menezes cordeiro - obrigações ii

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  • 8/19/2019 Menezes Cordeiro - Obrigações II

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    Professor António Menezes Cordeiro葡京法律的大学 |大象城堡 

    DIREITO DAS OBRIGAÇÕES II

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    葡京的法律大学|大象城堡 

    Professor António Menezes Cordeiro

    Tratado de Direito Civil | tomos VII e IX

    … and now, segundo semestre. Nunca mais acaba!

    Desejando boa sorte, cabe-me alertar para o facto de a sebenta ter, certamente, pequenas

    imprecisões que, por lapso e sem intenção, nela perpassaram. Leiam criticamente, como tudo

    em ciência! E não dispensem a consulta dos manuais (só por si excelentes, na brilhante

    academicidade e cientificidade do autor, excecionais!). 

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    Professor António Menezes Cordeiro

    Tratado de Direito Civil | tomos VII e IX

    17.º O Código Vaz Serra (1966)

    Os estudos preparatórios e o anteprojeto: o tema do enriquecimento sem causa, no âmbito

    da preparação do Código Civil de 1966 deu azo, como já foi referido, a um substancial estudo do

    Professor Vaz Serra. Este autor parte da não consagração explícita, do enriquecimento, no

    Código de Seabra, embora o princípio lhe subjaza. Pondera, nalguns códigos europeus, a

    repetição do indevido, dando atenção ao Código Italiano. O sistema alemão das condictiones,

    por “decidida influência do Direito romano e comum” fecha o ciclo. A importância da teoria do

    enriquecimento sem causa é ponderada, embora, segundo Vaz Serra, sempre seja menor, entre

    nós, do que no Direito alemão, uma vez que, ao contrário do que neste sucede, escassearem,

    no Direito português, os atos abstratos. Isto posto, formula a ideia básica: deve admitir-se uma

    pretensão geral de enriquecimento sem causa, na qual se incluirá a repetição do indevido. Vaz

    Serra expõe, depois, os grandes traços dogmáticos do enriquecimento sem causa: os requisitos,

    a natureza subsidiária da pretensão de enriquecimento, que obtém resposta negativa, a

    repetição do indevido, as várias hipóteses de enriquecimento e os efeitos. Vaz Serra acabaria

    por propor um articulado extenso. No anteprojeto global simplificado, a matéria foi reduzida a

    doze artigos: manteve, aí, o sentido geral, incluindo a natureza não subsidiária. As revisões

    ministeriais, da responsabilidade de Antunes Varela, conduziram a uma grande simplificação da

    matéria e a uma aproximação ao modelo do Código Italiano, em detrimento do alemão. Quanto

    à natureza subsidiária: invertendo a orientação de Vaz Serra, ela foi introduzida, sem

     justificações, na segunda revisão ministerial. Como epílogo, podemos reter que os estudos

    preparatórios de Vaz Serra foram decisivos para a introdução de um moderno sistema de

    enriquecimento sem causa, no nosso Direito. Por certo que, já anteriormente, a figura fora

    acolhida, tendo-se mesmo constatado uma significativa aplicação jurisdicional. Todavia, o jogodas condictiones  é bastante mais exigente: lida com distinções, com especificações e com

    esquemas cruzados, que apenas por aprendizagem se podem captar. A preparação do Código

    Civil constituiu um momento alto da nossa doutrina do enriquecimento. Foi uma pena o sentido

    geral das revisões ministeriais, que retiram dimensão ao enriquecimento, designadamente por

    via da injustificável subsidiariedade. Perdeu-se, também, a referência ao enriquecimento por

    intervenção e empolou-se uma variante de actio indebitii , através da autonomização da

    repetição do indevido e isso mau grado a contradição com uma certa referência às condictiones.

    Desperdiçou-se uma oportunidade histórica de agilizar o nosso Direito Civil.

    O Código Vaz Serra: 473.º a 482.º : na sequência das apontadas vicissitudes, o

    enriquecimento sem causa consta, hoje, da secção IV do capítulo sobre as fontes das obrigações

    entre a gestão de negócios e a responsabilidade civil. A matéria preenche dez artigos e o seu

    alinhamento sugere um tratamento ondulado:

    - versa o enriquecimento (473.º a 475.º);

    - ocupa-se da repetição do indevido, com regras próprias (476.º a 478.º);

    - regressa ao enriquecimento, particularmente à obrigação de restituir (479.º a 482.º).

    Outras consagrações legislativas: o Código Vaz Serra refere, ainda, o enriquecimento sem

    causa, nos preceitos seguintes:

    - 44.º (enriquecimento sem causa);

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    - 289.º, n.º2 (efeitos da declaração de nulidade e da anulação);

    - 468.º, n.º2 (obrigações do dono do negócio);

    - 472.º, n.º1 (gestão de negócios alheio julgado próprio);

    - 498.º, n.º4 (prescrição);

    - 616.º, n.º3 (ação pauliana; efeitos em relação ao credor);

    - 617.º, n.º1 (idem; relações entre devedor e terceiro);

    - 764.º, n.º2 (capacidade do devedor e do credor);

    - 795.º, n.º1 (contratos bilaterais);

    - 1214.º, n.º2 (alterações da iniciativa do empreiteiro);

    - 1214.º, n.º3 (idem);

    - 1273.º, n.º2 (benfeitorias necessárias e úteis);

    - 1334.º, n.º2 (união ou confusão de má fé);

    - 1341.º (obras, sementeiras ou plantações feitas de má fé em terreno alheio);

    - 1342.º (idem, com materiais alheios);

    - 1538.º, n.º2 (extinção da superfície pelo decurso do prazo);

    - 2076.º, n.º2 (alienação a favor de terceiro).

    Existem ainda outros preceitos no Código Civil que, sem referirem, de modo expresso, o

    enriquecimento, parecem tê-lo em vista. Assim:

    - 215.º, n.º1 (restituição de frutos);

    - 795.º, n.º2 (contratos bilaterais).

    Quer num caso quer no outro, configura-se uma obrigação de restituir (ou de descontar) algo

    que pode ser assimilado a um enriquecimento. Caso a caso será necessário indagar se o instituto

    do enriquecimento sem causa, na base da indicação legal, tem, todo ele, aplicação. O

    enriquecimento sem causa é um instituto comum (civil) muito antigo. Nos digesta, embora

    houvesse uma sistematização unitária de boa parte dos fragmentos que se lhe reportavam,encontramos regras assimiláveis às condictiones dispersas pelos seus cinquenta livros. Ao longo

    da História, essa matéria sofreu simplificações; mas também se complicou. Daí que, ainda hoje,

    encontramos nos códigos civis:

    - regras sobre o enriquecimento que têm, nos próprios locais onde surgem, o seu berço

    histórico;

    - regras que, por preocupações reguladoras, o legislador entendeu reportar a propósito

    de questões concretas.

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    18.º A Aplicação do Código Vaz Serra

    O alto nível doutrinário: antes de estudar os meandros dogmáticos do enriquecimento sem

    causa, afigura-se útil bosquejar o cenário de aplicação do Código Vaz Serra. O Código foi

    apresentado da melhor maneira, através do estudo preparatório de Vaz Serra, sobre o

    enriquecimento sem causa. Trata-se de um escrito muito alongado e documentado, que colocou

    no coração da doutrina lusófona os avanços registados, nessa matéria, nas ciências jurídicas

    continentais mais experientes. É certo que, mercê das revisões ministeriais, o Código ficaria,

    neste domínio, aquém das expectativas. Mas os estudiosos portugueses aceitaram o desafio:

    deram, ao enriquecimento sem causa, um elevadíssimo nível jurídico-cientifico.

    Especificidade do sistema português: antecipando conclusões, devemos sublinhar que osistema português do enriquecimento se causa não é um produto romano-germânico puro. Por

    muito que nos custe, a situação é outra: mau grado os esforços de Vaz Serra e a evidente

    simpatia que eles desencadearam na doutrina especializada, o Código de 1966 ficou próximo do

    sistema italiano, com claras aberturas à evolução francesa. Provavelmente estaremos perante

    um modelo hibrido, a compor pela doutrina: mas não em face de uma mera receção da doutrina

    alemã. De certo modo, ele confirma a natureza autónoma do sistema lusófono. Sob pena de

    irrealismo, há que contar com esse estado de coisas.

    Perspetivas: o enriquecimento sem causa é bastante invocado nos nossos tribunais. Apesar das

    suas dificuldades, quando aprofundadamente estudado, o enriquecimento comporta um nível

    de empatia do fácil comunicação. A título supletivo, ele completa, muitas vezes, o rol de diversospedidos. A sua natureza subsidiária leva a que os tribunais optem, com frequência, por outros

    institutos. Além disso, há uma certa dificuldade probatória, a cargo do empobrecido.

    Relativamente ao Código de Seabra, verifica-se uma clara depuração: toda a temática da

    invalidade dos negócios e do dever de restituir daí derivado, segue os trilhos do artigo 289.º,

    não sendo considerada enriquecimento. Depois da publicação do Código Vaz Serra, houve uma

    fase inicial mais tímida. Após a década de noventa do século passado, a eficácia da doutrina

    chegou aos tribunais superiores. Podemos dizer que, a esse nível, as grandes construções do

    enriquecimento são conhecidas. Procuraremos, abaixo, trata-las por campos de problema. De

    todo o modo: a multiplicação, no nosso Direito, de institutos de tipo geral, capazes de veicular

    os valores básicos do sistema, como a boa fé e o abuso do direito, retiram impacto aoenriquecimento. ~

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    Dogmática Geral

    19.º - Modalidades

    Por prestação e por intervenção; outros: no enriquecimento sem causa, tomando como

    base a fórmula de Pompónio vertida no artigo 473.º, n.º1, temos, à partida, uma deslocação

    patrimonial de uma esfera para outra ou, pelo menos, o radicar, numa esfera, de uma vantagem

    que, de acordo com critérios comuns, deveria caber a outra. O princípio do artigo 473.º, n.º1

    poderia dar corpo a uma conceção unitária de enriquecimento a qual, ainda que através dasdiversas condictiones, radicaria em Savigny. Porém e como vimos, na base do §812 BGB, Walter

    Wilburg veio, em 1934, defender a existência de duas distintas modalidades de enriquecimento:

    - o enriquecimento por prestação;

    - o enriquecimento não baseado em prestação.

