem pública de

Direito material, a ordem pública internacional constitui um reduto de princípios e

normas do ordenamento do foro de cuja aplicação esta ordem jurídica não abdica

posto que se trate de uma situação transnacional e que seja estrangeiro ou

transnacional o Direito chamado a regê-la. Daí que a ordem pública internacional

constitua um limite excecional à aplicação do Direito estrangeiro ou transnacional.

Tende hoje a entender-se que as normas e princípios constitucionais, principalmente

os que tutelam direitos fundamentais, não só informam mas também conformam a

ordem pública internacional. A cláusula de ordem pública internacional é um limite

à aplicação do Direito estrangeiro ou transnacional ou ao reconhecimento de uma

decisão estrangeira. Neste momento, interessa, em primeira linha, a reserva de

ordem pública internacional enquanto à aplicação do Direito estrangeiro ou

transnacional. A atuação da reserva de ordem pública internacional pressupõe que

o Direito de Conflitos português chama o Direito estrangeiro ou transnacional a

regular a situação. O problema só se coloca depois de resolvidas todas as questões

de concretização do elemento de conexão, de devolução, de fraude à lei e de

qualificação. É no fim do processo que se aprecia a compatibilidade da solução a

que conduz o Direito estrangeiro ou transnacional designado com a ordem pública

internacional. O artigo 22.º CC acolhe a conceção aposteriorística de ordem pública

internacional. Nem sempre a ordem pública internacional foi assim entendida. Em

finais do século XIX e princípios do século XX autores como Mancini e Pillet

defenderam uma conceção apriorística, segundo a qual certas leis do foro teriam

como qualidade inerente serem de ordem pública. A ordem pública constituiria uma

categoria autónoma de conexão, a par do estatuto pessoal. Na conceção vigente no

Direito português, a reserva de ordem pública internacional só intervém a posteriori,

quando a solução material concreta a que o Direito estrangeiro ou transnacional

conduz é intolerável face a certos princípios e normas da ordem jurídica portuguesa.

A atuação da reserva de ordem pública internacional requer assim uma comparação

dos efeitos desencadeados pela lei estrangeira ou pelo Direito transnacional com os

que seriam ordenados pela lei do foro. A reserva de ordem pública internacional não

fundamenta um juízo de desvalor da lei estrangeira ou da norma transnacional. Ela

atua perante o resultado da aplicação do Direito estrangeiro ou transnacional. Não

pode dizer-se, em rigor, que uma lei estrangeira viola a ordem pública internacional

portuguesa. Pode é dizer-se que não é aceite a solução a que esta lei conduza num

caso concreto. Há um setor da doutrina (Wengler e Baptista Machado) que encara

as normas de aplicação imediata ou necessária como normas de ordem pública

internacional, manifestando assim uma abertura à conceção apriorística de ordem

pública internacional. Já sabemos que se trata aqui de normas materiais da ordem

jurídica do foro que reclamam aplicação a uma situação que, em princípio, está

submetida a um Direito estrangeiro por força do sistema de Direito de Conflitos. A

inclusão ou exclusão destas normas do âmbito da ordem pública internacional pode

relacionar-se com a delimitação dos valores jurídico-materiais em jogo. Para alguns

autores, a ordem pública internacional só teria que ver com valores ético-jurídicos e

específicos do Direito privado, as normas de aplicação necessária prosseguiriam fins

de polícia economia e social e interesses políticos em sentido estrito, enfim,

finalidades de natureza pública. Mas nem a cláusula de ordem pública internacional

se tem acantonado aos valores ético-jurídicos, nem a realidade das normas

Direito Internacional Privado

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§

suscetíveis de aplicação necessária se circunscreve a fins económicos, sociais e

políticos. A ordem pública internacional é apta para veicular todos os princípios e

normas fundamentais da ordem jurídica do foro que tenham aplicação a situações

transnacionais. Não pode fazer-se uma limitação a princípios ético-jurídicos.

