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Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. 27 e 28 de outubro de 2009

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Anais do I Seminário de

Graduandos e Pós-Graduandos em

História da Universidade Federal de

Juiz de Fora.

27 e 28 de outubro de 2009

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ISSN: 2317-045X.

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I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da

Universidade Federal de Juiz de Fora

Centro Acadêmico de História

Gestão “Flor no Asfalto” (2009-2010)

Comissão Organizadora:

Felipe Cazetta – mestrando (UFJF)

Heitor Loureiro – graduando 8° período (UFJF)

Luiz Alberto Rezende – graduando 5º período (UFJF)

Luiz César de Sá Júnior – graduando 8º período (UFJF)

Paulo Victor Franco – graduando 5º período (UFJF)

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ISSN: 2317-045X.

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Sumário:

Conferência de Abertura ............................................................. pág. 4

Comunicações ............................................................................. pág. 20

Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da

Universidade Federal de Juiz de Fora. Juiz de Fora, 2010. ISSN: 2317-045X.

409 p.

1-Anais; 2-Seminário de História; 3-Comunicações

Comissão Organizadora:

Felipe Cazetta – mestrando (UFJF)

Heitor Loureiro – graduando 8° período (UFJF)

Luiz Alberto Rezende – graduando 5º período (UFJF)

Luiz César de Sá Júnior – graduando 8º período (UFJF)

Paulo Victor Franco – graduando 5º período (UFJF)

Diagramação e Formatação:

Antonio Gasparetto Júnior

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Conferência de Abertura

O Ofício do Historiador*

Ricardo da Costa**

No início da década de 90, o ex-beatle Paul McCartney (1942- ) e seu antigo

produtor George Martin (1926- ) encontraram-se nos AIR Studios, em Londres.1

Conversaram sobre os velhos tempos e o quanto eles estavam se tornando “velhos

esquisitos”. De repente, eles discordaram a respeito de um detalhe em suas lembranças

sobre os Beatles, quando então caíram em uma gargalhada: “Meu Deus”, disse Martin, “se

não pudermos acertar, quem diabos poderá?”.2

Essa pequena anedota a respeito dos Fab Four ilustra muito bem um dos problemas

centrais da História. O que pensamos ter acontecido realmente aconteceu? Qual é

exatamente o nosso ofício? O quão confiável é o que nós produzimos? E, afinal, o que é a

História?

Essas foram as questões a mim propostas pelo C. A. e o Departamento de História

da UFJF (aqui representado pelo Prof. Angelo Alves Carrara), aos quais eu agradeço

profundamente o convite para a conferência de abertura de seu I Seminário de Graduandos

e Pós-Graduandos. Questões difíceis, tão difíceis, que Peter Burke (1937- ), em uma

recente entrevista a respeito da falta de consenso do que seria uma boa explicação

histórica, afirmou que “...se algo mudou a respeito disso, é que há ainda menos consenso

* Conferência de abertura do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da UFJF,

proferida no dia 27 de outubro de 2009.

** Medievalista e Prof. Associado I da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Acadêmico

correspondente da Reial Acadèmia de Bones Lletres de Barcelona. Site: www.ricardocosta.com 1 Site: www.airstudios.com

2 MARTIN, George. Paz, Amor e Sgt. Pepper. Os bastidores do disco mais importante dos Beatles. Rio

de Janeiro: Relume Dumará, 1995, p. 9.

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que antes”.3 De qualquer modo, arriscar-me-ei a apontar algumas reflexões minhas,

naturalmente, oriundas de meu exercício com aquilo que Carlo Ginzburg (1939- )

chamou de rastros do passado.4

***

A constatação da incerteza quanto ao resultado de uma investigação histórica já

fora percebida há tempos por Arnold Toynbee (1889-1975). Em sua monumental obra

intitulada Um Estudo da História, ele afirmou: “...o pensamento não pode impedir que se

façam violências à realidade no ato de tentar apreendê-la”.5

Essa fundamental insegurança de nosso ofício fez com que, nos últimos anos,

crescessem nas Ciências Humanas o relativismo, o cinismo e o ceticismo (correntes

pertencentes ao que eu designo como pacote pós-moderno, um dos filhos de Maio de 68 e

da crise do marxismo do final da década de sessenta).6 Todas essas formas de

incredulidade foram combatidas por Ginzburg (segundo ele, correntes já em declínio na

Europa)7, que, por sua vez, não teve e não tem nenhum escrúpulo em reiterar sua defesa do

positivismo das fontes (inclusive com suas distorções) e sua crítica (e reparo) a conceitos

ambíguos como, por exemplo, o de representação.8 Para isso, o historiador italiano se vale

especialmente da Filosofia e do resgate de obras clássicas – notadamente de Platão e de

Aristóteles.9

3 BURKE, Peter. “O passado é um país estrangeiro”. Entrevista concedida ao Jornal O Globo e ao

Globo Universidade no dia 16.05.2009. 4 GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros. Verdadeiro, falso, fictício. São Paulo: Companhia das Letras,

2007. 5 TOYNBEE, Arnold. Um Estudo da História. Brasília: UnB; São Paulo: Martins Fontes, 1987, p. 506.

6 “Simplificando ao extremo, considera-se que o pós-modernismo é a incredulidade em relação às

metanarrativas”, LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. Lisboa: Gradiva, 1989, p. 12. 7 Particularmente eficiente é sua defesa na obra Relações de Força. História, Retórica, Prova (São Paulo:

Companhia das Letras, 2002). 8 GINZBURG, Carlo. Olhos de Madeira. Nove reflexões sobre a distância. São Paulo: Companhia das

Letras, 2001, p. 85-103. 9 Esse procedimento já fora realizado por Ginzburg na obra Olhos de Madeira (p. 42-84), supracitada,

mas, sobretudo, em O fio e os rastros.

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Seja como for, a consciência da dificuldade de se recontar o passado por parte dos

historiadores nunca desestimulou as tentativas de construção de conhecimento desse

mesmo passado, nem o constante fascínio causado por esse processo. Desde os processos

de indulto na França moderna analisados por Natalie Zemon Davies (1928- )10

, até os

sermonários e poemas apresentados por Georges Duby (1919-1996) em sua investigação

sobre as mulheres medievais11

, passando pelos milhares de documentos, magnificamente

sondados e interpretados por Fernand Braudel (1902-1985)12

, são inúmeros os

depoimentos dos especialistas de suas maravilhosas estupefações com o que descobrem

com a leitura das fontes.13

As fontes. O contato com elas. Esse é o momento em que o historiador é, de fato,

um verdadeiro artista.14

É quando então consegue o contato direto com os rastros do

passado e tenta, com a “timidez do homem de ciência”, como bem disse Fernando

Domínguez Reboiras (1943- ), “analisar os testemunhos reunidos para elevar sobre eles

conjecturas e uma teoria dentro dos limites da verdade”.15

As fontes e a verdade. A História como arte. Primeiro tratarei das fontes. Para

afirmar sua importância capital na investigação histórica, em um artigo publicado na

Harper’s Magazine, Barbara Tuchman (1912-1989) fez algumas considerações muito

interessantes para as minhas divagações nesse momento, as quais transcrevo a seguir:

10

DAVIES, Natalie Zemon. Histórias de perdão. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. 11

BRAUDEL, Fernand. Civilização Material, Economia e Capitalismo, Séculos XV-XVIII. São Paulo:

Martins Fontes, 1995-1996, 03 volumes. 12

DUBY, Georges. Eva e os padres – Damas do século XII. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. 13

É verdade que poucos são os historiadores brasileiros que fazem essa declaração de amor de fé à

pesquisa arquivística. Por exemplo, na recente obra Conversas com Historiadores Brasileiros

(organizada por José Geraldo Vinci de Moraes, São Paulo: Ed. 34, 2002), quinze eminentes colegas de

profissão são entrevistados, mas preferem discorrer por outros temas, como a política e suas relações

com partidos de esquerda, ou correntes teóricas que os influenciaram. 14

Para Hans-Georg Gadamer (1900-2002), a verdade das ciências humanas “...envolve uma análise da

experiência da arte (...) mais próxima da experiência da verdade como se encontra nas ciências humanas

do que da que é característica das ciências naturais.” – NEVES, Guilherme Pereira das. “História e

Hermenêutica: uma Questão de Método?”, conferência de encerramento do I Seminário Nacional de

História e Historiografia Brasileira, proferida no dia 31 de outubro de 2008 na UERJ. 15

DOMÍNGUEZ REBOIRAS, Fernando. “Introdução”. In: Raimundo Lúlio e as Cruzadas. Rio de

Janeiro: Sétimo Selo, 2009, p. xviii.

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“Nunca pude ver nenhum sentido em referirmo-nos ao vizinho da

universidade ao lado como fonte. Para mim, isso não constitui fonte

nenhuma: quero saber de onde veio, originalmente, um fato, e não

quem o usou pela última vez. Quanto à referência de um livro de

nossa autoria como fonte, isso me parece o cúmulo do absurdo.16

Disseram-me que os alunos são obrigados a citar historiadores secundários

para mostrar que conhecem a bibliografia, mas se eu estivesse distribuindo diplomas,

exigiria conhecimento direto das fontes primárias. As histórias secundárias são

necessárias quando partimos de uma ignorância total de um assunto (...) mas depois

que me colocaram no caminho, prefiro seguir o resto da estrada sozinha. Se eu fosse

professora, reprovaria qualquer aluno que se contentasse em citar uma fonte

secundária como sua referência para um fato.”17

Os problemas que Barbara Tuchman levanta para os EUA da década de sessenta

do século XX são particularmente importantes para o estudo da História em nosso país nos

primeiros anos do século XXI. Isso porque, infelizmente, a maior parte dos historiadores

formados atualmente em nossos cursos sai das universidades após quatro, cinco anos, sem

nunca ter lido um documento de época, o que só acontece, em boa parte dos casos, durante

a pós-graduação. Essa distorção em nossa metodologia de estudo do passado faz com que

habituemo-nos a pensar em termos de autoridade: algo só é válido na medida em que foi

dito por alguém em um posto acadêmico. Ou seja: em nosso país não importa o que se diz,

mas quem diz!

Ora, o argumento da autoridade sempre foi o mais fraco, tanto em um debate

quanto em prova documental. Nesse aspecto, por mais paradoxal que possa parecer, os

16

Curiosamente, há pouco foi lançado um livro organizado por Carla Bassanezi Pinsky intitulado Fontes

Históricas (São Paulo: Editora Contexto, 2009) em que há um ensaio (de Maria de Lourdes Janotti) em

que, ao contrário de Barbara Tuchman, a autora defende que o livro Fontes Históricas pode ser utilizado

como fonte! 17

TUCHMAN, Barbara W. A prática da História. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991, p. 34.

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universitários da Idade Média têm muito a nos ensinar. No distante século XIII, na

Universidade de Paris, os estudantes de Tomás de Aquino (1225-1274) já sabiam, que não

importa quem diz, mas o que se diz: “O argumento de autoridade fundado na razão humana

é o mais débil [dos argumentos]; já o argumento de autoridade fundado na revelação divina

é o mais sólido.”18

Então já se privilegiava a razão, a capacidade argumentativa – e com base em dados

empíricos (inclusive para questões metafísicas, como, por exemplo, as cinco provas de

Tomás para a existência de Deus).19

Por isso, em nosso métier, o conhecimento e a análise

das fontes é – e sempre foi – condição sine qua non para se fazer qualquer afirmativa,

especialmente, para se construir uma sólida narrativa do passado, e não a afirmação da

autoridade!

Construídas a partir da investigação das fontes, nossas narrativas, em que pesem os

silêncios e vácuos, distorções e névoas dos documentos que consultamos, ancora-se

sempre na esperança de que é possível saber, com razoável grau de certeza, o que

aconteceu. Todo historiador que se preza alimenta essa crença: dominar a crítica interna e

externa do(s) documento(s) escolhido(s), para assim poder montar o seu quadro do

passado.

A esse respeito, é notável perceber que a antiga (e clássica) obra de Henri-Irénée

Marrou (1904-1977) Sobre o Conhecimento Histórico20

, ainda seja citada, quando se tem

que criar um verbete como o “Método Histórico” em um Dicionário das Ciências

Históricas!21

E o que Marrou defende tradicionalmente não é muito diferente do que hoje

18

TOMÁS DE AQUINO. Suma de Teología (pres. Damián Byrne, op.), Primeira Parte, Questão 1, Artigo

8, ad 2. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos (BAC), 2001, p. 96. 19

TOMÁS DE AQUINO. Suma contra os gentios. Porto Alegre: Escola Superior de Teologia São

Lourenço de Brindes: Sulina; Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul, 1990, Livro I, Parte I, Cap.

XIII, p. 37-44. 20

MARROU, Henri-Irénée. Sobre o Conhecimento Histórico. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978. 21

DUMOULIN, O. “Método Histórico”. In: BURGUIÈRE, André (org.). Dicionário das Ciências

Históricas. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1993, p. 537-539.

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afirma Ginzburg. Para o italiano, as fontes não são nem janelas escancaradas como

pensavam os positivistas do século XIX, nem muros que impedem a visão, como os céticos

do final do século XX: são espelhos deformantes.22

Basicamente, essa é a mesma tese de Georges Duby23

, que também define nossa

profissão como “uma tentativa da maior aproximação possível da verdade e de suspeição

perante tudo o que pode deformar o testemunho”.24

Por esse motivo, há um ponto em

comum entre historiadores e juízes: ambos se preocupam em definir os fatos.25

Portanto, analisar as deformações das fontes (quando elas as têm) também torna o

conhecimento histórico possível – e, é claro, só se pode pensar em deformação de algo que

era originalmente uniforme – isto é, a verdade da realidade. Christopher Brooke (1927- )

resumiu maravilhosamente bem a base de toda investigação humana: a responsabilidade de

perseguir a verdade!26

Mas o que é a verdade? É o êxito de um procedimento cognoscitivo, no qual se

constrói uma correspondência — por mais difícil e esquiva que seja a verdade daquilo que

oferecem os testemunhos de uma época. Um conhecimento é verdadeiro na medida em que

seu conteúdo concorda com o objeto intencionado, isto é, quando há conformidade entre o

intelecto (do observador) e a coisa (observada).27

Mas também é verdade que apreender a realidade vivida a partir das fontes nunca

foi um trabalho fácil. O verdadeiro historiador constantemente se depara com esse

22

GINZBURG, Carlo. Relações de Força. História, Retórica, Prova, op. cit., p. 44. 23

DUBY, Georges. A História Continua. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor/Editora UFRJ, 1993. 24

DUBY, Georges, e GEREMEK, Bronislaw. Paixões comuns. Conversas com Philippe Sainteny.

Lisboa: Edições Asa, 1993, p. 76. 25

GINZBURG, Carlo. Relações de Força. História, Retórica, Prova, op. cit., p. 62. 26

BROOKE, Christopher. O Casamento na Idade Média. Lisboa: Publicações Europa-América, s/d, p.

16. 27

Segundo Aristóteles, “Isso é evidente pela própria definição do verdadeiro e do falso: falso é dizer que o

ser não é ou que o não-ser é; verdadeiro é dizer que o ser é e que o não-ser não é”, ARISTÓTELES,

Metafísica, IV, 7, 1011 b 25ss., e “As coisas se dizem falsas neste sentido: ou porque não existem, ou

porque a imagem que delas deriva é de algo que não existe” (V, 29, 1024 b, 25). São Paulo: Edições

Loyola, 2005, p. 179 e 261.

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problema diante de si.28

Para os estudos históricos, a verdade deve ser um conceito

relacional: quanto maior o número de comparações evidenciais, maior será a possibilidade

de precisão do resultado. Isso é muito patente nos registros de batalhas feitos pelos dois

lados combatentes. A confrontação de diferentes perspectivas é sempre muito rica, pois

permite matizar e moderar todas as versões.29

Ademais, quando é encontrada, a verdade

costuma causar incômodo – e isso não é privilégio nem das correntes de direita, nem das

de esquerda (por vezes, inclusive, tanto uma quanto a outra fazem o possível para ocultá-

la).

Como a perplexa estupefação dos estudantes de Cirurgia na Lição de Anatomia do

Dr. Tulp (1632) (figura 1), famoso quadro de Rembrandt (1606-1669)30

, a busca da

verdade por parte do historiador é a honesta exposição das vísceras, pequena pedra no

sapato de todos os ideólogos, de todas as ideologias, essas mitologias históricas (expressão

de Eric Hobsbawm [1917- ]31

) que povoam nosso imaginário coletivo globalizado.

Figura 1

28

DUBY, Georges. A História Continua, op. cit., p. 33-42. 29

Em mais de uma oportunidade eu pude realizar esse trabalho de crítica comparativa das fontes: quando

do estudo dos pogroms ocorridos em 1096 na região renana (antes da Primeira Cruzada) – quando

confrontei as informações contidas nas crônicas judaicas e cristãs – e em duas batalhas do rei Afonso

VIII de Castela, pois há registros árabes e cristãos. Para isso ver COSTA, Ricardo da “Então os cruzados

começaram a profanar em nome do pendurado”. Maio sangrento: os pogroms perpetrados em 1096 pelo

conde Emich II von Leiningen (†c. 1138) contra os judeus renanos, segundo as Crônicas Hebraicas e

cristãs”. In: LAUAND, Jean (org.). Filosofia e Educação – Estudos 8. Edição Especial VIII Seminário

Internacional CEMOrOc: Filosofia e Educação. São Paulo: Editora SEMOrOc (Centro de Estudos

Medievais Oriente & Ocidente da Faculdade de Educação da USP), Factash Editora, 2008, p. 35-61, e

COSTA, Ricardo da. “Amor e Crime, Castigo e Redenção na Glória da Cruzada de Reconquista:

Afonso VIII de Castela nas batalhas de Alarcos (1195) e Las Navas de Tolosa (1212)”. In: OLIVEIRA,

Marco A. M. de (org.). Guerras e Imigrações. Campo Grande: Editora da UFMS, 2004, p. 73-94. 30

Tanto a escolha de Rembrandt quanto de Caspar David Friedrich (figura 2) são propositais, pois

ambos possuem características artísticas afins com o método histórico. Por exemplo, Rembrandt

retratava seus temas com gestos dramáticos e vívido tratamento de luz (CHILVERS, Ian [ed.]

Dicionário Oxford de Arte. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 441), e se opunha ao paternalismo de

Rafael e Rubens com cenas realistas de gentalha mal-ajambrada (BELL, Julian. Uma nova História da

Arte. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 246). 31

Hobsbawm afirma que “A História é atualmente revista ou inventada por gente que não deseja o

passado real, mas somente um passado que sirva aos seus objetivos. Estamos hoje na grande época da

mitologia histórica.”. Citado em COSTA, Ricardo da. “Para que serve a História? Para nada...”. In:

Sinais 3, vol. 1, junho/2008. Vitória: UFES, p. 43-70.

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Serenamente exposta pelo historiador, a verdade do passado é como a exposição das

vísceras diante dos olhares atônitos e incrédulos dos estudantes frente às infinitas e

múltiplas possibilidades das sociedades humanas ao longo do tempo. A Lição de Anatomia

do Dr. Tulp (1632), de Rembrandt (óleo em tela, 169,5 × 216,5 cm, Royal Picture Gallery

Mauritshuis).32

Aliás, Hobsbawm é outro que defende com vigor que aquilo que os historiadores

investigam é o real, e que as declarações históricas devem ser baseadas em evidências

comprováveis.33

Portanto, para o historiador, a verdade, a verdade da história, não é nem o

objetivismo puro, nem o subjetivismo radical, e sim, a simultânea apreensão do objeto (o

passado) e a aventura espiritual do sujeito do conhecimento (o historiador).34

32

Site: http://www.mauritshuis.nl. 33

HOBSBAWM, Eric. Sobre História. Ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 8.

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E como o historiador apreende seu objeto para, a seguir, recontá-lo, recriá-lo,

enfim, revivê-lo? Como ele cria essa imagem mental do que aconteceu e, ao narrá-la, se

torna esse artista do passado? É fundamental que ele se reconheça no texto, que tente se

ver espelhado no que lê, que se transporte para o espírito daquela época e compartilhe o

que Marc Bloch (1886-1944) chamou de experiência comum de humanidade, entre ele e

seu objeto.35

Nesse breve instante de imaginação consciente, ele quase se encontra, no ritmo do

texto, em uma certa sintonia, que nada mais é do que o tempo comum entre ambos: trata-se

de uma espécie de hiato temporal criado pela sua leitura36

, quando então partilha

historicamente algo dos sentimentos, dos pensamentos e das perspectivas do passado, e

sente o anacronismo para chegar à diacronia.

Fazer História, dessa forma sensitiva, sensível, é compreender existencialmente.37

E

a imaginação é uma artística e ativa parte desse processo histórico-mental, mas não uma

imaginação em devaneio, porém, delimitada precisamente pelo passado que chegou até nós

pelas fontes. É o que Duby afirma peremptória e belissimamente: “Imaginemos. É o que os

historiadores sempre se vêem obrigados a fazer. Seu papel é o de recolher vestígios, os

traços deixados pelos homens do passado, de estabelecer, de criticar escrupulosamente um

testemunho.”38

34

MARROU, Henri-Irénée. Sobre o Conhecimento Histórico, op. cit., p. 184. 35

“Marc Bloch já havia percebido a necessidade de existência, tanto na natureza quanto nas sociedades

humanas, de um fundo permanente por trás da passagem do tempo, pois sem esse pano de fundo

existencial que damos o nome de humanidade, os próprios nomes homem e sociedade não teriam

qualquer significado”. COSTA, Ricardo da. “O conhecimento histórico e a compreensão do passado: o

historiador e a arqueologia das palavras”. In: ZIERER, Adriana (coord.). Revista Outros Tempos. São

Luís, Universidade Estadual do Maranhão (UEMA), volume 1, 2004. Bloch afirma isso na clássica obra

Introdução à História (Lisboa: Publicações Europa-América, 1997, p. 99). 36

SCHUBACK, Márcia Sá Cavalcante. Para ler os medievais. Ensaio de hermenêutica imaginativa.

Petrópolis: Editora Vozes, 2000, p. 19-33. 37

KOSELLECK, Reinhart, GADAMER, Hans-Georg. Historia y hermenêutica. Barcelona: Ediciones

Paidós Ibérica, 1997, p. 69. 38

DUBY, Georges. A Europa na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 1988, p. 1.

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Munido espiritualmente desse preparo compreensivo, o historiador sai à procura da

caça humana39

, à procura do passado, como O Caçador na Floresta (1814) do pintor

romântico alemão Caspar David Friedrich (1774-1840) (figura 2).40

Solitário e vulnerável,

ele sabe que a História será tão ameaçadoramente impenetrável como a imponente parede

de pinheiros à sua frente, caso ele, como um corajoso soldado prussiano, não se muna de

todo esse aparato reflexivo e, por alguns momentos, abandone o seu efêmero presente (que

aqui pode ser metaforizado como o minúsculo e sombrio corvo empoleirado no tronco

cortado) e torne-o destroços atrás de si.41

Só assim, em seus escombros mentais do

presente, o historiador poderá tatear o passado e encontrar a melhor perspectiva possível

para descrever sua contemplação temporal.

John Lewis Gaddis (1941- ) já havia percebido as possibilidades interpretativas de

se utilizar a pintura de Caspar David Friedrich como metáfora para explicar como os

historiadores mapeiam o passado.42

39

A frase, muito famosa, de Marc Bloch, é: “O bom historiador se parece com o ogro da lenda. Onde

farejar carne humana, sabe que ali está a sua caça”, Apologia da História ou O Ofício do Historiador.

Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, p. 54). 40

Friedrich é considerado um dos gênios mais originais de toda a história da pintura de paisagens. O uso

de seus quadros como visualização do ofício do historiador é notável: ele baseava-se na contemplação

profunda para conceber mentalmente as imagens expressas em suas telas. CHILVERS, Ian (ed.)

Dicionário Oxford de Arte, op. cit., p. 201. Por exemplo, um de seus quadros é descrito por um

especialista como “um vislumbre do eterno devir” (BELL, Julian. Uma nova História da Arte, op. cit.,

307). 41

A solidão do soldado e o caráter ameaçador da floresta foram interpretados por Simon Schama.

Paisagem e Memória. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 114-116. 42

GADDIS, John Lewis. Paisagens da História. Como os historiadores mapeiam o passado. Rio de

Janeiro: Campus, 2003.

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Figura 2

A vasta e imponente imensidão do passado diante da pequenez e pobreza do presente.

Entre ambos, o solitário e corajoso historiador, que pretende penetrar mata adentro,

munido com suas armas compreensivas. Nesse caso, o encontro do Historiador com a

História será como o do filósofo estóico Sêneca (4 a.C. – 65 d.C.) com a divindade,

exatamente no seio da floresta: “Sem a divindade, ninguém pode ser um homem de bem

(...) Se penetrares num bosque cheio de velhas árvores, de altura fora do comum e tais que

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a densidade dos ramos entrelaçados uns nos outros oculta a vista do céu, a própria

grandeza do arvoredo, a solidão do lugar, a visão magnífica dessa sombra tão densa e

contínua no meio da planura, tudo te fará sentir a presença divina.”, Cartas a Lucílio, 41,

3.43

O caçador na floresta (1813/1814), 65,7 x 46,7 cm. Coleção particular.

Umberto Eco (1932- ) definiu o estilo do pintor alemão como a poética das

montanhas, e o que disse a esse respeito – um viajante que sempre se sente fascinado por

rochas inacessíveis, glaciares sem fim, abismos sem fundo, extensões sem limite – também

é uma admirável analogia da relação entre o historiador e a História, o viajante e as

paisagens de sua viagem.44

Por sua vez, Simon Schama (1945- ) se valeu maravilhosamente bem da arte para

explicar o modo de olhar o que já possuímos, mas que nos escapa ao reconhecimento e

apreciação.45

E a História não será sempre essa constante e renovada exploração

apreciativa do passado que insiste em escapar à nossa compreensão?

***

Caso o historiador explore os vestígios do passado com aquela curiosidade

determinada, eleve o seu espírito, amplie sua experiência, vislumbre e interrogue

incisivamente a paisagem do tempo que se descortina à sua frente através dos documentos,

e a reapresente aos seus contemporâneos com o lirismo e a verdade, a riqueza e a

dramaticidade que as sociedades passadas e seus mortos o exigem, será um agradável e

consciente viajante contemplativo, e saberá explorar todas as possibilidades de sua

interpretação histórica. Terá, enfim, alcançado a maturidade da consciência histórica.46

Será um Historiador.

43

LÚCIO ANEU SÉNECA. Cartas a Lucílio. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007, p. 141. 44

ECO, Umberto. Historia de la Belleza. Barcelona: Editorial Lumen, 2004, p. 282. 45

SCHAMA, Simon. Paisagem e Memória, op. cit. 46

O significado da maturidade nas relações humanas é, para Gaddis, o reconhecimento da identidade pelo

caminho da insignificância: “...eu definiria a consciência histórica como a projeção dessa maturidade ao

longo do tempo”, GADDIS, John Lewis. Paisagens da História, op. cit., p. 19-20.

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Caso contrário, estará fadado a ser um mero e provinciano ideólogo, representante

do último modismo acadêmico, e a desaparecer nas pobres brumas de sua insignificância.

Será um historiador.47

Este pequeno trabalho é dedicado ao querido

mestre Guilherme Pereira das Neves

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Grande: Editora da UFMS, 2004, p. 73-94.

47

Agradeço sobremaneira a leitura crítica feita pelos amigos Stan Stein e Armando Alexandre dos Santos.

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Comunicações:

Experiência Mutualista em Juiz de Fora: a Associação Beneficente dos Irmãos

Artistas (1908-1950).

Antonio Gasparetto*

RESUMO: Este artigo desenvolve um estudo de caso sobre associativismo urbano em Juiz

de Fora na primeira metade do século XX. A Associação Beneficente dos Irmãos Artistas

foi uma das maiores e mais influentes mutuais existentes na cidade e na região. Essa

observação mostra como tais instituições foram importantes no desenvolvimento da cultura

cívica e associativa no país.

PALAVRAS-CHAVE: Mutualismo; Associativismo; Associação Beneficente dos Irmãos

Artistas

ABSTRACT: This article is a study of case about urban’s associativism in Juiz de Fora,

first half of century XX. The “Associação Beneficente dos Irmãos Artistas” was one of the

bigger and most influentials that existing in this city and region. That look shows how

these institutions were importants for development of civicals and associativist culture in

Brazil.

KEYWORDS: Mutualism; Associativism; Associação Beneficente dos Irmãos Artistas

Introdução

* Graduando em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora.

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O fenômeno mutualista foi muito marcante no Brasil na primeira metade do século

XX, espalhou-se por várias regiões do país oferecendo uma alternativa de organização de

trabalhadores. Esse movimento possibilitou o florescer de uma cultura de classe, em

simultaneidade com a ação dos sindicatos, e também de uma cultura civil, despertando

para o conhecimento público as deficiências do Estado nas políticas públicas de

assistência.

Em Minas Gerais os estudos sobre o associativismo urbano, no que diz respeito

especialmente às associações mutualistas, estão começando a tomar corpo. Procurando

engrossar a quantidade de informações e as reflexões sobre o tema no estado, o presente

artigo busca inserir Juiz de Fora na discussão através do estudo do caso de uma das

maiores e mais influentes mutuais do município, a Associação Beneficente dos Irmãos

Artistas.

A associação em questão funcionou em Juiz de Fora durante praticamente

cinqüenta anos, nos quais promoveu uma consciência organizativa nos trabalhadores

através de seus preceitos de promoção de espaços de sociabilidade, lazer e de amparo para

seus associados. A Associação Beneficente dos Irmãos Artistas se relacionou abertamente

com outras mutuais, com sindicatos e com órgãos públicos. Esse leque amistoso de

relacionamentos a possibilitou grande notoriedade na região, recebendo doações,

conquistando benefícios, estabelecendo contato e até mesmo tendo como associado o

presidente do estado de Minas Gerais, Antônio Carlos.

Este artigo faz parte de uma série de estudos que vem sendo realizados sobre

mutualismo e a própria associação em Juiz de Fora. Trata-se de uma prévia de um trabalho

de mais fôlego a ser publicado sobre as movimentações sociais na cidade.

O Fenômeno Mutualista

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Ao longo do tempo a classe trabalhadora foi se consolidando e organizando através

de diferentes formas de manifestações de resistência. Assim como ocorreu em outras partes

do mundo, é importante abrirmos os olhos para o que se desenvolvia em território

brasileiro e aflorarmos as maneiras pelas quais os trabalhadores encontraram para se

organizarem. Uma das vias que permitiu a estruturação de uma classe em busca de

melhores condições sociais se apresenta através das experiências associativas mutualistas,

que serviu muito bem para o processo de consolidação da cidadania no Brasil.

O fenômeno mutualista coexistiu com outras formas de organização dos

trabalhadores, com notificação especial para os sindicatos. Assim, antes de se pressupor

uma evolução dos movimentos associativos deixamos claro que o fenômeno associativo foi

simultâneo ao movimento sindical, logo, abre-se o caminho para as variadas formas de

relação encontradas entre as mutuais e as sociedades de resistência. O mutualismo,

entretanto, caminhou mais proximamente das irmandades e associações filantrópicas

constituindo passos iniciais para a organização da sociedade civil brasileira.

O princípio das mutuais era oferecer algum suporte e amparo social, integrando os

trabalhadores através de espaços de sociabilidade e lazer para seus membros. Dessa forma,

suas atividades podem ter influenciado para a cultura cívica brasileira, organizando a

sociedade civil para consolidar as estruturas necessárias da cidadania.

É ainda nas décadas finais do século XIX que as associações mutualistas começam

a se proliferar. Ronaldo de Jesus identifica vários casos no Brasil Imperial e encontra

elementos de trabalhismo e corporativismo, que seriam típicos das primeiras décadas do

século XX, já em 185748

. Até 1940 as mutuais apareceram e tiveram grande destaque na

48

JESUS, Ronaldo Pereira. História e historiografia do fenômeno associativo no Brasil monárquico (1860-

1887). In: Nomes e Números: alternativas metodológicas para a história econômica e social. Carla Maria

Carvalho de Almeida & Mônica Ribeiro de Oliveira (Orgs). Juiz de Fora: Editora UFJF, 2006.

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sociedade brasileira, mas segundo Cláudia Viscardi “o progressivo esvaziamento das

mutuais se dá na medida em que o Estado vai chamando a si responsabilidades no campo

da seguridade pública” 49

. Mas anteriormente a isso ainda, Abram Swaan argumenta que

quem primeiro roubou o espaço das mutuais foram as seguradoras, munidas de maior

organização e com uma estruturação profissional50

. De todo modo, somando-se as duas

coisas, os anos 1940 apontam mesmo para a derrocada de tais associações.

As mutuais brasileiras eram muito diversificadas, mas reuniam o que Ronaldo de

Jesus chama de “gente comum” 51

. Em recente estudo desenvolvido juntamente com

Cláudia Viscardi, levantou-se que as categorias mais freqüentes das mutuais em Minas

Gerais eram as associações de ofício, filantrópicas, literárias e de lazer, étnicas e as

seguradoras52

. Embora as associações fossem ambientes para união de trabalhadores, pode-

se perceber que pelo próprio fato de se ramificarem em tantas categorias acabavam

exercendo também um papel de exclusão. Certas fronteiras formalizadas impediam o

acesso a algumas mutuais de determinados grupos, além disso, para atender as

necessidades de uma mutual, era preciso que o indivíduo possuísse uma renda mínima para

cumprir com os encargos e que o permitisse dispensar tempo com os trabalhos em sua

associação. Um pobre dependente de salário dificilmente teria tempo e condições para

tantas responsabilidades. Assumir a presidência de uma mutual era algo que dependia de

muito esforço e trabalho, sem haver remuneração para tal cargo, a recompensa obtida por

tanta dedicação ligava-se a uma questão de status social. Devido à representatividade

social das mutuais em seu período de apogeu, os frutos que se poderiam colher socialmente

49

VISCARDI, Cláudia Maria Ribeiro. Mutualismo e Filantropia. In: Lócus – Revista de História. Juiz de

Fora: EDUFJF, 2004, Vol. 10, Nº. 1. P. 107. 50

SWAAN, Abram. In Care of The State: health care, education and welfare in Europe and the USA in the

modern era. Cambridge: Polity Press, 1988. P. 283. 51

JESUS, Ronaldo Pereira. Op. Cit. P. 287 52

VISCARDI, Cláudia & GASPARETTO, Antonio. O Mutualismo em Juiz de Fora: as experiências da

Associação Beneficente dos Irmãos Artistas. In: À Margem do Caminho Novo. Cláudia Viscardi e Mônica

Ribeiro (Orgs.) (Prelo).

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eram notáveis, esse é talvez o grande motivo pelo qual determinados membros ocupavam o

cargo de presidente da associação por tantos anos. Cláudia Viscardi sintetiza bem essa

questão:

As lideranças raramente eram pobres ou analfabetas. Muitas se

mantinham indefinidamente no poder. Não porque quisessem, mas,

na maioria das vezes, por não disporem de concorrentes.

Permanecer na direção soava como ônus, um preço alto que deveria

ser pago pelo bem coletivo. 53

Entre as atividades promovidas pelas mutuais estavam as festas. De acordo com

Mary Clawson as festividades faziam parte do arsenal simbólico das associações, que

provinham em grande parte da Maçonaria54

. Quanto aos socorros, ofereciam financiamento

para funerais pensões para viúvas, auxilio para viagens ao exterior, cobertura para

acidentes de trabalho, compra de remédios, entre várias outras possibilidades. “O grau de

cobertura dependia dos recursos disponíveis pela associação, que estavam diretamente

relacionados ao número e ao poder aquisitivo dos sócios” 55

, como comentam Cláudia

Viscardi e Ronaldo de Jesus.

Como as atividades das mutuais procuravam suprir as lacunas do Estado, em

muitos casos os presidentes de algumas associações recorriam ao poder público para

conseguir recursos. Entretanto, representantes do poder público alegavam serem as mutuais

de caráter privado e, em geral, nada faziam. Era mais comum o oferecimento de verbas

para organizações filantrópicas que, todavia, tinham demandas muito semelhantes. Na

verdade não havia uma noção clara na cabeça dos governantes que diferenciasse

53

VISCARDI, Cláudia Maria Ribeiro. As experiências mutualistas de Minas Gerais: um ensaio

interpretativo. In: Nomes e Números: alternativas metodológicas para a história econômica e social. Carla

Maria Carvalho de Almeida & Mônica Ribeiro de Oliveira (Orgs). Juiz de Fora: Editora UFJF, 2006. P. 309 54

CLAWSON, Mary A. A Constructing Brotherhood: class, gender and fraternalism. Princeton University

Press, 1989. 55

VISCARDI, Cláudia Maria Ribeiro & JESUS, Ronaldo Pereira. A experiência mutualista e a formação da

classe trabalhadora no Brasil. In: A Formação das Tradições (1889-1945). Col. As Esquerdas no Brasil, Vol.

1. Jorge Ferreira (Organizador). P. 26.

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mutualismo e filantropia56

, o que favoreceu também para que estas tenham sobrevivido em

maior número do que as primeiras até hoje.

Grande parte das mutuais não tinha interesse em se envolver com a política, a

preocupação se dava mais no oferecimento de sociabilidade e lazer para os membros, tanto

que muitas se auto-definiam como organizações cooperativas de amparo aos trabalhadores

em situações de doença57

. No caso das associações étnicas o interesse se dava em manter

determinada identidade cultural de um povo, tratava-se de um espaço onde os imigrantes

poderiam viver em conformidade com suas raízes.

Na grande maioria prevaleciam associados do sexo masculino com uma faixa etária

média entre 15 e 55 anos, pressupondo-se uma renda suficiente para arcar com as

mensalidades cobradas. Em Juiz de Fora as mais numerosas eram as associações de ofício,

uma vez que houve concentração de pequenas manufaturas e fábricas agregando grande

número de trabalhadores no município. Nesse sentido, faremos uma abordagem de uma das

maiores e mais influentes associações mutualistas de ofício existente em Juiz de Fora na

primeira metade do século XX, a Associação Beneficente dos Irmãos Artistas.

Associação Beneficente dos Irmãos Artistas

A Associação Beneficente dos Irmãos Artistas foi fundada em Juiz de Fora no dia

15 de maio de 1908, com 25 sócios. Em seu estatuto58

já determinava que fosse composta

de um número limitado de sócios, seguindo um mesmo princípio encontrado em outros

56

Sobre a questão de mutualismo e filantropia ver VISCARDI, Cláudia Maria Ribeiro. Mutualismo e

Filantropia. In: Lócus – Revista de História. Juiz de Fora: Departamento de História/ Pós-Graduação em

História/ EDUFJF, 2004, Vol. 10, Nº. 1. 57

VISCARDI, Cláudia Maria Ribeiro. As experiências mutualistas de Minas Gerais: um ensaio

interpretativo. In: Nomes e Números: alternativas metodológicas para a história econômica e social. Carla

Maria Carvalho de Almeida & Mônica Ribeiro de Oliveira (Organizadoras). Juiz de Fora: Editora UFJF,

2006. 58

Segue uma série de informações retiradas diretamente dos estatutos encontrados no Arquivo Histórico da

Universidade Federal de Juiz de Fora.

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países59

, mas neste caso sem distinção de nacionalidades. Definia-se, como a grande

maioria das associações, como uma organização cooperativa que ofereceria amparo aos

membros. Para os associados que estivessem em dia com as obrigações da Associação

eram conferidos socorros nos casos de moléstia, desastre ou invalidez e auxílio para o

funeral daqueles que morressem em pobreza. A Associação dos Irmãos Artistas contava

com médicos e contas em farmácias para sustentar a necessidade de medicamentos. Mas os

socorros tinham suas particularidades e dependiam da condição que o associado ocupava

dentro da Associação, para avaliar os tipos de ajuda, em casos de doenças mais graves, o

conselho administrativo dispensava atenção maior para dar o parecer necessário.

A administração da Associação Beneficente dor Irmãos Artistas cabia a um

conselho administrativo composto de doze membros, onde seis possuíam cargos

designados. Constava de um presidente, um primeiro secretário, um segundo secretário,

um tesoureiro, um procurador e os seis conselheiros. Eram eleitos para ocupar os cargos no

período de um ano administrativo, que segundo o estatuto se encerrava a cada dia 15 de

maio. Para auxiliar o conselho em suas funções, eram nomeadas, logo na primeira reunião,

comissões de sindicância e beneficência, composta por três membros cada, além de um

conselho fiscal composto por outros três membros.

A Assembléia Geral era o órgão máximo da Associação Beneficente dos Irmãos

Artistas. Tratava-se de reuniões de todos os sócios quites e era convocada pelo presidente

do conselho administrativo por meio de jornais impressos de maior circulação na cidade.

Nela se definiam todas as questões da Associação: eleições do conselho administrativo e

do conselho fiscal; julgar os atos do conselho, discutir e resolver questões submetidas à sua

decisão; decidir a reclamação dos sócios; revogar deliberações do conselho quando

contrárias ao estatuto; promulgar medidas necessárias para o desenvolvimento social;

59

JESUS, Ronaldo Pereira. Op. Cit. P. 291

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dissolver o conselho em todo ou em parte quando for para o bem da Associação e alterar

ou reformar o estatuto.

Assumir o cargo de presidente era uma função fatigante e poucos tinham interesse e

condições para exercê-lo. No caso da Associação dos Irmãos Artistas um nome

permaneceu no cargo por grande parte de sua existência, Antonio Scanapieco. Este se

tornou um individuo fortemente associado à mutual, assumiu o cargo em maior de 1921 e

permaneceu até 1938. Foi responsável pela liderança da Associação na maior parte do

período de apogeu das mutuais na cidade e também no início da fase de queda. Em seu

lugar entrou José Teixeira da Silva Sobrinho que não deu conta do momento de crise pelo

qual passavam as mutuais, enfrentando uma redução significativa do número de associados

e conseqüentes crises orçamentárias. Segundo relatórios da Associação percebe-se que a

administração de José Teixeira da Silva Sobrinho foi muito conturbada e incompetente

durante os sete anos em que esteve na liderança. Para tentar superar a delicada situação em

que estava a mutual, Antonio Scanapieco foi eleito novamente presidente em 1945 e

permaneceu no cargo até a fusão da Associação dos Irmãos Artistas com outra mutual, que

terminou resultando em seu fim60

.

A construção da sede era objeto de grande desejo das mutuais em geral, não foi

diferente com a Associação dos Irmãos Artistas. Já no ano seguinte a fundação da

Associação, 1909, foi adquirido um terreno na Avenida Rio Branco, região bem central da

cidade. Para construção do prédio da sede foi necessário tomar empréstimo, até ficar

pronto a Associação funcionava em uma sala alugada da loja maçônica Fidelidade Mineira.

Várias foram as ações promovidas entre os sócios para auxiliar nos gastos com a

construção, recebendo inclusive doações financeiras de grandes políticos regionais da

60

De acordo com cartas, relatórios de reuniões e ofícios da mutual encontrados no Arquivo Histórico da

Universidade Federal de Juiz de Fora.

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época. Com muito esforço e após muito tempo de arrecadação de recursos a sede ficou

pronta, foi inaugurada no dia 7 de outubro de 1927.

A Associação admitia sócios nacionais e estrangeiros que tivessem ocupação

honesta e bons costumes. Exigia-se que não tivessem defeito físico, doenças crônicas ou

incuráveis, ter entre 15 e 55 anos e deveria obrigatoriamente ser proposto por um

associado. Quando aceitos, os associados se dividiam em fundadores, contribuintes,

remidos, honorários, beneméritos, benfeitores e protetores. A cada uma dessas categorias

cabiam condições especiais, mensalidades com valores diferenciados, posições sociais

diferenciadas, regalias, direitos e deveres. Por exemplo, segundo Cláudia Viscardi e

Ronaldo Jesus:

Os chamados beneméritos eram os que despendiam contribuições

significativas para a associação e não precisavam usufruir as

benesses conferidas aos demais associados. A vantagem residia no

status ou no reforço de seu poder junto à comunidade. Na

Associação Beneficente dos Irmãos Artistas, o líder político e

depois presidente do estado, Antônio Carlos, constava como sócio

protetor pelo fato de ter doado significativas quantias para a

Associação. Na Associação dos Irmãos Artistas, quando algum

sócio ilustre falecia, sua foto ficava permanentemente exposta na

sede, ou uma das salas recebia o nome do falecido benemérito, sem

contar as sessões especiais que eram programadas em homenagem

aos protetores da Associação. Todo ritual de enaltecimento era

prerrogativa apenas dos grandes doadores, como forma de realçar

seu poder sobre a comunidade. 61

De acordo com levantamentos feitos, o perfil dos sócios aponta para um destaque

de profissionais urbanos. Ente eles apareciam principalmente indivíduos do setor de

serviços e assalariados industriais. Acreditamos que o número médio de sócios durante

toda a existência da mutual tenha sido entre 250 e 300 associados. Em conformidade com

61

VISCARDI, Cláudia Maria Ribeiro & JESUS, Ronaldo Pereira. A experiência mutualista e a formação da

classe trabalhadora no Brasil. In: A Formação das Tradições (1889-1945). Col. As Esquerdas no Brasil, Vol.

1. Jorge Ferreira (Organizador). P. 29.

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os relatórios anuais da Associação encontrados, sabe-se que no período de finalização e

após a entrega da sede houve um momento de crescimento por causa da visualidade

conquistada. Por outro lado, a progressiva ação do Estado no campo das políticas públicas

durante o governo de Getúlio Vargas causou um declínio no número de associados62

.

Quanto às nacionalidades, apareciam sobrenomes portugueses, italianos, alemães e judeus,

nesta respectiva ordem de quantidade. A análise dos sobrenomes pode apresentar sutilezas

quanto à nacionalidade efetiva do indivíduo, mas de toda forma demonstra uma forma de

constituição da Associação.

Era comum a realização de festivais para captações de recursos extras para a

Associação e para promoção de espaços diversificados de sociabilidade entre os associados

da mutual e também com associados de outras mutuais. Comumente também se dava o

relacionamento com movimentos sindicais, embora a Associação dos Irmãos Artistas se

declarasse apenas como provedora de amparo, sociabilidade e lazer para seus associados.

Na verdade, a Associação tinha relações amistosas com sindicatos, órgãos públicos, outras

mutuais, imprensa e agentes econômicos locais. O que trazia muitos benefícios para a

mutual.

A Associação Beneficente dos Irmãos Artistas colocava-se de

forma ambígua em relação à política. Participou de congressos

operários nacionais, frequentemente reunia-se com uma associação

de resistência da cidade vizinha em caráter festivo, mas reafirmava

sempre seu caráter exclusivamente beneficente. 63

62

VISCARDI, Cláudia & GASPARETTO, Antonio. O Mutualismo em Juiz de Fora: as experiências da

Associação Beneficente dos Irmãos Artistas. In: À Margem do Caminho Novo. Cláudia Viscardi e Mônica

Ribeiro (orgs.) (Prelo). 63

VISCARDI, Cláudia Maria Ribeiro. As experiências mutualistas de Minas Gerais: um ensaio

interpretativo. In: Nomes e Números: alternativas metodológicas para a história econômica e social. Carla

Maria Carvalho de Almeida & Mônica Ribeiro de Oliveira (Organizadoras). Juiz de Fora: Editora UFJF,

2006. P. 308-309

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A partir da metade de década de 1930 a Associação dos Irmãos Artistas enfrentou

consideráveis problemas. Já na década de 1920 as mutuais em geral enfrentaram um

balanço causado pelo aparecimento das seguradoras, que infiltravam a competição no lugar

da cooperação, mas esse momento foi superado e foi possível que as associações

continuassem gozando de estabilidade. Entretanto, na década seguinte, com a ação do

Estado no campo das políticas públicas e o progressivo melhoramento das condições

sociais e de vida implementadas durante o governo de Getúlio Vargas, a procura pelas

mutuais caiu drasticamente. O momento mais crítico dessa fase foi enfrentado por José

Teixeira da Silva Sobrinho, na liderança da Associação, que se deparou com uma grave

crise no número de associados e também financeira. Antonio Scanapieco voltou a assumir

a presidência da Associação em 1945 acusando as administrações anteriores de

incompetência e irresponsabilidade na condução da mutual, mas ele também não teria mais

condições de levar a Associação de volta aos tempos áureos. Scanapieco tentou adotar

várias medidas mais radicais para reerguer a mutual, chegou inclusive a convocar uma

Assembléia Geral para se legitimar um novo estatuto que estivesse adaptado aos novos

tempos. Este foi reformado e promulgado em 5 de junho de 1947, mas não mudaria em

muita coisa o caminho que apontavam as condições do momento.

Muito endividada, com número de sócios em progressiva queda e falta de

perspectiva de crescimento, a Associação Beneficente dos Irmãos Artistas tentou fugir do

naufrágio completo fundindo-se com outras mutuais, conseguiu finalmente, após vários

fracassos, em 1950 fundir-se com a Associação Ítalo-Brasileira Anita Garibaldi, uma

associação cultural que oferecia serviços jurídicos e dentários para seus associados que

havia sido fundada em março de 194664

. Levou para a Associação Anita Garibaldi todos

64

CHRISTO, Maraliz. Italianos: trabalho, enriquecimento e exclusão. In: Solidariedades e Conflitos:

histórias de vida e trajetórias de grupos em Juiz de Fora. Célia Maia Borges (organizadora). Juiz de Fora:

Editora UFJF, 2000. P. 160

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seus sócios e suas dívidas, mas deixou estabelecido em contrato a manutenção dos direitos

de seus associados.

Conclusão

A Associação Beneficente dos Irmãos Artistas expressa muito bem os caminhos

seguidos por várias outras associações mutualistas não só em Minas Gerais, mas como em

todas as regiões do país. As práticas e ações apresentadas dessa associação demonstram o

seu tipo de inserção na sociedade, abordando o relacionamento com o poder público e

organizações de resistências dos trabalhadores. Ilustra como as associações tinham sua

representatividade no dia a dia do Brasil.

Nesse sentido, associações como a dos Irmãos Artistas ofereceram para os

trabalhadores espaços sociais que permitiram o acúmulo da experiência associativa, de

vivências administrativas, de experimentos jurídicos, de debate político, de comunicação

de várias formas, contato com as autoridades e eventos de festividade. Todo esse arsenal de

situações favoreceu na formação de uma cultura cívica, oferecendo espaços de

consolidação de consciência dos trabalhadores, o que foi fundamental para a organização

da sociedade civil brasileira.

As mutuais eram, ao mesmo tempo, organizações de direito privado, que

cultivavam valores de autonomia, agiam com propriedade para resolver seus próprios

problemas através do auxilio mutuo, promovendo a troca de favores e situações que

enalteciam determinados indivíduos; e eram também espaços de exclusão bem

determinados, que prezavam pela masculinidade – embora tenham sido encontradas fichas

de registro de mulheres, mas que pode ser um indício do desespero na busca por novos

associados no período de declínio da Associação –, exigiam a boa saúde para aceitação no

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grupo, indivíduos que tivessem reconhecida moral e bons costumes, mas principalmente

que possuíssem uma renda fixa advinda de um trabalho qualificado e que fosse capaz de

suprir as exigências e responsabilidades com a instituição. Assim, as associações

mutualistas, como foi expresso aqui através do caso da Associação Beneficente dos Irmãos

Artistas em Juiz de Fora, eram ambientes que propagavam interesses de um grupo bem

específico, defendendo sua autonomia e promovendo os mais representativos nomes e ao

mesmo tempo excluindo pobres e durante muito tempo as mulheres.

Mesmo considerando as ambigüidades e os desafios e dificuldades enfrentados

pelas associações, é de se notar o importante serviço prestado por tais organizações à

cultura cívica e à construção da cidadania no país.

Referências Bibliográficas

CHRISTO, Maraliz. Italianos: trabalho, enriquecimento e exclusão. In: Solidariedades e

Conflitos: histórias de vida e trajetórias de grupos em Juiz de Fora. Célia Maia Borges

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(Organizadoras). Juiz de Fora: Editora UFJF, 2006.

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33

__________, Cláudia Maria Ribeiro. Mutualismo e Filantropia. In: Lócus – Revista de

História. Juiz de Fora: Departamento de História/ Pós-Graduação em História/ EDUFJF,

2004, Vol. 10, Nº. 1.

VISCARDI, Cláudia & GASPARETTO, Antonio. O Mutualismo em Juiz de Fora: as

experiências da Associação Beneficente dos Irmãos Artistas. In: À Margem do Caminho

Novo. Cláudia Viscardi e Mônica Ribeiro (orgs.) (Prelo).

VISCARDI, Cláudia Maria Ribeiro & JESUS, Ronaldo Pereira. A experiência mutualista e

a formação da classe trabalhadora no Brasil. In: A Formação das Tradições (1889-1945).

Col. As Esquerdas no Brasil, Vol. 1. Jorge Ferreira (Organizador).

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Filantropia e Mutualismo: afinidades e diferenças65

Camila Pereira Martins66

RESUMO: Este artigo parte da pesquisa bibliográfica para analisar comparativamente o

mutualismo e a filantropia entre os anos de 1860 e 1930, período anterior a plena expansão

das relações capitalistas de troca, o que leva ao debate sobre o conceito de reciprocidade. O

motivo desta comparação é identificar afinidades e diferenças existentes entre as práticas

da filantropia e do mutualismo, de acordo com o conjunto de valores predominantes nas

associações.

PALAVRAS-CHAVE: reciprocidade, filantropia, mutualismo.

ABSTRACT: I review the literature for comparative analysis of the mutualism and

philanthropy in the years 1860 and 1930, a period prior to the full development of capitalist

relations of exchange, which leads the debate on the concept of reciprocity. The reason this

comparison is to identify affinities and differences between the practices of philanthropy

and mutualism, in accordance with the set of values prevailing in the associations.

KEYWORDS: reciprocity, philanthropy, mutualism.

INTRODUÇÃO

O presente texto trata-se de um estudo comparativo acerca de dois fenômenos

associativos: mutualismo e filantropia. Esta comparação será feita com o objetivo de

estudar as associações filantrópicas e mutuais brasileiras entre os anos de 1860 e 1930,

65

Artigo desenvolvido no âmbito de pesquisa do LAHPS através de uma bolsa PIBIC. 66

Graduanda de História da Universidade Federal de Juiz de Fora.

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para identificar as afinidades e diferenças existentes entre as práticas da filantropia e do

mutualismo de acordo com o conjunto de valores predominantes nas associações a partir

da visão que os seus próprios contemporâneos possuíam sobre seu papel social67

. Para

tanto, a partir das fontes secundárias pesquisadas, será feita uma breve introdução sobre o

desenvolvimento histórico das duas práticas associativas no Brasil. Em seguida faremos

um debate teórico sobre o conceito de reciprocidade baseada nas ações de dar, receber e

contra-doar, para enfim descrevermos estes dois fenômenos associativos, analisando como

a reciprocidade é praticada nessas associações, com quais intenções são feitas as doações e

como a associação funciona nesses processos.

ASSOCIAÇÕES MUTUAIS E FILANTRÓPICAS

As ações filantrópicas de caráter privado tiveram início no Brasil na segunda

metade do século XVI com a transposição das Irmandades de Misericórdia de Lisboa para

a colônia, sendo elas responsáveis pelo atendimento da saúde de grande parte da população

brasileira. Acompanhando o processo de progressiva ocupação do território brasileiro tais

iniciativas tiveram considerável proliferação nos séculos XVII e XVIII ampliando a

inserção da Igreja Católica no Brasil, mas é no século XIX que a filantropia se ampliará

consideravelmente68

. Com a separação do Estado da Igreja, realizada na Constituição 1891,

a Igreja passa a ver nas Santas Casas de Misericórdia a possibilidade de uma expansão

compensatória em relação a uma possível perda de adeptos69

.

67

VISCARDI, Cláudia M. R. e JESUS, Ronaldo Pereira de. Associações Mutualistas e Filantrópicas:

estudos comparativos. (mimeo), 2007. 68

VISCARDI, Cláudia M. R. e JESUS, Ronaldo Pereira de. Associações Mutualistas e Filantrópicas:

estudos comparativos. (mimeo), 2007. 69

VISCARDI, Cláudia M. R. As experiências mutualistas de Minas Gerais: um ensaio interpretativo. In:

ALMEIDA, Carla M.; OLIVEIRA, Mônica R. de (orgs.). Nomes e Números: alternativas metodológicas

para a história econômica e social. Juiz de Fora: editora UFJF, 2006.

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O Código Penal brasileiro de 1890 previa a reclusão de menores infratores, por isto,

no início do século XX, foram criadas as primeiras instituições públicas de acolhimento,

não só da criança e adolescente infratores, como também de vadios e órfãos em internatos

correcionais. Assim, neste período, proliferam-se construções de asilos e orfanatos, de

caráter público e privado. Essas instituições, quando privadas, eram obra de religiosos –

católicos, protestantes e espíritas –, sendo que, no caso brasileiro, a dupla dimensão,

pública e privada, coexistem. O Estado coloca-se como um incentivador de tais práticas,

regulamentando-as de modo a facilitar o seu funcionamento, concedendo isenções fiscais,

incentivando a contribuição e o trabalho voluntário70

.

As mais antigas associações de socorro mútuo brasileiras datam da primeira metade

do século XIX e foram progressivamente esvaziadas ao longo das décadas de 1930 e 1940

com a criação da previdência pública pelo Estado Novo, pois a maior parte das mutuais

tinha como objetivo principal oferecer aos associados proteção na ausência dos

mecanismos formais de previdência pública. Portanto, as mutuais tem um duplo papel –

desempenhavam funções públicas, ao mesmo tempo em que eram organizações de direito

privado –, o que lhes rendia muitos problemas, mas também, em alguns casos, boas

soluções, pois isto lhes permitia recorrer ao Estado à procura de ajuda alegando que

cumpriam funções públicas71

.

As associações mutualistas proliferaram-se largamente no Brasil durante as últimas

décadas do século XIX e as quatro primeiras décadas do século XX. Acreditamos que este

grande impulso associativo se explica, sobretudo, pela migração dos trabalhadores do

campo para a cidade, o que gerou uma procura por proteção diante de uma nova conjuntura

de mudança que os ameaçava fazendo-os recorrer a práticas tradicionais. Nesse sentido,

70

VISCARDI, Cláudia M. R. e JESUS, Ronaldo Pereira de. Associações Mutualistas e Filantrópicas:

estudos comparativos. (mimeo), 2007. 71

VISCARDI, Cláudia M. R. e JESUS, Ronaldo P. de. A experiência mutualista e a formação da classe

trabalhadora no Brasil. In: FERREIRA, Jorge e REIS, Daniel A. (orgs.). As Esquerdas no Brasil: A

Formação das Tradições (1889-1945). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, Vol. 1, cap. 1, 2008.

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podemos dizer que as mutuais estão visceralmente relacionadas à necessidade de reforçar

as relações de parentela diante da introdução de valores como a competição e o

individualismo, sendo uma nova estratégia de sobrevivência72

.

Nas mutuais prevaleciam associados do sexo masculino com idade média entre 15 e

55 anos, dos quais se pressupõem renda fixa, e portando, não se encontravam a margem

dos “avanços” do capitalismo no Brasil. Algumas vezes as mutuais reuniam associados por

etnia, outras por categoria profissional, ou também podiam reunir indiscriminadamente

várias etnias e trabalhadores de diversos setores. Em geral, as mutuais tinham base local,

sendo minorias as associações de alcance regional ou nacional. O tempo de vida de uma

mutual era em média 20 anos, havendo casos de extinção quase imediata à criação, mas

também há associações que funcionam até hoje. O principal fator responsável pelo

fechamento das mutuais foi à incapacidade das lideranças de realizarem um bom

planejamento orçamentário calculando os riscos que envolviam a manutenção da

associação como a inadimplência73

.

Era difícil arregimentar sócios que se dispunham a gerenciar as mutuais, por isto

havia dificuldades no preenchimento de cargos e no estabelecimento de quorum para as

assembléias deliberativas. Deste modo, seja pela ausência de outros interessados, ou pelo

esforço dos dirigentes em manterem-se à frente das mutuais, era comum a permanência dos

mesmos dirigentes na presidência dessas associações, usufruindo dos potenciais benefícios

advindos do exercício do poder74

. Além disto, algumas associações tinham diferenciações

72

VISCARDI, Cláudia M. R. As experiências mutualistas de Minas Gerais: um ensaio interpretativo. In:

ALMEIDA, Carla M.; OLIVEIRA, Mônica R. de (orgs.). Nomes e Números: alternativas metodológicas

para a história econômica e social. Juiz de Fora: editora UFJF, 2006. 73

VISCARDI, Cláudia M. R. e JESUS, Ronaldo P. de. A experiência mutualista e a formação da classe

trabalhadora no Brasil. In: FERREIRA, Jorge e REIS, Daniel A. (orgs.). As Esquerdas no Brasil: A

Formação das Tradições (1889-1945). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, Vol. 1, cap. 1, 2008. 74

VSICARDI, Cláudia M. R. Mutualismo e Filantropia. Lócus: Revista de História. Juiz de Fora: Editora

UFJF, vol. 18, 2004, PP. 99-113.

Page 38: Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em ...¡rio... · Históricas (São Paulo: Editora Contexto, 2009) em que há um ensaio (de Maria de Lourdes Janotti) em que,

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entre os sócios, como os chamados beneméritos que contribuíam com somas significativas

para a associação e não precisavam usufruir das assistências prestadas aos demais sócios75

.

Contudo, filantropia e mutualismo compunham categorias indiferenciadas para seus

próprios contemporâneos, pois os valores que compartilhavam eram extra-econômicos não

limitando suas ações às regras de mercado. Por serem organizações da sociedade civil, as

associações mutualistas preocupavam-se em oferecer socorro aos necessitados que podiam

ou não ser sócios, sendo que alguns estatutos previam ocasiões em que os não sócios

poderiam ser contemplados com algum tipo de auxílio. Desta forma, apelava-se igualmente

para a generosidade de seus associados com vistas ao fortalecimento da associação76

.

Ambas as modalidades de associativismo (mutuais e filantrópicas) atendiam a

interesses e estratégias de sobrevivência dos setores despossuídos que, na ausência de um

Estado que promovesse assistência se propunham a preencher tais lacunas. Assim, a

filantropia e o mutualismo cumpriam na ocasião um importante papel: o de inibir conflitos

sociais, o de garantir um exército de reserva e o de disciplinar uma mão-de-obra avessa ao

trabalho, em geral mal visto por estar associado à escravidão77

.

Tanto as associações filantrópicas quanto as mutualistas necessitam de doações

para perpetuarem-se no decorrer da história. Devido ao fato de seus valores serem extra-

econômicos será usado os conceitos de reciprocidade baseados no dom e no contra-dom

para analisar a relação estabelecida entre doador e associação. Mas antes disso se faz

necessário um debate a cerca destes conceitos.

A QUESTÃO DA RECIPROCIDADE

75

VISCARDI, Cláudia M. R. e JESUS, Ronaldo P. de. A experiência mutualista e a formação da classe

trabalhadora no Brasil. In: FERREIRA, Jorge e REIS, Daniel A. (orgs.). As Esquerdas no Brasil: A

Formação das Tradições (1889-1945). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, Vol. 1, cap. 1, 2008. 76

VISCARDI, Cláudia M. R. Experiências da prática associativa no Brasil (1860-1880). Topoi, Revista de

História. Rio de Janeiro: volume 9, número 16, 2008. 77

VISCARDI, Cláudia M. R. e JESUS, Ronaldo Pereira de. Associações Mutualistas e Filantrópicas:

estudos comparativos. (mimeo), 2007.

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Marcel Mauss, em “Ensaio sobre a dádiva”, ao observar as relações de trocas

existentes em algumas sociedades “primitivas”, diz que nas economias e nos direitos pré-

capitalistas não se constata uma troca simples de bens, pois, em primeiro lugar não são as

individualidades que se contratam e sim as coletividades, em segundo lugar essas

prestações e contra-prestações assumem a forma de um presente aparentemente voluntário,

embora, sejam no fundo obrigatórias. Assim, Mauss chama essas trocas de prestações

totais “no sentido que é de fato todo clã que contrata por todos por tudo que possui e por

tudo que faz, através do chefe como intermediário”, quando estas prestações se revestem

de competitividade lhe é reservado o nome de potlatch, que é caracterizado como

“prestações totais de tipo agonístico”, pois nestas trocas “assiste-se, antes de tudo, a uma

luta dos nobres para assegurar entre eles uma hierarquia que resultará em proveito de seus

clãs”. Em relação à obrigação de retribuir Mauss diz que no fundo é o hau – o espírito da

coisa dada – “que quer regressar ao local de nascimento, ao santuário da floresta e do clã e

ao proprietário”, mas além da obrigação de retribuir supõem-se a obrigação de dá-los e de

recebê-los, pois recusar-se a dar ou recusar-se a receber “equivale a declarar guerra; é

recusar a aliança e a comunhão”. Uma quarta obrigação seria dar aos deuses, pois “com

eles que era mais necessário trocar e mais perigoso não trocar”, sendo que a esmola “é a

antiga moral de dádiva transformada em princípio de justiça; os deuses e os espíritos

consentem que as partes que lhes seriam destinadas e seriam destruídas em sacrifícios

inúteis sirvam para os pobres e para as crianças” 78

.

Já Maurice Godelier, em “O enigma do dom”, diz que “o dom é um ato voluntário,

individual ou coletivo, que pode ou não ter sido solicitado” e que a “obrigação objetiva,

que estes grupos componentes das sociedades arcaicas teriam, de trocar entre si para poder

78

MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva. Edições 70, Lisboa, 1974.

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subsistir encontraria, portanto, sua expressão ‘bastante direta’, mas imaginária ou

simbólica”. Godelier tem duas principais críticas a Marcel Mauss, a primeira seria sobre o

silêncio de Mauss em relação às “relações de dominação e exploração” presentes nestas

sociedades, sendo que as trocas realizadas ali são “processos de produção-reprodução de

hierarquias”, onde “dar e guardar desempenham papéis distintos mas complementares”. A

segunda seria que Mauss não teria considerado todo o contexto histórico do potlatch,

privilegiando “uma forma historicamente tardia e patológica desta instituição”. Por fim,

Godelier ressalta que “o que pôs em movimento” o potlatch “foi a vontade dos indivíduos

e/ou dos grupos de produzir (ou reproduzir) entre eles relações sociais que combinam

solidariedade e dependência” 79

.

Giovanni Levi, em “Reciprocidad mediterránea”, parte dos conceitos de equidade,

analogia e reciprocidade para sugerir uma polarização entre países com direitos fortes que

restringem a capacidade dos juízes de interpretar a lei e países onde o direito tem um

princípio de justiça de origem religiosa, o que permite aos juízes ter uma margem muito

grande de interpretação através de leituras análogas e equitativas, pois as múltiplas fontes

de reprodução das normas possibilitam a movimentação com relativa liberdade entre

sistemas normativos contraditórios, sendo que a permanência de um sentido comum de

equidade em oposição às normas codificadas goza de tal vigor que tem chegado a ser a um

aspecto constitutivo da política destes países. Giovanni Levi considera que os princípios de

reciprocidade devem ser contextualizados na complexa estratificação de uma sociedade

desigual, porém equitativa, pois a mescla de economia e ética, de valores gerais da

sociedade e de valores específicos que entram na reciprocidade que se manifesta nos

intercâmbios, complica e dificulta a determinação das medidas da sociedade equitativa e

desigual que obedecem a essas regras. Por isto, Giovanni Levi acompanha Karl Polanyi na

79

GODELIER, Maurice. O enigma do dom. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

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idéia de que a reciprocidade vinda dos atos de dom e contra-dom tem lugar em ocasiões

diferentes, segundo um cerimonial que impede qualquer noção de equivalência, pois

atitudes individuais carecem de efeitos sociais. Deste modo, só em um ambiente

organizado simetricamente, as atitudes de reciprocidade darão lugar a instituições

econômicas de certa importância, onde uma pessoa justa recompensará um dom com um

objeto justo em um momento justo a uma pessoa que se encontra em uma posição

simétrica80

.

Geoffrey MacCormack, em “Reciprocity”, critica o uso dos conceitos de

reciprocidade, pois para ele os pesquisadores não têm distinguido com suficiente claridade

entre a função do princípio de reciprocidade e uma descrição do fenômeno social, não

esclarecendo se a função é um modelo ou um instrumento de análise em termos do que a

estrutura e a estabilidade da sociedade podem explanar. E mais, às vezes é atribuído à

reciprocidade o papel de manutenção social fazendo com que a distinção entre o princípio

de reciprocidade e a reciprocidade desapareça. Além disso, quando o principio é usado na

descrição do estado de negociação obtido dentro da sociedade nem sempre é claro se o

investigador a considera uma regra, um padrão, um ideal, um desejo, uma vontade, uma

expectativa, ou um hábito. Geoffrey MacCormack também faz críticas diretas a Marcel

Mauss dizendo que em “Ensaio sobre o dom” não está explícita uma conexão entre a

reciprocidade e as obrigações de dar, receber e retribuir, assim, ele utiliza a palavra

recíproco para referir-se livremente a prática do retorno, que no contexto geral expressa

mais do que uma prática uma obrigação. Por fim, MacCormack conclui dizendo que a

linguagem da reciprocidade deve ser evitada ou usada com grande cautela81

.

80

LEVI, Giovanni. Reciprocidad Mediterránea. Hispania (Madrid), LX/1, num. 204 (2000), pp. 103-126. 81

MacCormack, Geoffrey. Reciprocity. Man, New Series, Vol. 11, n. 1 (mar., 1976), pp. 89-103. Disponível

em: <http://links.jstor.org/sici?sici=0025-

1496%28197603%292%3A11%3A1%3C89%3AR%3E2.0.CO%3B2-4 > Acesso em: 25 de jan. 2008.

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A discussão sobre os conceitos de reciprocidade é longa, contudo cabe fazer

algumas ponderações sobre o uso de tais conceitos no presente trabalho. Mauss diz que o

dom é “imposto e interessado”82

, porém, pelo menos no que diz respeito às associações

filantrópicas e mutualistas, pudemos observar que o dom não é imposto, contudo é

interessado. Desta forma, no presente trabalho Godelier explica melhor as relações de troca

estabelecidas entre doador e instituição, assim, concordamos com ele quando diz que “o

dom é um ato voluntário, individual ou coletivo”, e que, portanto, a “obrigação objetiva”

de trocar encontraria “sua expressão ‘bastante direta’, mas imaginária ou simbólica”, pois o

que fez as pessoas praticarem o dom “foi a vontade dos indivíduos e/ou dos grupos de

produzir (ou reproduzir) entre eles relações sociais que combinam solidariedade e

dependência” 83

.