    No enriquecimento por prestação, os sujeitos envolvidos, o objeto em jogo e o seu teor

    resultariam de uma prestação, efetuada pelo empobrecido ao enriquecido. A falta de causa teria,

    aqui, um especial papel, enquanto as ideias de deslocação patrimonial e de imediação

    perderiam utilidade. No enriquecimento não baseado numa prestação, a falta de causa perderia

    o seu alcance; antes teria de se atentar no conteúdo da destinação: certas utilidades deveriam

    assistir a uma pessoa, vindo a caber a outra. Chamaremos a esta contraposição e àquelas que

    se lhe seguiram e que iremos referir, classificações jurídico-cientificas. Vinte anos volvidos, a

    ideia de Wilburg foi retomada e desenvolvida por Ernst Von Caemmerer. Este autor vem

    distinguir:

    - o enriquecimento por prestação;

    - o enriquecimento por intervenção;

    - o enriquecimento por liberação de uma dívida paga por terceiro;

    - o enriquecimento por benfeitorias (despesas) feitas em coisa alheia.

    Outros termos poderiam, ainda, ocorrer. A doutrina atual mantém a existência de, pelo menos,

    duas modalidades distintas de enriquecimento: por prestação e sem prestação,

    fundamentalmente por intervenção. A jovem doutrina inglesa do enriquecimento adapta a ideia:

    Birsk (1985), contrapõe o unjust enrichement by subtraction  ao unjust enrichment by doing

    wrong, enquanto Chambers (2009) prefere enriquecimento por obtenção de valores e

    enriquecimento por obtenção de direitos. A doutrina de fala inglesa mas de matriz continental

    contrapõe enrichment by transfer , imposed enrichment  e enrichment by invasion of rights. Luís

    Menezes Leitão distingue quatro modalidades:

    - enriquecimento por prestação;

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    - enriquecimento por intervenção;

    - enriquecimento resultante de despesas efetuadas por outrem;

    - enriquecimento por deslocação do património.

    No enriquecimento por prestação, alguém efetua uma prestação a outrem, mas verifica-se uma

    ausência de causa que permita a receção ou a manutenção da prestação em causa; como

    submodalidades, teríamos:

    - a repetição do indevido;

    - a restituição por posterior desaparecimento da causa;

    - a restituição por não verificação do efeito pretendido.

    No enriquecimento por intervenção, não previsto expressamente mas reconduzível à cláusula

    do artigo 473.º, n.º1, teríamos o desviar de vantagens destinadas ao empobrecido, a favor dointerventor. Tais vantagens podem ter sido criadas pelo próprio interventor: mas em área

    destinada ao empobrecido. Não tem de haver uma deslocação patrimonial concreta, cabendo

    recorrer à ideia de conteúdo da destinação. O enriquecimento resultante de despesas efetuadas

    por outrem abrange o incremento de valor de coisas alheias, através de benfeitorias ou

    esquemas semelhantes e a vantagem resultante para o beneficiário do pagamento de dívidas

    alheias. Finalmente, o enriquecimento por deslocação do património ocorre quando a vantagem

    vá parar ao património de terceiro, designadamente por ela lhe ter sido gratuitamente atribuída

    pelo primeiro enriquecido Trata-se de matéria prevista em preceitos como os artigo 289.º, n.º2

    e 616.º e que pode ser comodamente versada a propósito do dever de restituição. De certo

    modo, elas acautelam a hipótese de o enriquecido se querer livrar da obrigação, alienando

    gratuitamente a sua vantagem.

    Direto e indireto; voluntário e forçado; autónomo e integrado: no enriquecimento direto,

    ficam frente a frente o enriquecido e o empobrecido: por prestação do segundo ao primeiro, ou

    por intervenção do primeiro no espaço do segundo. Falaremos em enriquecimento indireto

    sempre que intervenha uma terceira pessoa:

    - seja como destinatária final do enriquecimento;

    - seja como beneficiária de uma prestação do empobrecido, mas na base de uma relação

    deste com outrem;

    - seja como interventor;

    - seja em múltiplas composições.

    O enriquecimento voluntário tem, na sua base, uma atuação ou uma aquisciência do

    enriquecido: contrapõe-se-lhe o enriquecimento forçado, em que isso não sucede: aí a

    transferência patrimonial é feita para o beneficiário ou pelo próprio empobrecido, ou pelo

    terceiro, ou, no limite, por factos naturais. Outra distinção dotada de relevo prático vincado

    separa:

    - o enriquecimento isolado;

    - o enriquecimento integrado.

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    O primeiro apela diretamente aos artigos 473.º e seguintes do Código Civil; o segundo insere-se

    noutros institutos. Quando o enriquecimento se integre noutros institutos, ele sofre uma

    interpretação à luz dos valores e dos equilíbrios que aí dominem: mais um aspeto a ter em conta.

    O Direito português: as modalidades jurídico-científicas do enriquecimento não podem deixarde atender aos sortilégios histórico-culturais que podem afetar os diversos Direitos positivos e,

    para o caso, o Direito português. E aí a contraposição básica opera, dentro de um

    enriquecimento lato sensu, entre:

    - a repetição do indevido;

    - o enriquecimento stricto sensu.

    O enriquecimento lato sensu corresponde ao artigo 473.º, n.º1 e exprime-se num princípio geral,

    que remonta a Pompónio e foi reconstruído por Guilherme Moreira. A repetição do indevido

    equivale à condictio indebitii  autonomizada pelo Código de Napoleão, vertida no artigo 758.º do

    Código de Seabra e contraposta ao enriquecimento sem causa pelos Códigos Civis italiano ebrasileiro. A repetição do indevido consta dos artigo 476.º a 478.º e tem um regime distinto do

    do enriquecimento. Ela recorta, negativamente, o enriquecimento stricto sensu: este abrange

    todo aquele que não se possa reconduzir à repetição do indevido. Dentro do enriquecimento

    stricto sensu, podemos distinguir as referidas modalidades do enriquecimento por prestação e

    por intervenção. Na tradição portuguesa, a distinção operava entre enriquecimento por

    transferência e enriquecimento por intervenção. O enriquecimento por prestação abrange as

    hipóteses presentes no artigo 473.º, n.º2, dobradas pela referência ao artigo 475.º: estão em

     jogo prestações. Podemos inserir, aqui, certas hipóteses, como a do artigo 1214.º, n.º3

    (alteração por iniciativa do empreiteiro). O enriquecimento por intervenção abrange as

    situações previstas nos artigos 468.º, n.º2 e 472.º, n.º1 (gestão de negócios), 1273.º, n.º2(benfeitorias), 1334.º, n.º2 (união ou confusão de má fé), 1341.º e 1342.º (acessão imobiliária)

    e, ainda, outras que se possam reconduzir ao artigo 473.º, n.º1; não há, nele, uma prestação

    mas, tão só, uma atuação do enriquecido ou de terceiro, sobre o património alheio. Por seu

    turno, no enriquecimento por prestação, podemos subdistinguir (algumas) velhas condictiones,

    referidas no artigo 473.º, n.º2:

    - o indevidamente recebido (condictio indebiti ), salvo a repetição do indevido que

    constitui caso à parte;

    - o recebido por virtude de causa que deixou de existir (condictio ob causam finitam);

    - o recebido em vista de um efeito que não se verificou (condictio ob rem ou causa data

    causa non secuta).

    20.º - Funções

    Repetição e restituição: a determinação das funções do enriquecimento sem causa constitui

    uma tarefa jurídico-científica inevitável. Dada a estrutura teleológica das proposições

    normativas, o conhecimento funcional de cada instituto é relevante para a fixação do regime e

    para a tomada de decisões jurídicas. Por certo que o enriquecimento tem uma função corretiva,

    útil quando caracterizada. Mas, por essa via, corre-se o risco de uma extensão desmensurada

    do instituto, de manuseio difícil. Haverá que procurar fundamentos mais precisos ou apelar a

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    um realismo de base. As funções do enriquecimento devem ter como base uma (certa)

    antecipação dos regimes implicados. De outro modo, chegaremos a puras situações de

    irrealismo. No Direito português, contrariamente ao alemão e por razões histórica-positivas já

    referenciadas, é inultrapassável a contraposição entre a repetição do indevido e o

    enriquecimento stricto sensu. A repetição do indevido visa, apenas, a restituição de umadeterminada prestação. Trata-se de uma retrocessão mecânica, pura e simples, visada pelo

    Direito precisamente pelo seu imediatismo e pela sua simplicidade. Essa função, algo primitiva,

    tem uma série de vantagens, que decorrem, justamente, da sua natureza linear. Falaremos na

    função repetição. O enriquecimento stricto sensu, imediatamente, uma função mais subtil: a de

    restituição do enriquecimento. Não se trata de reverter uma prestação, que poderá nem existir,

    sempre que esteja em causa uma intervenção: apenas se visa o enriquecimento, isto é, a

    projeção, no património do beneficiário, do produto da prestação em causa. Temos regras mais

    complexas e um resultado distinto: é a função de restituição.

    Contrato e propriedade: atende-nos, agora, ao enriquecimento stricto sensu, verificamos que

    a função restitutiva pode assumir uma de duas funções:

    - uma função corretora de movimentos de bens;

    - uma função protetora dos próprios bens.

    A função corretora de movimentos de bens torna-se clara no enriquecimento por prestação.