Também pode fazer-se uma limitação a princípios ético-jurídicos. Também pode ser

veiculados, como vem sendo reconhecido pela jurisprudência, princípios e normas

que prosseguem finalidades económico-sociais, políticas ou outras. Creio, porém,

que é justificada a tendência para separar a ordem pública internacional da temática

das normas suscetíveis de aplicação necessária. A norma de aplicação necessária

sobrepõe-se ao sistema de Direito de Conflitos por força de uma norma de conflitos

unilateral que prevalece, como norma especial, sobre a norma de conflitos geral ou

de uma solução conflitual especial criada para integrar uma lacuna do sistema de

Direito de Conflitos. Pode não ser uma norma fundamental no sentido de

desencadear a intervenção da ordem pública internacional em razão do seu conteúdo

de justiça material. Por conseguinte, não é correto considerar as normas suscetíveis

de aplicação necessária, na sua generalidade, como expressão de uma ordem pública

internacional apriorística. Vem a propósito referir as chamadas cláusulas especiais

de ordem pública. Estas cláusulas especiais constituem, a meu ver, normas

autolimitadas que por força de normas de conflitos unilaterais ad hoc são aplicáveis

qualquer que seja o conteúdo da lei estrangeira que, na ausência delas, seria

competente. Mas, de acordo com o anteriormente exposto, só faz sentido qualificar

como cláusula especial de ordem pública a norma autolimitada que possa ser vista

como concretização legislativa ou jurisprudencial da cláusula geral de ordem pública

internacional.

b. Outras características da ordem pública internacional: uma característica

fundamental da cláusula de ordem pública internacional consiste na sua

excecionalidade. Esta cláusula só intervém como limite à aplicação do Direito

estrangeiro ou transnacional quando a solução dada ao caso for não apenas

divergente da que resultaria da aplicação do Direito português, mas também

manifestamente intolerável. Em rigor, a natureza manifestamente intolerável da

solução também não se confunde com o grau de divergência entre a ordem jurídica

interna e o Direito estrangeiro ou transnacional. Com efeito, a solução dada ao caso

pelo Direito estrangeiro ou transnacional pode ser incompatível com a ordem

jurídica do foro mesmo que esta contenha disposições semelhantes, quando estas

disposições tutelam interesses públicos nacionais ou interesses privados locais e

entram em contradição no caso concreto com as normas estrangeiras ou

transnacionais. Enquanto limite ao reconhecimento de uma decisão estrangeira, a

cláusula de ordem pública internacional só intervém quando o reconhecimento for

manifestamente incompatível com normas e princípios fundamentais da ordem

jurídica do foro. A distinção entre ordem pública internacional e ordem pública

interna, ou de Direito material das Convenções de unificação do Direito de

Conflitos vigentes na ordem jurídica portuguesa e pelos Regulamentos europeus e

têm sido reiteradamente afirmados pela jurisprudência dos tribunais portugueses

relativa ao reconhecimento de decisões judiciais estrangeiras. Nas ordens jurídicas

em que a Constituição constitui a sede dos valores básicos da comunidade, como

sucede com a Constituição portuguesa, o conteúdo da ordem pública internacional

tende a ser determinado à luz dos princípios constitucionais. Excecionalmente,

poderão existir princípios fundamentais estruturantes da ordem jurídica portuguesa

que não tenham dignidade constitucional, mas terão de resultar de uma

sedimentação e consolidação em setores importantes da ordem jurídica, mediante

uma consagração legislativa ou consuetudinária, facultada pela vontade coletiva

manifestada pelos órgãos do poder político com competência legislativa ou pelo

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✒ consenso social. Meras soluções particulares, que resultam de opções conjunturais

ou pontuais do legislador em matéria de Direito privado, não se revestem destas

características. O mesmo se diga, em princípio, de soluções excecionais nesta

matéria. Por maioria de razão, meras construções doutrinais ou jurisprudenciais, de

sentido e alcance controversos, nunca poderão constituir conceções fundamentais

de justiça relevantes para a ordem pública internacional. Todo o órgão público que

aplique esta cláusula tem de fundamentar claramente a sua decisão em conformidade