CONCLUSÃO

Portanto, mesmo com as criticas feitas por Geoffrey MacCormack sobre o uso dos

conceitos de reciprocidade84

, utilizarei tais conceitos, tentando explicitar a diferença entre

princípio de reciprocidade e reciprocidade. Desta forma, destacamos que se supõe que há

um princípio de reciprocidade embasado em uma moral compartilhada pelos sócios, no

caso das mutuais, e pelos doadores, no caso das filantropias, que governa as ações de

reciprocidade praticadas nestas associações. Melhor explicitando, direi que no nosso

entendimento, o princípio de reciprocidade é uma moral, e a reciprocidade em si é um ato,

e que a moral contida no princípio de reciprocidade serve muitas vezes para encobrir o

interesse contido no ato de reciprocidade.

82

MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva. Edições 70, Lisboa, 1974. 83

GODELIER, Maurice. O enigma do dom. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. 84

MacCormack , Geoffrey. Reciprocity. Man, New Series, Vol. 11, n. 1 (mar., 1976), pp. 89-103.

Disponível em: <http://links.jstor.org/sici?sici=0025-

1496%28197603%292%3A11%3A1%3C89%3AR%3E2.0.CO%3B2-4 > Acesso em: 25 de jan. 2008.

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No caso do Brasil, supomos, que assim como no que foi observado por Giovanni

Levi no mediterrâneo85

o princípio de justiça é de origem religiosa o que permite aos

sócios das associações mutualistas – que no caso funcionam como juízes de seus estatutos

nas assembléias das associações – terem uma margem muito grande de interpretações

através de leituras análogas e equitativas, havendo assim uma permanência de um sentido

comum de equidade em oposição às normas codificadas. Assim, a moral religiosa que

embasa os estatutos governa as ações praticadas nas associações mais do que o próprio

estatuto, o que talvez explique a confusão que os contemporâneos das associações

pesquisadas faziam sobre o caráter da associação ser filantrópico ou mutualista.

Sabendo que o princípio de reciprocidade é embasado em uma moral religiosa, falta

saber quais interesses esta moral pode esconder nos atos. Em relação às associações

filantrópicas pudemos observar que as instituições ao receberem as doações podem

funcionar como mediadoras entre doador e sociedade, mediadoras entre o doador e Deus

ou como doadora, recebedora e contra-doarora. Devido ao fato das filantropias realizarem

um papel social, doar a elas é doar a sociedade e tal doação pode ter a intenção de

aquisição ou manutenção de um “capital social”, que é “um capital com base cognitiva,

apoiado sobre o conhecimento e o reconhecimento” 86

. Doar à sociedade é também doar

aos pobres, o que em último caso é doar a Deus, pois os deuses consentem que os

sacrifícios inúteis sirvam aos pobres e as crianças87

. No caso das Santas Casas de

Misericórdia, além das funções das demais filantropias, podemos falar que a instituição

funciona como doadora, recebedora e contra-doadora, pois ela oferece um serviço

hospitalar em troca da doação.

85

LEVI, Giovanni. Reciprocidad Mediterránea. Hispania (Madrid), LX/1, num. 204 (2000), pp. 103-126. 86

BOURDIEU, Pierre. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 1996. 87

MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva. Edições 70, Lisboa, 1974.

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44

Já as associações mutualistas funcionam como doadoras quando ajudam pessoas

necessitadas que não fazem parte do seu quadro de associados e tal ato contém a intenção

de aumentar o alcance da associação. Contudo, no caso do mutualismo temos que fazer a

distinção entre os sócios comuns e os beneméritos. Os sócios beneméritos doam

quantidades maiores e não tem nenhuma preocupação com uma crise futura, sua clara

intenção é a manutenção de laços verticais de solidariedade como os do clientelismo e,

portanto, sua doação não é feita à entidade e sim à sociedade que a entidade engloba. O

mesmo pode ocorrer com os presidentes das mutuais. Nestes casos, a associação é a

mediadora entre o sócio benemérito e a aquela sociedade, o que o doador espera em troca é

manter aquelas pessoas sobre a sua tutela. E os sócios comuns doam a associação com a

intenção de receberem a contra-doação em um momento de necessidade, e aqui as

associações funcionam como recebedoras e contra-doadoras.

Contudo, na maioria dos casos não é nem mesmo a moral que governa a ação de

prestação dos homens e sim um hábito, que foi constituído e é reforçado pela moral.

Assim, as intenções contidas nos atos de reciprocidade “só muito raramente estão

assentadas em uma verdadeira intenção estratégica” 88

. Ou seja, ele não tem um ato de

caridade no seu projeto de chegar ao céu, mas sim, doar faz parte do trajeto que ele está

pondo em curso. O ato de doar pode até ser mais consciente quando é feito a procura de

reconhecimento, mas em geral é um hábito, um costume, seu pai fazia, seu avô fazia, seus

amigos fazem. Não há como negar que haja um interesse por de trás do ato, porém, este

interesse é realizado na maior parte das vezes de uma forma inconsciente. Portanto dar,

receber, retribuir e doar aos deuses tem uma moral religiosa, mas tais atos constituem-se

num hábito realizado inconscientemente.

88

BOURDIEU, Pierre. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 1996.

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45

Para concluir, falta dizer que até a presente fase desta pesquisa o que notamos é que

a confusão que os sócios das associações mutuais e filantrópicas fazem sobre a função das

associações deve-se ao fato de ambas compartilharem valores extra-econômicos e terem

interesses que vão muito além do altruísmo, ou mesmo da sobrevivência, sendo práticas

que tendem a estender-se a vários níveis de interação social e ao comportamento cotidiano

das pessoas.

BIBLIOGRAFIA

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GODELIER, Maurice. O enigma do dom. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

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Cordialidade e Censura no Espaço de Sociabilidade:

O paradoxo da censura na imprensa de Montes Claros/MG no período do

Governo Militar 1964 a 1968

Camila Gonçalves Silva89

RESUMO: A presente comunicação possui como objetivo compreender a memória dos

jornalistas que atuaram na imprensa escrita de Montes Claros-MG durante os anos de 1964

a 1968, contexto político em que estava em vigor em âmbito nacional no Brasil o Regime

Militar (1964 – 1985). Neste sentido, compreenderemos no decurso de cada trajetória de

vida a memória social e profissional daqueles que exerceram seu ofício com a presença de

censores nas redações. Por conseguinte, entenderemos também como era feita a censura e

como os jornalistas burlavam a mesma. As fontes utilizadas constam em entrevistas com

os jornalistas, respaldadas pela metodologia da História Oral. Também utilizaremos

exemplares da Revista Montes Claros em Foco, periódico bimestral local e para nossa

análise selecionamos as publicações dos anos de 1963, 1964 e 1967.

PALAVRAS-CHAVE: Imprensa, Censura, Montes Claros.

ABSTRACT: This communication has the purpose of understanding the memory of

journalists who worked in the press of Montes Claros-MG during the years 1964 to 1968,

the political context in which was in force at the national level in Brazil the military regime

(1964 to 1985). In this sense, understand the course of each trajectory of life professional

and social memory of those who exercised their craft with the presence of censors in the

newsroom. Therefore, also understand how it was done as censorship and journalists

89

Mestranda em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora –UFJF.

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laughed at it. The sources used included interviews with journalists, backed by the

methodology of oral history. We also use copies of the magazine Focus in Montes Claros,

bimonthly journal site and our analysis we selected publications of the years 1963, 1964

and 1967.

KEYWORDS: Press, Censure, Montes Claros.

Introdução

A presente comunicação é resultado parcial da coleta de fontes para a escrita da

dissertação de mestrado intitulada “Censura, Auto-censura e repressão: A censura a

Imprensa escrita de Montes Claros durante o Governo Militar nos anos de 1964 a 1978”.

Neste sentido, este texto procura compreender o espaço de sociabilidade das redações de

Montes Claros através da Metodologia da História Oral, as entrevistas concedidas pelos

jornalistas que atuaram em nosso contexto. As nossas fontes constam não apenas em

entrevistas90

, como também em exemplares da Revista Montes Claros em Foco, periódico

bimestral local referente aos anos de 1963 e 1964.

A censura nas redações da cidade de Montes Claros se fixa em nosso estudo como

marco, o ano de 1964 como ponto de partida para análise do aparato repressor nas redações

dos jornais. Postulamos como ponto final em nossa presente abordagem o ano de 1968.

Conseqüentemente, analisaremos os primeiros e mais intensos anos em que a censura

atuou nas redações. Consideramos importante destacar que o sistema de censura em nosso

recorte espacial: Montes Claros, cidade pequena e com ares de provincianismo possuiu

uma singularidade. Ao contrário dos jornais impressos que circularam em nível nacional,

como o Estado de São Paulo, Opinião, Tribuna da Imprensa, que vivenciaram o período

90

Para resguardar as nossas fontes optamos por não divulgar os nomes de nossos entrevistados.

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situado entre os fins da década de 1970 até o processo de abertura política como o

momento de desmantelamento da censura, as redações dos jornais de Montes Claros

ficaram sob o sistema de cerceamento até o ano de 1985.

Os jornais escritos de Montes Claros apenas enxergaram o final da censura quando

o último Presidente Militar da República deixou o poder. Conseqüentemente, todo o

aparato repressor somente retirou os pés das redações dos jornais depois dos 21 anos de

Governo Militar. Nesse sentido, o nosso objeto de análise incorporou todo o aparato

repressor de modo prematuro se comparado aos periódicos em âmbito nacional, ao passo

que se livrou desse mesmo aparato tardiamente, tendo como fator indispensável para o

cumprimento das ações cerceadoras o 10º BP de Montes Claros.i

Os militares em âmbito nacional apoiados pela Doutrina de Segurança Nacional

que postulava que era necessário eliminar qualquer possibilidade de implantação do

comunismo, em 31 de Março de 1964 inicia-se o período obscuro no cenário político

nacional. Conforme Julio José Chiavenato91

em âmbito mundial vivíamos o período da

Guerra Fria, o chamado Mundo Bipolar encabeçado pelos Estados Unidos (capitalismo) e

pela extinta União Soviética (socialismo) estabeleciam áreas de influência no intuito de

angariar cada vez mais aliados e poder. O Brasil, mais precisamente os homens que

permeavam poderes políticos e econômicos, e, principalmente tinham interesses em

estabelecer relações de comércio com o EUA, impetraram sentimentos de oposição a

ideologias socialistas ou comunistas. O general Golbery do Couto e Silva um dos

principais ‘teóricos’ da Ditadura Militar e criador do Sistema Nacional de Informação

(SNI) faziam declarações tórridas sobre o momento: “Essa é a guerra – total, permanente,

global e apocalíptica – que se perfila, desde já, no horizonte sombrio de nossa agitada

91

CHIAVENATO, Júlio José. O Golpe Militar e a Ditadura Militar. 2004.

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época. E só nos resta, nações de qualquer quadrante do mundo, prepararmo-nos para ela,

com determinação, com clarividência e com fé92

.

Acerca desse discurso ‘apocalíptico’ podemos inferir que o mesmo estava inserido

em todas as patentes do corpo militar, a necessidade de ‘salvar’ ou libertar o país dos

preceitos comunistas ou socialistas perpetuou nos discursos dos militares. O Coronel do

10º BPMMG de Montes Claros na época, Georgino Jorge de Souza foi a figura que

materializou a nível local através da censura a imprensa a necessidade de ‘salvar’ a

sociedade local das injúrias do comunismo/socialismo.

O paradoxo da censura na imprensa de Montes Claros/MG no período do Governo

Militar 1964 a 1968

Nesse sentido, se torna primordial em nossas análises haja vista a influência dessa

instituição em nosso objeto compreender dois elos que norteiam nosso objeto. O primeiro

refere-se à instituição do 10º BPMMG, e o segundo a pessoa que inseriu por conta própria

a censura, utilizou para isso a própria instituição que comandava: Coronel Georgino Jorge

de Souza. O Coronel Georgino Jorge de Souza teve grande relevância para a história do

10º Batalhão de Montes Claros. O mesmo conduziu a sua tropa até Brasília – capital

federal – no intuito de apoiar em 1964 o Golpe Militar. Montes Claros, no mesmo ano

(1964) tinha conhecimento de algo no meio político havia mudado, de um presidente civil,

João Goulart, passamos a ter como presidente um militar, o General Castelo Branco.

Entretanto, no cotidiano da população através dos depoimentos dos jornalistas podemos

compreender que essa mudança não alterou a rotina das pessoas, mas também não houve

nenhuma negativa de ocorrência durante os anos da Ditadura Militar de focos relacionados

92

CHIAVENATO, Júlio José. O Golpe Militar e a Ditadura Militar. 2004. P.84

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a resistência por parte de estudantes, políticos, jornalistas e artistas locais. Apesar de não

ser o esse o foco de nossas análises, expressões públicas e opiniões contrários à

implantação do Governo Militar aconteceram, entretanto, não foram de grandes dimensões

como as que sucederam no cenário nacional.Conforme podemos evidenciar na citação a

seguir de um de nossos depoimentos.

A comunidade de Montes Claros com exceção de algumas pessoas

como o próprio Darci Ribeiro que é montesclarense e o Mario

Ribeiro, esses mais antigos da política, essas pessoas tinham

consciência do que estava acontecendo, mas a população em si

passava despercebida dessas coisas, sabe?

(...) A sociedade começou normal, almoçando e jantando e

tomando café, as crianças indo para a escola, a diversão

acontecendo, como se nada tivesse acontecendo... 93

Logicamente podemos inferir que não é que a população da cidade seja alienada as

questões políticas de nosso país, mas em sua grande maioria os debates em torno do Golpe

de 1964 era tema proibido pela sociedade, de modo que apenas aqueles que tinham acesso

a cargos políticos, em contato com intelectuais ou inserido nesses círculos sociais tinham

uma melhor noção do que na realidade estava acontecendo, por ser círculos reservados os

diálogos não iriam chegar no meio repressor da cidade. Além desse aspecto, o debate via

meios de comunicação na imprensa escrita era proibido, simultaneamente informações

políticas ficavam restritas a apenas alguns indivíduos.

Na posterior publicação da revista Montes Claros em Foco do ano de 1964 trouxe

em edição extra dedicada quase exclusivamente conteúdo relacionado às homenagens

feitas ao 10º BPMMG por atuar na manutenção e concretização do conhecido Golpe

Militar. O 10º BP local viajou até a capital do Brasil para contribuir com a operação e êxito

da inserção dos militares na presidência da República. A matéria intitulada “Generais da

93

CEDRO, 2006.

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Revolução” é rica em enaltecer o sentimento de heroísmo no cumprimento do dever da

corporação recém chegada de Brasília. A sociedade montesclarense comparece a esse

momento de homenagens ao Regimento Local:

Carinhosas e entusiásticas homenagens foram prestadas pela

sociedade de Montes Claros, por ocasião do regresso à cidade dos

valorosos soldados do Décimo Batalhão de Infantaria, pelo seu

comportamento durante as operações revolucionárias.

Como representante do governador Magalhães Pinto compareceu o

Comandante Geral da Polícia Militar Cel. José Geraldo de Oliveira

que também foi alvo de significativas e justas homenagens.

Constituiu assim, uma nota de grande imponência a chegada das

tropas, entusiasticamente aplaudidas e recebidas com flores.

O Desfile foi aberto pela Banda de música do Batalhão. A seguir,

num jeepe aberto, passou o Cel. Georgino Jorge de Souza ilustrado

comandante do Décimo, com oficiais e depois os expressivos

contingentes, sendo, os líderes da revolução delirantemente

ovacionados pela multidão.

De um palanque armado em frente ao prédio da Prefeitura

Municipal, assistiram ao desfile o Cel. José Geraldo de Oliveira,

Comandante Geral da Polícia Militar, o Prefeito Municipal Dr.

Pedro Santos, o Presidente da Câmara Sr. Orlando Ferreira Lima,

Deputado Federal Dr. Francelino dos Santos, Monsenhor Gustavo

Ferreira e outras autoridades fazendo-se ouvir diversos oradores,

sendo os líderes da revolução delirantemente ovacionados pela

multidão. (grifo nosso)94

É praticamente incontestável o entusiasmo da população frente a presença dos

militares no desfile que os prestigiava, conforme percebemos no trecho anterior, de

representantes do governo Estadual, municipal e até mesmo da Igreja Católica. O

comportamento de saudações e contentamento frente aos membros do corpo militar

postulava um comportamento que nada terá de análogo ao dos profissionais da imprensa

escrita local.

94 Revista Montes Claros em Foco. Junho e Julho de 1964. Edição Extra - Número 25,

Ano VII. Matéria: Generais da Revolução.

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O 10º Batalhão de Polícia Militar local não apenas marchou até Brasília, como

também inseriu no cotidiano das redações dos jornais da cidade soldados fardados ou à

paisana e em alguns momentos superiores com patente de coronéis para exercerem o papel

de cercear os assuntos a serem publicados na imprensa escrita, conforme nas palavras de

um dos jornalistas:

Nós tivemos é... no caso do Diário de Montes Claros foi até um

Coronel, Antônio, acho que era Antônio ele era Major, não, não era

não, acho que ele era Coronel, no Jornal de Montes Claros com um

Capitão, que era chamado de Capitão Lázaro é... nesse do Diário de

Montes Claros ele era Capitão, Capitão Antônio, depois foi até

presidente, foi diretor do Colégio Tiradentes, veio a ser diretor do

Colégio Tiradentes, depois... era uma pessoa muito culta, muito

bondosa, muito boa de tratar.95

Nesse mesmo trecho em que podemos comprovar a existência do aparato repressor

contém o aspecto principal que ensejamos discutir: a convivência e a relação dos censores

com os jornalistas. No entanto, precisamos definir inicialmente quem eram esses censores.

Nas três entrevistas realizadas que utilizamos como fontes para a presente pesquisa

podemos comprovar através dos depoimentos que o corpo de censores era formado

essencialmente por soldados, coronéis e capitães do próprio regimento local, mas em

alguns casos conforme os depoentes expressam os censores pareciam ser do Serviço de

Informação ou da Polícia Militar ou Polícia Federal, eram distinguidos pela farda ou

uniforme usado.

A cidade de Montes Claros nesse período alçava desenvolvimento comercial e

urbano com casas antigas dando lugar as novas construções e a substituição paulatina das

ruas de poeira pelo asfalto, porém ainda estava envolta pelos ares de um cotidiano

conservador e provinciano. Pequenas e simples aparições em festas da sociedade local tais

95

CEDRO, 2006.

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como: casamentos, formaturas, inaugurações de comércios ou inserção em festas

organizadas por damas da sociedade denotavam em engrandecimento pessoal, dos

costumes e da moral. Sendo assim, quase todos sempre podiam indicar quem possuía

algum filho ou conhecido que atuava no Batalhão de Polícia local. Assim podemos

concluir que a convivência com os censores era algo que estava no cotidiano dos

jornalistas antes mesmo da convivência em nível profissional. Da mesma maneira era fácil

identificar aqueles profissionais que eram membros do corpo de redação dos jornais do

período. A possibilidade de fácil identificação de ambos os membros já nos faz

compreender a singularidade da repressão exercida na imprensa na cidade do interior. Em

grandes centros urbanos como Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo, dentre outros

dificilmente um jornalista tinha qualquer tipo de convívio pessoal fora do ambiente de

trabalho ou até mesmo convivência e modos comportamentais cordiais com o censor.

Quando os depoentes são questionados sobre a possibilidade de Montes Claros, assim

como nos grandes centros urbanos do Brasil possuir aparato repressor, respondem

categoricamente:

A maior parte militares, não é? Militares que permaneciam

fardados e também à paisana. Mas eram pessoas do governo, eram

pessoas do governo! Do Serviço de Informação, do Exército, da

Polícia Militar, da Polícia Civil, não é? Da Polícia Federal, né?

Então reunia todos os órgãos que faziam a repressão.96

Tinha, tinha censor! ... Existiam vários censores, eu não vou

conseguir dizer o nome de todo mundo... Mas tinha censor sim!

Para ficar fiscalizando as matérias... Apesar da habilidade dos

repórteres, né? Dos editores para driblar as fiscalizações, mas sim

já existiam censor sim, que cortavam, não deixavam sair qualquer

coisa, não é? Não sair muita coisa, aliás! Entendeu? Então era um

trabalho previamente fiscalizado. Mesmo! Então assim não

conseguia publicar muitas, muitas matérias, muitas informações

polêmicas com êxito, não! Não conseguia! 97

96

PEREIRA, 2006. 97

CARVALHO, 2006.

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Da mesma maneira, em nossos estudos podemos afirmar que quando os depoentes

descrevem o cotidiano das redações dos jornais e as maneiras de contornar a censura é

notório um misto de raiva e política de boa convivência. Pois, era inevitável a convivência

entre ambos em um mesmo ambiente atuando de acordo com as necessidades de suas

profissões: um cerceando a liberdade de expressão e o outro tentando contornar a censura

imposta a sua escrita. O jornalista sofria basicamente dois tipos de pressões: a de cunho

social em que era fácil encontrar no dia a dia o censor que trabalha na redação do jornal

conversando com a sua família, tendo contato com seus amigos e colegas; e a outra pressão

de fácil identificação que é a profissional, o jornalista tem que acatar a todo o momento a

censura porque precisa se manter na profissão para sustentar seus filhos, sua mulher, sua

família... Somado a esse aspecto temos ainda a pressão psicológica do jornalista que teme

fazer algo de errado sob pena de não apenas ele sofrer a conseqüência, como também a

possibilidade de ocorrer qualquer penalidade por burlar a censura na sua própria família ou

no seu circulo social. Por outro lado estava o militar, independente da patente exercida o

mesmo tinha a vantagem de que apenas os profissionais das redações tinham detalhes de

suas atitudes, ou seja, a grande maioria da população local não tinha noção do que estava

acontecendo. Além desse aspecto sendo o censor o militar, o mesmo estava em uma

posição superior, ele não sofria danos psicológicos, pessoais ou profissionais. No que tange

a pressão profissional e psicológica a fala de um jornalista ao descrever a sua “visita”

forçada ao Batalhão de Polícia de Montes Claros reflete satisfatoriamente esse aspecto

descrito:

E o... esse coronel, ele tinha o meu currículo, ele sabia mais da

minha vida do que eu sabia da minha vida! Entendeu? Ele falou

comigo: “Você...” E foi me dando, ele decorou meu currículo, ele

decorou meu currículo, ele falou: “Você tem isso, você tem

aquilo...” e Falou: “Oh, vai cuidar da sua família que é melhor!”

Ele me sugeriu que eu parasse de escrever sobre o PMDB sobre

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ARENA, parasse de escrever sobre política em geral, que eu iria

virar o alvo! E eu realmente até em respeito a mim mesmo eu parei

de escrever sobre política com medo de ser mandado para Juiz de

Fora (Risos). Eu fiquei realmente com esse, com esse trauma na

cabeça! Entendeu? (grifo nosso) 98

Podemos perceber através da leitura da citação anterior que o jornalista deixa claro

o receio dele e de sua família serem alvos da repressão, desse modo o mesmo deixa de

expressar suas idéias em relação a sua posição contrária as questões políticas do Regime

Militar. Ao mesmo tempo existiam alguns artifícios utilizados pelos jornalistas no

ambiente de trabalho para contornar a censura que podemos perceber que é algo singular

no que tange ao convívio entre jornalistas e censores nas redações. Outro jornalista

descreve em seu depoimento que para “enrolar” um pouco os censores muitas vezes até

mesmo os convidavam para irem a bares ou botecos e, chegavam na redação do jornal para

realizar a impressão dos jornais em horários mais tardes que o normal no intuito de deixar

menor o tempo de análise feito pelo censor antes da conclusão das páginas a serem

impressas. Essa atitude em muitas ocasiões como afirma o jornalista alcançou êxito, como

podemos atestar:

Para não dar tempo de chegar alguém e censurar tal material... e

assim, assim e tal. E eles deixavam... Iam para o boteco, para o

boteco, para os botecos, bebiam e tomavam umas cervejas e tal...

Depois... de um certo tempo é que eles viam para a redação, por

volta de 22:30, 23:00 que é aí que eles iam finalizar a edição para

soltar no outro dia. E aí se tiver que censurar alguma coisa então já

era, né? O jornal já estaria nas bancas e tal. Mas foi um período

assim de muita tensão, o pessoal ainda tinha medo de escrever

qualquer coisa, não tinha essa liberdade de falar... 99

Essa distinta relação entre jornalistas e censores resultava em um trato particular e

inusitado que em muito pode ter como fator essencial à singularidade de um cotidiano

98

CEDRO, 2006. 99

CARVALHO, 2006.

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próprio de uma cidade pequena do interior em que as relações sociais se mesclam,

caracterizando esse convívio no dia a dia como paradoxal: cordialismo nas relações sociais

com um misto de aversão por ser censurado, necessidade de convivência de ambos em um

mesmo ambiente e somado a esses dois aspectos a convivência fora do ambiente de

trabalho, o cotidiano na cidade. È importante salientar que não foi apenas utilizando esses

artifícios da convivência que os jornalistas conseguiram contornar a censura, apesar do ato

de contornar a censura ser algo mais complicado devido a essa constante relação de

proximidade profissional e pessoal em que as conseqüências da descoberta desse

“contorno” pode ser também mais rápidas devido a essa mesma adjacência, os

profissionais das redações dos jornais utilizaram muitos dos mecanismos que os órgãos de

imprensa nacional utilizaram, tais como: metáforas e linguagem subliminar, como fica

expresso na citação que se segue:

(...) por exemplo, se a imprensa fosse noticiar: “Ladrão de galinha é

preso”. Sabe? Aquele ladrão de galinha é preso, mesmo que falasse

que ele realmente, toda matéria que um rapaz que foi preso

apanhando uma galinha na casa de um vizinho e não falasse mais

nada, mesmo assim, sabe? A sociedade poderia indagar ou

questionar: “E quem rouba além de uma galinha?” Então era tudo

nas entrelinhas, não é? Chico Buarque de Holanda foram um dos

que mais falavam: “Pai afasta de mim esse cálice” que a maioria o

cálice era tão simbolista, tem tanto simbolismo nessa palavra

cálice, que você pode escrever: C-A-L-E um – S E, como um cala a

boca; e com CÁLICE que representa uma dor, né? O sangue de

Cristo, então tudo vinha nas entrelinhas, sabe? Então você tinha

que ter as metáforas, dos artistas também na sua concepção para

você poder entender as mensagens. Então era tudo camuflado!

(grifo nosso).100

Os assuntos relacionados principalmente às temáticas: política, sociedade,

economia e artes tiveram seus textos jornalísticos proibidos de serem vinculados, ou na

mais leve realidade, se publicados antes passaram por leituras cerceadoras, recortes e

100

CEDRO, 2006.

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depois de novamente organizados, afastando suas idéias consideradas perigosas, poderiam

enfim ser impressas para chegarem conseqüentemente às mãos dos leitores. Como expressa

em sua obra A ordem do Discurso o Michel Foucault explica como o discurso pode ser

metodicamente analisado no intuito de minimizar ou retirar tudo aquilo que é considerado

nocivo para a sociedade: “(...) suponho que em toda a sociedade a produção do discurso é

ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de

procedimentos que têm a função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu

acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade”.101

O discurso, que em nosso tema é elaborado pelos jornalistas da cidade de Montes

Claros foi materializado em reportagens que na personificação do aparato repressor

passaram por censores que determinavam quais as manchetes e de que forma os temas

deveriam ser redigidos para serem convenientes para a sociedade. O Censor representa a

instituição que procura de todos os modos evitar e eximir a publicação de discursos que

expressam de maneira concreta idéias, conteúdos e fatos que proporcionassem elevo

contrário ao Governo Militar.

Conclusão

Por fim, podemos inferir que a imprensa de Montes Claros, no período do Regime

Militar, possuiu características análogas as da imprensa nacional e individual quando

enviesamos análises da censura em âmbito de cidade do interior como por exemplo, o

cordialismo entre jornalistas e censores e aplicação da leis de imprensa nas redações dos

jornais da cidade. Através do resgate da memória dos entrevistados, podemos perceber, na

101 Foucault, Michel. A ordem do Discurso. São Paulo: Loyola. 9º Ed. (Coleção Leituras

Filosóficas). p.8-9.

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inflexão e tenacidade da voz dos depoentes, o tom de “desabafo” quando os mesmos

narraram ou caracterizaram as suas trajetórias como profissionais do período. Trajetórias

marcadas por cerceamento de liberdade e de opinião que acarretaram em constrangimentos

como profissionais; aos moldes da História Oral trouxe a público as recordações do

momento.

Referências:

REVISTAS

Revista Montes Claros em Foco. Janeiro e Fevereiro de 1964. Número 24, ano VII.

Revista Montes Claros em Foco. Junho e Julho de 1964. Edição Extra - Número 25, Ano

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vol.2, n° 3, 1989, p. 3 – 15.

POLLAK, Michel. Memória e Identidade Social. Estudos Históricos: Rio de Janeiro, vol.

5, n. 10, 1992, p. 200-212.

SITES

Site com conteúdo relativo a História da Polícia Militar de Minas Gerais e 10º Batalhão de

Polícia Militar: Encontra-se textos disponíveis em:

http://www.pmonline.com.br/modules/smartsection/category.php?categoryid=3 e

http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2004/02/275183.shtml . Acesso em 22 de Junho

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De “Portas a dentro”: Serviços especializados e bons rendimentos dos escravos

de aluguel na cidade do Rio de Janeiro em 1864.

Carlos Eduardo de Medeiros Gama*

[email protected]

RESUMO: Objetivamos interpretar a autonomia e a negociação de cativos e senhores

frente ao mercado de mão-de-obra especializado em serviços domésticos e as

particularidades dos proprietários de escravos da urbe. Os preços dos cativos, as diferentes

atividades ocupacionais, a valorização e os bons rendimentos do escravo de aluguel

perante o escravo ao ganho estão relacionados ao sistema escravista que no pós-1850

passou por mudanças estruturais. Procuramos interpretar os arranjos de senhores e escravos

para sobreviverem “juntos” a um mercado disputado e concorrido por escravos, libertos e

livres – brasileiros e imigrantes – e pela grande demanda do tráfico interno de escravos

gerado pela expansão das grandes lavouras cafeeiras.

PALAVRAS-CHAVE: Escravos de aluguel; escravidão urbana; jornal.

ABSTRACT: We aim to interpret the autonomy and trading of slaves and masters in the

marketplace of skilled manpower specialized in domestic services and characteristics of

the slave owners of the city. The price of the captives, the different occupational activities,

recovery and good income from rent of the slave in front of the slave gain are related to the

slave system or at the post-1850 has undergone structural changes. We triend to interpret

the arrangements of masters and slaves to survive "together" in a crowded and competitive

* Especialização História - Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO.

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market for slaves, freedmen and free - Brazilian and immigrants - and by strong demand

from domestic slave trade generated by the expansion of large coffee plantations.

KEYWORD: Slaves rental; enslavement urban; journal.

Na tentativa de mostrar o dinâmico mercado de aluguel de escravo na cidade do

Rio de Janeiro catalogamos 1.020 anúncios no Jornal do Commercio, no período de

janeiro e julho de 1864, na Seção de Periódicos da Fundação Biblioteca Nacional.

Objetivamos interpretar a autonomia e a negociação de cativos e senhores frente ao

mercado de mão-de-obra especializado em serviços domésticos dos proprietários de

escravos da urbe

Justificaria o alugar seu escravos o maior controle do poder senhorial, o escravo de

aluguel ao contrário do ganho, tinha a previa demonstração pelos proprietários em

anúncios publicando as boas qualidades dos cativos: obediência, fidelidade e bons

serviços. O aluguel seria sinônimo de menor mobilidade dos cativos na urbe comparados

com os escravos ao ganho. José Roberto Góes afirma que:

“Os pequenos escravistas tendiam a ser relutante a autonomia dos

cativos uma razão muito simples: se qualquer direito assegurado ao

escravo é um direito tomado ao seu senhor (em tese, o escravo não

tem direito), muito mais ameaçador e custoso é ao pequeno

escravista qualquer margem de autonomia escrava” (GÓES, 1998,

p.155-156)

Roberto Guedes Ferreira propõe outra abordagem:

“(...) mesmo nas cidades, escravos estariam sob severa disciplina

quando trabalhassem junto a seus senhores, isto é, diante da

presença física destes, aqueles teriam seus espaços de autonomia

reduzidos. A proximidade, ao que parece, seria física e de

categoria.” (FERREIRA, 2000, p.118.)

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Rodrigo de Aguiar Amaral discorda desse laço apertado que poderia prover aos

cativos uma menor autonomia nas relações senhores e cativos:

“(...) nas cidades onde a escravidão levou um grande contingente

de cativos às ruas e estes dispuseram de parte de seu tempo

enquanto trabalhavam, o poder senhorial se misturava e em parte

dissolvia-se na autonomia que este escravos poderiam abocanhar.

Mas isso não significa que estes senhores estivessem perdendo o

poder sobre seus cativos. Eles estavam adaptando-se à conjectura

urbana.” (AMARAL, 2006, p.117)

Em uma dessa “conjectura urbana” da escravidão, proprietários podiam não

negociar definitivamente seu cativo e tentar de tudo para mantê-lo, em alguns casos sua

única fonte de renda.

Foi nesse período de 1860 a 1865, que o preço da compra de um escravo teve sua

maior alta:

“Tomando-se a evolução do valor nominal do escravo típico – um

homem entre 15 e 40 anos de idade -, observa-se haver seu preço

dobrado entre o final do século XVIII e a década de 1820, o que

novamente se repetiu nos

anos 30. Após o fim do tráfico com a África o valor desse escravo

triplicou em ralação à década de 1840, atingindo o pico (cerca de

1:500$000 reis) nos anos 60.”(FLORENTINO, 2002, p.16-17)

O pico no valor do cativo a ser vendido no mês de fevereiro de 1864 se comparado

ao pico do valor do escravo de aluguel de 40$000 réis mensal, no mesmo ano da

publicação da venda do moleque de 20 anos. Preços diferentes e serviços bem

diferenciados dos escravos que são alugados ao expressivo valor de 30$000 réis, no

mesmo mês:

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“Alugão-se por 30$ e para portas a dentro, uma escrava, perfecta

mucama e prendada na costura e no engommado, e outra boa

cozinheira e engommadeira;na rua do Espírito-Santo n. 11.”102

A diferença entre a média do preço do aluguel das cativas que é de 23$400 réis e o

pico de 40$000 réis nos mostra os diferentes serviços que os cativos são empregados e a

cotação real de cada atividade. Além, é claro que as cativas correspondem à maioria dos

escravos de aluguel anunciados em 1864.

Esse elevado número de cativas anunciadas 60% ou 653, contra 427 cativos ou

40% de escravos de aluguel, são bem parecidos com os números de cativos apresentados

por Roberto Guedes Ferreira no tocante as atividades ocupacionais. Roberto Guedes

trabalhando com expressões usadas por avaliadores e senhores sobre as ocupações dos

escravos contidos nos inventários post-mortem na cidade do Rio de Janeiro de 1801 a

1844 (FERREIRA, 2005,p. 243), são 145 escravos com as atividades ocupacionais:

cozinheiras, lavadeiras, engomadeiras, ensaboadeiras, rendeiras e bordadeiras. Entre

essas atividades ocupacionais existem 40 Homens (28%) e 104 Mulheres (72%).

Possivelmente esses escravos dispunham, segundo Roberto Guedes, da possibilidade de

oferecer algum rendimento ou jornal a seus senhores. (FERREIRA, 2005,p. 242)

Dos 145 escravos ou 10,6% do total de escravos, Roberto Guedes Ferreira afirma

que possivelmente poderiam gerar algum rendimento como escravo de aluguel ou ganho.

A atividade ocupacional de cozinheiro era representada por 51% (74) dos cativos, sendo

51% (38) Homens e 49% (36) Mulheres. Essa maioria de cativos que se ocupava como

cozinheiro vão se mostrar numericamente superiores a todas as atividades ocupacionais

dos escravos de aluguel do sexo masculinos anunciados no Jornal do Commercio

formando uma mão-de-obra muito ofertada em 1864.

102

Jornal do Commercio, 26.02.1864, Sexta-feira n° 56.

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O preço de 72% dos escravos de aluguel anunciados variava entre 21$000 réis e

30$000 réis, se compararmos com o escravo ao ganho Alexandre, que pagava 640 réis de

jornal diário ao seu senhor José Antonio Peixoto em 1860 103

, trabalhando o mês inteiro

gerava no final de trinta dias uma renda de 19$200 réis. É bem menos que o preço médio

dos escravos de aluguel ofertados nos anúncios, que era de 25$500 réis.

Com o seu escravo de aluguel tendo uma rentabilidade maior que o escravo ao

ganho, os proprietários que anunciavam o preço do aluguel do seu cativo correspondiam

19% dos 1.020 anúncios catalogados no Jornal do Commercio do Rio de Janeiro. Entre o

aluguel e a venda, os anúncios revelam a valorização dos escravos nesse período:

“Aluga-se, por 30$, ou vende-se por 1:350$, uma escrava parda,

que engomma, lava, cose e cozinha muito bem,na Rua do Espírito-

Santo n.11.”104

Essa boa rentabilidade do escravo de aluguel em comparação ao escravo ao ganho

– rentabilidade só para o proprietário - estaria ligada diretamente à atividade ocupacional

desse cativo. Os preços dos escravos anunciados em 1864 tem a sua variação de preço

entre 31$000 réis a 40$000 réis mensais, correspondem a 25 % dos escravos anunciados:

“Aluga-se um preto moço, escravo, bom pedreiro, ou para qualquer

serviço, por 32$ mensais; na rua do Senado n.61. Acima do

morro.”105

“Aluga-se uma escrava muito boa ama de leite, por 40$ mensaes;

na Rua do Hospício n.32.”106

Tabela 1

103

Inventário Post-Mortem, ANRJ, José Antonio Peixoto, 1860. Apud AMARAL, Rodrigo de Aguiar. op.

cit., p. 112. 104

Jornal do Commercio, 16.04.1864, Sabbado, n° 106. 105

Jornal do Commercio, 08.01.1864, Sexta-feira, n° 08. 106

Jornal do Commercio, 31.03.1864, Quinta-feira, n° 90.

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Distribuição (%) pelo preço (em mil-réis) mensal e pelo sexo dos escravos de

aluguel anunciados no Jornal do Commercio(RJ) em 1864.

Homem

Mulher

Criança*

Faixa de preço (em

mil-réis)

N

° %

N

° %

N

° %

Faixa 1 31$000 -

40$000 9

9

0 1

1

0 - -

Faixa 2 21$000 -

30$000

4

6

3

8

7

5

6

2 - -

Faixa 3 10$000 -

20$000

1

4

2

5

4

1

7

1 4 4

Total

6

9

3

6**

1

17

6

2** 4

2

**

Fonte: Jornal do Commercio 1864, n° 01 ao n° 212. Janeiro a julho.

*menor de 14 anos.

Nos preços mais altos, que variam de 31$000 réis a 40$000 réis mensais as cativas

representam 10% dos escravos anunciados, ou apenas 1 anúncio. Porém nos preços que

vão de 21$000 réis a 30$000 réis por mês, a porcentagem de cativas alcança os 62%. Essa

faixa corresponde a 72% dos anúncios com o valor do preço publicados (Gráfico 1). Essa

predominância das cativas nos anúncios com preços de 21$000 e 30$000 ou 62%, é

determinada pela importância dada as atividades ocupacionais domésticas no cotidiano da

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cidade: os serviços internos e os serviços externos de uma casa eram executados pelas

cativas alugadas.

Sobre as atividades ocupacionais domésticas as cativas de aluguel desempenham

funções diferenciadas no trato a executar serviços exclusivamente dentro ou fora das

residências dos locatários. As cativas que são mais anunciadas com o preço que varia de

21$000 réis a 30$000 réis realizam “serviços de portas a dentro”, ou 77%, das cativas

ofertadas nos anúncios; “Todo serviço interno de uma casa”, “todo serviço da cozinha”,

“os arranjos de uma casa”, “ensaboa”, “cose”, “engoma”, “cozinha”, “costura e

borda” e “lava” 107

. Os serviços externos de uma casa correspondentes aos 20% das

atividades executadas pelas cativas; “fazer compras”, “carregar água” e trabalhar como

“quitandeira” ou nas vendinhas de “doces”, disponibilizando para as cativas mais

mobilidade pelas ruas da cidade.

Nos anúncios com preços que variam de 10$000 réis a 20$000 réis, as atividades

ocupacionais estão ligadas aos serviços domésticos, porém há limitações quanto à idade,

se carregam seus filhos para o serviço e outras particularidades:

Dos 49 anúncios com os preços entre 10$000 réis e 20$000 réis, 24% dos cativos

anunciados são homens, 8% dos cativos são menores de 14 anos e 68% são mulheres, das

quais 45% são anunciadas para o aluguel e carregam seus filhos. Um fator que parece ser

determinantes para o baixo preço do aluguel das escravas anunciadas. Mas há outros

fatores que parecem interferir no preço do aluguel:

“Aluga-se uma escrava que lava e cozinha muito bem, por 20$

mensaes, com a condição de não sahir a rua, por se embriagar; na

rua S. Pedro da Cidade Nova n. 54.” 108

107

A partir de 1860 a cidade já começa disponibilizar de sistema público de abastecimento de água nas casas. 108

Jornal do Commercio, 16.03.1864, Terça-feira, n° 74.

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Os escravos de aluguel do sexo masculino destacam-se os “cozinheiros do trivial”

42% e “bom ou perfecto cozinheiro” 17%. Os “copeiros” correspondem a 18% das

atividades ocupacionais dos cativos anunciados. Serviços internos de uma casa

especificamente valorizados e ligados à gastronomia carioca, ou 77% dos serviços

desempenhados pelos cativos ofertados nos anúncios são para servir a mesa.

A relação dos escravos de aluguel como “os peritos cozinheiros” e sua ótima

rentabilidade no mercado em destaque com o preço entre 31$000 réis e 40$000 réis, um

escravo “bom pedreiro” a 32$000 réis:

“Aluga-se um preto moço, escravo, bom pedreiro, ou para qualquer

serviço, por 32$ mensais, na rua do senado n. 61. acima do

morro.” 109

E 3 anúncios com cozinheiros especializados aparecem supervalorizados a 35$000

réis mensais:

“Aluga-se, de casa de particulares, um escravo perito cozinheiro de

forno e fugão, massa e doce, muito humilde e asseiado, de conducta

afiançada, seu ultimo preço e 35$ pagos adiantados; para ver e

tratar, na rua da Quitanda n. 63.” 110

“Aluga-se tres bons escravos, sendo um bom cozinheiro por 35$, e

dous para todo o serviço menos despejos ou mascate, sabendo

tratar de animaes, a 26$ cada um; na rua do Espírito-Santo n.11.”111

“Aluga-se um escravo perfeito cozinheiro à franceza e à

portugueza, por 35$ por mez; na rua do ouvidor n. 57.” 112

109

Jornal do Commercio, 09.01.1864, Sabbado, n° 09. 110

Jornal do Commercio, 23.01.1864, Sabbado, n° 23. 111

Jornal do Commercio, 20.04.1864, Quarta-feira, n° 110. 112

Jornal do Commercio, 26.04.1864, Terça-feira, n° 116 e 29.04.1864, Sexta-feira, n° 119.

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O escravo ao ganho é predominante nos serviços de cargas e transportes na Corte,

na venda de quitutes, frutas, miudezas, barbeiros, sapateiros, carpinteiros, pedreiro,

marceneiros e outros. Luiz Carlos Soares relaciona na Tabela II (SOARES, 1988,p.140) as

atividades exercidas pelos escravos ao ganho, segundo as informações que os seus

senhores forneceram nos pedidos de licença para os seus escravos irem ao ganho

encaminhado à Câmara Municipal.113

Segundo Luis Carlos Soares, 96% escravos de ganho do sexo masculino não

tinham a sua atividade ocupacional declarada no pedido de licença, e provavelmente

estavam ligados as atividades que não necessitariam de muita especialização:

“(...) estes cativos fossem empregados em grande parte como

carregadores, pois como esta atividade não exigia nenhuma

especialização, apenas o dispêndio da força física, os senhores

simplesmente não declaravam as suas ocupações, inclusive porque

isso não era um procedimento obrigatório.” (SOARES, 1988,

p.116)

Apenas 5% ou 140 escravos ao ganho, tiveram sua atividades declaradas por seus

proprietários no período de 1851-1870. A maioria exercia atividades ocupacionais ligadas

a vendas: vendedores de café, carne, fazendas, frutas e legumes, artigos de armarinho, pão

e biscoito, peixe e calçados. E menos de 1% que tiveram suas atividades declaradas como:

“Ao ganho com cesto”, carregadores, cocheiro e serventes de obra.

Podemos identificar a partir das atividades ocupacionais dos escravos ao ganho a

diferenciação dos serviços executados pelos cativos. Se fosse possível aceitar que 95% dos

escravos que foram ao ganho exerciam atividades ligadas ao transporte na cidade do Rio

de Janeiro estaria estabelecida uma dicotomia entre os escravos de ganho e os escravos de

aluguel: ao primeiro os piores serviços, os mais labutares e pesados com os mais baixos

113

Documentação disponível no Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro.

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rendimentos. O segundo os serviços de “portas a dentro” especializados e com os mais

altos rendimentos. Fácil, simples e economicamente lógico.

O curto período aqui analisado, o ano de 1864, nos revela uma tendência a indicar o

escravo de aluguel como investimento mais lucrativo que o escravo ao ganho dentro do

período pesquisado. A visão dos proprietários que viviam ou complementavam a sua renda

com jornais pagos pelos cativos, ao ganho ou de aluguel, é um fator que determina o

rendimento que os cativos forneciam versus a mobilidade cativa nas áreas urbanas.

Segundo Sidney Chalhub, “(...) uma das dimensões deste afrouxamento da “sujeição

dominical” no meio urbano era a adaptação do investimento em escravos às condições de

mercado.” (CHALHOUB,1990,p. 215)

Essas “condições de mercado” variam tanto para os escravos ao ganho que começa

a disputar serviços com pessoas livres – na maioria imigrantes portugueses –, quanto para

os escravos de aluguel anunciados que mesmo especializados em atividades ligadas a

gastronomia correm o risco de trabalhar nas plantações das freguesias rurais da Corte. As

negociações entre senhor e escravo passam pelas condições do mercado de escravos no Rio

de Janeiro e estariam extremamente ligadas as relações pessoais:

“(...) que a população escrava estava diminuindo devido a

mortalidade, a emigração para as regiões rurais, à alforria e à baixa

taxa de natalidade, os senhores buscavam outras fontes de mão de

obra, ou seja os imigrantes da Europa ou do resto do Brasil, tanto

cativos quanto livres.” (KARASCH, 2000 p. 477)

No meio desse declínio da escravidão urbana no Rio de Janeiro nos meados de

1860, com o número de cativos diminuindo ainda encontramos o mercado de escravos de

aluguel vivo e ativo; as alforrias sofriam aumentos significativos, entre 1860 e 1864 foram

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registradas 3.931114

das quais 58% eram gratuitas (FLORENTINO, 2002, p.19). Manolo

Florentino reconduz a discussão sobre o valor nominal dos escravos e a negociação das

alforrias:

“Cedo ou tarde a extrema valorização do escravo cobraria seu

quinhão, e a compra da liberdade perderia o passo. Assim é que,

entre 1840 e 1864, as alforrias compradas foram as que mais

declinaram. As cartas gratuitas

afirmaram a sua dominância para homens e mulheres de todas as

idades, independentemente da ocupação, da cor e da naturalidade.”

(FLORENTINO, 2002, p.20)

Sidney Chalhoub tempera o assunto sobre alforria com a conclusão que as alforrias

não são concedidas só por boas oportunidades de um grande negócio:

“(...) a resolução de comprar ou vender escravos e, principalmente,

a decisão de alforriá-los ou não envolviam certamente cálculos

estritamente econômicos. Mas frequentemente implicava também

avaliações afetivas e em considerações de segurança individual.”

(CHALHOUB,1990,p. 198)

Os anúncios de jornal nos fazem entender como a segunda fase de um processo de

decisão tomada pelo senhor ou pelo escravo tendo que encarar e “adaptando-se à

conjectura urbana”, teria seu começo durante uma crise financeira ou mesmo na ausência

do seu proprietário da cidade para uma longa viagem com sua família:

“Aluga-se, para casa de família capaz para os serviços de portas a

dentro, uma boa escrava, dando-se mais em conta por levar em sua

companhia um filho de 3 annos, com a expressa condição de não

sahir à rua por ser escrava de estimação de seus senhores, que estão

ausentes; trata-se á rua das Violas n.1, esquina, das 8 horas da

manha em diante.”115

114

Idem. p. 478. Tabela 11.12. 115

Jornal do Commercio 7.03.1864 Segunda-feira, n° 66.

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Formulada a estratégia senhorial de alugar o seu cativo para não deixar o mesmo

desprotegido e sem ter como se sustentar seria uma “escrava de estimação de seus

senhores” e que não poderia “sahir à rua”. Esse é um entre vários senhores que precisavam

ter alguma renda, e usavam o seu escravo para obter, e ainda diminuíam as despesas da casa

com alimentação e vestes do cativo e sua cria. E ainda em todo o caso não se desfazia do

seu escravo em momentos de dificuldade financeira ou viagens, mantendo assim aparente os

laços de afetividade e gratidão com o seu escravo.

Já estabelecemos uma estratégia pautada numa boa rentabilidade financeira e na

proteção e preservação do escravo a ser alugado por parte do seu senhor. Dos cativos

necessitamos entender o porquê aceitar ser alugado a outro senhor, prestar seus serviços à

outra casa.

Uma pista das mais valiosas foi o comentário feito pelo Cônsul português no Rio de

Janeiro em 1845 e que está nos Arquivos em Lisboa: “Segundo o cônsul português, as

lusitanas- geralmente originarias dos Açores – recusavam-se a aceitar o isolamento e a

submissão característicos dos empregos domésticos exercidos pelas cativas.”

(ALENCASTRO, 1988, p.41)

Isoladas sem poder ir à rua? Ou separadas no árduo trabalho doméstico de cada dia?

Em vários anúncios a expressa determinação de não poder sair à rua isolava o cativo só da

cidade? Ou separava dos demais, trabalhando solitariamente no cotidiano de uma vida

familiar? As imigrantes portuguesas eram livres e não cativas, e se vieram para uma

sociedade essa sociedade era escravistas.

E dentro dessa estratégia dos escravos, e bem diferente dos imigrantes portuguesas

que depois receberam licença para retornar aos Açores, os cativos estabeleciam seus laços

para não ser vendidos ao eito, estabelecem uma rede de interação com outros senhores,

pretender a liberdade se possível através dos bons serviços prestados – sendo fiel, submisso

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e grato – pois a compra da alforria era nesse período muito pouco provável. Uma

autonomia bem repartida entre senhor/escravo:

Tendo não todos os escravos urbanos da cidade do Rio de Janeiro como objeto

mais delimitando no espaço e no tempo, vislumbramos que os grandes anúncios das

agências ou casas de aluguel de escravos foram direcionados aos períodos sazonais. Assim

como entre o tronco e a fuga a escravidão foi dinâmica, os anúncios de aluguel também se

dinamizaram.

A “válvula de escape” do sistema escravista, ou seja, a alforria, como diz Antônio

Carlos Jucá Sampaio, pressupunha a existência da escravidão, com a possibilidade de

alforriar alguém depende diretamente da possibilidade de se escravizar novos indivíduos

(SAMPAIO,2005,p. 310). O término desse fluxo de mão-de-obra cativa com o fim do

tráfico transatlântico em 1850, o elevado valor do preço do escravo, o tráfico para as áreas

da cafeicultura fluminense e paulista, o aumento das manumissões gratuitas, a expansão da

atividade mercantil e o crescimento da área urbana da corte foram determinantes na

tomada de decisão de mandar o cativo para o aluguel.

No quantum da população cativa (SAMPAIO,2005,p. 310) muito alterada em

comparação ao início do século XIX, tinha no mercado de escravos de aluguel, a

confluência constante na politização da relação senhor/escravo, a única estabilidade no

comércio de cativos. Lugar onde o escravo e seu proprietário corriam para o mesmo ponto

juntos: com o aluguel quase tudo poderia ser resolvido. As dificuldades do cotidiano, a

proteção senhorial, a disciplina e fidelidade cativa, a renda que vinha em boa hora, as

necessidade, os sentimentos, as gratidões, revoltas, castigos e fugas.

O mercado, que de um lado tinha proprietários e escravos disputando anúncio a

anúncio com libertos, livres e estrangeiros os serviços domésticos dos fogos da cidade. E

do outro um comércio licenciado das casas especializadas que cobrava seus 10 % a sua

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estabelecida clientela de bons senhores para intermediar os aluguéis de seus escravos com

grandes proprietários das áreas rurais da corte.

Assim o mercado de aluguel de escravos tinha uma lógica diferenciada entre

proprietários e agências. Os proprietários de escravos na cidade uma lógica: a de negociar

diretamente com seu bom e fiel escravo ou entregar e aceitar o intermédio de terceiros em

troca de boas garantias das agências. Um mercado cotidiano nos impressos do jornal tão

dinâmico pelas exigências quanto pelas soluções.

Referências Bibliográficas:

ALENCASTRO, Luiz Felipe de. Proletários e Escravos: Imigrantes portugueses e

cativos africanos no Rio de Janeiro, 1850-1872. Revista Novos Estudos, N°. 21 – Julho

de 1988. pp. 30-55.

AMARAL, Rodrigo de Aguiar. Nos limites da escravidão Urbana: A vida dos pequenos

senhores de escravos na urbes do Rio de Janeiro, 1800-1860. Dissertação de Mestrado

UFRJ. Rio de Janeiro. 2006.

CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da

escravidão na corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

FERREIRA, Roberto Guedes. Autonomia escrava e (des) governo senhorial na cidade

do Rio de Janeiro da primeira metade do século XIX. In: Tráfico, cativeiro e liberdade

(Rio de Janeiro, séculos XVIII e XIX) organização Manolo Florentino. Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 2005.

FLORENTINO, Manolo. “Alforrias e etnicidade no Rio de Janeiro oitocentista: notas

de pesquisa.” In: TOPOI. Revista de História n° 5. Rio de Janeiro: PPGHIS/ 7 Letras,

2002, pp.9-39.

___________________. Tráfico, Cativeiro e Liberdade. (Rio de Janeiro, século

XVIIXIX)/organização Manolo Florentino. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

GÓES, José Roberto. Escravos da Paciência. Estudo sobre a obediência escrava no Rio

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de Janeiro (1790-1850). Tese de Doutorado. PPGHIS-UFF. Niterói:UFF, 1998.

KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo,

Companhia das Letras, 2000.

SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá. “A produção da liberdade: padrões gerais das

manumissões no Rio de Janeiro colonial, 1650-1750.”pp. 287- 329. In: Florentino,

Manolo (org.), Tráfico, cativeiro e liberdade (Rio de Janeiro, séculos XVIII e XIX). Rio

de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

SOARES, Luiz Carlos. “Os Escravos de ganho no Rio de Janeiro do século XIX”.

Revista Brasileira de História, São Paulo, ANPUH/Marco Zero, vol. 8, n°16, março de

1988/agosto de 1988.

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Teorias no espelho: as máscaras – Análises entre O Labirinto da Solidão e o

Espelho de Próspero

Daiana Pereira Neto116

RESUMO: O tema do presente trabalho são as máscaras que encobrem o povo mexicano e

o norte-americano, máscaras formadas historicamente, que se caracterizam aqui no sentido

psicológico e cultural. Como principais instrumentos para analisar essas máscaras,

utilizamos o “Labirinto da Solidão” de Octavio Paz, ensaísta mexicano, e “O Espelho de

Próspero”, de Richard Morse, historiador norte-americano.

PALAVRAS- CHAVE: Máscaras, Octavio Paz, Richard Morse.

ABSTRACT: The theme of this work are the masks that hide the Mexican people and

North American, masks formed historically, characterized here in the psychological and

cultural sense. The main instruments used are “O Labirinto da Solidão”, by Octavio Paz,

Mexican essayist, and “Prospero’s Mirror”, by Richard Morse, North American historian.

KEYWORDS: Masks, Octavio Paz, Richard Morse

As funções de uma máscara são várias: proteger, esconder, liberar, transformar, e

esconder a identidade de quem a usa. As expressões nas máscaras são muitas, elas podem

ser risonhas, malignas, diabólicas, mas sempre são obras de arte. Muitas dessas

características são encontradas nas máscaras do México.

A cultura mexicana cobre-se de máscaras. No presente trabalho buscaremos

trabalhar com as máscaras apresentadas no sentido de Octavio Paz, máscaras psicológicas,

116

Graduanda em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).

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de caráter e de cultura. Buscaremos através do presente texto identificar as máscaras do

povo mexicano e do povo norte-americano, tendo como principais instrumentos para essa

análise “O Labirinto da Solidão”, de Octavio Paz e “O Espelho de Próspero”, de Richard

Morse.

Em “O Labirinto da Solidão”, nos deteremos mais nos capítulos iniciais: “O

Pachuco e outros extremos”, “Máscaras mexicanas”, “Todos os Santos”, “Dia de Finados”,

“Os Filhos da Malinche”. E para apresentar as máscaras norte-americanas nos deteremos

na terceira parte do livro de Morse.

Buscaremos assim compreender as máscaras que esses povos carregam, usando-as

para protegerem-se de um mundo de solidão, as máscaras que encobrem o verdadeiro eu

dessas sociedades. Como afirma Paz, o “Labirinto da Solidão” foi um exercício da

imaginação crítica, o que verdadeiramente o intrigava era o que estava por trás da máscara.

Uma máscara que representa uma muralha para encobrir do olhar alheio, e ao mesmo

tempo é uma máscara que o expressa e o sufoca. O homem é inseparável de suas ficções e

enquanto vivemos criamos uma máscara para nós. Se é possível descobrir o que há por

baixo da máscara, não sabemos, mas tentar compreender um pouco mais dessa realidade

humana é sempre algo válido.

1-A falsa face: Festas, amores e religião em um universo ìbero-americano

Ao nos encontrarmos com o universo mexicano apresentado por Octavio Paz, nos

deparamos com um universo de cores, medos, máscaras e explosões de sentimentos. O

mexicano é um ser complexo, que manifesta sua personalidade em diversas situações.

As máscaras do mexicano se estendem a quase todas as suas relações com seu

próximo. Ele não teme ser usado pelo outro, mas se abrir, deixar a sua solidão. Diante da

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simpatia, da doçura, do amor, a resposta do mexicano é a reserva. Como a maioria dos

povos ele encara a vida como luta, mas ao invés de atacar, fica na defensiva pronto para

repelir o ataque.117

Seu caráter fechado expressa-se nas suas artes, nos seus amores. As artes mexicanas

tem um apelo a forma, a métrica na poesia, por exemplo. Essa forma por várias vezes vai

sufocar esse povo. Para evitar de propor coisas novas, o que uma sociedade realmente livre

propõe e permite, o mexicano vê no seu tradicionalismo um refúgio uma proteção diante

do mundo ao qual parece não pertencer. O excesso de cortesia, o excesso de rituais e

etiquetas, são uma forma de demonstrar esse amor a forma, e ao isolamento.

O mexicano não teme ser humilhado, tem na resignação uma de suas maiores

qualidades. Ele teme simplesmente se abrir para o mundo. Para Paz, a mentira do

mexicano não destina-se a enganar o outro, mas a si mesmo isso seria o que o diferencia

dos outros povos. A mentira mexicana é fértil, e a simulação é tanta e tão refinada e

recriada constantemente, que a mentira acaba se misturando com a verdade e ao final do

jogo, não se consegue mais a diferença entre ambas.

Ao analisar a diferença entre o ator e o simulador, Paz defende que o ator após

entregar-se a personagem e interpretar em sua apresentação do outro ser, abandona-o e

volta a ser ele mesmo. O simulador tem uma necessidade constante de simular, o seu

personagem fundi-se a ele, e não parará de simular até o fim de sua vida, a cumplicidade

entre simulador e personagem não pode ser quebrada.

O mexicano dissimula, e quem dissimula procura se esconder e se fechar, não

permitir que o outro o veja. O mimetismo do mexicano demonstra seu horror as aparências,

ele dissimula tanto que acaba se fundindo com os objetos que o cercam. Basicamente

ignora a sua existência, e busca ser ninguém.

117

PAZ, Octavio. O Labirinto da Solidão e Post Scriptum. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1984.

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As festas segundo Paz são o momento em que o mexicano expõe todos os seus

sentimentos, são um momento de explosão. Por isso o calendário mexicano é repleto de

feriados, e grande parte do orçamento de municípios pobres são gastos com as festas. Ao

contrário do que parece, as festas são o único luxo dessa sociedade, o mexicano não quer

se divertir ele quer se arrebatar, ultrapassar os seus limites, e pular o muro da solidão que o

isola durante todo o ano. Se eles esquecem de si mesmos e mostram a verdadeira face não

há como saber. O que se sabe é que numa explosão de cores, sons e cheiros ele se vê

envolto pelo arrebatamento e pela violência. As festas são o contrário do silêncio e da

resignação do mexicano. Festa é participação é encontro com o outro, embora possa-se

pensar que seja um desperdício dos recursos acumulados penosamente durante um longo

tempo. A festa é para Paz uma revolta, na qual a sociedade se dissolve, e imerge

completamente em uma dose de vida pura, livre das normas sufocantes, é o momento em

que o mexicano ri de si mesmo de sua sociedade, da etiqueta, da religião e de seus deuses.

A festa mexicana é fonte de criação de força. Ao contrário das festas modernas

individualizantes, a festa mexicana com seus ritos, faz com que as pessoas comunguem

entre si e que se encontrem na confusão original. Graças as festa o mexicano comunga com

seus semelhantes, e encontra o sentido para sua tendência religiosa ou política. Se na vida

cotidiana o mexicano se esconde, nas festas ele se abre. O mexicano só conhece, a

confusão, a canção e o delírio, diálogo ele não conhece e não busca conhecer.

Enveredando mais pelo labirinto de Paz temos, os filhos da Malinche, o mexicano

tem o sentimento de ser o filho da xingada, diferentemente do que imaginamos com a

nossa expressão, “filho da puta”, a xingada no México corresponde a figura feminina

passiva que sofre ação de um ser ativo, masculino e que então é abandonada a sua sorte.

Ser o filho da mãe violada faz com que o mexicano envolva-se cada vez mais na sua

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máscara de solidão, ele seria o fruto de uma violação, da passiva entrega da mãe, e da ação

violenta do pai.

2- As máscaras Anglo-americanas- Morse e as aparências de uma sociedade

perfeita

Morse em “O Espelho de Próspero” busca mostrar uma América latina, onde a

Anglo-América possa se espelhar e enxergar suas enfermidades e defeitos. Não busca

mostrar a Ibero-América como uma parte do continente ultrapassada e vítima de uma

colonização que não teria dado certo.

Destacamos para essa pequena análise a terceira e última parte do livro, a “Sombra

do Porvir”, acreditamos que aqui o autor deixa transparecer um olhar sobre a sua própria

sociedade que nos permite identificar um Estados Unidos da América, como não havíamos

nos deparado tão claramente e de maneira tão inteligente antes.

Embora Morse não se refira a máscaras, tão claramente quanto Paz, podemos

enxergar elementos de subterfúgio nos norte-americanos. A organização da sociedade se

estrutura de modo que ninguém esqueça o seu lugar no jogo. Nos encontramos assim em

uma sociedade de massa onde o indivíduo perde-se em meio a um mundo complexo onde é

descaracterizado, cobrado e confundido.

Vemos um ser maquinizado. O exemplo da guerra é claro, o norte-americano vê na

guerra um negócio como outro qualquer, mantém-se psicologicamente longe do outro. A

piedade e a compaixão tornam-se desonrosas. Daí um norte americano não ter a capacidade

de sentir pena de um mendigo, este é visto como um incapaz.

A massificação dessa sociedade cria uma falsa individualidade em estilo de vida e

improvisações. O ser individual encontra-se dividido entre a vida pública e a vida privada.

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Cabe aqui exemplificar com a música, da forma como é vista por Morse, segundo ele o

indivíduo em uma danceteria, não estaria experimentando algo coletivo, cada um escuta a

música e da-lhe a percepção que deseja, o jazz, o rock, o country norte -americanos

condenam o indivíduo ao isolamento e a impotência. Estamos em uma sociedade em que

dizer “eu” é quase um impropério, estamos no mundo do “nós”. Esse isolamento Morse

compara ao samba carioca, uma escola vibrante. Por sua vez, nos remeteremos as festas

mexicanas, como vemos as festas anglo-americanas, se opõe a idéia da festa mexicana

demonstrada por Paz, são o lugar onde falsamente o indivíduo pensa estar participando de

alguma coisa. A festa mexicana é participação, é um mergulho na vida.

Assim como o mexicano se esconde o americano, mostra-se como um ser

espontâneo, simpático. Na verdade ele se relaciona com os outros sem entregar nada de si.

Seria então, a máscara anglo-americana tão próxima da máscara mexicana, a diferença está

em que o mexicano faz de tudo para não ser visto. O estadunidense ao contrário tenta ser

visto, entre o abismo de sua vida pessoal e pública, confronta-se com um casamento

amargo, e com a solidão que o devora, e o coloca em luta consigo mesmo e com os demais.

Enquanto o mexicano de Paz mantém uma série de rituais e fórmulas para se

relacionar com o outro, o americano estabelece uma objetividade que pensa eliminar a

distância entre as pessoas, tratam-se pelo primeiro nome como íntimos, e essa erosão da

etiqueta, esta objetividade revela o caráter doentio dos contatos. Uma sociedade em

desespero que busca, portanto, manter o indivíduo sob controle.

Segundo Morse, essa situação foi fruto da trajetória do liberalismo. Enquanto os

beneficiários do sistema eram uma minoria privilegiada, a segurança cumpriu as

expectativas. Mas quando se estendeu aos outros, o indivíduo tornou-se um ser de ego

encolhido, e que esqueceu os usos intelectuais de outrora. Esse novo ser se esconde imerso

em grupos, de amigos, de interesses, sindicatos, terapias. Se tornou um ser solitário.

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A indústria cultural norte-americana, que vemos se espalhar pelo mundo e chegar

até o Brasil, segundo Morse é uma publicidade massificante que transmite a mensagem de

que o indivíduo deve resignar-se a ser vítima e a sofrer violências. As séries mostram

situações limite, como monstros tidos como mais normais que humanos.

Estão em um universo que oferece resposta para tudo, e uma vez existindo essas

respostas, a pessoa perde sua individualidade. É impedido de se expressar, de

compreender, submetido a humilhações cotidianas, e por fim sucumbe a fúria, que dirige a

alvos substitutos, e tornam-se meramente mais um problema a enfrentar. Ele é assim

liberado da culpa e da responsabilidade por seus atos. A essa visão de Morse, podemos

ilustrar, com os atentados cometidos por jovens norte-americanos a suas escolas e

faculdades. Eles sucumbem a fúria contra um sistema escolar despersonalista.

A sociedade protesta contra a corrupção do governo, mas não contra as regras do

jogo. O que segundo Morse, faz com que todos o norte-americanos pareçam iguais para os

latino americanos. O que interpretamos é que o norte-americano possui a certeza, o

sentimento de fazer parte da administração, que sua opinião importa, por isso, seu protesto

dirige-se contra uma figura única, contra o presidente, contra a corrupção, mas não contra

o sistema. Esse sentimento não é compartilhado pelos sul-americanos, a frase: “você sabe

com quem está falando?” ainda povoa essas áreas, temos a consciência de que o poder é

para poucos.

A sociedade anglo-americana é uma sociedade desencantada. Embora a América

Latina seja tomada como ultrapassada, parada no tempo, importadora de tradições, é nas

artes latinas que vemos a necessidade dos artistas em criarem um universo encantado do

qual sejam o centro e não a periferia, referimo-nos ao chamado “realismo maravilhoso”118

.

118

Para saber mais ver: MORSE, Richard. A volta do Mchuhanaíma. São Paulo: Cia. Das Letras, 1985.

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Ao lermos Morse compreendemos que a máscara do anglo-americano é uma

máscara, de máquina, o ser é programado pelas universidades, no trabalho, na sua vivência

cotidiana, e tem a ilusão de ser o centro do mundo, se não são perfeitos, pelo menos se

contentam com a idéia de serem o melhores que existem.

Ao chegarmos nesse ponto acreditamos ser plausível, inserir o pensamento de

Vasconcelos, em sua La Raza Cósmica. Vasconcelos defende, que os ibero-americanos são

o povo que tem a maior capacidade de criar algo novo. Ao tornarmo-nos independentes

muitos dos latinos desejaram pertencer ao mundo anglo, desejaram ter sido colonizados

pelos ingleses. Os norte-americanos segundo o autor nunca perderam a idéia, o ponto fixo

no horizonte, de que eram parte fundamental na história, de que possuíam um destino de

constituírem um império para supostamente trazer liberdade para todos os povos, a

liberdade norte-americana. A América Latina é um lugar de uma grande diversidade, um

mundo ainda encantado, que segundo Vasconcelos possui uma missão muito maior, a

missão de criar a raça única.119

3-As máscaras e a solidão: Distinções entre as máscaras e a solidão mexicana e

norte-americana

Para Paz “a solidão é sentir-se só e saber-se só, desligado do mundo e alheio a si

mesmo, separado de si, e não é característica exclusiva do mexicano”. O homem é o único

ser que se sente só, sua natureza consiste em aspirar e se realizar em outro. A comunhão

com o outro e a plenitude da união é o que espera o mexicano e todos os homens no fim do

labirinto da solidão.

119

VASCONCELOS, José. La Raza Cósmica. Essa versão digital segue a versão de Buenos Aires, Espasa-

Calpe, 1948. Disponível em:<http://ensayo.rom.uga.edu.antologia/XXA/vasconcelos>Acesso em: 15 de

outubro de 2009

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A história do mexicano é uma contínua busca por si mesmo, neste ensaio Paz vê a

história do México como uma tentativa de recuperar a origem e a tradição e,

conseqüentemente, a identidade. Tenta refazer o caminho perdido para encontrar sua

identidade e a identidade do México, o “outro eu” escondido sob a máscara. Saindo assim

da solidão que os sufocam a tanto tempo. Sucessivamente afrancesado, hispanista... o

mexicano quer voltar a ser sol, a ser o centro de vida de onde um dia foi arrancado. A

solidão mexicana é assim um sentimento de orfandade e uma contínua busca por

restabelecer os laços coma criação.

Um detalhe muito interessante é o fato de Octavio Paz ter escrito “O Labirinto da

Solidão”, quando de sua primeira estada nos Estados Unidos. Isso permitiu a Paz, perceber

as distinções entre as máscaras dos norte-americanos e sua solidão, das máscaras e da

solidão do mexicano.

Para Paz, o norte-americano encontra-se em um mundo que tem seu sentimento de

solidão, extraviado em um mundo abstrato povoado por máquinas, concidadãos e preceitos

morais. Nada mais afastado do sentimento mexicano que o do norte-americano, ele não

sente ter sido arrancado do centro, ele é o centro, o mundo foi feito a sua imagem, como

um espelho. Porém esses espelhos, também já não fazem com que o norte-americano se

encontre, está só entre um mar de espelhos que os oprimem.