    Esta, por razões que a dogmática do instituto permitirá detetar, não ocorre em confluência do

    sistema, devendo ser corrigida. Está em causa um prolongamento do contrato e do seu

    pensamento básico. A função protetora dos bens manifesta-se no enriquecimento por

    intervenção. A intervenção em si representa,  prima facie, uma ingerência numa esfera alheia,

    sem a adequada cobertura. Os seus efeitos não terão sido nocivos ou totalmente nocivos. Cabeao enriquecimento ordenar a matéria, mas sem incentivar às intervenções. À luz destas

    considerações, verificamos que o enriquecimento sem causa assume a dupla função de defesa

    recuada do contrato (enriquecimento por prestação) e da propriedade (enriquecimento por

    intervenção): os dois grandes pilares da ordem civil. A propriedade deve, aqui, entender-se em

    sentido amplo, de modo a abranger as situações relativas a bens imateriais e, até, de

    personalidade. As valorações envolvidas num e noutro caso constituem úteis auxiliares de

    interpretação e de aplicação. Apesar deste dualismo, devemos ter presente que, por razões

    histórico-culturais, o enriquecimento desenvolveu-se em torno da ideia de “prestação”.

    Derivam, daí, consequências para a linguagem, para os conceitos e para as próprias soluções. O

    enriquecimento por intervenção surge, num segundo plano, com particularismo que exige umasérie de adaptações.

    Ilicitude imperfeita: no Direito Romano, a existência de uma tipicidade dos delitos deixava na

    sombra a específica função da responsabilidade civil. Ao longo da História, a recondução

     justinianeia do enriquecimento sem causa ao universo quase contratual deixou na sombra

    especiais ligações suas com o universo dos malefícios. Não obstante e descendo das abstrações,

    impõe-se o seguinte: se o Direito determina a restituição do enriquecimento é porque, à partida,

    pretende que ele não tenha lugar. Promover enriquecimentos será contrário ao sistema: donde

    o dever de restituir. A aproximação do enriquecimento sem causa à ideia de contrariedade ao

    Direito – portanto: à ilicitude – foi assumida por Fritz Schulz. A restituição seria, no fundo, uma

    sanção: quer pela aceitação ilícita de uma prestação ou de uma coisa (no enriquecimento porprestação), quer pela intromissão indevida na esfera alheia (enriquecimento por intervenção).

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    A matéria teria e ser ordenada não em função do enriquecimento em si, mas da ilícita atuação

    do agente. Outros autores, com relevo para Wilhelm, sustentam que, no enriquecimento sem

    causa, o benefício a retroverter foi obtido de modo desconforme com o ordenamento. O Direito

    Civil, por razões histórico-culturais, nem sempre surge como linear. Se atentarmos na linguagem

    dos códigos, verificamos que o enriquecimento sem causa é pontuado por termosdesaprovadores, em relação à prática do enriquecimento e às suas consequências. O artigo

    473.º, n.º1, usa as seguintes composições: «sem causa justificativa», «enriquecimento à custa

    de outrem», «é obrigado a restituir», «com que injustamente se locupletou». Podemos mesmo

    sublinhar um empolamento terminológico, apurado pela História, que nos transmite uma

    mensagem subliminar de reprovação do enriquecimento sem causa. O Direito pretende que não

    haja enriquecimentos sem causa. Fá-lo por constatar que os instrumentos mais diretos, como o

    contrato e os delitos, não são suficientes para promover, na periferia, os valores do sistema.

    Mas fá-lo, antes de mais, por entender que as situações de enriquecimento sem causa não

    devem ter lugar. Os objetivos do sistema levam a que não se requeiram, aqui, os requisitos

    subjetivos que animaram a responsabilidade civil. Todavia, a ideia básica mantém-se: ideal seriaque, num momento prévio, as pessoas se coibissem de promover enriquecimentos injustos à

    custa alheia. Afigura-se haver aqui um espaço para a aplicação da ideia de ilicitude imperfeita.

    Trata-se de um especial esquema pelo qual o Direito procura aperfeiçoar as condutas humanas

    sem imediatas utilizações de normas de imposição e de proibição. O enriquecimento funciona

    quando (e porque) num momento prévio, foi inobservada uma regra objetiva que o vedava. Esta

    dimensão fica reforçada com a aplicação recente, já sublinhada, do enriquecimento sem causa

    na tutela dos bens de personalidade. Falamos em «ilicitude imperfeita» por se tratar de uma

    situação despida de elementos subjetivos. A ilicitude verdadeira (perfeita) pressupõe um ato

    humano (logo, voluntário), contrário a uma regra jurídica; aqui não se atenta nessa dimensão

    mas, apenas, no resultado. Todavia, pelas consequências, verifica-se que está, sempre e só, emcausa a valoração das atuações humanas.

    21.º - Requisitos gerais

    Generalidades: no exame dos requisitos gerais do enriquecimento sem causa, há que partir do

    artigo 473.º, n.º1, do Código Civil. Impõe-se, todavia, algumas precisões preliminares. Desde

    logo, a própria ideia de requisitos gerais parece contraditória com a corrente, dominante na

    doutrina alemã, e, entre nós, muito bem representada por Menezes Leitão, que rejeita uma

    ideia unitária de enriquecimento sem causa a favor de uma repartição por figuras distintas, com

    relevo para o enriquecimento por prestação e o enriquecimento por intervenção. Pela nossa

    parte, vamos ultrapassar o problema, com dois considerandos:

    - no Direito português, falta a contraposição alemã entre o enriquecimento por

    prestação e os de “tipo diverso”; ora, queira-se, ou não, foi a partir daqui que Wilburg e von

    Caemmerer avançaram; se é certo que, por via doutrinária, ela não é tão vincada como no

    Direito alemão;

    - ainda no Direito português, existe uma tradição, que remonta a Guilherme Moreira,

    de considerar o enriquecimento sem causa como uma concretização de um princípio geral e não

    como um conglomerado de condictiones; há, pois, que dogmatizar nesta base. O

    enriquecimento sem causa é feito de distinções subtis, que exigem uma precisão elevada delinguagem. Não há generalizações sem justificação: o enriquecimento do artigo 473, n.º1 poderá

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    não ser o do artigo 479.º, como exemplo. O respeito que os civilistas têm pela doutrina alemã

    não deve conduzir a transposições apressadas. O Direito português do enriquecimento é, à

    partida, um sistema híbrido, assente na repetição do indevido napoleónico e no enriquecimento

    germânico. A grande aposta é, dele, fazer um subsistema coerente e operacional, reconhecível

    pelos nossos operadores jurídicos.

    O enriquecimento: à parida, enriquecer traduz o ato e o efeito de obtenção de riqueza, isto é:

    de majorar a situação patrimonial existente. Podem estar em causa as mais distintas posições:

    direitos e deveres de crédito, reais, relativos a bens imateriais e quaisquer outros; incluindo

    meras expectativas. O enriquecimento, mau grado o termo, que é o tradicional, não carece de

    apresentar um valor patrimonial. À partida, tudo o que possa ser objeto de uma obrigação pode

    ser restituído: ou em si ou por equivalente (479.º). Logo, pode ser transferido, criado ou

    majorado, dando azo a um enriquecimento. Coloca-se ainda a questão de saber se o

    enriquecimento deve ser tomado em concreto ou em abstrato. Nestes termos:

    - o enriquecimento em concreto corresponde à efetiva vantagem registada na esfera dobeneficiário;

    - o enriquecido em abstrato equivale ao valor bruto da deslocação patrimonial ou à

    criação de riqueza.

    Pela nossa parte, esta questão prende-se com o tema da obrigação de restituir o enriquecimento:

    não parece adequado tomar, desde já, uma posição. A primeira solução, que é tradicional, tem

    dominado. Contra, manifesta-se Menezes Leitão: o artigo 473.º, n.º1 faria referência a uma

    aquisição específica e não a um incremento patrimonial global. Em comparação com o BGB, o

    Código Vaz Serra escolheu uma fórmula mais vaga, que não aponta qualquer «aquisição

    específica». Quanto à estatuição: «restituir aquilo com que injustamente se locupletou» nãoequivale àquilo que injustamente adquiriu. Salvo o devido respeito, o sentido literal e exegético,

    a ter algum papel, seria precisamente o de depor no sentido do enriquecimento em concreto (a

    «conceção patrimonial») e não em abstrato. O Direito português do enriquecimento ora manda

    atender ao enriquecimento em concreto, ora ao abstrato: ao primeiro, em geral; ao segundo,

    no tocante à repetição do indevido. Trata-se, pois, de uma discussão a haver a propósito dessa

    obrigação. Quanto a requisitos gerais, teremos de encontrar uma fórmula que cubra todas as

    hipóteses. E aí, algo paradoxalmente, só o enriquecimento em abstrato nos pode valer. Estamos

    no Direito das Obrigações, marcado pela relatividade e pela alteridade. O instituto do

    enriquecimento só pode ser ativado quando algo transite de uma pessoa para a outra. Enquanto

    seres humanos, só nos aperceberemos disso através das referidas imagens da criação oumajoração de direitos e da extinção ou minoração de deveres. Um hipotético enriquecimento

    em concreto, que não fosse relacionável com a atuação de outra pessoa, não poderia

    desencadear quaisquer condictiones.

    O empobrecimento (dano); o conteúdo da destinação: de acordo com a tradição nacional,

    cumpre autonomizar a ideia de empobrecimento. Pode falar-se e dano, aplicável ao

    enriquecimento sem causa, mas sem o confundir com o dano da responsabilidade civil. Todavia,

    a não haver qualquer empobrecimento, o Direito não se preocuparia com o tema do

    enriquecimento. A relação que sempre postula o enriquecimento sem causa ocorre entre dois

    polos caracterizados, precisa e respetivamente, por um enriquecimento e um empobrecimento.

    O empobrecimento pode, descritivamente, traduzir-se nas figuras inversas às apontadas apropósito do enriquecimento. Mercê da teoria do conteúdo da destinação, o empobrecimento

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    pode resultar do facto de, certas utilidades destinadas ao visado, serem usadas pelo enriquecido.