com estas diretrizes. Uma outra característica da cláusula de ordem pública

internacional é o seu caráter evolutivo. O conteúdo da ordem pública internacional

acompanha a evolução da ordem jurídica, designadamente dos seus valores

fundamentais que se encontram consagrados constitucionalmente. O tribunal tem

de atender ao conteúdo atual da ordem pública internacional, no momento em que

aprecia a questão. A cláusula de ordem pública internacional caracteriza-se ainda

pela sua relatividade, i.e., pela sua atuação depender da intensidade dos laços que a

situação apresenta com o Estado do foro. A importância dos diversos elementos de

conexão que a situação possa apresentar com o Estado do foro depende, em certa

medida, da matéria em causa. Em matéria de estatuto pessoal avulta a nacionalidade

e a residência habitual dos interessados. Noutras matérias podem ser importantes

outros laços, tais como a localização de bens com especial valor económico,

histórico ou cultural. Em muitos casos, a situação tem laços significativos com o

Estado do foro, fundando-se nestes laços a competência internacional dos tribunais

deste Estado. Mas isto pode não se verificar, designadamente quando a competência

internacional resultar de um pacto de jurisdição. Um determinado resultado pode

ser manifestamente intolerável quando a ligação com o Estado do foro for mais

intensa e já não o ser quando a ligação for menos intensa. Em todo o caso, a cláusula

de ordem pública internacional deve intervir mesmo na falta de laços significativos

quando estejam em causa direitos fundamentais de especial importância. A este

respeito, também parece de atender à ligação que a situação apresente com outro

Estado em que vigorem normas ou princípios fundamentais convergentes como

aqueles que integram a ordem pública internacional do Estado do foro. Na falta de

uma conexão suficiente com o Estado do foro, a atuação de uma norma ou princípio

fundamental deste Estado pode ser justificada pela intensidade da ligação existente

com outro Estado em que vigore uma norma ou princípio de ordem pública

internacional convergente. Já oferece certa margem para dúvida a variabilidade da

ordem pública internacional conforme se trata da constituição de uma situação ou

do reconhecimento de efeitos de situações constituídas no estrangeiro. A doutrina

francesa (Batiffol), seguida por muitos autores portugueses, como Isabel de

Magalhães Collaço, Baptista Machado ou Marques dos Santos, fala de um efeito

atenuado da ordem pública internacional quanto ao reconhecimento de situações

constituídas no estrangeiro. Mas uma certa flexibilização da ordem pública

internacional em relação aos efeitos não significa que a própria constituição da

situação no estrangeiro não possa ser considerada contrária à ordem pública

internacional. Em última análise, o que releva não é tanto a distinção entre

constituição de uma situação e reconhecimento de uma situação mas a intensidade

da ligação que a situação apresenta com o Estado do foro em cada momento. Em

muitos casos que se relacionam com o dito efeito atenuado da ordem pública

internacional verifica-se que no momento da constituição a situação não tinha laços

significativos com o Estado do foro; já no momento em que se coloca o problema

da produção de certos efeitos estes laços significativos existem mas, então, já não

está em causa a título principal a válida constituição da situação, mas efeitos que

pressupõem, a título prejudicial, essa válida constituição e que configuram outras

Direito Internacional Privado

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§

situações que são compatíveis com os princípios fundamentais da ordem jurídica do

foro.

c. Consequências da intervenção da reserva de ordem pública internacional:

como já se assinalou, a ação preclusiva da cláusula de ordem jurídica internacional

incide sobre os efeitos jurídicos desencadeados pelo Direito estrangeiro ou

transnacional ou por uma decisão estrangeira. As consequências da intervenção da

cláusula são o afastamento do resultado a que conduz a aplicação do Direito

estrangeiro ou transnacional ou o não reconhecimento de uma decisão estrangeira.

Quando a cláusula atua como um limite à aplicação do Direito estrangeiro ou

transnacional vale um princípio do mínimo dano à lei estrangeira ou ao Direito

transnacional. Se do afastamento da solução contrária à ordem pública internacional

não resultar uma lacuna continua a aplicar-se o Direito estrangeiro ou transnacional.