Como Morse, Paz afirma que ao chegar aos Estados Unidos, assombrou-se com a

aparente segurança, confiança, alegria e conformidade das pessoas. As críticas dos norte-

americanos são críticas reformistas. Assim como enxerga Vasconcelos, Paz afirma que eles

se sentem uma sociedade forte, que irão realizar seus ideais e sobreviver a um futuro

ameaçador para todos os homens.

Para Octavio, os norte-americanos vêem o mundo como algo que pode ser

aperfeiçoado, para o mexicano é algo que pode redimir. Ao contrário do norte-americano o

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mexicano acredita na comunhão e na festa. O forte catolicismo mexicano também é união.

O norte-americano só deseja enxergar a parte positiva da realidade, desde a infância são

submetidos a um processo de adaptação, seus princípios são repetidos em todas as partes

do país, na imprensa, na rádio, nas escolas, nas igrejas, e por suas mães e esposas. Presos

nesse esquema o homem e a mulher não crescem, o sistema os sufoca.

Semelhante sufocação só pode produzir rebeliões individuais. A espontaneidade

tem de se vingar e aparecer de alguma forma, a máscara benevolente, atenta e sem

expressão, substitui a mobilidade de expressões do rosto humano, eles estão sob a máscara

da mecaniquicidade. A máscara que fixa dolorosamente o sorriso humano mostra como é

doloroso a vitória dos princípios sobre os instintos. Talvez, como afirma Paz, o sadismo de

quase todas as relações americanas, seja apenas mais uma forma de fugir a petrificação que

a máscara da pureza impõe.

Nem o norte-americanos nem o mexicanos conseguiram obter uma reconciliação

com o todo, com o universo. Todavia a diferença é a de que a solidão do mexicano é a das

águas paradas e a do norte-americano é a solidão do espelho. Nenhuma das duas

sociedades é para Paz uma fonte. Nenhuma é auto-suficiente, ambas precisam do outro

para se completar e para não serem sós.

Considerações Finais

Ao tentarmos entender as máscaras que encobrem a solidão dessas duas sociedades,

buscamos demonstrar como sociedades tão aparentemente opostas podem se sentir e serem

sós. E como as análises de Octavio e Morse, podem se complementar.

Paz afirma que sua preocupação em “O Labirinto da Solidão” não foi o caráter

nacional do mexicano, mas o que estaria por debaixo desse caráter, o que a máscara

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escondia. Não estava preocupado em definir o mexicano, mas em realizar uma crítica sobre

esse ser que esta sempre em busca de seu verdadeiro ser, que subjaz imerso sobre a

máscara sufocante do cotidiano.

Ao lermos Morse, temos um deslumbre de uma sociedade desencantada,

mecanizada. Vale transcrever um trecho da conclusão do livro de Morse:

“... cabe pensar se alguma recompensa, ou até mesmo uma incerta

liderança mundial, não está reservada a um povo que conserve a

capacidade de visualizar e refletir sobre sua própria condição, a um

povo que, no espírito de Vitória e Suaréz, consiga enxergar uma lei

natural para o mundo em sua diversidade, ao invés de defender, no

espírito de Hobbes e Locke, uma forma mecanicamente repetitiva

de direitos naturais egocêntricos”.120

Os Estados Unidos da América precisam aprender a dialogar com o outro e só

poderão fazer isso quando começarem a dialogar consigo mesmos. Segundo Octavio Paz,

sorridentes ou coléricos, com a mão aberta ou fechada, os Estados Unidos não ouvem nem

olham o mexicano; mas andam e andando invadem suas terras e os esmagam, o puritano

fala com Deus e consigo mesmo, mas não fala com o outro. Se sobressaem eloqüentemente

em seu monólogo.

Quando Paz escreveu esse ensaio, se manifestava nos Estados Unidos uma

poderosa corrente de opinião, que colocava em discussão as crenças e os valores bases da

civilização norte-americana. Para Octavio os estadunidenses só poderão dialogar com o

mexicano ou com qualquer outro povo, quando conseguir dialogar com sua outridade:

negros, “chicanos”, e com seus jovens. Talvez o primeiro passo para esse diálogo foi dado

de modo decisivo no ano de 2008, pela primeira vez na história estadunidense, vimos um

candidato negro ser eleito para a presidência. Talvez as máscaras comecem a cair.

120

MORSE, Richard M. O Espelho de Próspero: cultura e idéia nas Américas. São Paulo: Companhia das

Letras, 1988. p.164.

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Pesquisas afirmam que Barak Obama recebeu 63.589.985 votos populares (51% do

eleitorado), 349 votos no Colégio Eleitoral contra 162 para seu adversário republicano.

Conquistou estados-chave como: Pensilvânia, Florida, Ohio, Colorado, New Mexico121

. O

desejo por mudança se expressa nessa nova geração.

Para Paz pela primeira vez na História, o objeto de reflexão do mexicano não é

diferente da de outros povos: como criar uma sociedade, uma cultura que não negue a

humanidade nem a transforme em uma abstração vã. Para ele o mexicano, assim como o

norte-americano, ainda não encontrou o que venha a reconciliar sua liberdade com a

ordem, a palavra com o ato, e ambos com uma evidência que seja humana. Como todos os

homens modernos, o mexicano vive em uma sociedade de simulação, da solidão fechada,

que defende e oprime, da máscara que esconde desfigura e mutila. Se o mexicano arrancar

a máscara e se abrir, se enfim se enfrentar, começará a viver e a pensar de verdade. Quando

vencer essa solidão e arrancar as máscaras sairá do labirinto sufocante e sombrio

Para finalizar, inserimos a nossa reflexão um pequeno poema de Paz:

Hermandad

Homenagem a Claudio Ptolomeu

Soy hombre: duro poco

y es enorme la noche.

Pero miro hacia arriba:

las estrellas escriben.

Sin entender comprendo:

también soy escritura

121

MARTINS, Marília. Obama nomeia líderes para seu time de transição. In__Diário de Nova York.

Disponível em<www.oglobo.globo.com/blogs/ny> Acesso em 15 de novembro de 2008.

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y en este mismo instante

alguien me deletrea.122

No fim das contas todo os homens duram pouco, mas todo homem possui o dom de

ser escritura, de ser uma linguagem universal. O céu é o mesmo para todos os homens.

Nenhum ser humano é uma ilha e é no outro que nos encontramos para deixar de sermos

sozinhos e nos entendermos, é o outro que nos soletra.

Referências Bibliográficas:

AGUIAR. Maria Alice. Um Diálogo com o Labirinto da Solidão e Post Scriptun de

Octavio Paz. Anais do 2 Congresso Brasileiro de Hispanistas, outubro de 2002.

Disponível em: <www.scielo.com > Acesso 20 de outubro de 2009.

CORREA, Ana Maria M. A Revolução Mexicana. São Paulo: Brasiliense, 1984.

KARNAL, Leandro. Estados Unidos: A Formação da Nação. São Paulo: Editora

Contexto, 2001.

MONTEIRO, Pedro Meira. As Raízes do Brasil no Espelho de Próspero. IN__: Novos

Estudos- CEBRAP, nº 83. São Paulo: março de 2009.

MORSE, Richard M. O Espelho de Próspero: cultura e idéia nas Américas. São Paulo:

Companhia das Letras, 1988.

PAZ, Octavio. O Labirinto da Solidão e Post Scriptum. Rio de janeiro: Paz e Terra,

1984.

122

Este poema está disponível em:< www.antoniomiranda.com.br /México /Poesia /OctavioPaz.htm>

Acesso em : 20 de Outubro de 2009.

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REYES, Alfonso. "Notas sobre la inteligencia americana". Disponível em:<

http://ensayo.rom.uga.edu/antologia/XXA/reyes/> Acesso em: 15 de outubro de 2009.

VASCONCELOS, José. La Raza Cósmica. Essa versão digital segue a versão de Buenos

Aires, Espasa-Calpe, 1948. Disponível

em:<http://ensayo.rom.uga.edu.antologia/XXA/vasconcelos>Acesso em: 15 de outubro de

2009.

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Os “Povos Selvagens” e um novo modo de existir: relações de compadrio

na Freguesia de Rio Pomba.

Daiana Lucas Vieira

RESUMO: Neste trabalho, vamos tratar da questão do apadrinhamento dos indígenas

aldeados inseridos no processo de cristianização durante a segunda metade do séc. XVIII

em Minas Gerais. Para tal, serão analisados os registros de batismo da Freguesia do Mártir

São Manuel dos Sertões do Rio da Pomba e Peixe dos índios Croatos e Cropós de 1767 a

1800. Assim como, as obras que se dedicam a discussão da questão indígena no Brasil, e as

que se referem às possíveis estratégias sociais forjadas na escolha dos padrinhos de

batismo. Destarte, pretendemos corroborar a idéia de que foram adotadas estratégias pelos

indígenas, lógicas ou naturais, que podem ser reveladas por meio de um estudo mais

detalhado dos indivíduos envolvidos nas cerimônias de batismo.

PALAVRAS- CHAVE: Apadrinhamento, indígenas, laços sociais.

ABSTRACT: On this work we are going to discuss the issues of tribal indigenous people

supporting, which were included in the process of Christianization during the first half of

the XVIII century in the state of Minas Gerais, Brazil. For that, Croatos and Cropós

indigenous baptism registries, which were made in Freguesia do Mártir São Manuel do Rio

Pomba e Peixe, will be analyzed between the years of 1767 and 1800. This is going to be

dealt with according to the pieces of work dedicated to discuss the indigenous issues in

Brazil and to the ones which were dedicated to discuss the possible forged strategies of

Gradunda em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Bolsista de iniciação científica da

FAPEMIG ligada ao projeto “Nobres e Principais desta Terra(...)” desenvolvido pela Prof. Doutora Carla

Maria Carvalho de Almeida. E-mail: [email protected]

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choosing a Godfather for these indigenous. Firstly, we intend to corroborate the idea of

logical or natural strategies created by the indigenous. Such strategies can be revealed

through more detailed studies of individuals involved in the Christian baptism ceremonies.

KEYWORDS: Godfather, indigenous, social connections

Este trabalho tem como objetivo enfatizar as mais diversas formas de estratégias

dos envolvidos na cerimônia de batismo reveladas através da análise dos envolvidos nesta,

assim como o perfil de padrinhos e dos pais do batizando, dentre outras questões

pertinentes ao tema. Visando aperfeiçoar o conhecimento sobre os povos indígenas e as

relações existentes entre os membros presentes nos aldeamentos. Assim como, contribuir

para os debates e novas reflexões acerca do tema que por muito tempo foi objeto de

resistência entre os historiadores.123

Buscando entender as estratégias de resistência, associação e as relações forjadas

pelos indígenas, de modo racional ou irracional, com os índios de outra etnia, escravos,

agregados, proprietários de terras, missionários e demais membros do aldeamento.124

Tentaremos observar as características presentes no ato do compadrio referente à Freguesia

do Mártir São Manuel dos Sertões do Rio da Pomba e Peixe dos índios Croatos e Cropós.

Com tal finalidade, são analisados os registros de batismo da freguesia em um recorte

temporal de 33 anos, de 1767 a 1800.

123

Sobre este debate historiográfico ver; MONTEIRO, John M. TUPIS, TAPUIAS E HISTORIADORES-

Estudos de História Indígena e do Indigenismo. Tese Apresentada para o Concurso de Livre Docência.

Campinas, agosto de 2001. Pag. 1-235. 124

A respeito das associações forjadas por indígenas veja-se: GARCIA, Elisa Frühauf. Quando os índios

escolhem os seus aliados: as relações de “amizade” entre os minuanos e os lusitanos no sul da América

portuguesa (c.1750-1800). VARIA HISTORIA, Belo Horizonte, vol. 24, nº 40: p.613-632, jul/dez 2008;

ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Metamorfoses indígenas: identidade e cultura nas aldeias coloniais

do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003; RESENDE, Maria Leônia Chaves de. “Brasis

Coloniales: o gentio da terra em Minas Gerais setecentista (1730-1800)”. p.1. Disponível em:

<http://lasa.international.pitt.edu/Lasa2001/ChavesdeResendeMaria.pdf> Acessado em: 30/06/09.

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Para entendermos o funcionamento deste aldeamento que possui além das

características comuns aos aldeamentos da segunda metade do século XVIII as suas

particularidades se faz necessário inseri-lo em seu contexto histórico.

Durante o auge da exploração do ouro permaneceram desconhecidas as “Áreas

Proibidas” dos sertões de Minas Gerais, até o declínio deste em Mariana e Ouro Preto. Os

sertões do leste de Minas Gerais ficaram conhecidos como “Áreas Proibidas” devido ao

controle exercido pela coroa, que pretendia evitar o aumento da comunicação entre as

capitanias mantendo as matas e os indígenas como obstáculos para o extravio de ouro e

possíveis invasões.

Todavia, mesmo com as medidas da coroa alguns homens tentaram penetrar nestas

terras em busca de ouro ou terras, porém estes não obtiveram êxito. Com o declínio da

mineração tornou-se necessário a incorporação de novas terras agricultáveis. Somado a

esta necessidade temos a criação do diretório Pombalino que tinha em vista aldear os

índios incentivando a miscigenação, utilizando destes para a ampliação das fronteiras,

conferindo aos índios direitos e deveres, dentre outras coisas mais, que faziam “parte da

política assimilacionista que apesar dos esforços não vingou”.125

Neste contexto surgem as primeiras bandeiras e entradas rumo ao leste de Minas

Gerais e é criado o Aldeamento da Freguesia do Mártir São Manoel. Em 1765 D. Luis

Diogo Lobo da Silva

Informou ao rei os gastos operados com o gentio da Pomba que

encontrou. O Rei aprovou tais despesas realizadas pelo governador,

pelas boas informações do “sítio” do qual vieram os nativos para

“estabelecer alguma negociação pelos rios acima”, além de

125

ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Os Índios Aldeados no Rio de Janeiro Colonial- novos súditos

cristãos do império português. Campinas, SP. Tese (doutorado), 2000. Pag. 175.

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recomendar a aplicação de todos os meios necessários para

“estabelecer com os mesmos índios povoações civis”.126

Assim sendo, o governador se dedica em aldear o gentio Cropó e Croato dos Matos

do Rio da Pomba e do Peixe cumprindo as ordens da coroa.

Segundo Roberta Monteiro “no ato do batismo, a figura do padrinho representa

uma espécie de “pai espiritual” do batizando, assumindo o papel de representante da

criança na cerimônia, seu guardião e protetor em potencial” 127

. Ao padrinho era dada,

teoricamente, a função de “ensinar a doutrina cristã e os bons costumes ao afilhado e a

madrinha representava uma auxiliar na criação do afilhado, uma segunda mãe para a

criança.”.128

Assim sendo, esta deveria ser uma escolha bem pensada visto que esta era a

escolha de um “parente espiritual”.

Devemos nos atentar ao fato de que a sociedade de Antigo Regime era regida pela

lógica da graça e mercê onde os laços criados poderiam ajudar a definir o posicionamento

e a função que seriam incumbidas a cada indivíduo. Precavidos desta lógica podemos notar

a importância que uma possibilidade de ampliação de laços, como oferecia a relação de

compadrio, adquiria na sociedade colonial.129

Como bem destaca Maria Regina Celestino, os índios atribuíam aos “rituais dos

padres seus próprios significados”. A autora cita o exemplo dos índios do Pará que

“pediam batismo todos os anos, escolhendo o padrinho com antecedência e quando não os

126

PAIVA, Adriano Toledo. “Pelas águas do batismo: A Freguesia de São Manoel da Pomba e a

civilização do gentio”. Anais do Primeiro Colóquio do LAHES. Juiz de Fora, 13 a 16 de Junho de 2005. Pag.

2. 127

MONTEIRO, Roberta Ruas. Compadrio de Escravos no Rio de Janeiro Setecentista. Anais do XIII

Encontro de História Anphu- Rio. Pag. 2. Disponível

em:<http://www.encontro2008.rj.anpuh.org/resources/content/anais/1212953674_ARQUIVO_Compadriodee

scravos_anpuh.pdf >.Acessado em:10/10/09 128

Ibidem. 129

Idem. Pag. 3.

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conseguia em uma freguesia, iam para outra em busca de novos padrinhos que lhe dariam

novos presentes”.130

No momento em que os indígenas passam a conviver com pessoas inseridas em

uma cultura diferente da sua, eles acabam por estabelecer “novas praticas culturais e

políticas que manejavam em busca de seus interesses que igualmente se alteravam.” 131

Segundo Ricardo Batista de Oliveira “a descrição sobre povos indígenas ora

apresentadas não refletem precisamente a situação em que estes se encontravam”.132

Motivados por esta inconsistência das análises existentes cruzamos alguns dados presentes

nos registros de batismo que esperamos que possam vir a contribuir com as novas reflexões

“acerca da inserção de diferentes grupos indígenas no interior do espaço

colonial”133

.

Tabela I

Condição social dos padrinhos segundo a legitimidade dos batizandos,

freguesia do Rio da Pomba, 1767-1800

CONDIÇÃO DO PADRINHO

B

ATIZANDO

A

gregado

A

lferes

C

apitão

E

scravo

F

orro

N

ão Consta

Le

gitimo

0 8 1

5

4

2

3 3

51

Na

tural

0 0 3 1

0

2 8

1

130

ALMEIDA, Op. Cit. Pag.146. 131

ALMEIDA, Op. Cit. Pag.34. 132

OLIVEIRA, Ricardo Batista de. Povos Indígenas e Ampliação Dos Domínios Coloniais: resistência e

associação no Vale do rio Doce e Zona da Mata, séculos XVIII e XIX. Tese de Mestrado. UFOP, Mariana.

Maio de 2009. Pag.1-150 133

MONTEIRO, John M. Op. Cit.

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o Consta

1

3

1

4

2

3

8 3 5

48

Fonte: Livro de batismo da Freguesia do Rio da Pomba.

Tabela II

Condição social das madrinhas segundo a legitimidade dos batizandos,

freguesia do Rio da Pomba 1767-1800

CONDIÇÃO DA

MADRINHA

B

ATIZANDO

A

gregada

Í

ndia

E

scrava

F

orra

N

ão Consta

Le

gitimo

0 1 3

2

5 3

81

Na

tural

0 0 9 3 8

4

o Consta

2 0 6 3 5

98

Fonte: Livro de batismo da Freguesia do Rio da Pomba.

De acordo com as tabelas acima devemos primeiramente destacar o fato de um

grande numero de padrinhos e madrinhas não terem sua condição social registrada.134

Como a maioria desta população era composta por indígenas que ainda não tinham uma

condição social estabelecida, muitos foram incorporados as fazendas ou trabalhavam em

134

As principais informações destes registros de batismo foram agrupadas em um banco de dados feitos por:

CARRARA, Ângelo Alves. Estruturas demográficas em áreas de fronteira; a freguesia de Rio Pomba.

Mariana: Departamento de História/UFOP, 2002 (relatório de pesquisa).

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roças de subsistências criadas pelo Padre Manuel de Jesus Maria, a condição social destes

ainda não estavam, ou, ficavam difíceis de serem definidas. Ainda temos a possibilidade de

uma necessidade de omissão da condição social devido a diversos fatores e finalidades,

como por exemplo, a escravidão indígena e a tentativa de uma dissolução da etnia índia em

meio aos registros de batismo.

Os agregados, reconhecido como tal pelos registros, aparecem apadrinhando treze

batizandos que não tem sua legitimidade registrada. Destes, doze são de etnia índia. Os

agregados escolhiam para seus filhos e para si mesmo, já que oito destes batizandos eram

adultos, padrinhos de condição social igual a sua. Fortalecendo, assim, laços de

companheirismo e amizade já existentes entre os agregados as fazendas. Como a etnia

destes padrinhos não é registrada não podemos afirmar que foram estabelecidos laços

étnicos, mas sim social. Estes dados ainda nos mostram a incorporação da mão de obra

indígena as fazendas.

Outro fato interessante, é que até na escolha destes padrinhos agregados

encontramos alguns mais condecorados como o casal João Alves de Melo e Ângela Maria,

e Luiz Homem Serpa que recebem cada um, quatro afilhados. A madrinha dos dois

batizandos que aparece na tabela II é a Ângela Maria que tem seu nome dado a um destes

dois batizandos. É provável que estes fossem pessoas de “liderança” entre os agregados,

ou, admirada por estes.

Os 22 afilhados de Alferes não apresentam um perfil comum, 8 são legítimos e o

resto não tem a legitimidade registrada.135

Quanto à idade 6 são adultos, 13 inocentes e 3

não tem idade registrada. Dos pais com condição registrada temos; um escravo forro e um

cabo de esquadra. A etnia de nem um destes pais é registrada, mas como 13 dos batizandos

135

Este artigo é uma continuação do trabalho A Formação das “Áreas proibidas”: a Freguesia do Mártir

São Manuel dos Sertões do Rio da Pomba e do Peixe, de minha autoria, publicado anteriormente. Alguns

dados nas tabelas que dizem respeito a apadrinhamento divergem. Já que neste trabalho incorporei a condição

social daqueles em que esta vinha antes de seu nome. Como por exemplo, no caso dos Alferes onde não se

tinha uma condição social isolada, mas sim um nome “Alferes fulano de tal”.

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eram de etnia índia sabemos que a maioria destes pais eram índios. Outrossim, vemos na

escolha destes padrinhos pais diversos; índios, escravos, homens com patente militar,

tecendo laços que poderiam trazer algum beneficio tanto para seus filhos como para eles.

Na medida em que através do ato de compadrio era estabelecido um vínculo de parentesco

espiritual entre os envolvidos - o padrinho, os pais e o batizando.136

Outros 41 batizandos tiveram padrinhos capitães. As anotações do Padre Manuel

de Jesus Maria nos permitem deduzir que vários destes capitães escolhidos para apadrinhar

algumas crianças, eram reconhecidos como tal pelos indígenas não possuindo realmente a

patente. Nas palavras do Padre: “João era chamado entre os índios de capitão e fui eu

padrinho por não querer o dito índio que se admitisse outro.”137

Sabemos que as tabelas construídas a partir dos dados dos registros de batismo

camuflam a relação entre os indígenas, visto que estes nos primeiros anos da freguesia

ainda não deveriam estabelecer um padrão de escolha de padrinho que fugisse dos laços de

afinidade já existente. Afinal de contas, estes ainda não deviam ter assimilado as

“vantagens” que um padrinho poderia lhe oferecer. Uma única madrinha é registrada na

condição de indígena e tem como afilhado um inocente da tribo Cropó. Porém, o numero

deste tipo de relação de compadrio deve ter sido muito maior.

Dando continuidade a nossa analise daremos vez aos padrinhos e madrinhas

escravos que aparecem apadrinhando 60 vezes. Destes afilhados todos que tem sua etnia e

condição registrada são escravos, 70% são legítimos e 83% são inocentes. Ou seja, o mais

comum eram escravos apadrinhando escravos ainda crianças e fruto de uma união

sancionada pela Igreja Católica. Neste aspecto as relações entre os escravos das fazendas

da freguesia do Rio Pomba indicam alguma divergência do que comumente é relatado

136

MONTEIRO, Roberta Ruas. Op. Cit. Pag. 2. 137

Observação feita pelo Padre Manuel Maria em um dos registros de batismo da Paróquia de São Manuel.

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pelos demógrafos que trabalham com apadrinhamento escravo138

. Jonis Freire, por

exemplo, encontra para a freguesia do Senhor Bom Jesus do Rio Pardo uma maior

porcentagem de escravos amadrinhando e apadrinhando as crianças ilegítimas.139

Destarte, podemos perceber que mesmo estes escravos convivendo com os

indígenas, que viviam como agregados na fazenda de seus donos, estes não quiseram ter

uns aos outros como “parentes espirituais”. O que demonstra uma preferência destes

escravos em criar “alianças mais “para dentro”, entre iguais”140

mantendo a idéia de

comunidade escrava.

Todos os pais destes escravos, que eram afilhados de escravos, pertenciam ao

mesmo dono. Já os padrinhos em 65% dos casos não pertencem ao mesmo dono, 17% são

do mesmo dono e em 28% não aparece a quem o padrinho ou a madrinha pertence. Nestes

casos em que padrinho e madrinha não pertenciam ao mesmo dono tentamos observar se

algum dos dois pertencia ao mesmo dono dos pais do batizando, e em apenas 20% dos

casos o padrinho ou a madrinha tem um dono em comum com os pais do batizando.

Todavia, concluímos que havia nesta freguesia uma grande mobilidade social a

ponto dos pais de batizandos escolherem para seus filhos padrinhos que eram escravos de

outro dono. O que também nos remete a idéia de “comunidade escrava”, mencionada

anteriormente, e discutida pelos autores que se dedicam aos estudos da cultura escrava.

Dos batizados por padrinhos forros 2 eram de etnia croata e o restante não consta a

etnia. Estes eram filhos de mãe escrava com pais escravo (maioria) ou forro, exceto os pais

dos croatas que não tiveram sua condição registrada. Muito provavelmente estes Croatas

também eram escravos ou agregados das fazendas em que viviam ou viveram seus

138

Até o presente momento não encontramos estudos que nos permitam uma comparação mais aprofundada. 139

FREIRE, Jonis. “Casamento, Legitimidade e Família em uma freguesia escravista da Zona da Mata

Mineira: século XIX”. Locus: Revista de história, Juiz de Fora. Vol. 11, n. 1 e 2, p. 51-73, 2005. 140

MONTEIRO, Roberta Ruas. Op.Cit. Pag. 4.

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padrinhos. Aqui, pela primeira vez e em um numero muito singelo vemos uma relação

entre índios e negros.

A mobilidade social transparece novamente na análise das madrinhas forras. Destas

madrinhas forras cinco são casadas com escravos, e destes, três não tem o mesmo dono que

o pai ou a mãe do batizando.

Chamou-nos atenção o padrinho pardo, forro, que era feitor da fazenda onde vivia a

escrava mãe do batizando que ele é padrinho. A legitimidade do batizando não é registrada

e não é registrado nada sobre o pai. Este caso nos remete a duas possibilidades de

estratégia na escolha deste padrinho. A primeira seria que a mãe pretendia proporcionar ao

seu filho proteção e possível ascensão social. Uma segunda possibilidade é a de que este

feitor era pai da criança já que a madrinha era casada com outro individuo e as chances de

uma escrava ter “afinidades” com um feitor são pequenas. De mais a mais, essa não é a

primeira vez que tal tipo de relação é registrado dessa forma.

Além daqueles que possuíam alguma distinção social, como uma patente militar,

por exemplo, três homens que constituem a base da freguesia do rio da Pomba - Padre

Manuel de Jesus Maria, Diretores Manuel Pires Farinho e Francisco Pires Farinho -

poderiam ser vistos como símbolo de distinção, por uns, ou rivais, por outros. Estes foram

escolhidos aqui para um breve estudo de caso.

Tabela III

Elegidos e afilhados, freguesia do Rio da Pomba 1767-1800

LEGITIMIDADE

NOMES L

EGITIMO

N

ATURAL

N

ÃO

CONSTA

T

OTAL

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101

Padre

Manuel de Jesus Maria

8

4,6%

0

%

1

5,4%

1

3

Diretor

Manuel Pires Farinho

2

0,7%

3

,4%

7

5,9%

2

9

Diretor

Francisco Pires Farinho.

4

7,6%

4

,8%

4

7,6%

2

1

Fonte: Livro de batismo da Freguesia do Rio da Pomba.

O padre Manuel de Jesus Maria não foi um dos mais pensados no momento da

escolha do padrinho, este foi contemplado com 13 afilhados. Deste 84,6% eram

legítimos141

e 14,3% não têm sua legitimidade registrada. O fato da criança ser tida como

natural resultava em uma não aceitação por parte do padre nos seus apadrinhamentos. Fato

compreensível, já que estamos tratando de uma Freguesia que foi criada inicialmente como

um aldeamento onde a função do vigário era catequizar e civilizar, o que implica na não

aceitação de antigos hábitos tidos como ilícitos.142

Estes dois batizandos que não tem sua legitimidade registrada eram de etnia índia e

já se encontravam em idade adulta. Nem um destes afilhados lhes foi dado durante o

período em que a freguesia era um aldeamento, o que reflete a resistência e a desconfiança

inicial dos indígenas.

Tiveram como padrinho o Diretor Manuel Pires Farinho 29 afilhados. Um alto

numero destes, 75,9%, não tiveram sua legitimidade registrada, o que não parece ter sido

141

Entendem-se como legítimos os batizados frutos de uma união reconhecida pela Igreja, e como natural

aqueles originados de uma união não sancionada pela Igreja. 142

Sobre o Padre Manuel de Jesus Maria ver: CASTRO, Natália Paganini Pontes de Faria. “Civilização e

cristianização dos índios Coropós e Coroados: a atuação catequética do reverendo Manuel de Jesus Maria

na Região do Rio Pomba (1767-1811)”. ANPUH - Rio. Disponível em:

<http://www.encontro2008.rj.anpuh.org/.../1212973540_ARQUIVO_TrabalhocompletoAnpuh-Rio.pdf >

Acessado em: 25/06/09

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sinônimo de desagrado por parte do Diretor. Pelo contrario este parece ter estendido sua

redes sociais com as mais diversificadas camadas daquela sociedade.

O perfil de apadrinhamento do Diretor Manuel Pires Farinho nos remete a uma

estratégia que é proveitosa para o Diretor e aparentemente para os indígenas. Este é

agraciado com 10 afilhados de etnia Cropó que deveriam se sentir “protegidos” e honrados

por ter um padrinho de tal importância. Estes afilhados podem ser interpretados como fruto

da “simpatia dos indígenas pelo Diretor”, o que é muito pouco provável, já que este é um

dos agentes deteriorantes da cultura indígena nesta Freguesia. Ou como uma possibilidade

de se estreitar relações e buscar proteção em uma pessoa com a qual aqueles pais dos

batizandos conviviam diariamente nas fazendas onde estes eram utilizados como mão de

obra. Para o Diretor era adequado e proveitoso apadrinhar estes indígenas criando

solidariedades verticais e reforçando a idéia de atenção e zelo para com estes. Com isso,

ele criava uma importante base de sustentação para o seu poder de mando.

O irmão do Diretor Manuel Pires Farinho, Diretor Francisco Pires Farinho, apesar

de ter menos afilhados, tem um perfil de apadrinhamento muito semelhante ao do seu

irmão. Também estendeu seus laços sociais para com indígenas e escravos.

A família Pires Farinho, que exerceu um papel importante na desbravação dos

sertões do rio Pomba, apadrinha um considerável numero de batizandos devido à proteção

que o estreitamento das relações com essa família poderia oferecer. Além disso, como já

indicado acima, nas Minas Setecentistas uma das maneiras mais eficazes de garantir a

autoridade era a consolidação de relações clientelares (com os iguais, mas principalmente

com os grupos subalternos).

Alguns homens apadrinhavam com mais freqüência. A maioria dos padrinhos tinha

mais de 3 afilhados, sendo que muitos tinham de 6 a 14 afilhados. No entanto, sendo o

batizando legítimo, ou ilegítimo, os pais constituíam padrão muito semelhante na escolha

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de seus compadres, que eram sempre alguém que vivia em uma condição igual ou superior

a sua, e que preferencialmente fosse de uma etnia “superior” a sua com bases nas

hierarquias étnicas existentes no período colonial.

A relação entre os indígenas e os demais que habitavam a freguesia do rio Pomba

esta longe de ser exaurida com esta análise que fizemos. O grande numero de legitimidade

e condição social não registrados nos livros de batismo, a forma de trabalho adotada na

freguesia, que também influencia na escolha de compadrio, merecem maiores reflexões.

Diante do acima exposto, podemos deduzir que através do perfil recorrente dos

padrinhos escolhidos no ato de batismo, há uma estratégia sendo forjada, consciente ou

inconscientemente. Estratégias estas que ajudariam os indígenas a se relacionar com os

demais agentes do aldeamento na busca de suas prioridades e objetivos que mudavam de

acordo com as circunstancias.

Nesse sentido, cabe ressaltar que independentemente de ser índio, agregado, forro,

escravo, colono, capitão a escolha dos padrinhos reflete a busca por melhores condições de

vida. Deixando claro que estas tribos indígenas tão relatadas como altamente hierarquizada

e fechada dentro de seus costumes souberam fazer, bem ou mal, suas escolhas e abandonar

quando necessário suas hierarquias. Perceberam o que melhor lhes convinha naquele

momento de inserção em uma nova cultura, na busca por dias mais tranqüilos.

Referencias Bibliográficas

ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Os Índios Aldeados no Rio de Janeiro Colonial-

novos súditos cristãos do império português. Campinas, SP. Tese (doutorado), 2000

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FREIRE, Jonis. “Casamento, Legitimidade e Família em uma freguesia escravista da Zona

da Mata Mineira: século XIX”. Locus: Revista de história, Juiz de Fora. Vol. 11, n. 1 e 2,

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O Grotesco Romântico em “O vermelho e o negro”: alguns aspectos da

interiorização no livro de Stendhal...

Daniel Eveling

RESUMO: Caracterizado por Mikhail Bakhtin como um dos autores pertencentes a uma

tradição do realismo grotesco, Stendhal, pseudônimo de Henri Beyle, teve como um dos

seus escritos considerado por muitos como uma das suas “obras primas”, o livro “O

vermelho e o negro”, escrito em 1830. Procuro realizar apontamentos que ressaltem

semelhanças entre o grotesco do tipo romântico, também chamadas de grotesco de câmara,

com a escrita de Stendhal. A partir das proposições de Bakhtin, juntamente com uma

perspectiva interdisciplinar, marcada pelo uso da História, Filosofia e Literatura (apontada

no Giro Lingüístico). Recorrerei à tal obra, além de autores que abordaram a

“domesticação” dos instintos e sentimentos do homem, como Friedrich Nietzsche e

Norbert Elias. Mostrarei caracteres que acredito serem aplicáveis a obra de Stendhal.

PALAVRAS-CHAVE: Stendhal, O vermelho e o negro, grotesco.

ABSTRACT: Characterized by Mikhail Bakhtin as an author belonging to a tradition of

grotesque realism, Stendhal, pseudonym of Henri Beyle, had one of his writings

considered by many as one of his "masterpieces," the book "Red and Black " written in

1830. I will try to perform this work, notes and highlight similarities between the grotesque

of the romantic kind, so-called grotesque chamber, with the writing of Stendhal. From the

propositions of Bakhtin, together with an interdisciplinary perspective, marked by the use

.Mestrando em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora, bolsista da Fundação de Amparo à

Pesquisa do Estado de Minas Gerais. Desenvolve a pesquisa orientado pela Professora Doutora Beatriz

Helena Domingues.

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of History, Philosophy and Literature (Language and pointed in the Giro). I refer to literary

work and authors who have addressed the "domestication" of instincts and feelings of man,

as Friedrich Nietzsche and Elias. I will show characters, which in my opinion, apply to the

work of Stendhal.

KEYWORDS: Stendhal, The red and black, grottesque.

Para começar os meus apontamentos, de aproximação da obra de Stendhal, em

específico “O vermelho e o negro”, inicio com a citação do filósofo russo Mikhail Bakhtin,

O realismo em grande estilo (Stendhal, Balzac, Hugo, Dickens,

etc.) esteve sempre ligado (direta ou indiretamente) à tradição

renascentista, e a ruptura desse laço conduziu fatalmente ao

abastardamento do realismo, à sua degeneração em empirismo

naturalista143

.

Tomando com base o acima, parto para realizar algumas aproximações do que

Bakhtin definiu como grotesco de câmara, ou romântico, e a escrita do livro de Stendha

nessa corrente o sentido de não pertencimento ao contexto epropicia a sensação de

uma espécie de carnaval que o individuo representa a solidão, com

a consciência aguda de seu isolamento. A sensação carnavalesca do

mundo transpõe- se de alguma forma à linguagem do pensamento

filosófico idealista e subjetivo, e deixa de ser a sensação vivida

(pode- se dizer corporalmente vivida) da unidade e do caráter

inesgotável da existência que ela constituía no grotesco da Idade

Média e Renascimento144

.

A comunhão que o indivíduo possuía com o mundo, em um período anterior, se

quebra neste grotesco de câmara: os românticos deixam de viver “corporalmente” as

143

BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de

François Rabelais. São Paulo: Hucitec, 1987, p. 45. 144

. Op.cit. p., 33

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sensações do que os cercam, uma vez que os instintos naturais são podados, assumindo

formas sublimadas. O indivíduo possui uma condição de outsider145

na sua solidão, isso é

propiciado pelo não enquadramento nos grupos.

Stendhal apresenta uma similitude com uma obra “Werther”,de Goethe, pois nessa

última “há por um lado, superficialidade, cerimônia, conversas formais; por outro,vida

interior, profundidade de sentimentos, absorção de livros, desenvolvimento da

personalidade individual”146

. A posição de “stranger” ou “outsider” refletiu em Julien

voltando- se em determinados momentos para o caráter do infinito interior, “com um

indivíduo subjetivo, profundo, íntimo, complexo e inesgotável”147

. A característica do

estranhamento, que é diferente da condição de “stranger”, em obras literárias, para Carlo

Ginzburg pode fornecer alguns aspectos, pois “é um antídoto eficaz, contra o risco, a que

todos nós estamos expostos: o de banalizar a realidade”148

.

Friedrich Nietzsche, em “Genealogia da Moral”, ao analisar a consciência humana

destaca a seguinte ponderação, que acredito se aproximar do “infinito interior”,

apresentado por Bakhtin tratado mais abaixo,

Todos os instintos que não se descarregam para fora voltam- se

para dentro- isto é o que chamo de interiorização do homem:é

assim que no homem cresce o que depois se denomina “alma”.

Todo o mundo interior, originalmente delgado, como entre duas

membranas, foi se expandindo e se estendendo, adquirindo

profundidade, largura e altura, na medida em que foi inibido em

sua descarga para fora.149

145

Cf.:ELIAS, Norbert. Introdução. In.: ______. Os estabelecidos e outsiders. Rio de Janeiro: Jorge

Zahar, 2001. 146

ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador: Uma História dos Costumes.vol. 1. Tradução de: Ruy

Jungmann. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994, p., 37 147

BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular. p.,38 148

GINZBURG, Carlo. Estranhamento: Pré- História de um procedimento literário. In.: _______.

Olhos de Madeira: Nove reflexões sobre a distancia. São Paulo: Cia das Letras, 2001, p.,41. 149

NIETZSCHE. Friedrich. Genealogia da Moral: uma polêmica. Tradução de: Paulo César de Souza.

São Paulo: Cia das Letras, 2009,p. 67.

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Deve-se fazer apenas o socialmente aceitável. A própria questão que envolve o riso

é visto como algo infernal, sombrio e maligno, o “diabo encarna o espanto, a melancolia, a

tragédia”150

. Ainda segundo Bakthin “no romantismo a máscara dissimula, encobre,

engana, etc”151

, e se elas tem a preocupação de não deixar transparecer as verdadeiras

intenções, ressalto, que

uma das grandes preocupações de Stendhal foi a arte de mentir.

Como outros nascem policiais, ele parecia ter nascido diplomata,

com as complicações do mistério da duplicidade hábil, que faziam

a glória legendária do oficio [...] Stendhal colocava igualmente a

superioridade humana nesse ideal de um espírito poderoso que se

dá ao prazer de enganar aos homens e de ser o único a usufruir de

seus embustes152

Stendhal condenava a Sociedade da Restauração Francesa, para ele o enfado e as

tramas que permeavam as posições dos grupos envolvidos nesse período. Devido a isso ele

tenta, na escrita do livro, demonstrar opiniões contrárias ao posicionamento que toma.

Nessa percepção o livro II é marcado pela vida aristocrática, sendo muito preponderante

nesse aspecto o fato da teatralização153

, da sociedade de corte uma vez

o que se considera é muito mais o individuo em seu contexto

social, em sua relação com os outros. Aqui também se mostram os

vínculos estreitos entre o cortesão e a sociedade (...) Trata- se de

uma observação de si mesmo para a disciplina do convívio em

sociedade: “ Um homem conhecedor da corte é senhor de seu

gesto, de seus olhos, de seu semblante; ele é profundo,

impenetrável; dissimula os maus serviços, sorri a seus inimigos,

150

Idem. 36 151

Idem 35 152

ZOLA,Emile. Do Romance: Stendhal, Flaubert e os Goncourt. São Paulo: EDUSP/ Imaginário,

1995, p., 71 153

Cf.: GOULEMONT, Jean Marie As práticas literárias ou a publicidade do privado. In: ÁRIES,

Philippe & CHARTIER, Roger (orgs.). História da vida privada. Vol. 3: da Renascença ao Século das

Luzes. Tradução de Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 1991 Ou REVEL, Jacques. Os usos da

civilidade. In: ÁRIES, Philippe & CHARTIER, Roger (orgs.). História da vida privada. Vol. 3: da

Renascença ao Século das Luzes. Tradução de Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 1991

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domina o seu humor, disfarça suas paixões, desmente o seu

coração, fala, age contra seus sentimentos”154

.

No filme “Ligações Perigosas”155,

há uma cena emblemática, nesse sentido de

dissimulação, quando a Marquesa De Merteuil discute com o Visconde de Valmont.

Transcrevo a fala da marquesa para elucidar:

Quando entrei na sociedade aos quinze anos já sabia que o papel ao

qual estava condenada o de permanecer em silencio e o de

obedecer dar-me- ia a chance perfeita de ouvir o observar. Não o

que me diziam, que nenhum interesse tinha, mas o que as pessoas

tentavam esconder.Pratiquei o distanciamento, aprendi a parecer

alegre enquanto me espetava com o garfo debaixo da mesa. Tornei-

me uma virtuose do engodo. Não buscava prazer, mas, sim,

conhecimentos. Consultei um moralista para saber como me portar.

Filósofos, para saber o que pensar. E escritores, para saber do que

ficar impune. Resumi tudo a um principio maravilhosamente

simples: Vencer ou morrer!156

Na fala da marquesa, do filme, o que me interessa são as observações sobre a

sociedade, sabia que as pessoas escondiam seus verdadeiros pensamentos e opiniões,

inclusive ela mesma fazendo isso. Seu papel, destinado desde a nascença, era de ser uma

mulher obediente e calada e com a arte de observar falada por Elias tirou o melhor proveito

possível. Ao manipular os “brios” sociais, as pessoas para que não tivessem seus papéis

154

ELIAS, Norbert. A Sociedade de Corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 2001, p. 121. A

citação entre aspas e de La Bruyère, na obra de Elias. 155

Ligações Perigosas. Stephen Frears.Warner Bros, 1987. 120, som, cor. O livro escrito em uma

sociedade que ainda não passara pela Revolução Francesa, o livro de Chordelos foi ambientando em um

grupo aristocrático sem a presença forte de uma burguesia. Resumidamente a história gira em torno de

Visconde de Valmont e da Marquesa de Merteuil. Essa o procura para que seduzisse sua prima Cecile e a srª

de Tourvel. Como um dos maiores conquistadores românticos Valmont aceita tal missão, porém só se

interessava, em um primeiro momento, por Tourvel que era uma das damas mais devotas da França.

Conquista essa, por quem se apaixona, e Cecile. Depois manipulado por Merteuil se afasta de Tourvel, que

morre de “infelicidade” e rompeu com Merteuil. Valmont morre em um duelo e com uma amante de Cecile e

Merteuil morre socialmente ao ser vaiada na Ópera pelo que havia feito. Uma vez que Valmont guardava

todas as cartas que Merteuil escrevia para ele e aparecia toda a armação feita por ela, e entrega para que

fossem divulgadas. Condenando assim a marquesa ao ostracismo social. Tal filme e baseado no romance

“Relações Perigosas”, de Chordelos de Laclos, escrito, em 1787. 156

Cf.: Ligações perigosas. Op. cit.

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ameaçados acabavam cedendo aos desígnios de tão grande dama. Ao usar da dissimulação

escondia o que realmente desejava e assim adquiria ares lúgubres.

Pelo colocado acima posso perceber dentro da estrutura da Corte a necessidade de

saber qual sua posição e seu papel, para que isso ocorresse inúmeras vezes acontecia a

dissimulação dos verdadeiros sentimentos, com uma postura de mentir, já mencionada. As

“máscaras” são usadas para o disfarce157

, percebo exatamente os ares lúgubres do

romantismo.

A máscara, passa a ser utilizada em Julien da seguinte forma: ele aparentemente é

um perfeito “domestique”, sabendo qual lugar possui na sociedade, não cria qualquer

problema com relação a isso. Mas, internamente demonstra que todas as posturas que está

tendo são meramente para que ele consiga, os seus verdadeiros interesses, isso pode ser

visto como as táticas, definidas por Michel de Certeau158

, isso ilustra perfeitamente o

caráter da máscara que passou a ser utilizada apenas para encobrir os verdadeiros

sentimentos, para Bakhtin “no grotesco romântico, a mascara arrancada da unidade da

visão popular e carnavalesca do mundo empobrece- se e adquire várias outras significações

alheias a sua natureza original: a máscara, dissimula, encobre, engana, etc159”

.

Em Paris, para Balzac, no meu entender, uma outra forma de teatro é executado, já

que

Sentimentos genuínos são a exceção; são quebrados pelo jogo de

interesses, esmagados entre as rodas desse mundo mecânico. Aqui,

a virtude é difamada; aqui a inocência é vendida. As paixões são

vendidas barato para gostos e vícios ruminosos, tudo é sublimado,

analisado, comprado e vendido. É um bazar, onde tudo tem seu

157

As máscaras na obra de Bakhtin são vistas como uma das mais fortes expressões populares através

delas ocorriam renovações na sociedade medieva. 158

As táticas de Michel de Certeau, são vistas como a arte de pobre, quando pessoas afastadas de um

centro de poder politico, econômico, social e mesmo simbólico agem de acordo que consigam as seus

interesses. CERTEAU, Michel de. Entre táticas e estratégias. In.: ______. A invenção do cotidiano.

Petrópolis: Vozes, 1992. 159

BAKHTIN. Op. cit, p. 33 e 35

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preço, e os cálculos são feitos em plena luz do dia, sem

escrúpulo160

.

Uma das epígrafes do “O vermelho e o negro” é: “Em Paris há pessoas elegantes;

na província, pode haver pessoas de caráter”161

. Creio, que o aspecto salientado por Balzac

junta- se perfeitamente com o que Stendhal, a capital francesa é vista como um antro de

vicissitudes e falsidades, para conseguir sobreviver nesse lugar é necessário que fossem

fingidas as reações.

Um aspecto que coaduna com a teatralização, apontada mais acima, e que muda na

percepção do grotesco de câmara é o fato da rua e a praça passarem a servir de espaços de

diferenciação social, por exemplo, nos séculos XVII e XVII, apontados por Bakhtin como

sendo os que não souberam “ler” a obra de Rabelais e quando começaram a haver a morte

do riso começaram a existir leis que reforçavam o uso de determinados trajes e objetos,

somente por determinadas parcelas da sociedade somente podia utilizar algumas cores,

insígnias, carros162

... Nessa perspectiva o hierarquia, era reforçada e mantida, o sentindo de

um mundo carnavalesco não era passível de ser compreendido o que era radicalmente

diferentemente do grotesco medieval quando as praças e ruas eram o centro das discussões

e da “mistura” dos grupos.

No fim do romance, quando Julien já havia sido condenado a guilhotina e a morte

certa se aproximava de seu protagonista, lê-se:

E pôs- se a rir como Mefistófeles. Que loucura discutir esses

grandes problemas! [ sua morte ]

1º ) Sou hipócrita, como aqui houvesse alguém para escutar- me

160

BALZAC, Honoré de apud SENTÉ, Richard. O declínio do homem público. Op. cit. p, 197. 161

STENDHAL. O vermelho e o negro. Op. cit, p. 76. 162

Cf.: SENNET, Richard. O declínio do homem público: as tiranias da intimidade. Cia das Letras,

1993.

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2º ) Esqueço de viver e amar, quando me restam tão poucos dias de

vida... Ai! A Srª de Rênal está ausente; talvez seu marido não a

deixar mais voltar a Besançon e continuar a desonrar- se163

.

Ressalto que essa citação de Mefistófeles, pode ser entendido como o “herói

danado, (muitas vezes herdeiro do diabo miltoniano)”, pois se Kant “ainda sustentava que

a feiúra que provoca repulsa não pode ser representada sem que destrua qualquer prazer

estético, com o romantismo este limite foi superado”164

. Assim o protagonista do romance,

pode carregar perfeitamente em si, aspectos que anteriormente eram insustentáveis em seu

comportamento, essa perspectiva de Humberto Eco, a meu ver, coaduna perfeitamente com

a teoria de Bakhtin, ao esse último nos dizer que o método grotesco, propiciou que as obras

fossem liberadas, no meu ponto de vista, com isso a própria questão de um protagonista ser

o inverso de um “bom moço”, pode ser elucidativo.

Creio que alguns pontos da análise de Bakhtin podem ser visualizados na citação de

Stendhal, sobre Mefistófeles, colocada mais acima: primeiro a questão do riso maligno.

Como sabemos, a figura do Mefistófeles, seja de Marlowe ou Goethe, envolve a figura do

diabo que arrasta pelo desejo de uma sabedoria e um poderio econômico para o “lado das

trevas”. Julien, na sua ânsia de adquirir status quo, faz um movimento bem próximo ao de

Fausto,165

passando por cima de princípios para conseguir atingir seus objetivos.

O caráter diabólico, de Mefistófeles, é “apenas na medida em que é dialeticamente

insinuante e convincente” e se tornou mais perigoso e preocupante, “pois já não é

inocentemente feio como se costumava pinta- lo” 166

. Julien utiliza essas táticas por

exemplo, ao não se importar ao fingir mudanças de posturas, freqüentemente, para

163

STENDHAL [Henry Beyle]. O vermelho e o negro.Op. cit. P., 500 164

. Para Milton, em sua obra “Paraíso Perdido”, de 1667, as características do diabo seriam: rebelião

contra o poder estabelecido; uma beleza decaída; uma indômita dignidade; não é revolucionário, “pois lhe

falta um objetivo que vá além do sentimento de vingança e da afirmação do próprio Eu, mas é um modelo de

pura energia em revolta”. ECO, Humberto. História da Feiúra. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007, p.179. 165

Cf.: WATT, Ian. Mitos do Individualismo Moderno: Fausto, Dom Quixote, Dom Juan, Robson

Crusoé. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. 166

ECO, Humberto. História da Feiúra. Op. cit., p..182.

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conseguir as coisas almejadas por ele. Por exemplo, se em um primeiro momento tenta

atingir seus objetivos através de Mathilde, declarando- se apaixonado por ela, e de certa

maneira estando envolvido, ao perceber que ela o ignora ele flerta com a Marechala de

Fervaques. Ao despertar ciúmes na filha do Marquês, ela se mostra completamente

transtornada com o envolvimento de Julien com a outra nobre e declara seus sentimentos a

ela. Julien, após esse episódio, simplesmente passa a ignorar a Marechala e volta suas

atenções a srª de la Mole.

O próprio Stendhal deixou indícios que havia compartilhava da percepção sobre

“Fausto”, de Goethe, além das passagens no “O vermelho e o negro”, há em “Armance ou

algumas cenas de um salão de Paris em 1827” a seguinte passagem, quando a mãe de

Octavio, este o grande amor da personagem principal, preocupada pelo excesso de leitura e

afastamento do filho escreve

Querido Octávio, esse desejo extravagante resulta possivelmente da

tua paixão desordenada pela ciência. Os teus continuados estudos

fazem- me tremer. Receio que venhas a acabar como o Fausto de

Goethe. Queres voltar a jurar- me, como fizeste no domingo, que

não lerás apenas maus livros?167

Esse desejo de assumir postos que não condizem com a realidade de deve ao caráter

de interiorização,

sua descoberta pelos românticos só foi possível graças ao emprego

do método grotesco, da sua força capaz de superar qualquer

dogmatismo, qualquer caráter acabado e limitado. Num mundo

fechado, acabado, estável, no qual se traçam fronteiras nítidas e

imutáveis entre todos os fenômenos e valores, o infinito interior

não poderia ser revelado168

167

STENDHAL [ Henri Beyle]. Armance ou algumas cenas de um salão de Paris em 1827. Lisboa:

Gris Impressores, 1971 ,p., 16. 168

BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular. Op.cit. p.,39

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Essa ordenação do mundo com papéis muito rígidos e estabelecidos e o infinito

interior desempenhando o lugar o qual todas as possibilidades e tentativas poderiam ser

executadas, pode explicar um grande ponto de “O vermelho e o negro”: o surgimento da

paixão de Mathilde “pelo domestique de seu pai é toque de mestre de Stendhal”169

. Ou

ainda a total entrega srª de Rênal a Julien a ponto de, no fim do livro, desafiaras

convenções, expõe de certa maneira essas relações que eram guardadas no mais íntimo dos

personagens. Esta atitude de Mathilde “ajuda a libertar- se do ponto de vista dominante

sobre o mundo, de todas as convenções e de elementos banais e habituais”170

.

Fugindo totalmente do habitual, Stendhal envolvia nas linhas de seu romance um

caso de amor entre um domestique e a filha de um dos maiores pares da França. Podemos

pensar que muitos aristocratas tinham amantes entre seus serviçais, mas a grande questão é

um autor expor de forma tão clara esse envolvimento, quebrando toda uma série de

hierarquias e posicionamentos que cercavam os franceses do período.

Ainda percebemos no grotesco do século XIX um ponto levantado por Nietzsche

sobre o riso

o homem descobre sua solidão em um universo que não tem

sentido preestabelecido. Enquanto acreditamos, durante séculos,

que havia um piloto no comando que nos guiava para um destino

conhecido, Nietzsche nos ensina que “Deus está morto”, ou antes,

que ele nunca existiu e que estamos a bordo de um barco à deriva

que não vai a lugar nenhum. É, de fato, para morrer de rir!171

Uma das maiores crises de Julien no final do livro se dá exatamente no momento

em que

169

AUERBACH, Erich. Mimesis:A representação da realidade na literatura ocidental. 5 ed. São Paulo:

Perspectiva, 2007, p.,405. 170

BAKHTIN, MIkhail. A cultura popular. Op. cit.p., 30 171

MINOIS, Georges. História do Riso e do Escárnio. São Paulo: UNESP, 2003.p.,517.

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Ele foi agitado pelas lembranças dessa Bíblia que sabia de cor ...

Mas como a partir do momento em que são três pessoas numa

só,acreditar nesse grande nome de DEUS, com o terrível abuso que

fazem dele nossos padres?

Viver isolado!...Que tormento!...

Eis o que me isola {a ausência da srª de Rênal], e não a ausência

de um Deus justo, bom, todo poderoso, sem maldade, sem avidez

de vingança.

Ah! Se ele existisse... eu cairia a seus pés! Mereci a morte, lhe

diria; mas devolve- me; ó Deus grande, Deus bom, Deus

indulgente, aquele que amo! 172

.

De uma forma diferente de Nietzsche, Stendhal questionava dogmas religiosos, não

de uma forma tão aberta e explícita, mas com pequenas inserções em seus textos. Até

porque, conforme bem lembrado por Octavio Paz, a “literatura moderna não demonstra

nem predica nem raciocina, seus métodos são outros: descreve, expressa, revela,

descobrem expõem, ou seja, põem a descoberto as realidades reais e as irrealidades não

menos reais de que são feitos o mundo e os homens”173, .Stendhal queria recusar o embelezamento de seu

livro e

declarava orgulhosamente, não é bonito: é imediato, direto, áspero

[...] Por meio de um relato baseado em personagens e

acontecimentos inventados, ele procurava alcançar uma verdade

histórica mais profunda174

Ao recusar esse “embelezamento” das palavras Stendhal tem o grande mérito de

“repudiar o falso brilho verbal dos românticos e trazer a si um fundo de verdade humana

indiscutível”175

. Também percebendo essa forma de uma escrita que vai ao cerne das

questões, sendo visto a questão dos “petit fait vrais”176,

segundo Leyla Perrone, pois

172

STENDHAL [ Henry Beyle] O Vermelho e o negro. Op. cit. p.,499- 500 173

PAZ,Octavio. Propósito. In:______. O ogro filantrópico. Rio de Janeiro: Guanabara, 1989, p 12. 174

GINZBURG, Carlo.A áspera verdade- Um desafio de Stendhal aos historiadores. In:______. O Fio

e os rastros:Verdadeiro, Falso, Fictício. São Paulo: Cia das Letras, 2007, p.174 175

CARONI, Italo. A Utopia Naturalista. In: ZOLA, Emile. Do Romance: Stendhal, Flaubert e os

Gouncourt. Tradução de: Plínio Augusto Coelho. São Paulo: EDUSP/ Imaginário, 1995,p. 17. 176

Cf.: PERRONE- MOISÉS, Leyla. Flores da Escrivaninha: Ensaios. São Paulo: Cia das Letras.

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através de elementos que podem ser vistos como de inspiração real tentava- se mostrar a

“feiúra” da sociedade, em uma perspectiva angustiada. Ou seja, queria- se evidenciar as

hipocrisias e a falsidade que rondava os ambientes de inícios do século XIX. Sobre mostrar

esses caracteres da vida

Mérimeé afirmava que alguém havia acusado Stendhal do mais

grave dos delitos, de desnudar e pôr em plena luz certas chagas do

coração humano que são demais repugnantes em se ver.

“Essa observação me pareceu justa”, escreveu Mérimeé. “O caráter

de Julien [protagonista de um de seus livros] tem traços atrozes;

são inegavelmente verdadeiros atrozes, mas nem por isso deixam

de ser horríveis177

.

O interior da sociedade e suas formas de pensamento eram expostos com todos os

seus detalhes sórdidos o que chocava e tornava a obra de Stendhal tão controversa. A

própria personalidade dele, que não levava, muito, a sério a sociedade de corte e cobrindo-

a de sarcasmos as solenidades, são reveladoras de sua atitude contestadora. E a meu ver,

podem ser entendidos como, em certo momento, contestando e expondo uma sociedade

que estava coberta de vícios e falsidades, na percepção do autor, pois como já foi discutido

a Restauração Francesa era combatida, uma vez que havia trago para a sociedade todo um

estabelecimento de antigos valores e percepções, criticava assim uma “dominação

subliminar, não necessariamente discursiva”178

.

Um aspecto que se mostra revelador para determinada feiúra do século XIX está

presente em Erich Auerbach ao discorrer sobre o enfado nos salões da sociedade francesa e

177

GINZBURG, Carlo. A áspera verdade- um desafio de Stendhal aos historiadores. In:______. O Fio

e os rastros: Verdadeiro, Falso, Ficção. Tradução de: Rosa Freire d’ Aguiar; Eduardo Brandão. São Paulo:

Cia das Letras, 2007. p.185. 178

Cf.: LAMHA, Gibran Grunewald. A teatralidade em Rabelais, no estudo de

Mikhail Bakhtin. 2008. 24 f. (Bacharelado em História). Instituto de Ciências Humanas e Letras, da

Universidade Federal de Juiz de Fora, 2008, p.19. Lamha, nessa parte da na monografia discute a

problemática que envolve o “Clown”, palhaço de origem inglesa, que segundo ele tem como função

demonstrar e problematizar a sociedade, acredito que a problematização da questão do palhaço, nesse aspecto

de denunciar a dominação em mínimas coisas se aproxima da forma a qual Stendhal tentava se expressar.

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as discussões não serem mais pautadas em sua grande maioria por pensadores que eram

marcados por um livre pensamento. Explico, com o advento do “le monde”, os grandes

intelectuais passaram a depender das benesses de grandes senhores para que pudessem

viver, digamos com um maior conforto, como Robert Darnton mostra. Entretanto, os

pensadores passaram a ser controlados e vigiados por esse “le monde”, em especial a

aristocracia, que determinava quais autores poderiam ou não participar dele, isso já ocorria

em finais do século XVIII.

Uma das maiores críticas, que percebo, no livro é justamente o fato desses salões se

tornarem a “porta de entrada” para o “le monde”, desde o acadêmico que só freqüenta para

conseguir postos na Academia para si e seus familiares, chegando a se ajoelhar frente a srª

de La Mole, até mesmo pela hipocrisia das atitudes que são tomadas no interior do Hôtel

De La Mole. Concordo com Aeurbach, ao demonstrar que os “philosophes”, para usar a

nomenclatura de Darnton, passaram a deixar de serem pensadores para se submeter aos

padrões dos grandes senhores, assim a “feiúra”, quando não se tem uma liberdade de

pensamento, é um dos pontos que são colocados a baila pela análise de Bakhtin e perpassa

a obra de Stendhal, criticava dessa forma o filósofo/ pensador que se “domesticava”179

que

“integravam- se a uma sociedade de ricos patrocinadores e cortesãos, para mutuo

beneficio:” a gens du monde ganhava entretenimento e instrução, a gens de lettres

refinamento e posição social. Desnecessário acrescentar que a promoção à alta hierarquia

social”180

.

Assim Stendhal criticava um ciclo vicioso que estava inserido, mas que enxergava

como problemático e que garantiu sua sobrevivência financeira, afinal era “homem de

carne e osso, desejoso de encher a barriga”181

assim como também manteve outros.

179

DARNTON, Robert. Boêmia Literária e Revolução: O submundo das letras do Antigo Regime.

Tradução de: Luís Carlos Borges. São Paulo: Cia das Letras, 1989, p.17. 180

Idem.p, 23. 181

Idem. p,14.

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Stendhal conhecia a trajetória de Rousseau, inclusive sendo um admirador da obra de tal

pensador, mas sabia que Jean- Jacques alcançou o “monde” com o “Discurso sobre as

Artes e Ciências” e decaiu com “Discurso sobre a origem e os fundamentos da

desigualdade entre os homens”, pesaroso que pesasse sobre ele o “ostracismo” financeiro e

social, e porque não dizer simbólico, que caiu sobre Rousseau após sua obra resolveu ser

mais sutil em suas ironias e “desmascaramentos”.

Um outro aspecto do grotesco apontado por Norma Discini e que corrobora com as

análises bakhtininas, foi que ao se conseguir controlar os gestos, e conseqüentemente, as

reações isso serve como marca características do grotesco de câmara, Merteuil, a marquesa

de Chordelos de Laclos citada mais acima. Discini ressalta que duas estéticas são

presentes, o amor tangível, que é marcadamente de cunho grotesco, e o amor intangível

que é de cunho platônico. O amor tangível, é consumado e realizado no livro, pois

quebrando convenções sociais e hierárquicas, pois como sabemos primeiro com a srª de

Rênal, depois com Mathilde se relacionando com Julien os amores são realizados.

Concordo com Discini ao colocar o grotesco como da ordem das coisas tangíveis.

Mas, acredito também que nem toda forma de “amor grotesco” vai ser marcado pela forma

de ironia, em “O vermelho e o negro”, o amor, de certa forma é corporalmente vivido,

lembrando e citando Bakhtin ao mostrar o período medieval.

Pelo acima acredito que a aplicabilidade da noção de tangível para a caracterização

do amor é perfeitamente adequável para a obra de Stendhal, sei também que para Bakhtin

no grotesco de câmara, em alguns momentos as sensações deixam de ser corporalmente

vividas, entretanto creio, que isso não impede de apresentar outras consonâncias com

diferentes formas do grotesco.

Ainda com relação a um grotesco e posturas disso no século XIX Georges Minois

ressalta uma posição de Nietzsche sobre a relação com um riso filosófico: se por um lado

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não gosta do

agelasta Hobbes, por outro coloca nas alturas “aqueles que são

capazes de risos dourados”; e se ele admira Chamfort é porque vê

nele “um pensador que julgava o riso necessário como remédio

contra a vida e que considerava quase perdido o dia que não

conseguia rir”182

Ele ilustra isto com um trecho de Nietzsche: “A Gaia Ciência”, aforismo é o

seguinte

É singular que apesar de um tal amigo e defensor- temos as cartas

de Mirabeua para Chamfort- , esse mais espirituoso dos moralistas

tenha permanecido um estranho para os franceses, de modo não

diferente de Stendhal, que talvez tenha tido, entre os franceses

deste século, os olhos e ouvidos mais ricos de pensamento.Será que

este, no fundo, tinha demasiado do alemão e de inglês para que os

parisienses o suportassem? – enquanto Chamfort, um homem rico

de profundidades e segundos planos da alma sombrio, ardente,

sofredor- um pensador que achava o riso necessário como remédio

para a vida e que considerava praticamente perdido o dia que não

dava uma risada-, parece antes um italiano, um parente de Dante e

Leopardi do que um francês!183

Nietzsche, neste aforismo, refere-se não apenas a Chamfort como um adepto do

riso, mas também a Stendhal: aliás, Nietzsche considerava Stendhal como um dos poucos

escritores que não pertenciam ao “rebanho”184

, esse é para o filósofo alemão o grupo de

pessoas que aceitam as proposições que são passadas sem questionar, formando assim um

senso comum.

BIBLIOGRAFIA.

182

MINOIS, Georges. História do Riso e do escárnio. Op. cit. p.,518. 183

NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. Tradução de: Paulo César de Oliveira. São Paulo: Cia das

Letras, 2005, p.120 184

Cf.: LEFORT, Claude. O "sentido histórico": Stendhal e Nietzsche. In: NOVAES, Adauto (org).

Tempo e História. São Paulo: Cia da Letras, 1992.

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São Paulo: Perspectiva, 2007.

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___________. A Gaia Ciência. Tradução de: Paulo César de Oliveira. São Paulo: Cia das

Letras, 2005,

PERRONE- MOISÉS, Leyla. Flores da Escrivaninha: Ensaios. São Paulo: Cia das Letras.

O Bonde e o Tempo: do surgimento à consolidação do meio de transporte.

David José da Silva

RESUMO: O meio de transporte coletivo sobre trilhos, em perímetro urbano é

denominado no Brasil bonde, que advém da palavra inglesa bond. O sistema é composto

por um compartimento de passageiros, adaptado sobre trilhos de ferro e tracionado por

animais eqüinos. O pioneiro do meio de transporte foi o francês Alphonce Loubat e a

primeira cidade a implantá-lo foi Nova Iorque/EUA. Posteriormente, várias cidades

instalaram o sistema de transporte ferro-carril, devido ao êxito da experiência norte-

americana.

PALAVRAS-CHAVE: Bonde; Ferro-carril; Transporte.

ABSTRACT: The means of collective transport, in urban area in the Brazil is called

bonde, which comes from the word English bond. The system consists of a passenger

compartment, adapted on iron rails and pulled by animals horses. The pioneer of the means

of transport was the French Alphonce Loubat, and the first city to implement it was New

York/USA. Subsequently, several cities have installed the system of the railway rail due to

the success of the American experience.

KEYWORDS: Tram; Iron-track; Transports.

Graduado em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora em 2008.

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Para Rui Barbosa,

O Bonde foi, até certo ponto, a salvação da cidade. Foi o grande

instrumento do seu progresso material. Foi ele que dilatou a zona

urbana, que arejou a cidade, desaglomerando a população, que

tornou possível a moradia fora da região central. O bonde foi – é

preciso dizê-lo – uma instituição providencial. Se não existisse, era

preciso inventá-lo.185

Na década de 1830 surgiu nos Estados Unidos uma nova forma de transporte dentro

das cidades: o bonde. Posteriormente, o meio de transporte foi instalado nas principais

cidades do mundo, pois o novo sistema além de diminuir os custos do transporte de cargas

e de passageiros, possibilitou conforto, segurança e agilidade ao trânsito.

O que é um bonde?

Bonde é a palavra empregada no Brasil para designar o veículo de transporte coletivo sobre

trilhos, em perímetro urbano. Mais apropriadamente, o termo “ferro-carril” indica os

trilhos, aos quais é adaptado um compartimento, semelhante ao trem convencional. O

dicionário Aurélio aponta “carril” como “sulco deixado pelas rodas do carro”, como

lusitanismo adota “trilho”, que por sua vez, abrasileirado é exposto como “cada uma das

barras de aço paralelas que, assentadas sobre dormentes, suportam e guiam as rodas dos

trens de ferro, dos bondes, etc.”.186

O termo “ferro-carril” designa os trilhos de ferro com

suas determinadas composições.

Waldemar Correa Stiel cita em seu livro História do transporte urbano no Brasil,

alguns textos que elucidam a questão do acréscimo de sentido à palavra bond, que dá

origem ao termo bonde, usado para designar o transporte ferro-carril no Brasil, dentre eles

destaco o trecho retirado do dicionário Folk-lores, o qual sintetiza a idéia e dá

possibilidade de produzir uma conclusão óbvia: o termo “bonde” é uma adaptação

aportuguesada da palavra bond que, por sua vez, representa um ticket com uma

determinada valoração financeira. Por conseqüência do uso dos “bonds”, pelos usuários,

185

STIEL, Waldemar Corrêa. História do Transporte Urbano no Brasil. Brasília: Pini, 1984. p. XVI. 186

Dormentes são as peças colocadas transversalmente à via, e onde são assentados e fixam os trilhos das

ferrovias. In: FERREIRA, A. B. H. Miniaurélio Século XXI Escolar: o minidicionário da língua

portuguesa. 4ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. p. 245 - 687.

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para efetuarem o pagamento da passagem, o termo passou a designar o próprio veículo de

transporte coletivo sobre trilhos, em perímetro urbano:

BONDE – Veículo de tração animal ou elétrica. É um

brasileirismo. Pelo decreto n.°4.244, de 15 de setembro de 1868, o

Visconde de Itaboraí, presidente do Gabinete, emitiu um

empréstimo nacional até 30 mil contos, com juros pagáveis em

ouro, mediante apresentação de apólice, cautelas, bonds; operação

financeira que despertou atenção geral. Em novembro, a “Botanical

Garden Road Company”, fez circular os primeiros veículos no rio

de janeiro e o carioca aplicou aos carros o nome abrasileirado das

pequenas apólices, bonds, registrado na imprensa da época e

posteriormente vulgarizado por todo Brasil. 187

Cogita-se também que a incorporação do termo bonde ao sistema de transporte,

possa ter ocorrido devido á inauguração, em Belém capital do Pará, de uma linha de

bondes em 1º de novembro de 1871. Os serviços de transporte coletivo foram contratados,

segundo Stiel, pelo governo da província em 1º de setembro de 1869, com um cidadão de

nome “James B. Bond”. Porém, antes da inauguração, o concessionário transferiu os

direitos à firma Bueno & Cia., de propriedade de Manoel Antônio Pimenta Bueno, que

organizou uma sociedade anônima de nome “Companhia Urbana de Estrada de Ferro

Paraense”. Dificilmente o meio de transporte herdou o nome do antigo proprietário da

empresa “James Bond”, uma vez que este esteve presente apenas nos momentos iniciais

desta companhia. 188

Como já citado, o Brasil é o único país a utilizar o termo ‘bonde’ para designar o

veículo ferro-carril. O termo mais usado mundialmente é tramway, como na Inglaterra,

Estados Unidos, Canadá, Austrália, entre outros. Nos Estados Unidos adota-se também o

termo street car, empregado para designar o transporte ferro-carril e o ônibus de tração

187

DICIONÁRIO do Folk-lores Brasileiro – Luiz da Câmara Cascudo – pág. 128. In: STIEL, op. cit., p. 5. 188

STIEL, op. cit., p. 19 - 20.