    Contabilisticamente, poderá não haver dano, razão pela qual leva a doutrina  –  ou alguma

    doutrina  –  a dispensar o dano como pressuposto do enriquecimento sem causa. Todavia:

    podemos manter o “dano” ou “empobrecimento”, desde que se esclareça que ele tem, aqui, um

    sentido especialmente amplo: mais amplo do que o da responsabilidade civil. De outro modo,não poderemos identificar o titular do direito à restituição. Também aqui se pode suscitar a

    questão de saber se o dano deve ser definido em abstrato ou em concreto. No primeiro caso,

    ele equivale ao valor da transferência patrimonial feita para a esfera do enriquecido; no segundo,

    ele traduzirá o reflexo concreto da operação, no património do empobrecido. Este, pode,

    efetivamente, suportar danos superiores ao valor dela, quando outras vantagens conexas

    desapareceram ou menores (ou até, nenhumas), caso o património tenha características que

    lhe permitem ignorar, em termos valorativos, o destaque ocorrido. A precisa definição do dano

    e do seu cálculo não tem a ver com os pressupostos do enriquecimento mas, antes, com o

    cálculo não tem a ver com os pressupostos do enriquecimento mas, antes, com o cálculo da

    obrigação de restituir o enriquecimento. Ontologicamente, basta-nos o dano em abstrato: adeslocação patrimonial ou o acervo de vantagens que se destinariam ao empobrecido mas que,

    mercê do fenómeno em estudo, surgem na esfera do enriquecido. Não se trata, pois, do “dano”

    técnico que ocorre na responsabilidade civil, nem, tão pouco, de um empobrecimento, no

    sentido comum do termo. Ocorre, desde já, referir a ideia de conteúdo da destinação, como

    categoria própria do enriquecimento sem causa, e que permite explicar o especial sentido que,

    aqui, adquire o “empobrecimento”. O conteúdo da destinação, já intuído por Heck, veio a ser

    apresentado por Wilburg e por Von Caemmerer: precisamente os autores que estão na base da

    autonomização do enriquecimento por intervenção. Enfrentava o seguinte problema: no

    enriquecimento por prestação, o empobrecimento é dado, precisamente, pela efetivação desta;

    mas na intervenção, pode não haver, concretamente, nenhum dano apurado ou apurável. Vementão dizer-se que, no enriquecimento por intervenção, as vantagens que a Ordem Jurídica

    atribuía ao empobrecido, ainda que não concretizadas na esfera deste e, como tal, sem dano

    aparente, foram desviadas para a esfera do enriquecido. Portanto, o “empobrecimento”,

    sempre a tomar em sentido técnico, abrangeria o conteúdo da destinação. Contra a ideia de

    conteúdo da destinação manifestou-se Horst Heinrich Jakob (1964): fundamentalmente

    explicando tratar-se de uma fórmula vazia, incapaz de nos esclarecer sobre os aspetos e jogo. A

    fórmula não é vazia: apenas carecida de um preenchimento com valorações. Ora tais valorações

    advirão, justamente, da concreta situação do “empobrecido” ou da intervenção enriquecedora.

    Esta noção de conteúdo da destinação é especialmente útil no domínio dos bens imateriais,

    onde, justamente, pode ocorrer um aproveitamento por terceiros sem que,  prima facie, se

    retrate um dano do titular. Trata-se de uma matéria que, como 2enriqueciinjusto na falta de

    dano”, tem (com alguma facilidade) vindo a penetrar na literatura italiana. 

    A relação (à custa de outrem): entre o enriquecimento e o empobrecido deve existir uma

    relação. O artigo 473.º, n.º1 exprime-se usando o termo à custa de outrem. A jurisprudência

    alemã fez uma aplicação progressivamente mais lata. No limite, o requisito «à custa de outrem»

    acabaria, mesmo, por ser dispensável:

    - no enriquecimento por prestação porque a prestação tem um autor (Canaris);

    - no enriquecimento por intervenção porque, estando e jogo um (mero) conteúdo da

    destinação, as vantagens do enriquecido não teriam de ocorrer «à custa» de ninguém(Reuter/Martinek).

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    Trata-se de uma orientação de certo modo sufragada, entre nós, por Menezes Leitão, quando

    considera que o empobrecimento nada mais seria do que a imputação do enriquecimento à

    esfera de outra pessoa. Perante a realidade do Código Vaz Serra e tendo em conta os desafios

    que, entre nós, coloca a radicação do enriquecimento sem causa, não vemos vantagem em, a

    poder de abstração, remover o «à custa de» do enriquecimento. Tenha-se presente que essafórmula, além de constar do artigo 473.º, n.º1, a propósito dos requisitos básicos do

    enriquecimento sem causa, ocorre ainda no artigo 479.º, n.º1, justamente no coração do seu

    regime: deve ser restituído:

    «(…) tudo quanto se tenha obtido à custa do empobrecido ou, se a restituição em espécie

    não for possível, o valor correspondente.»

    O Direito do enriquecimento sem causa tem vindo a segregar uma lingagem própria. Os termos

    nele usados desviam-se quer do sentido comum que apresentam, quer mesmo do alcance

    técnico que assumam, no Direito Civil. Isto dito: «à custa de» trata-se de uma proposição

    específica de enriquecimento sem causa, que exprime uma relação entre os futuros credores daobrigação de restituir o enriquecido e o devedor da mesma. Não se pode prescindir dela, sob

    pena de se soçobrar no completo irrealismo. O dado ontológico surge irresistível, de nada

    valendo questionar os termos. Questão diversa é, do nosso ponto de vista, a de saber se deve

    haver uma imediação entre o enriquecimento de uma das partes e o empobrecimento da outra.

    Trata-se de um ponto a ponderar, sem perder de vista as especificidades do Direito português.

    A imediação: a lei emprega, como foi visto a propósito dos requisitos do enriquecimento sem

    causa, a expressão «enriquecer à custa de outrem» (473.º, n.º1). Com base nessa locução, põe-

    se o tema de saber se a relação entre o enriquecido e o empobrecido deve ser direta ou se ela

    pode ser indireta, no sentido de o enriquecimento poder ainda passar pela esfera de terceiros.

    Tradicionalmente, a doutrina entendia que «à custa de» implicava uma ideia de imediação: o

    empobrecido teria de passar, diretamente do empobrecido para o enriquecido. Contra

    manifestou-se doutrina ulterior: se não se exige uma efetiva deslocação patrimonial, qual o

    sentido de uma imediação? Replica outra doutrina: a imediação visa exprimir a ideia de que o

    enriquecimento, obtido à custa do empobrecido, deve chegar ao enriquecido, sem se perder

    por esferas de terceiros. O Código Vaz Serra prevê diversas hipóteses de restituição de

    enriquecimento. Assim:

    - artigo 289.º, n.º2: perante a nulidade de um negócio ou a sua anulação, deve ser

    restituído tudo quanto houver sido prestado; todavia, tendo alguma das partes alienado

    gratuitamente coisa que devesse restituir e não podendo tornar-se efetiva, contra o alienante,a restituição do valor dela, fica o adquirente gratuito obrigado em lugar daquele, mas só na

    medida do seu enriquecimento;

    - artigo 478.º: o que cumpriu obrigação alheia na convicção errónea de estar obrigado

    para com o devedor a cumpri-la não tem a repetição contra o credor mas apenas o direito de

    exigir do devedor exonerado aquilo com que este injustamente se locupletou;

    - artigo 481.º, n.º1: caso o enriquecimento aliene gratuitamente o que devesse restituir,

    fica o adquirente gratuito obrigado em lugar dele, mas só na medida do seu próprio

    enriquecimento;

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    - artigo 616.º, n.º3: o (terceiro) adquirente de boa fé de bens que, mercê da procedência

    de uma ação pauliana, devesse ser restituídos ao credor, só responde na medida do seu

    enriquecimento.

    Temos aqui, duas situações diferentes:- a das alienações gratuitas do enriquecimento (289.º, n.º1 e 481.º, n.º1), a que

    poderemos somar o caso da pauliana (616.º, n.º3) que, na prática, irá dar no mesmo: a lei

    desvaloriza o interesse do adquirente gratuito, conectando a sua vontade ao empobrecido;

    - a do pagamento, de boa fé, de dívida de terceiro, o que origina uma relação trilateral

    que o legislador português, na tradição da repetição do indevido, valorou a partir do credor.

    O Direito português parece admitir, assim, as atribuições patrimoniais indiretas. Todavia, uma

    melhor reflexão leva-nos a formular um juízo favorável à imediação, ainda que assente em logica

    diversa. Quando se refere a imediação do enriquecimento, tem-se em vista, de modo mais ou

    menos implícito, uma ideia empírica do fenómeno: haveria como que uma massa patrimonialem trânsito, e uma esfera para a outra. A assim ser, é óbvio que a doutrina da imediação está

    ultrapassada. Mas a ideia deverá ser outra: existe, sim, uma única valoração que permite

    formular um (só ) juízo de enriquecimento entre duas pessoas, ainda que, de permeio, possam

    surgir outras esferas. Um certo enriquecimento pressupõe uma precisa relação jurídica

    (logicamente) entre dois sujeitos. Essa relação é determinada por um juízo de valor que, por

    tradição, se exprime pela locução «à custa de». Nesse sentido, sufragamos a opinião de Canaris,

    que temos, neste ponto, por aplicável no Direito português. No terreno, esse juízo de valor vai

    ter por base a ideia fecunda do conteúdo da destinação. Perante os bens em jogo, perguntar-

    se-á a quem o ordenamento os destina. Se se encontrarem em esfera diversa, o juízo de

    enriquecimento é direto. O seu papel: identificar a relação.

    A falta de causa: o artigo 473.º, n.º1 exige, para o enriquecimento, que este tenha ocorrido

    «sem causa justificativa». O BGB visa a mesma realidade referindo «sem fundamento jurídico»,

    enquanto o Código Italiano prefere «sem justa causa». Trata-se de um conceito considerado,

    entre nós, como especialmente controvertido ou como o mais indeterminado. As dificuldades

    prendem-se com dois pontos:

    - o de fazer (re)intervir, a propósito da falta de causa, toda a problemática ligada à

    unidade ou diversidade do enriquecimento e, ainda, a problemática do «à custa de»;

    - a de (re)colocar, aqui, o controverso tema da causa do contrato, com alguns

    alargamentos.