É o que se verifica quando a solução contrária à ordem pública internacional resulta

da atuação de uma norma especial. Neste caso passa-se à aplicação do regime geral

contido no Direito estrangeiro ou transnacional. Se surgir uma lacuna, deve procurar

obter-se a solução nos quadros do Direito estrangeiro competente ou do Direito

Transnacional, mediante o recurso à analogia ou aos princípios jurídicos. Estes

ajustamentos da solução desencadeada pelo Direito estrangeiro ou transnacional às

exigências da nossa ordem pública internacional configuram casos de adaptação. Só

em último caso, subsidiariamente, é que se recorre às regras de Direito material do

foro (artigo 22.º, n.º2 CC). O recurso ao Direito material do foro é necessário,

designadamente, quando a cláusula de ordem pública internacional intervém por

falta no Direito estrangeiro ou transnacional de norma que desencadeie uma

obrigação de conduta, por exemplo, uma obrigação de alimentos. De iure condendo,

creio que na impossibilidade de resolver o caso nos quadros do Direito estrangeiro

competente se deveria recorrer ao Direito subsidiariamente competente e só na falta

deste, ou se na sua aplicação também fosse incompatível com a ordem pública

internacional, se passariam ao Direito material do foro. Com efeito, a justiça da

conexão postula que se aplique à situação transnacional, tanto quanto possível, o

Direito que apresenta a ligação mais significativa com a situação.

Trata-se de observar a existência de intorelabilidade face à nossa ordem pública internacional (não é um problema normativo)

Respeita o princípio do dano mínimo Tem, assim, como requisitos:

1 Excecionalidade

2 Relatividade

3 Atualidade

2. Direito Internacional Público e Direito da União Europeia:

a. Direito Internacional Público: a questão de saber se os órgãos estaduais de

aplicação do Direito podem e até se devem controlar a conformidade com o Direito

Internacional do Direito estrangeiro chamado pela norma de conflitos e dos efeitos

de decisões estrangeiras, foi discutida designadamente com respeito à expropriação

ou nacionalização operada por um Estado estrangeiro:

i. Uma parte da doutrina pronuncia-se a favor do controlo: do primado

do Direito Internacional decorre não só a possibilidade mas também a

obrigação de realizar o controlo. Invoca-se a necessária colaboração dos

tribunais estaduais na aplicação e desenvolvimento do Direito Internacional;

ii. Em sentido contrário: algumas decisões nacionais entenderam que o

Direito Internacional não permite que os tribunais de um Estado

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✒ considerem inválida uma lei estrangeira ou um ato soberano estrangeiro,

ainda que sejam contrários ao Direito Internacional Público. Também

diversos autores entendem que não existe uma obrigação de controlar a

conformidade da lei estrangeira ou do ato administrativo estrangeiro com o

Direito Internacional, pelo menos com respeito a direitos cujo exercício é

objeto da proteção diplomática.

Não creio que se deva duvidar da legitimidade do controlo perante o Direito

Internacional Público. Este entendimento foi aliás seguido pelo Instituto de Direito

Internacional na sua Resolução sobre a atividade do juiz interno nas relações

internacionais do Estado (Milão, 1993). Esta Resolução recomenda que as

jurisdições nacionais, quando tenham de aplicar a lei estrangeira, se devem

reconhecer competentes para decidir da compatibilidade desta lei com o Direito

Internacional (artigo 3.º, n.º1, 1.ª parte). E determina também que devem recusar

dar efeito a atos públicos estrangeiros que violem o Direito Internacional (artigo 3.º, n.º1, 2.ª parte). Já é mais complexa a questão de saber se á uma obrigação

internacional de o realizar. Creio que se deve distinguir entre:

i. Direito Internacional Público direta e imediatamente aplicável na

esfera interna: haverá uma obrigação internacional de controlar a

conformidade do Direito estrangeiro ou transnacional com tais normas

internacionais;

ii. O restante Direito Internacional Público: parece que importa atender,

em primeiro lugar, ao sistema de receção do Direito Internacional na esfera

interna. Perante um sistema de receção automática, como é o nosso, creio

que um órgão nacional só deve aplicar o Direito estrangeiro ou

transnacional que for competente com o Direito Internacional Público.