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125

elétrica. Portugal, o norte da Inglaterra e a Escócia adotam “tram”189

. Em Portugal adota-se

também o termo elétrico. Os alemães chamam de Straßenbahn, que pode ser traduzido

como “trem de rua” 190

.

Estrutura dos bondes de tração animal

O bonde de tração animal foi o primeiro e mais comum veículo de transporte

coletivo sobre trilhos de ferro no Brasil. Sobre a gênese do meio de transporte, Stiel

descreve da seguinte forma: “Tratava-se de um pequeno bonde, ao qual era atrelado a uma

parelha de ‘muares’191

, que sob as ordens de um cocheiro experimentado, conduzia o

veículo, que rodava sobre trilhos de ferro, pelas nossas ruas”. 192

Para Clarck e Chemin, os bondes eram mais creditados nas ocasiões onde as

estradas eram ruins ou não existiam, para facilitar o tráfego pesado e contínuo. O bonde era

composto por um compartimento central dotado de assentos, atrelado a um par de muares e

adaptado sobre trilhos de ferro. Ele era guiado por um condutor que através de arreios,

ditava a velocidade e a direção do veículo.193

Observa-se abaixo de forma mais detalhada e objetiva as imagens produzidas por

“Leandro Trindade”194

, no “Museu do Transporte Público Gaetano Ferolla” 195

. As

fotografias retratam uma réplica dos bondes que circularam em São Paulo, da “Empresa de

189

A palavra tram, deriva na língua inglesa do termo escandinavo usado para designar tábua ou trave de

madeira. Quando essas tábuas ou traves de madeira começaram a ser usadas como guias para as vagonetas

das minas e em outras atividades industriais no século XVII, a elas criou-se o habito de serem chamadas tram

ways, traduzido para o português quer dizer “caminhos de tábuas”. In GARDÉ, Emídio. Os tramways.2008,

p. 26. no prelo. 190

SILVA, Ayrton Camargo e. Bondes sobreviventes no Brasil. Disponível em:

<http://hist.antp.org.br/telas/Downloads/Bondessobreviventes.PDF>. Acesso em: 12 de novembro de 2008. 191

Palavra usada para designar animal pertencente à raça do mulo (FERREIRA, op. cit., p. 474). 192

STIEL, op. cit., p. 54. 193

CLARCK, D. K.; CHEMIN, M.O. Tramways: construction et exploitation. Paris: Dunod, 1880. p. 2. 194

Graduando da Faculdade de Ciências da Computação/USP, em novembro de 2008. 195

Museu do Transporte Público Gaetano Ferolla - Avenida Cruzeiro do Sul, nº 780, São Paulo/SP.

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126

Bondes de Sant’Anna”196

. As fotografias expostas nas figuras 1 e 2, possuem indicações

numeradas que apontam para os caracteres estruturais do veículo, com explicações das

indicações na tabela 1.

Figura 1: Características do bonde

196

Ultima empresa de bondes de tração animal de São Paulo. Foi estabelecida em 07 de agosto de 1890 e se

manteve até maio de 1907. Esta empresa estabeleceu seus serviços fora da zona central da cidade e dado a

este motivo, não foi incorporada pela Companhia Viação Paulista (STIEL,op. cit., p. 453).

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127

Figura 2: Características do bonde

Tabela 1

1

Engate para os moares. Nele é adaptado um sistema de arreios, que

possibilita ao condutor guiar o animal, através de um instrumento metálico,

colocado na cavidade oral do animal.

2 Sistema de freios.

3

Trilho. São dois trilhos, assentados de forma paralela sobre dormentes de

madeira.

4 Eixo.

5 Lugar do condutor.

6 Alavanca de freios.

7 Chaminé

8

Sino, serve para avisar sobre o condutor ou os passageiros sobre as

intenções de parada ou de deslocamento.

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128

9

Estribo: Degrau ou plataforma das viaturas (FERREIRA, 2000, p. 298). No

caso, taboa de madeira adaptada na lateral do bonde, que permite aos usuários um

melhor acesso ao veículo, além de possibilitar também o estacionamento destes.

1

0

Cortina.

1

1

Banco. Observa-se que este modelo de bonde foi fabricado para contemplar

o transporte de 20 passageiros. São 5 bancos, com a possibilidade de assento de 4

pessoas por banco.

1

2

Lampião.

1

3

Roda, com encaixe para a adaptação à fenda do trilho.

Parte integrante do sistema de sustentação do veículo, a “fenda”197

possibilita o

deslocamento do bonde sobre o trilho, uma vez que, quando adaptado este passa a se

deslocar no caminho delimitado pelo veio do trilho, conforme exposto na figura 3 e

esclarecido na tabela 2:

197

Fenda é uma abertura numa superfície, ou em objeto fendido; é qualquer abertura estreita. No caso dos

trilhos, um exemplo desta estrutura esta demonstrada na figura 3, apontada pela seta de numero 2

(FERREIRA, 2000, p. 317).

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129

Figura 3: Esboço do trilho de bonde instalado em Nova Iorque – Estados Unidos

Tabela 2

1 Trilho de ferro.

2 Fenda.

3 Base de madeira.

4

Prego ou estrutura semelhante, usada para fixar o trilho sobre a base de

madeira.

O bonde no mundo

As formas mais rudimentares deste meio de transporte foram instaladas há mais de

quatrocentos anos, nos distritos mineiros de Inglaterra, haja vista a necessidade de

transporte para os portos. A gênese deste meio de transporte é explicada da por Clark e

Chemin da seguinte forma:

Pode se fazer confortavelmente uma idéia da dificuldade que se

teve para manter as estradas que conduziam para as minas de

carvão. As estradas de terra que se vê hoje em dia são um

espetáculo no Egito, o que poderia ser o nosso (França no século

ilustra o modelo de trilho instalado na 2.ª Avenida em Nova Iorque (CLARCK; CHEMIN, op.cit. p. 5).

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XIX) antes da pista sobre o pavimento. Depois de uma chuva forte,

são formados alguns lagos de lama que constituem grandes

obstáculos à circulação ao invés de facilitar. Nossos antepassados

foram dirigidos para colocar algumas tábuas ou pedaços de madeira

no fundo dos buracos; eles acharam isto mais conveniente que os

encher de pedras. Os inconvenientes buracos trouxeram a idéia de

colocar tábuas ou grandes pranchas de madeira. Em 1676, os

bondes consistiram em carros sobre grades de madeira “que vai da

mina para o rio calmo, direto seguindo linhas paralelas. 198

O novo método de se fazer o transporte das cargas facilitou os trabalhos, de forma

relevante, e possibilitou o aumento da produção. O cavalo que em uma estrada aberta

puxava 860 quilos de carvão, com o novo sistema de trilhos era capaz de puxar 2130 quilos

de carvão, regularmente. Na década de 1830, pensou-se em mecanizar o transporte

coletivo, fruto da Revolução Industrial. Foram feitas no Reino Unido algumas tentativas

com o uso da tração a vapor. Em 1831 foi criado um serviço de transportes entre

Cheltenham e Gloucester, numa extensão de 14 quilômetros e 500 metros. Em 1833, surgiu

em Londres, uma carruagem para 12 passageiros, a qual, por razões de ordem técnica, teve

uma duração efêmera. Já em 1836, havia em circulação duas outras viaturas, com

capacidades para 18 e 22 passageiros. Mas estas linhas não galgaram um expressivo êxito.

199 Segundo Belo:

Estas tentativas não foram, contudo, bem sucedidas. Aliado ao fato

de o pavimento das estradas ser de má qualidade, a tecnologia

mecânica ainda era incipiente, pelo que os acidentes com explosões

das caldeiras eram demasiado freqüentes – daí que tal tipo de

transporte se tenha extinto rapidamente, dado o medo e a

indiferença do público potencial utilizador. 200

Os primeiros bondes a tração animal surgiram em 1832, em Nova Iorque, com

capacidade para trinta passageiros sentados, pertencentes à New York & Harlem Railroad

198

CLARCK , D. K.; CHEMIN, M.O. op. cit., p. 2. 199

idem., p. 3. 200

BELO, José Luís Garcia. Autocarros Urbanos, a sua Evolução e Perspectivas de Futuro. Dissertação

(Mestrado) - Universidade Técnica de Lisboa, Lisboa, 1998. In: GARDÉ, op. cit., p. 38.

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Company. 201

Esta companhia foi a primeira no mundo a implantar um serviço de

transporte coletivo sobre trilhos de ferro em perímetro urbano, mas sua aceitação, como as

já citadas, não foi expressiva. A linha foi instalada na 4ª Avenida e, devido à colocação

dos carris acima do nível do solo, o tráfego no restante da rua foi dificultado. Este foi o

principal empecilho para o surgimento de novas iniciativas neste âmbito em vinte anos. 202

Hadler acrescenta que “sua aceitação pelo público não deve ter se dado de maneira

imediata”. 203

No ano seguinte, foi instalada em Nova Orleans uma linha de bondes de tração

animal, na qual, segundo o Taplim, os trilhos servem ainda hoje para os bondes de tração

elétrica, sendo mais de 150 anos de serviço contínuo.204

O francês Alphonse Loubat foi o pioneiro dos transportes ferro-carrís na França, e

de grande importância para a evolução e disseminação do meio de transporte coletivo.

Nascido em 1799, foi para os Estados Unidos da América, onde estabeleceu residência. Os

bondes foram restabelecidos em Nova Iorque, em 1852, graças a ele, responsável pela

construção de um composto, formado por trilhos de ferro sobre dormentes de madeira. Os

trilhos apresentavam, na parte superior, um encaixe ou buraco, para guiar as rodas dos

carros e sobre eles, foram adaptados a vagões. 205

Segundo Gardé, Alphonse Loubat foi um rico e próspero negociante de vinhos que,

na época vivia em Nova Iorque, onde percebeu as potencialidades do novo meio de

transporte. O bonde, no seu entendimento, representava o contrário dos ônibus, que

contavam com rodas de madeira e sem qualquer tipo de suspensão amortecida, tinham que

percorrer os muito irregulares pavimentos das ruas em pedra ou em terra batida tornando a

201

HADLER, Maria S. D. Trilhos da modernidade: memórias e educação urbana dos sentidos. Tese

(Doutorado) – Faculdade de Educação. Universidade Estadual de Campinas, São Paulo. 2007.p. 36. 202

GARDÉ, op. cit., p. 28. 203

Ibidem. 204

TAPLIM, Michael. The History of Tramways and Evolution of Light Rail. Disponivel em:

<http://www.lrta.org/mrthistory.html>. acesso em: 07 de novembro de 2008. 205

CLARCK , D. K.; CHEMIN, M.O. op. cit, p. 4.

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viagem altamente incomoda. Pelo viés econômico, o bonde usava menos animais para

tração transportando o mesmo número de pessoas. 206

Procurando sanar o problema verificado após a implantação dos primeiros bondes

em 1832, Loubat instalou na 6.ª avenida uma linha, onde a maior parte da estrutura ficava

imersa sob o pavimento da rua, deixando aparente somente os trilhos, aos quais fora

adaptado o compartimento de passageiros. Esta é a segunda linha de bondes de Nova

Iorque. 207

Os bondes avançaram rapidamente nos Estados Unidos. Em Nova Iorque, além das

linhas instaladas em 1852 na 6ª Avenida, foi implantada outra linha na 8ª Avenida. Em

1853, mais duas linhas de bondes foram inauguradas nas 3ª e 2ª Avenidas. E em 1854 foi

inaugurada uma linha no Brooklin, linha esta que atravessava o rio Hudson. 208

Para Clarck

e Chemin, o meio de transporte vantajoso em vários aspectos:

O bonde obteve vantagens incalculáveis e se tornou um elemento

característico indispensável nas cidades principais dos Estados

Unidos. As longas distâncias para percorrer, o estado geralmente

ruim das ruas e das estradas, a raridade comparativa dos outros

veículos; formaram uma coincidência que impôs o uso dos bondes

para todas as classes. 209

Na Filadélfia foi construído um tipo diferente de trilho, em 1855, o qual a

população conseguia ultrapassar. Este novo tipo de trilho foi colocado na 5ª e 6ª ruas e

consistia em uma modelo onde as irregularidades do solo eram suavizadas, uma vez que,

planejou-se a extinção dos buracos no interior dos trilhos e em suas margens, além da

diminuição da profundidade das fendas. O modelo de trilho potencializou o uso deste meio

de transporte coletivo, por satisfazer a necessidade de garantir o deslocamento dos bondes

206

GARDÉ, op. cit., p. 28. 207

Idem. 208

GARDÉ, op. cit., p. 38. 209

CLARCK , D. K.; CHEMIN, M.O. op. cit., p. 5.

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em comunhão com o restante tráfego de viaturas, tais como os carros de aluguel, os ônibus,

etc.. Este novo método representou um menor obstáculo para o trânsito que partir de então,

foi adotado em muitas cidades.210

Este trilho implantado na Filadélfia trouxe novos problemas, mas também novos

benefícios para o tráfego. Segundo Clarck e Chemin, houve objeções no que se refere à

terra, que era ruim para as patas dos animais que tracionavam os bondes e, com relação às

irregularidades do solo provocadas pela instalação dos trilhos, embora os autores relatem

que os ressaltos no pavimento das ruas nunca ultrapassavam dois centímetros e meio de

altura. Porém, estes ressaltos foram suficientes para causar um obstáculo considerável para

os carros, que os cruzavam transversalmente, por forçar as rodas e os eixos. Entretanto,

este novo trilho não representou um impedimento ao trânsito dos demais veículos, pois

além de não apresentar encaixes onde o pó e o lixo pudesse se acomodar e criar obstáculos

para o tráfego dos bondes, não há elementos de atração para as rodas dos demais

veículos.211

Como pode se observar na figura 4:

Figura 4: Esboço de trilho instalado na Filadélfia - Estados Unidos.212

Observando o método de Loubat de assentar os dormentes sob o pavimento das

ruas, um engenheiro inglês de nome M. Charles L. Light estudou o caso de Nova Iorque e

210

Ibidem, p. 8. 211

CLARCK , D. K.; CHEMIN, M.O. op. cit., p. 9. 212

O trilho indicado pela seta foi colorido em vermelho, para facilitar na visualização e compreensão. No

original, o esboço esta em preto e branco.

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construiu em 1856-57, uma linha de bondes em Boston com uma particularidade: esta linha

possuía uma fenda menor que as fendas das linhas implantadas por Loubat. Ele avaliou que

seria menos inconveniente uma fenda menor nas linhas dos bondes, onde em um plano

inclinado, possibilitariam que os encaixes das rodas se adaptassem e que estas se

deslocassem com facilidade, enquanto o pó ou as pedras pequenas seriam superados

facilmente.

A América Latina acompanhou o desenvolvimento mundial dos transportes,

contando com as primeiras vias férreas a vapor a partir da década de 1830, logo após o

surgimento das mesmas na América do Norte. Os bondes também acompanharam o

desenvolvimento global, com ferro-carris de tração animal implantados na Cidade do

México, no dia 1º de janeiro de 1858. Esta linha implantada só foi precedida das linhas de

Nova Iorque, Nova Orleans, Paris e Boston.213

Segundo Morrison, o México inaugurou sua primeira via férrea a vapor em 1850 e

o primeiro bonde oito anos após. Ele acrescenta que os bondes levaram os passageiros da

catedral para a praça de touros e para o subúrbio de Tacubaya. Estes bondes eram os

mesmos veículos que foram implantados em Nova Iorque.214

Também em 1858, foi inaugurada a primeira linha de bondes em Santiago, no

Chile, sete anos após a abertura da primeira via férrea. Ela foi construída pelos mesmos

engenheiros norte-americanos, e contaram com os mesmos modelos de bondes, que foram

instalados na Cidade do México e em Nova Iorque. Estes bondes eram construídos pela

Eaton Gilbert & Company.215

Em 1859 começaram a trafegar no Rio de Janeiro os primeiros bondes de tração

animal, três anos após a autorização dada pelo governo ao inglês Thomas Cochrane, para

213

MORRISON, Allen.Tramway Pionners. Disponível em: <http://www.tramz.com/tw/p.html>. Acesso em:

30 de outubro de 2008. 214

idem. 215

MORRISON, op.cit.

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organizar um serviço urbano de veículos sobre trilhos de ferro. Foi feita em 30 de janeiro

uma viajem de experiência, a qual galgou um expressivo êxito e, em 26 de março, foi

efetuada a inauguração solene.216

Morrison acrescenta, dizendo que a linha foi batizada

pelo imperador.217

Em 1861, Train estabeleceu o serviço de transporte em Londres, com a autorização

de autoridades locais.218

Foi construída uma linha na estrada de Blayswater, entre o portico

de “Notting Hill e a Arca de Marmore”. Em 1863, uma linha de bondes de dois

quilômetros e oitocentos metros, foi aberta, em “Cerâmic District”, para a companhia

Ceramic of Staffordshire, entre Burslem e Hanley. Segundo Gardé, os bondes que

circularam em Londres foram construídos na Filadélfia e a administração local não gostou

de tal iniciativa, uma vez que, além de encerrar coercivamente as linhas, colocou o original

empreendedor na cadeia.219

O fracasso destas iniciativas na Inglaterra se deu devido ao estado relativamente

bom das ruas e estradas e da difusão de ônibus e carros, aos quais um número grande de

pessoas tinham acesso a um preço razoável. Estes fatores apontaram para uma necessidade

menos urgente dos bondes na Inglaterra. Ele acrescenta que os defensores dos bondes

foram desencorajados pelo fracasso manifesto dos primeiros bondes, e se afastaram

durante certo tempo.220

Clarck e Chemin concluem o assunto de forma taxativa: “o tempo do bonde com

trilho “Para Pisar” tinha passado. Embora as pessoas tolerassem isto na América, eles

foram odiados na Inglaterra; e só depois de um intervalo de vários anos, - em 1865 e 1866

- recuperaram o movimento para a construção dos bondes”.221

216

STIEL, op. cit., p. 315. 217

MORRISON, op.cit. 218

CLARCK , D. K.; CHEMIN, M.O. op cit., p. 12. 219

GARDÉ, op. cit., p. 38. 220

CLARCK , D. K.; CHEMIN, M.O. op. cit., p. 12. 221

Idem.

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Mesmo com os problemas diversos enfrentados por cada companhia e em cada

localidade, este meio de transporte comprovou sua grande utilidade e versatilidade, com a

implantação de linhas nas principais cidades do mundo. O uso do bonde variou desde o

transporte de carvão nas minas, até o transporte de cadáveres, ao qual farei menção

posteriormente. Portanto, em consonância com Clarck e Chemin, o bonde provocou uma

revolução nos transportes de sua época, uma vez que, permitiu, através de sua estrutura

composta por trilhos assentados sobre o pavimento das vias aos quais é adaptado o

compartimento, seja de passageiros ou de carga, uma redução no tempo das viagens,

conforto aos passageiros, redução nos custos devido ao uso de menos animais para

tracioná-lo, além de um desgaste menor dos animais e a possibilidade de transporte de

maior quantidade de passageiros ou de cargas.

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Notas Sobre a Trajetória Individual do Conde de Funchal (1760-1833).

Debora Cristina Alexandre Bastos e Monteiro de Carvalho222

Resumo: Em meio aos acontecimentos de inícios do século XIX, algumas figuras se

destacaram em meio ao caos ocasionado pela iminência das invasões das tropas francesas

em Portugal. Dentre essas figuras, estava D. Domingos Antônio de Sousa Coutinho. A

comunicação pretende abordar a vida desse ator político, apontando para isso alguns

elementos de sua trajetória em seus anos de vida, de 1760 a 1833. Utilizo alguns métodos

da História Política Renovada, principalmente, em relação a utilização de fontes como as

correspondências. As fontes utilizadas são as correspondências do Conde de Funchal, bem

como os impressos da época como o Correio Braziliense, além de fontes secundárias como

as memórias de José Liberato, editor do impresso Investigador Portuguêz em Inglaterra,

mas também, as referências bibliografias que remetam ao período abordado.

PALAVRAS-CHAVE: D. Domingos; trajetória; diplomacia.

ABSTRACT: Amid the events of the early nineteenth century, few figures stand out amid

the chaos caused by the imminence of the invasion of French troops in Portugal. Among

these figures, was D. Domingos Antonio de Sousa Coutinho. It intends to address the

political life of this actor, pointing out that some elements of his career in his lifetime, from

1760 to 1833.

I use some methods of renewed political history, especially regarding the use of sources

such as matches. The sources used are the matches of the Earl of Funchal and the forms of

the season as the Correio Braziliense, and secondary sources as the memoirs of José

222

Aluna do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Juiz de Fora.

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Liberato, editor of Research Portuguez printed in England, but also references bibliography

referring the period covered.

KEYWORDS: D. Domingos, trajectory; diplomacy.

Este artigo tem por finalidade abordar a trajetória de D. Domingos Antônio de

Sousa Coutinho, de maneira parcial. Mesmo não sendo a intenção primeira no

desenvolvimento dessa pesquisa a biografia desse diplomata português, -se torna

importante para que entendamos o contexto em que ele viveu, algumas de suas escolhas e

transformações com o passar do tempo.

Estudos que abordem a trajetória de um indivíduo merecem atenção devido aos

percalços com que o historiador poderá se deparar. Uma atitude individual que a primeira

vista poderia ser considerada uma contradição, nada mais pode indicar que o homem não

segue uma linha reta e que ele não possui uma linearidade, e que tudo o que esse indivíduo

é, faz parte das várias influências, experiências, expectativas, que estão em profunda

confluência já que não são estáticas e estão em constante tensão. Baseada nisso, pretendo

desenvolver um artigo que demonstra alguns resultados parciais da pesquisa sobre D.

Domingos Antônio de Sousa Coutinho, o Conde de Funchal.

A noção de trajetória desenvolvida por autores como Giovani Levi, Pierre Bourdieu

e Jaques Le Goff, e as idéias de micro e macro utilizadas pelo sociólogo Daniel Cefai, de

certa forma se encontram223

. Acredita-se que o micro, representado pelo próprio ator e o

macro pelo contexto o qual ele pertence são indissociáveis, e que, se, pensados

separadamente não fazem sentido. Segundo Daniel Cefai, é possível pensar o micro, não

apenas como uma redução de escala, e que é plausível fazer o estudo sobre este indivíduo.

Tal estudo, ajuda na compreensão de como os atores se relacionam, colaboram, expressam

223

CEFAI, Daniel. Expérience, culture et politique. In: Cultures politiques. Paris: PUF, 2001.

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ou solucionam seus problemas. O indivíduo, nessa perspectiva não deve, contudo, ser

isolado. É um estudo do micro, que permite perceber o ambiente em que o ator esteve

envolvido mas que, ao mesmo tempo, nos dá uma noção estrutural.224

A relação estabelecida entre a História Política e as biografias formam um ponto

essencial. Os trabalhos de Giovani Levi, Pierre Bourdieu e Jaques Le Goff são referências.

Para Le Goff, ao produzir uma biografia o historiador deve indagar a trajetória do

biografado a ele próprio, tendo por base o local de seu nascimento, estudo, suas relações

sociais, as idéias que defendeu, bem como o contexto em que viveu.225

Outro autor

importante na construção de trajetórias é Pierre Bourdieu que em sua “ilusão biográfica”

considerou ser indispensável a reconstrução do contexto, ou seja, a “superfície social” em

que o indivíduo age em campos de componentes diversas226

tal idéia foi compartilhada por

Giovanni Levi. Este último, por sua vez, chama a atenção para a idéia de acharmos que os

biografados “obedecem a um modelo de racionalidade anacrônico e limitado227

”,

demonstrando que não se deve achar que a vida do biografado segue uma linha reta, sem

curvas. Levando em consideração esses três autores, podemos perceber que todos possuem

um ponto em comum: acreditam que a biografia não deve seguir uma linearidade, e que os

atores estudados não possuem uma “cronologia ordenada, uma personalidade estável,

ações sem inércia e decisões sem incertezas”.228

A partir dos autores elencados acima, podemos ter em mente a noção de Cultura

Política, principalmente, quando tratamos das trajetórias políticas de “nomes próprios”.229

Segundo Serge Bernstein, o conceito de Cultura Política pode adaptar-se a complexidade

224

Cf.: CEFAI. Op. Cit. 225

LE GOFF, Jacques. Comment écrire une biographie historique aujourd’hui? Le débat, Paris, nº 54,

mars/avril, 1989, pp. 48-54. 226

BOURDIEU, Pierre. A Ilusão Biográfica. In: FERREIRA, Marieta e AMADO, Janaína (org). Usos e

abusos da História Oral. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1996. 227

LEVI, Giovanni. Usos da biografia. In: Usos e abusos da História Oral. FERREIRA, Marieta e AMADO,

Janaína (org). Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1996. 228

Idem. 229

BERSTEIN, Serge. A Cultura Política. In: RIOUX, Jean-Pierre e Sirinelli, Jean-François. Para um

História Cultural. Lisboa: Editora Estampa, 1998.

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dos comportamentos, rompendo ainda com a idéia de Cultura Política no singular, levando

em consideração as várias componentes que a cercam e que estão em constante

confluência. Se olharmos por esse âmbito, percebemos que os valores apreendidos pelo

ator, não são estáticos e se modificam de tempos em tempos230

. D. Domingos viu o caos na

Revolução Francesa quando foi enviado como observador em 1790. Na França

revolucionária, se deparou com o terror, o delírio e a anarquia231

, talvez esse tenha sido o

motivo de sua posição anglófila na política portuguesa.

E é dessa maneira que pretendo reconstruir a vida de D. Domingos e as idéias que o

influenciaram, que o formaram. Pode-se perceber que todas os vértices que foram

levantados possuem uma ligação harmônica entre si. No estudo acerca de D. Domingos

Antônio de Sousa Coutinho, todas essas concepções são bastante plausíveis, já que se trata

de um ator político, que possuía seus ideais, suas escolhas políticas, suas culturas políticas.

De fato, alguns pontos de sua vida ainda não são conhecidos, já que a pesquisa ainda se

encontra numa fase inicial. Mas é importante ressaltar que a bibliografia citada servirá de

base para o desenvolvimento desse trabalho. Dito isso, o próximo passo é apresentar

alguns pontos já conhecidos sobre o Conde.

D. Domingos Antônio de Sousa Coutinho, primeiro e único Conde de Funchal,

título nobiliárquico que recebeu em 1808 da Rainha Maria I, juntamente com seu irmão, O

Conde de Linhares. Foi também primeiro Marquês do Funchal, título que recebeu em

1833, pouco antes de sua morte.

D. Domingos nasceu em Chaves232

, e morreu na Inglaterra em 1833. Vindo de uma

família da nobreza era filho de D. Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho233

que foi

230

Cf.: CEFAI, Daniel. Expérience, culture et politique. In: Cultures politiques. Paris: PUF, 2001. 231

ARAÚJO, Ana Cristina Bartolomeu de. As invasões francesas e a afirmação das idéias liberais. In:

MATTOSO, José (org). História de Portugal. vol. V, Lisboa, Estampa, 1994. 232

Segundo Andree Mansuy, D. Domingos teria nascido em 1762, enquanto para Hélio Vianna, ele teria

nascido em 1765.

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Conselho de S. M. F, sargento-mor dos Dragões de Chaves, Coronel de Cavalaria na praça

Almeida, Governador e Capitão-general dos Reinos de Angola e de Benguela, embaixador

em Madrid, entre outros e de D. Ana Luisa da Silva Teixeira de Andrade234

. D. Ana Luisa,

era filha de Maria Barbosa da Silva e neta de Matias Barbosa da Silva, um dos

devassadores das Minas Gerais na época da exploração aurífera235

. Seus irmãos também

ocuparam lugares de destaque no Reino: o conhecido D. Rodrigo de Sousa Coutinho, o

Conde de Linhares, que fora diplomata e Ministro e Secretário de Estado da Marinha e

Domínios Ultramarinos, cujo título, de Conde de Linhares, recebeu no mesmo dia em que

seu irmão, também em 1808.236

Era igualmente irmão de D. José de Sousa Coutinho,

principal diácono da patriarcal de Lisboa, entre os anos de 1811 e 1817, e de D. Francisco

Maurício de Sousa Coutinho que por treze anos foi governador do Grão-Pará.237

Segundo

Hélio Vianna, D. Domingos descendia de duas das mais antigas casas do Reino, as do

Coutinho, que vinham do tempo da fundação da monarquia e as do Sousa, descendentes de

Afonso III, o Bolonhês.

D. Domingos foi um homem de letras, poliglota, muitas de suas correspondências

foram escritas em inglês, italiano e francês. Como nobre que o era, formou-se em Leis.

Formado pela Universidade de Coimbra depois das Reformas Pombalinas.238

Segundo

Hélio Vianna, em finais do século XVIII e inícios do XIX, onde se passou das idéias

absolutistas e autoritárias do Marquês de Pombal aos ideais da Revolução Francesa e,

posteriormente, do constitucionalismo liberal tanto Portugal quanto o Brasil, contou com

uma geração de bacharéis que haviam saído, da recém-reformada Universidade de

233

O pai de D. Domingos, D. Francisco Inocêncio foi o negociador do tratado preliminar de Santo Ildefonso,

acordado com a Espanha em 1777, fixando assim os limites territoriais. 234

VIANNA, Hélio. Um diplomata português neto de brasileira. In: Jornal do Comércio, 1957 235

Idem. 236

ZUQUETE, Afonso Eduardo Martins. Nobreza de Portugal e do Brasil. Lisboa. Editora Zairol, 1989. Vol

2. 237

Cf: VIANNA, Op. cit. 238

Idem.

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Coimbra. Segundo o mesmo autor, o que também é compartilhado por Kenneth

Maxwell239

, foi essa universidade que forneceu estadistas, diplomatas e cientistas,

inclusive, D. Domingos: que segundo Hélio Vianna era “ (...) dos mais interessante, porém

dos menos conhecidos (...).”240

Iniciou sua carreira diplomática na Dinamarca em 1788, depois foi enviado a Turim

de 1796 a 1803, quando se tornou embaixador na Inglaterra até 1814. Mais tarde, foi

enviado a Roma onde ficou até 1828.241

José Liberato, editor do Investigador e

contemporâneo de D. Domingos nos deixou uma fonte bastante rica e que nos ajuda a

compreender melhor a figura de Funchal, descrevendo

“Era aquele nosso embaixador, bem que de figura externa pouco

gentil, homem muito instruído, de maneiras agradáveis e até

engraçadas, e inimigo declarado de três altas classes da sociedade,

como eram - padres, inquisidores e desembargadores, dos quais

dizia tinham vindo todos os males a Portugal; porque por eles as

leis tinham sido feitas, e por sempre tínhamos sido governados”242

Gozava de grande prestígio, fato que fica claro, quando de sua saída da embaixada

londrina em 1814, em que fez uma grande festa em que estava presente o Príncipe Regente

inglês, ainda segundo José Liberato:

“A quem ele mais familiarmente tratava, porém ao mesmo tempo

sem faltar a toda etiqueta de uma rigorosa civilidade, era o Conde

de Funchal, a quem ele denominava o seu Sousa. (...) De estatura

mui pequena como era, mal feito de corpo, e ainda mais de figura, e

agora vestido com a sua rica farda de embaixador sobre a qual

cabiam uma gram-gruz, e os crachás de muitas ordens,

239

MAXWELL, Kenneth. Geração de 1790 e a idéia de Império Luso Brasileiro. In: Chocolate, Piratas e

outros malandros: Ensaios Tropicais. São Paulo, Ed: Paz e Terra, 1999. 240

Idem. 241

SILVA, Andrée Mansuy-Diniz. Portrait d’um homme d’Etat : D. Rodrigo de Souza Coutinho, Comte

de Linhares 1755-1812. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian; Paris: Centre Culturel Calouste Gulbenkian;

2002-2006. vol 1. 242

CARVALHO, José Liberato Freire. Memórias da vida de José Liberato. Tipografia de José Baptista

Morando, Lisboa, 1855.

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representava um papel tão fora do comum, que parecia interessar

muito o Príncipe, que dele muito gostava “243

.

O período vivido pelo Conde de Funchal foi bastante conturbado. Em finais do

século XVIII e inícios do XIX, a política internacional se tornou decisiva para a Europa.

Em inícios do século XIX, Napoleão Bonaparte, auto intitulado imperador da França, viu

como entrave aos seus interesses a Inglaterra. Na tentativa de atingir a economia britânica,

Napoleão decretou o bloqueio continental em 1806, que proibiu todas as nações da Europa

de comercializarem produtos com a Grã-Bretanha.244

O bloqueio alvejou diretamente o

Império Português que, na iminência de uma invasão das tropas francesas, teve que mudar

sua estratégia diplomática tradicionalmente neutra245

, por imposição tanto da Inglaterra

quanto da França.246

Internamente, Portugal encontrava-se igualmente dividido, havendo dessa maneira,

“duas orientações diplomáticas em confronto”247

, em que “o interesse e o sentimento

associam-se nas representações que se criam da conduta dos diplomatas”.248

De um lado,

simpatizantes dos franceses eram representados pelo “partido francês”, que tinha como

maior nome Antônio de Araújo Azevedo, futuro Conde da Barca, que mais tarde fez

inúmeras acusações a D. Domingos e ao Conde de Linhares, acusações essas que

mereceram uma resposta por parte de D. Domingos, em uma impressão denominada

Resposta pública a denúncia secreta que tem por título “Representação que sua

243

CARVALHO, Op. Cit. pg 150-151. 244

SCHWARCZ, L. K. M., AZEVEDO, Paulo César e COSTA, Ângela Marques da. A longa viagem da

biblioteca dos reis: do terremoto de Lisboa à independência do Brasil. 1. ed. São Paulo: Cia. das Letras,

2002. vol. 1. Og. 194. 245

Cf: ARAUJO. Op. Cit. Portugal, diante dos acontecimentos que envolviam a Independência das Treze

Colônias manteve-se Neutro. Anos mais tarde, em 13 de julho de 1782, aderiu a Liga dos Neutros,negociada

por Luís Pinto de Sousa Coutinho. Este, assinou acordos bilaterais com os Estados Unidos e Rússia. 246

Cf: SCHWARCZ, L. K. M., AZEVEDO, Paulo César e COSTA, Ângela Marques da. Op. Cit. 247

PEDREIRA, Jorge e COSTA, Fernando Dores. D. João VI, um príncipe entre dois continentes. São

Paulo: Companhia das letras, 2008. Pg. 88 248

ARAÚJO. Op. Cit pg 28.

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Magestade fez Antonio de Araujo de Azevedo em 1810”. sob o pseudônimo de R. da C.

Gouveia.249

Por outro lado em Portugal se tinha o grupo dos liderados por D. Rodrigo de Sousa

Coutinho, partidários do governo britânico, oriundos do “partido inglês”. Em meio a essa

divisão, D. Domingos também se posicionou, aí pode-se perceber a influência das culturas

políticas que o cercavam. Sobre sua postura política gozamos de uma gama de opúsculos

sobre assuntos diplomáticos e políticos . Além da Resposta dada a Antônio de Araújo

Azevedo era de sua autoria Notas ao Pretendido Manifesto da nação portuguesa aos

soberanos da Europa, Carta escrita El-Rei Nosso Senhor pelo Conde de Funchal, quando

nomeado um dos governadores do Reino em 1819, e tantos outros que nos dá indícios

sobre suas culturas políticas.250

Alguns de seus contemporâneos falaram do posicionamento dele, assim como José

Liberato em suas memórias declarou que Funchal passara parte de sua vida em Londres

onde havia se tornado um anglófilo convicto, descrevendo: “ Quanto a política era inglês

nos ossos, inimigo figadal dos franceses, e monarquista exaltado”.251

Isso fica claro em

uma publicação sua no periódico Correio Braziliense, em que D. Domingos anonimamente

escreve uma carta sobre a conduta de Araújo de Azevedo, em setembro de 1812. Nesta

carta, ele fala sobre as invasões francesas em Portugal e da vinda Família Real para o

Brasil, chamando Napoleão Bonaparte de tirano.252

Segundo Valentim Alexandre, o conceito que melhor definiu as circunstâncias

vividas pelo Império Português, foi o da “vulnerabilidade estrutural”, mas não de crise. Tal

vulnerabilidade já era visível desde o século XVII, tornando-se ainda mais clara após os

conflitos internacionais que atingiram a Europa em finais do século XVIII, que se

249

GOUVEIA, R. da C..Resposta pública a denúncia secreta que tem por título “Representação que sua

Magestade fez Antonio de Araujo de Azevedo em 1810”, Londres, 1820. 250

Cf: ZUQUETTE, op cit. 251

CARVALHO apud VIANA, 1957. 252

Correio Braziliense, 1812. Fundação Biblioteca Nacional, Biblioteca Digital.Disponível em www.bn.br.

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acentuaram no início do século XIX e que culminou com acontecimentos de 1807253

. As

pretensões portuguesas eram amplas para uma pequena potência como Portugal, entre os

pontos fundamentais para o Estado lusitano estavam: a defesa do território metropolitano,

especialmente contra os ideais expansionistas da Coroa Espanhola; a proteção dos tráficos

coloniais, essenciais para o comércio externo; a fixação de fronteiras favoráveis,

principalmente para o Brasil; e a preservação das colônias na costa Africana, principal

fonte de mão-de-obra escrava.254

O apoio fundamental a essas aspirações veio da Grã-

Bretanha, com quem o Império Português fixou tratados desde o século XVII, fato que não

se alterou até 1807255

. Apesar disso, diante de um possível conflito pós-bloqueio

continental, o governo Português não desejava um enfrentamento com a França, tentando

permanecer, dessa maneira, neutro.

A tentativa de estabelecer acordos secretos com os dois lados, não agradou o

governo britânico. O Príncipe Regente havia enviado uma carta ao Rei Inglês, pedindo que

salvasse a monarquia portuguesa fingindo estar em guerra. D. Domingos negociou a

convenção de 22 de outubro de 1807, que visava regulamentar as relações entre Portugal e

Inglaterra em tempos de crise. A assinatura dessa convenção tornava quase que obrigatória

a retirada da Corte para o Brasil e a ruptura com a França.

O artigo no 60 que garantia a proteção da Grã-Bretanha para que a Família Real

Portuguesa chegasse à colônia do Brasil, não estava definido devido à insatisfação do

governo inglês com uma ratificação parcial na convenção, e se recusava a endossá-la. Às

vésperas da transposição da Coroa Portuguesa, o acordo que remetia a escolta britânica às

esquadras reais, não estava totalmente estabelecido. Inclusive como exemplo da

desconfiança inglesa, além da que foi citada anteriormente, a ocupação britânica na Ilha da

253

ALEXANDRE, Valentim. Os sentidos do Império: Questão nacional e questão colonial na crise do

antigo regime português. Lisboa.Edições Afrontamento, 1992. Pg 105. 254

Idem. 255

Idem. Pg 93.

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Madeira , também fez parte da ação ressabiada dos ingleses em relação ao Governo

Português.256

Nesse momento, D. Domingos Antônio de Sousa Coutinho, teve papel

preponderante nas negociações. E como ele próprio expressou: a “Autoridade Soberana

boiava sobre o Oceano”257

, enquanto o reino português encontrava-se sem meios de agir,

tanto no contexto internacional quanto em seus territórios.

“O embaixador em Londres, D. Domingos de Sousa Coutinho –

tomava sobre si ‘representá-la e defendê-la’ velando ‘por todas

partes da Monarquia que tratam com a Grã-Bretanha’ apesar de

desprovido de instruções ou ‘ordens de qualidade alguma‘”.258

D. Domingos acordou com o representante inglês, ministro Canning, a sanção para

que tudo fosse resolvido. Em troca dessa escolta, seria certo de que o Governo Português

deveria aceitar todas as estipulações impostas, o que resultou posteriormente na abertura

dos portos às nações amigas em 1808 e nos tratados de 1810.

Após o acordo feito com Canning em 1807, no contexto da vinda da Família Real

para o Brasil. D. João VI, conferiu plenos poderes a D. Domingos para um congresso de

paz realizado na Grã-Bretanha259

. No contexto dos tratados de 1810, esteve envolvido nas

negociações que abarcavam um acordo entre os dois países. O primeiro documento

relacionado a esses tratados foi feito e redigido pelo embaixador português,260

a pedido do

256

Idem. Pg 170. 257

Idem. Pg 170. 258

Idem. PEREIRA apud ALEXANDRE. Pg 170. 259

Carta do príncipe regente de Portugal a D. Domingos Antônio de Sousa Coutinho de 20/01/1809.

Fundação Biblioteca Nacional/ Manuscrito I-29,14,55 n° 01-02. 260

Cf: PEDREIRA E COSTA, 2008. pg. 229

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Lord Stragford, com quem teve uma relação de proximidade261

e levou o projeto para ser

novamente discutido no Rio de Janeiro junto a Imperial Corte Lusitana.262

Firmados os tratados em 1810, o descontentamento com o Governo Português

ficou clarificado com a reação demonstrada por Hipólito da Costa na Inglaterra, editor do

periódico Correio Braziliense. Publicou, no entanto, o tratado e exibiu um exame deste em

que alguns pontos eram criticados. Segundo Evaldo Cabral de Mello, o tratado com a

Inglaterra teria desiludido o jornalista e redator do Correio Braziliense.263

O que

ocasionou um certo mal estar entre Hipólito e D. Domingos. As publicações de artigos

contra a Coroa Portuguesa no Correio Braziliense, numa Inglaterra onde a imprensa era

livre, fez com que, em 1811, esse jornal fosse proibido em Portugal.264

Em oposição às

críticas feitas no Correio, foi criado em 1812, O investigador Portuguez em Inglaterra,

impresso português editado na Grã-Bretanha, que perdurou com esse objetivo até 1814.265

Em 1812, D. Rodrigo de Sousa Coutinho morreu e D. Domingos enviou uma carta

ao Lord Strangford, lamentando o acontecido266

. A morte de D. Rodrigo parece ter feito

muita diferença na vida de D. Domingos dali para frente, em meio a divisão do que poderia

ser chamado de “partido inglês” e “partido francês”, até mesmo em relação a corte, um

perdia o prestigio frente ao outro. Depois disso, D. Domingos, foi inclusive convidado a se

retirar da embaixada inglesa, coisa que não o agradava, trazendo problemas para que o

Conde de Palmela assumisse o seu posto em Londres. Após sua saída de Londres, D.

Domingos foi enviado a Roma, onde ficou de 1814 a 1828. Em 1828, ainda se mostrava

261

A relação de amizade entre o Lord Strangford e D. Domingos, pode ser conferida nas correspondências

trocadas por ambos estão disponíveis no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Lata 434. Pastas 15 a 17. 262

Cf: ALEXANDRE, 1992. Como podemos perceber, a participação de D. Domingos nos tratados de 1810

fica clara tanto em suas correspondências oficial, guardadas no Arquivo do Itamaraty, quanto em suas

correspondências particulares trocadas tanto com seu irmão, Conde de Linhares, quanto com o Lord

Strangford, ministro inglês no Brasil de 1808 a 1815, em Lisboa desde 1806. 263

MELLO, Evaldo Cabral. Um imenso Portugal. São Paulo. Editora 34,2002. Pg. 50-51. 264

VARGUES, Isabel Nobre. O Processo de formação do primeiro movimento liberal: A Revolução de

1820. In: MATTOSO, José (org). História de Portugal. vol. V, Lisboa, Estampa, 1994. Pg 46. 265

Idem. Pg 48. 266

COUTINHO, Domingos Antônio de Sousa. Carta ao Lord Strangford. Instituto Histórico e Geográfico

Brasileiro, 1970. Manuscrito/ Lata 434, pasta 14. Documento 6.

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um monarquista exaltado, como dito por José Liberato. Um fato interessante relacionado

ao seu posicionamento frente a Corte, pode ser demonstrado no artigo de Pedro Vilas Boas

Tavares em que D. Domingos, então embaixador português junto da Santa Sé (assim como

o Conde Palmela embaixador de Portugal em Londres) suspendeu toda a correspondência

com Lisboa, com prévia aprovação romana a essa resolução, quando do golpe no trono de

D. Miguel em Portugal.267

Em 1833, já de volta a Londres, D. Domingos morreu pouco

depois de receber o título de primeiro Marquês de Funchal.

É importante ressaltar que a trajetória de D. Domingos não está completamente

descrita nessas páginas, alguns pontos sobre sua vida ainda estão por serem descobertos.,

Mas mais importante ainda, acredito que seja perceber que ele nos deixou um grande

número de fontes os quais poderemos utilizar para o desenvolvimento dessa pesquisa. A

importância de D. Domingos para as relações diplomáticas lusitanas se torna clara após a

iniciação deste estudo. Havendo lacunas sobre sua vida, suas relações políticas, que

influenciaram na diplomacia portuguesa, tenho como intenção neste trabalho, que ainda se

encontra em gestação, preencher tais lacunas, tão obscuras mas ao mesmo tempo

interessantes.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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27 e 28 de outubro de 2009

153

Política Industrial Comparada: o caso de Brasil e Espanha268

Maedison de Souza

Email: [email protected]

Diogo Gomes de Campos

Email: [email protected]

RESUMO: Na Espanha a preocupação tecnológica marca as últimas décadas e que não se

modifica no período aqui tratado. No Brasil, tendo em vista que o governo anterior ao aqui

tratado havia uma diferente concepção de política industrial e de pouco resultado, o

governo do presidente Luiz Inácio Lula de Silva assume com os olhos voltados para esse

setor da economia. O presente texto tem por objetivo apresentar uma abordagem sobre a

política industrial durante o governo representado pelo presidente José Luis Rodriguez

Zapatero, em comparação com a gestão do governo de Luis Inácio Lula da Silva.

PALAVRAS-CHAVE: Política Industrial; Brasil; Espanha.

ABSTRACT: In Spain the concern technology marks the last decades and that does not

change during the period that is here. In Brazil, considering that the previous government

had treated here to a different conception of industrial politics and poor results, the

government of President Luiz Inacio Lula de Silva took his eyes focused on this sector of

the economy. This paper aims to present an approach to industrial politics during the

government represented by President José Luis Rodriguez Zapatero, compared with

management by the government of Luis Inacio Lula da Silva.

268 Texto apresentado no I Seminário de graduandos e pós‐ graduandos em História da UFJF por Maedison

de Souza e Diogo Gomes de Campos (Graduandos em História – UFJF)

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KEYWORDS: Industrial Politics, Brazil, Spain

INTRODUÇÃO

Ao nos debruçarmos sobre o tema de Política Industrial acreditamos que

primeiramente o significado dessa expressão deva estar claro, com o intuito de melhor

compreendermos o assunto aqui tratado. Entendemos como Política Industrial o conjunto

de medidas propostas e aplicadas por determinado governo, que visa o direcionamento da

cena industrial de um país. É aqui que percebemos os delimitadores da produção da nação,

ou seja, a dinâmica produtiva aplicada por um país. Passando pelas propostas de

investimento nas áreas mais inovadoras até aquelas que pouco são transformadas.

Acreditamos que PI (Política Industrial) “propõe que há uma co-evolução de tecnologias,

de estruturas de empresas e de indústrias, e de instituições em sentido amplo, incluindo

instituições de apoio à indústria, infra- estruturas, normas e regulamentações, tendo a

inovação como força motora. Assim, neste enfoque a PI é ativa e abrangente, direcionada a

setores ou atividades industriais indutoras de mudança tecnológica e também ao ambiente

econômico e institucional como um todo, que condiciona a evolução das estruturas de

empresas e indústrias e da organização institucional, inclusive a formação de um sistema

nacional de inovação. Isto determina a competitividade sistêmica da indústria e impulsiona

o desenvolvimento econômico.”269

No estudo do setor industrial é importante considerarmos que aqui tratamos da sua

forma mais ampla. Não nos referimos às unidades produtivas que são as empresas ou

firmas, mas sim, ao complexo de produtividade. As firmas podem ser consideradas como

“unidades primárias de ação” que produzem na forma de capital, trabalho, tecnologia e

269

SUZIGAN & FURTADO; 2006

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terra, podendo variar de tamanho e sendo classificadas como grandes, medias, pequenas ou

microempresas. A indústria consiste no conjunto de firmas que produzem artefatos

idênticos ou semelhantes na sua constituição física, ou baseados na mesma matéria

prima.270

Como descrevemos acima, a PI é sugestiva a cada país como iniciativa

governamental e que portanto está vinculada à sua cultura política. É observando dois

países de diferentes trajetórias históricas, tal qual Brasil e Espanha, é que podemos

perceber que nações que investem com mais intensidade em inovações tecnológicas estão

dentro do circulo dos ditos países desenvolvidos, ou centrais, enquanto que os

subdesenvolvidos, ou periféricos, são receptores de inovação e principais produtores de

bens de consumo.271

Os governos que se prestam a ter um planejamento de sua governabilidade durante

o seu período de atuação buscam uma organização de sua estrutura para que se tenha uma

melhor harmonia entre os setores que pretende abarcar. Percebemos que Espanha e Brasil

possuem estruturas completamente diferentes e que assim possuem papeis diferentes no

cenário mundial. O primeiro está entre os países centrais em que a sua produção está mais

voltada para produtos que envolvem maior desenvolvimento tecnológico. Já o segundo está

sustentado por uma política que visa a produção de bens de menor perenidade.

Nossas fontes primárias retratam o ano de 2005 em que Luiz Inácio Lula da Silva é

o presidente brasileiro que se propõem a pensar uma estrutura de PI para o Brasil, tendo e

vista os anos de ostracismo da década de 1990. Já Espanha é governada pelo primeiro

ministro José Luis Rodriguez Zapatero que mantém uma prática de planejamento que seu

país faz regularmente.

BRASIL

270

KON; 1994 271

GOLDENSTEIN; 1994

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Com a implementação definitiva no início da década de 90 do neoliberalismo no

Brasil, a Política Industrial, como entendida nesse trabalho, foi deixada de lado, isso

porque ela requer uma forte intervenção do Estado na economia, atitude essa contrária aos

neoliberais que estavam no Governo. O Presidente Luiz Inácio Lula da Silva assume a

Presidência com a proposta de retomada da PI na tentativa de acender o crescimento do

setor industrial que estava estagnado. Para isso ele lança a Política Industrial Tecnológica e

de Comércio Exterior (PITCE).

A PITCE, foi lançada pelo Governo Lula em 2004. Com o objetivo de inovação,

agregar valor aos produtos e serviços das indústrias brasileiras e elevar o padrão de

competitividade da indústria nacional. Ela abrange três eixos, o primeiro é formado por um

conjunto de instrumentos horizontais que colaboram para a modernização industrial, para o

aumento da capacidade inovadora das empresas, para uma melhor inserção das firmas

brasileira no mercado internacional e para o aperfeiçoamento do ambiente institucional1. O

segundo eixo determina como opções estratégicas os setores de software, semicondutores,

bens de capital e fármacos e medicamento. Alguns desses setores como software,

semicondutores e bens de capital, são elementos fundamentais para modernização da

indústria brasileira. E por fim, o terceiro eixo se refere as ações portadoras de futuro, como

a biotecnologia, nanotecnologia e energias renováveis. Espera-se com a implantação desses

eixos colocar o Brasil em condições de disputar de igual para igual o desenvolvimento

desses setores com os principais países do mundo. 2

Propomos-nos agora a fazer um detalhamento de cada eixo de atuação da PITCE,

dando destaques para alguns programas e metas que o Governo pretende alcançar. O

1 Acompanhamento da Política Industrial Tecnológica e de Comércio Exterior, PITCE 2 anos e PITCE 3

anos. 2 idem

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primeiro eixo é as Linhas de Ações Horizontais, que destacamos de princípio alguns marco

regulatórios criados para dar andamento a PITCE, como a Lei 10.973/2004 ou Lei de

Inovação, que indica uma nova relação entre universidades e institutos públicos de

pesquisas e empresas privada, além de possibilitar uma participação mais ativa do Estado

no apoio à inovação empresarial, por exemplo a lei permite o investimento público em

empresas privadas e cria estímulos para que as empresas contratem pesquisadores para seu

quadros ou que pesquisadores constituem suas próprias empresas. Outro marco é a Lei

11.196/2005, ou a Lei do Bem, que estabelece um conjunto de instrumentos para apoio à

inovação na empresa, esses instrumentos reduzem o custo e o risco da inovação na grande

empresa, através de incentivos fiscais. Lei de Biosegurança, Lei 11.105/2005, é um marco

decisivo ao viabilizar a pesquisa com organismos geneticamente modificados e com as

células-troncos.

Um dos obstáculos para a inovação é o financiamento e o Brasil vem corrigindo

isso. Ao lodo dos marcos legais citados acima, vale destacar a (re)entrada do BNDES

como grande financiador de projetos de inovação e isso se soma a elevação do orçamento

da Finep. Foram criadas novas linhas de financiamento para pesquisas, desenvolvimento e

inovação e alguns programas de apoio a empresas promovido pela Finep, como Pro

Inovação que estimula projetos de inovação de médias e grandes empresas, com taxas de

juros anuais entre 4% e 9%. E o Programa de Apoio à Pesquisa na Pequena Empresa

(Pappe) também da Finep, para alavancar micro e pequenas empresas de base tecnológica.

Outro programa para micro e pequenas empresas é o Juros Zero, que atende empresas

inovadoras no aspecto gerencial, comercial, de processo ou de produtos/serviços. 3

Dentro da proposta de crescimento, desenvolvimento industrial e estimulo à

inovação tecnológica, um ponto importante é a inserção externa ou exportações. O Brasil

3 idem

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vem aumentando sua participação no comércio exterior, em 2002 as exportações brasileiras

eram de 0,96% das exportações mundiais, já esse número em 2005 chegou a 1,17%. Esses

resultados não resultam apenas na expansão do mercado mundial, mas também a uma série

de medidas de políticas como: A) apoio às exportações com financiamento, simplificação

de procedimentos e desoneração tributária; B) promoção comercial e prospecção de

mercados; C) estimulo à criação de centros de distribuição de empresas brasileiras no

exterior e sua internacionalização; D) apoio a inserção em cadeias internacionais de

suprimentos; E) apoio a consolidação da imagem do Brasil e de marcas brasileiras no

exterior.

A grande responsável pela articulação dessas políticas é a APEX-Brasil (Agência

Brasileira de Promoção de Exportações e Investimento). Criada sob a égide do Sebrae, é

um serviço social autônomo recebendo investimentos do chamado Sistema S. Com o início

do Governo Lula, a agência passou a ser ligada ao Ministério do Desenvolvimento,

Indústria e Comércio Exterior (MDIC). A APEX-Brasil atua na alavancagem das vendas

em mercados alvos e em mercados não tradicionais. Uma das missões da APEX é ir até o

país que seja interessante fazer negociações para levantar as possibilidades de negócios. A

promoção comercial também é atividade da APEX-Brasil, ela apóia e incentiva a

participação das empresas brasileiras em eventos internacionais.

Ainda dentro das orientações do primeiro eixo da PITCE, um fator importante para

o desenvolvimento tecnológico e a inovação, é a modernização industrial, apesar de ser um

fator clássico nas políticas que obtiveram o desenvolvimento, a PITCE traz algumas

novidades como o apoio ao desenvolvimento organizacional, gerencial, creditício e para a

certificação de produtos e processos de pequenas e médias empresas e o apoio articulado a

arranjos produtivos locais (APLs)4 . Chamamos a atenção para o Modermaq e o Cartão

4 idem

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BNDES, o primeiro é um programa de modernização de equipamentos voltado para

pequenas e médias empresa e o segundo, que também é destinado para pequenas e médias

empresas, funciona como um cartão de credito pessoal, porém, são empréstimos para as

empresas realizarem seus investimentos em bens de produção.

Um ambiente institucional também é muito importante para que as políticas

proposta pela PITCE dêem resultados, por isso, a desoneração produtiva, um ponto

importante para o desenvolvimento industrial é a redução ou até mesmo a eliminação da

tributação sobre o investimento, esse era um ponto que atrapalhava o crescimento do

Brasil, porque se pagava para investir. Um elemento importante para estimular o

investimento é a simplificação de abertura e fechamento de empresas. Diminuindo a

burocracia e os impostos, o individuo ou grupo fica mais à vontade para investir ou abri

uma nova empresa.

O segundo eixo da PITCE é a chamada opções estratégicas, que foram definidas

com base em alguns critérios como: portadoras de dinamismo crescente e insustentável;

responsáveis por parcelas expressivas do investimento internacional em P&D; promotoras

de novas oportunidades de negócios; envolvida diretamente com inovação de processos,

produtos e formas de uso; capazes de adensar o tecido produtivo; importantes para o futuro

do país; com potencial para o desenvolvimento de vantagens comparativas dinâmicas.

Segundo a PITCE, a área de semicondutores é de extrema importância para o

desenvolvimento do país, se o Brasil não desenvolver projetos de desenvolvimento de

chips, grande parte da renda das cadeias internacionais de inúmeros produtos tendem a

serem drenados para fora do país. O programa referente a área de semicondutores tem dois

pilares: a capacitação local em projetos de prototipagem e a atração de investimentos em

fabricação. Um outro programa na área dos semicondutores que em breve entrará na vida

de toda a população brasileira é a TV Digital, que em algumas cidades do Brasil já é uma

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realidade. O segmento que mais cresce no setor de tecnologia da informação é o de

software, e o Brasil teve uma participação muito pequena, por isso foram desenvolvidos

alguns programas com os seguintes pilares: fortalecimento da indústria através de melhores

esquemas de financiamento e apoio à consolidação e criação de grupos nacionais de maior

porte; atração de atividades de prestação de serviços, envolvendo basicamente grupos

multinacionais do setor, para ajudar na melhoria da imagem mercadológica do software

brasileiro no exterior e na formação de mercados de trabalho mais amplo; formação de

pessoal e fomento ao desenvolvimento de segmentos de futuro.

O financiamento é um dos fatores principais na decisão de compra de bens de

capital, daí a importância das linhas especiais de financiamento do BNDES, que está nos

pilares do programa de bens de capital, junto com a; facilitação para aquisição de máquinas

e equipamentos por todos os segmentos da economia via o programa já citado Modermaq;

e o esforço de comercialização internacional, através de contratos entre o setor produtor e a

APEX-Brasil.5 Os medicamentos são bens sociais e estratégicos por isso também merecem

destaque na PITCE. Foram desenvolvidos programas para estimular a produção de

medicamentos, e de medicamentos genéricos, incentivar atividades de P&D, a

biotecnologia, a exploração insustentável e modernização de laboratórios. Cabe também

por em relevo implementação dos Fóruns de Competitividade que é uma iniciativa do

Governo para proporcionar um canal de comunicação entre o setor produtivo e o Estado,

canal esse que havia sido extinto pelas administrações anteriores e que são de extrema

importância para que o Governo saiba quais as dificuldades que o setor produtivo está

tendo e como soluciona-los.

O Terceiro e último eixo da PITCE corresponde às Atividades Portadoras de

Futuro, são aquelas com potencial para transformar radicalmente produtos, processos e

5 A APEX-Brasil transita por toda a PITCE, facilita o acesso ao mercado exterior por todos os setores da

economia brasileira.

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formas de uso a médio e longo prazo. Dentro dessas atividades, a biotecnologia e a

nanotecnologia se destacam, junto com as energias renováveis.

De acordo com um estudo do Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE) é

apontado o segmento de nanotecnologia como uns dos mais promissores para o

desenvolvimento de vantagens comparativas dinâmicas pelo Brasil. Está havendo uma

aproximação de setores produtivos com o desenvolvimento de nanotecnologia no âmbito

da Iniciativa Nacional para Inovação. Na área de biotecnologia, a ação mais importante foi

a criação do Fórum de Competitividade de Biotecnologia, coordenado pelos Ministérios do

Desenvolvimento, da Ciência e Tecnologia e da Saúde e contando com representantes do

Estado, da iniciativa privada e da comunidade acadêmica. O foco inicial do Fórum foi a

elaboração de algumas estratégicas como o Programa de Biotecnologia do Ministério da

Ciência e Tecnologia, e o Centro de Biotecnologia da Amazônia. Na área de energias

renováveis, o álcool desponta como uma alternativa energética e com uma grande

oportunidade para o Brasil, devido aos programas de adição de álcool na gasolina. O

Biodiesel também está se tornando uma realidade, o Programa Nacional de Produção e Uso

do Biodiesel, estimula o desenvolvimento tecnológico e o desenvolvimento regional e

social, ao incentivar a produção oriunda da agricultura familiar.

ESPANHA

Numa economia mundializada em que os países buscam, não apenas sua melhoria

interna existe também a preocupação da representatividade no cenário mundial. O

ambiente doméstico tem de estar em sintonia com as interações internacionais. É fato que

cada país do globo possui uma intencionalidade quando das suas proposições produtivas.

Alguns possuem seu foco na produção de bens básicos ao consumo, outros se colocam

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como produtores de tecnologia e direciona a forma produtora. Debate esse bastante

trabalhado pelos teóricos que entende a organização mundial dividida entre países centrais

(produtores de tecnologia) e periféricos (produtores de produtos). Os países do continente

europeus são considerados como aqueles que se dispõe a ditar o sentido tecnológico a ser

seguido pelos países ditos periféricos, e na Espanha não é diferente.272

Ao focarmos nossos olhos para os documentos oficiais apresentados pelo governo

espanhol, no que tange suas preocupações produtivas, podemos perceber o quanto é

substancial o investimento em programas que visam as inovações tecnológicas.

Escolhemos para esse trabalho o documento “Memoria de Actividades de Investigación

Cientifica, Desarrollo Tecnológico e Innovación” de 2005. Esse documento descreve quais

foram as iniciativas do governo espanhol dentro das atividades que visam a qualificação e

especificação na produção. É o resultado anual (2005) baseado na proposição maior

estabelecida no “Plano Nacional de Investigación Cientifica, Desarrollo Tecnológico e

Innovación 2004-2007” (Plano de I+D+I).

O plano de I+D+I 2004-2007 tem como objetivos: incrementar o nível da ciência e

tecnologia espanhola, tanto em tamanho quanto em qualidade; Aumentar o numero e a

qualidade dos recursos humanos, tanto no setor público quanto no privado; Fortalecer o

processo de internacionalização da ciência e tecnologia espanhola, com especial atenção ao

Espaço Europeu de Investigação e Inovação; Potencializar o papel do sistema público na

geração de conhecimento de caráter fundamental; Melhorar a visibilidade e

comunicabilidade dos avanços da ciência e tecnologia na sociedade espanhola; Reforçar a

coordenação entre a administração geral do Estado e as Comunidades Autônomas e, em

particular, melhorar a coordenação entre o plano de I+D+I e os planos de I+D+I das

272

Não é considerado no grupo dos países centrais apenas os do continente europeu. Estamos considerando

nesse texto o foco específico na Europa, como uma escolha didática para que possamos descrever melhor o

país aqui tratado que é a Espanha.

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Comunidades Autônomas; Melhorar a coordenação entre os órgãos de gestão do Plano

Nacional (PN), assim como aperfeiçoar os procedimentos de avaliação e gestão;

Impulsionar a cooperação e coordenação entre as instituições do setor público de I+D+I;

Elevar a capacidade tecnológica e inovadora das empresas; Promover a criação do tecido

empresarial inovador; Contribuir para a criação de investimento em I+D+I; Melhorar a

interação, colaboração e associação entre o setor público de I+D e o setor empresarial.273

Tendo todos esse objetivos em mãos podemos perceber que o propósito governamental

passa diretamente por uma proposta Estatal, ou seja, mais do que um plano de governo

existe um caráter futurista que visa a qualidade e tecnológica na sua PI.

A organização dos países centrais, e principalmente os europeus, é visível. Temos

mais uma prova quando observamos o Plano Nacional de Reformas que é lançado em 2005

e que possui os seguintes eixos: Plano de fomento empresarial; Mercado de trabalho e

Diálogo Social; Mais competência, melhor regulação, eficiência das administrações

públicas e competitividade; Estratégia I+D+I (INGENIO 2010); Aumento e melhora do

capital humano; Plano estratégico de infra estrutura e transporte (PEIT) e programa

AGUA; Reforço da estabilidade macroeconômica e orçamentária.

Dentro desses sete eixos, elaborados pela Unidade Permanente de Lisboa

conjuntamente com a Oficina Econômica do Presidente de Governo e o conjunto

interministerial, existe a preocupação de fazer com que a Espanha corrija seus pontos

falhos e busque cada vez mais proeminência da produção industrial tecnológica.

Para esse estudo separamos em especial o eixo Estratégia I+D+I (INGENIO 2010).

Programa esse que salienta os recursos destinados a I+D+I e uma aprimorada organização

dessas fontes de investimentos. Dentro dele encontramos sub programas, como é o CÉNIT

que promove a colaboração entre o público e o privado através de consórcios, capital de

273

Plano Nacional 2004-2007; 2003

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risco para empresas tecnológicas e incorporação de doutores a empresas; o sub programa

AVANZ@ que tem como foco empresas e procedimentos ligados a tecnologia da

informação; e por último o sub programa CONSOLIDER que busca a excelência em

pesquisas, inclusive no âmbito da União Européia.

Se nos propormos a pensar num conceito de política industrial em que a presença

do Estado é fundamental e que o planejamento prévio e constante é tido como importante

para o bom funcionamento do corpo nacional, ao analisarmos o anuário de 2005 do Plano

Nacional de I+D+I 2004-2007, podemos perceber o governo Zapatero segue com a

tradicional linha dos países centrais, em que a PI é pensada e feita de forma ampla e bem

estruturada.

CONCLUSÃO

Nesse trabalho pudemos apresentar como que a preparação, de uma Política

Industrial de Estado é aplicada a médio ou longo prazo sendo mantida e aprimorada nos

países centrais, tendo a Espanha como exemplo. Enquanto que nos países periféricos ainda

é insipiente a postura de planejamento e investimento nas modalidades mais tecnológicas.

Durante o governo Lula a Política Industrial Tecnológica e de Comércio Exterior

(PITCE) teve um papel importantíssimo para o desenvolvimento industrial do Brasil. A

participação do Estado na economia é fundamental para desenvolver o setor industrial,

algumas medidas como abaixar as tarifas, facilitar os créditos, dar subsídios acarretam

numa segurança maior para o empresário investir cada vez mais. O Estado não pode

apenas garantir a estabilidade macroeconômica tem que ser mais ativo, por isso a

(re)criação de espaços de diálogos entre o setor produtivo e o Governo e as medida de

incentivo a inovação estão entre as grandes novidades da PITCE, mas esse tipo de trabalho

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já é algo permanente na Espanha. No país europeu podemos observar que existe uma

preocupação que perpassa sobre o governo de Zapatero e estabelece um projeto não apenas

governamental, mas de caráter permanente.

BIBLIOGRAFIA

GOLDENSTEIN, Lígia; Repensando a independência; Rio de Janeiro; paz e Terra; 1994.

KON, Anita; Economia Industrial; São Paulo; Nobel; 1994.

Comissão Interministerial de Ciência e tecnologia; Plano Nacional de Investigação

Científica Desenvolvimento e Inovação Tecnológica 2004-2007; Ministério de Ciência e

Tecnologia; 2003.

Plano Nacional de Reformas: em http://www.la-

moncloa.es/PROGRAMAS/OEP/PublicacionesEInformes/PNR/default.htm acessado em

novembro de 2009.

SUZIGAN, Wilson & FURTADO, João; Política Industrial e Desenvolvimento; Revista

de Economia Política, vol. 26, nº 2 (102), pp. 163-185 abril-junho/2006.

Acompanhamento da Política Industrial Tecnológica e de Comércio Exterior, PITCE 2

anos e PITCE 3 anos.

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Igreja de São Pedro:

Olhar e perspectiva de um patrimônio.

Fabiana Aparecida de Almeida274

RESUMO: O presente trabalho falará sobre a história da Igreja de São Pedro, situada na

Av. Senhor dos Passos, s/n. no bairro São Pedro; seu tombamento municipal realizado em

2002; sua ampliação iniciada no ano de 2001 e terminada em 2006 e todas as controversas

envolvendo essa reforma que ampliou a referida igreja. O trabalho apresentará também um

retrospecto da história da chegada dos imigrantes alemães em Juiz de Fora e da questão de

preservação do patrimônio histórico e artístico da cidade.

PALAVRAS-CHAVE: Igreja de São Pedro; Tombamento; Reforma

ABSTRACT: This paper is about the history of the church of São Pedro, located on

Senhor dos Passos Avenue, in São Pedro neighborhood; its municipal toppling was

conducter in 2002; started its expansion in 2001 and completed in 2006 and all the

controversies surrounding this reform that expanded the church. The work also shows the

retrospect of the history of the arrival of German immigrants in Juiz de Fora city and the

question of preservation of historical and artist heritage of the city.

KEYWORDS: Church of São Pedro; Toppling; Reform.

INTRODUÇÃO

274

Graduada em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora.

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A Igreja de São Pedro sempre foi muito importante para a memória das pessoas do

bairro São Pedro e proximidades, assim como para o patrimônio histórico da cidade de Juiz

de Fora. Dessa forma, o presente trabalho terá como tema central a questão que envolveu a

referida igreja em um processo de tombamento e em uma reforma realizada após o seu

tombamento, assim como a questão da memória de alguns moradores antigos do bairro São

Pedro em relação à igreja.

A história da Igreja de São Pedro deve ser associada com a vinda de imigrantes

alemães para Juiz de Fora na segunda metade do século XIX, uma vez que a igreja foi

construída por colonos que se instalaram naquela região.

Esses imigrantes vieram para Juiz de Fora por dois motivos principais: construir a

Estrada União Indústria (empreendimento do financista Mariano Procópio Ferreira Lage) e

formar a Colônia Agrícola D. Pedro II (para o abastecimento do mercado interno). Para

esses dois empreendimentos, a Companhia União e Indústria (responsável pelos

empreendimentos) pretendia contratar 2000 imigrantes europeus que vieram para o Brasil

em cinco barcas: Tell, Rhein, Gundela, Gessner e Osnabr:uck.275

Ao desembarcarem no

porto do Rio de Janeiro, seguiram viagem até Juiz de Fora a pé e a carroça, em uma

viagem que durava cerca de quinze dias.

Em 59 dias, 1162 colonos chegaram à cidade do Paraibuna (a Cia suspendeu o

embarque de 832) que triplicou a população da cidade (de 600 para 1762 habitantes) e

trouxe para a Cia um grande problema: onde alojar os imigrantes. A solução foi acomodá-

los em um acampamento improvisado junto a uma lagoa infecta aos pés do Morro da

Gratidão (atual Morro da Glória). Com a falta de higiene, muitos imigrantes pegaram a

275

STEHLING, Luiz José. Juiz de Fora, a Companhia União e Indústria e os alemães. Juiz de Fora:

Esdeva, 1979. p. 161-164.