    Um dos modernos critérios da viabilidade de quaisquer esquemas explicativos é o da sua

    praticabilidade. Tratar o enriquecimento sem causa em termos de tão grande complexidade que,

    na prática, ele só seja acessível a especialistas na matéria, escapando aos operadores jurídicos,

    é elaborar um metadiscurso sem verdadeira dimensão jurídica. Na doutrina alemã, a «falta de

    fundamento jurídico» tem-se prestado às seguintes considerações: haveria que distinguir entre

    o enriquecimento por prestação e o enriquecimento por intervenção; no primeiro teríamos

    teorias objetivistas, pelas quais o fundamento seria a relação jurídica subjacente e teorias

    subjetivistas, que reconduziriam o fundamento à obtenção do fim pretendido com ela; no

    segundo, a falta de fundamento radicaria na carência normativa bastante e/ou na nãoverificação dos pressupostos da aquisição de boa fé. O tema pode ser enriquecido com o debate

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    sobre a própria prestação e sobre o papel que, nela, tenham os elementos finais da ação. Saber

    se um determinado estado de coisas (para o caso, um “enriquecimento”) tem causa justificativa

    é questão que não cabe ao Direito do enriquecimento sem causa responder. Sobre esse tema,

    são convocadas as áreas normativas concretamente visadas: uma intuição de von Caemmerer,

    que deve ser enfatizada. Uma prestação não terá «causa justificativa» quando não advenha denenhuma fonte ou de nenhuma fonte válida e, ainda, quando, não obstante, o Direito não perita

    a sua retenção. Só antecipando todo o regime do Direito das obrigações será possível ir mais

    longe. Por seu turno, uma intervenção andará falha de causa justificativa quando corresponda

    à inobservância das normas aplicáveis na área da distribuição dos bens onde o problema se

    ponha ou, pela positiva: quando não tenha a cobertura das competentes regras aplicáveis. Desta

    feita, ir mais longe implicaria antecipar todo um regime de Direitos reais e do Direito sobre os

    bens imateriais além das áreas conexas. Na verdade, a «causa» é, fundamentalmente, a fonte,

    numa afirmação que podemos extrapolar para o enriquecimento por intervenção. Assim, a falta

    de causa é a inaplicabilidade de uma norma (ou princípio) que legitime a aquisição. Cada setor

     jurídico dirá, perante a concreta situação em jogo, se existe, ou não, tal fonte de legitimação.Mantemos a nossa intuição de juventude a qual não é vaga: antes é remissiva, uma vez que não

    compete, caso a caso, quando é que certa atribuição tem cobertura jurídico normativa. Não se

    confunde com a falta de «causa justificativa» a verificação das concretas condictiones

    exemplificadas no artigo 473.º, n.º2:

    - o que for indevidamente recebido;

    - o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir;

    - ou em virtude de um efeito que não se verificou.

    Desde logo, a própria lei remete tais condictiones para a determinação do objeto da obrigaçãode restituir. Elas abrangem todos os elementos: o enriquecimento, o empobrecimento, o «à

    custa de« e a falta de causa. Assim não poderia deixar de ser, dada, desde logo a sua origem

    histórica: na época romana clássica, elas eram autossuficientes, não havendo qualquer princípio

    eficaz que a todos cobrisse. Será conveniente examiná-las como modalidades do

    enriquecimento sem causa no seu todo e não, apenas, como hipóteses de falta de causa.

    Finalmente: a falta de causa justificativa tanto abrange as hipóteses de ausência inicial de

    «causa» como de supressão ulterior da mesma causa. Caberá agora à concreta disciplina em

     jogo explicitar se, consumadas uma transferência ou uma intervenção legítima, é possível,

    supervenientemente e com eficácia retroativa, suprimir a fonte que a tanto tenha conduzido.

    22.º - A obrigação de restituir

    Aspetos gerais; o dever primário: verificados os pressupostos do enriquecimento sem causa,

    surge uma obrigação específica: a obrigação de restituir o enriquecimento. Trata-se de uma

    obrigação que segue as normas genéricas, salvo a presença de regras específicas que introduzam

    desvios. Entre as normas genéricas estão as estruturais: haverá uma prestação principal,

    eventualmente acompanhada de prestações secundárias e dos deveres acessórios que ao caso

    caibam (762.º, n.º2). A obrigação vence-se com a interpelação, observando-se os preceitos

    comuns quanto ao tempo e ao lugar da prestação, quanto às legitimidades ativa e passiva e

    quanto à sua imputação. O papel do instituto do enriquecimento sem causa é o de gerar uma

    obrigação. Várias vezes temos prevenido quanto à tentação de, a propósito de cada tema

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    atinente ao enriquecimento sem causa, reabrir a discussão sobre a sua (não)unidade, as suas

    articulações e as vias de concretização. Teremos de considerar adquiridas as construções já

    obtidas e avançar a partir delas: ou lograremos um tipo de discurso ao qual os agentes do Direito

    são alheios. Quanto à doutrina alemã: fundamental, especialmente nesta área, para a

    investigação, ela deve ceder perante as realidades do Direito português, sob pena de novosirrealismos. Isto dito, cumpre sublinhar o ponto de partida: o dever primário derivado de

    qualquer enriquecimento sem causa é o de restituir o concreto objeto em jogo, isto é, a coisa

    adquirida sem causa. O primado da restituição natural impõe-se perante a imagem da

    responsabilidade civil (566.º, n.º1) e, ainda, por ser o mais simples e o mais justo. Como veremos,

    calcular o influxo de um enriquecimento num património, teoricamente fácil, coloca, na prática,

    problemas que não têm solução. Aquilo com que alguém enriquece é com o que recebe sem

    causa: será isso que,  prima facie, deverá restituir. Além disso, o artigo 473.º, n.º1, assente no

    pensamento de Vaz Serra, favorável à restituição natural, estabelece de modo claro: o

    enriquecido deve restituir «aquilo com que injustamente se locupletou». Ora, em português,

    «aquilo» configura um objeto preciso e não uma abstração. Estando em jogo uma coisa fungível,o enriquecido deverá restituir nos termos gerais, algo de equivalente: assim sucederá,

    designadamente, quando esteja em causa dinheiro.

    As medidas de enriquecimento e de empobrecimento: passando ao terreno, como definir

    e precisar, em termos dogmaticamente operacionais, o enriquecimento e o empobrecimento?

    Importa, antes de mais, fixar a terminologia, mantendo, quanto possível, os hábitos de

    linguagem já adquiridos pelos operadores jurídicos. Temos, usando as fórmulas preconizadas

    pelo Professor Pereira Coelho:

    - o enriquecimento em abstrato: corresponde ao valor do  quid  que tenha passado do

    património do empobrecido, para o do enriquecido;

    - o enriquecimento em concreto: equivale à vantagem patrimonial efetiva sentida pelo

    enriquecido: pode ser equivalente ao enriquecimento em abstrato, designadamente quando se

    trate de dinheiro; mas pode ser superior, quando, no património enriquecido, gere mais valias

    ou inferior, quando, por razões concretas, perca, aí, algum do seu valor;

    - o dano ou empobrecimento em abstrato: traduz o valor do quid  que saiu do património

    do empobrecido: equivalerá, pelo menos no enriquecimento por prestação, ao enriquecimento

    em abstrato;

    - o dano ou empobrecimento em concreto: exprime a desvantagem global sentida pelo

    empobrecido; também aqui tenderá a equivaler ao dano em abstrato: mas pode ser maiorquando a operação provoque danos ou desvalorizações colaterais ou menor quando a brecha

    tenha sido colmatada, total ou parcialmente, pelos particularismos existentes. As categorias

    referidas são objetivas: não têm em conta as condutas que assumam ou possam assumir os

    intervenientes, limitando-se a alinhar cálculos matematicamente comprováveis. Mas elas

    podem ser subjetivadas ou, se se quiser, colocadas na pendência de atuações hipotéticas. Ou

    seja: em termos subjetivos, os enriquecimento e empobrecimento serão, em abstrato, sempre

    iguais e equivalentes à deslocação patrimonial registada: em concreto, o enriquecimento

    dependerá da diferença entre uma situação hipotética que se teria gerado se não fosse a

    deslocação e a situação concretamente existente, com ele; e também subjetivamente e em

    concreto, o dano ou empobrecimento vai equivaler à diferença entre a situação real resultanteda saída patrimonial e a situação hipotética que existiria se nada tem sucedido. Ainda no plano

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    terminológico, podemos ultrapassar questões específicas colocadas pelo enriquecimento por

    intervenção. Aí, vai faltar uma deslocação objetiva que nos dê os valores abstratos do

    enriquecimento e do empobrecimento.

    As teorias do duplo limite e a sua evolução: o enriquecimento sem causa tem, como foireferido, uma carga negativa. Todavia, ele não comporta elementos subjetivos (a intenção de

    violar a lei, perpetrando um facto ilícito) nem éticos (a culpa) que lhe permitam associar, aos

    factos ocorridos, um dever de indemnizar. No seu sentido próprio: o de assacar ao enriquecido

    a obrigação de ter de reconstituir, in natura ou por compensação pecuniária, como exige o artigo

    562.º, a situação que existiria se não fosse a prevaricação. O enriquecido deve, apenas, restituir

    «aquilo com que injustamente se locupletou». Em espécie ou e dinheiro? O artigo 479.º, n.º1

    manda que seja em espécie ou, se ela não for possível, o valor correspondente. Possível? Tudo

    é possível, dependendo dos gastos. O termo deve sofrer uma interpretação sistemática,

    complementando-se, à luz do artigo 566.º, n.º1, e por maioria de razão: a restituição opera em

    valor sempre que a restituição em espécie seja demasiado onerosa para o devedor. «Aquilo com

    que o enriquecido injustamente se locupletou» pode ser superior ou inferior ao dano do

    empobrecido. Se for superior e a restituição for total, o empobrecido passa a enriquecido sem

    causa; se for inferior e a restituição se quedar pelo dano, o enriquecido mantém um certo

    enriquecimento, mas não à custa alheia, já que ninguém fica com danos; e se for inferior e a

    restituição se quedar pelo enriquecimento, o empobrecido vai manter um certo dano, mas não

    por alguém se ter enriquecido à sua custa. O Direito positivo tem, aqui, uma palavra a dizer.