Uma última questão é de saber se o controlo deve ser feito por meio de cláusula

geral de ordem pública internacional ou autonomamente. Wengler defendem que o

afastamento da lei estrangeira contrária ao Direito Internacional Público resultará

geralmente do recurso à ordem pública internacional. Lagarde mostra-se, pelo

contrário, favorável à atuação do Direito Internacional dos direitos fundamentais

como limite autónomo à aplicação do Direito estrangeiro. Em minha opinião, o

Direito Internacional Público constituiu um limite autónomo, porque a aplicação

das normas internacionais não depende necessariamente dos pressupostos de

intervenção da ordem pública internacional. Desde logo essa aplicação não depende

da intensidade do contacto da situação com o Estado do foro. Em todo o caso,

entendo que na determinação do modo como este controlo deve ser exercido

deverão ser levadas em conta as finalidades específicas do Direito Internacional

Privado. No que toca ás normas convencionais sobre direitos fundamentais, pode

ser questionado se a sua aplicação depende, como sucede em regra com a reserva de

ordem pública internacional, de uma ligação suficiente com o Estado do foro. A

meu ver haverá que atender, em primeiro lugar, ao domínio espacial de aplicação

definido pela própria Convenção. Na omissão da Convenção, será de partir do

princípio que tem de haver uma conexão espacial com um Estado contratante. Em

qualquer caso, a aplicação das normas convencionais não depende necessariamente

dos pressupostos de aplicação da ordem pública internacional, designadamente de

uma conexão com Estado do foro. Portanto, deve entender-se que o Direito

Internacional Público convencional também pode constituir um limite autónomo à

aplicação do Direito estrangeiro ou transnacional.

b. Direito da União Europeia: considerações paralelas às tecidas com respeito ao

Direito Internacional Público justificam que o Direito da União Europeia constitua

um limite autónomo à aplicação do Direito estrangeiro ou transnacional. Já sabemos

que o Direito da União Europeia auto-executório é aplicável às situações

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§

transnacionais que caiam dentro da sua esfera de aplicação no espaço. Por

conseguinte, um órgão nacional só deve aplicar o Direito estrangeiro ou

transnacional que for conforme com esse Direito da União Europeia. Também

neste caso deverão ser levadas em conta as finalidades especificas do Direito

Internacional Privado. Esta conformidade com o Direito da União Europeia deve

verificar-se quer perante o Direito originário (TFUE, por força do artigo 6.º TUE,

a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia) quer perante o Direito

derivado (Regulamentos contendo normas e princípios materiais). Como vimos, o

TJUE tem entendido de que do princípio da não discriminação em razão da

nacionalidade e das liberdades estabelecidas pelo Direito originário da União

Europeia, mormente as liberdades de circulação de pessoas, de serviços e de capitais,

com inclusão do direito de estabelecimento, decorrem limites à aplicação do Direito

designado pelas normas de conflitos. Em matéria de obrigações, não só o Direito

da União Europeia auto-executório mas também o contido em normas e princípios

materiais de fonte interna que transpõem Diretivas pode constituir um limite à

aplicação do Direito de um terceiro Estado. Por um lado, isto pode resultar de

normas de conflitos especiais contidas em Diretivas (artigos 23.º RRI e 27.º RRII),

mas também, de acordo com a decisão proferida pelo TCE no caso Ingmar (2000)8,

de uma norma de conflitos implícita que se infira dos objetivos da Diretiva. Por

outro, mesmo na falta de norma de conflitos especial, os Regulamentos Roma I

(artigo 3.º, n.º4) e Roma II (artigo 14.º, n.º3) determinam que sempre que todos os

outros elementos relevantes da situação se situem, no momento da escolha (no caso

das obrigações contratuais) ou no momento em que ocorre o facto que dá origem

ao dano (no caso das obrigações não contratuais) num ou em vários Estados

Membro, a escolha pelas partes da lei aplicável de um terceiro Estado não prejudica

a aplicabilidade das disposições imperativas de Direito da União Europeia, tal como

aplicadas pelo Estado Membro do foro. Ao salvaguardar a aplicabilidade das normas

imperativas europeias tal como foram transpostas pelo Direito do foro, e não pelo