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tifo, que inclusive causou a morte de 34 imigrantes.276

Assim, a Cia começou a construção

de casas para os colonos. Em 1863 todas as famílias foram alojadas.

Os colonos foram então, divididos em quatro grupos: os que ocupariam a Colônia

de Cima (atual bairro São Pedro), a Colônia do Meio (atual bairro Borboleta), e a Colônia

de Baixo (região do bairro Fábrica). Os colonos que iriam participar da construção da

estrada, instalaram-se no bairro Villagem, região mais próxima do centro e que hoje seria o

bairro Mariano Procópio.277

Logo que se instalaram na cidade, os colonos se queixaram à Cia da ausência de um

templo religioso que os assistisse. Dessa forma a Cia doou um terreno para a construção de

uma Igreja que seria consagrada a Nossa Senhora da Glória no ano de 1879.278

Com os

anos a igreja foi ficando pequena para acolher os fiéis e em 1916, decidiu-se construir uma

nova igreja atrás da atual. Em 1920 a igreja começou a ser construída, sendo entregue ao

culto em 1924.279

A igreja foi tombada pelo processo 5308/97, decreto n. 6840 de

26/09/00, solicitado pela firma Século 30. Infelizmente a primeira capela foi destruída por

um incêndio na madrugada de 12 de abril de 1923 que teria sido causada por ladrões que,

não encontrando nada de valor na capela, colocaram fogo nessa propositalmente ou

acidentalmente. A população tentou ajudar no combate as chamas com vasilhas d’água,

mas o esforço foi em vão. A capela foi destruída, salvando-se a nova igreja, o convento e

as imagens dos santos.280

Mesmo com a igreja consagrada a Nossa Senhora da Glória, os colonos da colônia

de cima e da colônia do meio continuaram sem assistência espiritual, uma vez que o local

276

Idem. p. 186-187. 277

OLIVEIRA, Mônica Ribeiro. Entre o rural e o urbano: a trajetória dos imigrantes alemães e italianos

em Juiz de Fora (1854-1920). 1991. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal Fluminense, Niterói,

1991. p. 22. 278

STEHLING, op. cit. p. 252-253. 279

LEITE, Pe. João Boaventura. Igreja Nossa Senhora da Glória – Juiz de Fora: 1ª fundação. Juiz de Fora:

Redentoristas do Leste Brasileiro, s. d. v. 2. p. 46-47. 280

Idem. p. 53.

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onde se instalaram era longe da nova igreja. Dessa forma os colonos das duas colônias

resolveram construir suas igrejas. Na colônia do meio foi construída uma capela

consagrada a São Vicente de Paulo no ano de 1937281

, e na colônia de cima uma capela

consagrada a São Pedro.

Em relação a construção da colônia de cima, tema desse trabalho, foi realizado um

Conselho Distrital para a construção de uma capela e de um cemitério. Para a construção

desses, os colonos Sebastião Kunz e sua esposa Bárbara doaram parte do prazo 108.282

Para arrecadar fundos para a construção da capela, forma realizados leilões de prendas e a

Festa de São Pedro, que ficou conhecida em toda a cidade. Dessa forma, a capela começou

a ser construída em 5 de novembro de 1884 e consagrada, juntamente com o cemitério nos

dias 5 e 6 de janeiro de 1886. Na ocasião da consagração ocorreu grande festa na

localidade.283

O TOMBAMENTO DA IGREJA DE SÃO PEDRO

O processo de tombamento referente à Igreja de São Pedro encontra-se disponível

no DIPAC, que funciona no prédio da Prefeitura de Juiz de Fora, na rua Halfeld, e se

desdobra em 85 folhas.

A iniciativa partiu do Instituto Teuto Brasileiro William Dilly, em documento

datado de 16 de abril de 1999 à Comissão Permanente Técnico Cultural (CPTC) pedindo o

tombamento da igreja para a preservação da memória da cidade. O documento falou da

importância da igreja como marco da fé e da presença germânica na cidade alta, cuja

281

CLEMENTE, Vicente de Paulo. O bairro Borboleta e a Igreja de São Vicente de Paulo: suas origens e

sua história. Juiz de Fora: Concorde, 1990. p. 24 e 25 282

STEHLING, op. cit. p. 267. 283

STEHLING, op. cit. p. 264-265.

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história se confunde com a história das primeiras famílias. O documento foi assinado por

José Roberto Dilly (diretor do Instituto) e por Juraci Scheffer.

Após o pedido do Instituto Willian Dilly, o diretor do DEPLAN/IPPLAN-JF, o

arquiteto Álvaro Giannini, pediu, em 7 de julho de 1999 para avaliar o caso e, se fosse

preciso, iniciaria os estudos para seu tombamento. Em 4 de agosto, o IPPLAN-JF solicitou

a abertura do processo de tombamento ao SMA/DICOM, sendo o documento assinado por

seu diretor geral, José Eustáquio Romão.284

O relato do processo foi feito em 2 de agosto

de 2000 por Marcos Olender que destacou a importância da arquitetura da igreja para a

história do período na cidade e se mostrou favorável ao tombamento:

De “arquitetura simples” como afirma o documento, mas

“expressiva, nos seus aspectos formais (...) (conservando) de

maneira marcante a tipologia chamada tradicional” como ressalta

parecer técnico acerca dos aspectos arquitetônicos, feito pela

DIPAC, é extremamente representante de um período fundamental

da consolidação urbana da nossa cidade. (...). Marcando a paisagem

urbana local, conclui o citado parecer, o templo se insere no

importante contexto histórico da colonização alemã na parte alta da

cidade. (...). Edificada pelos antigos colonos alemães “a igreja é

referencial na vida de milhões de descendentes, cuja história se

confunde com a história das primeiras famílias povoadoras do

bairro”, como ressalta o ofício do Instituto Teuto Brasileiro Willian

Dilly. (...). Sendo assim, sou favorável ao tombamento do citado

imóvel.285

Dessa forma, a ata da reunião da CPTC de 17 de agosto de 2000 aprovou com

unanimidade o tombamento da igreja. Chegou-se também a conclusão do tombamento da

fachada e volumetria da igreja.

Nesse momento do processo, foi enviado à Mitra Arquidiocesana de Juiz de Fora,

um documento comunicando a mesma da aprovação de tombamento pela CPTC. Antônio

284

FUNALFA. Processo de tombamento, n. 3504/99, decreto n. 7548/18.09.02. Disponível na Divisão de

Patrimônio Cultural de Juiz de Fora. 285

FUNALFA. Op cit.

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ISSN: 2317-045X.

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Cornélio Viana (vigário geral da arquidiocese) respondendo legalmente pelo arcebispo D.

Clóvis Frainer, mandou documento ao prefeito recusando o pedido de tombamento da

volumetria da igreja, uma vez que a comunidade precisar aumentar a igreja para

proporcionar mais conforto aos fiéis. Somente a proposta de tombamento da fachada foi

aceita. Em anexo a esse pedido, encontrou-se no processo, um abaixo assinado datado de

27 de setembro de 2000, encaminhado ao arcebispo Clóvis Frainer, pedindo o não

tombamento da igreja, pois, a comunidade pretendia aumentá-la longitudinalmente, “sem

alterar a arquitetura alemã”.

A análise desse abaixo assinado nos chamou a atenção durante nossa pesquisa por

alguns pontos. O primeiro ponto se refere à repetição de alguns nomes na listagem. O

segundo por só ter assinaturas de pessoas que participavam e ajudavam nos afazeres da

igreja, sendo que alguns moradores entrevistados durante a pesquisa não assinaram a lista

por não saberem de sua existência. O terceiro ponto foi o esquecimento de alguns

moradores em assinar o documento, alegando não se lembravam, mas afirmaram que

devem ter assinado porque a igreja tinha que ser ampliada. A última particularidade do

abaixo assinado foi ele ter sido assinado pelo padre Luiz Eduardo de Ávila em 27 de

setembro de 2000, sendo que, em entrevista o padre disse não saber da existência desse

abaixo assinado e se ele aconteceu, a iniciativa deveria ter sido do pároco anterior.286

Mesmo com a reprovação da Mitra, o documento permitindo o tombamento da

igreja de São Pedro foi assinado pelo prefeito Tarcísio Delgado em 18 de setembro de

2002 e publicado no jornal “Tribuna de Minas”, na parte dos Atos Legislativos da Câmara

Municipal de Juiz de Fora.287

286

Depoimento do Padre Luiz Eduardo de Ávila concedido a Fabiana Aparecida de Almeida em 20 de maio

de 2009. 287

TRIBUNA DE MINAS. Atos Legislativos da Câmara Municipal de Juiz de Fora. Juiz de Fora:

Esdeva, 19/set./2002. Caderno Brasil, ano XXI, n. 2989, quinta-feira.

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172

AS REFORMAS DA IGREJA DE SÃO PEDRO

Desde a sua construção, a igreja de São Pedro passou por duas reformas em sua

estrutura, sendo que ambas foram feitas por causa do crescimento do número de fiéis.

A primeira reforma ocorreu na década de 1970 e nessa reforma, segundo Antônio

Dilly (antigo morador do bairro e colaborador da igreja), algumas características da igreja

construída pelos alemães foram perdidas. Nas paredes foram colocadas pedras até a altura

das janelas, pois originalmente era apenas reboco. O piso que era de pinho de riga foi

substituído por piso frio, uma vez que estava afundando, se tornando inclusive perigoso

para os fiéis. Foi construído também um “toldo” na porta principal, já que essa era de

madeira e estava se desfazendo pela ação das chuvas e do sol. Mais tarde, esse “toldo”

começou a rachar e foi demolido.288

Outra mudança foi a retirada do altar, que ocorreu por

causa do Concílio Vaticano II que mandou que se retirasse todos os altares alemães das

igrejas católicas.289

Esse altar era todo em madeira, tipo “capelinha”, com várias torres e

que compreendia toda nave da igreja.290

Em relação à segunda reforma (iniciada em 2001 e terminada em 2006) não deveria

ter ocorrido do jeito que aconteceu porque a igreja já havia sido tombada pelo município

nessa época. Segundo Roberto Dilly, o padre da paróquia na época, Luiz Eduardo de Ávila,

juntamente com o apoio do prefeito Tarcísio Delgado e de Juraci Scheffer, que ocupava o

cargo de vereador na época, conseguiram fazer com que o tombamento fosse desprezado

para acontecer a reforma.291

A igreja então passou por uma reforma que a descaracterizou

profundamente, sendo preservada apenas sua fachada principal. Dessa forma,

confirmaram-se os dizeres de Érika Aleixo: “É inegável a interferência do poder público

288

Depoimento de Antônio Dilly concedido à Fabiana Aparecida de Almeida em 2 de maio de 2009. 289

Antônio Dilly disse ter achado precipitado a retirada do altar, uma vez que a igreja da Glória e a igreja de

São Vicente de Paulo, no bairro Borboleta, mantiveram seus altares. 290

Depoimento de José Roberto Dilly concedido à Fabiana Aparecida de Almeida em 30 de abril de 2009. 291

Idem.

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na tomada de decisões, passando por cima dos pareceres dos técnicos, deixando-se

pressionar pela cúria juizforana”.292

No entanto, segundo Paulo Gawryszewski (diretor da

Divisão de Patrimônio Cultural – DIPAC), a reforma não seguiu os procedimentos

corriqueiros de reformas em imóveis tombados, sendo realizada arbitrariamente, uma vez

que, não houve fiscalização na realização da reforma.293

Paulo Gawryszewski aliais, disse

não saber com exatidão como a reforma aconteceu, pois o imóvel não foi destombado e

para qualquer tipo de intervenção em imóveis tombados, têm que haver autorização do

Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Cultural (COMPPAC). Mesmo quando

o pedido de reforma em imóveis tombados chega para a prefeitura, eles são encaminhados

para a DIPAC e pedem a análise e o parecer do Conselho. Em relação à igreja de São

Pedro, esse processo não aconteceu.

Na época de seu tombamento, existia também um Conselho Pastoral da igreja de

São Pedro. André Geraldo Dilly, um dos participantes do Conselho, disse que houve a

idéia de construir outra igreja maior. Porém, ao lado da igreja existente já havia o centro

pastoral e se ela fosse construída atrás ficaria escondida. Essa idéia, segundo André

Geraldo Dilly não agradou o Conselho Pastoral porque achavam que a igreja matriz não

poderia ficar escondida. O padre da época (Padre Miguel) sugeriu alargar a igreja na parte

de trás, de forma que se desenhasse um cálice no chão da igreja. Porém, com a chegada do

padre Luiz Eduardo de Ávila o Conselho Pastoral foi se desfazendo e o padre acabou por

reformar a igreja do jeito que achou melhor.294

Roberto Dilly acredita que o problema dos

padres, depois da secularização da Igreja Católica, seria a não identificação com a

comunidade que “pastoreiam”. Como não criam raízes com o local, podendo ser

292

SILVA, Érika Aleixo Ferreira. Os inventários e a política de proteção do patrimônio cultural de Juiz

de Fora. 2008. Monografia do curso de especialização em Gestão do Patrimônio Cultural, Faculdade

Metodista Granbery, Juiz de Fora, 2008. f. 103. Apesar da frase fazer referência à intervenção na Igreja da

Glória em 2006, empregou-se muito bem nesse contexto. 293

Depoimento de Paulo Gawryszewski concedido à Fabiana Aparecida de Almeida em 7 de maio de 2009. 294

Depoimento de André Geraldo Dilly concedido à Fabiana Aparecida de Almeida em 2 de maio de 2009.

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substituídos a qualquer momento, preferem deixar uma marca física, principalmente uma

obra para serem lembrados. Dessa forma destroem tudo sem se preocupar com a identidade

da comunidade.295

Em entrevista cedida, o padre Luiz Eduardo de Ávila, pároco de São Pedro na

época, disse que na sua chegada à Igreja foi procurado por Juraci Scheffer que lhe

comunicou que havia um processo de tombamento da igreja. O padre disse então ter

concordado alegando que achava que era um pedido da comunidade e que não seria ele

quem iria impedir. No entanto, foi procurado pelo arcebispo metropolitano e comunicado

que não havia um interesse por parte da Igreja Católica em tombamentos de bens

eclesiásticos. Dessa forma, o padre relatou ter procurado os responsáveis pelo pedido de

tombamento e pediu para que esse não ocorresse para acontecer a ampliação da igreja de

São Pedro. 296

No processo de tombamento, a Igreja de São Pedro foi descrita como um exemplar

de arquitetura simples e tradicional “apesar de uma leve tendência a uma forma mais

trabalhada, como se percebe nos chanfros da planta do altar-mor”.297

Foram descritos

também os nichos que antes não abrigavam imagens de santos. Hoje encontramos uma

imagem de São Pedro à direita e de São Paulo à esquerda, que foram colocadas

recentemente. No interior da igreja, o impacto da reforma foi ainda maior. No processo,

encontramos a seguinte descrição:

Internamente, suas paredes recebem imagens sacras abrigadas em

nichos e se destaca por sua volumetria típica, onde a nave central

de abertura mais elevada se contrapõe ao altar-mor e suas sacristias

laterais, de altura menor. Um coro ao fundo, acessado por escada

helicoidal, de guarda corpo em madeira trabalhada e com piso

original em tábua corrida, compõe a ambientação. O altar recebe

295

Depoimento de José Roberto Dilly concedido à Fabiana Aparecida de Almeida em 30 de abril de 2009. 296

Depoimento do padre Luiz Eduardo de Ávila concedido à Fabiana Aparecida de Almeida em 20 de maio

de 2009. 297

FUNALFA, op. cit.

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aberturas estreitas em arco pleno e fachadas por vidros lisos

transparentes que permitem a penetração dos raios solares; todo o

revestimento do piso da nave e do altar é feito em material

cerâmico.298

Hoje não há mais imagens sacras nas laterais da igreja, uma vez que sendo as

paredes revestidas de gesso, não suportariam o peso das imagens. No altar, as sacristias

laterais foram destruídas para o alongamento da igreja e a “abertura em arco pleno e

fachadas por vidros lisos” não existe mais. O coro mencionado na descrição teve sua

escada, piso e guarda corpo, todos em madeira, substituídos por concreto.

A Igreja de São Pedro foi então aumentada longitudinalmente. A frente foi mantida

mudando apenas a porta principal, que não era a original. Em entrevista, o padre Luiz

Eduardo de Ávila, disse que a reforma para os fundos foi feita buscando a não

descaracterizar a igreja de sua feição original: as janelas e as portas foram mantidas do

mesmo estilo (arredondadas) e a largura continuou a mesma. Ainda segundo o depoimento

do padre, a frente da igreja foi mantida a mesma por aconselhamento de Cidinha Louzada e

Juraci Scheffer.299

CONCLUSÃO

A pesquisa aqui apresentada propôs mostrar como se realizou o processo de

tombamento da Igreja de São Pedro bem como a intervenção sofrida na igreja por uma

reforma que a ampliou, mas não a respeitou como patrimônio do municipal.

Nossa crítica a essa reforma se baseia pela completa falta de consciência das

autoridades eclesiásticas quanto à memória da região de São Pedro. As igrejas são

298

FUNALFA, op. cit. 299

Depoimento do Padre Luiz Eduardo Ávila concedido à Fabiana Aparecida de Almeida em 20 de maio de

2009.

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geralmente as primeiras construções na formação de uma cidade ou de um bairro e trazem

consigo toda uma carga simbólica e memorialística que acabou se desfazendo junto com a

reforma da igreja de São Pedro. Não se pode questionar que havia a necessidade de uma

reforma na referente igreja, porém, existiriam alternativas mais “eficientes” para se

preservar o pouco que restou da antiga igreja (já que a igreja original já havia sido

modificada na reforma da década de 1970). A questão é ainda mais contraditória pelo fato

da igreja ter sido tombada pela Prefeitura de Juiz de Fora e mesmo assim essa não ter

tomado nenhuma medida que impedisse a reforma que a descaracterizou.

O processo de tombamento da igreja de São Pedro acabou acontecendo, mas

acabou sendo desprezado e a igreja sofreu uma reforma que a deixou mais espaçosa, porém

sem nenhuma característica da igreja construída pelos colonos alemães que iniciaram a

população do bairro São Pedro. No entanto, sua fachada principal foi mantida fazendo os

mais velhos terem uma pequena lembrança da igreja antiga. Dentro da questão patrimonial,

muitos estudiosos discutem a memória dos imóveis tombados. A identidade de um grupo

tem que está presente no bem tombado se não esse tombamento não causa um

reconhecimento às pessoas que vivem perto daquele bem. Para que o patrimônio seja visto

como algo positivo por uma população é necessário que essa se identifique com aquele

patrimônio. O que podemos concluir com nossa pesquisa, é que as pessoas possuem uma

memória da igreja e a vêem como portadora de seu passado, porém, deixaram ser

influenciadas por um discurso de necessidade de ampliação da igreja como única forma de

se resolver o problema da lotação da igreja nas missas de domingo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FONTES ORAIS:

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André Geraldo Dilly.

Antônio Dilly.

José Roberto Dilly.

Luiz Eduardo de Ávila, Padre.

Paulo Gawryszewski.

FONTES BIBLIOGRÁFICAS:

CLEMENTE, Vicente de Paulo. O bairro Borboleta e a Igreja de São Vicente de Paulo:

suas origens e sua história. Juiz de Fora: Concorde, 1990.

FUNALFA. Processo de tombamento, n. 3504/99, decreto n. 7548/18.09.02.

LEITE, Pe. João Boaventura. Igreja Nossa Senhora da Glória – Juiz de Fora: 1ª

fundação. Juiz de Fora: Redentoristas do Leste Brasileiro, s. d. v. 2.

OLIVEIRA, Mônica Ribeiro. Entre o rural e o urbano: a trajetória dos imigrantes

alemães e italianos em Juiz de Fora (1854-1920). 1991. Dissertação de Mestrado.

Universidade Federal Fluminense, Niterói, 1991.

SILVA, Érika Aleixo Ferreira. Os inventários e a política de proteção do patrimônio

cultural de Juiz de Fora. 2008. 167 f. Monografia do curso de especialização em Gestão

do Patrimônio Cultural, Faculdade Metodista Granbery, Juiz de Fora, 2008.

STEHLING, Luiz José. Juiz de Fora, a Companhia União e Indústria e os alemães. Juiz

de Fora: Esdeva, 1979.

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TRIBUNA DE MINAS. Atos Legislativos da Câmara Municipal de Juiz de Fora. Juiz

de Fora: Esdeva, 19/set./2002. Caderno Brasil, ano XXI, n. 2989, quinta-feira.

As Narrativas do Poder: discursos de supremacia política e cultural no seio da

sociedade romana imperial

Felipe Henrique Alves de Andrade300

RESUMO: O artigo pretende uma abordagem acerca da formulação de discursos de

enaltecimento da civilização e do povo romanos, bem como das instituições e costumes a

ele associados. Toma o período do Principado, encabeçado por seu primeiro princeps

senatus, Otávio Augusto, como delimitação temporal. Há interesse em descrever esforços

alçados pelo próprio Augusto no que toca às narrativas de supremacia e afirmação, além de

fenômenos culturais contemporâneos que validam as observações, sendo Virgílio o agente

mais notável a esse respeito, com sua obra épica Eneida.

PALAVRAS-CHAVE: Otávio Augusto; supremacia; civilização romana; Virgílio; Eneida

ABSTRACT: The article aims to an approach about the making of discourses on the

praising to roman civilization and people, as well about relative institutions and customs.

As to timely boarders, it takes the Principate, headed by his first princeps senatus,

Octavianus Augustus. There’s the interest on describe efforts used by Augustus himself in

supremacy and claim’s narratives, also cultural contemporary phenomena which assure the

remarks; on this matter, Virgil is the more remarkable, with his epic Aeneid.

KEYWORDS: Octavianus Augustus; supremacy; roman civilization; Virgil; Aeneid

300

Acadêmico do 8° período do curso de História da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).

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INTRODUÇÃO

“Esta é uma cópia – tirada do original gravado em Roma sobre dois

pilares de bronze – que contem as empresas por meio dos quais o

divino Augusto subjugou o mundo inteiro ao domínio do povo

romano, e as despesas que ele fez em prol do Estado e do povo de

Roma.” 301

Estas são as célebres palavras com as quais Caio Júlio César Otaviano Augusto –

ou simplesmente Otávio Augusto – inicia o relato de seus feitos, consecuções e glórias

realizados no período de sua governança, conhecido como Res Gestae Divi Augusti (“Atos

do Divino Augusto”) ou Index Rerum Gestarum Divi Augusti. Trata-se de um forte

testemunho em favor de um projeto engendrado por Augusto, referente à sua ascensão e

conservação do poder. O inteiro documento nos permite contemplar um elogio à própria

figura, uma espécie de panegírico auto-dirigido carregado de um visível sentido de vitória

pessoal, atestada pelas virtudes exibidas pelo autor/receptor do elogio (justitia, clementia).

Sem dúvida, o Index é pródigo em nos revelar evidências de um discurso legitimador,

glorificador em benefício da pessoa de César Augusto, perpassando intenções de afirmação

política que se vêem latentes desde os idos do Prinicipado Romano inaugurado em 27 a.C.

Mas há algo mais envolvido...

Note-se que há um outro aspecto que marcará a fala de Augusto e que se faz

perceber mesmo na introdução de seu Index: a razão dos esforços de Otávio

(alegadamente) não são puramente pessoais. O que até aqui foi dito deve-se a uma

percepção dos sentidos subliminares contidos na obra analisada. Enxergamos a existência

de um discurso articulado em torno do interesse de perpetuação do legado deixado por

César, notadamente a memória que deixa e o espaço que prepara para os que hão de

sucedê-lo no exercício do poder. Mas é de interesse especial as palavras que ressoam na

301

LEONI, Giovanni D. (Trad.) Res Gestae Divi Augusti. São Paulo: Livraria Nobel S/A, 1957.

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superfície do texto, aquilo que se vê num primeiro nível de leitura. Para tanto, recordemos

uma passagem: “o divino Augusto subjugou o mundo inteiro ao domínio do povo romano”.

Eis o mote das conquistas e vitórias de César Augusto (segundo ele próprio)! Promover

expansão, alcançar vitórias contra os inimigos, traçar o rumo do desenvolvimento – tudo

isso em “prol... do povo de Roma” e para afirmar o “domínio do povo romano”.

Assim, é possível apontar a existência de uma preocupação dotada de caráter

político, ou não, centrada em priorizar o povo de Roma e permitir a sua prevalência sobre

os demais, sua superioridade, digamos de forma mais clara. Vemos aqui um sinal de

afirmação da civilização romana e daquilo que se configure nos quadros de sua sociedade.

Vemos, tomando o Index como ponto de partida, a veiculação de discursos de poder e

supremacia em benefício de Roma, mas também vindo ao encontro dos intentos de Otávio.

Falemos, contudo, do contexto em que tais discursos aparecerão.

A ERA DE AUGUSTO

Sabe-se que a entrada de Otávio no cenário político se dá numa conjuntura delicada

no que tange aos fatos e questões que se avultavam desde o 2° século a.C. Roma passava

por um período permeado de crises políticas, sociais e econômicas, caracterizado por um

estremecimento do pacto intra-elites e por uma incerteza no jogo político dados os

conflitos entre grupos de famílias tradicionais e o temor pela mobilização da plebe.

Ademais, o processo de expansão trazia à tona um novo fio para fortalecer a trama incerta

que se alargava e se estendia sobre os latinos: como administrar eficientemente um corpo

cívico que crescia, se avolumava em vista da expansão territorial da República por meio

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das instituições que antes valiam para os habitantes do Lácio? Ou como se expressa John

Scheid em obra escrita colaborativamente com François Jacques302

:

En elargissant le corps civique au-delá de tout ce que le monde des

cités avait connu, les lois accordant le droit de cité aux alliés

italiques créaient un problème institutionnel nouveau, car elles

rendaient illusoire, sinon impossible, le fonctionnment traditionnel

de la vie politique. 303

Havia muitas questões por resolver ainda no 1° século a.C., mas como aponta

Scheid : “ l’elite n’était plus à même de résoudre lês nombreaux problèmes intérieurs et

extérieurs de la République romaine”.304

Veria esta elite, junto com o Senado, a formação

de um triunvirato em tônica de conciliação e resolução dos problemas que se formavam.

Este seria formado por Pompeu, Crasso e Júlio César. Entretanto, as disputas não cessam,

especialmente entre Pompeu e Júlio César (Crasso morre numa expedição militar contra os

partos). César é assassinado, o que contribuiria para a piora das contradições levantadas.

Com a morte deste, veremos o campo preparado para a ascensão dos pretendentes

ao poder, os “herdeiros” de César – Marco Antônio, companheiro de Júlio César, que

tentara se impor como o sucessor direto de Pompeu ou de César, e Otávio, o qual toma

para si o dever de vingar seu pai adotivo, busca reivindicar sua herança e fazer cumprir os

valores da res publica, haja vista os desvios sentidos neste período crítico. Além desses,

houve também Lépido, que apoiou Antônio militarmente a princípio e foi indicado como

pontifex maximus. Tais homens, por meio de acordo validado pelo Senado, formam então o

segundo triunvirato, por meio do qual dividiriam a administração das províncias.

302

JACQUES, François; SCHEID, John. Rome et l’integration de l’Empire. Paris: Presses Universitaires

de France,1990. (Coleção “Nouvelle Clio”) 303

“Alargando o corpo cívico para além de tudo que o mundo das cidades havia conhecido, as leis atribuindo

o direito de cidade aos aliados itálicos criavam um problema institucional novo, pois elas tornavam

ilusório, senão impossível, o funcionamento tradicional da vida política.” (Tradução Livre) 304

“A elite não era mais a mesma para resolver os numerosos problemas internos e externos da República

romana”. (Tradução Livre)

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Neste momento, vemos a disputa se acirrar entre Marco Antônio e Otávio Augusto

(título futuro, note-se). Seguem-se conflitos, intercalados por acordos e tréguas, ao passo

que, após o exílio de Lépido, ordenado por Otávio, os outros dois triúnviros se ocupariam

em fortalecer sua posição e perseguir suas tarefas imediatas, como informa John Scheid.305

O autor descreve o sucesso do jovem César, mencionando que este adquiriu a confiança da

plebe romana, dos veteranos e dos centuriões, favorecendo a promoção social mas também

o apoio às elites romanas e itálicas. Paralelamente, Otávio põe em prática um

empreendimento de denegrimento sistemático de Antônio. Um dos pontos mais visíveis

dessa manobra é perceptível na associação que faz da figura de Marco Antônio com o

traidor, aquele que abandonou a civilização romana para se aliar à barbárie (representada

pelo Egito, na pessoa de Cleópatra), o que se fortalece enquanto rei, um tirano, e assim fere

as instituições republicanas de Roma. O fim do conflito será marcado pela vitória

definitiva de Otávio na Batalha do Áccio em 31 a.C., ponto de simbolismo notável quanto

à nova era que agora se configurava, relacionada ao governo isolado de César Augusto,

enquanto princeps senatus (“Príncipe do Senado”, o primeiro dentre os senadores). As

instituições e magistraturas republicanas são mantidas, mas o poder passa a ser exercido de

forma mais centralizada pelo Príncipe.

Desde o tempo em que Augusto vinha nutrindo suas pretensões de acesso ao poder

e recebimento da justa herança que lhe cabia enquanto sucessor de Júlio César, notamos

esforços da sua parte no sentido de se afirmar e se legitimar em oposição a seus rivais. Isso

ficaria evidente, por exemplo, ao assumir para si o epíteto de Imperator Caesar, divi filius,

ou seja, “Imperador César, filho do divino (Júlio)”, quando recebe uma ovação após a Paz

de Brindisi.306

Ademais, ele recusa o poder que lhe é oferecido pelo Senado enquanto

ditador, convenientemente restringindo-se da imagem de monarca para aceitar a de um

305

JACQUES, François; SCHEID, John. Op. Cit. 306

Idem.

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tribuno, um magistrado como os demais, mas com uma carga de poder maior. Cada gesto

demonstra a elaboração hábil por parte de César de criar contextos e linguagens que lhe

fossem favoráveis – a formulação de discursos que se perpetuariam até o fim de sua vida e

se revestiriam de um sentido mais elevado, qual seja, o da defesa dos interesses da Urbe

romana.

Ademais, a época de Augusto notabilizar-se-ia, dentre outras coisas, por se instaurar

a paz entre os romanos – a pax romana – alcançada após o término das guerras civis e a

solução dos problemas sociais e políticos que se arrastavam desde o 2° século a.C., mas

haveria de se fazer notar também pelas manifestações desse poderio em outros campos,

como a arquitetura e literatura. Tais espaços seriam o locus privilegiado para a promoção

do ideal de civilização romana e da supremacia cultural e política, se não o foi diretamente

por Augusto, então pela política de dominação empreendida por ele.

Um tema muito interessante que dá conta de fornecer provas da inovação presente

no Principado de Otávio é o das transformações nas obras arquitetônicas públicas. A esse

respeito, é de chamar a atenção as observações feitas pelo arquiteto William MacDonald

em seu artigo “Empire Imagery in Augustan Architecture”.307

O autor nota como a “Era de Augusto” abarca valores presentes nos modelos

arquitetônicos utilizados na arquitetura romana. Sabe-se, por exemplo, que esta se

caracterizava por sua solidez, estabilidade, austeridade e funcionalidade antes da época de

César Augusto. Um expoente desse conjunto de princípios é o arco romano, cujo papel se

resumia à fria funcionalidade de entrada/saída. MacDonald percebe, todavia, que com o

advento dos tempos augustanos, o arco passa a ser carregado de uma complexidade

crescente que o torna um monumento, um edifício dedicado à celebração ou memória.

Observa que há duas principais mudanças em princípios composicionais formais, quais

307

MACDONALD, William. Empire Imagery in Augustan Architecture. In: WINKES, Rolf. (Editor) The

age of Augustus. [S.d.]: [S.e.], 1985.

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sejam: o grau de complexidade do design aumentou substancialmente, movendo a

arquitetura para composições mais complexas e articuladas; o enriquecimento da

arquitetura tradicional, a multiplicação e redesenvolvimento dos elementos clássicos de

design, baseada em parte nas invenções helenísticas, foi fundida a formas arquetípicas

romanas. Novas formas de se levantar edificações estavam sendo gestadas no entremeio

dessas influências tradicionalmente greco-romanas e dos modelos novos que se criavam

desse caldeirão cultural (o melting pot das influências culturais concernentes aos modelos

arquitetônicos).

O arco do tipo triplo, composição aAa (um arco principal ladeado por arcos

secundários) é o que será mais marcante para definir a época de governança de Augusto,

atribuindo uma imagem que poderá ser associada com tal momento histórico e dessa forma

permitir uma leitura como realizada por William MacDonald, conforme segue:

The effect was rather like that found in some contemporary

literature, a reworking and refashioning of the old, with results that

reflected Augustus’s political and social programs by showing that

although tradition was by no means dead, a new age arrived.308

É digno de nota que haveria outros aspectos consonantes com essa reinvenção de

padrões imagéticos percebidos nos edifícios públicos e monumentos, de acordo com o

autor. Diga-se de passagem: o ático colocado sobre os arcos, que pode ser entendido como

uma estrutura que encimava os arcos com objetivo de enriquecer seu poder de narração

monumental; os cenotáfios (semelhantes a obeliscos, igualmente de função monumental)

que se multiplicavam dentro do território latino e fora dele. Não há aqui espaço para

detalhar os nuances das escolhas no que respeita a edificações, tomando as associações

308

“O efeito era mais semelhante ao encontrado em algumas literaturas contemporâneas, uma reestruturação e

remodelação do antigo, com resultados que refletiram os programas políticos e sociais de Augusto por

mostrar que, apesar de a tradição não estar morta, uma nova era chegara.” (Tradução Livre)

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com o esforço ufanista de César Augusto. Mas vale o esforço superficial esboçado neste

artigo, devedor das contribuições de MacDonald, para se dar uma idéia de tal política

glorificadora.

VIRGÍLIO – O POETA DA GRANDEZA ROMANA

Falar a respeito da cultura romana contemporânea a Otávio Augusto e de suas

relações com o papel desempenhado por este pede que falemos de um importante

personagem, co-artífice do ideal de grandeza da história de Roma. Estamos nos referindo a

Virgílio, ou na língua latina original, Publius Vergilius Maro (70 a.C. – 19 a.C.).

Natural de Mântua, Virgílio já era poeta conhecido por obras compostas em sua

juventude e notabilizar-se-ia por grandes obras que lhe asseguraram fama – as Bucólicas e

as Geórgicas. Tendo tal caminho já construído, o mantuano procederia à composição de

importante obra de caráter épico, cuja realização atraiu a atenção de Otávio Augusto. Tanto

que Pierre Grimal nos informa do interesse ativo que o princeps senatus nutriria acerca do

empreendimento poético, mencionando fragmentos de correspondências que o mesmo

trocou com Virgílio pedindo-lhe alguma parte ou resumo da referida obra – a Aeneis

(Eneida).309

Há quem diga que o próprio Otávio teria solicitado a realização de tal obra,

mas não encontramos subsídios mais concretos para tal afirmação.310

Interessa saber, acima

de tudo, em que medida tal obra seria tão adequada para o projeto augustano referente a

uma formulação de elogio à pátria romana, incluindo aí uma sugestiva afirmação de poder

pessoal.

309

GRIMAL, Pierre. Virgílio ou o segundo nascimento de Roma. Ivone Castilho Benedetti (Trad.). São

Paulo: Martins Fontes, 1992. (Coleção O homem e a história). p. 192 310

Referimo-nos a uma afirmação presente em: CARDOSO, Zélia de Almeida. A literatura latina. São

Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 10

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Desde sempre a Eneida tem recebido reconhecimento quanto à sua realização no

que tange “glorificação de Roma, da sua missão civilizadora”, sendo descrito ainda como

“expressão máxima da cultura romana”.311

Mas por que tanta segurança nessas assertivas?

A segurança, que pode ser questionada pelo espírito crítico de que devem se revestir os

historiadores, esclarece-se por uma análise de passagens da obra que nos permitem

entender que Virgílio teria importância capital na constituição de política enaltecedora

quanto à cultura e civilização do povo romano, à época de Augusto.

O poeta concebia sua epopéia enquanto desenvolvimento do destino da raça

romana, guardando o tom sublime de que se valem as epopéias tradicionais haja vista o

objetivo elevado contido na Aeneis de Virgílio – a história de Enéias, herói dotado de

pietas, e por isso identificado pelo epíteto de pius – valor tipicamente romano e por isso

indicativo de uma consciente aproximação da realidade latina para contemporizar o

alcance da obra – saído de Tróia que se imbui de um fado (fatum) legado a ele em oráculo

de ir à terra de origem dos Penates que carrega consigo e fundar uma cidade. Tal viagem

desembocaria no Lácio, mas teria seus percalços e interrupções como o desvio para

Cartago, onde o pio guerreiro conheceria Dido, rainha da cidade que futuramente

rivalizaria com Roma. Enéias se revela como homem decidido a cumprir sua missão, cujo

resultado a longo prazo é a fundação da cidade de Roma por um de seus descendentes,

Rômulo.312

Notamos que o herói virgiliano tem aspectos de uma mentalidade romana,

notável pela ciência do dever de cumprimento de missões, além da justitia e clementia, ou

ainda a pietas que matizam o pensamento e costumes dos romanos. Enéias sabe-se

portador de uma tarefa suprema, definida pelo destino que os deuses lhe anunciam que não

311

Ambas as citações provêm de: PEREIRA, Maria Helena da Rocha. Estudos de História da Cultura

Clássica. 2 ed. Vol. II. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989. 312

Ocorre aqui, às mãos de Virgílio, uma fusão das lendas e explicações míticas concernentes ao surgimento

da cidade romana: Rômulo pertenceria à linhagem dos reis de Alba Longa, reino que teria sido fundado por

Ascânio, filho de Enéias, que por sua vez era da família real troiana (seu pai, Anquises, era primo em 3°

grau de Príamo, rei de Tróia à época da conhecida guerra narrada na Ilíada, de Homero).

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pode ser modificado ou interrompido nem mesmo por eles ou por um forte amor que

encontra em Dido. Uma missão elevada sobretudo por preparar o caminho para a ascensão

daquele que devolveria os tempos de paz a Roma e introduziria nela os tempos áureos –

César Augusto.

Há dois momentos interessantíssimos para que atribuamos a Virgílio o esforço

premeditado de fazer coincidir a obra máxima do povo romano com a história recente,

tendo por eixo de condução a figura de Augusto. Um deles é a revelação que Anquises faz

a Enéias, quando este desce aos Infernos, relativa ao futuro dos seus descendentes,

confirmando-lhe a urgência em desincumbir o fatum que lhe é imposto. Além de explicar a

condição dos mortos, descrevendo os estados e moradas das almas no mundo inferior, o pai

a quem Enéias tantas vezes expressou devoção filial (em consonância com a pietas que lhe

cabe) mostra-lhe a sucessão de heróis, homens notáveis, ilustres personagens que

descendem de Enéias e participam da história romana. Tal linha explicativa encontra sua

conclusão em Augusto, sobre quem Anquises diz:

Vira agora os olhos para aqui: olha esta nação; são os teus

Romanos. Eis César e toda a descendência de Iúlo, destinada a

surgir sob a grande abóbada do céu. Eis o herói, eis aquele que tão

amiúde ouves ser-te prometido, Augusto César, filho de um deus;

ele recriará a idade de ouro no Lácio, entre os campos onde outrora

reinou saturno; ele levará o seu império mais longe que o país dos

Gamarantes e dos Indianos, até às terras que se estendem para além

das constelações, para além das sendas do Sol e do ano, e onde

Atlas que sustenta o céu faz rodar sobre o seu ombro o eixo do

mundo semeado de estrelas cintilantes. Desde já, ao rumor da sua

chegada, estremecem os reinos cáspios ante as respostas dos

deuses, e a terra meótica e as bocas do Nilo de sete braços tremem

confusamente.313

313

VIRGÍLIO. A Eneida. Mem-Martins: Publicações Europa-América, Lda., [S.d.]

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Trata-se de um excerto que dispensa extensos argumentos em favor de sua

potencialidade quanto à elaboração de um discurso de exaltação. Há que se notar, por

exemplo, a referência a César Augusto, descendente de Iulo (outro nome de Ascânio, filho

de Enéias), filho de um deus – uma referência a Júlio César, seu pai adotivo que fora

divinizado – e herói prometido a Enéias que recriaria a idade de ouro no Lácio, trazendo de

volta tempos satúrnicos. Augusto é referido também em tom profético por Anquises como

um grande conquistador, cujas vitórias significariam a ampliação do império romano para

terras distantes (Anquises menciona até mesmo a Índia), tão distantes que nem mesmo os

fenômenos celestes as tocam, e é até mesmo possível encontrar Atlas, titã responsável por

sustentar os céus. Augusto é também pintado como poderoso comandante a quem seus

inimigos temem, incluindo o Egito, aqui representado pelas “bocas do Nilo de sete braços”.

A menção de Augusto na epopéia de Virgílio é de uma profunda significância, haja

vista o sentido que o autor atribui a sua obra enquanto revelação dos destinos da raça

romana, da soberana raça romana. Além do mais, Virgílio escreve sabedor do que ocorre

no presente, dos planos de Augusto. “O poeta, portanto, achava-se depositário dos

pensamentos do vencedor, talvez tivesse até contribuído para defini-los e, naquele

momento, vira, sentira e compreendera o presente de Roma, ao situá-lo no conjunto do

futuro.” 314

Não é inocente a inclusão de Otaviano na linha de descendentes do herói épico

de que falamos na Aeneis, bem como a coleção de feitos e virtudes associadas ao divino

legatário de Enéias, a quem cabe a condução dos rumos, dos destinos romanos enquanto

líder consagrado pela história e por suas aptidões (posto que se espelhe em seu antepassado

e seja descrito em paralelismo com o mesmo).

O outro momento da Eneida de Virgílio que merece atenção para se atestar as

intenções do autor relativas à instrumentalização da obra, seu direcionamento para

314

GRIMAL, Pierre. Op. Cit.

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objetivos políticos, com implicações culturais, é a descrição do escudo de Enéias.

Encontrada no Canto VIII da Eneida, tal descrição do escudo preparado por Vulcano

fornece apelos visuais para a lembrança de fatos e pessoas notáveis da história romana,

como a amamentação dos gêmeos Rômulo e Remo por uma loba, o rapto das Sabinas,

defesa do Capitólio contra os Gauleses, c. 390 a.C. etc. Mas o que mais chama a atenção é

a cena central: uma representação da Batalha do Áccio, a tão marcante batalha que pôs fim

definitivo ao Segundo Triunvirato com o triunfo de Augusto, cuja ascensão ao poder teve

seu alicerce lançado com a batalha naval talhada no escudo do semideus. Mais uma vez

Augusto tem sua menção na Eneida de maneira elogiosa, sendo correlacionado aos

destinos romanos traçados à frente de Enéias, sob a natureza de missão divina. Mais uma

vez, as narrativas do poder ganham espaço no contexto da Era de Augusto, particularmente

na obra épica que estamos considerando, sendo moldadas pelo discurso de supremacia

dirigido a Roma e seu dirigente. Discursos que levam em conta a subjugação do inimigo, a

qual perpassa a sugestão ou empenho de perspectivas negativas sobre os oponentes, como

se faz com Marco Antônio na representação da Batalha do Áccio no escudo de Enéias.315

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A título de conclusão, ou a menos de desfecho das questões e elucubrações que

procuramos delinear aqui, vale concordar com as sugestões que historiadores e estudiosos

tem feito sobre o Principado Romano em seu início: tratou-se de uma conjuntura cujos

alcances políticos, sociais e culturais sem dúvida se beneficiaram da conduta da notável

315

É de se notar como a descrição virgiliana promove uma distinção profunda entre as duas figuras do

embate que se observa, no caso Otávio e Marco Antônio. Uma distinta oposição, diga-se de passagem, que

remete ainda às características de cada um que propiciam as interpretações, sejam elas positivas ou

negativas. Antônio, por exemplo, é associado à barbárie, uma vez que se associou ao poder oriental na sua

forma monárquica e desposou Cleópatra, rainha do Egito. Vide a Eneida, Canto VIII, verso 675-728, para a

descrição da cena central no escudo de Enéias.

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figura de Otávio Augusto. Um contexto marcado pela ambivalência do projeto político do

princeps senatus, identificada pela necessidade de afirmação pessoal na esfera das

simbólicas relações de poder mas ao mesmo tempo pela afirmação do caráter elevado da

civilização cujos interesses e valores Augusto se dispôs a representar e fazer valer perante

os demais povos. Logo, é possível discernir nas manifestações culturais identificados com

o período conhecido como Pax Romana (governança de César Augusto) efeitos daquilo

que vimos no início, na citação da Res Gestae Divi Augusti: uma consciência política da

missão de que o imperador se imbui, compreendendo o valor de coligá-la com a mensagem

de patriotismo, de auto-suficiência romana no campo mental e civilizacional. Sem dúvida,

as transformações sentidas na passagem da República em sua forma tradicional para o

Império deveram-se às contribuições desse grande personagem, cuja perspicácia residiu em

se fazer agente essencial na continuação da missão de grandeza do povo romano, como um

Enéias fadado a um destino grandioso, a quem importa sobretudo a execução de seu dever

legado pelos deuses.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CARDOSO, Zélia de Almeida. A literatura latina. São Paulo: Martins Fontes, 2003

GRIMAL, Pierre. Virgílio ou o segundo nascimento de Roma. Ivone Castilho Benedetti

(Trad.). São Paulo: Martins Fontes, 1992. (Coleção O homem e a história)

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LEONI, Giovanni D. (Trad.) Res Gestae Divi Augusti. São Paulo: Livraria Nobel S/A,

1957

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PEREIRA, Maria Helena da Rocha. Estudos de História da Cultura Clássica. 2 ed. Vol.

II. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989

VIRGÍLIO. A Eneida. Mem-Martins: Publicações Europa-América, Lda., [S.d.]

A Mácula Positivista: críticas e apropriações feitas por Plínio Salgado

Felipe Cazetta *

RESUMO: O artigo em questão tem como proposta a análise da inserção do positivismo

na teoria de Plínio Salgado, fundador e chefe da Ação Integralista Brasileira (AIB). Por ser

conhecida como o fascismo brasileiro, a pesquisa busca como objetivo demonstrar outros

afluentes teóricos que revestem a AIB, sem relaxar a idéia de o movimento ter como

projeto político para o Brasil o autoritarismo e o totalitarismo.

PALAVRA-CHAVE: Plínio Salgado; Integralismo; Positivismo.

ABSTRACT: The article in question proposes the analysis of the insertion of positivism in

the theory of Plinio Salgado, founder and head of the Ação Integralista Brasileira (AIB).

Because it is known as Brazilian fascism, the research seeks to demonstrate how other

tributaries theorists who take the AIB, but do not relax the idea of the movement have the

political project for Brazil authoritarianism and totalitarianism.

KEY-WORD: Plínio Salgado; Integralism; Positivism.

A rejeição de Plínio Salgado, líder da Ação Integralista Brasileira (AIB)*, pelo

*Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História da UFJF

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materialismo, seja ele o burguês ou o marxista, chegando até mesmo a fundi-los, para

simplificar a teoria de ambos, empobrecendo-as, e facilitando o foco de ataques. (“A visão

estreita da burguesia é a mesma do marxismo. Mas a burguesia passiva e gozadora é muito

mais materialista do que o marxismo. Quem nega está afirmando a seu modo” 1). Neste

âmbito, o positivismo, não escapa das investidas enredadas por Salgado, devido à crítica,

feita por Comte e seus antecessores, aos dogmas religiosos e à exacerbação das virtudes do

progresso, promovidas pela ciência, em detrimento da Palavra da Igreja.

Estes caminhos metodológicos desenhados pelo positivismo devem reverência à

filiação desta escola teórica para com a filosofia das luzes. Devido ao citado retrospecto,

Condorcet, filósofo pioneiro a consolidar os pilares do positivismo, afirmava que a ciência

positivista deveria ser regida por moldes objetivos e quantificáveis, com a finalidade de

tornar translúcidos os estudos da nova ciência, posto que esta seria intangível, segundo os

anseios de Condorcet, aos dogmas atemporais da Igreja e à legitimidade divina da coroa

dos reis. Nesta medida, o elaborador da doutrina, e seu sucessor Saint-Simon, arrogavam

uma ciência que fugisse ao controle da classe dominante 2. Seguindo estas diretrizes, o

positivismo repudiava as paixões e interesses nas ciências da sociedade.

Contudo, Comte, principal difusor daquela teoria, migra para a esteira oposta de

seus predecessores. Por considerar que aqueles caíram nas próprias armadilhas, devido ao

radicalismo de Condorcet e de seu discípulo, o socialista utópico Saint-Simon, Comte

remodela o positivismo com forte conservadorismo, acreditando não estar, ele póprio,

cometendo o erro oposto. Este estigma se deu principalmente, pelo ruído na interpretação

de objetividade quanto ao exame sociológico. Comte codificou a metodologia

*A AIB foi o primeiro movimento de massa em solo nacional, sendo esta de extrema-direita e vastas

semelhanças com os fascismos europeus.

1 SALGADO, Plínio. A Quarta Humanidade. in. Obras Completas. vol. 5. 2ª edição. São Paulo: Editora das

Américas, 1957. p 99. (Grifo meu)

2LÖWY, Michael. Ideologia e Ciência Social: elementos para uma análise marxista. São Paulo: Editora

Cortez, 1985. p. 37.

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anteriormente proposta, inspirada nas leis físicas e naturais - deduzindo daí um suposto

equilíbrio que deveria ser transposto para a realidade social -, como manutenção da ordem

instaurada, não descartando mudanças, mas que estas aconteçam de forma lenta e estável,

com a finalidade de evitar o “estado anárquico da sociedade.” 3

Sob este imperativo de manter a ordem, Comte elabora sua nova abordagem sobre

o positivismo, calcada na progressão evolutiva da sociedade em três estágios, que

caminham do nível teológico, de presença permanente de deuses e totens na vida cotidiana

da comunidade, culminando ao último estágio, o estado positivo, ou científico,

notoriamente materialista, objetivo e racional, consequentemente ateu, perpassando pelo

estado intermediário, chamado de metafísico ou abstrato.

É necessário, portanto, aprofundar um pouco mais na análise destes três estados

expostos por Comte, visto que representam o eixo central da teoria positivista, além de

conter pontos que serão destacados não só como ataques de Salgado ao materialismo

comtiano, mas também aproximações entre ambas as doutrinas, das quais o líder da AIB

não explicita, todavia são evidentes. Deste modo, há uma citação bastante elucidativa do

próprio Comte sobre o que viriam a ser os três estados:

No primeiro, idéias sobrenaturais servem para ligar o pequeno

número de observações isoladas de que a ciência então se compõe.

Em outros termos, os fatos são explicados, isto é, vistos a priori,

segundos fatos inventados. (...). Ele fornece, por conseguinte, o

único meio pelo qual se possa raciocinar sobre os fatos,

sustentando a atividade do espírito que tem necessidade, acima de

tudo, de qualquer ligação. Numa palavra é indispensável para

permitir que se vá mais longe. (Grifo do original)

O segundo estado é unicamente destinado a servir de meio de

transição para o terceiro. Seu caráter é bastardo, liga os fatos com

idéias que já não são inteiramente sobrenaturais e que não são

tampouco inteiramente naturais. Numa palavra, essas idéias são

abstrações personificadas, nas quais o espírito pode ver à vontade o

nome místico de uma causa sobrenatural ou enunciado abstrato de

3 COMTE, Augusto. Reorganizar a Sociedade. São Paulo: Escala, 2000. p. 15.

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uma simples série de fenômenos conforme estiver mais próximo do

estado teológico ou científico. (...). (Grifo meu)

O terceiro estado é o modo definitivo de toda e qualquer ciência,

uma vez que os dois primeiros não foram destinados senão a

prepará-lo gradualmente. Então os fatos são ligados por idéias ou

leis gerais de uma ordem inteiramente positiva, sugeridas ou

confirmadas pelos próprios fatos e que muitas vezes, não passam

de fatos bastante gerais que se transformam em princípios. Procura-

se sempre reduzi-los ao menos número possível, mas sem instituir

nenhuma hipótese que não seja de natureza a ser verificada algum

dia pela observação e deixando de considerá-los, em qualquer

caso, senão como um meio de expressão geral para os fenômenos.4

(Grifo meu)

Isto posto, parece inevitável que um católico fanático tal como Salgado era, tecesse

duras críticas ao materialismo apresentado pelo positivismo de Comte. Tais investidas vão

de encontro justamente com o desligamento do “(...) Homem dos seus compromissos com

Deus”, pois o positivismo “apresenta-se como o verdadeiro egocentrismo materialista,

traçando a pantômetro a figura do próprio homem no objeto da sua adoração” 5. Nada mais

lógico para uma liderança que preconizava a ascensão prática do slogan “Deus, Pátria e

Família.”

Plínio Salgado mantém a coerência de seus ataques em A Quarta Humanidade,

dissertando contra a organização da democracia liberal. Neste vetor, o integralista difere

golpes não só em Comte, mas também, e inevitavelmente, em Adam Smith e H. Spencer,

inserindo todos, e sem explicações muito contundentes, na filosofia estóica. Salgado expõe

que: “As linhas mestras das democracias modernas inspiram-se no velho estoicismo. Toda

a doutrina econômica é estóica: o Estado cruza os braços. É esse o mesmo sentido do

4 Idem, p. 46.

5 “O positivismo de Comte, criando uma divindade irreal, no culto de um humanidade abstrata, e abstendo-se

da consideração da metafísica, isto é, desligando o Homem dos seus compromissos com Deus, apresenta-se

como o verdadeiro egocentrismo materialista, traçando a pantômetro a figura do próprio homem no objeto da

sua adoração.” SALGADO, Plínio. Aliança do Sim e do Não. In. Obras Completas. v. 6. São Paulo: Editôra

das Américas, 1955. p. 38.

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evolucionismo spenceriano e do positivismo comtista.” 6

Entretanto, ainda na obra A Quarta Humanidade, mesmo investindo duramente

contra o positivismo, Plínio apresenta esquemas de desenvolvimento de suas quatro

humanidades – estágios dos quais as civilizações deveriam obrigatoriamente passar – de

maneira bastante similar à organização dos estados positivistas, com ênfase às duas

primeiras Humanidades, quando comparadas aos estados positivistas de Comte.

O segundo tipo de Humanidade (a Monoteísta) apresenta um

caráter de fusão como a primeira (Politeísta) apresentou a índole de

adição. Na primeira somam-se os clãs, somam-se os deuses,

somam-se as províncias, somam-se as causas. Na segunda, todos

êsses elementos fundem-se numa idéia totalitária, que abarca tôda a

compreensão do universo e todos os movimentos humanos. 7 (Grifo

meu)

A Segunda Humanidade dissertada por Plínio Salgado, pouco ou nada muda no

aspecto “bastardo, [que] liga os fatos com idéias que já não são inteiramente sobrenaturais

e que não são tampouco inteiramente naturais.”8 Ao que se refere ao modelo de

desenvolvimento das sociedades, a Segunda Humanidade conserva o caráter de de

transição e bastardia – utilizando o termo de Comte – pois esta nada mais é que a fusão do

que se desenvolveu na primeira. A Humanidade primeira, por sua vez, conserva a

característica de primitivismo totêmico das “sociedades arcaicas”, onde os fenômenos

naturais se confundem com as manifestações de divindades, e onde ciência e religião eram

intrínsecas9.

A Terceira Humanidade mantém a mesma perspectiva ensejada por Comte, em

6 SALGADO, Plínio. A Quarta Humanidade. . in. Obras Completas. vol. 5. 2ª edição. São Paulo: Editora

das Américas, 1957. p. 38.

7 Idem, p. 33.

8 COMTE, Augusto. op.cit. p. 46.

9 “O totem traz consigo uma interpretação da idéia revelada quando o Homem ainda não havia se degradado

em conseqüência do pecado original. O significado imediato do animal totêmico, atingia a extensão do do

domínio tribal, começa a ampliar-se na correspondência com os fenômenos cósmicos, através dos processos

analógicos, em que o Homem Primitivo comunga no conjunto das expressões naturais.” Idem, p. 21.

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outras palavras, de destaque do desenvolvimento científico-tecnológico em detrimento das

explicações e relações sociais calcadas na religiosidade. Contudo, as opiniões sobre estes

avanços são evidentemente divergentes, haja vista o já destacado fanatismo religioso qual

Salgado era embebido, contrastante ao objetivismo pregado por Comte. É ilustrativa a

designação oferecida pelo líder da AIB a esse estágio, que é “A Terceira Humanidade, a

Ateísta, tem uma índole de dissociação, de desagregação.”10

Esta percepção pessimista é

defendida pelos mesmos motivos do deslumbramento de Comte. Para o difusor do

positivismo vulgar:

O destino da sociedade, que atinge sua maturidade, não é o de

habitar para sempre a velha e decadente choça que se edificou em

sua infância (...) nem o de viver eternamente sem abrigo (...), mas,

com a ajuda da experiência adquirida, o de construir para si, com

todos os materiais que acumulou, o edifício mais apropriado a suas

necessidades e a seu prazer.11

(Grifo meu)

Em Salgado as diferenças são sutis, porém bastante esclarecedoras para que se

desenhe a Quarta Humanidade integralista. Para Plínio, “A Terceira Humanidade funda-se

nas conclusões científicas, nas verdades em trânsito, da hipótese para a tese e da tese para a

hipótese.” Portanto, nestes termos a perspectiva se mantêm em relação ao descrito por

Comte.

Contudo, o que é inconveniente e torna desagregadora esta Humanidade, para

Plínio Salgado, é o seu teor de “Verdades em Trânsito”, consolidando o prelado do

ateísmo. O dogma e os sistemas de crença são fundamentais para a manutenção da religião,

seja ela de viés espiritual, seja ela de viés cívico. Para tanto é que as grandes religiões de

massas e partidos que se apóiam no carisma popular lançam mãos de imagens (sejam elas

materiais ou linguísticas) simplificadoras, disseminadoras de ideologias.

1

0 SALGADO, Plínio. A Quarta Humanidade. p. 39.

11 COMTE, Augusto. op. cit. p. 26.

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Destarte, é válido tocar numa discussão que tangencia este artigo: a construção do

mito oficial. Para que seja posto de pé um sistema ideológico que faça sentido para a

massa, e ao mesmo tempo represente as ambições particulares de uma casta ou classe

dirigente, é pertinente a simplificação e justaposição do discurso em formato de imagens

de fácil apreensão, a transformação do conceito em imagem, e associações livres de

imagens12

. A capacidade de dinamismo, em sentido dialético de mobilização-justificação é

dada à ideologia, a partir da simplificação e esquematismo da qual é revestida. Ricoeur

expõe que “Seu papel não é somente o de difundir a convicção para além do círculo dos

pais fundadores, para convertê-la num credo de todo o grupo, mas também o de perpetuar a

sua energia inicial para além do período de efervescência.” 13

Por outro lado, a ciência se faz a partir da instabilidade das teses postas e da

efemeridade de “verdades temporárias”. Desta forma, a ciência tem como oposto a crença

incondicional e dogmática. Assim sendo, com a finalidade de afastar a humanidade das

“trevas do ateísmo” é fundado o último Estado, a utopia integralista.

O Estado, que salve o homem da ditadura cruel do materialismo

finalista e da ditadura sem finalidade da ditadura da plutocracia

democrática e das oligarquias políticas e financeiras. O Estado que

defenda o Indivíduo contra a Sociedade e a Sociedade contra o

Indivíduo. O Estado que seja impositor do equilíbrio, o mediador

máximo, o juiz, o orientador, o propulsor. (...) Esse estado realizará

a possível felicidade da Terra, baseada na confiança em Deus, no

amor ao próximo, sem excluir os valores científicos, mas

subordinando a ciência a um pensamento superior de finalidade

humana. 14

Em síntese, Salgado busca através da construção do Estado Integralista, pela ordem

e equilíbrio, a reestruturação dos pilares do integralismo, que são resumidos pela tríade

1

2 CHAUÍ, Marilena. Apontamentos para uma crítica a Ação Integralista. In. CHAUÍ, Marilena & Franco,

Maria Sylvia de Carvalho. Ideologia e Mobilização Popular. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. . p.40.

13 RICOEUR, Paul. Interpretação e ideologias. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora S/A.,1983.

p. 68.

14 SALGADO, Plínio. A Quarta Humanidade. p. 65.

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“Deus, Pátria e Família”. Tripé este que dialoga de maneira intensa o lançado pelos

positivistas de “Família, Pátria, Humanidade” 15

.

Na humanidade utópica desenhada por Salgado, mesmo alterando o lema

positivista, inserindo “Deus” em lugar de “Humanidade, ando sim há encontros entre uma

e outra doutrina. O líder da AIB examinava a massa popular, nas palavras de Cavalari,

como “(...) imatura, incapaz, inconsciente e estúpida, ela não tinha condições de, sozinha,

conduzir-se na vida. Havia a necessidade de que alguém as virtudes que lhe faltavam,

interpretasse suas aspirações e guiasse 16

. Não faltam passagens na obra de Salgado que

comprove a afirmação da professora Rosa Maria, dentre várias cito apenas uma presente

em Palavra Nova de Tempos Novos, onde o líder da AIB compara a massa com o

selvagem shaekspeariano Calibã: “Calibã é a grande massa popular inconsciente, (...)” 17

“Não conhece a lógica. Não entende os ritmos superiores das harmonias. É forte e

poderoso, mas é estúpido e cego. Não conhece a palavra 'construção', porque só aprendeu a

palavra 'destruição'.” 18

.

Para que “este monstro estúpido” seja domado e mantido sob controle, Salgado

recorre absolutamente aos mesmos personagens que Comte, para realizar esta a tarefa de

levação do nível cultural das massas 19

que são os sábios 20

. Nesta tarefa, Salgado ressalta a

1

5 “O que o comtismo introduzia eram as formas de vivência comunitária, a família, a pátria e, como

culminação do processo evolutivo, a humanidade (que Comte escrevia com h maiúsculo).” CARVALHO,

José Murilo. A Formação das Almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das

Letras, 1990. p. 22.

16 CAVALARI, Rosa Maria Feiteiro. Integralismo: ideologia e organização de um partido de massa no

Brasil(1932-1937). Bauru, SP: EDUSC, 1990.. p.44.

17 SALGADO, Plínio. Palavra Nova de tempos Novos. in. Obras Coletivas. vol. 7. São Paulo: Editôra das

Américas, 1955.p. 325.

18 Idem, p. 329.

19 “Um dos grandes planos, pois, que temos a executar no Brasil, não é simplesmente o da alfabetização: é o

da elevação cultural das massas.” SALGADO, Plínio. Despertemos a Nação. In. Obras Completas. v. 10. 2ª

edição. São Paulo: Editora das Américas, 1954.p. 149

20 “A natureza dos trabalhos a executar indica por si, do modo mais claro possível, a que classe compete

empreende-los. Sendo teóricos, esses trabalhos, é claro que os homens que se especializam em formar

combinações teóricas seguidas metodicamente, ou seja os sábios que se ocupam do estudo das ciências de

observação são os únicos cuja espécie de capacidade e de cultura intelectual preenche as condições

necessárias.” COMTE, Auguste. op. cit., p. 39.

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importância dos quadros de juristas, políticos e intelectuais 21

no intuito de disseminar a

“Revolução do Pensamento” no intuito de recompor o equilíbrio, abalado sempre que,

segundo a liderança integralista, alguns elementos da sociedade se hipertrofiam em

detrimento de outros 22

. Na tarefa de adestrar a “massa popular”, Plínio Salgado elenca

aspectos interessantes para sanar a “enfermidade social” que assola o país.

O problema da ordem não é um problema de polícia, mas é um

problema de regímen. A desordem é um sintoma de enfermidade

social. Quando um país entra em anarquia, quando se multiplicam

os distúrbios, quando proliferam os descontetamentos, os brados de

rebeldia e as atitudes de desespêro, cumpre examinar o quadro

social, o valor e a disposição das fôrças econômicas, numa palavra,

as forças da arritmia dos movimentos sociais, das superexcitações

nervosas das multidões. 23

A preocupação com a manutenção da ordem e do equilíbrio no seio da sociedade,

mantendo a massa no lugar mais distante possível do poder, não são preocupações

originais de Salgado. Comte enseja este exercício de problematização logo nas primeiras

páginas de “Reorganizar a Sociedade”. Diga-se de passagem, o trecho de “Páginas de

Ontem”, acima citado, guarda semelhanças consideráveis com o excerto do positivista:

Um sistema social que se extingue, um novo sistema que chaga a

sua inteira maturidade e que tende a se construir, esse é o caráter

fundamental destinado à época atual pelo andamento geral da

civilização. Em conformidade com esse estado de coisas, dois

movimentos de natureza diferente agitam hoje a sociedade: um de

desorganização, outro de reorganização. No primeiro, considerado

isoladamente, a sociedade é arrastada para uma profunda anarquia

moral e política que parece ameaçá-la por uma próxima e inevitável

dissolução. No segundo, ela é conduzida para o estado social

2

1 “Aos pesados juristas, aos tardos magistrados, aos medalhões da política e da literatura, convidamos a

tomar parte nos conflitos que a juventude impetuosa promove, ou a escutar as heresias e barbaridades com

que achincalhamos em nossas tertúlias o velho Direito, a velha Literatura e as velhas Constituições.”

SALGADO, Plínio. Palavra Nova de tempos Novos. p.191.

22 SALGADO, Plínio. Páginas de Ontem. In. Obras Completas. V. 10. São Paulo: Editora das Américas,

1955. pp. 184-185.

23 Idem, p. 193.

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definitivo da espécie humana, (...). É na coexistência dessas duas

tendências opostas que consiste a grande crise experimentada pelas

nações mais civilizadas. É sob este duplo aspecto que essa crise

deve ser encarada para ser compreendida. 24

Após estas citações, é valido que se efetiva as devidas comparações, considerando

as semelhanças entre um discurso e outro. Ambos os autores, partindo de uma perspectiva

conservadora de progresso dentro da ordem, embasam seus respectivos discursos. Salgado

se aproxima a tal ponto da ótica de Comte, que cria um conceito próprio de Revolução25

,

onde esta se realizaria, em primeiro momento, na esfera mental, para somente a posteriori

se concretizar no plano da ação. Desta forma, a Revolução do Pensamento seria a

verdadeira revolução, sendo está possível de ser realizada apenas pelas elites, eleitas por

Salgado e formadas pelos Departamentos de Estudos, submetidos ao crivo do

Departamento Nacional de doutrina, ambos, órgãos integralistas. 26

Em suma, mesmo impelindo duras críticas ao materialismo, Salgado lança mão de

grandes contribuições à obra de Comte, sendo o mesmo, nas palavras de Salgado, um

materialista burguês. Entretanto, na concepção do Estado Integral, ou a Quarta

Humanidade, há aspectos que evidentemente não constam na obra positivista, mas

remetem ao passado modernista do Chefe da AIB.

BIBLIOGRAFIA

COMTE, Augusto. Reorganizar a Sociedade. São Paulo: Escala, 2000.

2

4 COMTE, Augusto. Op.cit. p. 13.

25 “As Revoluções, sejam de que natureza forem, têm, lógicamente, um caráter ético, uma finalidade moral.

Todas as revoluções são atos ideais, porque toda alteração da marcha social pressupõe a autonomia da Idéia,

o seu valor intrínseco, a sua prevalência sobre as fôrças desencadeadas pelo determinismo dos fatos.”

SALGADO, Plínio. Psicologia da Revolução. in. Obras Completas. vol. 7. São Paulo: Editôra das Américas,

1955. p. 33.

26 CAVALARI, Rosa Maria Feiteiro. op.cit. p. 48.

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das Américas, 1955.

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Editôra das Américas, 1955.

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Estado Português e Igreja Católica: auxílios e disputas na manutenção do

domínio social e os Cristãos-novos como alvo deste processo nas Minas setecentistas.

Franciany Cordeiro Gomes316

RESUMO: Este trabalho tem como objetivo analisar a participação da Igreja como

instrumento de domínio e repressão social do Estado português, visando suas motivações

para a perseguição aos cristãos-novos estabelecidos nas Minas durante o século XVIII, que

foram as principais vitimas deste processo de união de forças das respectivas instituições.

PALAVRAS-CHAVE: Inquisição, Cristãos-novos, relação Estado e Igreja.

RÉSUMÉ: Ce travail a pour son but analyser la participation de l’Église comme un

instrument de domination et répression sociale de l’État Portuguais, en visant ses

motivations à la persécution aux nouveaux chrétiens qui se sont fixés à Minas pendant le

XVIIIe siècle, ceux-ci, les principales victimes de ce processus d’union de forces entre ces

deux instuitions.

MOTS CLÉS: Inquisition, Nouveaux chrétiens, relation entre l’État et l’Église.

Introdução

A partir de uma analise ainda inicial sobre os processos inquisitoriais disponíveis

digitalizados na página do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, vários questionamentos

se tornaram evidentes para a feitura deste trabalho. Como foi a ação inquisitorial na

316

Aluna do 5° período de graduação do curso de História da Universidade Federal de Juiz de Fora e bolsista

de iniciação cientifica no Laboratório de História Econômica e Social (LAHES) coordenado pela professora

doutora Carla Maria Carvalho de Almeida.

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colônia brasileira, mais especificamente em Minas? Em que ela consistiu? Quem foram

suas maiores vitimas? Qual a importância destes personagens? Qual foi a atuação do

Estado dentro deste processo? Qual e como ocorreu a relação entre Estado e Igreja católica

neste período? E, o que isso influenciou no processo de extração aurífera nas minas?

Com estas perguntas em mente e trabalhando com os documentos, selecionando

aqueles que mais se encaixavam dentro deste contexto, pôde-se chegar a algumas respostas

que ainda poderão ser posteriormente melhor trabalhadas num futuro desdobramento.

Para a conclusão deste trabalho, uma analise superficial sobre a história da

Inquisição na Europa e no que se entende como Império Português foi de grande

necessidade para o melhor entendimento da natureza desta instituição. Após este primeiro

momento, a relação entre Estado Português e Igreja Católica se tornou o foco da narrativa,

esclarecendo o tipo de relação e quais foram os resultados desta para a repressão social.

Observando o contexto social em Minas Gerais e sua composição, o personagem

cristão-novo veio à tona por sua importância tanto econômica como social, e sua freqüente

aparição dentre os processados pela inquisição nas Minas tornou-os objeto de estudo.

De forma geral, o trabalho tenta saber de que forma esta instituição foi usada para

uma tentativa de centralização do poder, que objetivava afetar aqueles que mais possuíam

condições de desafiar esta ordem que se pretendia estabelecer.