    Podemos, desde já, invocar o artigo 479.º. As alíneas do artigo 480.º - a) e b)  –  referem,

    respetivamente:

    - ter o enriquecido sido citado judicialmente para a restituição;

    - ter ele conhecimento da falta de causa do seu enriquecimento ou da falta do efeito

    que se pretendia obter com a prestação.

    Em suma, temos, para a obrigação de restituir o enriquecimento, um duplo limite:

    - deve ser restituído todo o enriquecimento (1.º limite);

    - (mas) desde que obtido à custa do empobrecido, isto é, nos limites do dano deste (2.º

    limite).

    Na base temos de lidar com o enriquecimento em abstrato e com o dano e abstrato: é esse o

    fator a restituir, se não houver elementos coadjuvantes ou complementadores. Este aspeto é

    empolado por alguma doutrina, com relevo para Canaris. Estudando, a partir da História, o risco

    envolvido, Flume entende que se deve ponderar o enriquecimento concretamente registado na

    esfera do enriquecido. Assim, quando se prove que o enriquecido teve uma vantagem concreta

    superior à deslocação, esta deverá ser tida em conta: a restituição envolverá, como primeiro

    limite, o enriquecimento em concreto. Por seu turno, também o dano (o empobrecido) foi

    objeto de aprofundamento. Na base do Direito comparado, autores como Walter Wilburg

    verificaram que não estaria apenas em jogo o valor da deslocação (o dano em abstrato) mas,

    antes a sua efetiva dimensão, traduzida em todas as vantagens que lhe caberiam, mas que foram

    distraídas. Esta orientação parece muito operacional perante o enriquecimento por intervenção.

    Há, aí, que recorrer à ideia de conteúdo da destinação, já nossa conhecida.

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    O Direito vigente; o terceiro limite: o conhecimento da doutrinado duplo limite e o da susa

    evolução são importantes: ela ficou consagrada no Código Civil, como resulta do acima

    transposto artigo 479.º. Mas como orientá-la, perante as várias hipóteses possíveis? A

    orientação tradicional (Galvão Telles) trabalhava com o enriquecimento em concreto e com o

    dano em concreto: deveria ser restituída a efetiva projeção patrimonial do enriquecimento (1.ºlimite), no necessário para preencher o dano, também na sua realidade patrimonial (2.º limite).

    Depois foi-se mais longe, na sequência do estudo de Pereira coelho. O dano em concreto seria

    insuficiente para encontrar soluções justas, particularmente nos casos de intervenção em que

    não se apurassem quebras patrimoniais na esfera do empobrecido. Jogaria, então, uma versão

    melhorada que faz apelo à teoria do conteúdo da destinação: o dano (em concreto) seria dado

    não pela diferença patrimonial antes e depois da deslocação ou da intervenção patrimoniais,

    mas pelo círculo das vantagens que, sendo atribuídas, pela lei, ao empobrecido, foram desviadas

    para a do enriquecido. Assim pensam autores como Antunes Varela e Almeida Costa. Pela nossa

    parte, propendemos para um triplo limite. Menezes Leitão entende que não há regras gerais,

    sendo necessário, perante cada modalidade de enriquecimento, verificar quais os limites.Passemos ao Código Vaz Serra e ao Direito português desenvolvido à sua sombra, voltando a

    focar que não é idêntico ao alemão. Não perdemos de vista que a solução primária, funcional

    sempre que, pela prova e pelo Direito aplicável, não se componha outra, é a da restituição do

    quid transferido, isto é, do enriquecimento em abstrato, que coincide com o empobrecimento,

    também em abstrato. O Código exige a restituição do enriquecimento (473.º, n.º1: aquilo com

    que injustamente se locupletou; 479.º, n.º1: tudo quanto se tenha obtido). Ora,

    independentemente mesmo do agravamento estatuído no artigo 480.º, «tudo» não é, apenas,

    o valor abstrato que tenha acedido ao seu património; antes será o acréscimo real de valor

    derivado do sucedido. O primeiro limite da obrigação de restituir o enriquecimento será, pois, o

    enriquecimento em concreto. Caberá ao enriquecido provar que este é inferior ao abstrato e,ao empobrecido, provar o intenso. Quando ao dano, temos os seguintes elementos: releva o

    enriquecer à custa de, restituindo-se aquilo com que o enriquecido injustamente se locupletou

    (473.º, n.º1); deve ser restituído tudo quanto se tenha obtido à custa do empobrecido (479.º,

    n.º1). Bastará o dano em abstrato? Teremos, pois, de atender ao conteúdo da destinação, mas

    que foram distraídas para o enriquecido. Ou seja: o dano computa-se em abstrato, mas de modo

    a atender ao conteúdo da destinação. Haverá, pois, que restituir o enriquecimento em concreto

    (1.º limite), até ao montante do dano em abstrato (2.º limite). Mas não chega. Pode suceder que

    o empobrecido tenha sofrido um dano concreto superior ao dano abstrato dado pela doutrina

    do duplo limite, simples ou melhorada com o conteúdo da destinação. E pode ainda suceder

    que, nessa eventualidade, o enriquecido tenha faturado um enriquecimento real ou superior a

    qualquer dano em abstrato levaria a que o empobrecido mantivesse um dano real e o

    enriquecido um enriquecimento também efetivo, sempre obtido à custa daquele. Cabe

    rendermo-nos à evidência: os limites são, de facto três: deve ser restituído o enriquecimento

    em concreto (1.º limite) até ao dano em abstrato (2.º limite) ou em concreto (3.º limite),

    consoante o que se mostre mais elevado. Trata-se da solução que propusemos há anos e que,

    até hoje, não foi contraditada. Quando se fala no enriquecimento em concreto, obtido à custa

    do dano concreto ou abstrato, tem-se em vista uma casualidade. Apenas por esse via se poderá

    associar um certo enriquecimento a determinado dano. Tal causalidade terá de obedecer a uma

    lógica de adequação naturalística: um certo enriquecimento terá a ver com determinado dano

    quando, pelas regras da experiência, seja a causa adequada e normal deste último. Afastamos,

    com isso, causalidades anómalas, que se prendem com situações hipotéticas. O enriquecimentosem causa trabalha, no terreno, com situações reais. Isso implica afastar cenários subjetivos ou

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    hipotéticos, que nos levavam a comparar, em vez de patrimónios (reais) antes e depois do

    enriquecimento, um património real antes do enriquecimento e um património hipotético

    depois dele, património esse no qual fosse possível inserir o produto de causalidades anómalas

    (ainda que, porventura, demonstráveis) ou de decisões totalmente individuais. Não temos

    qualquer base legal que nos leve a transferir, para o enriquecido (ou para o empobrecido) riscosque não tenham a ver com a causalidade normal.

    A subsidiariedade: o artigo 474.º do Código Civil dispõe nos seguintes e precisos termos, sob

    a epígrafe «natureza subsidiária da obrigação»:

    «Não há lugar à restituição por enriquecimento, quando a lei facultar ao empobrecido

    outro meio de ser indemnizado ou restituído, negar o direito à restituição ou atribuição outros

    efeitos ao enriquecimento».

    A natureza subsidiária da obrigação de restituir o enriquecimento adveio, modernamente, do

    Direito jurisprudencial francês: o arrêt Boudier  admitiu o enriquecimento sem causa em termosde total generalidade, que provocaram, depois, uma chuva de ações; houve que emendar a mão;

    e nessa linha, o arrêt Clayette veio, com puros fitos restritivos, afirmar a ideia de subsidiariedade.

    No Direito português anterior a 1966, a subsidiariedade veio a ser admitida por nítida influência

    francesa e, ainda, com o argumento seguinte: o enriquecimento sem causa equivaleria a um

    princípio geral não previsto, expressamente, na lei e, por isso, só aplicável, por via do artigo 16.º

    do Código Seabra, para integrar lacunas. Logicamente: estas só existiriam quando nenhuma

    outra norma fosse aplicável. Esta orientação obteve algum acolhimento jurisprudencial.

    Aquando da preparação do Código Civil, Vaz Serra, tendo ponderado o assunto, tomou posição

    expressa favorável à não subsidiariedade. A orientação foi, todavia, invertida na segunda revisão

    ministerial, ao que parece por influência italiana. A generalidade da doutrina lamenta essa

    inversão legislativa, para a qual não se encontra uma justificação razoável. Pelo contrário: como

    adiantámos, ela vai contra a lógica do Direito Civil. Com efeito, estamos numa área de liberdade

    e de autonomia privada, especialmente no Direito das obrigações. O Direito põe os diversos

    institutos à disposição das partes. Não se entende porque razão, numa conjuntura que reúna,

    em simultâneo, os requisitos do enriquecimento sem causa e os de outros institutos, não

    poderão, os interessados, eleger aquele que, no seu juízo pessoal, mais lhe convenha. As

    habituais invocações de insegurança, a procederem, jogarão contra quem invoque o

    enriquecimento: as dúvidas conduzem, consabida e comprovadamente, à não aplicação dos

    institutos. O artigo 474.º contraria, pois, o espirito geral do Direito civil. Além disso, ele é

    dogmaticamente inapropriado, em face do instituto do enriquecimento sem causa: este, além

    de um princípio geral, analisa-se em concretas proposições de enriquecimento que se traduzemem “outros efeitos ao enriquecimento”, os quais são ressalvados por esse mesmo preceito.

    Queda uma interpretação restritiva:

    - o artigo 474.º aplica-se, apenas, perante o princípio geral do não enriquecimento;

    - e ainda então o preceito em jogo apenas funciona quando todos os efeitos do

    enriquecimento se mostrem integralmente cobertos pelo instituto concorrente;

    - havendo outro remédio e caso ele não possa ser usado (por caducidade, como

    exemplo), renasce a possibilidade de recorrer ao enriquecimento sem causa.