Estado Membro em que a situação está localizada ou pelo Estado Membro cuja lei

seria aplicável na falta de escolha nos casos em que a situação é plurilocalizada. O

que interessa sublinhar neste momento, é que se trata aqui de um limite que só opera

relativamente à lei escolhida pelas partes e como base na transposição das normas

contidas em Diretivas feita pelo Estado Membro do foro.

3. Constituição: foi atrás sublinhado que as normas e princípios constitucionais,

principalmente os relativos a direitos fundamentais, assumem a maior importância para a

ordem pública internacional. Resta saber até que ponto estas normas e princípios só atuam,

enquanto limite à aplicação do Direito estrangeiro ou transnacional competente, através da

ordem pública internacional, ou também podem constituir um limite autónomo. Segundo o

entendimento tradicional, defendido por Kegel e seguido entre nós por Ferrer Correia, o

âmbito de aplicação no espaço das normas constitucionais que tutelam direitos fundamentais

decorre do funcionamento das normas de conflitos gerais, com reserva da sua atuação por

meio de cláusula de ordem pública internacional. Deste entendimento foram retirados dois

corolários:

a. Nem todas as normas e princípios constitucionais seriam necessariamente

veiculados pela ordem pública internacional: o órgão de aplicação do Direito

poderia legitimamente considerar que certos preceitos constitucionais não

constituem um limite à aplicação do Direito estrangeiro por não integrarem a ordem

pública internacional;

8 Embora ofereça dúvida que soluções desta natureza possam ser reconduzidas ao artigo 23.º RRI e 27.º RRII.

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✒ b. Segundo a tradicional caracterização da reserva de ordem pública

internacional, esta reserva não atua perante qualquer divergência entre o

Direito estrangeiro e as conceções jurídicas do foro, mas só em caso de

manifesta incompatibilidade: nem toda a violação de um preceito constitucional

seria suscetível de desencadear a reserva de ordem pública internacional.

A favor da autonomia do âmbito de aplicação no espaço destas normas constitucionais se

pronunciaram Wengler e, entre nós, Moura Ramos e Marques dos Santos. Para esta tese, a

relevância da Constituição não pode depender da norma ordinária que estabelece a reserva

de ordem pública internacional. Nem deve ficar na disponibilidade do intérprete a

determinação das normas constitucionais que são ou não de ordem pública internacional.

Ora, caso se reconheça que todas as normas constitucionais em matéria de direitos

fundamentais suscetíveis de aplicação a relações transnacionais são informadoras da ordem

pública internacional, fará sentido entender que a Constituição constitui um limite autónomo

à aplicação do Direito estrangeiro? O reconhecimento de que o âmbito de aplicação no

espaço das normas constitucionais se traça com autonomia relativamente à atuação das

normas de conflitos de Direito Internacional Privado não implica um limite à aplicação do

Direito estrangeiro que seja autónomo em relação à ordem pública internacional. Só haverá

um limite autónomo em relação à ordem pública internacional em dois casos:

a. A aplicação das normas constitucionais resulta de regras de conflitos

especiais;

b. Apesar de ser necessária uma determinada casuística da esfera de aplicação

no espaço das normas constitucionais os critérios a seguir para o efeito são

diferentes da ordem pública internacional.