Sobre a Inquisição

A Igreja Católica, durante a Idade Média, era uma das mais importantes instituições

do período, se não a mais. Era ela a referência moral e comportamental, que determinava e

influenciava o cotidiano e a concepção de mundo das pessoas. Esta situação perdurou

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inquestionável até o final da Baixa Idade Média quando se iniciou um movimento

questionador de seus dogmas e de sua conduta perante o meio social.

Objetivando manter sua predominância, acabando com as controvérsias surgidas

com o movimento reformista, a Igreja decide por reformular suas posições e sua conduta,

porém, antes disso, cria um meio de repressão e dominação daqueles que se opunham ou

não seguiam seus princípios, os denominados hereges.

Pra isso a Igreja convocou a Ordem dos Dominicanos e a incumbiu de perseguir e

punir aqueles que se desviavam das “leis da Igreja”. Para cumprir essa missão os

Dominicanos criaram a Milícia de Jesus Cristo.

Inicialmente essa perseguição não possuía uma organização nem uma instituição

regular que cumprisse este papel. Eles somente investigavam e interrogavam, não usando

ainda os artifícios de tortura, e quando necessário, puniam somente aqueles que se

encaixavam dentro de uma lista de desvios de conduta ou de pecados que a Igreja formulou

para esse fim.

Após algum tempo surgiram os Tribunais Inquisitoriais que possuíam uma

administração hierarquizada e intimamente ligada a Igreja, mas durante a transição dos

tempos medievos para os modernos essa sofreu uma pausa em suas ações.

Foi na Idade Moderna que esta instituição alcançou seu auge, quando os reinos

católicos ibéricos, Portugal e Espanha, sofrendo com a invasão dos mouros e vendo o

grande progresso econômico do povo judeu que ali estava estabelecido, resolveram pedir

ao papa a permissão para retornar com a inquisição em seus territórios.

A Espanha, em 1478, foi a primeira a estabelecer um tribunal inquisitorial em seu

território de domínio. Seguindo seu exemplo, Portugal, em 1536, também foi contemplado.

Como Portugal é o nosso objeto de estudo, enfatizaremos a analise da ação Inquisitorial

neste reino.

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Com a Bula Papal Cum ad nihil magis, foram nomeados três bispos para exercerem

o cargo de Inquisidores-gerais, deixando uma vaga a ser ocupada por um escolhido do rei

D. João III. A instituição portuguesa demonstrava a grande intervenção régia que sofria,

que de acordo com a autora Anita Novisky, esta serviu para centralizar o poder da

Coroa317

.

A atuação deste Tribunal iniciava-se com as visitações periódicas as províncias e

vilas do reino, onde investigavam e colhiam denúncias, depoimentos e confissões dos

moradores daquelas localidades. Era estabelecido no início das visitações o “tempo da

Graça”, no qual qualquer um poderia confessar seus crimes e ser absolvido pelas bênçãos

de Deus.

Posteriormente os alvos de denuncia eram convocados para serem submetidos a

interrogatórios que poderiam demorar semanas ou até meses, nos quais o indivíduo sofria

torturas para confessar seus crimes, já que a instituição não admitia ser questionada em

suas posições, por isso às confissões eram forçadas.

Após admitirem seus pecados, estes indivíduos, se sobrevivessem, ficavam

encarcerados nos Cárceres secretos da Inquisição até poderem participar do Auto-de-fé,

cerimônia simbólica que contava com a participação das autoridades locais e do clero, e

eventualmente do próprio rei, onde as sentenças eram lidas publicamente. Os réus eram

conhecidos, vexamados e encaminhados para um possível relaxamento à autoridade

secular, se caso fosse punido com a pena de morte.

Os que não eram punidos com a pena capital poderiam ser encaminhados para

exílios, ou serem expostos ao julgo popular, serem obrigados a usarem sambenitos -

túnicas que eram desenhadas com imagens denunciantes do pecado que aquele individuo

317

NOVINSKY, Anita Waingort. A Inquisição. São Paulo: Brasiliense, 1983, pág. 37.

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havia cometido - ou cumprir determinações espirituais como orações cotidianas,

benfeitorias e etc.

A Inquisição portuguesa teve como seu maior objetivo a perseguição dos cristãos-

novos (judeus convertidos ao cristianismo durante sua expulsão em 1492). Esta estava sob

jurisdição da Coroa portuguesa que pagou uma quantia significativa à Roma para que esta

não influenciasse em sua ação318

. A ação inquisitorial em Portugal pode ser considerada

como mais rigorosa e mais feroz que a espanhola, pois atuou em um território mais vasto e

usou de procedimentos mais cruéis.

Toda a sua atuação era mantida em sigilo rigoroso, nem mesmo o réu sabia quem o

havia denunciado e sobre o que estava sendo julgado, não podendo assim se defender. Seus

funcionários seguiam uma hierarquia pré-determinada. A maior autoridade dentro da

instituição eram os inquisidores-gerais, logo abaixo vinham os comissários inquisitoriais,

por fim entravam os familiares, os escrivãos, os clérigos designados para funções especiais

e etc. Pertencer a este corpo administrativo concedia aos indivíduos status social e

privilégios, como isenção de impostos, por exemplo. Para ser escolhido o individuo

deveria passar por uma investigação sobre sua “limpeza do sangue”, já que deveria ser

descendente de uma família ligada às tradições da Igreja, não tendo assim ascendentes

originários de outras frentes religiosas, o que demonstra que esta instituição se baseava no

preconceito religioso.

A relação que o Estado e a Igreja mantinham era uma união de forças, mas com

certa rivalidade na disputa de poder. O Estado português tentava atenuar, de certa forma, a

influência e o poder que a Igreja exercia através de beneplácitos régios e a regia protectio,

a fim de centralizar o poder em suas mãos, que, segundo Anita Novinsky, a Igreja era uma

318

Ibdem pág. 36

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arma a mais para o Estado319

. Mas como a sociedade em si era corporativista e a Igreja

possuía grande poder influenciador sobre a população, o qual continuava a ser dividido

entre as instituições320

.

A Inquisição em Minas Gerais

A Inquisição no Brasil se deu em forma de visitações eclesiásticas, iniciando suas

atividades em 1579 e se estendendo até as proximidades da Independência. Sua atuação

tinha como finalidade os âmbitos políticos e econômicos, como na metrópole. Não houve o

estabelecimento de um tribunal como na América espanhola, ficando esta sob jurisdição do

Tribunal de Lisboa.

A ação inquisitorial seguiu as regiões produtoras de riqueza da colônia. Com o

período de grande exploração de ouro e diamantes nas Minas, esta não deixou de

estabelecer seu cerco de domínio e repressão neste local.

As vilas e províncias mineiras, como nas demais regiões da colônia, eram

fiscalizadas inicialmente com a ajuda dos clérigos locais que fiscalizavam e levavam as

denuncias ao conhecimento de Lisboa quando necessário ou resolviam as pendências in

loco.

Após este primeiro momento, com o desenvolvimento e crescimento da colônia

como um todo, houve a formação de um aparato burocrático em auxílio às visitações, esta

se tornando mais complexa, com a nomeação de pessoas de variados graus de importância

dentro da sociedade para os cargos de comissários, familiares e cargos de base.

319

Idem. 320

Esta posição vem de acordo com uma nova corrente historiográfica, que não vê a colônia brasileira como

um simples apêndice da metrópole e questiona a real centralidade do poder da metrópole, visando certa

autonomia dos componentes sociais.

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Através de visitas periódicas às diversas localidades existentes nas regiões das

minas, os comissários ou os clérigos locais promoviam como na Europa o “tempo da

Graça”, e após investigações a fundo no cotidiano dos habitantes, os denunciados eram

julgados ali mesmo, dependendo da heresia cometida, ou era feita a solicitação de

visitadores de Portugal, ou mesmo, o denunciado era diretamente encaminhado para

Lisboa.

Para se fazer uma denuncia à inquisição, bastava a palavra do denunciante, não

sendo necessárias provas ou quaisquer outras formas de confirmação desta denúncia para

abrir as investigações contra o acusado. Por isso, muitas famílias ou inimigos locais

usavam deste artifício para “agredir” politicamente seus contrários. O poder local e a

Coroa também se serviam deste caminho para derrotar seus opositores.

Crimes como blasfêmia, sodomia, concubinato, bigamia, feitiçaria e judaísmo eram

os mais comuns nas regiões das minas. Dentre estes crimes, o que era bastante visado nas

ações cotidianas das pessoas era seu envolvimento com o contrabando de mercadorias e de

ouro, além da usura e da luxuria, vistoriando o correto pagamento de dízimos e impostos.

Isso proporcionava um grande controle das riquezas e dos bens dos indivíduos,

conseguindo controlar de certa forma a produção e os desvios de ouro que poderiam

ocorrer neste momento.

Outra forma de controlar as riquezas pessoais que a inquisição usava era o confisco

de bens, como anteriormente citado, de grande uso e de extrema importância para o

funcionamento da instituição, e neste quesito as grandes vítimas eram os cristãos-novos.

Alguns autores como Schwartz321

acreditam que foram poucos os casos de

acusação por judaísmo para os cristãos-novos, mas Novinsky322

e Salvador323

se colocam

321

LOCKHART, James & SCHWARTZ, Stuart B. A América Latina na época colonial. Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 2002. 322

NOVINSKY, Anita Waingort. A Inquisição. São Paulo: Brasiliense, 1983

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contrários a esta opinião constatando a grande presença de processos inquisitoriais

relativos a eles.

Os cristãos-novos nas Minas

Vítimas de preconceito e perseguição na Europa, muitos cristãos-novos vieram para

a colônia luso-americana com a esperança de reconstruir suas vidas e alcançar patamares

que a eles eram negados no Velho Mundo.

À procura de enriquecimento e prestígio, estes indivíduos vieram em quantidade,

povoando uma variada gama de regiões, percorrendo quase todo o território colonial do

período em busca de melhores condições de vida. Minas Gerais foi uma das rotas

percorridas por eles, mas não há evidências concretas de que algum deles possuísse minas

de ouro e de diamantes.

Sua aptidão econômica para o comércio, com a ajuda de seus laços familiares

espalhados por várias regiões, além de tantas outras atividades por eles desenvolvidas

como o artesanato, profissões liberais e etc., influenciaram para o desenvolvimento da

região, chegando alguns deles a exercerem cargos de mando e participando da aristocracia

local, tendo sua inclusão neste grupo por sua vultuosa riqueza acumulada.

Por possuir esta grande importância local dentro de uma região que produzia a

maior parte da receita reinol, e por estarem direta ou indiretamente ligados a extração

destes minérios, os cristãos-novos foram perseguidos, já que o controle de sua conduta

representava de certa forma o controle desta produção e de seu deslocamento [???].

Heresias como luxuria e usura, que eram constumadamente ligadas à tradição

judaica, influenciavam no julgamento destes indivíduos, pois restringia seu comportamento

323

SALVADOR, José Gonçalves. Os cristãos-novos em Minas Gerais durante o ciclo do ouro, 1695-

1755: relações com a Inglaterra. São Paulo: Pioneira, 1992.

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econômico e, de certa forma, controlava suas atividades de maior lucro, pois era por meio

destes “erros” que suas riquezas eram formadas, em alguns casos.

Por estarem vinculados as atividades de metalurgia, mineração e comércio de

abastecimento acreditava-se que o controle destes homens poderia amenizar o contrabando

muito utilizado nesta região o que provocaria o barateamento da manutenção e o não

pagamento de impostos ao reino.

Outra forma de ação repressora a estes indivíduos foi o confisco de bens, citado

anteriormente. Esta atividade muito usada pela instituição era de interesse de todas as

partes envolvidas, excluindo é claro os próprios réus e seus familiares. “Familiares e outros

colaboradores apropriavam-se de bens que não lhes pertencia, por ocasião dos confiscos.”

(SALVADOR, 1992, pág. 175).

O resultado destes confiscos aos cristãos-novos e seus familiares eram

devastadores. Suas fortunas, bens e atividades lucrativas foram totalmente anulados,

ficando os dependentes destes na miséria algumas vezes, isso retirava sua influência local

que dependia de seu dinheiro. Homens como Diogo Nunes Henriques, Francisco Ferreira

Isidoro e Manuel Nunes da Paz são exemplos deste tipo de perseguição.

Os cristãos-novos eram inicialmente acusados de judaísmo, que não

necessariamente representava uma heresia concreta, pois a simples ascendência longínqua

desta religião já representava um crime cometido. Posteriormente, durante o decorrer do

processo, sua vida íntima e sua conduta tanto social quanto econômica eram colocadas em

foco.

Não existem comprovações de que isso ocorreu verdadeiramente, mas como foi um

artifício por várias vezes usado, a acusação destes ao Tribunal poderia ser motivada por

disputas políticas, pois para se abrir um processo, ou melhor, uma investigação contra

alguém, não era necessário provas concretas inicialmente. Assim, devido ao fato de

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exercerem certa representação política na região, os aristocratas opositores a eles poderiam

usar deste instrumento para seus fins políticos, podendo saber anteriormente de sua

ascendência que certamente os levariam aos cárceres.

Conclusão

A partir das informações supra citadas podemos verificar que desde o início do

estabelecimento da Inquisição nas terras de Portugal, o Estado estava extremamente

vinculado a esta instituição, e intuía usar da força deste instrumento para centralizar o

poder em suas mãos. Este objetivo foi ocasionalmente atendido, mas na maioria das vezes

a disputa de poder entre estas instituições impedia a centralização, já que a Igreja ainda

exercia grande poder na determinação do cotidiano das pessoas, inclusive do próprio

Estado.

Os cristãos-novos tiveram participação efetiva neste processo de disputa por serem

objeto de aversão entre as duas partes, um por motivos financeiros e outro por motivos

morais, além de sua inquestionável importância social e econômica nesta sociedade.

Referências Bibliográficas

Fontes primárias324

:

PT-TT-TSO/IL/28/9542 - ANTT (processo inquisitorial referente a Manuel Nunes da Paz)

324

As fontes primárias usadas, em maioria foram somente superficialmente trabalhadas, sendo usados todos

os nomes de cristãos-novos referentes a Minas Gerais que constam no acervo digitalizado do Arquivo

Nacional da Torre do tombo. As fontes citadas foram analisadas a titulo de exemplo, pois atendem o objetivo

do trabalho.

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212

PT-TT-TSO/IL/28/11965 - ANTT (processo inquisitorial referente a Francisco Ferreira

Isidoro)

Fontes secundárias:

NOVINSKY, Anita Waingort. A Inquisição. São Paulo: Brasiliense, 1983.

NOVINSKY, Anita Waingort. Marranos e a Inquisição: sobre a Rota do Ouro em Minas

Gerais. In: Os judeus no Brasil: inquisição, imigração e identidade/ Keila Grinberg (org).

Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

RODRIGUES, Isis Meneses de. Visitações Eclesiásticas: do delito a punição - Mariana

(1722-1743), dissertação de mestrado. Juiz de Fora, 2009.

LOCKART, James & SCHWARTZ, Stuart B. A América Latina na época colonial. Rio

de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

FERNANDES, Neusa. A Inquisição em Minas Gerais no século XVIII. Rio de Janeiro:

EDUERJ, 2000.

SALVADOR, José Gonçalves. Os cristãos-novos em Minas Gerais durante o ciclo do

ouro, 1695-1755: relações com a Inglaterra. São Paulo: Pioneira, 1992.

BETHENCOURT, Francisco. História das Inquisições: Portugal, Espanha e Itália. São

Paulo: Companhia das Letras, 2000.

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A Queda Genocida da Casa do Islã - O Genocídio Armênio (1915-

1923): pela sobrevivência do Império Turco-Otomano325

.

Heitor de Andrade Carvalho Loureiro326

“Can you feel their haunting presence?”

System of a Down – Holy Mountains

RESUMO: Veremos brevemente como os povos turcos se instalaram na Anatólia e Ásia

Menor, territórios historicamente ocupados por armênios. Veremos também, de forma mais

aprofundada, como a presença turca alterou as relações históricas e sociais ali existentes

até a configuração do quadro genocida no século XX.

PALAVRAS-CHAVE: Império Turco-Otomano; Armênia; Genocídio.

ABSTRACT: This paper analyzed how the Turkish people joined in Anatolia and Minor

Asia. It will be analyzed how the Turkish presence changed the historical and social

relationships to the start of the Armenian Genocide in twentieth century as well.

KEYWORDS: Ottoman Empire; Armenia; Genocide.

O Império Turco-Otomano: instituições sócio-políticas

Por volta do século XI, povos nômades oriundos dos planaltos da Ásia Central

migraram rumo ao ocidente, em busca de melhores condições para os seus. Chegando à

325

Este paper é parte da nossa monografia de bacharelado em História pela UFJF, intitulada “A Queda da

‘Casa do Islã’: O Genocídio Armênio (1915-1923) como práxis paradigmática no século XX”. 326

Graduado em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).

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Anatólia, ainda como nômades, conseguiram se instalar em um terreno inóspito, onde os

árabes haviam logrado derrota anos antes327

.

Entretanto, a terra recém-conquistada não era inabitada. Diversos povos já se

encontravam ali desde tempos imemoriáveis e possuíam peculiares organizações sociais.

Entre estes, havia os armênios. Descendentes do antigo povo mesopotâmio de Urartu,

instalado no sopé do Monte Ararat há 2500 anos a.C., os armênios viram seu Estado chegar

à extensão máxima sob o governo de Tigranes, o Grande, entre os anos de 95 e 56 a.C., o

que fez dos armênios aliados imprescindíveis do Império Romano, que precisavam deste

povo para conter a ameaça persa que vinha do oriente. A essa altura, os armênios

funcionavam como uma espécie de “tampão”, a última fortaleza ocidental contra os

“bárbaros” orientais328

(SAPSEZIAN, 1997).

É na era cristã, porém, que a história dos armênios ganha novo significado e

importância. Já sem a força de um Estado estável que fora outrora e sempre ameaçados

pelas potências romana, bizantina e persa, os armênios encontraram na sua fé o elo

político, social e cultural que os mantém até hoje ligados, forjando uma identidade comum,

mesmo na Diáspora pós-genocídio329

.

327 Perry Anderson (1989, pp. 361-362), sustentado por argumentos de pesquisadores do Islã, chama a

atenção para as condições geográficas da Anatólia, que se assemelham à região de origem turca, inclusive

para a adaptação dos camelos – principal meio de transporte destes.

328 Por sua localização geográfica, a Armênia foi por vezes assediada por diversos povos que passavam

pelos territórios no Cáucaso e no nordeste da Anatólia a fim de alcançar a o centro da Ásia Menor e a Europa.

Por causa desta posição privilegiada geograficamente e por vezes, cobiçada por diversos povos, Henry

Morgenthau chama a Armênia de “A Bélgica do oriente” (MORGENTHAU, 1918, p. 166). A comparação

com a Bélgica também é feita pelo candidato a presidência dos EUA, Charles E. Hughes, em 1919: “The

atrocities in Belgium, terrible as they were, were but slight as compared with the incredible cruelties and

massacres that took place in unfortunate Armenia” (DADRIAN, 2004, p. 16).

329 É importante percebermos que a trajetória da Igreja Apostólica Armênia – também referenciada como

Igreja Gregoriana – não é um mero episódio na história deste povo. A Igreja é uma forte instituição com um

papel de suma importância para os armênios, tanto durante o genocídio, quanto para articulá-los nos vários

países onde a diáspora armênia se firmou. O romance Os Quarenta Dias de Musa Dagh ilustra a importância

da Igreja Armênia como liderança até mesmo na hora da morte ou de enfrentar o algoz turco que se

precipitava sobre as comunidades armênias da Anatólia (WERFEL, 1995). Sobre a diáspora brasileira, o

trabalho de Roberto Grün (1992) discorre com clareza sobre o papel da Igreja Apostólica Armênia no Brasil

como instituição filantrópica e mutualista para os novos imigrantes que chegavam à colônia. Em outro

trabalho, foi este também o tom que nós demos à história da Igreja: como a sua história é um alicerce da

identidade armênia (LOUREIRO, 2006).

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Os turcos, por sua vez fixados na Anatólia, aos poucos foram conquistando terreno

sob as possessões árabes. A decadência deste no Oriente Médio facilitou vida dos nômades

forasteiros, que conquistaram Bagdá e fundaram um Império Seljúcida já sedentarizado,

aproveitando toda a estrutura jurídica e administrativa deixada pelos árabes (ANDERSON,

1989, pp. 361-362).

Em meados do século XIII, as invasões mongóis fragmentaram a unidade existente

dos Estados turcos, transformando-os em um mosaico de emirados, sem unidade. Deste

cenário heterogêneo, o sultanato osmanli – origem dos Otomanos – surge como força

capaz de dominar as demais instituições e unificá-las em torno de um grande Império

(Ibid., p. 363).

Anderson nos chama a atenção para a convergência de instituições culturais e

religiosas que teriam dotado, segundo ele, o Império Turco-Otomano do poderio que este

teria durante os próximos 500 anos. Para o autor, a racionalidade administrativa islâmica,

herdada pelos turcos, somada ao zelo militar, próprio do espírito ghazi destes330

, teria

propiciado a este Império os contornos peculiares que nenhum Estado absolutista europeu

poderia criar (Idem).

Os turco-otomanos mantinham então uma relação dúbia com os não-islâmicos que

se encontravam sob jugo durante a expansão da dinastia otomana: se por um lado o espírito

ghazi colocava como condição a conversão do “infiel” para que o Império prospere; por

outro lado, a conversão de todos os cristãos – ainda que isso fosse possível – não era viável

do ponto de vista administrativo, uma vez que a fé islâmica prevê a tolerância a não-

muçulmanos desde que estes sejam devidamente tributados pelo Estado. Tal tributação,

330 Segundo Anderson, é “uma fé militante de cruzada muçulmana que rejeitava toda a acomodação com o

infiel, do tipo que viria a definir os Estados constituídos do Antigo Islã” (Ibid., p. 362).

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seja em gêneros alimentícios, metais, animais, ou mesmo em pessoas – devshirme331

– era

vital para a sobrevivência do Império.

Entre os anos de 1839-1876, o Império sofreu uma profunda reorganização – em

turco, tanzimat – em suas estruturas políticas e sociais. O tanzimat colocava fim às

interações paternalistas existentes na estrutura da Porta, tornando através de dois decretos –

sendo o mais importante deles o Rescriptum Imperial332

– o Otomanismo333

a nova política

do Império Turco-Otomano. O Otomanismo englobava todos os habitantes do Império,

sejam muçulmanos ou não, colocando um fim assim na supremacia turco-islâmica que

permeava as instituições da Porta através dos séculos. Desta forma, muitos armênios

ascenderam no aparelho estatal do Império, mas ainda eram tratados diferenciadamente.

Estes, por exemplo, não podiam ocupar cargos nas pastas de relações internacionais e

finanças do Império (ASTOURIAN, 2004, p. 5).

A Comunidade Armênia – “Ermeni Millet”

Para organizar as minorias foi criado o sistema denominado de millet. O termo

significa “comunidade religiosa” e nada mais é do que uma instituição que agrupa uma

mesma coletividade que vivia sob o controle otomano. O Ermeni Millet – comunidade

331 O devshirme – criado na década de 1380 – constituía no recrutamento de crianças oriundas de terras

cristãs, enviadas para serem educadas sob a égide do islã. Essas crianças, uma vez formadas, constituíam um

corpo de escravos que eram empregados na burocracia do Império Turco-Otomano e no exército

(ANDERSON, 1987, p. 366). Ainda segundo Anderson, tal status de escravo não continua um sentido

pejorativo, uma vez que a falta da propriedade privada da terra no Império não denotava um vínculo do

escravo a um latifúndio, como acontecia na Europa. No Império Turco-Otomano, ser escravo via devshirme

era, antes de tudo, um sinal de proximidade com o poder do Império (Ibid., pp. 365-367).

332 Em turco, Hatt-i Hümayun.

333 Os ideais do Otomanismo, segundo Yves Ternon (1997, p. 164) são: “Rétablir en Turquie la liberté et la

justice, et soumettre la nouvelle génération à um système d’éducation et d’instruction solide qui puísse être

em rapport avec les libertes modernes et lê pouvoir constitucionnel dont elle sera dotée... Établir entre lês

différents peuples et races de l’Empire une entente qui assurera à tous, sans distinction, la pleine jouissance

de leurs droits, reconnus par les hatt-i impériaux [cf. nota anterior] et conserves par les traités

internationaux...” [grifos nossos]. Percebamos que o discurso aqui não segrega as minorias otomanas, mas

pelo contrário, agrega-as em prol de um Império dotado das liberdades constitucionais modernas das quais

todos possam gozar.

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armênia – recebeu das autoridades turcas em 1461 a nomeação de um patriarca armênio –

ou catholicos –, com sede na cidade de Constantinopla, a fim de balancear a grande

influência do millet grego e de seu patriarca no Império334

. Yves Ternon (1996, p. 33) nos

chama a atenção para a peculiaridade que havia nesta prerrogativa do sultanato em nomear

o chefe do millet: no limite, a Sublime Porta escolhia àquele que chefiaria a Igreja Armênia

dentro de suas fronteiras. Ainda segundo o autor, embora pareça concisa a formação de

agrupamentos étnico-religiosos desta estirpe, eles podem por vezes esconder nuances e

diferenças. No caso dos armênios, o único millet existente reunia sob sua esfera de

influência, armênios apostólicos – gregorianos –, católicos e protestantes, o que gerava

desconforto e desgaste dentro da própria coletividade (Ibid., pp. 35-36).

Tal ação rotulava como iguais os armênios de diferentes religiões, o que causava

atritos dentro da coletividade. Por volta das décadas de 1820 a 1850, as minorias das

minorias armênias – ou seja, católicos e protestantes – conseguem junto às Potências

ocidentais a solicitação para que o Sultão outorgasse a tais segmentos, o status de

comunidades religiosas autônomas335

. Entretanto, os armênios ainda eram vistos

vulgarmente como um único millet e este teria o direito de chamar uma assembleia

constituinte para criar uma Carta que regesse os cidadãos que estavam sob sua jurisdição.

Em 1863, após anos de discussão entre posições políticas distintas no millet, a Porta

ratifica um documento chamado de “Regulamento da Nação Armênia” contemplando

algumas aspirações dos cristãos, que alcunharam o texto de “Constituição Nacional

Armênia” (Ibid., p. 52). O Regulamento permitia aos armênios gozarem de liberdades

334 Atualmente, a Igreja Armênia conta com quatro patriarcados: O mais importante e central, na cidade de

Etchmiadzin, na Armênia, onde o Catholicos Karekin II ocupa o trono gregoriano; o patriarcado da Grande

Casa da Cilícia, sediado na cidade de Antelias, no Líbano; o patriarcado de Jerusalém; e o patriarcado de

Constantinopla, hoje Istambul. Estes dois últimos estão subordinados administrativamente à Sé, em

Etchmiadzin (SAPSEZIAN, 1997, pp. 205-208).

335 Assim, podemos observar aqui um exemplo claro de como era incisiva a influência dos países europeus

na política interna otomana (TERNON, 1997, pp. 48-50), prática que causaria inúmeros desgastes entre todas

as partes envolvidas, poucos anos mais tarde

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religiosas e culturais ímpares entre as minorias otomanas no momento. Tal concessão foi

propagandeada pela Porta como um voto de confiança naqueles que eram chamados pelas

autoridades turco-otomanas de millet leal336. Em suma, a Constituição Nacional Armênia

e a institucionalização do millet armênio são partes de um metafísico “pacto de domínio”

feito entre o povo armênio e o Estado turco-otomano, a fim de garantir a coesão interna do

Império337

. Entretanto, a relativa autonomia política e a vigência de uma compilação de

leis que garantiam aos armênios alguns direitos não eram suficientes para que elas

atingissem com eficácia todas as partes do Império. A mera presença de uma Constituição

não garante por si só a integridade de uma nação (OHANIAN, 2004, p. 6).

Entrementes, a constituição do Ermeni Millet se mostrou um importante passo

rumo à configuração ideal para a ocorrência genocida. O sociólogo armênio-americano

Vahakn Dadrian chama a atenção em um de seus textos para a “síndrome da obediência”.

Segundo ele, armênios – e posteriormente judeus – aceitavam a submissão a uma força

política e militar exógena e estranha, como estratégia de sobrevivência dentro de uma

instituição na qual eles não teriam força política expressiva. O perigo de tal síndrome,

segundo Dadrian, era o grupo dominante ter a percepção de que a submissão nada mais era

que um ardil pela manutenção da minoria indesejada naquele corpo político e

administrativo – no nosso caso, o Estado Otomano (DADRIAN, 2005, p. 90). Em Marx

336 Interessante perceber que a Turquia atual, em seus documentos revisionistas acerca do Genocídio,

reforça o status de millet-i sadıka – nação leal – como forma de argumentar que os armênios eram estimados

pela Porta em 1915. A intenção com este discurso é desqualificar as acusações contra o Império Turco-

Otomano, que teria agido deliberadamente contra os armênios durante o século XIX e XX. Para uma

argumentação revisionista nesta linha, ver ÖZDEMİR, 2007. Ainda na obra citada, podemos observar que a

sua publicação foi feita por diretórios ligados ao Ministério da Defesa da Turquia, revelando assim como a

Questão Armênia é tida como estrategicamente vital para a soberania nacional turca ainda hoje.

337 Em Para a Questão Judaica, o jovem Karl Marx (2009, p. 25) retira do judeu alemão do século XIX a

sua particularidade religiosa a fim de compreender melhor o papel deste povo em sua esfera política, sem o

véu de minoria religiosa que o caracteriza tão fortemente. Devemos aqui fazer o mesmo exercício com os

armênios organizados no millet. Embora sejam caracterizados justamente pela diferença religiosa com os

turcos, não podemos nos enganar que esta seja a diferença essencial entre os dois grupos. É mais do que isso.

O Ermeni Millet torna os armênios atores políticos com larga importância dentro do Império Turco-Otomano

e devem ser analisados como tais. A partir do momento que os armênios recebem este status político e social

pela Porta, eles são reconhecidos por esta como um povo com ativo poder social e político não só entre os

seus, mas no conjunto do Império.

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(2009, p. 40) há a proposição que a concessão de direitos para as minorias residentes em

uma nação “estrangeira”, no limite, gera privilégios para estas que os próprios autóctones

não possuem. Assim, a diferença de status das diversas unidades étnicas e políticas dentro

de um mesmo espaço nacional pode vir a se tornar um poderoso estopim para conflitos.

Contudo, não podemos enxergar o millet como uma instituição verticalizada,

imposta aos armênios pelos turco-otomanos. Era mais do que isso. O millet era uma

aspiração nacionalista armênia que ganhava corpo após anos de embates políticos. O

nascimento do nacionalismo armênio, como foi de praxe nas demais Questões Nacionais,

não foi fomentado puro e simplesmente por uma retórica de uma nação livre. Ao contrário,

o nacionalismo estava sempre em simbiose com reformas sociais e políticas pretendidas

pelos membros do grupo em tela338

(HOBSBAWM, 2008, p. 148). Segundo Eric

Hobsbawm (Ibid., p. 144), em situações de ameaças externas, uma determinada

coletividade de reúne em torno de idéias como “família”, “ordem”, “tradição”, “religião”,

“moralidade”, etc. sob um mote nacionalista. Evidentemente, tais ameaças externas servem

para ambos os lados – armênios e turcos - organizarem em torno de ideais nacionalistas. E,

quanto mais um dos grupos se organiza, mais o outro se sente ameaçado, gerando uma

crescente radicalização dos movimentos.

Posto às claras como funcionava a instituição do millet e a condição dos povos não-

muçulmanos dentro do Império Turco-Otomano, mostra-se agora essencial para a presente

análise discorrer sobre o sistema fundiário vigente dentro das fronteiras otomanas, entre os

séculos XVI e XX.

338 Para os armênios, o exemplo da Federação Revolucionária Armênia – FRA – nos parece muito útil. A

FRA, fundada em 1890 (KERIMIAN, 1998, p. 253) era – e ainda é – a principal instituição nacionalista

armênia e possui orientação socialista, afiliada inclusive com a Internacional Socialista. Ou seja, a principal

voz do nacionalismo armênio é um partido socialista que luta também por reformas sociais.

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Sistema fundiário do Império Turco-Otomano e a inserção dos armênios na

economia do Império

Anderson afirma que virtualmente, não havia propriedade privada de terra nos

limites do Império, sendo todos os latifúndios - dos Bálcãs à Anatólia - pertencentes ao

Sultão. Tal prática não permitia a criação de uma nobreza fundiária. Esta era de caráter

essencialmente administrativa onde a “honra e riqueza confundiam-se efetivamente com o

Estado e a posição social derivava simplesmente dos postos ocupados em seu seio”

(ANDERSON, 1989, p. 365).

Quais seriam as consequências da institucionalização de tal prática otomana?

Podemos dividi-las em três partes. Primo, nos Bálcãs, houve uma mudança de status do

campesinato e dos senhores de terra. Os camponeses da região, antes subjugados pelos

latifundiários cristãos, viam-se mais livres que seus congêneres europeus, graças à

dominação otomana, que extinguiu o regime de propriedade de terra vigente a fim de

implantar a instituição fundiária supracitada. Alguns membros da nobreza étnica balcânica

– bósnios, principalmente – foram absorvidos pelo Islã. Concomitantemente, a eliminação

da aristocracia étnica da região prestou um desserviço à “dinâmica endógena”, uma vez

que o modus operandi otomano provou uma “efetiva regressão às instituições clânicas e às

tradições particularistas entre a população rural dos Bálcãs”. Ou seja, foi um retorno ao

período pré-feudal, com a interrupção da evolução autóctone rumo a uma ordem feudal

mais avançada. Uma “longa estagnação em toda a evolução histórica da península

balcânica” (Ibid., pp. 371-373).

Secundo, as províncias da Anatólia, Síria e Egito viviam seu apogeu no século XVI,

beneficiando-se pelo deslocamento do eixo político, econômico e administrativo do

Império para os Bálcãs. A unidade otomana no Oriente Médio criara um cenário de paz,

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ideal para a prosperidade dos comércios de especiarias que cruzava a região. A população

rural da Anatólia aumentou dois quintos ao longo do século e assistiu a um surto de

crescimento urbano, tendo Istambul cerca de 400 mil habitantes. Entretanto, este

crescimento econômico teria limites bem definidos: o abastecimento de alimentos não era

suficiente para suprir o excedente populacional que surgiu na região durante o século XVI,

fruto da sedentarização de povos nômades (Ibid., pp. 373-375). Além disto, o aumento dos

gastos com exército para a conquista e controle das províncias supracitadas foi subsidiado

pelas populações rurais339 otomanas até o ponto de se tornar insustentável, forçando a

Porta a abandonar o sistema timar340 (PAMUK, 2001, p. 83).

Tertio, havia uma resistência do sultanato à industrialização e urbanização. As

cidades do Império Otomano não possuíam autonomia e sequer existiam juridicamente, o

que não permitia o desenvolvimento de uma burguesia autóctone na região. Eram os

gregos, judeus e armênios quem faziam as vezes de burguesia comercial, executando o

movimento de entrada e saída de mercadorias e capital. Aos turcos eram destinadas as

pequenas atividades citadinas de artesanato e lojistas (ANDERSON, 1989, p. 376).

Segundo dados do relatório do Comitê Americano, instaurado para averiguar os

morticínios no Império Turco-otomano em 1915, os armênios dominavam 90% do

comércio no interior do Império, no começo do século XX (TOYNBEE, 2003, p. 111) 341

.

Façamos aqui um destaque a este elemento que é o armênio burguês, pois

entendemos tal configuração endógena das etnias minoritárias e suas atribuições na

339 Segundo Pamuk, de 30 a 40% dos gastos militares oriundos deste processo foram cobertos pelas áreas

rurais do Império (2001, p. 83).

340 Taxas agrícolas para manter a cavalaria otomana em tempos de guerra (Idem).

341 Tal estatística é significativa, embora Arnold J. Toynbee não traga uma explicação pormenorizada acerca

da coleta deste dado. Portanto, citamo-la aqui com esta ressalva. Mas de fato, a vocação armênia para o

comércio estava espalhada pelo mundo. Astourian cita relatos de viajantes alemães para ilustrar tal

caracterização: “But why, then, are the Armenians so hated? The main reason is the commercial talent of the

Armenian race. The Armenian are born merchants. Their skills and craftiness in all trades are superior”

(ASTOURIAN, 2004, p. 9).

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economia otomana como sintomática do fenômeno genocida que aconteceria séculos mais

tarde.

A perpetuação deste status quo de uma burguesia comercial armênio-cristã, ainda

que incipiente, coexistindo com uma massa de turco-muçulmanos relegados a atividades

secundárias na sociedade e economia do Império, a longo prazo, criou uma radicalização

étnico-nacionalista – análoga à posição judaica na Europa ocidental – otimizada com a

independência dos Bálcãs durante o século XIX. Arnold J. Toynbee frisa incessantemente

em seu livro, este aspecto burguês do armênio como gerador de sentimentos de ódio e

inveja entre a população turca (Ibid., pp. 27; 31; 34; 38-39; 69; 109 e 111). Roberto Grün

indica que os armênios foram conduzidos a “nichos de especialização funcionais no

Império”, tendo em vista a sua posição minoritária e subalterna (GRÜN, 1992, p. 15).

Citando R. Mirak, o autor encaminha a argumentação:

Nesta sociedade muçulmana turca, alguns armênios assumiram o

papel de alguma forma parecido com o que os judeus ocupavam na

Europa predominantemente cristã: eles transformaram-se em

banqueiros, artesãos habilidosos, burocratas e homens de negócio,

alguns mesmo chegando ao papel de conselheiros dos sultões

(Idem).

Além destes, o embaixador dos EUA no Império Turco-Otomano Henry

Morgenthau na época do Genocídio também destaca o ímpeto burguês de gregos e,

principalmente, armênios – mais civilizados e industriais que os turcos –, força motriz do

Império:

What is definitely known about the Armenians, however, is that for

ages they have constituted the most civilized and most industrious

race in the eastern section of the Ottoman Empire. (…) They are

[Greeks and Armenians] so superior to the Turkys intellectually

and morally that much of the business and industry had passed into

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their hands. With the Greeks, the Armenians constitute the

economic strength of the empire (MORGENTHAU, 1918, p. 166).

Entretanto, segundo Stephan Astourian (2004, p. 9), cerca de 70% dos armênios

que viviam no Império Turco-Otomano eram camponeses, bem distantes dos capitais

oriundos do comércio de longa distância342

.

Esta imagem clássica dos armênios como industriais e mercadores par excellence é

tributária do lócus que estes ocupavam principalmente em Constantinopla – capital do

Império Turco-Otomano – onde de fato eles operavam nestes nichos sócio-profissonais

(BALAKIAN, 2003, p. 212). Assim como no Caso Judeu durante o III Reich, uma minoria

de armênios burgueses – comerciantes ou banqueiros – definiu o status de toda a etnia.

Dadrian (2004, p. 36) cita em um dos seus trabalhos uma comparação de um oficial nazista

do alto escalão hitlerista que chama os armênios de “judeus do oriente”, por serem ambos

exímios negociantes.

Todavia, a caracterização dos armênios como componentes de uma burguesia não

era apenas uma definição feita pelos ocidentais ou pelos próprios armênios. Em cidades

comerciais do Império – como Adana e Mersin –, os turcos rotulavam os armênios como

comerciantes e mercadores, ainda que estes últimos fossem majoritariamente camponeses

nestas localidades (BALAKIAN, 2003, p. 148). Durante a Guerra dos Bálcãs, nos

primeiros anos da década de 1910, houve um boicote as lojas e estabelecimentos de gregos

e armênios, tidos como causadores do mal que assolava o Império (Ibid., p. 165). Ou seja,

interessava aos turcos homogeneizar e demonizar as vítimas, rotulando-os e definindo-os

como alvos. O estilo de vida dos armênios efetivamente membros da burguesia de Adana,

342

Vahakn Dadrian (2004, p. 18) ratifica essa estatística: “Nevertheless, most of the Armenian and Jewish

populations were neither affluent nor particularly prosperous. For instance, seventy to eighty percent of the

Armenians were apolitical peasants engaged in agricultural work in their ancestral territories”.

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por exemplo, era considerado provocativo, uma vez que estes nunca se furtaram de

continuar a professar sua cultura, fé e nacionalismo (Ibid., p. 148).

Voltando à explanação inicial: Com o fim da expansão das fronteiras otomanas

rumo à Europa, no século XVII, a Porta perdeu força (ANDERSON, 1989, p. 377). Assim

como aconteceu com Roma, no período da pax romana no século I a. C., o Império Turco-

Otomano viu-se frente a um dilema: sem meios de fazer frente às tropas europeias que

reconquistavam as possessões turcas no leste do Velho Continente, os otomanos também

não poderiam manter as suas instituições sem o botim das conquistas. Segundo Anderson

(Ibid., p. 378), as terras conquistadas e as riquezas confiscadas pelos exércitos da Porta

eram essenciais para manter a sociedade de privilégios do Império. Como não havia a

propriedade privada de terras, a concessão do uso destas, bem como de cargos

administrativos, eram as principais distinções aristocráticas turco-otomanas. Destarte,

torna-se compreensível o efeito devastador que o estancamento das fronteiras e da

influência otomana teve sobre a sociedade.

Ademais, na esfera econômica, Şevket Pamuk chama a atenção para a grande onda

inflacionária que tomou conta do Império. Segundo o autor turco, entre 1469 e 1914, os

preços de produtos cotidianos e essenciais – principalmente gêneros alimentícios – subiram

cerca de 300 vezes, em média 1,3% ao ano (PAMUK, 2001, p. 73; 2004, p. 454). A partir

de finais do século XV, o dinheiro passou a ser usado não só no comércio exterior, mas

também em transações urbanas e rurais dentro das fronteiras otomanas, de forma a tornar a

alta dos preços sensíveis a vários setores da sociedade otomana (PAMUK, 2001, p. 82;

2004, p. 461).

No século XIX o Império Turco-Otomano assistiu ao seu declínio. O equilíbrio de

poder das Potências, mediado pela chamada Santa Aliança, gerava uma orquestração pela

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paz na primeira década do século XIX343

. A evolução do capital na Europa não poderia

tolerar a guerra, que freava a expansão deste (POLANYI, 2000, pp.17-21). Com isso, as

fronteiras se tornaram estáticas e as possessões otomanas nos Bálcãs mostraram graves

rachaduras. A paralisia administrativa da Porta no final do século XVIII permitiu o

crescimento dos poderes agrários locais, criando um processo não consumado de

“feudalização” na Anatólia e de explosões nacionalistas na península balcânica. As

tentativas de reformas liberais por volta do ano de 1820, patrocinadas pelo ocidente, foram

fadadas ao fracasso (ANDERSON, 1989, pp. 387-388).

Outro Império, o Russo, emergia como protagonista no teatro das nações mundiais.

Foi justamente no nicho de poder deixado pelos otomanos, desde o século XVII, em

regiões balcânicas, onde os russos se instalaram e trouxeram para perto de si a aristocracia

autóctone, criando uma zona de influência no antigo centro nevrálgico da Porta344

(Ibid., p.

383). A disputa entre as duas forças se tornou belicosa em 1877, não obstante o esforço

alemão para evitar o conflito. Uma vez instalado, a Grã-Bretanha e o Império Alemão

ficaram ao lado dos turcos, contra o Império Russo, como forma de manter a todo custo o

equilíbrio de poder que se encontrava sob ameaça. Entretanto, no Congresso de Berlim,

firmado entre as partes após o término do litígio, as possessões otomanas na Europa que

anos antes eram vistas como partes indissociáveis da Porta, agora também em nome da

manutenção da estabilidade de forças, se encontravam fragmentadas (POLANYI, 2000, pp.

22-23). Para agravar a complexa situação da região, o Império Habsburgo que há muito

havia se lançado em uma campanha expansionista sobre os Bálcãs, viu-se dilacerado em

1890 pelas várias etnias que compõem a região. A derrocada otomana acirrou os ânimos e

343 “Foi uma era de paz sem paralelo no mundo ocidental, que gerou uma era de guerras mundiais sem

paralelo” (HOBSBAWM, 2003, p. 24).

344 Eric Hobsbawm (Ibid., p. 393) ressalta a importância que teve o fator religioso no apoio do Império

Russo, cristão, aos também cristãos balcânicos, para a fragmentação da região. O autor inglês destaca ainda a

influência da Áustria e da Hungria na região, trazendo para as suas esferas de influência vários países da

região, agora autônomos (Ibid., p. 432).

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alterou ainda mais o fiel da balança naquele canto de mundo que seria o estopim do barril

de pólvora na Grande Guerra, em 1914 (HOBSBAWM, 2003, pp. 445-446).

Para concluir

De protagonista no teatro das nações mundiais à marionete dos interesses das

Potências europeias. Eis a trajetória otomana até a segunda metade do século XIX. Porém,

essa nação em decadência, cujo “feudalismo não presidiu à formação (...); o absolutismo

não participou de seu declínio” (ANDERSON, 1989, p. 390) ainda daria lampejos para

provar que estava viva. Os próprios conflitos com o Império Russo são exemplos disto. E é

neste contexto que surge a figura do Sultão Abdul-Hamid II, em 1878, como o seu

“despotismo pessoal frágil, porém brutal”, repressor radical das nacionalidades e entusiasta

do centralismo otomano (Idem).

É neste contexto, enfim, que devemos situar o Genocídio Armênio: um ato

sistematicamente pensado pelas autoridades otomanas para salvar o Império de sua

derrocada, encoberto pela Grande Guerra que assolava o mundo. 1914 e a entrada na

Guerra representam somente a ponta do iceberg da crise cujo governo turco estava

instalado (HOBSBAWM, 2003, p. 384). Destarte, 1915 foi o espasmo imperial que

buscaria reanimar o cadáver otomano não-sepultado, mesmo que fosse à custa de 1,5

milhão de armênios.

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Identidade Nacional e Questão do Negro em Oliveira Vianna

Iara Andrade*

RESUMO: O presente artigo examina algumas propostas para a construção da identidade

nacional, desenvolvidas pelo intelectual Oliveira Vianna. Os livros analisados neste

trabalho foram “Raça e Assimilação” e a “Evolução do Povo Brasileiro”, nos quais,

Vianna desenvolve a idéia de “raça” como fator de “atraso” ou “prosperidade nacional”.

PALAVRAS-CHAVE: Identidade; Oliveira Vianna; Identidade nacional.

ABSTRACT: This article examines some proposals for the national identity building,

developed by the intellectual Oliveira Vianna. The books examined were “Race and

Assimilatation” and the “Evolution The Brazilian People”, in which Oliveira Vianna

develops the idea of “race” as a factor of “delay” or “national prosperity”.

KEYWORDS: Identity; Oliveira Vianna; National identity.

INTRODUÇÃO

O presente artigo tem como objeto de estudo os discursos de Oliveira Vianna, no

qual se busca enfatizar suas propostas para a formação da identidade nacional. Em meio a

tantos mitos, discursos e teorias que tentaram construir a identidade da nação, Oliveira

Vianna desenvolve sua teoria sobre a “diferenciação das raças” alegando que “[...] uma

* Mestranda em História – USS/Vassouras

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nação não pode ser indiferente nem a qualidade, nem à quantidade de elementos raciais

que entrem na sua composição”345

.

Tentar impor coesão a uma sociedade tão heterogênea como a brasileira, buscando

configurar a identidade nacional, era impossível. Porém com esse intuito dispuseram-se

homens como Silvio Romero, Nina Rodrigues, e Euclides Cunha, entre outros.

A construção da identidade nacional, tão almejada pela Geração de 1870346

, passou

a ser vista como algo a ser atingido senão no presente, pelo menos no futuro. Isso porque

em pleno século XIX e até mesmo para alguns autores do século XX, entre eles, Oliveira

Vianna, o Brasil era composto por “raças” consideradas inferiores, e futuramente com a

miscigenação, a sociedade se branquearia. Com o objetivo de dar uma visão mais

científica, validando tais suposições, muitos intelectuais desenvolveram teorias sobre a

identidade nacional, tendo como um de seus fatores determinantes a “raça”.

A discussão a que se propõe este artigo está embasada na História Social, inserida

na linha de pesquisa de História Política. Tendo como objeto de estudo as obras de Oliveira

Vianna, o que se pretende é analisar as relações de poder no âmbito ideológico pela criação

de teorias de diferenciação racial, que justificariam a formação da identidade nacional, e

estigmatizaria a figura do negro pela concepção de inferioridade racial.

Discutindo-se a Identidade Nacional

Identidade é um substantivo polissêmico e ainda surgem na atualidade diversas

indagações sobre o que vem a ser identidade nacional e os interesses que levaram à sua

criação.

345

VIANNA, Oliveira. Raça e assimilação. 4. ed. Rio de Janeiro: José Olimpio, 1959. p.39. 346

A Geração de 1870 preocupou-se, fundamentalmente, com a formulação de projetos capazes de tornar o

Brasil um país moderno, possuia vários representantes entre eles: Nina Rodrigues, Euclides Cunha e Sílvio

Romero.

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Apesar da dificuldade em se conceituar o termo Identidade Nacional, Renato Ortiz,

desenvolve uma definição que apresenta certa clareza quanto ao significado. Ortiz afirma

que “Toda identidade se define em relação a algo que lhe é exterior, ela é uma diferença

[...] e possui uma dimensão que é interna, [...] é necessário mostrar em que nos

identificamos”347

.

Muitas foram as propostas que buscaram homogeneizar as diferenças buscando

formar uma proposta de identidade para nação, alguns países advogaram que a língua seria

este fator de identificação, outros a etnia, outros o território e em alguns países até mesmo

o caráter da população. “[...] Sérgio Buarque de Holanda buscou as raízes do brasileiro na

cordialidade, Paulo Parado na tristeza, Cassiano Ricardo na bondade; outros escritores

procuraram encontrar a brasilidade em eventos sociais como o carnaval ou ainda na

índole malandra de ser nacional”348

.

Este é um dos problemas de se conceituar Identidade Nacional de modo fechado, a

identidade nacional é uma comunidade imaginada, e por isso dinâmica, se modificando no

momento e no espaço. Se no Brasil do final do século XIX uma das propostas de

identidade nacional estava baseada na “raça” e no meio, na década de 20 do século XX,

irão surgir outras propostas que entrarão em conflito com as concepções formuladas

anteriormente.

Retornando, porém às propostas de identidade nacional desenvolvidas no final do

século XIX, visto que serão elas que influenciarão Oliveira Vianna, e aplicando o conceito

de Renato Ortiz baseado nas diferenças e semelhanças, tentaremos identificar quais foram

os fatores escolhidos pela Geração de 1870 como determinantes para a formação de uma

consciência nacional. Segundo Renato Ortiz, a Geração de 1870 identificou dois fatores

que diferenciaria os brasileiros dos demais povos: a “raça” e o meio, e tais fatores eram

347

ORTIZ, op.cit. p.8-9. 348

ORTIZ, op.cit. p.137.

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visíveis no Brasil. Porém, se as diferenças eram claras, as semelhanças não. É neste

momento que surge um problema fundamental para o século XIX: Como tratar a

identidade nacional diante da disparidade racial? A mestiçagem foi vista como solução

para este problema.

Oliveira Vianna, posteriormente, também desenvolverá seus estudos sobre a

mestiçagem brasileira. Dissertando sobre o termo melting-pot (interfusão das “raças”)

elabora idéias sobre a identidade e desenvolvimento nacional.

O termo Identidade Nacional apesar de gerar várias divergências entre estudiosos,

oferece um caminho para entender aquilo que Ortiz afirmou estar em primeiro plano: os

agentes que constroem as interpretações sobre a realidade. São eles; os intelectuais, que

desempenharão o papel de mediadores simbólicos entre o nacional e o popular. Alguns

como Oliveira Vianna terão relação direta com o Estado, defendendo sua atuação de forma

autoritária, outros como Gilberto Freyre um relação indireta exprimindo “ [...] a nostalgia

de um Estado que se esgotou historicamente”.349

“[...] a procura de uma ‘identidade brasileira’ ou de uma ‘memória

brasileira’ que seja em sua essência verdadeira é na realidade um

falso problema. A questão que se coloca não é de se saber se a

identidade ou memória nacional apreendem ou não os ‘verdadeiros’

valores brasileiros. A pergunta fundamental seria: quem é o artífice

desta identidade e desta memória que se querem nacionais? A que

grupos sociais eles se vinculam e a que interesses elas servem?350

O contexto histórico 1920 a 1932 – O intelectual Oliveira Vianna

Foi durante o final do século XIX e a primeira metade do século XX que alguns

estudiosos brasileiros elaboraram várias teorias nacionalistas com intuito de criar uma

349

ORTIZ, op. cit, p. 139. 350

ORTIZ, op. cit, p. 139.

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identidade para a nação, inventaram-se então, mitos unificadores, romantizaram a história

brasileira e criaram-se teorias científicas. Uma dessas teorias que muito interessou

Oliveira Vianna retoma a idéia do século XIX de identificar a “raça” como fator

degenerativo nacional, o que contribuiu para formação de um amparo ideológico que

justificou a dominação política sobre certa parte da população brasileira que foi

considerada inferior.

O recorte de tempo, mais específico que vai de 1920 a 1932 se deve ao fato de ser

nesse período, que Oliveira Vianna escreveu várias obras sobre o Brasil, focando a questão

racial, entre elas podemos citar Evolução do Povo Brasileiro (1923), e Raça e Assimilação

(1932), tais estudos continham discursos sobre a diferenciação das “raças”, onde Vianna

identificava a “raça” como fator de atraso nacional e defendia a eugenia.

A década de 20 fora o período dos manifestos, segundo Bresciani, [...] se vivia o

momento propicio para propor e executar modificações radicais na sociedade351

, os

conflitos ideológicos, expressos nos projetos políticos até então se intensificavam.

Segundo Chartier “As lutas de representações têm tanta importância como as lutas

econômicas para compreender os mecanismos pelos quais um grupo impõe, ou tenta

impor, a sua concepção do mundo social, os valores que são os seus, e o seu domínio” 352

.

Os projetos formulados por Vianna entravam em conflito com novas concepções

que surgiam na década de 20 e 30. Bresciani analisando a proposta ideológica de Oliveira

Vianna sobre a identidade nacional afirma:

[...] (Oliveira Vianna) em seu manifesto político de 1922, O

idealismo na evolução política do Império e da República,

desenvolve uma concepção voluntarista de integração nacional na

proposta de ser mediante conhecimento do povo, sua estrutura, sua

351

BRESCIANI, op.cit. p. 155. 352

CHARTIER, Roger, A História Cultural entre Práticas e Representações .2ed. Rio de Janeiro: Difel,

2002. p.17.

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economia intima e sua psique que se projetaria o modelo político

adequado a forjar essa unidade pela ação centralizada no estado

autoritário353

.

Oliveira Vianna tinha uma proposta para o desenvolvimento nacional e político

baseada nos estudos das “raças” e na ação do Estado forte sobre esse povo mestiço,

população esta, que segundo Vianna, seria incapaz de se articular se não houvesse um

grupo de intelectuais os governando, sobre isso Oliveira Vianna afirma: A realização de

um grande ideal nunca é obra coletiva da massa, mas sim de uma elite, de um grupo, de

uma classe, que com ele se identifica, que por ele peleja354

.

Tal concepção de cunho autoritário já era criticada, na década de 20 por homens

como Sérgio Buarque de Holanda; e Gilberto Freyre posteriormente já apresentava outras

propostas. Segundo Bresciani [...] há também nesses anos de 1920 uma disputa declarada

pela primazia de determinadas partes do Brasil no que diz respeito à força formadora da

“identidade nacional”355

. Gilberto Freyre, no Manifesto regionalista de 1926, reivindicava

esta posição ao Nordeste, se opondo à Vianna que reivindicava a posição aos habitantes do

centro-sul, segundo Bresciani a reivindicação pela hegemonia Nacional, através do padrão

cultural, expressava também um conteúdo político que asseguraria os interesses

administrativos de cada região.

Outro conflito entre tais autores se deve ao fato de Freyre postular a integração

nacional mantendo a diferença regional. Já Vianna apesar de reconhecer a diversidade

regional, propunha apagar as diferenças para se atingir a unidade, que se daria através da

mestiçagem com “raças” pré-selecionadas. Situação esta que ocorria no Sudeste com a

imigração e que era visto por Freyre como mau cosmopolitismo e falso modernismo.

353

BRESCIANI, op.cit. p.45. 354

PÉCAUT, Daniel. Os intelectuais e a política no Brasil: - entre o povo e a nação. São Paulo: Ática,

1990. p. 29 355

BRESCIANI, op.cit. p.45.

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Devido a sua atuação política e seus estudos na área de ciência social, Oliveira

Vianna foi muito criticado. Sérgio Buarque de Holanda, por exemplo, rotulou os estudos

de Vianna como “um retrocesso do ponto de vista acadêmico”, e não hesita em relacionar

as idéias do consultor no Ministério do trabalho (cargo assumido por Vianna, durante o

governo de Vargas) com a “doutrinação dos fascismos”356

.

Segundo Bresciani, Oliveira Vianna é mantido no rol dos malditos pelo mundo

acadêmico sendo consequentemente rejeitado pelos historiadores brasileiros.

Muito lido nas décadas de 1920 e 1930, Oliveira Vianna sofreu

oposição cerrada de juristas liberais, como Waldemar Ferreira,

ainda na década de 1930 e caiu em desgraça nos anos de 1940, para

não mais se recuperar das críticas de intelectuais importantes, como

o historiador Sérgio Buarque de Holanda, e já em meados dos anos

de 1960, de Antonio Candido357

.

Apesar de não concordar com várias de suas afirmações – a teoria da diferenciação

das “raças” é uma delas -, descartar toda a obra de Vianna, seria lançar fora importantes e

inteligentes análises da direita conservadora que seria de grande valia ser questionada.

Embora seja bastante combatido, Oliveira Vianna também contribui com vários estudos

que posteriormente foram reconhecidos por alguns historiadores entre eles Caio Prado

Júnior.

Sua proposta de revisar a história do Brasil, na certeza de que os

problemas do presente encontravam-se em vícios da origem, foi

compartilhada por vários intelectuais seus contemporâneos, autores

que como ele, se propuseram a reapresentar esse percurso de

quatrocentos anos. Constituem trabalhos de interpretação

histórica[...] Caio Prado Júnior [...] reconhece em Oliveira Vianna,

a despeito das “por vezes adulterações grosseiras dos fatos” ter

sido, o “primeiro, e o único até agora (1933), a tentar uma análise

356

BRESCIANI, op.cit. p.27. 357

BRESCIANI, op.cit. p.21.

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sistemática e séria de nossa constituição econômica e social do

passado” 358

Os discursos de Oliveira Vianna

Vianna buscou explicar a evolução do povo brasileiro, tendo como parâmetros o

determinismo biológico e mesológico. A estrutura social de um povo seria influenciada

pela geografia, pelo clima e pelos grupos étnicos que nesse meio passaram a viver e se

miscigenar. A influência recíproca entre meio e “raça” gerariam as características do povo

brasileiro e moldariam a sociedade.

Alegava que as “raças” humanas se encontrariam em estágios diferentes na escala

evolutiva, deduziu que as “raças” mais evoluídas biologicamente também seriam as mais

evoluídas em relação à cultura.

Em seus estudos desenvolve a idéia da superioridade intelectual ariana. Segundo

Vianna:

[...] o negro puro revela na sua generalidade, uma menor

fecundidade do que as “raças” arianas ou semitas, com que ele tem

estado em contato. Para os tipos de classe F de Galton, ou para os

supernormais, como diz a tecnologia psicométrica contemporânea,

o negro, com efeito, não me parece poder competir com as “raças”

brancas ou amarelas359

.

Segundo o historiador, a “raça” de um indivíduo poderia influir dentro de um

coeficiente de probabilidades muito alto sobre as suas predisposições patológicas,

temperamento e inteligência. Muller então descreve o temperamento do negro.

358

Apud BRESCIANI, op.cit. p.26-27. 359

VIANNA, Oliveira. Raça e assimilação. 4. ed. Rio de Janeiro: José Olimpio, 1959. p.195.

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[...] o Afer em seus vários tipos tem uma predisposição particular

para gerar temperamentos ciclotímicos. [...], o negro em todas as

cousas é sensitivo, em que a fantasia o domina. [...] Da alegria

mais intensa e mais insensata ele passa ao mais amargo dos

desesperos360

.

Indo um pouco mais longe, Vianna conclui que o tipo constitucional de um

indivíduo não só determina seu temperamento, mas também o tipo de inteligência, ou seja,

a “raça” seria um fator que influenciaria numa probabilidade maior ou menor de indivíduos

com níveis de inteligência superiores.

Compreende-se agora porque uma nação não pode ser indiferente

nem à qualidade, nem à quantidade de elementos raciais que

entrem na sua composição. Trazendo para a formação do plasma

racial os seus tipos de constituição mais freqüentes, estes

elementos raciais determinam os tipos de temperamento e de

inteligência que devem preponderar na massa social361

.

Observa-se que para o intelectual, uma seleção dos tipos raciais se faria necessário

no Brasil, visto que, o temperamento e a inteligência do grupo humano influenciariam no

próprio futuro da nação. Um grupo de indivíduos com temperamento indeciso levaria o

país ao clima de instabilidade, ou pelo contrário, um grupo de indivíduos impulsivos

levaria ao aumento da criminalidade e à intensificação dos conflitos sociais. Pior ainda, a

seu ver, seria uma nação formada por elementos negros, fator degenerador, de fisionomia

repulsiva, inteligência inferior e caráter duvidável. Para Vianna, haveria um encadeamento

de problemas ou benefícios que teriam como principal causa a “raça”. Segundo ele, a

“raça” influiria no tipo de constituição do indivíduo, esse determinaria o tipo de

inteligência e temperamentos. Por conseguinte, estes condicionariam as manifestações

culturais e sociais.

360

Apud VIANNA, op.cit. p.33-34. 361

VIANNA, op.cit. p.39.

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Se a “raça” influi diretamente no destino da nação, a distribuição regional deveria

ser bem planejada. Conhecendo as três “raças” e a sua distribuição pelo território nacional,

saberíamos a especialização funcional na economia de cada região: em regiões onde

preponderasse a “raça” branca, ali, encontraríamos os cargos relacionados ao poder

voltados para o latifúndio e a vida intelectual; dos locais onde preponderassem índios e

negros encontraríamos os trabalhadores braçais, que deveriam ser tutelados.

Segundo o historiador, o estudo da diferenciação racial era importante para o

processo de eugenia; - termo criado por Francis Gaton - que a definiu como o estudo dos

agentes sob o controle social que podem melhorar ou empobrecer as qualidades raciais das

futuras gerações seja física ou mentalmente. Vianna critica a teoria das três “raças”, já

pensando na problemática da eugenia, alegava para tanto, que era um erro dividir a

população brasileira em brancos, negros, cablocos e mulatos. Estar de acordo com essa

afirmação seria negar a existência de vários tipos antropológicos europeus: nórdico, celta,

eslavônico... Segundo o intelectual, era sabido que, grupos formados por etnia nórdica não

se adaptavam ao clima tropical e através de um recenseamento feito em 1921, na África

Inglesa, os descendentes se revelaram fracassados, degenerados, ou seja, os descendentes

provenientes da mistura do negro africano com o branco europeu causaram a diminuição

do número de brancos puros, e por isso o tipo antropológico nórdico não era um dos

melhores para se misturar ao negro, ao contrário do grupo mediterrâneo, por exemplo, que

se adaptam ao clima tropical rapidamente e seus descendentes não apresentam nenhum

sinal sensível ou positivo de degeneração, nem no físico, nem na moral.

Para Vianna o estudo das “raças” seria de extrema importância, visto que verificar

quais foram os tipos de mestiços que se adaptariam melhor ao meio evitariam problemas

futuros de não assimilação (melting-pot baixo) ou de cruzamentos que poderiam prejudicar

a formação nacional (elemento negro). O mulato, por exemplo, era fruto de cruzamentos

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infelizes, comparando-se a um grupo grande, muitos vinham a falecer, seja pelo fato de

serem dotados de poucas qualidades, ou porque não agüentavam a luta pela vida, a

competição sexual, a emigração, que eliminariam as espécies inferiores; em resumo seriam

vencidos pela seleção natural e social. Vianna se preocupou muito com a mestiçagem, pois,

a etnia que contribuísse com maior parcela para o melting-pot, consequentemente imporia

seu tipo morfológico, psicológico e cultural sobre os demais, influenciado na formação

política e social do país.

De acordo com Clóvis Moura, a miscigenação não era estigmatizada por Vianna,

porém o melting-pot preconizado por aquele, deveria ser muito bem estruturado, visto que

a população deveria se embranquecer. “O processo civilizatório, por seu turno, era um

atributo da “raça” branca que mesmo quando se misturava com os negros e outras

“raças” inferiores arianizava-os” 362

.

Porém o embranquecimento não poderia se dar com qualquer “raça” branca, e

muito menos com qualquer “raça” negra, os negros eugênicos eram os melhores para se

misturarem aos brancos e se embranquecerem, não é necessário dizer que os negros

eugênicos eram aqueles que possuíam feições de indivíduos brancos e eram mais

facilmente submetidos.

O conceito de “raça” e a distinção entre as etnias foram usados por muitos

intelectuais entre eles Oliveira Vianna como noção ideológica, para construir uma proposta

de identidade nacional, tendo como fator determinante a questão racial; atualmente sabe-se

que afirmar a existência de uma “raça” pura seria tornar ilusória qualquer definição

fundada em dados étnicos e genéticos estáveis.

CONCLUSÃO

362

MOURA, op.cit. p.198.

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A discussão em questão buscou desenvolver uma breve análise das obras de

Oliveira Vianna, enfatizando a sua função como intelectual que identificou no fator racial,

mecanismos que construiriam a identidade da nação. Propõe assim, a idéia da interfusão

racial, ou seja, a mestiçagem com “raças” pré-selecionadas.

Se a miscigenação era criticada pelas teorias raciais no estrangeiro, no Brasil

passou a ser identificada como solução para os problemas nacionais. De acordo com

Vianna, éramos um povo cuja diversidade étnica se traduzia em malefícios para nação -

devido à concepção de inferioridade racial -, mas através da mestiçagem com “raças”

selecionadas, a população se branquearia e se construiria uma nação forte.

Segundo, Oliveira Vianna a construção de uma nação próspera teria como causa

dois fatores determinantes. O primeiro seria a “raça de seu povo”, visto que era a “raça”

que iria influenciar no intelecto, no temperamento e consequentemente nas manifestações

culturais e sociais. Por isso uma nação não poderia ser insensível à qualidade de elementos

raciais que entrariam em sua composição. O segundo fator seria um Estado forte, que

pelejasse pela massa populacional, que segundo Vianna, seria incapaz de mobilizar-se. O

povo não tinha condições sociais e nem preparo político para desfrutar das idéias liberais

importadas de povos mais à frente na escala da civilização, era o Estado que deveria se

responsabilizar por conduzir a nação, sem interferências de homens de moralidade

duvidosa e de nível intelectual baixo que prejudicariam as tomadas de decisões sobre o

futuro do país.

Apesar das críticas, Oliveira Vianna, foi um historiador importantíssimo para o

estudo do Brasil, considerado até então, um de seus intérpretes, descartar toda sua obra,

seria invalidar importantes contribuições trazidas para o meio acadêmico, porém é sabido

também que algumas de suas teorias, entre elas a diferenciação das “raças” serviu de

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amparo ideológico, visto que ao se forjar uma proposta de Identidade Nacional embasada

em fatores étnicos, estigmatizou-se o negro e o mulato, pela concepção de inferioridade

racial.

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O Caso De Pedro Índio:

Inquisição e gentilidade em Portugal Quinhentista

Jorge Henrique Cardoso Leão363

RESUMO: Este artigo tem por objetivo analisar o caso do réu Pedro Índio, nascido em

Ceilão e julgado, em 1558, no Tribunal do Santo Ofício da Inquisição de Lisboa, pelo

crime de gentilidade. O mesmo mostra-se interessante por fornecer informações que nos

ajudam a compreender o comportamento da inquisição portuguesa face às práticas de

gentilidades praticadas no próprio reino.

PALAVRAS-CHAVE: Inquisição em Portugal – Comunidade cristã no Oriente – Práticas

de gentilidade.

ABSTRACT: This article aims to analyze the case of Pedro Índio, born in Ceilão and

judged in 1558 by th Tribunal do Santo Ofício da Inquisição de Lisboa, for the delict of

gentility. This case is interesting to understand the Portuguese Inquisition behavior against

the gentility practiced in their own kingdom.

KEYWORDS: Inquisition in Portugal - the Christian community in the East - Practices of

gentility.

Este artigo tem por objetivo analisar o caso do réu Pedro Índio, nascido em Ceilão e

julgado, em 1558, no Tribunal do Santo Ofício da Inquisição de Lisboa, pelo crime de

gentilidade. O mesmo mostra-se interessante por fornecer informações que nos ajudam a

363

Mestrando em História Social pela UERJ, pós-graduado em História Militar Brasileira pela UNIRIO e

graduado em História pela UGF. Bolsista de pesquisa pela FAPERJ e vinculado como estudante ao Núcleo

de Estudos Inquisitoriais da UERJ e a Companhia das Índias da UFF. Áreas de interesse e pesquisa como:

História do Império Português; Jesuítas e Inquisição no Oriente; Relações Luso-Nipônicas nos Séculos XVI-

XVII. Contato: [email protected].

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compreender o comportamento da inquisição portuguesa face às práticas de gentilidades

praticadas no próprio reino.

Em primeiro lugar, podemos enxergar a relação do réu com o Santo Ofício através

dos pressupostos dos ritos da instituição (BOURDIEU, Pierre. 1996). É certo dizer que as

instituições valem-se dos rituais de passagem para impor limites e legitimar toda ação do

poder perante o indivíduo e a sociedade. Em outras palavras, a catequese e o batismo

serviam de métodos que consagravam o indivíduo a entrar na comunidade Católica. Neste

sentido podemos observar o papel do Santo Ofício como instituição responsável por

inquirir também sobre os desvios cometidos por aqueles instituídos na comunidade de

Cristo. Do outro lado, devemos compreender o comportamento religioso do réu como fruto

do processo de mestiçagem cultural característico das sociedades ibéricas, durante a época

colonial (GRUZINSKI, Serge. 2001)364

.

Delineado nosso objeto de estudo, fica claro que não podemos compreender o caso

de Pedro Índio isoladamente, mas sim, dentro do próprio contexto do Santo Ofício

português. Durante os séculos XII ao XIII, na Europa, a Igreja Católica começava a

praticar os primeiros atos de inquirição sobre as comunidades heréticas e mais tarde o IV

Concílio Ecumênico de Latrão, em 1215, estabeleceria de forma embrionária as bases de

um tribunal religioso. Durante os finais da Época Medieval, a Igreja havia dedicado maior

parte de seus esforços em conter o avanço das heresias no Velho Continente, assim como

deva início as práticas inquisitoriais referentes à aplicação de penas espirituais e seculares

(TAVARES, M. J. P. Ferro. 1987).