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    Apesar de algumas das anunciadas proposições terem o apoio da jurisprudência, esta não pode

    deixar de ter em conta o questionado artigo 474.º. E nessa medida, nega o remédio ex

    condictione sempre que se perfile outra saída, que cubra os interesses em presença.

    O agravamento da obrigação: o artigo 480.º prevê o agravamento da obrigação de restituiro enriquecimento. Consiste tal agravamento em o obrigado à restituição, além do dever de

    restituição, fixado nos termos gerais, passar a responder, também:

    - pelo perecimento ou deterioração culposa da coisa;

    - pelos frutos que, por sua culpa, deixem de ser percebidos;

    - pelos juros legais das quantias a que o empobrecido tiver direito.

    E isso sucede logo que o enriquecido:

    a) 

    Tenha sido judicialmente citado para a restituição; ou

    b) 

    Tenha conhecimento da falta de causa do seu enriquecimento ou da falta do efeitoque se pretendia obter com a prestação.

    Trata-se de um preceito inspirado no §819 BGB e que visa proteger o empobrecido cotra

    enriquecidos de má fé. Quanto ao mecanismo do agravamento, no Direito português, temos

    uma aparente desconexão com o artigo 479.º, n.º1: segundo este preceito, quando a restituição

    em espécie não seja possível, há que recorrer à restituição em valor e isso independentemente

    de se verificarem as previsões que levam ao agravamento. Para quê vir dizer que (apenas)

    perante o agravamento em causa há responsabilidade pelo perecimento ou deterioração da

    coisa e, ainda então, quando sejam culposos? E explicação será a seguinte: o enriquecido

    responde pelo enriquecimento in concreto. Logo, o artigo 479.º, n.º1 só funciona quando,

    apesar de a restituição em espécie não ser possível, o enriquecimento se mantiver na esfera. Se,

    todavia, por qualquer circunstancia, o enriquecimento se perder, de tal modo que, no momento

    em que devesse surgir a obrigação de restituição (que deve ser invocada, já que, antes disso,

    apenas há um direito potestativo de a fazer surgir), não haja enriquecimento, não há restituição.

    Mas não será assim se houver agravamento. Nessa altura, o enriquecido não responde, “apenas”

    se no momento em que for invocado o enriquecimento, este (ainda) existir; responde, mesmo

    que já não exista que tenha perdido o valor ou de tenha deteriorado. O agravamento da

    obrigação funciona de modo a cobrir danos ou menos valias provocados com “culpa”. Esta

    traduz, aqui, a censura subsequente à violação dos bens em jogo ou à inobservância de deveres

    de cuidado que ao caso caibam. Além disso, funciona apenas depois da citação judicial do

    enriquecido, para a restituição ou após ele ter conhecimento da falta de causa do

    enriquecimento ou da falta do efeito que se pretendia obter com a prestação. Temos, pois, um

     juízo global de desvalor, embora não de ilicitude e culpa, no sentido em que esses conceitos se

    usam, na responsabilidade civil. Fundamentalmente, o preceito visa:

    - compelir o enriquecido, que já saiba ir ter de devolver o enriquecimento, a ter cuidado,

    de modo a não o desvalorizar;

    - pôr o empobrecido ao abrigo de delongas ou de manobras que ponham em crise o

    valor que a Ordem Jurídica lhe atribui.

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    O artigo 480.º tem sido, na prática, utilizado sobretudo para contar juros legais a favor do

    empobrecido, após a citação. Tais juros serão civis ou, quando estejam implicadas empresas ou

    atos mercantis, comerciais.

    A prescrição: o artigo 482.º fixa, para a obrigação de restituição por enriquecimento sem causa,um regime especial de prescrição. Trata-se de um regime paralelo ao do artigo 498.º, para a

    obrigação de indemnização e que cumpre explicar em termos analíticos. Reunidos os requisitos

    legais, o beneficiário tem o direito potestativo de invocar o enriquecimento sem causa: desde

    que, atualmente, tenha conhecimento desse direito e da pessoa do responsável: esse direito,

    uma vez constituído, prescreve em três anos. Isto dito, temos duas situações:

    - o direito de prevalecer-se do enriquecimento sem causa, independentemente de, pelo

    seu conhecimento e pelo do responsável, se ter constituído o direito potestativo de exigir a

    restituição: prescreve em viste anos, a contar desde o enriquecimento (482.º, in fine);

    - o direito de crédito ao enriquecimento, depois de exercido o direito potestativo de ofazer surgir: prescreve em vinte anos a contar do exercício do direito potestativo em causa

    (309.º).

    Podemos reter algumas proposições judiciais esclarecedoras, quanto ao funcionamento deste

    instituto. Assim:

    - quem, perante a invocação de um direito de restituição, alegue a prescrição, deve

    provar o decurso do prazo, articulando os factos pertinentes;

    - o “conhecimento do direito” reporta-se ao “conhecimento dos elementos constitutivos

    do seu direito” e não a um conhecimento abstrato do direito, sendo a partir daí que se contam

    os três anos;

    - o conhecimento deve ser provado em relação aos próprios e não, apenas,

    relativamente aos seus mandatários;

    - num enriquecimento ocasionado por uma união de faco de vinte de seis anos, o prazo

    de prescrição do direito de pedir a restituição de um enriquecimento por ela provocado só se

    inicia com o termo da união;

    - a presença de uma ação que traduza a intenção de pedir a restituição de determinado

    enriquecimento interrompe o prazo de prescrição deste;

    - o decurso do prazo inicia-se com o concreto conhecimento do direito à restituição.

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    O Enriquecimento em Especial

    23.º - A repetição do indevido

    Autonomia histórica e dogmática; modalidades: a repetição do indevido advém da velha

    condictio indebiti . Nessa medida, seria uma modalidade, entre outras, de enriquecimento sem

    causa. O Direito português, por razões históricas já explicadas, que remontam ao Código de

    Napoleão e ao Código de Seabra, conferem-lhe, todavia, uma grande autonomia. Aproxima-se,

    mesmo, do Código italiano, que trata a repetição do indevido como uma fonte autónoma de

    obrigações. Esta contraposição não pode ser entendida sem toda uma pesquisa histórica sendo,

    no nosso entendimento, inviável proceder à transposição da dogmática alemã, que não confere

    tal autonomia à repetição do indevido. Nós próprios, de resto, já sublinhámos a especialautonomia de que a repetição do indevido desfruta, entre nós e à luz do Código Vaz Serra. A

    autonomia dogmática da repetição do indevido cifra-se, fundamentalmente, no seguinte:

    - implica, sempre, a realização voluntária de uma prestação (476.º, n.º1); o

    enriquecimento stricto sensu pode advir de intervenção ou, até, de uma prestação involuntária;

    - requer um elemento subjetivo por parte do prestador: a intenção de cumprir uma

    obrigação (idem); o enriquecimento stricto sensu é puramente objetivo;

    - pressupõe um elemento objetivo: a não existência de obrigação no momento da

    prestação; aqui, a proximidade em relação ao enriquecimento stricto sensu é maior, uma vez

    que estamos perante a ausência de «causa justificativa»;

    - comporta uma dogmática sua (476.º, 477.º e 478.º), com regras diferenciadas, de um

    modo geral, perante as que operam no enriquecimento strito sensu;

    - conduz a um regime próprio: a pura e simples restituição da prestação (a sua repetição),

    o que se traduz, em termos de enriquecimento sem causa, num enriquecimento calculado

    (sempre) em abstrato: indiferente às suas projeções, seja na esfera do empobrecido, seja na do

    enriquecido.

    O Direito progride diversificando as soluções. Pode, assim, responder melhor às especificidades

    de cada situação histórica. Na tormenta histórico-cultural que assolou, desde a Antiguidade, asvelhas condictiones, há que salvar os particularismos suscetíveis de conduzir a soluções mais

    equilibradas. O cumprimento, de boa fé, de uma obrigação inexistente merece uma solução

    rápida, eficaz e segura. A repetição do indevido comporta-a. O Código Civil prevê três

    modalidades de repetição do indevido:

    - a indebiti solutio ou cumprimento de uma obrigação inexistente (476.º);

    - o cumprimento de obrigação alheia na convicção de que é própria (477.º);

    - o cumprimento de obrigação alheia na convicção de estar obrigado a cumpri-la (478.º).

     Animus solvendi  e indebitum: os dois grandes requisitos de repetição do indevido requeremalguma atenção: a intenção de cumprir uma obrigação ou animus solvendi  e a inexistência de

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    obrigação cumprida, no momento do cumprimento ou indebitum, também no dito indevido ou

    indebitum objetivo. A intenção de cumprir uma obrigação deixa-se surpreender, com alguma

    facilidade, pela negativa. Quem efetue uma prestação sem tal intenção, das duas uma:

    - ou tem animus donandi , altura em que cumpre seguir o regime da doação;- ou visa enganar o accipiens (a pessoa que recebe a prestação) ou terceiros; neste caso,

    o solvens (a pessoa que presta) não perde, necessariamente, a prestação; mas terá de recorrer

    à cláusula geral de enriquecimento sem causa e isso desde que o artigo 475.º não tenha

    aplicação.