A formulação de regras de conflitos unilaterais especiais sobre a aplicação de normas e

princípios constitucionais (um Direito Constitucional Internacional), com critérios que

podem divergir das regras de Direito Internacional Privado, foi defendida por alguns autores

como Bernstein e Puente Egido e que encontrou também defensores, como é o caso de

Moura Ramos. O artigo 6.º, 2.ª parte da Lei de Introdução do Código Civil alemão, com a

redação dada em 1986, configura a incompatibilidade da lei estrangeira com os direitos

fundamentais como um caso de aplicação da ordem pública internacional. Resulta daqui, por

um lado, que toda a violação dos direitos fundamentais desencadeia a violação da ordem

pública internacional. Mas, por outro lado, para determinar se a lei estrangeira viola um

direito fundamental e, assim, desencadeia a atuação da ordem pública internacional, há que

avaliar a intensidade dos laços existentes com o Estado do foro. A aplicação das normas

sobre direitos fundamentais de um ordenamento estadual a uma situação transnacional pode

depender de uma conexão espacial adequada entre esta situação e o respetivo Estado. E não

é outro o entendimento seguido pela doutrina maioritária, designadamente, entre nós, por

Ferrer Correia. Em minha opinião, é de afirmar uma pluralidade de modos de atuação da

Constituição portuguesa como limite à aplicação do Direito estrangeiro ou transnacional

designado pelo Direito de Conflitos:

a. Primeiro, para certas normas constitucionais pode justificar-se a formulação

de regras de conflitos unilaterais ad hoc : creio que seria possível formular uma

norma deste tipo relativamente ao artigo 53.º CRP. Para a realização desta tarefa

assume grande importância a interpretação das normas constitucionais e, em

especial, a consideração dos fins por elas prosseguidos. A formulação de uma norma

de conflitos especial, com a correlativa limitação da norma de conflitos geral, deverá

ser justificada à luz do conteúdo e do fim da norma constitucional em causa. O

elemento de conexão adotado deverá ser adequado ao conteúdo e fim da norma

constitucional. Mas, em minha opinião, o problema de aplicação no espaço de uma

norma material nunca se deixa resolver inteiramente no plano da sua interpretação.

Será sempre necessário um raciocínio conflitual, juízos próprios da justiça de

conexão, incluindo a consideração das finalidades específicas prosseguidas pelo

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Direito Internacional Privado, mas sem prejuízo da supraordenação dos fins

prosseguidos pelas normas constitucionais. O vínculo de nacionalidade seria à

primeira vista de sobrelevante importância para a determinação do âmbito de

aplicação no espaço das normas sobre direitos fundamentais, designadamente em

virtude de o artigo 12.º, n.º1 CRP estabelecer que todos os cidadãos gozam dos

direitos e estão sujeitos aos deveres consignados na Constituição e de o artigo 14.º

determinar que os cidadãos portugueses que se encontrem ou residam no

estrangeiro gozam da proteção do Estado para o exercício dos direitos e estão

sujeitos aos deveres que não sejam incompatíveis com a ausência do país. Mas o

artigo 15.º CRP vem demonstrar que os estrangeiros também gozam dos direitos

fundamentais. E como o artigo 15.º deixa transparecer, os laços existentes com o

território português também podem ser relevantes para a delimitação da esfera de

aplicação no espaço das normas constitucionais. Para ir mais além será necessário

atender às matérias em causa. Com exceção do já referido artigo 53.º CRP, a

jurisprudência e a doutrina ainda não deram corpo a tais normas de conflitos.

Ademais, o desenvolvimento destas normas de conflitos especiais só parece possível

e desejável relativamente a alguns preceitos constitucionais. Relativamente a muitas

normas e princípios constitucionais será impossível ou insatisfatório fixar por forma

geral e abstrata o seu âmbito de aplicação no espaço mediante a definição do

elemento de conexão relevante. Será necessário ou, pelo menos, preferível, que a

aplicação da norma dependa de um exame do conjunto das circunstâncias do caso

concreto.

b. Segundo, certas normas constitucionais poderão mesmo ser de aplicação

universal, por consagrarem direitos básicos de todo o ser humano: estas

normas são aplicáveis a situações transnacionais independentemente de qualquer

laço com o Estado português. Mas então tratar-se-á, em princípio, de direitos

tutelados pelo Direito Internacional Público geral que, como atrás se assinalou,

constitui um limite autónomo à aplicação do Direito estrangeiro e ao

reconhecimento de decisões estrangeiras;

c. Terceiro, nos restantes casos, em que não é possível ou conveniente

estabelecer regras de conflitos especiais nem se trata de normas

constitucionais de aplicação universal: é necessária uma determinação casuística

do âmbito de aplicação da norma. Estes casos são reconduzíveis à reserva de ordem

pública internacional.