Na Península Ibérica, nos finais do século XV a presença da heresia judaizante

parece ter dado a verdadeira tônica da intolerância religiosa, que levou o estabelecimento

do Tribunal do Santo Ofício da Inquisição na Espanha (1478) e em Portugal (1536). Em

364

Serge Gruzinski caracteriza como hibridismo o resultado da mistura entre tradições distintas já existentes

desenvolvido a parir de uma mesma conjuntura histórica.

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termos de zelo pela unidade religiosa, a presença dos mouros fora combatida pelos ibéricos

desde os tempos da reconquista da península, entendendo-se para Norte da África e mais

tarde, com o advento da Expansão Ultramarina, para as regiões do Oriente português

(CORTESÃO, Jaime. 1993). As primeiras décadas do século XVI são marcadas pelo

acirramento da tensão entre o reino de Portugal e Castela. Nota-se que a Inquisição

espanhola estava em funcionamento desde 1478, pela bula Exigit Sincerae Devotionis

Affectus autorizada pelo Papa Sisto IV. Por esse motivo, os cristãos-novos, judeus, hereges

e mouros viram no reino português uma rota de fuga das perseguições castelhanas. A

ausência de um tribunal eclesiástico no reino português facilitava a vida clandestina dessa

massa de excluídos provenientes das regiões espanholas. No sentido de melhor colaborar

com a inquisição espanhola, Dom Manuel I recorre ao Papa Clemente VII o pedido da

criação de um Santo Ofício para Portugal. Contudo, somente mais tarde, por volta de 1536,

o monarca Dom João III consegue a autorização para a criação da inquisição portuguesa,

com sede na cidade de Évora. Um ano depois, juntamente com a corte portuguesa, o

Supremo Tribunal do Santo Oficio é transferido para a cidade de Lisboa

(BETHENCOURT, Francisco. 2000).

Recém criada, a Inquisição portuguesa procurou regulamentar e padronizar suas

normas de funcionamento. Com relação à normalização das relações hierárquicas do

tribunal, o historiador português Francisco Bethencourt afirma estas já haviam sido

estabelecidas pelas instruções de 1541 e pelo regimento de 1552, e juntamente com a

nomeação dos inquisidores institui-se o monitório, ou seja, uma espécie de manual, lido

nos autos-de-fé, que estimulava a denunciação pública daqueles que ousassem contra a

Santa Madre Igreja (TAVARES, M. J. P. Ferro. 1987: 194-199). Em termos de alçada do

tribunal, o monitório estendeu o campo de atuação da Inquisição portuguesa para “o

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judaísmo dos cristãos-novos, acrescentando o luteranismo, o islamismo, as proposições

heréticas e os sortilégios” (BETHENCOURT, Francisco. 2000: 25).

Em termos de organização institucional e da relação entre os tribunais, a inquisição

estabeleceu uma série de traços permanentes que solidificaram um sistema de comunicação

entre os tribunais do reino, com o tribunal de Goa, assim como dos comissários, visitadores

e dos familiares do Santo Ofício no Brasil, nas regiões africanas e no oriente

(BETHENCOURT, Francisco. 2000: 34-41). Em outras palavras, a grande quantidade de

correspondências produzidas pelos funcionários da Inquisição, assim como, a troca de

informações e cartas com as Ordens religiosas, garantiu ao Santo Ofício o estabelecimento

de um padrão funcional, quer seja ele no reino ou em suas colônias. A padronização de um

modelo de funcionamento estimulou o caráter ortodoxo com que seus encarregados

tratavam os delitos contra a fé. Por mais que a confissão e a abjuração pública pesassem na

sentença do réu, os inquisidores, assim como seus comissários, tinham agarradas as suas

mãos e em sua consciência, os Santos Evangelhos e os Regimentos do qual estavam sob

juramento.

A uniformização do processo, assim como das penas, do aparelho burocrático e de

sua produção documental, permitia que qualquer inquisidor soubesse como proceder diante

de uma situação, mesmo fora de sua jurisdição (BETHENCOURT, Francisco. 2000). A

partir deste ponto, podemos entender o caso de Pedro Índio como fruto dessa padronização

de sistemas. Assim como os funcionários régios, os inquisidores tinham a noção de que

neste império construído por vias marítimas as pessoas circulavam de um local para o

outro (RUSSELL-WOOD, A.J.R. 1997). E foi assim que o réu natural do Ceilão, batizado

em Goa, foi preso no reino pela Inquisição lisboeta.

O debate sobre o caso de Pedro Índio estimula a pensarmos como a sociedade

portuguesa, assim como suas instituições, encarava os indivíduos oriundos de suas

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províncias ultramarinas. Autores como Laura de Melo e Souza, Ronaldo Vainfas e Sônia

Aparecida Siqueira afirmam que o imaginário europeu sobre o mundo colonial adquiriu a

visão de um território fadado a dicotomia entre o paraíso e o inferno na Terra, assim como

seus habitantes e suas práticas culturais (SOUZA, Laura de Mello e. 1986; VAINFAS,

Ronaldo. 1989 & SIQUEIRA, Sônia. 1978). Na visão de autores como Jorge Flores,

Francisco Bethencourt e A.J.R. Russel-Wood a visão do mundo colonial, passando por

essa característica ambígua, tornar-se um campo social e cultural favorável ao processo de

adaptação (FLORES, Jorge Manuel. 1998; BETHENCOURT, Francisco. 1998. v.1).

Assim, essa imagem do paraíso e do inferno, com o qual o mundo colonial se apresentava,

estimulou a cobiça tanto de leigos quanto de eclesiásticos no sentido de desvendar seus

mistérios, usufruir de suas riquezas e de passar por suas provações pessoais.

Serge Gruzinski enfatiza o processo de mestiçagem cultural criado a partir da

interação constante entre colônia e metrópole (GRUZINSKI, Serge. 2001: 42). Com base

nas vias da construção de uma sociedade misturada, podemos nos referir a Pedro Índio

como aquele indivíduo que é levado para o reino e mediante ao batismo e a convivência

com os valores e costumes cristãos da sociedade portuguesa, passa a ser entendido pelos

historiadores e antropólogos recentes como um indivíduo híbrido. Assim, estes indivíduos,

apesar de estarem alocados em posições sociais desprivilegiadas são capazes de transitar

livremente entre as duas realidades, falando mais de uma língua, participando das

mudanças no seu cotidiano e mesclando suas práticas religiosas (TODOROV, Tzvetan.

2003)365

.

Estimulados pelos estudos de Serge Gruzinski, historiadores como José Eduardo

Franco e Célia Cristina Tavares têm se dedicado aos trabalhos acerca das tensões entre a

inquisição e a atividade missionária. Suas reflexões se baseiam na dicotomia das ações

365

Cf. o caso da ameríndia convertida conhecida pelo nome de La Malinche, por Cortez e pelos outros

conquistadores espanhóis.

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eclesiásticas entre o princípio da flexibilidade, característico dos missionários e o da

ortodoxia, característico da inquisição (FRANCO, José Eduardo e TAVARES, Célia

Cristina. 2007). O conflito entre essas duas instâncias foi uma realidade vivenciada tanto

no reino português quanto nos seus territórios coloniais, e tornou-se mais latente após o

estabelecimento do Tribunal do Santo Ofício de Goa, na Índia portuguesa, em 1560. Como

parte da estratégia da catequese no Oriente, a adaptação a realidade do outro, assim como a

compreensão do idioma e a tentativa de entendimento das práticas religiosas locais fizeram

com que, em parte, os missionários, sobretudo, os jesuítas fossem acusados pela inquisição

de contribuírem para os desvios de doutrina. Em contraposição a esta perspectiva, os

jesuítas alegavam a Igreja romana que essa era a única forma de se aproximar do outro

para levar os Santos Evangelhos (TAVARES, Célia Cristina. 2006).

Devemos ter em mente que o fluxo migratório no império português se dava em

duas instancias, tanto do reino para as colônias quanto vice-versa. Se de um lado os

portugueses se deslocaram para os territórios do Além-mar, não podemos deixar de dizer

que essa sociedade mercantil levou para o reino partes das ultramarinas sociedades,

consideradas exóticas. Neste âmbito destacamos os trabalhos de José Ramos Tinhorão e de

Daniela Buono Calainho. Apesar de ambos trabalharem com a presença do negro em

Portugal, eles abrem espaço para um leque de reflexão acerca da presença desses

indivíduos no reino português e os impactos sobre a sociedade lusitana (TINHORÃO, José

Ramos. 1988 & CALAINHO, Daniela Buono. 2008).

Uma série questões teóricas tiveram que ser esboçadas em parágrafos anteriores

para que possamos explorar mais a fundo o caso de Pedro Índio. Este mesmo gentio

nascido no Ceilão e batizado em Goa levado, entre seus 25 ou 30 anos, foi levado para

Portugal como cativo de um juiz do Cível de Lisboa conhecido pelo nome de Diogo Lopez.

No decorrer da leitura do processo, é visível que grande parte das denunciações feitas

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mostram que o réu “não era gentio, mas era mouro” (IANTT, 1558) e de que quando

bêbado dizia em retornar para sua terra. Contudo, no decorrer da inquirição feita pelos

inquisidores, Pedro Índio é acusado de práticas de gentilidade. Porém, quase todo tempo os

mesmos inquisidores confundem essas práticas como “fazer alguma cerimônia dos

mouros” (IANTT, 1558) e procuram saber se o réu “conversava com mouriscos ou com

mouros. Ele disse que não, mas que conversava com índios” (IANTT, 1558).

Para o historiador Ronaldo Vainfas, o conceito de idolatria poderia estar ligado às

práticas de resistência da população nativa – seja ela ameríndia, africana ou oriental –

onde o que se buscava era persistir ou renovar os antigos ritos e crenças, mesclando-os

com a luta social como forma de reconstruir a identidade do indivíduo nessa nova

realidade, que o mundo colonial representava (VAINFAS, Ronaldo. 1995: 31-37). Porém,

estas manifestações também chamadas de gentilidades, foram confundidas, em sua

maioria, como a materialização do Diabo e das forças do mal, por isso, deveriam ser

combatidas pela inquisição.

No mundo colonial português, ser mouro poderia complicar ainda mais a situação

de um indivíduo cujo almejasse a graça do perdão oferecida pela Santa inquisição. Por

isso, no decorrer dos autos do processo é visível a preocupação do réu de não se dizer

mouro, assim como da presença de uma série de contradições que dificultavam os

inquisidores em alocar Pedro Índio na categoria de gentio ou de muçulmano (IANTT,

1558). Em uma denuncia, a taverneira Maria Fernandes relata perante os inquisidores que

Pedro Índio não houvera de ter praticado “coisas de mouro” (IANTT, 1558) , mas disse ele

“não creres que Deus que morreu nesta paixão por nós” (IANTT, 1558). Contudo, Maria

Fernandes se refere ao comportamento de Pedro Índio como fruto de seu problema com

bebidas alcoólicas. No mesmo rol das culpas contra o dito réu, Maria Fernandes, por volta

de 13 de dezembro de 1558, afirma perante os inquisidores que Pedro Índio havia lhe

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confessado que “na sua terra não batizavam, senão em outra. Os quais e que quando

estavam como criança a batizar” (IANTT, 1558). Resta a partir daí a dúvida gerada entre

os inquisidores que podem ter levado os mesmos a confundirem este gentio do Ceilão, com

um mouro. Pedro Índio fora batizado em outra terra – na verdade em Goa – e saiu de lá

ainda criança, o que nos leva a concluir que neste meio tempo, para os inquisidores, Pedro

Índio pôde ter sido instruído primeiramente, ou não, na doutrina islâmica para depois ser

batizado em outra cidade.

O decorrer do processo torna-se complexo, pois à medida que os inquisidores o

confundem como mouro, são feitos a ele uma série de perguntas e indagações acerca das

testemunhas que soam mais característicos de um apóstata do que de um herege

propriamente dito. Observemos :

E o dito Pedro Índio se perguntado se viu por acreditar em algo da

Paixão de Cristo. [...] e ele disse que não viu aquela pelo seu olho.

[...] ouviu-se também uma moça chamada Beatriz Domingues [...]

perguntada pela Santa Inquisição de o dito índio era cristão ou se

ainda era mouro. Ela disse quando perguntada eu o dito índio é

cristão e disse seu nome cristão. [...] e foi perguntada se o dito

índio estavam sóbrio quando disse as ditas palavras ou estava

tomado de vinho ou alguma outra paixão ou se disse as ditas

palavras rindo ou invocado. Ela disse que por Deus o dito índio

estava com seu olho posto que algumas vezes bêbado [...] (IANTT,

1558).

A partir deste trecho é identificada a preocupação dos inquisidores em tirar das

confissões e do próprio réu, algumas contradições da doutrina cristã que colocassem em

xeque o acusado. Em outro campo de denuncias que pairam sobre Pedro Índio está a de

que grande parte de suas testemunhas depõem em juízo não terem visto, na maioria das

vezes o réu freqüentar as missas. Para época este falta poderia ser considerado um

agravante numa situação de envolvimento com a inquisição, tanto para cristãos-velhos

quanto para os conversos.

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Em tempos anteriores as culpas de dezembro de 1558, um documento de 20 de

maio de 1558, contendo uma série de perguntas feitas pelos inquisidores ao dito réu,

demonstra a preocupação em se saber se Pedro Índio era mouro, porém a realidade foi

reveladora, uma vez que na verdade, ele havia se revelado uma espécie de converso

relapso. Como segue abaixo:

se confessava cada ano, mas não tomava o Santo Sacramento pelo

seu senhor não querer dá-lo a um cativo. Ciente disso pôs falar da

Ave Maria e disse que acreditava em muitas partes dela, mas que

não sabe a oração. Perguntado sobre a doutrina cristã, se antes de

cristão fora mouro. O dito disse que era gentio como os da ilha de

Ceilão donde ele era natural. (IANTT, 1558).

Em vista disso, os inquisidores passam a explorar mais a face em que se mostra o

dito Pedro Índio como relapso ou até mesmo de apóstata, do que de mouro. Porém, uma

série de contradições só tenderia a aumentar. Frente os testemunhos de acusação de Pedro

Índio que o taxavam de mal cristão ou praticante de gentilidades, quando inquirido pelos

inquisidores, o réu responde que “foi perguntado se depois de batizado deixou de crer em

Jesus Cristo e de crer no Deus da sua terra e que outra vez fora gentio. Ele disse que

sempre crera em Jesus Cristo depois de ser cristão”. (IANTT, 1558). Ou seja, que na

verdade ele abandonara suas antigas crenças assim que foi batizado. Porém, neste mesmo

documento de 16 de junho de 1558, o dito réu é posto em contradição mais uma vez com

as diversas acusações por parte das testemunhas. Agora, ele fora inquirido sobre sua

natureza e por suas práticas religiosas antes de sua conversão. Os inquisidores seguem a

inquirição tentando buscar quaisquer informações que os ajudassem a identificar

novamente no réu as práticas de mouro, como observamos no trecho abaixo:

e perguntado se foi mouro antes que fosse cristão, o gentio disse

que alguma vez que primeiro era mouro porque se fez na sua terra e

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que não cria no Deus dos cristãos [...] perguntado a que Deus ele

cria antes de ser cristão e ele disse que no pagode de sua terra. E

perguntado se estava algumas vezes no lugar do dito pagode para

adora seu Deus e se ele fazia orações ou cerimônias depois de ser

cristão. Lembrando-se do dito pagode dissera que na sua terra para

adorar ou tornar a crer no seu Deus e fazer algumas orações, disse

que na verdade era ele amoitado por ser cristão e entrava na casa do

dito pagode do qual tem uma imagem de um homem preto que está

dentro de uma casa. E ele encostado-se à parede, voltado em

direção ao chão, estava com as mãos para adorar seu Deus. [...] e

depois de ser cristão ele cria algumas vezes no dito pagode, mas

não disse que o seu Deus era Deus. (IANTT, 1558).

O fato é que em primeira instancia, os inquisidores consideram a posição do réu

como:

o dito foi perguntado se visse que depois de cristão tornara a crer

no seu pagode e se em seu nome deixara de crer no nosso senhor

Jesus Cristo, porque isto lhe convém para sua salvação. Foi levado

ao seu cárcere [...] e assinou aqui o juramento. (IANTT, 1558).

Viu-se que as denúncias sobre Pedro Índio ora o colocam em posição de mouro ou

de gentio, e que ser adepto do Islão poderia pesar na hora da decisão dos inquisidores.

Observamos também que os testemunhos sempre se contradizem com a palavra do réu.

Estas contradições colocaram os próprios inquisidores na dúvida de como se proceder

diante do caso.

No momento em que é batizado ainda no oriente, Pedro Índio passa a ingressar a

comunidade cristã e este deve se comportar como tal (BOURDIEU, Pierre. 1996)

366. Daí a

preocupação dos inquisidores em saber se mesmo depois de batizado o dito réu havia ou

não abandonado suas antigas crenças. Do outro lado, seguindo os pressupostos da

hibridação cultural, assim como muitos outros, Pedro Índio era o exemplo vivo do

monumento do colonialismo ibérico (GRUZINSKI, Serge. 2001). Onde mesmo batizado e

366

Do ponto de vista social, tanto o indivíduo que recebe quanto aquele que confere o ato de consagração

partilham de responsabilidades sociais, características da etiqueta de cada instituição.

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crendo em Jesus Cristo e Igreja Católica, não conseguira se desprender por completo de

sua antiga religião, do qual praticava as escondidas. Contudo, como forma de subterfugiu

da grande armadilha que era o processo inquisitorial, o gentio foi forçado a desviar a

atenção dos inquisidores, assim como as testemunhas. Isto acaba ficando claro no trecho

que diz:

E sendo perguntado se o Réu é índio mourisco de nação natural de Ceilão e se

depois de batizado na cidade de Goa lhe puseram o nome de então e se o instruíram

nas coisas da Santa Fé, e por então se tratou e nomeou prometendo vir e fazer parte da

nossa Santa Fé como bom cristão. E depois de assim ser cristão lhe reduziu ao engano

pelo demônio e se apartou de nossa Santa Fé retornando-se aos seus erros e praticando

heresias e apostasias contra a Fé espiritual e estava ciente de seu juramento. (IANTT,

1558).

Parece que não se trata de um caso de mentira contra a verdade, mas sim de uma

persuasão psicológica que os inquisidores faziam com o réu, assim como da contradição

por parte dos testemunhos, capazes de provocar a reação contrária do réu diante de uma

situação de intensa pressão psicológica. Este fato pode ter levado Pedro Índio a mentir

perante os inquisidores e lhes afirmando, que havia ter caído em tentação a dizer tais

palavras. Isso sem contar no seu problema com a bebida alcoólica, e que fora relatado por

quase todas as testemunhas, onde pesou na decisão dos inquisidores. Para ser mais exato,

algumas testemunhas do processo alegaram que Pedro Índio chegava a estar tão

alcoolizado que o mesmo não conseguia se sustentar de pé para ir até a igreja.

Em mais uma denuncia denúncia, a esposa de Antônio Fernandes, a taverneira

Maria Fernandes, afirma que viu o dito réu: “uma vez se criar no poço de curamento com

todos os outros negros que a i estavam por diziam que andava e todo e assim ouviu dizer”

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(IANTT, 1558). De fato é inegável que Pedro Índio era adepto de certas idolatrias e

gentilidades, mas que praticava isso, por estar, segundo a própria testemunha, alcoolizado.

Contudo, outra parte do processo referente ao dia 31 de agosto de 1558 coloca o réu

em uma situação mais confortável, pois alega que:

Este Réu que está fora da Fé, parece que se foi apontado com muita

gentilidade errônea, como se prova que é errante, ele disse que não

cria no Deus dos cristãos e que cria no Deus de sua Terra e que este

padecera por ele, por isso, nunca viu o Deus dos cristãos e nem

motivos para crer. Sendo assim o dito réu respondeu por vezes que

se não viu ou ouviu dizer e que se não o que via. Para isso lhe

confirmam Pedro de Ataíde, Beatriz moça solteira, André Paiva,

Maria Fernandez, sua mulher e Francisco índio, cativo do mesmo

senhor. Que se diz convidado o réu por vezes para ir à missa ao

encontro de Deus e o mesmo dizia que não queria porque não via

Deus com seus olhos. Disse também que não se confessava nem

estava nos cultos que denotavam práticas de mouros ou gentios e

não estava fora da Fé [...] (IANTT, 1558).

É entendido a partir disso que Pedro Índio passa a ser visto como um indivíduo

diferente em meio ao cotidiano do reino. Ao afirmar que ele era considerado apenas mal

cristão, os perjúrios de mouro, por exemplo, deixam de ser uma preocupação com relação

ao futuro do réu. Suas práticas de gentilidade e de idolatria passam a ser identificadas

como um desvio natural da tentação do demônio. Contudo, sabemos que, ao contrário do

que os inquisidores pensavam, o réu na verdade se desviou naturalmente da fé por motivos

de resistência, a fim de reconstruir sua própria identidade que havia sido perdida desde que

havia sido batizado em Goa, quando criança.

No que toca o destino do réu, os inquisidores parecem ter ponderado uma série de

elementos, muitos dos quais foram citados ao longo deste trabalho. O Inquisidor que

acompanhou o caso, frei Jerônimo de Azambuja declara a seguinte decisão:

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Declarou-se que o foi herege e apóstata da nossa Santa Fé Católica

e que decorreu em excomunhão maior e nas outras penas em delito

contra a Fé, que some há eles instituídos. Porém, visto como ele

tem estado o conselho confessou suas culpas e pediu delas o perdão

e muito se confessa de arrependimento e o mais que dos ditos autos

se resulta. Recebem o réu, Pedro, à reconciliação a mão da Santa

Madre Igreja como pede, e lhe mandam que abjure publicamente

suas práticas heréticas e erros em forma de pena. E deles lhe assim

no cárcere o hábito penitencial pelos que depõe no parecer dos

inquisidores vistos a qualidade de suas penas e confissão [...] no

qual no cárcere será muito bem doutrinado nas coisas da Fé e que o

convidem para a salvação de sua alma [...] (IANTT, 1558).

Segue a abjuração do réu,

E se apartou de muitas de suas espécies de heresia e apostasia e

tornou a se batizar na Santa Fé Católica porque sua apostasia

espiritualmente está e que foi em sua confissão antes de vossas

mercês que aqui agora [...] e jurou de sempre por guardar a Santa

Fé Católica e o bem em da Santa Madre Igreja de Roma e que será

sempre obediente dos nossos muitos santos padres Papa Paulo IV,

presidente da Igreja de Deus [...] e prometo nunca me ajuda com

eles [gentios, hereges, pecadores etc.] e se souber direi aos

inquisidores seus pecados. E juro e prometo cumprir quanto em

muito for à punição que me foi imposta. [...] que o dito Pedro Índio

seja solto do colégio da doutrina da Santa Igreja e de volta

cumprindo com sua penitência nesta cidade [...] que o assistisse as

pregações nos domingos nas festas e à tarde dos ditos dias que será

ouvida a doutrina cristã desta freguesia [...] em Lisboa aos 20 de

outubro de 1558 anos. (IANTT, 1558).

A dúvida que pairava sobre sua origem muçulmana parece ter sido esclarecida no

desenrolar dos autos. Com isso, a idolatria e a gentilidade passaram ser o ponto de ataque

dos inquisidores. Devido à série de contradições existentes nas palavras do réu, assim

como nas de suas testemunhas, conseguiu-se transformar as culpas de heresia e apostasia

em arrependimento. Assim sendo, o réu pôde cumprir sua pena se instruindo novamente na

catequese, sendo obrigado revisar seus ritos de passagem da sociedade cristã (BOURDIEU,

Pierre. 1996). Por outro lado, este caso denota uma parte do conflito existente entre os

missionários e a Inquisição. Uma vez que no oriente, a estratégia missionária valeu-se do

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processo de adaptação. Este cenário mostrava-se contrário aos anseios da Inquisição,

dando espaço para que indivíduos como Pedro Índio, se misturassem culturalmente. Por

isso, na visão do Santo Ofício cabia aos inquisidores, juntamente com os eclesiásticos do

reino corrigir as falhas provenientes da estratégia missionária no mundo colonial

(TAVARES, Célia Cristina. 2006), e que no caso de Pedro Índio, foram capazes de

constituir um híbrido de características marcantes, no seio do reino português.

FONTES

Autos de Pedro Índio cativo do doutor Diogo Lopez Juiz do Cível desta cidade

preso no cárcere da Santa Inquisição. Lisboa: Arquivo Nacional da Torre do Tombo

(Manuscritos da Inquisição de Lisboa), 1558.

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A Legítima Causa do Brasil: Uma análise do vocabulário político do periódico

Reverbero Constitucional Fluminense durante o processo de independência do Brasil.

Jorge Monteiro Vianna367

RESUMO: Insere-se o artigo na proposta de analisar algumas reflexões políticas

registradas no periódico Reverbero Constitucional Fluminense, dando ênfase nas

interpretações do vocabulário político e nos conceitos de pátria e nação que caracterizaram

os debates políticos nos anos de 1821 e 1822 durante o processo de independência do

Brasil.

PALAVRAS-CHAVE: Independência do Brasil; Nação e Pátria; Imprensa.

ABSTRACT: This article proposes to analyse some policy reflections recorded in the

journal Reverbero Constitucional Fluminense, focusing on interpretations of the political

vocabulary and the concepts of homeland and nation that characterized the political debate

in the years 1821 and 1822 during the independence Brazil.

KEYWORDS: Independence of Brazil; the nation and homeland; Press

Em seu significado moderno e, portanto político, o conceito de nação é

historicamente recente, como afirma Hobsbawm368

. Entretanto, a utilização do termo nação

é antiga. Herdado da Antiguidade romana, o antigo conceito tradicional de Natio referia-se

ao nascimento ou a raça como perspectiva de diferenciação entre os grupos humanos369

.

Contudo, no século XIII europeu, identificamos que os estudantes das diversas regiões

367

Mestrando em História pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. 368

HOBSBAWM, Eric. Nações e Nacionalismo desde 1780: programa, mito e realidade. 4 ed. Rio de

Janeiro: Paz e Terra, 1990, p. 30. 369

SCHULZE, Hagen. Estado e Nação na História da Europa. Lisboa: Editora Presença, 1997, p. 107.

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européias eram divididos por nações na Universidade de Paris, não tendo como principal

critério a região de nascimento, porém, a língua ou o grupo lingüístico.370

Desta forma,

como determinar a existência de uma nação? Há um marco? Uma data? Ou podemos

encontrar sua existência estabelecida por fatores como a língua, o território, ou a religião?

Seguindo algumas conclusões feitas por José C. Chiaramonte, partimos então,

desde o início, enfatizando a perspectiva de que mais importante do que definir o que uma

nação é questionar e investigar aqueles que utilizaram o conceito ao longo dos diversos

contextos históricos, ou seja, indagar como e porque utilizavam o termo nação e em quais

realidades o aplicavam. O historiador argentino afirma que o conceito foi usado por

séculos em seu sentido étnico. Entretanto, no século XVII já se encontra o sentido

estritamente político do termo nação (o que não significa o desaparecimento do sentido

anterior), que acaba por se generalizar durante o século XVIII, antes da Revolução

Francesa371

.

Esclarecemos então, o objeto e o objetivo desse curto artigo. Nosso objeto é o

periódico Reverbero Constitucional Fluminense372

, que circulou nas ruas do Rio de

Janeiro, nos anos de 1821 e 1822. O objetivo não é fazer exatamente uma avaliação do

periódico como obra, tentando mapear os acontecimentos políticos descritos em suas

páginas, mas buscar através da interpretação de algumas passagens e textos publicados, o

sentido que apresenta o constante termo nação (e algumas de suas variações) através da

análise de alguns elementos do vocabulário político presente nessas folhas impressas.

370

Ibid., p. 112. 371

CHIARAMONTE, José Carlos. Nación y Estado en Iberoamérica. Buenos Aires, Editorial

Sudamericana, 2004, pp. 47-50. 372

O Reverbero Constitucional Fluminense teve seu primeiro número editado em 15 de setembro de 1821 e

último em 8 de outubro de 1822. Numa duração de 13 meses, o jornal se divide em dois tomos. O primeiro

tomo constitui-se num total de 28 edições, mais duas edições extraordinárias, e uma edição de suplemento ao

número 2. Já o segundo tomo é formado por 20 edições. Possuía uma variação de 11 a 12 páginas e

apresentou três locais de impressão, a oficina de Moreira e Garcez, a Tipografia Nacional e a oficina de Silva

Porto. No ano de 1821 foi publicado quinzenalmente, (com exceção da edição suplemento ao número 2),

porém, em 1822, começou a ser editado semanalmente. Em sua composição, continha, principalmente,

diversas reflexões dos redatores, passagem de outros jornais, principalmente Correio Braziliense e,

publicações de correspondências.

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A nação discutida, refletida e registrada nas páginas dos diversos periódicos que se

proliferaram nas principais cidades do Brasil, durante o processo de independência,

apresenta um caráter essencialmente político. As visões e os interesses políticos registrados

pelos redatores, estavam influenciadas pelo próprio ideal de nação no qual defendiam.

Concordamos, nesse sentido, com a visão da historiadora Lúcia Maria Bastos, que ao

analisar o vocabulário político presente nos diversos jornais e panfletos do contexto luso-

brasileiro da independência, identificou que a nação não se confundia com uma simples

noção de um conjunto ou grupo de indivíduos. Ganhava um sentido de uma vontade geral,

donde vinham os poderes políticos e, por isso, invocava-se a nação como “um centro do

qual partiam as principais determinações políticos”, o que acabava por ligar o conceito de

nação as questões institucionais e políticas.373

Desta forma, longe de ser um fenômeno natural da história, o que chamamos hoje

facilmente de nação brasileira é produto de uma construção histórica. Construção que

começa a ser erguida e ganha seu rascunho no século XIX, mais precisamente durante o

processo de independência política da ex-colônia Portuguesa. Como nos enfatiza o

consagrado historiador pernambucano, Evaldo Cabral de Mello, o “Brasil não se tornou

independente porque fosse nacionalista, mas fez-se nacionalista por haver-se tornado

independente”.374

Os anos de 1821 e 1822 destacam-se pela consolidação de uma rede de debates,

tanto em Portugal quanto no Brasil. Para entendermos essa rede, é mister identificar o

movimento vintista português como responsável pela divulgação de um ideário político,

que tinha como principais características a defesa das idéias liberais e constitucionais, que

acabaram por impulsionar a proliferação de jornais e panfletos nesse contexto luso-

373

NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Corcundas e Constitucionalistas: a cultura política da

independência (1820-1822). Rio de Janeiro: Revan: FAPERJ, 2003, p. 210. 374

MELLO, Evaldo Cabral de. “A fabricação da nação”. Apud. NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Op.

cit., p. 374.

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brasileiro. É nessa realidade, que se insere a publicação do Reverbero Constitucional

Fluminense, redigido pelo líder maçônico Joaquim Gonçalves Ledo e cônego Januário da

Cunha Barbosa. Em suas páginas circulavam constantemente as palavras nação e pátria,

revestidas de sentidos tanto para aqueles que a escreviam, quanto para aqueles que as liam.

Pátria e Nação estavam longe de representarem conceitos antagônicos, entretanto, mesmo

com uma certa proximidade de sentido, guardavam suas diferenças, que iam além do uso

dos termos como uma forma casual.

Na Antiguidade clássica a Pátria apresentava freqüentemente um sentido de

agregação de valores políticos, morais, éticos e religiosos. Contudo, no período feudal,

onde os laços pessoais circunscritos a vassalagem determinavam os próprios laços e a vida

política, essa antiga noção de pátria se desintegra, o que ao mesmo tempo, não elimina a

utilização do termo, que continua a ser usado nas obras de alguns eruditos medievais ou na

linguagem cotidiana. Como no alemão “Heimat” ou no francês “pays” a pátria apresenta

um sentido de localidade, referindo-se ao povoado, aldeia ou província. As guerras que

eram travadas por exércitos de vassalos e cavaleiros feudais (e não por cidadãos), não

determinavam um sacrifício pela pátria, mas sim uma afirmação de lealdade ao senhor.375

Mónica Quijada nos mostra, analisando o contexto dos processos de independência

da América Hispânica, há uma importante diferença entre os conceitos de nação e de

pátria. O conceito de nação é mais ambíguo e mutável, quando comparado ao de pátria, ao

longo da Idade Moderna. Recorrendo a dicionários de língua espanhola, nos anos de 1611,

1726 e 1787, encontram-se definições, que em resumo, afirmam a pátria como terra, lugar,

país ou cidade de nascimento. A “Pátria aparece assim, na tradição hispânica, como uma

375

KANTOROWICZ, Ernest H. “A realeza centrada no governo: ‘Corpus Mysticum’”. In: Os Dois Corpos

do Rei. São Paulo: Cia das Letras, 1998, p. 147.

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lealdade ‘filial’, localizada e territorializada”.376

Se recorrermos ao importante dicionário

de língua portuguesa de Antonio Moraes, percebemos que este sentido de pátria até 1823

não é diferente. Encontramos nele, pátria como “a terra donde alguém é natural”.377

É nesse sentido que Gladys Sabina Ribeiro afirma que o “Brasil não era uma ‘pátria

única’; era marcado por regionalismos. O termo ‘pátria’ não significava uma sociedade que

se reconhecia com uma identidade e culturas próprias”.378

Contudo, é importante

destacarmos junto com as análises de Lúcia Maria Bastos, que o ideário político advindo

do vintismo e as primeiras idéias de separatismo, que foi se desenvolvendo ao longo de

1822, acabou por adicionar no conceito de pátria uma nova dimensão, que o “identificava a

uma força criadora de grupos anônimos, que promovia o poder do espírito público em

oposição ao individualismo monárquico”.379

Foi assim, definindo-se diante as enfatizadas

animosidades políticas, entre as elites de Portugal e do Brasil no ano de 1822, que o

sentido de pátria vinculava-se ao lugar que se vivia e que se compartilhava benefícios.380

Nessa perspectiva, mais uma vez Mónica Quijada, nos mostra que tanto nos

discursos dos “independentistas hispanoamericanos”, quanto na luta dos espanhóis

peninsulares contra os invasores franceses, foi se adicionando uma carga revolucionária na

idéia de pátria. Desta forma, foi incorporada na idéia tradicional de pátria (concepção

territorial) um outro sentido que estava vinculado à busca pela liberdade contra o

despotismo, baseando-se em concepções cívicas. Gerava-se, portanto, uma crescente

376

QUIJADA, Mónica. “Qué nación? Dinâmicas y Dicotomías de la nación en el imaginario

Hispanoamericano”. In: ANNINO, Antonio, GUERRA, François-Xavier (Coord.). Inventando la Nación.

Iberoamérica. Siglo XIX. México: FCE, 2003, p. 291. 377

MORAES SILVA, Antonio de. Dicionário da Língua Portuguesa. (v.2). Lisboa: Tip. Lacerdina, 1823, p.

370. Apud. NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Op. Cit. p. 205. 378

RIBEIRO, Gladys Sabina. A liberdade em construção: identidade nacional e conflitos antilusitanos no

Primeiro Reinado. Rio de Janeiro: Relume Dumará: FAPERJ, 2002, p. 47. 379

NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Op. Cit. p. 205. 380

Ibid., p. 207.

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identificação da pátria com a idéia de liberdade nos escritos deixados durante o processo de

independência da América Hispânica.381

Retornando ao vocabulário político apresentado nos periódicos e panfletos escritos

durante o processo de independência da antiga América Portuguesa, também se encontra

uma “aliança verbal comum entre a liberdade e a Pátria”.382

A luta contra o despotismo ia

reafirmando a luta pela liberdade da Pátria, segundo os escritos das elites intelectuais e

políticas luso-brasileiras. Reafirmando o despotismo como o símbolo do passado e do

atraso e o liberalismo-constitucionalismo como a imagem do futuro pretendido, os

indivíduos pertencentes a estas elites encontravam-se mergulhados numa cultura política

que tinha sua matriz na Ilustração portuguesa. Além disso, iam configurando um período

de politização da linguagem na vida pública, onde a literatura política transformava-se

numa rica fonte de identificação de palavras e valores que reafirmavam um novo

vocabulário político, influenciado pelas mesmas mitigadas luzes portuguesas.

As afirmações registradas no Reverbero exemplificam o sentido de pátria ligado à

busca pela liberdade, com o objetivo de combater o despotismo. Utilizando expressões

como o grito da pátria, os redatores iam construindo suas críticas diretas ao que

consideravam a antítese direta da liberdade, ou seja, sistema político onde independente

das leis e da vontade do Povo, o soberano abusava do poder.

Lembrai-vos somente do axioma eterno, reconhecido pelo maior

dos déspotas = o Povo que quer ser livre, há de ser livre = Poderá

talvez por algum tempo, ver abafados os seus esforços, mas os

ferros cairão ao primeiro bem dado grito da Pátria, e de toda a parte

rebentarão defensores (...)383

381

QUIJADA, Mónica. Op. Cit. pp. 291-292. 382

NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Op. Cit. p. 205. 383

Reverbero Constitucional Fluminense, n. 12, terça-feira 29 de janeiro de 1822. Rio de Janeiro: Tipografia

de Moreira e Garcez, pp. 146-147.

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Porém, a liberdade para a elite luso-brasileira, atuante no processo de emancipação

política do Brasil, não ia além do que a lei proibia. Não se podia confundir liberdade com

abuso, tendo sempre como exemplo negativo, os acontecimentos da Revolução Francesa.

Tal perspectiva elucida que a.liberdade deveria estar vinculada à busca pela ordem social e

não da desordem, trazida pelo radicalismo popular. Tal questão acaba por refletir, o caráter

reformador e moderado da Ilustração portuguesa e, por conseqüência, do pensamento e das

novas propostas políticas das elites intelectual e política que atuaram nos turbulentos

primeiros anos da década de 20 do Oitocentos, para contexto histórico luso-brasileiro.384

Do mesmo modo, que escreviam: “Nós detestamos as agitações populares”, os

redatores do Reverbero comparavam o corpo político ao corpo físico e, por isso, no

primeiro as enfermidades também poderiam aparecer. Para tanto, acrescentavam que era

“necessário separar os membros gangrenados para salvar a vida da Sociedade. (...) todas as

Instituições humanas são susceptíveis de melhoramento, e este deve ser graduado pelo

Termômetro das Luzes do século”. E concluíam através de uma postura reformista que

apresentava o caráter negativo das revoluções:

Se os Povos, portanto, formam uma centralização de vontades, e de

sentimentos não há Revolução, porque não há força opoente. Ora se

os vínculos da Sociedade não se dissolvem, nem se quebram numa

reforma, que reorganiza a ordem, e destrói os abusos, e que sobre a

ruína da arbitrariedade restabelece o império das Leis e da Justiça,

como se pode chamar Revolução a um ato indispensável para o

bem do Todo, naqueles países em que não há uma Representação

Nacional, que intervenha, vigie, zele, e sustente o cumprimento do

Pacto Social? Nós detestamos as agitações populares; mas quem

são os que as promovem? Não são, por certo, nem os Publicistas,

nem os Filósofo, que dissipando as trevas do erro, patenteam as

fontes da verdade; são sim os abusos do poder,que cavam os

abismos da miséria Pública.385

384

NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. “Liberalismo Político no Brasil: idéias, representações e práticas

(1820-1823)”. In: GUMARÃES, Lucia Maria Paschoal; PRADO, Maria Emilia. (Orgs.) O liberalismo no

Brasil Imperial: Origens, conceitos e práticas. Rio de Janeiro: Revan: UERJ, 2001, pp. 73-101. 385

Citações retiradas do Reverbero Constitucional Fluminense, n. 12, tomo I, terça-feira 29 de janeiro de

1822. Rio de Janeiro: Tipografia de Moreira e Garcez, p. 145.

Page 266: Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em ...¡rio... · Históricas (São Paulo: Editora Contexto, 2009) em que há um ensaio (de Maria de Lourdes Janotti) em que,

Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade

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ISSN: 2317-045X.

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É na necessidade de fugir dos abusos dos poderes tanto dos déspotas, quanto do

radicalismo político revolucionário, que buscavam nas idéias liberais e constitucionais, um

ponto de equilíbrio para o sistema político. Questionavam até se a Revolução do Porto

poderia receber esse nome, pois não sabiam se desta forma deveriam chamar a luta da

justiça contra o despotismo.386

Assim, Monarquia Constitucional evitaria as desordens e os

excessos de liberdades. É neste contexto, que diferenciavam a pátria da nação. Na parte do

jornal destinada às reflexões de Januário e Gonçalves Ledo, registrava-se tal diferença.

Escreviam que

A Liberdade que a Nação proclamou anima o amor da Pátria, o

amor da pátria não pode separa-se do amor da Nação; o que

dizemos em favor do Brasil, redunda em benefício de Portugal;

somos livres, abraçamos a Causa que se identificou com o nosso

mesmo sangue; mas porque a abraçamos e com tanto entusiasmo,

deveremos ser menos do que éramos? Daremos calados tudo que

possuímos até no sistema de nossa extinta escravidão, só porque se

nos ensinou a ser livres? E aonde está a proclamada

confraternidade?387

A liberdade patriótica não poderia distanciar-se do amor da nação. Pois, essa

comunidade política imaginada388

, como define a nação Benedict Anderson, é chave para

entendimento do que era considerado legítimo pelos redatores.

Para os redatores do Reverbero, o governo se estabelecia pela vontade dos

governados e, por tanto, era na nação que residia a legitimidade política e social do

governo. Perguntavam se “há de o governo ser a vontade dos governantes, ou dos

governados? De quem são os interesses confiados a esses administradores?” Logo em

386

Cf. Reverbero Constitucional Fluminense, n. 11, tomo I, terça-feira 22de janeiro de 1822. Rio de Janeiro:

Tipografia de Moreira e Garcez, p. 129. 387

Reverbero Constitucional Fluminense, n. 8, tomo I, 1º de Janeiro de 1822. Rio de Janeiro: Tipografia de

Moreira e Garcez, p. 88. 388

ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas: reflexão sobre a origem e a difusão do

nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 32.

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seguida respondiam: “Da Nação: logo à nação compete mudá-los, reformá-los, corrigi-los,

quando se julga mal servida (...)”. Além disso, concluíam com firmeza que um governo só

“é legítimo, quando legitimamente administra; isto é, quando o governo rege segundo o

pacto e as leis existentes; quando a Nação satisfeita, vê desempenhando o fim de todos os

Sistemas de Legislação, isto é, = Liberdade, e Propriedade =”.389

A Legitimidade desta nação estava diretamente ligada a Causa que defendiam,

denominada diversas vezes de Causa do Brasil, Causa Nacional ou Causa Brasílica. É

nessa ligação entre Legitimidade e Causa que iam determinando a base das estruturas do

que denominavam de nação portuguesa, e logo depois (principalmente, a partir dos meados

de 1822) nação brasileira. Construíam nas páginas do Reverbero as bases da legitimidade

da nação e, ao mesmo tempo, a legítima nação.

Segundo os redatores que se intitulavam de “Dois Amigos da Nação e da Pátria”, os

Inimigos do Brasil estavam classificadas de duas formas: os “Inimigos da Assembléia

Brasílica” e os “Inimigos de uma liberal Constituição”. Os Inimigos do Brasil eram os

inimigos das causas eternas e constantes da força da nação. Logo, nada melhor que os

próprios amigos da nação e da pátria, citando as análises de Mr. Bonim, para exclamarem:

Sem Leis o Governo não é mais que Despotismo; os males do

Corpo Social tem o seu remédio nas Leis Liberais; Não vos

olvideis nunca que a Liberdade do Cidadão, o amor da Pátria, a

bondade das Leis, a sólida instrução, a agricultura, a indústria, as

Ciências, a Sabedoria, e a moderação no Governo, e atividade na

administração, a imparcialidade da Justiça, a perícia dos Generais,

o valor e a disciplina dos Exércitos, são causas eternas e constantes

da força da Nação, fazem a sua glória, e a sua prosperidade. Mas

para se obterem estes bens inapreciáveis estabelecei o regime

representativo sobre sólidas bases: tereis a melhor polícia, e o único

verdadeiro Governo.390

389

Citações retiradas do Reverbero Constitucional Fluminense, n. 11, tomo I, terça-feira 22de janeiro de

1822. Rio de Janeiro: Tipografia de Moreira e Garcez, p. 128. 390

Reverbero Constitucional Fluminense, n. 14 , tomo II, terça-feira 27de agosto de 1822. Rio de Janeiro:

Tipografia de Moreira e Garcez, p. 172.

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Como enfatiza Marcello Basile, a independência não produziu uma profunda

identidade nacional, portanto, “não produziu, a seu termo, propriamente uma nação”.391

Esta falta de uma identidade coletiva nacional, no que era genericamente chamado de

Brasil, acaba por ser elucidada pelo próprio sentido do conceito de nação encontrado pelo

Reverbero. A nação não era almejada, planejada e discutida tendo como base uma certa

identidade, mas sim, através das próprias questões políticas, pois, os brasileiros eram

definidos de acordo com o que os redatores do Reverbero chamavam de justa causa.

Brasileiros, a nossa Causa é justa, o nosso fim é grande, a nossa

votação é um ato da nossa da nossa Soberania. A Política e a

Religião assim o persuadem; sustentemos os nossos direitos,

elegendo Cidadãos que saibam e possam defender a nossa gloria.

Ah! Vós sois Portugueses, Brasileiros, o amor da Pátria é vosso

alvo, votai sem prejuízos, e Deus abençoará a nossa Causa. (...)

Quando digo Brasileiros entendo geralmente os habitantes do

Brasil, ou deste, ou do outro Hemisfério, (...) não faço diferença

entre Europeu e Brasiliense, a todos amo, quando sei que se

empenham pela nossa justa Causa.392

O vocabulário político que os periódicos traziam em cidades como o Rio de

Janeiro, no período aqui analisado, acabam por refletir características contidas nas

sociedades do período mais reveladoras do que pressupostos estruturais ou conjunturais,

para que se possa entender a própria dinâmica dos processos de independência que

ocorreram em toda a América. È na articulação entre o texto e o contexto que a linguagem

política apresenta-se como agente e produto da história. Como afirma Quentim Skinner,

quando retomamos os termos de um certo vocabulário normativo que um determinado

agente apresenta para descrever seu comportamento político, acabamos por identificar as

391

BASILE, Marcello Otávio N. de C. “O Império Brasileiro: Panorama Político” In: LINHARES, Maria

Yedda (org.).. História Geral do Brasil. 9 ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2000, p. 207. 392

Reverbero Constitucional Fluminense, n. 10, tomo II, terça feira, 30 de julho de 1822, Rio de Janeiro:

Tipografia de Moreira e Garcez, p. 117.

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próprias “limitações aplicáveis a esse mesmo comportamento”, determinando suas próprias

ações.393

Concordamos com hobsbawm quando este nega a afirmação que as nações são “tão

antigas quanto a história”.394

A concepção moderna de nação, concebida como uma

associação voluntária de indivíduos (como afirma o ideário político da Revolução

Francesa) foi se associando as concepções políticas tradicionais nas Américas portuguesas

e espanholas no século XIX. Assim, superpostas as imagens clássicas do universo mental

do Antigo Regime foram aparecendo outras representações políticas que traziam aos

habitantes, principalmente suas elites políticas e intelectuais, uma concepção de nação,

marcada por características da modernidade política, que acabou por se afirmar durante o

século XIX.395

Por final, a nação brasileira imaginada, pretendida e refletida no Reverbero

Constitucional Fluminense elucida mais uma imagem de nação, que junto as diversas

outras encontradas durante desde a independência, formam a galeria das imagens nacionais

presentes ao longo do tempo. Sejam essas imagens caracterizadas pela visão negativa, pela

ausência ou pela visão paternalista do povo396

, constituíram o quadro do processo da

invenção da nação, que precisa ser legitimada diante esse mesmo povo cotidianamente,

pois as nações estão sempre em processos de construções.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

393

SKINER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. São Paulo: Companhia das Letras,

1996, p. 12. 394

HOBSBAWM, Eric. Op. Cit. p. 13. 395

Para uma melhor análise sobre algumas características das concepções clássicas e modernas de nação,

Ver: GUERRA, François-Xavier. “El ocaso de la Monarquía Hispánica: Revolución y Desintegración”. In:

ANNINO, Antonio, GUERRA, François-Xavier (Coord.). Op. Cit. , pp. 122-127. 396

CARVALHO, José Murilo de. “Brasil. Naciones Imaginadas”. In: ANNINO, Antonio, GUERRA,

François-Xavier (Coord.). Op. cit. , p. 501.

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Memó r i a d a Mu lher n a Lu ta A rma da

Pe l o s o lh ares a í a f o ra . . .

J u l i a B ian ch i R e i s Ins ue la397

R ES U MO : O a r t igo ap r e s en t a a pe s qu i s a so br e a m em ó r i a d as

m ul he r e s n a lu t a a r m ad a en t r e os an os 1 96 8 e 19 7 2 . P ro curo

r ecu pe r a r as v i sõ e s a ce r ca d as mi l i t an t es , no i n t e r io r d a s

o r gan iz açõ es d a e s qu e r da a rm ad a , n os ó r gãos d e r ep r es s ão e

i n fo rm ação d o r eg im e e n a g r and e imp r ens a . A m em ór i a co l e t i v a da

l u t a a rm ad a con s t ru iu - se em f un ção da l em b r an ça d a v i são do s ó r gão s

d e r ep r es s ão e d e in f o rm ação e do e sq u ec im en t o d aqu e la p r e s en t e n a

g r an d e i mp r en s a . A p e sq u i s a mos t ra co mo a p e r cep ção d ep r ec i a t i v a

d a mu lh e r p a r t i c ipan t e n a lu t a a rm ad a , qu e es t av a nos ó r gãos d e

r ep r es s ão , e r a m ui t o p róx i ma à d a g r an d e im pr ens a e à d a p r óp r i a

s o c i ed ad e .

PA L A V RA S - CH AV E : gên e ro , m emó r i a , d i t adu r a c iv i l - mi l i t a r .

A BST R AC T: The communication presents the research on the memory of the women

in the armed fight seted between the years of 1968 and 1972. I look for to recoup the

397 M e s t r a n d a e m H i s t ó r i a S o c i a l p e l a U n i v e r s i d a d e F e d e r a l F l u m i n e n s e

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visions concerning the militant, in the interior of the left armed organizations, in the organs

of repression and information of the regimen and in the great press. The collective memory

of the fight armed was constructed in function of the reminder of the vision of the organs

of repression and information and of the forgotten of that present in the great press. The

research shows as the contemptuous perception of the participant woman in the armed

fight, that was in the repression organs, was very next to the one of the great press and to

the one of the society itself.

KE Y WO RD S: gende r , m em or y, c i v i l i an - mi l i t a r y d i c t a to r sh ip

A h i s tó r i a é f e i t a po r h om en s e m ulh er e s q ue a c ad a m om ento a

i nv en t am e r e i nv en t am , no co t i d i ano d e s ua s v iv ên c i as . N o p r es en te

a r t i go398 o p t e i p o r t r ab a l h a r com a s m ul he r e s . E s t a p es qu i s a t em

co mo p ro b l em át i ca a an á l i s e da t r a j e tó r i a p o l í t i c a de u ma ge r ação de

m ul he r e s q ue s e env o l v eu com o p ro j e t o d e l u t a a rm ada da s e sq u er d as

r ev o lu c io n ár i as , n o p e r ío d o de 1 96 8 a 1 9 72 , no Bra s i l .

O e s t ud o p a r a l e lo d a s p e r cep çõ es d as m ulh e r es n a lu t a a r m ad a

em t r ês n í v e i s – n a s o r gan iz açõ es , no s ó r gãos d e r ep r es s ão e

i n fo rm ação e n a g r an d e i mp r en s a – s uge r e m u i t as ap rox im ações ( nem

s emp r e p e r cep t ív e i s d e im ed i a t o ) , p a ra a l ém das ev i d en te s d i f e r en ças ,

q u e d i z em r es p e i t o à s r ep r es en t açõ es d a s mul h e re s n a s o c i ed ad e da

ép o ca e su a s mu danças e co n t in u id ad es n as d écad as s egu in t e s .

O o b j e t iv o é i d en t i f i c a r o un iv e rs o co mum en t r e e s s e s n í v e i s

d i fe r en c i ad os . Mesm o en t r e as o r gan iz açõ es e a g r an d e im p rens a , po r

398Este artigo refere-se a uma primeira parte de minha pesquisa de mestrado desenvolvida no Programa de

Pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense, em fase inicial.

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ex empl o , ou en t r e a s o r gan iz açõ es e o s ó r gão s d e r ep r es s ão e os de

i n fo rm ação , no t amo s , em m eio a ev id en t es e i mp o r t an te s d i f e r en ças ,

p o n to s de i n t e r s eção , qu e d i z em r e sp e i to a u m a cu l t u r a n a q u a l a

s o c i ed ad e b ra s i l e i ra e s t á im e rs a n a épo ca o u d a qu a l é h e r d e i r a .

A bu s ca p e l as v i sõe s da s mi l i t an t es po ss ib i l i t ou a p e r cep ção d e

p o n to s d e i n t e r s eção en t r e a s v i sõ e s d a r ep r es s ão , d a im p r en sa –

p r in c i p a lm en t e p e l a l i n gu agem u t i l i z ad a e su as r e f e rên c ia s , q ue

co n fo rm am u m un iv e rs o d e v a lo re s – e , p o r co ns egu in t e , da

s o c i ed ad e . E n t r e t an to , a m emó r i a co l e t i v a co ns t r u í da n a s d écad as

p os t e r io r es , b a se i a - s e , so b r e tu do , n a i magem pr e s en t e no s ó r gão s de

r ep r es s ão .

A d écad a d e 19 60 f i co u con hec id a po r s u a f o r t e ex c i t ação n o

q u e p e rm ei a o ambi en t e cu l t u r a l e p o l í t i co em to do o m un d o . Fo i um

m om en to em qu e s u r g i r am q u es t io n am en to s co r r e sp on den t es a t udo

e s t ab e l ec i do , en t re e l es : a e s t ru tu r a d a s o c i edad e , i n c lu s i v e d a

f amí l i a , o c ap i t a l i sm o e o com po r t amen to s oc i a l , i n c lu in d o - s e a i o s

r e l a c i on am en to s am o ro sos en t r e o s i n d i v í du os . É u m p er í od o qu e nos

p e rm i t e ob s e rv a r em q u e med i d a es s a e f e rv ecênc i a po l í t i c a e cu l tu r a l

en gen d ro u um a co ns c i en t i za ção e u m a mo bi l i z ação d e d i v er s as

c am ad as d a so c i edad e , q u e p r o cu r a r am in t e r v i r n a r e a l id ad e d o pa í s

b us cand o a t r an s f o rm ação d o cen ár io so c i a l .

A s t r ans f o r m açõ es s o c i a i s , cu l tu r a i s e p o l í t i c a s o co r r i d as n a

s o c i ed ad e b r a s i l e i ra , e sp ec i a lm en te a p a r t i r d os ano s 60 , c r i a r am as

co nd i çõ es ma i s ge r a i s p a r a a e f e t i va co ns t i t u i ção d a m ul he r como

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s u j e i to po l í t i co . A p a r t i r d a v i a p o l í t i c a , e s t as m ul h er e s s e v i a m como

agen t es c ap azes de e f e tu a r mu dan ças . É n e ss a e f e r v escên c i a qu e o

s ex o f em in i no s a i d o âm bi t o p r i v ad o p a r a bu sca r o s eu lu ga r m ai s

ex p r es s iv am en t e no e sp aço pú b l i co . O co r r i a um a mo vi men t ação

n e s t es c amp os , imp e l in do cad a v ez m ai s o s ex o f emi n in o p a r a a l u t a

p o r mo d i f i c açõ es e su a p e rm an ên c i a n o cam po p úb l i co , o sc i l an do

en t r e o am bi en t e co ns e r v ad or e mo r a l i s t a d a so c i ed ad e e a a tm os f e ra

co n t es t ad or a e r ad i ca l do s ano s 6 0 . D i an t e d e um a l e i t u r a mu i to

p r óp r i a , co ns i d er a - s e q u e es s e pe r í od o f o i de in t en s a ag i t a ção

cu l tu r a l e p o l í t i c a em t od o o m un do e n o q u a l a t r a j e t ó r i a d e u ma

ge r ação d e m ulh e re s , a s qu a i s su bv e r t em o s s eu s p ap é i s t r ad i c i on a i s

ao m i l i t a r em em o r gan iz açõ es d e e sq u e rd a a r mad a , co m eça . É

i mp or t an t e f r i s a r q u e ao mesm o t em po em qu e os an os 6 0 s ão

m ar cad os p or r up tu r a s – d ev id o ao f a to d a s m ulh e r e s en t r a r em de

f o rm a m ai s s i gn i f i c a t i v a n a v i d a p úb l i c a – ex i s t e um a co n t i nu id ade ,

q u e po d e s e r ev iden c iad a , p o r ex emp lo , a i nd a n a ex i s t ên c i a de u m

m ach i s mo , i n c lu s iv e n a s p r óp r i a s o r gan iz açõ es . A p a r t i r da

co mp r een s ão do s c am in ho s p e r co r r i do s p o r es t a s m ul h er e s – q ue

u l t r ap a ss am f ro n t e i r as – po d em os d i z e r qu e e l as s e co mp o r t a r i am

co mo v an gu a rd a no av an ça r em d i reção ao p úb i co . U m p a r adox o

ex i s t en t e no m esm o es p aço , e q u e i n f l uen c i ou n a co ns t ru ção da

“ m ul h er m i l i t a n t e” .

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A t r av és , en t ão , d o m a t e r i a l p es qu i s ad o 399, p r o cu r o i d en t i f i c a r

o s o l har e s ex i s t en t es d as mi l i t an t e s d a e sq u er d a a r m ad a . Es t e

t r ab a lh o e s t á d i v i d i do em t r ês p a r t e s : a p r im e i r a , com o a r ep r e s são

v i a a s m ul h er e s m i l i t an t es ; a s egun d a , o o lh a r d a im p rens a ; e a

t e r ce i r a , um a comp ar ação en t r e os d o i s , no t an do s e h av i a ou n ão

p o n to s d e i n t e r s eção en t r e es s as du as p e r cep çõ es .

O p r i me i ro en f oq ue d i z r e sp e i to à p e r cep ção qu e os ó r gão s d e

r ep r es s ão e i n f o rm ação p os su í am. A ca r ac t e r í s t i c a i n i c i a l q u e a s

co lo cou co mo a lv o d o reg i me r ep r e s s o r d i z r e sp e i to a s e r em

co n t r á r i as ao r eg ime v i gen t e e a r evo lu ção .

P a r a t a l p ro po s t a , u t i l i zo o s do cum ent os en con t r ado s no Fu nd o

D O PS do AP ERJ . A p r i me i ra o bs e r v ação q u e po ss o f az e r é q ue

ex i s t em d iv e rs a s f i ch a s da s me sm as pe s so as em p as t a s d i f e r en t e s , e

em s e to r es d i f e r en t e s . Ao m esm o t em po , n o t a - s e o u so d as m esm as

p a l av r as q u e se r v i am d e ce r t a fo rm a pa r a qu a l i f i cá - l a s .

N o cas o da s mu lh er e s , p e r ceb e - s e o o b j e t iv o d e d ep r ec i á - l a s e

t r a t á - l a s co mo um s u j e i to un i t á r i o . To d as s ão i gu a i s d i an t e d os o l ho s

d a r ep r es são . P a r a e s t a , só o f a to d e faz e r em op os i ção ao r eg i m e j á a s

co lo cav a n um a ca t ego r i a u n i f i c ad or a e p e j o r a t iv a : a d e t e r ro r i s ta s . 400

399A pesquisa viabilizou-se pela existência de fontes primárias e secundárias relacionadas ao assunto

abordado. Grande parte desse material encontra-se disponível por meio de coletâneas de documentos

microfilmado, como jornais, armazenados na Biblioteca Nacional, e fichas arquivadas no Arquivo DOPS,

estabelecido no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro. O material recolhido condiz com o corte

cronológico privilegiado: entre os anos de 1968 e de 1972, por representarem a entrada da mulher no mundo

político engajado e por serem considerados os anos de maior radicalização da luta contra o regime ditatorial e

da luta armada 400Ver : Colling, Ana Maria . A Resistência da mulher à ditadura militar no Brasil.Rio Grande do Sul :

Rosas dos tempos , 1997

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A p a r t i r d a an á l i s e d o m at e r i a l c a t a l o gado r ep ar a - se q u e a

r ep r es s ão con s t ró i o su j e i t o p o l í t i co “ mu lh er s ub vers i va” 401.

C on tu do , ao p r ime i ro o l h a r , e l a s ap a r ecem n ão com o m ul he r es

d e sv ian t e s e q u e r o mp e r am com o s p ad rõ es t r ad i c io na i s , mas s im

co mo es po s as , f i l h a s e am an t e s d e h om ens p r o cu r ado s . T a l f a to

co r r es po nd e à concep ção d e qu e as m ulh e r es não s ão capaz es d e

t om ar em d ec i sõ e s p o l í t i c as e qu e es t a r i am n a mi l i t ân c i a p o rq u e os

h om ens as con duz i ram , as s ub v e r t e ram. 402

Is s o co r r e sp on d e a u m a v i s ão p r év i a d o con j un to do s d iv e r sos

e s c r i t o s . Ao ap ro f un d a r o e s t ud o p e r ceb e - se q ue a mu lh er s ó i r á sa i r

d a p os t ur a de f i l h a o u e sp os a , ao p a r t i c ip a r e f e t iv am en t e d e

a t i v i d ad es co ns i d er ad as s ub v er s i v as . E n t r e e l as e s t á o t r ab a lh o de

m a ss a – v i s to como do u t r i nação – e /o u a t i v id ad es co r r es po nd en t es à

l u t a a rm ad a , en t end i d as com o a çõ es t e r ro r i s ta s .

É qu and o com eçam a p a r t i c ip a r d e s s a s a çõ es q u e o u t ra

co ns t r u ção d a imagem f emi n i na s u r ge : a d e m u lh er t e r r or i s t a .

A d em a i s , d e ix am de s e r em f i l h as e e sp os a s p a r a s e t o rn ar em a ma nt es .

Q u and o a mi l i t an t e p a r t i c i p av a de a çõ es t e r r or i s ta s s u a co n d i ção de

a m an te ap ar e c i a co mo f un dam ent a l . A s fo n t es , en t ão , a cab am po r

e s t i p u l a r um vo cab u l á r i o e sp ec í f i co e e l em en t os qu e em co n ju n to

co mp õ em a im agem do s ó r gãos d e r ep r e s s ão e i n fo rm ação ace r ca d as

m i l i t an t es 403. A i m agem cu j a co ns t ru ção e s t á b asead a nos

401Ver: Ferreira, Elizabeth F. Xavier. 1996. Mulheres, Militância e Memória. Rio de Janeiro: Fundação

Getulio Vargas Editora.

402Idem notas 5 e 6

403Para melhor compreensão da denominação “órgão de repressão” e “órgão de informação” , os quais são

diferentes , ver : Fico Carlos. “Espionagem, polícia política, censura e propaganda: os pilares básicos da

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p r econ ce i t os d a soc i e dad e e do r eg im e r ep r e s s o r ap a r ece c l a r am en te

n a s f i ch as – e s t ab e l ecen do ce r t o p ad rão – con ceb end o o o l h a r d es t es

ó r gão s em r e l ação à s m ul h er e s mi l i t an t es . As in fo r maçõ es p as s ad as

p e lo s ó r gão s d e in f o rm ação e r ep r es são acab av am p o r co n f i gu r a r o

o lh a r p r eco nce i tu os o e mo r a l i s t a , o q u a l não lh es e r a ex c lu s ivo :

e s t av a mui to p r es en t e n a so c i edad e em ge r a l .

A l i n gu agem u t i l i z ad a p a r a c a r ac t e r i z ação r em e t em – s e a f o r mas

d e d ep r ec i ação , r ep l e t as de t eo r ap e l a t i vo e co no t ação s ex u a l . Va le

s a l i en t a r qu e a r ep r e s são r e s s a l t a a qu es t ão d a pr o mis cu id ad e en t re

e l as , a f i rm an do a ex i s t ên c i a d e r e l a c io n am en to com v ár ios

co mp anh e i r os .

C h am am a t en ção o u t r as r e f e r ên c i as q u e s ão r eco r r en t e s no s

d o cu m ent os d o DO PS, co m o in tu i to d es s a ca r ac t e r i z ação . Os

v o cáb u l os : “d es qu i t ad a” , “ com un i s t a” , “ t e r r o r i s t a ” , “m ar g in ad a” e

“ r ev o lu c io ná r i a” ap a r ecem in úm era s v ez e s em d i ve r sa s f i ch as . É

i mp or t an t e f r i s a r qu e o emp r ego p e j o ra t i vo d ess e s t e rmos con d iz com

a v i s ão p r econ ce i tu os a qu e ex i s t i a naq u e l es anos – anos 60 e 7 0 – e

q u e im pl i cav a , e n t ão , em um s en t i do n ega t i vo , con f i gu r an d o ao f i n a l ,

u m a v i s ão d ep r ec i a t i v a d as mi l i t an t es . É imp o r t an t e d es t aca r q u e o

u so de ss a s p a l av ra s n ão e r a ex c l us i vo d a r ep r es s ão . N a v e r d ad e ,

i n co rp o r av a o s d i scu r so s e o l h a re s v i gen t es d a s o c i edad e d aqu e l e

p e r í od o .

repressão”, in Ferreira, Jorge e Delgado, Lucília de Almeida Neves (orgs.). O Brasil Republicano. O tempo

da ditadura. Vol. 4. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003

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O s d o cum ent os enco n t r ad os no Fun do D OPS cor r ob o ram p a ra a

c a r ac t e r i z ação d e u m a im agem i gn om in i os a d es s a s m ul h er e s . A

m i l i t an t e é u m “desv io ” d e mu lh e r .

O s a r gum ento s s up r ac i t ad os ex põ em a co ns t r u ção f e i t a p e l a

r ep r es s ão ace r ca d a s m ul h er e s m i l i t an t es . So b r es s a í a a m ed i d a d e

d e sm er ece r a m ul h er , cu jo d esv io s e r i a p r epo nd e ran t e . Como

m ul he r e s d es v ia n t es , ab and on am su as f u n çõ es , l a r , f i l ho s e m a r i do ,

p a r a d ed i ca r - se à s l i de s t e r r or i s t as – a s q u a i s n ão d i zem r e sp e i to à

s u a s up os t a á r ea d e a tu ação ( co mo m ul h e r ) – ap ar ecen do como

a m an te s e a má s i as .E n t r e t an t o , e s s a é u m a p ar t e da s v i sõe s ex i s t en t es .

A o u t r a con ce rn e ao o l ha r qu e a im p rens a p os su ía so b r e a s

m esm as . P a r a m elho r s in t e t i z a r e s s a t em át i ca , p ro cur o t r ab a lh a r com

j o rn a i s d a g r an d e im p rens a , q u e pe r mi t i am o aces s o à i n f o rm ação às

m ai s d i v e r s as c am ad as d a so c i ed ad e .

P r i v i l eg i a r am -s e , e s p ec i a lm en t e , o s p e r ió d i cos O Glo b o e

F o l ha d e Sã o P au lo . O es tu do d ess a s p u b l i c açõ es r ev e lo u t an t o s eus

p os i c io n am en to s , co mo a in t e r p r e t ação qu e cad a um a d e l a s f az i a d a

r ea l i d ad e h i s tó r i c a ab o rd ada . Ao an a l i s a r a s r ep or t agens s e l ec io n ad as

p e r ceb emo s u m a d e t e r min ad a i m agem d as mi l i t an t es d e e s qu e rda

a r m ad a . O s jo r n a i s , a s s i m com o a r ep r e s são , e r am um a ex p r es s ão da

s o c i ed ad e , qu e não ace i t av a t a i s m ul he r e s . E l as r ep r e s en t avam

s up os t am en te um a a m ea ça à f amí l i a , i n s t i t u i ção q u e n ão p od e r i a s e r

d i s so l v i d a e à “mo r a l e aos b on s co s t um es ” . E s t e d i scu r so n ão é

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i so l ado , a i mp r ens a – t an t o qu an t o a r ep r e s s ão – o r eco nh ece e

v e r b a l i z a .

N es t e s en t id o , pod emo s en con t r a r na s p ág in as d os j o r n a i s o

m esmo e s t i l o d e ca r ac t e r i z ação e v o cab u l á r i o d os d o cum en tos

en con t r ado s no DO PS. A t en t a t iv a d e d e sm er ece r a m ul h e r é

co ns t an t e , e p a r a i s so u t i l i z a - s e d e de s c r i çõ es cu j o l e i t o r a s s imi l a r i a

o t eo r nega t i vo .

A s s im , o con ju n to d os d iv e r s os es c r i t o s d es t es d o i s p e r ió d i cos

f o i n eces s á r io p a r a p e r ceb er mo s a d i fu s ão d o d i s cu r so e d o s d i t am es

é t i cos e mo r a i s d a s o c i ed ad e e , l o go , d a r ep r es s ão . O enq u ad r am en to

d a s mul h e re s mi l i t an t es com o se r e s des v i an t es é p r e sen te a p a r t i r do

m om en to em qu e i d en t i f i c am em s uas r ep o r t agens es sa s m ul h eres

co mo “ t e r r o r i s t a s ” , “ com un i s t as ” , “ am ás i as ” , “ am an t es ” ,

“ s ub v e rs i v as ” e “ t ra i do r as . ” N o t a - s e o t om d es l eg i t i mad or e um ju í zo

d e v a l o r com in tu i to d e a l a rm ar e as su s t ar a po pu lação . N o d es c r ev er

d a s n o t í c i as p e r ceb e - se o t om n ega t i vo im bu í do n e l a s . S ob r e a

p a r t i c ip ação f em in i n a v ê - s e q u e q uase s em p r e no s jo r n a i s ap a r ec i am

aco mp an h ad as d a p r e s en ça d e h om ens . Os p er ió d ico s , p o r t an t o ,

r e co l h em e ado t am o s s ab e r es co ns t ru í do s p e l a s oc i ed ad e e p e l a

r ep r es s ão , s end o um m ei o p ar a d i f un d i r s ua s con cepçõ es .