    Cumpre sublinhar que só por abstração podemos referir um animus solvendi . O que, de facto,

    temos é a conduta solutória (o pagamento) livre, feita por um ser humano. Tal conduta tem,

    necessariamente um animus: ou não seria nem conduta, nem humana. Perante um

    cumprimento aferido a uma obrigação, presume-se, nos termos gerais, que ele tem animus

    solvendi . Quem assim não o entenda, deverá prova-lo. Elemento objetivo, que poderá depor no

    sentido de o solvens não ter a intenção de cumprir uma obrigação será o facto de ele conhecer

    a inexistência da mesma. Não se trata, todavia, de um erro tecnicamente relevante, nos termos

    dos artigos 247.º e 251.º, quanto à declaração de vontade. Joga-se, aqui, um sentido mais

    empírico e imediato de desconhecimento da ausência da obrigação, isto é, de não configuração,

    na consciência, da sua inexistência. Sublinhe-se que a lei não exige a desculpabilidade do erro

    do solvens. O artigo 476.º, n.º3 confirma-o: a desculpabilidade só releva perante o cumprimento

    antecipado de uma obrigação efetivamente existente. Porquê? Em face de um “cumprimento”

    de uma obrigação manifesta não existente, caberá ao accipiens não a aceitar. Se aceita, ou está

    de má fé ou, ele próprio naufraga em erro indesculpável. Sujeitá-lo à repetição é de justiça. Põe-

    se, depois, a questão clássica da dúvida: quid iuris se alguém, tendo dúvidas sobre a existência

    de uma obrigação, opta, todavia, por cumpri-la? Verifica-se, depois, que não existia. Hárepetição? Quem cumpra uma obrigação com dúvidas quanto à sua existência fá-lo com animus

    solvendi . Não há, aqui, uma questão de scientia: apenas de vontade. De resto, dúvidas, havê-

    las-á sempre, pelo menos com pessoas que sejam minimamente modestas. Assim, aquele que,

    na dúvida, opta por cumprir, pode lançar mão da repetição do indevido, caso se venha a

    constatar que, afinal, a obrigação não existia. Quanto ao indebitum: o artigo 476.º, n.º1, requer,

    para a repetição do indevido, que a obrigação não exista no momento da prestação. Este

    requisito coloca uma questão complexa: quid iuris se a obrigação não existir por se tratar de um

    negócio nulo ou anulado? Vamos ver.

    O problema dos negócios inválidos: segundo o artigo 289.º, n.º1:«Tanto a declaração de nulidade como a anulação do negócio têm efeito retroativo,

    devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for

     possível, o valor correspondente».

    Este preceito tem natureza de condictio? E como articulá-lo com o artigo 476.º? Recorde-se que

    os contratos resolvidos seguem, igualmente, o regime do artigo 289.º, n.º1 (433.º). De acordo

    com a História e a própria lógica dos institutos, a prestação efetuada para executar um negócio

    anulado não tem fundamento jurídico. Basta que, com ela, o accipiens tenha enriquecido para

    que a condictio indebiti   tivesse aplicação. Ou seja: o enriquecimento sem causa seria a via

    natural para, perante a invalidação de um negócio, fazer reverter quanto houvesse sido prestado.

    Todavia, os sortilégios históricos que têm marcado estes institutos levaram a que, no Direito

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    Francês, a invalidade do negócio afaste a condictio indebiti : as restituições a que houver lugar

    teriam, como fonte, as regras da nulidade e não as do pagamento do indevido. No Direito

    italiano, que merece aqui uma especial atenção por ter servido de fonte inspiradora ao revisor

    ministerial de 1964, faz-se a distinção na base dos precisos regimes em presença. E quanto ao

    Direito português? Devemos partir dos regimes. Temos o quadro seguinte:

    - a restituição por invalidade (anulação ou declaração de nulidade) visa as prestações

    principais envolvidas; podem manter-se as secundárias; na repetição do indevido está em jogo,

    apenas, uma prestação;

    - a restituição por invalidade pode ser pedida no âmbito de uma ação declarativa

    (declaração de nulidade) ou constitutiva (anulação); a repetição do indevido é objeto de uma

    ação de condenação;

    - a restituição por invalidade tem prazos próprios de caducidade (anulação, um ano

    287.º, n.º1) ou opera a todo o tempo (nulidade: 286.º), salvo o prazo geral de prescrição (vinte

    anos: 309.º); a repetição do indevido submete-se ao prazo especial de três anos do artigo 482.º;

    - a restituição por invalidade depende da verificação de alguma das causas legais de

    anulação ou de nulidade; a repetição do indevido exige animus solvendi e indebitum, os quais

    podem não corresponder àquelas.

    Dois outros problemas, invocados pela doutrina, surgem duvidosos. São:

    - a repetição do indevido teria natureza subsidiária (474.º), ao contrário da restituição

    por invalidade;

    - a repetição do indevido submete-se ao regime do agravamento do artigo 480.º, ao

    contrário do que sucederia com a restituição por invalidade.

    A dúvida cifra-se no seguinte: os artigo 474.º e 480.º não são aplicáveis ao enriquecimento sem

    causa stricto sensu; não é seguro que se apliquem à repetição do indevido, que tem valores

    próprios e um imediatismo muito seu. De todo o modo, propendemos, por razões históricas e

    sistemáticas, para a aplicabilidade desses preceitos à própria repetição do indevido. A doutrina

    e a jurisprudência têm-se inclinado para a inaplicabilidade da repetição do indevido aos casos

    em que tenha lugar o funcionamento do artigo 289.º, n.º1. De facto, sendo  –  como são  – 

    diferentes os requisitos das duas figuras, aplicar-se-á uma ou outra, conforme o cenário factual

    em jogo. Na área em que ambas coincidam, a regra da subsidiariedade levará à preterição da

    repetição do indevido. Mas não na parte em que este instituto permita soluções mais favoráveispara o solvens: aí, já não opera o artigo 474.º, como vimos. Não é possível afirmar que a

    repetição do indevido funciona perante negócios inexistentes, e que as regras do artigo 289.º,

    n.º1 em face dos nulos ou anulados. Desde logo, isso conduziria a resultados bizarros, sempre

    que a restituição ex 289.º, n.º1 fosse mais favorável: quem executasse um negócio inexistente

    ficaria pior do que quem cumprisse um negócio nulo ou, meramente, anulado. Finalmente: o

    artigo 476.º, n.º1, reporta-se à inexistência da obrigação e não à de nenhum negócio.

    Prestação a terceiro e prestação antes do vencimento: a prestação deve ser feita ao credor:

    trata-se de uma decorrência natural da relatividade nas obrigações. De outro modo, o credor

    ficaria insatisfeito, enquanto o devedor teria ido beneficiar, sine causa, um terceiro. O artigo

    770.º fixa, assim, a regra básica: a prestação feita a terceiro não extingue a obrigação. Admite,todavia, em obediência a diversos institutos, que ela possa ser liberatória, mesmo quando feita

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    a terceiro. Isto posto: segundo o artigo 476.º, n.º2, a prestação feita a terceiro pode ser repetida

    pelo devedor enquanto não se tornar liberatória, nos termos do artigo 770.º. Este preceito opera

    quando o devedor tenha animus solvendi  mas, por efetuar o pagamento a terceiro fora das

    alíneas do artigo 770.º, não logre liberar-se da obrigação. O artigo 476.º, n.º3, prevê a prestação

    feita por erro desculpável antes do vencimento da obrigação. Pressupõe-se, naturalmente, quea iniciativa do solvendi  não venha, só por si, provocar o vencimento em jogo, como sucede no

    âmbito do artigo 777.º, n.º1. Efetuando o pagamento antecipado, o devedor vai (ou pode)

    beneficiar o credor, atribuindo-lhe uma vantagem que o ordenamento não previu para ele; e

    em paralelo, ele irá (ou poderá) suportar uma desvantagem, também não fixada pelo Direito.

    Todavia, não parece adequado considerar, aí, a ausência de uma obrigação, permitindo a

    repetição pura e simples do solutum: o credor recebe aquilo que lhe é devido, aderindo,

    confiante ao pagamento; além disso, pode piorar a situação do devedor, tornando-se este

    insolvente no momento do pagamento. Tudo visto, o legislador tomou uma opção equilibrada:

    só há lugar a uma obrigação de restituir aquilo com que o credor se enriqueceu, por via do

    pagamento antecipado. E, ainda então: desde que o devedor, ao antecipar o pagamento, tenhaagido « por erro desculpável », isto é: sem violação dos deveres de cuidado que ao caso

    coubessem.

    Cumprimento de obrigação alheia: o cumprimento de obrigação alheia, contemplado nos

    artigos 477.º e 478.º, coloca questões mais delicadas. De facto, o princípio geral é o de que a

    prestação tanto pode ser feita pelo próprio devedor, como por um terceiro (767.º, n.º1). Apenas

    com a ressalva de o credor nãopoder ser constrangido a receber a prestação de terceiro quando

    se tenha expressamente acordado que ela deva ser feita pelo devedor ou quando a substituição

    o prejudique (767.º, n.º2), o que desde logo sucederá sempre que se trate de uma prestação

    não-fungível. A recusa, pelo credor, de uma prestação feita por terceiro vem, depois, regulada

    no artigo 768.º. Sob este pano de fundo, o artigo 477.º dispõe sobre o cumprimento deobrigação alheia, na convicção de que é própria. Sendo o erro desculpável, isto é, havendo erro

    sem violação de deveres de cuidado que no caso se imponham, cabe a repetição do indevido,

    em favor do solvens. Exceto (477.º, n.º1, 2.ª parte) se o credor, desconhecendo o erro do autor

    da prestação:

    - se tiver privado do título ou das garantias do crédito;

    - tiver deixado prescrever ou caducar o seu direito;

    - ou não o tiver exercido contra o devedor ou contra o fiador, enquanto estiverem

    solventes.Não havendo repetição, o autor da prestação fica sub-rogado nos direitos de credor, isto é: passa,

    ele próprio, a credor da obrigação que indevidamente cumpriu e que deverá ser satisfeita pelo

    verdadeiro devedor. Valoração diversa faz o artigo 478.º, na hipótese de o solvens cumprir uma

    obrigação alheia, na convicção de estar obrigado a cumpri-la. Numa situação dessas, o solvens

    ficará empobrecido, já que foi pagar uma obrigação que não era sua e que não estava obrigado

    a cumprir, embora, disso, estivesse convencido. Potencialmente enriquecidos ficam:

    - ou o credor, que surgirá satisfeito, independentemente das áleas que possam atingir o

    verdadeiro devedor;

    - ou o verdadeiro devedor, que verá, sem esforço, efetivado aquilo que a ele competia.

  • 8/19/2019 Menezes Cordeiro - Obrigações II

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    Professor António Menezes Cordeiro

    Tratado de Direito Civil | tomos VII e IX

    Recordemos que a prestação efetuada por terceiro é