Nesta determinação é inevitável que a jurisprudência e a doutrina tenham de desenvolver um

trabalho criativo e que o órgão de aplicação do Direito goze de uma certa margem de

apreciação. As características da ordem pública internacional, designadamente a relevância

da intensidade da ligação entre a situação e o Estado do foro, encontram-se presentes nestes

casos. Mas a ordem pública internacional não só é informada pelas normas e princípios

constitucionais como também tem de ser conformada à luz do primado da Constituição. De

entre as consequências deste modo de ver as coisas são de salientar três:

i. Na medida em que estejam em causa normas e princípios constitucionais, a

vigência da cláusula geral da ordem pública internacional é imposta pela

Constituição;

ii. As normas e princípios constitucionais, designadamente em matéria de

direitos, liberdades e garantias são sempre fundamentais, e, que, por

conseguinte, qualquer violação destas normas e princípios justifica a

intervenção da ordem pública internacional.

iii. Deve admitir-se que a fiscalização concreta da constitucionalidade tenha por

objeto as normas estrangeiras ou transnacionais chamadas pelo Direito de

Conflitos. Por conseguinte, o Tribunal Constitucional é competente para controlar

se a reserva de ordem pública internacional deve ser oposta à aplicação de norma

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✒ estrangeira ou transnacional com fundamento na violação de norma constitucional.

À semelhança do que se verifica com o controlo da constitucionalidade das normas

internacionais, a desconformidade da norma estrangeira ou transnacional com

a Constituição portuguesa só determina a ineficácia dessa norma na ordem

jurídica interna.

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✒ Esquema de resolução de casos práticos (muito genérico e a complementar com os

esquemas já feitos supra)

Identificação do conceito-quadro 1.º momento da escolha aplicável: identificar o problema

Interpretação do conceito

I – Norma de DUE Verificar os âmbitos de aplicação: A – letra do regulamento; B – Objetivos e sistema do Regulamento; C – Princípios gerais constantes dos ordenamentos jurídicos nacionais (Acórdãos Eurocontrol, Tacconi – Lechoritori + Considerandos dos Regulamentos)

II – Norma portuguesa A - à luz da lex fori; B – mas com autonomia.

Elemento de conexão

A - No caso da nacionalidade: se com conteúdo múltiplo: artigo 27.º e 28.º LN (afastado pelo TJUE o 28.º no Acórdão Garcia-Avello e Micheletti para cidadania europeia) B – Ordenamentos complexos (artigo 20.º CC).

Saber se L2 aplica outra lei que não L2

Não o fazendo: saber se há devolução ou reenvio (no caso português, começar pelas exceções: artigos 17.º, 18.º, remeter para a não verificação do 19.º - ou entender pela sua verificação – e na sua não verificação, aplicar o artigo 16.º CC); ou a questão do artigo 34.º RRV.

Qualificação L2 – à luz de possível lex causae; … Ln

Subsunção correspondência funcional entre lex fori e lex causae

Resposta ao caso

Correção a esta resposta pelo preenchimento de Limites à aplicação do

Direito Estrangeiro

Artigo 19.º CC – há favor negotii?

Existe alguma Norma de Aplicação Imediata? I – Portuguesa; II – Estrangeiras: A – Dentro da UE: Regulamentos; B - Fora da UE: Convenções.

Fraude à lei: Regulamentos – não preveem

CC: artigo 21.º (Ac. Centres).

Reserva de Ordem Pública Internacional

Difere na CRP e Princípios de DUE.