N a in v es t i gação do p ap e l da mu lh e r ao lo n go d a d i t adu ra c i v i l -

m i l i t a r – m a i s e spec i f i c am en t e n a lu t a a r m ad a – con s t a t a - s e q u e os

p e r i ód i co s 404 co r ro bo r am com a v i são d a r ep r es são , a q u a l

404Vale ressaltar que os periódicos selecionados são identificados como de direita. O motivo de sua escolha

se deve ao fato de serem considerados os de maior circulação e acesso à população, e por assim, como os

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co mp ar t i l h a da mes ma com a s o c i ed ad e co ns e rv ado r a . O s jo r na i s

f u n c io n am co mo v ia d e t r ansm iss ão e d i f us ão d es t a v i s ão , n o i n tu i to

d e l eg i t i m á - l a , p o i s en qu ad ram e u t i l i z am as m es mas ca t ego r i a s dos

ó r gão s r ep r es s iv os e d e i n fo rm ação . C om o s abemo s , a s i n fo rm açõ es

n ão s ão i mp a r c i a i s , co n t em pl and o um ju í zo de v a l o r a r r a i gado no

âm bi t o s oc i a l . A im agem f ix ad a , p o r t an to , n os j o rn a i s é a de

m ul he r e s er ra da s e p er ig os as .

A i n t e rp r e t ação , p o r t an to , d os do cu m ent os en co n t r ad os no

Fu n do DOP S e na s r ep o r t agens d os j o rn a i s d e g r and e i mp r en s a ,

e s t im ul ad a po r um a co mp ar ação en t re o s do i s é en t en d id a com o u ma

co r r ob or ação d aqu e l es p o r es t a s , p o i s u t i l i z a r i am d as m es mas

ca t ego r i as p a r a t r a t a r d a s mu lh e r es na l u t a a r m ad a . O o lh a r s e r i a o

m esmo . O p r eco nce i t o q u e p a i r a s obr e a so c i ed ad e , apa r ece r á n a s

f o lh as dos a rq u i vos da r ep r es s ão – q u e t amb ém é co ns t i t u í da po r

p a r t e d os i n d iv ídu os d es s a s o c i ed ad e – e s e a f i rm a n a s p ági n as

j o rn a l í s t i c a s . O t ra t am en t o p úb l i co ( p e r i ód icos ) e p r iv ado ( f i chas

co n f id en c i a i s ) s e r i a o d e d e smo r a l i z ação . N a ve r d ad e , en t ão , n ão

ex i s t i r i am v á r io s o l h a r e s , m as u m h egem ôni co . E n t r e t an to , ao vo l t a r -

s e pa r a as m em ó r ia s ( r e ) con s t ru íd as n a s d écad as po s t e r i o re s n o t a - se

u m a i n t en s a d i s cuss ão ace rca d os ó r gão s d e rep r es são e i n fo rm ação ,

a p ag an do de s t a m em ó r i a o s en so comu m ex i s t en t e en t r e aq u e l es e a

g r an d e im pr ens a , p r i nc ip a l m en t e em r e l ação ao vo cabu lá r io , a

maiores jornais em suas regiões. Não se optou por eles por tenderem mais para a direita. Todavia, frisa-se o

fato de os dois maiores periódicos das duas maiores cidades do país tenderem para a direita. A afirmação de

que possuem o mesmo olhar da ditadura é baseada, então, nessa alegação e por encontrar termos empregados

pelo regime vigente, identificando-os, assim, como colaboradores da difusão da visão da repressão, esta

sendo de direita.

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l i n gu agem e , n a d i fu s ão d e su a op i n i ão , n ão a t en t and o qu e e s s e o lh ar

t am b ém s e r i a en con t rado t an to n a r ep r e s são com o n a s o c i ed ad e .

E ss e s do i s u n ive r s os e r am co n ec t ad os , a ex em pl o do

v o cab u l á r i o e r e f e rên c ia s u t i l i z ad as , po i s as r ep or t agen s j o rn a l í s t i c a s

n u nca u t i l i z am uma l i n guagem es t r an h a à s o c i ed ad e , a qu a l n ão é

v í t im a d a abso r ção d a d iv u l gação r ea l i z ad a p e l os j o rn a i s . Não ex i s t e

u m mar co z e ro , e s im u ma v i a d e m ão -d u p l a .

E s qu ecen do -s e d ess e s po n to s d e i n t e r s eção en t r e e l es , l o go , s e

s i l en c ia a a f i n id a de en t re es s es ó r gão s e a s oc i ed ade ,

d esr e sp ons ab i l i za nd o e s t a de s eus en ca rg os n a con s t ru ção d o r eg ime .

A m emó r i a r e co ns t r u íd a b as e i a - s e , s ob r e t ud o , no s ó r gãos de r ep r es s ão

e i n fo rm ação , l ev and o a c r e r q u e a r ep r es s ão d i s pu nha

ex c lus iv am en t e d es s a v i são d epr ec i a t i v a e nega t i v a ace r ca d as

m ul he r e s m i l i t an t es .

A o an a l i s a rm os , po r t an to , a i n s e r ção d a m ul he r n a l u t a a r m ad a ,

n o t a - s e p a r a a l ém d os p on t os de i n t e r s eção en t r e e s s es n í v e i s

d i fe r en c i ad os , e a s s im um a a f in id ad e p r e s en t e en t r e e l es , a ex i s t ên c i a

d e um co ns ens o que e s t á s end o fo rm ad o em t o r no d a d i t ad u r a c iv i l -

m i l i t a r , o q u e no s r em et e a um a qu es t ão m aio r a q u a l d i z r es pe i t o à

m em ó r i a d es s e t emp o: s u a r eco ns t r u ção .

A o d es ca r t ar em a s r e f e r ênc i a s s ob r e a s mi l i t an t e s d a esq u e rd a

a r m ad a n a g r an de im p rens a – en t end i da co mo ex pr e s s ão d a s o c i ed ade

– e s s a m em ór i a a cab a p or n ão p e r cebe r a s p r es en ças d a s o c i ed ad e na

co ns t r u ção do r eg im e . O m ot iv o p e l o q u a l i s s o aco n t ece s e d á a pa r t i r

d a con cep ção d e q u e o reg im e c iv i l -m i l i t a r en t ro u par a a h i s t ó r i a

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co mo um do s p e r í od os d e m ai o r au to r i t a r i sm o e v io l ên c i a p r a t i c ados

p e lo Es t ad o co n t ra a s o c i ed ad e , e co mo t a l , n ão se q u e r es t a r

r e l a c i on ad o co m a l go t ão m acu l ado . As s im , n ão se a ce i ta a

p a r t i c ip ação d a s oc i ed ad e n o go lp e d e 19 64 e na su a l eg i t i m ação ,

i n c lu s i v e p e l a g r an d e im p r en sa – a q u a l p r e f e r e en fa t i z a r o s eu

en f r en ta m en to com a cen su r a 405 e d e ix a r d e l ad o a s u a co la b ora ção

co m a r ep re s s ão - s u ge r i nd o um a m ud a nça d e po s tu ra p o r p a r t e dos

g r u p os q u e ad e r i ram à d i t adu r a c iv i l - mi l i t a r e , d a mes ma fo r ma ,

r e f l e t i nd o es s a p e r cep ção n a mem ór i a s oc i a l do p e r ío do e

co n t r i bu in do , en t ão , p a r a um a “ s acr a l i z ação d a m emó r ia”406.

O u se j a ,

co mo um a m em ór i a s a c ra l i z ad a , q ue id ea l i z a m i to s e h e ró i s , n ão t em

n enh um a fu n ção d e co mp r een s ão . Po r co ns egu in t e , e s s a m em ó r i a n ão

f av o rece r i a a Hi s tó r i a , a qu a l i mpl i ca n a b us ca p e l o con hec im en t o .

O co nce i to d e m em ó r i a p e rmi t i r á o en t end im en to ace r ca d as

co ns t r u çõ es f e i t a s s o b r e es s a p r ob lem át i ca , no s qu es t io nand o do

p o rq u ê r ecup e r a - s e p r i n c i p a lm en t e a m em ó r i a co l e t iv a em r e l ação à

r e s i s t ênc i a , e no ca s o es p ec í f i co d o t r ab a l ho , do po r qu ê a s mu lh e r es

m i l i t an t es d e o r gan iz açõ es d e e sq u erd a a r m ad a en fa t i z am t an to su a

m i l i t ân c i a e r es i s t ên c ia , enq uan t o a s m an i f e s t açõ es d e ap o io e

co ns en t i men t o , f i cam r enegad as ao s i l ên c i o . Es s a q u es t ão r eca i n a

cap ac i d ad e qu e a m em ó r i a t em d e se co ns t r u i r e r e con s t r u i r com o

p a ss a r d o t em po , p r i nc ip a l m en t e d ev id o às i n t en çõ es p a ra t a l , e s t ando

405Para melhor esclarecimento ver: Batista de Abreu, João. As Manobras da Informação: análise da

cobertura jornalística da luta armada no Brasil: (1965-1979). Niterói: EdUFF; Rio de Janeiro : Mauad ,

2000 ; Kushinir, Beatriz. Cães de Guarda: jornalista e censores, do AI-5 à Constituição de 1988. São Paulo,

Boitempo Editorial, 2004

406No mesmo sentido que a trabalhada por Tzevtan Todorov : Todorov , Tzevtan. Los abusos de la

memória.Paris : Arléa , 1995 .

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ge r a l m en t e l i gad as co m a p o l í t i c a . Va le d es t aca r o c a r á t e r an acr ôn i co

d a m emó r ia , o q u a l i n f l u i d i re t am en t e n e s t a p r ob l em á t i ca de

r eco ns t r uçõ es .407

A m emó r i a po d e s e r u s ad a como u m in s t ru men t o t eó r i co -

m et od o l ó g ico pa r a a co mp r een s ão d e ss e qu es t i on am en to e é d e

i mp or t an t e us o p ara o t r ab a l h o h i s t o r i o g r á f i co . C ab e d es t aca r qu e a

m em ó r i a cons t ru í d a s o br e o r eg im e c i v i l - mi l i t a r f o i e l ab or ad a du r an te

o p r o cess o d e ab e r t u ra po l í t i c a , fo can d o - s e em t o r no da r e s i s t ên c i a .

C om o o p r es en t e n aqu e l e m om ento e r a o d a vo l t a ao p r o cesso

d emo c r á t i co , a m em ó r i a co l e t iv a , ao o lh a r p a r a o pa s s ad o p r ev a l eceu -

s e n o s en t i do d e um a in t e r p re t ação de aco r do com a q ua l a s oc i ed ade

d e sd e s em p r e t i ve s s e r es i s t i d o ao r eg im e e n ão t e r i a o co r r i do

m an i f es t açõ es d e re s p a ld o – e s t á a i u m c l a ro ex em plo d e com o as

q u es tõ es d o p r e s en t e , p r in c i p a lm en t e a s p o l í t i c as , i n f lu en c i a r i am no

o lh a r p a r a o pa s s ado e a fo rm ação d e su a m em ó r i a .

D eb ru çand o -s e , en t ão , so b re e s t a m em ó r i a con s t ru íd a a

p os t er i or i s e r á pos s í v e l r e f l e t i r so b r e a po s tu r a d e es qu ec i m en to s ,

l emb ra n ça s e s i l ênc i os em r e l ação à co nf o rm ação do reg i m e c iv i l -

m i l i t a r , p r in c i p a lmen t e pe l a so c i ed ad e .

Fontes e referências bibliográficas

407A perspectiva adotada é a mesma de Beatriz Sarlo. Para melhor esclarecimento ver: Sarlo ,Beatriz.

Tiempo Passado: cultura de la memoria y giro subjetivo. Buenos Aires: Editores Argentina , 2005 .

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- Jornal Folha de São Paulo

- Jornal O Globo

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- Arquivo da Polícia Política; setor: informações; pasta 163, página 751. Arquivo Público

do Estado do Rio de Janeiro

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A Contribuição do Chorinho para a Inserção do Negro na Sociedade

Brasileira.

Leonardo Santana da Silva408

RESUMO: Esta pesquisa tem como originalidade o próprio tema sugerido, visto que

existem dois vieses específicos que consequentemente abordará dois temas distintos. Neste

caso, um está relacionado à questão da contribuição social do negro afro-brasileiro em

nossa sociedade, o outro está relacionado ao ponto de vista cultural através da criação de

um novo estilo musical num primeiro momento. Nossa proposta é justamente a junção dos

dois temas. Deste modo, a investigação apresentada no sentido teórico e metodológico

dentro das especificidades, propõe evidenciar a inserção e consequentemente a trajetória

social deste negro através desta prática cultural. A nossa investigação, propõe evidenciar a

proeminência socioeconômica desses músicos afro-descedentes no decurso deste novo

gênero musical, sendo visto como uma forma para a inserção do negro na sociedade

brasileira.

PALAVRAS-CHAVE: Inserção Social; Gênero Musical; Chorões.

ABSTRACT: This research has the original theme suggested itself, since there are two

specific biases therefore address two distinct themes. In this case, one is related to the issue

of social contribution of the black african american in our society, the other is related to the

cultural point of view by creating a new musical style at first. Thus, the research presented

in the theoretical sense and in the specific methodology, evidence suggests the insertion

408

Mestrando em História/USS. Professor do Conservatório Brasileiro de Música. Membro do conselho

Editorial da Revista Caminhos da História do Programa de Mestrado da Universidade Severino Sombra.

[email protected]

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and consequently the social trajectory of black through this cultural practice. Our research

proposes to highlight the prominence of these musicians socioeconomic african descendent

in the course of this new genre, being seen as a way for the inclusion of blacks in Brazilian

society.

KEYWORDS: Social Inclusion; Musical Genre; Chorões.

INTRODUÇÃO

A pesquisa proposta tem por finalidade estudar a relação entre o “choro” – novo

estilo musical construído por músicos negros das classes médias baixas – e sua inserção

social, no período que compreende o final do séc. XIX e início do séc. XX. Este novo

gênero musical, portanto, será um divisor de águas na história cultural de nossa sociedade.

É necessário ressaltar que o período no qual surge o choro, a sociedade era escravista

(1870), embora se tenha uma política voltada para a questão da abolição. Nesta trajetória

muitas medidas foram tomadas para a libertação do negro, sejam elas através de leis

emacipacionistas gradualistas (Lei Eusébio de Queiroz, Lei do Ventre Livre e Lei dos

Sexagenários), alforrias concedidas, pecúlio legal, formas de resistência de um modo geral,

enfim as várias maneiras de se ver livre deste sistema opressor, o que deve ser colocado é

que só através da abolição da escravidão é que esta liberdade será legitimada. Então fica

claro que se manter como parte integrante desta sociedade, era uma tarefa árdua para estes

negros, considerando que para as elites, o negro era visto como propriedade. Portanto

mesmo com República instaurada houve uma resistência nas mentalidades das camadas

superiores desta sociedade, no entanto o negro que a partir deste momento da história passa

a ser livre, continuando a ser mal visto diante daqueles que ainda possuia aquela visão

escravista enraigadas em suas mentes.

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Utilizaremos as categorias e conceitos dos seguintes pesquisadores e historiadores:

André Diniz, José D`Assunção Barros, Ary Vasconcelos e José Ramos Tinhorão. No livro

intitulado de Joaquim Callado o pai do choro, seu autor o pesquisador André Diniz,

discorre sobre a trajetória inicial deste novo estilo musical, passando para origem do seu

gênero propriamente dito, consolidado como uma nova identidade musical. O autor cita

também, pelo menos quatro versões sobre a origem da palavra choro. São elas: a definição

de Baptista Siqueira (maestro); a do folclorista Luís da Câmara Cascudo; a do pesquisador

Ary Vasconcelos e a do pesquisador José Ramos Tinhorão. Em relação a estas definições,

faremos sua exposição no itém destinado ao quadro teórico.

A obra mostra a miscigenação dos gêneros musicais tanto europeus, quanto o

africano, iniciando então a sua nacionalização. Isso significa a transformação destes estilos

para um outro propriamente popular brasileiro.

O autor André Diniz demonstra as diversas gerações destes chorões, além de narrar

o cenário do ambiente social, econômico e político do Rio de Janeiro neste período,

evidenciando que os chorões, vinham das camadas médias da sociedade, ou seja,

trabalhadores dos correios, telégrafos, bandas militares, pequenos cargos públicos, entre

outros. 409

Em se tratando dos conceitos formulados pelo historiador José D`Assunção, nos

apropriaremos de duas obras de sua autoria, cujo o conteúdo se enquadra perfeitamente ao

tema proposto desta pesquisa. O primeiro é o livro denominado de: O Brasil e a sua

Música. Primeira parte: Raízes do Brasil Musical. O autor relata num primeiro momento a

história da chegada dos negros africanos no Brasil, em virtude da colonização e as várias

fases da escravidão até a o período Imperial. O que podemos compreender neste momento

409

DINIZ, André. Joaquim Callado o pai do choro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 31-32.

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inicial da obra, é a presença de uma representação e descrição conjuntural da condição

socio-econômica deste período – séc. XVI – XIX. 410

O historiador José D`Assunção, analisa a questão relacionada à construção da

identidade afro-brasileira, devido ao processo de miscigenação das raças, resultando assim,

numa formação de um novo padrão cultural. Esta mistura racial demonstra ser um caráter

positivo principalmente no âmbito cultural. Ainda imerso a esta obra, José D`Assunção

fala claramente da importância deste encontro inter-étnico, que possibilitou diferentes

experiências musicais não só no Brasil como nas Américas de um modo geral. Um

exemplo crucial disto é o blues, o jazz, o samba, o chorinho e a bossa-nova.411

Um outro ponto que merece muita atenção é a contribuição trazida pelas danças e

ritmos de origem africanas e européias, que ao se misturarem, originaria numa nova forma

musical na esfera popular, erudita e folclórica brasileira. Ex: maracatu, congada, jongo,

lundu, polca maxixe, batuque, samba, afoxé, frevo, chorinho, etc.

Vejamos agora algumas diretrizes estabelecidas por este mesmo autor, em sua

segunda obra denominada de Nacionalismo e Modernismo – A Música Erudita Brasileira

nas seis primeiras décadas do século XX. Embora este seu livro esteja mais

especificamente direcionado para a construção do caráter nacional e moderno dentro da

música erudita brasileira, o autor desenvolve um capítulo interessante, onde relaciona a

influência do “choro” na música erudita brasileira.

O historiador José D`Assunção esclarece ainda a questão do que vem a ser o

“choro”. Assim sendo, ele fala sobre os elementos que contrói este gênero musical,

evidenciando a interação dos rudimentos folclóricos rurais e regionais do Brasil com a

música estrangeira. Afirma que a palavra “choro” surgiu para designar um estilo de grupo

410

BARROS, José D`Assunção. O Brasil e a sua Música. Primeira parte: Raízes do Brasil Musical. Rio de

Janeiro: 2002, p. 49. 411

Idem, p. 52-53.

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formado por músicos populares da época. O autor ainda descreve sobre a primeira

formação musical original, ou seja, a estrutura instrumental inicial (flauta, violão e

cavaquinho) e a função de cada instrumento. Menciona também a inclusão de outros

instrumentos na sua composição no decorrer dos anos.

Uma outra idéia que nos chama a atenção é quando José D`Assunção especifica a

passagem do termo “choro” (nome atribuído primeiramente por causa da formação musical

instrumental), para a consolidação do termo, passando a converter-se em um novo gênero

musical. Esta passagem ocorre quando estes músicos passam a adotar uma peculiaridade

em sua execução musical, ou seja, uma execução mais ligeira adquirindo assim uma

identidade própria.412

A visão que iremos trabalhar agora é de um outro intelectual fundamental nesta

discurssão: Ary Vasconcelos. Dentre algumas obras de referência em relação ao tema a ser

investigado, utilizaremos seu livro chamado Carinhoso etc. – História e Inventário do

Choro, com o propósito de elucidar um pouco mais a nossa apresentação.

No seu livro o autor aponta em que contexto nasce o “choro”: 1870 – final da

Guerra do Paraguai. Ressalta que o choro não é propriamente um gênero musical no seu

início, mas a designação de um conjunto instrumental que logo se transformou num jeito

brasileiro de se executar a música de gênero dançante vindo da Europa.

O livro segue com a divisão das gerações de chorões e a importância destes chorões

em sua respectiva época, ressaltando cada momento das diversas fases do “chorinho”. Uma

observação importante que deve ser destacada é o período da 3ª geraçãodos chorões (1919-

1930), onde surge o maior nome do choro de todos os tempos: Pixinguinha. É neste

momento que o choro, segundo Ary Vasconcelos, irá chegar ao seu ápice. Aponta que em

1919 será formado os Oito Batutas, o mais importante grupo de choro existente. Com a

412

BARROS, José D`Assunção. Nacionalismo e Modernismo – A Música Erudita Brasileira nas seis

primeiras décadas do século XX, vol. II. Rio de Janeiro: 2004, p. 257 a 259.

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formação deste conjunto, temos algumas mudanças significativas na composição

instrumental, como po exemplo, o ingresso da percussão no choro. Uma outra mudança é

no campo social, pois na maioria das vezes o choro era executado apenas em festas nos

subúrbios cariocas, passando a ser executado em festas da alta sociedade para figuras

importantes destas classes elitizadas, demonstrando uma convivência mais direta entre

estas classes. O autor nos dá exemplo da ocasião em que os reis da Bélgica estiveram no

Brasil, e foram executados “chorinhos” para essa realeza. Um outro exemplo foi o

financiamento de uma turnê pela Europa para os Oito Batutas, sendo essa de suma

importância, devido à divulgação de nossa cultura fora de nosso território nacional.413

Trabalhemos então neste momento os ensinamentos formados por José Ramos

Tinhorão. Na obra, História da Música Popular Brasileira, fala do surgimento da música

popular brasileira através de barbeiros. Afirma que devido às habilidades múltiplas dos

barbeiros e a sua condição privilegiada, por desenvolver uma atividade liberal, tinham

tempo para o desenvolvimento e aprendizagem de outras funções; dentro delas, a mais

procurada, seria a música. Destaca a presença de uma mistura de músicas, danças,

batuques, percussão e de tambores negros, que surgiram na Bahia e no Rio de Janeiro, na

metade do séc. XVIII, demonstrando ser o embrião para o nascimento do choro.

O autor relata a condição sociocultural desses instrumentistas negros (barbeiros),

destinados a um novo “serviço urbano”: “a música”. Deste modo, estes músicos passaram

a ser as principais figuras direcionadas a diversão em festas tanto na esfera pública quanto

na esfera privada. É neste contexto que o choro vai surgir, através da transformação da

música de barbeiros. Tinhorão indica a condição socio-econômica destes músicos,

destacando suas camadas e áreas de trabalho: funcionalismo público, funcionários dos

413

Vasconcelos, Ary. Carinhoso etc. – História e Inventário do Choro. Gráfica editora do livro Ltda. 1984,

p. 25.

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correios, repartições civis e militares, telégrafos, casa da moeda, estrada e ferro Central do

Brasil e entre outras. 414

CHORO E CHORÕES – UMA BREVE HISTÓRIA

Faremos agora um apanhado sucinto do que é o choro em se tratando do seu

conceito, pois a origem da palavra choro em si possui muitos sentidos, por esta razão, vão

existir diferentes concepções designadas para justificar e legitimar o nome dado a este

novo estilo musical, que ao passar do tempo, tornou-se um novo gênero na música popular

brasileira.

O choro vai surgir com a evolução da chamada música de barbeiros (estilo de

música vindo das camadas urbanas, onde se misturavam músicas, danças e batuques a base

de instrumentos de percussão negra, com os estilos brancos e mestiços), cedendo o lugar

para a criação de uma nova maneira de se executar a música que aqui havia:

O espírito de confraternização desses músicos se revela através do “choro”, música

que surgiu a partir da fusão do lundu, ritmo de sotaque africano à base de percussão, com

gêneros europeus. Suas interpretações musicais, ao sabor da cultura afro-carioca, eram o

tempero para as audições nos “arranca-rabos” e cortiços das chamadas populares, nos

bailes da classe média – batizados, aniversários, casamentos – ou mesmo nos salões da

elite da corte de D. Pedro II.415

Desta forma, temos como elementos básicos para a sua caracterização os seguintes

pontos: em primeiro lugar, é a sua formação instrumental original, que consistia de três

instrumentos básicos; flauta, violão e cavaquinho:

414

Tinhorão, José Ramos. História da Música Popular Brasileira. São Paulo: Ed. 34: 1998 p. 155 a 157. 415

DINIZ, André. Almanaque do choro. A história do chorinho, o que ouvir, o que ler, onde curtir. 2ª ed.

Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., p. 14.

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Nos seus primórdios mesmo, particularmente na cidade do Rio de Janeiro que é o

seu berço, a palavra Choro surgiu para designar um tipo de grupo formado por músicos

populares. A formação de raiz era o chamado “terno”, que consistia de uma flauta, de um

violão (ou dois) e um cavaquinho.416

A segunda característica fundamental é a composição dos diversos gêneros

estrangeiros, sobretudo europeus, acoplado a ritmos africanos. A terceira característica, e,

por conseguinte a principal, seria a questão de transformar todos esses elementos em um

jeito brasileiro de se executar a música:

As interpretações diferenciadas dos gêneros estrangeiros da época – como a polca,

valsa, o xótis, a quadrilha – fizeram nascer um jeito “brasileiro” de tocar. O choro do

século XIX surgiu como uma maneira de frasear, ou seja, um estilo de executar os gêneros

europeus. A influência européia, portanto era clara, mas não foi à única. O lundu era outro

rio que iria desembocar no novo ritmo.

Principal ritmo de origem africana a aportar no Brasil, o lundu, música à base de

percussão, palmas e refrões, era cultivado pelos negros desde os tempos de trabalho

escravo nas lavouras de açúcar da Colônia.417

O que queremos dizer é que boa parte da produção musical que se tinha no Brasil

neste período, era vinda da Europa, porém, não podemos deixar de mencionar a existência

de uma música proveniente das senzalas, assim como nas aldeias indígenas. Então, foi

através deste repertório musical que os músicos brasileiros passam a executar tais obras,

com seus próprios estilos, ou seja, dizendo numa linguagem mais popular, seria um jeito de

tocar mais abrasileirado. Logo com o passar do tempo, essa forma de executar as músicas

estrangeiras, começam a ceder lugar para o repertório criado através das composições

416

BARROS, José D`Assunção. Nacionalismo e Modernismo – A Música Erudita Brasileira nas seis

primeiras décadas do século XX, vol. II. Rio de Janeiro: 2004, p. 257. 417

DINIZ, André. Almanaque do choro. A história do chorinho, o que ouvir, o que ler, onde curtir. 2ª ed.

Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., p. 17.

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próprias que os chorões haviam realizados. Portanto, iniciaria uma nova etapa da música,

onde neste momento, passaria a existir, não só uma maneira de tocar, e sim um gênero

musical brasileiro.

Em se tratado dos chorões, podemos destacar alguns nomes importantes, que

compreende o período da fase inicial do “choro”. Dentro desse contexto, temos Joaquim

Callado (flautista e compositor) considerado pioneiro e pai dos “chorões”, Virgílio Pinto

(flautista e compositor), Saturnino (flautista), Juca Vale-violão (violonista), Miguel Rangel

(flautista), Luizinho (flautista), Viriato Figueira (flautista e saxofonista) entre outros.

André Diniz, em “almanaque do choro”, assim se refere:

Mestiço simpático, exímio flautista, mulherengo, e muito popular

na cidade do Rio de Janeiro, Joaquim Callado era filho da primeira

geração do choro. Ao seu lado estavam Viriato Figueira, também

flautista e saxofonista, Virgílio Pinto, compositor e instrumentista,

e o flautista Saturnino, entre tantos outros músicos que ajudaram na

criação do choro.

Geralmente o único que sabia ler a partitura, o flautista tinha papel

importantíssimo nos grupos de choro, pois incentivava o gosto pelo

choro aguçando as qualidades musicais dos acompanhadores de

ouvido.418

Podemos citar também, Alexandre Gonçalves Pinto em sua obra “o Chôro”:

“Os acompanhamentos eram violão, cavaquinho, oficlide,

bombardão, instrumentos estes que naquela época faziam pulsar os

corações dos chorões, quando eram manejados pelos batutas da

velha guarda, como sejam: Silveira, Viriato, Luizinho, etc.” 419

BIBLIOGRAFIA.

418

DINIZ, André. Almanaque do choro. A história do chorinho, o que ouvir, o que ler, onde curtir. 2ª ed.

Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., p. 15. 419

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Geraldo Sem-Pavor e Reconquista portuguesa: entre guerras pela memória e

histórias conectadas.

Luiz César de Sá Júnior

RESUMO: este artigo aspira a traçar algumas considerações a respeito da memória

constituída em Portugal de um dos heróis da chamada “Reconquista” contra os

muçulmanos, sobretudo a partir de crônicas produzidas por estes. Trata-se de Geraldo Sem

Pavor, figura que, procurar-se-á sustentar, em muito se assemelhou ao famoso El Cid

Campeador, de modo que suas histórias teriam estado, de algum modo, conectadas.

PALAVRAS-CHAVE: Reconquista portuguesa; Histórias Conectadas; crônicas

muçulmanas medievais.

ABSTRACT: this article intends to understand the memory created in medieval Portugal

about one of the so-called Reconquest heroes against the Muslims, especially from

documents produced by them. The author also tries to show how close this captain

“Geraldo Sem Pavor” was to another important Iberic hero, El Cid Campeador, arguing

that their histories were somehow connected.

KEY-WORDS: Portuguese Reconquest; Connected Histories; Muslim medieval

chronicles.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Graduando do oitavo período do curso de História da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Bolsista

de mobilidade acadêmica da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (FLUL) no primeiro semestre

do ano 2008-2009.

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Pretendo desenvolver, no presente texto, considerações iniciais – e um tanto

conjecturais - acerca de documentos de proveniência muçulmana concernentes a episódios

do processo de Reconquista e à posterior heroicização de alguns de seus personagens por

parte dos cristãos. Gostaria, sobretudo, de demarcar indícios que permitam-nos, hoje,

perseguir os caminhos de um dos expoentes de tais movimentos no reino de Portugal:

Geraldo Geraldes, aquele cujo nome que nos legou a tradição é Giraldo Sem Pavor. As

fontes escolhidas provêm da coletânea do professor António Borges Coelho, em Portugal

na Espanha Árabe (2 vols.)420

.

Igualmente, é objetivo do artigo procurar surpreender a longevidade e os conflitos

em torno da memória constituída à volta dos guerreiros da Reconquista. Em geral

considerados bastiões da cristandade ibérica, seus salvadores, acabam por não parecer tão

virtuosos à luz da trama que se pode deles reconstituir a partir da leitura e cruzamento das

fontes. Portanto, também se coloca a questão de como as experiências medievais

sobreviveram, em constante mutação, durante séculos, tendo-lhes sido atribuídos variados

suportes - como se sabe, a figura mais proeminente desse período, El Cid, ganhou as telas

do cinema e dos quadrinhos, para ficar em exemplos gerais, inúmeras vezes. Tentar-se-á

demonstrar que, partindo de textos eruditos recuperados pela corte de D. Dinis e pelos

renascentistas, além de monumentos vários, o legado em debate alcançou uma posição de

destaque no âmbito do conhecimento enciclopédico ocidental. As tramas intrincadas nas

quais estiveram inseridos os ditos “heróis ibéricos” parecem ter se fincado solidamente

nesse imaginário, persistindo em suas representações de forma vigorosa. Todavia, cumpre

deixar claro que:

420

COELHO, António Borges. Portugal na Espanha Árabe: História. v. 2. Lisboa: Caminho, 1989. maxime

p. 304-310.

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“Não é absolutamente o caso de identificar, nas figuras e cenas de

heroísmo histórico, mentiras históricas e desmascará-las. Trata-se,

ao inverso, de tomar o mito histórico, as visualizações da História,

de seus agentes, contingências e produtos, como parte do

imaginário social – a outra face indissociável da prática social.”421

Ademais, cumpre ressaltar outra lente teórica pela qual passa o estudo.

A partir de recente trabalho do historiador Serge Grusinski422

– devedor confesso de

uma sugestão conceitual de Sanjay Subrahmanyam423

-, pretendo utilizar a idéia de

“Connected Histories”, ou seja, a percepção de histórias que se desenvolvem sob o manto

protetor de um mesmo patrimônio cultural - muito embora tenham sido construídas

independentemente -, para demonstrar a interação peninsular da referida figura ambígua

que se evoca entre os personagens de destaque nas disputas contra os muçulmanos. Com

efeito, é de se insistir, para além de Geraldo e com uma relevância que o fez símbolo maior

dos movimentos supracitados, na figura de El-Cid Campeador.

Antes de antes de chegar aos referidos documentos, convém nuançar rapidamente o

contexto do aparecimento de Geraldo Sem Pavor e sua complexa relação com D. Afonso

Henriques, governante dos primeiros tempos daquele que viria a se consolidar como o

reino de Portugal.

Pouco se pode afirmar de suas origens. O aventureiro entra em cena por volta de

1165, quando D. Afonso Henriques, após seu estabelecimento em Coimbra, já havia

atingido a linha do Tejo, por meio de sucessivas investidas militares (impõem-se no

contexto as tomadas de Santarém e de Lisboa). Fato muito relevante, pois os grupos de

421

MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Museus históricos: da celebração à consciência histórica. In: Como

explorar um museu histórico. Museu Paulista (USP): 1992, p.10. 422

GRUSINSKI, Serge. Les mondes mêlés de la Monarchie catholique et autres «connected histories».

Annales, Paris, v. 56, n. 01, 2001. p. 85-117. 423

SUBRAHMANYAM, Sanjay. Explorations in Connected History: from the Tagus to the Ganges. Nova

Iorque: Oxford USA trade, 2005.

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apoio do intempestivo Geraldo teriam sido arregimentados em Santarém, o que sugere um

primeiro momento de aproximação entre ambos.

Os ataques de Geraldo a diversos castelos e cidades explicar-se-iam pela delicada

conjuntura fronteiriça, que exigia grandes cuidados e promovia vultosas oportunidades de

ascensão e conquistas econômico-militares. Com Afonso Henriques estabelecido em

Coimbra, a perda de posições localizadas ao sul da cidade poderia ter sido fatal no que era

pertinente às suas pretensões. Portanto, as ações de Geraldo, se não foram decididas em

comum acordo com o governante, contaram, ao menos, com sua plena anuência.

Igualmente, convém lembrar a chegada de tropas almóadas procedentes do norte da África,

responsáveis por colocar os reinos de Taifas em xeque, e a campanha de enfraquecimento

de praças como a de Badajoz. Visto que tratava-se de um ponto estratégico – um baluarte

“desde a época califal” -, o emir convoca forças externas, valendo-se do argumento da

guerra santa. Também apresenta-se para a batalha Fernando II, rei de Leão424

.

As praças tomadas com movimentos rápidos e, ao mesmo tempo, contrários à

prática militar dita honrada425

, conferiram-lhe grande vantagem, para não mencionar a

desorganização em que se encontrava o inimigo; nas palavras de Christophe Picard, “c’est

avec une poignée d’hommes que Giraldo Sem Pavor s’empara des deux capitales de

l’Alentejo, Évora en 1165, Beja, en 1172, signe de l’absense d’un véritable investissement

militaire almohade dans la région.”426

Temos, pois, uma conjuntura de reorganização do

espaço ibérico, em que não um ou dois, mas diversos grupos embatem-se simultaneamente,

de modo a formar um espaço tempestuoso o suficiente para que dele se retirassem

424

“A intervenção do rei de Leão era compreensível. Em 1153, assinara em Sahagún um acordo com seu

irmão Sancho III, no qual reservava para si a zona do Alentejo e do Algarve, com os territórios de Niebla,

Montanchez e Mérida, enquanto Sancho III se propunha a conquistar as províncias que ficavam a oriente

dessas cidades. Sendo assim, a posse de Badajoz pelos Portugueses impedia a expansão dos Leoneses para

sul.” MATTOSO, José. História de Portugal: a Monarquia Feudal. v. 2. Lisboa: Editorial Estampa, s/d. p.

78 425

Veja-se, a esse respeito, o trabalho de DUBY, Georges. Uma batalha na Idade Média: Bouvines, 27 de

Junho de 1214. Lisboa: Terramar, 2005. maxime p. 85-90. 426

PICARD, Christophe. Le Portugal Musulman – L’Occident et l’Al-Andalus sous domination islamique.

Paris: Maisonneuve et Larose, 2000. p. 106.

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elementos para a posterior elevação de seus personagens a posições principais, entre os

virtuosos e os desgraçados. Onde estará Giraldo?

GIRALDO SEM PAVOR ENTRE A VILANIA E O HEROÍSMO.

Iniciemos com uma das crônicas muçulmanas, atribuída a Abd Al-Malik ben Sahib

Asala. Relata-nos o autor:

“O pérfido galego Afonso Henriques, senhor de Coimbra – o

maldito de Deus! - conhecia bem a valentia do cão do Giraldo. O

pensamento constante deste era tomar à traição as cidades e os

castelos, só com a sua gente: ele tinha os muçulmanos da fronteira

sob o terror (das suas armas).”427

Como se lê, podemos assumir a já citada possibilidade de Afonso Henriques agir

consciente das intenções de Giraldo como um dado pertinente428

. De modo análogo, temos

respaldo documental que assegura que os ataques não dependiam das tropas regulares. A,

seguir, o autor discorre acerca dos métodos de batalha do mercenário, tal como se segue:

“Este cão (procedia assim): avançava, sem ser apercebido, na noite

chuvosa, escura, tenebrosa, e, insensível ao vento e à neve, ia

contra as cidades (inimigas). Para isso levava escadas de madeira

de grande comprimento, de modo que com elas subisse acima das

muralhas da cidade que procurava surpreender; e, quando a vigia

muçulmana dormia, encostava as escadas à muralha e era o

primeiro a subir ao castelo...”429

O cronista prossegue, afirmando que os homens de Giraldo entravam na cidade

com enorme furor, ora aprisionando, ora executando aqueles que foram surpreendidos.

427

COELHO, António Borges. Op. Cit. p. 304-305. 428

Fazem eco à interpretação MATTOSO, José. Op. Cit. p. 77 e PICARD, Christophe. Op. Cit. p. 113. 429

COELHO, António Borges. Op. Cit, p. 305.

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Parece que a prática de levar reféns que pudessem ser trocados por bens valiosos era

recorrente, sem mencionar a recolha do butim, ponto crucial das invasões. Chama a

atenção, ainda, o fato de que esse modus operandi perseguirá todas as representações

posteriores acerca do personagem em estudo. À partida, os procedimentos seriam

toleráveis por se tratar de uma batalha contra os inimigos da fé cristã – e entenda-se

aqui o peso da influência memorialista daqueles interessados em construir uma versão

gloriosa do passado nacional, rearticulando as declarações contidas nas fontes

muçulmanas disponíveis.

Encontramos, nesse sentido, uma descrição em pormenor da ação realizada em

Évora, publicada pelo humanista André de Resende. Seu trabalho, a “História da

Antigüidade da cidade de Évora”, atendia a um duplo interesse; por um lado, (i) visava

a solidificar na corte lusa de então o papel de destaque exercido por aquela localidade,

uma das primeiras regiões ao sul do Tejo a (re)confirmar-se cristã (uma cidade que

queria para si o prestígio que a permitia nomear-se “mui nobre e leal”430

); por outro,

(ii) objetivava, anacronicamente, identificar identidades religiosas vitais no que

respeita ao estabelecimento de uma identidade nobre no passado mais distante

possível431

. Os capítulos dedicados à história da região, diz-nos Resende, foram

traduzidos de uma obra árabe medieval, surgida pela pena do mouro Rasis. No entanto,

“segundo o escreve confuso, é necessário per conjecturas adivinhar”432

, o que deve

despertar os maiores alertas ao historiador que confronta-se com o documento. Sob o

signo da interpretação do que não está claro, o humanista engendra um artifício

430

O professor Serrão demonstra-nos que o desejo maior de Resende era “apregoar: Évora, a segunda cidade

de Portugal, era bem a primeira em ‘lealdade amor e serviço da real coroa’. André de Resende fortalecia

assim a vontade dos eborenses que aspiravam a que a Monarquia para aqui transferisse a capital do reino”.

Cf. SERRÃO, Joaquim Veríssimo. Figuras e Caminhos do Renascimento em Portugal. Lisboa: Imprensa

Nacional-Casa da Moeda, 1994. p. 365. 431

Essas tentativas parecem ser recorrentes na tradição ibérica, basta pensar na mitologia criada para o

célebre episódio de Covadonga, que pretendia-se baluarte final da fé cristã, símbolo, por definição, do início

da Reconquista. 432

RESENDE, André. História da antiguidade da cidade de Évora. In: RESENDE, André. Obras

Portuguesas. Lisboa: Sá da Costa, s/d. p. 43.

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funcional, que o autoriza a “explicar”, trazer o texto à compreensão como bem

entender. Vejamos alguns excertos:

“Giraldo Sem-Pavor foi nobre cavaleiro em tempo de El-Rei D.

Afonso Henriques; e, como em o dito tempo com as revoltas das

guerras e novidade do reino os nobres eram desmandados, pode ser

que faria alguma delito que me nom consta, ou haveria outra cousa

per que viesse em desgraça de El-Rei, de maneira que lhe conveio

ausentar-se e sair da terra dos Cristãos para escapar da ira de El-Rei

e lançou-se em este Alentejo, que então era todo de mouros sob o

senhorio de El-Rei Ismar...433

[grifos meus]

Ainda que alguma dúvida seja lançada sobre a situação em que se achava

envolvido Geraldo, temos a clara intenção de que ele fosse um nobre cavaleiro em más

circunstâncias, sincero cristão apesar de ocasional mercenário. Resende, a seguir,

investe em cores mais realistas, definindo que “nom duvido que fariam alguns

desmandos em roupa de cristãos, ca [porque] com os Mouros tinham pazes; por a qual

razão este Sumário lhes chama ladrões”, mas o traço redentor já está definido.434

Assim, abre-se a possibilidade de apenas repetir o que fora dito por Rasis, que narra a

invasão de Geraldo em tom propositalmente cruel.

“Esta atalaia determinou Geraldo primeiramente tomar; e, sabendo

que em ela estava um mouro com uã moça, sua filha, e nom mais,

partiu de noite com seus cavaleiros a grão secreto e foi lançar

detrás do dito outeiro; e […] foi contra a torre; […] cercou-se todo

de rama.

Chegou à torre […], que o mouro que até então velara se fora a

dormir e encomendara a vela à filha, a qual, como moça e pouco

cuidadosa de tal cuidado, se socornou na janela e adormeceu.

Alegre o cavaleiro de tão boa conjunção, desatando-se com a rama

trepou e, lançando mão à moça, deu com ela abaixo, de modo que

nunca mais falou nem fez rumor algum; e, entrando na torre, cortou

433

RESENDE, André. Ibidem. p. 48-49 434

Ibidem, p. 49.

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a cabeça do mouro, que achou seguramente dormindo e entregue ao

primeiro sono, e por ver que a hora da noite era inda tal, que tinha

bem espaço para, sem fazer sinal, ele per si tornar aos cavaleiros,

cortou também a cabeça da moça e com elas ambas nas mãos se

tornou a eles, animando-os e dando-lhes bom agoiro com a cómoda

oportunidade que achara.435

[grifos meus]

Revela-se, claramente, que em se tratando de uma batalha contra o inimigo

ancestral, pouco importam os métodos e, para mais, uma imposição sangrenta tem

respaldo. O vilão mercenário ganha, pouco a pouco, contornos heróicos. Porém, nas

crônicas mais distantes no tempo, a figura que se nos apresenta é ainda incerta. Retomemo-

nas.

Seguindo a crônica moura, alguns anos depois, em 1170, há novo cerco, em que

Geraldo tenta adiantar-se e capturar a cidade antes que Fernando II o faça, o que além de

tudo é um sinal da fragilidade da política de alianças empregada naquele período.

Durante o cerco, consegue interceptar um carregamento de víveres enviado pelos

almóadas de Sevilha, matando a maioria dos homens ligados a sua defesa.

De todo modo, acaba por ser derrotado, indo refugiar-se em Lobón, “na estrada que

ligava Badajoz a Sevilha”, o que o colocava, entretanto, em posição privilegiada para se

assenhorar de outros víveres e materiais diversos que passassem por aquele caminho.

Entre 1173 e 1174, teria conseguido invadir Beja, destruindo suas muralhas e

incendiando a cidade.

A partir daí, os caminhos trilhados por Geraldo tornam-se ainda mais confusos e de

difícil apreensão. As suas duas faces, a de herói da cristandande e da Reconquista, e a de

vil mercenário, disposto a atuar do lado que lhe pagasse mais, confundem-se. Podemos

seguir as pistas disponíveis em duas versões para a fase final de sua vida.

435

COELHO, António Borges. Op. Cit. p. 309.

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307

A primeira versão provém da crônica do Anônimo de Madrid e de Copenhague.

Nela temos que:

“No ano de 569 [11 de agosto de 1173 a 1 de agosto de 1174],

chegou (a Sevilha) o renegado, o infiel Giraldo que tomou por

surpresa a cidade de Beja e outros castelos e cidades, assim como

devastou as terras cultivadas e habitadas. Era alcaide de Ibne

Arrine (Afonso Henriques) e capitão de seus soldados.”436

Importa destacar que o autor do relato entende que Geraldo tinha uma posição

preciosa nas forças de D. Afonso Henriques, o que vai ao encontro do que proporá André

de Resende, e ao que se estabelecerá como versão canônica.

“Chegaram ele e seus companheiros à capital do califa (que era

Iúçufe) para, submissos e obedientes, se porem ao serviço deste e

provar-lhe que ele renegava os cristãos seus irmãos.”

“Foi o caso muito falado e o califa acolheu-o bem, mandando que

lhe dessem tudo o que precisasse e que o honrassem.”

“Ibne Arrine, senhor de Coimbra, quando disto foi sabedor, teve

dele muito pesar e escreveu-lhe secretamente para que voltasse,

usando de astúcia.437

[grifos meus]

O fato de Afonso Henriques procurar realocá-lo nas hordes cristãs denota sua

necessidade dos regimentos do Sem Pavor, que devia ter plena consciência disso. Jogava,

portanto, com ambos, procurando a posição que lhe seria mais rentável - e aqui afastamo-

nos da faceta do herói sacralizado por cumprir com um dever puramente cristão.

Nessa versão, Giraldo é preso algum tempo depois, sendo conduzido ao norte da

África, onde permanece encarcerado. Pensa em fugir, mas seus planos são descobertos e é

assassinado, emblematicamente, por decapitação, o que poderia sugerir que o cronista tinha

436

Idem. 437

Idem, Ibidem.

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consciência dos métodos do mercenário, impondo-lhe, assim, o mesmo tipo de sofrimento

na hora da morte (em torno de 1174).

A segunda versão provém do códice de Albaidac – chama-se “A morte espera em

Drá”. Partamos do trecho principal:

“Depois o príncipe dos crentes (Iúçufe, que estava em Sevilha)

partiu para a cidade de Marraquexe e levou com ele o cristão

chamado Guerando (Giraldo) que mandou residir para o Suz (cuja

capital é Tarudante e onde está Agadir) com o seu senhorio.

Foi daí que ele escreveu para Lisboa a Ibne Arrine para lhe dizer as

condições favoráveis em que se achava ali, junto do mar, e

acrescentava:

“– Se te parecer, manda navios armados para te apossares deste

país, porque podes contar comigo.” [grifos meus]

Mas o portador desta missiva foi preso e o príncipe dos crentes

mandou a Guerando que viesse falar-lhe à cidade de Marraquexe.

Assim foi.438

A leitura indica que a suposta traição tem início com Geraldo, não com o rei, o que

clarifica uma diferença significativa para o outro relato. Resgata-se-lhe sua dimensão

heróica, com uma morte que só aconteceu porque partiu dele o interesse em admoestar seu

líder a atacar o Marrocos.

.Suas tropas (350 homens) teriam sido distribuídas entre os senhores muçulmanos,

que o mandaram matar quando isso foi feito. Os eventos referidos teriam ocorrido entre 24

de setembro de 1169 e 12 de setembro de 1170.

As datas possíveis da crônica entram em franca contradição com os relatos que

rememoram a tomada de Beja (em 1173). No entanto, José Mattoso aponta que essa data

pode estar incorreta, pois evento muito semelhante teria ocorrido 10 anos antes439

.

438

COELHO, António Borges. Op. Cit, p. 310. 439

MATTOSO, José. Op. Cit. p. 78.

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Dadas as dificuldades em definir uma versão mais límpida, resta-nos perscrutar

possíveis interpretações para o que se fez dos vestígios de Geraldo e de sua memória.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Seja como for, graças aos avanços de Geraldo tornou-se possível sustentar as

vitórias militares alcançadas nas últimas décadas, mormente a de Évora. Aquela cidade não

voltou a cair em mãos dos mouros, embora outras tenham sido perdidas entre 1184 e 1191,

com a retomada das invasões almóadas440

.

Daí a necessidade de contemplar, neste breve estudo, a crônica do mouro Rasis e

sua interpretação por André de Resende. Évora conservou a memória heróica de Geraldo

de forma singular, concedendo-lhe status privilegiado. A figura que representa a mui nobre

e sempre leal cidade de Évora é, portanto, a de um não tão nobre e mui desleal cavaleiro.

Embora o estudo rigoroso dos textos revele ser quase impossível determinar se o caudilho

fora um vil ou um virtuoso cavaleiro, e esta é de fato uma questão desnecessária ao

trabalho historiográfico, podemos determinar com segurança que a imagem que se decidiu

ter dele foi preenchida pela segunda opção.

Por fim, não seria lícito questionar se ao Cid Português não se soma o Cid

espanhol? El campeador também teve sua trajetória marcada por acordos e conflitos entre

muçulmanos e defensores da cristandade. Teve, de modo análogo a uma das versões de

Geraldo, uma morte gloriosa e redentora; para mais, desfrutou de uma memória e de um

futuro de prestígio. Foi, desde então, de fato, la encarnación del heroismo y espiritu

caballeresco de la raza. Ambos cumpriram a função histórica de baluartes do

restabelecimento da “boa fé” nas terras ibéricas; mesmo sem jamais terem dividido o

440

Ibidem. p. 79.

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campo de batalha, suas trajetórias estiveram conectadas por obra das muitas gerações que

lhes sucederam. Igualmente, terão servido aos propósitos muçulmanos de propaganda –

basta retomar a suposta traição e perfídia de Geraldo, tão exaltada pelos cronistas mouros.

Na síntese de Boxer:

Como se sabe, os séculos durante os quais cristãos e muçulmanos

lutaram pelo domínio da península ibérica não foram épocas

permanentes de intolerância religiosa nem de guerra. Tanto o herói

castelhano El Cid Campeador como seu equivalente português

Geraldo Sem Pavor serviram aos governantes cristãos e

muçulmanos, conforme a ocasião.441

Tais premissas permitem postular a presença de um modelo ibérico do herói

reconquistador tramado muito tempo após a existência daqueles homens. Segundo o

conceito, já referido, que vem sendo elaborado por Serge Grusinski e Sanjay

Subrahmanyam, tratar-se-ia de uma história conectada, interligada por uma tradição

unificadora por ter propósitos análogos, embora especificidades, por óbvio, tenham

persistido. É possível que o movimento supracitado tenha tido seus primeiros instantes –

em termos de produção e/ou resgate de textos – na corte de D. Dinis.

“Enquanto o primeiro Livro de Linhagens se constituía à margem

da corte como reacção da nobreza senhorial a uma política régia

centralizadora (cfr KRUS 1993), a primeira tradução de uma

importante obra historiográfica era ordenada por D. Dinis (que

assim seguia os passos de seu avô Afonso X de Castela,

fomentando o desenvolvimento da historiografia pensinsular). A

Crônica do Mouro Rasis foi traduzida do árabe para o português

no início do século XIV, por Gil Peres (morto antes de 1315),

clérigo de Pero Anes de Portel, com a colaboração de mestre

Maomé. O texto resultante da tradução veio a ser parcialmente

integrado, com alterações, na Crônica Geral de Espanha de 1314,

compilada por D. Pedro, conde de Barcelos. O manuscrito

português da Crônica do Mouro Rasis perdeu-se no terramoto de

441

BOXER, Charles. O império marítimo português. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 16.

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1755, conservando-se dele apenas alguns fragmentos copiados por

André de Resende (1533), a quem o manuscrito pertenceu. Por

outro lado, tendo sido feita no século XIV uma tradução castelhana

do texto português, dela subsistem testemunhos que permitiram a

Diego CATALAN e Maria Soledad de ANDRÉS (1975) ensaiar a

reconstituição da crônica (em versão castelhana).442

[grifos meus]

Voltamos a vislumbrar o texto de Resende, escrito importante por seu caráter

confirmador das supostas virtudes da retomada de Évora a despeito dos vícios também por

ela trazidos. Partiu, como se vê, de um manuscrito consagrado pela corte lusa, dado o

destaque de ter sido o primeiro documento traduzido pela chancelaria do referido monarca,

imersa em um ambiente cultural propício.

O ideal de cavaleiro reconquistador acabou por ganhar espaço na tessitura das

mentalidades do Ocidente; coube a El Cid o papel principal. Não é por mero acaso que o

texto basilar de sua lenda conste como um dos tesouros da principal biblioteca espanhola;

também não é por acaso que, há algumas décadas, tenha tomado forma no cinema o

campeador e sua imagem messiânica, salvando seu exército da derrota já morto,

empalhado sobre seu cavalo – para não mencionar sua presença noutros suportes. No que

diz respeito a Geraldo, para além do brasão, há que lembrar que seu nome continua a ser

rememorado diariamente, em muito menor grau quando comparado ao seu duplo, pois a

cidade de Évora mantém a praça do Geraldo. Em seus arredores, temos uma estátua de

aparência cruel, na qual vemos o guerreiro no instante em que arrancou as cabeças do

mouro e da moura, como que exibindo o poder e o justo castigo merecido por aqueles que

desafiaram a fé cristã. A honra cavalheiresca desvaneceu; o mito, persistiu, entre batalhas

pela memória e a guerra pela Reconquista.

442

Martins, Ana Maria. Emergência e generalização do português escrito: de D. Afonso Henriques a D.

Dinis. In: MATEUS, Maria Helena Mira. Caminhos do português. Lisboa: BNL, 2001. p. 42, nota 24.

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FONTES

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A atuação dos oficiais do Senado da Câmara de Vila Rica, 1711-1715.

Luiz Alberto Ornellas Rezende443

RESUMO: O objetivo deste artigo é expor a metodologia utilizada para estudar a atuação

dos homens que integraram o Senado da Câmara de Vila Rica, nos primeiros cinco anos de

seu funcionamento. A fonte utilizada são as atas do Senado da Câmara de Vila Rica. A

pesquisa foi dividida em duas partes: 1) elaboração da relação de nomes e cargos dos

indivíduos que aparecem nas atas; 2) elaboração de um plano de classificação dos assuntos

tratados nas reuniões. Os resultados deste trabalho servirão de base para um futuro

aprofundamento das relações da Câmara de Vila Rica e seus componentes.

PALAVRAS-CHAVE: metodologia; base de dados; Vila Rica.

ABSTRACT: The objective this article is to present the methodology used to study the

actions of men who joined the Senate Chamber of Villa Rica in the first five years of its

operation. The font used is the writing of the town council of Villa Rica. The research was

divided into two parts: 1) drawing up the names and positions of individuals who appear in

the writing; 2) develop a classification scheme discussed at the meetings. The results of

this study will serve as a basis for further development of relations of the Board of Vila

Rica and its components.

KEYWORDS: methodology; database; Vila Rica.

Há um fato que ocorreu no final do século XVII na região onde encontram-se

443

Graduando em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e bolsista de Iniciação

Científica da FAPEMIG, no projeto “Os oficiais da Câmara Municipal de Vila Rica, 1711-1751”, orientado

pelo professor Dr. Angelo Alves Carrara (UFJF).

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atualmente as cidades de Mariana e Ouro Preto, que mudaria a história do Brasil: a

descoberta do ouro pelos bandeirantes paulistas. A descoberta transformou profundamente

a vida na colônia e criou uma verdadeira corrida para as áreas auríferas. Os paulistas,

descobridores, e os emboabas (reinóis e pessoas oriundas de outras regiões) travaram uma

disputa pelo poder, objetivando a ocupação e dominação dos espaços próximos aos pontos

de extração do metal precioso. Esta disputa se agravou e culminou, na primeira década do

século XVIII, no episódio conhecido como Guerra dos Emboabas.444

Poucos anos após o término do conflito armado, mais precisamente em julho de

1711, Antônio Albuquerque Coelho de Carvalho transforma alguns povoados da região em

vilas. Isto inclui Ouro Preto, então Vila Rica de Albuquerque. A elevação destes locais e

conseqüente criação de suas respectivas Câmaras, demonstra a necessidade e urgência de

consolidar a ordem na região, de fazer presente o poder do rei nas áreas em que se extraia o

ouro, e principalmente, de tentar equilibrar paulistas e emboabas.

Muitos trabalhos de qualidade abordam vários aspectos e utilizam várias fontes

relacionadas ao Senado da Câmara de Vila Rica. Entretanto, a pesquisa que desenvolvemos

não pretende repetir, ou mesmo continuar os passos trabalhados por outros autores.445

Pretendemos aprofundarmos nas questões ligadas à atuação dos oficiais do Senado da

Câmara de Vila Rica. Queremos compreender melhor a dinâmica de funcionamento da

instituição, buscando, sempre que possível, estabelecer um paralelo entre o ideal

(representado pelo que mostra-se presente na legislação da época)446

e o real (entendido

como o que de fato ocorria na instituição).

Apresentaremos, neste artigo, a metodologia que utilizamos durante a pesquisa,

evidenciando os avanços e recuos que mostraram-se necessários, como ocorre em toda

444

Ver VASCONCELOS, Diogo de. História Antiga das Minas Gerais. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1999. 445

Por exemplo: RUSSEL-WOOD, A. J. R. O governo local na América portuguesa: um estudo de

divergência cultural. Revista de História (USP), v. 55, n. 109, São Paulo, p. 25-79, 1977. 446

Me refiro às Ordenações Filipinas, publicadas pelo Senado Federal em 2004.

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pesquisa científica, e abordando pontos de sucesso e outros que consideramos ainda

problemáticos, não solucionados. Portanto, o objetivo deste artigo é compartilhar com

outros pesquisadores e interessados pelo assunto, os métodos que estamos adotando nesta

pesquisa.

O artigo está dividido da seguinte forma: primeiro descrevo em detalhes a fonte

central que utilizo para iniciar a pesquisa, e, a partir desta descrição demonstro, também

em detalhes, os caminhos que adotamos; segundo, trato da primeira frente da pesquisa, que

tem como foco a relação de homens que ocuparam ofícios no Senado da Câmara entre

1711 e 1715; terceiro, trato da segunda frente da pesquisa, que tem como foco os assuntos

que aparecem nas atas da instituição, também entre 1711 e 1715; quarto, mostro alguns

encaminhamentos, que pelo pouco que revelam frente ao que virá com o desenvolver da

pesquisa, creio não podem levar o nome de resultados ou conclusões, mesmo que

acrescidos do termo “parcial”. São amostras, encaminhamentos, alguns pontos que revelam

o quanto interessantes podem ser os resultados futuros.

A fonte central, na qual me baseio para levantar os dados presentes até o momento,

são as Atas do Senado da Câmara de Vila Rica, 1711-1715. O original encontra-se na

Biblioteca Nacional. Contudo, este material foi transcrito e publicado nos Anais da

Biblioteca Nacional, número 49, de 1927, e encontra-se disponível no site da instituição.

Utilizo como base nesta pesquisa este material que foi transcrito e publicado.

Esta fonte é composta por uma série de termos de vereação. Estes termos são textos

escritos pelo Escrivão da Câmara que registram as questões discutidas nas reuniões da

Câmara e as decisões tomadas. São, até o final do ano de 1713, textos normalmente curtos.

A partir de janeiro de 1714, com o início da cobrança dos quintos pela Câmara, nota-se que

os textos tendem a ficar mais longos, com algumas exceções, evidentemente.

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O primeiro passo foi a leitura dos termos de vereação. Durante a leitura, foi feita a

extração dados importantes presentes na fonte. Alguns dos dados extraídos foram: data das

vereações, nomes dos oficiais presentes e referidos cargos exercidos e os assuntos tratados

nas reuniões.

Feito esta primeira etapa, sistematizamos os dados extraídos da fonte, montando um

banco de dados informatizado visando uma maior praticidade, organização, rapidez e

clareza na obtenção de resultados. Neste momento observamos a necessidade de se dividir

em duas frentes a pesquisa: a primeira deve se concentra na montagem de uma relação com

todos os nomes ligados à Câmara que aparecessem nas vereações, e ainda, as informações

ligadas à estes nomes, como por exemplo os títulos, cargos e funções exercidas; a segunda

frente consiste em definir os assuntos discutidos nas vereações, e neste ponto vi a

necessidade de dividir estes assuntos em dois subgrupos, rotinas administrativas e eventos,

os quais tratarei em detalhes nas linhas que seguem.

Uma observação faz-se necessária neste instante. Há uma diferença essencial que

legitima esta divisão metodológica em duas frentes. A primeira frente, referente, como dito

acima, à montagem de uma relação com os nomes e demais informações dos homens que

exerceram ofícios ligados ao Senado da Câmara no período selecionado, é, como se pode

imaginar, uma atividade que pode ser classificada como objetiva, pois os dados aparecem

explicitamente nos termos de vereação. Em oposição à objetividade da primeira frente,

temos a subjetividade da segunda frente. Nesta frente é necessário ler o termo de vereação

e então montar um rótulo para cada discussão estabelecida. Este rótulo é dado pelo

pesquisador a partir da interpretação das discussões presentes no documento, ou seja, é

uma tarefa que está nas mãos do pesquisador, uma tarefa onde ele influi diretamente.

Assim, deve haver uma coerência do pesquisador com as informações contidas no

documento. Esta coerência, ao meu ver, só pode ser alcançada mediante o contato

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prolongado do pesquisador com a fonte, pois é este contato que amadurece sua visão.

Enfim, o que quero dizer é que, embora subjetiva, a montagem de um plano de

classificação dos assuntos contidos nos termos de vereação não é necessariamente

artificial. Seria artificial se não respeitasse o tom das discussões presentes na

documentação, se não respeitasse a lógica de funcionamento da instituição, lógica esta que

se torna perceptível não com uma leitura simples das atas, mas com um incansável

exercício de leitura e releitura, avanços e recuos, tentativas e erros nas definições de

assuntos. Ao ler, por exemplo, um termo de vereação de 1711, pode-se ter dúvidas de

como classificar determinada discussão, então, coloca-se um rótulo temporário. Com o

prosseguimento da leitura, pode-se (e normalmente é o que ocorre com freqüência)

deparar, em outros anos, em outras conjunturas, com a mesma discussão sendo levantada,

mas agora, envolvendo outras pessoas e outro Escrivão, que pode, dependendo das

circunstancias, detalhar mais os fatos e fornecer mais elementos para uma definição mais

ajustada à dinâmica da instituição.

Na primeira etapa do trabalho, o objetivo básico era elaborar uma lista com o nome

dos oficiais ligados à Câmara que aparecem nos termos de vereação entre 1711 e 1715.

Além dos nomes, levanto outras informações relevantes que, as vezes, aparecem nas atas,

como cargos, títulos e funções.

Antes de prosseguir, devo alertar para o que estamos chamando de oficiais. Não

estamos, neste primeiro momento, nos limitando aos cargos de maior destaque, entenda-se:

Juiz Ordinário, Vereadores, Procurador do Conselho. Agora, além destes cargos, que são,

junto com o Escrivão da Câmara, os mais presentes nas reuniões, procuro listar todos os

nomes que exerceram algum oficio ligado à instituição. Ou seja, quando dizemos oficial,

neste momento, estamos nos referindo aos homens que exerceram algum ofício.

Feito este esclarecimento, prosseguimos. Relacionamos cerca de 140 nomes que se

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encaixam nesta descrição. Evidente que não iremos, ao seguir da pesquisa, trabalhar

profundamente com todos. O objetivo neste momento é listar todos, para, em seguida,

selecionar um grupo para trabalhar com mais profundidade, possivelmente os oficiais que

mais vezes aparecem nas reuniões, ou seja, os oficiais votantes. Todavia, ter uma lista dos

Juízes de ofício, almotacés, lançadores dos quintos (a partir de 1714, quando este passa a

ser arrecadado pela Câmara), entre outros cargos, seria mais que interessante, de grande

utilidade à outros pesquisadores.

Como dito anteriormente, alguns pontos foram problemáticos. Além de efetuar a

coleta e sistematização das informações relacionadas aos oficiais, tentamos, durante alguns

meses, sistematizar também a freqüência com que os oficiais freqüentavam as vereações.

Contudo, uma incoerência recorrente presente na fonte, fez com que levantássemos

dúvidas quanto à viabilidade do levantamento destes dados utilizando apenas esta fonte.

Normalmente encontramos, no final do termo de vereação, a assinatura dos oficiais

presentes, exceto a do Escrivão, que redige o termo. Mas, já em 1713 começa a constar na

abertura do termo os nomes dos presentes (ver exemplo abaixo), além das assinaturas

finais. O problema é que, em vários termos de vereação, alguns nomes que constam na

abertura não são iguais aos que contam nas assinaturas finais. Como afirmei acima, tal fato

é recorrente a partir de 1713, quando há esta mudança na abertura dos termos. Veja um

exemplo deste tipo de incoerência em um dos termos de vereação:

[...] Aos vinte e seis dias do mês de fevereiro de mil setecentos e

quatorze anos nas casas da Câmara, estando juntos os oficiais dela

o Juiz Ordinário Ventura Ferreira Vivas, os Vereadores Capitão

Manuel Gomes da Silva, Domingos Francisco de Oliveira, e o

Procurador do Conselho o Capitão Antônio Martins Lessa,

resolveram o seguinte: [...] Acordaram deferir as partes e despachar

petições, e por não haver mais o que despachar houveram a

vereação por acabada de que mandaram fazer este termo que todos

assinaram. E eu, Bento Cabral Dessa, escrivão da Câmara o

escrevi.

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Vivas – Silva – Costa – Lessa 447

O nome que grifamos, Domingos Francisco de Oliveira, não consta na assinatura, e

aparece outro vereador, de sobrenome Costa, que não consta na abertura. Se este fosse um

caso isolado, poder-se-ia relevar, mas, pelo contrário, é um fato recorrente, e ocorre não só

entre vereadores, mas entre vários cargos. Poder-se-ia alegar também que é um erro de

transcrição, mas, é recorrente, o que nos faz desacreditar nesta possibilidade. Fato é que,

com os elementos que temos, não conseguimos ainda compreender esta aparente

incoerência. Talvez haja alguma explicação, e em breve, cruzando os dados das vereações

com outras fontes, poderemos chegar a alguma conclusão.

Seguimos para a segunda frente, relacionada aos assuntos discutidos nas vereações.

Durante a leitura foi possível observar duas formas de discussão. Uma ligada ao que era

rotineiro, ligado à administração da vila, e outra que não estava inclusa nesta atividade

rotineira, ao contrario, era eventual. Assim, dividimos os assuntos extraídos dos termos de

vereação e rotulados, em: 1) rotinas administrativas; 2) eventos.

As rotinas administrativas são discussões relacionadas ao cotidiano da

administração da vila, e são geralmente: eleições, arrematações de rendas, correições 448

,

posturas, despacho de petições.

Os eventos são fatos que não ocorrem de tempos em temos, como as rotinas.

Alguns exemplos são: notícia de paz com a França em 12/11/1713449

; ordem de colocação

de luminárias para se comemorar nascimento do infante em 17/11/1714450

; prisão de oficial

447

BIBLIOTECA NACIONAL. Atas da Câmara Municipal de Vila Rica. Anais da Biblioteca Nacional, Rio

de Janeiro, v. 49, 1927. p. 314. Grifo nosso. 448

Para mais informações sobre a forma como eram feitas as correições, ver BOTELHO, Tarcísio Rodrigues;

ABDO, Patrícia Ferraz. Administração camarária e comércio na Vila Rica do século XVIII: os almotacés e as

correições, 1754-1777. Caminhos da História, Montes Claros, v. 13, n. 2, p. 23-40, 2008. 449

BIBLIOTECA NACIONAL. Op. Cit. p. 285. 450

Ibid., p. 345-346.

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de ferreiro por desacato aos oficiais do Senado da Câmara em 30/1/1714451

e discussão

visando a implantação de uma nova rotina no Senado da Câmara, a arrecadação dos

quintos, em 6/1/1714452

.

Note que a metodologia adota para as rotinas não contempla os eventos. Para se

analisar as rotinas, é mais adequado utilizar o método quantitativo. Ao contrário, quando se

analisa os eventos, pouco numerosos, quase nulos se comparados às rotinas, o método mais

adequado é o qualitativo.

A quantificação destas rotinas administrativas e destes eventos está sendo feita, mas

ainda não há resultados conclusivos. Então, não temos ainda números para fornecer, e por

isso, como havia dito no início deste artigo, não tenho resultados concretos. Assim, retomo

a proposta inicial de demonstrar o método que estamos utilizando, seus pontos fortes e

fracos.

Há eventos que parecem pouco relevantes para a esfera local, como os que citei

acima, mas, há outros, que simplesmente mudam as prioridades da instituição em estudo.

Um exemplo é a discussão para se começar a arrecadar o quinto. Ela é eventual, pois não é

recorrente, é algo único. Não se pode confundir esta discussão com a que seguirá depois,

que é propriamente o correr da arrecadação, uma rotina administrativa, a rotina de se

arrecadar. Este evento é sim muito relevante, pois afeta profundamente a instituição e por

isso, em termos qualitativos, tem um peso maior, mas em termos quantitativos é

irrelevante.

Conforme explicado nas linhas acima, apresento alguns dados interessantes que já

possuímos. São dados simples, mas que revelam informações preciosas, que tentem a

reforçar a importância que acabei de destacar quanto à implantação da rotina de

arrecadação dos quintos.

451

Ibid., p. 305-306. 452

Ibid., p. 293-294.

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O recorte adotado, 1711 até 1715, embora pequeno, é relevante pois inclui a

mudança que ocorre em 1714, que, como já dito, corresponde ao momento em que o

Senado da Câmara passa a ficar responsável por arrecadar os quintos.453

Veja abaixo o

gráfico que mostra o número de reuniões do Senado da Câmara no período em questão:

Reuniões de 1711-1715

711 8

22

912

4335

78

49

0

10

20

30

40

50

60

70

80

90

1711 1712 1713 1714 1715

total do 1º mês

total do ano

22,86%

58,33%

25,58%18,37%

28,21%

Com base neste gráfico que elaboramos a partir da sistematização das reuniões da

instituição, podemos constatar algumas indicações interessantes. Analisando

primeiramente o numero anual de reuniões, vemos que no ano de 1711 tivemos apenas 12

reuniões, o que se explica por ser o ano de fundação, e pelas atividades terem começado

em julho, também pela própria falta de estrutura, visto que não havia se quer um prédio

próprio para abrigar a instituição. Em 1712, ano em que cria-se de fato uma estrutura

própria para Câmara, ocorre um número maior de reuniões, 43. Em 1713 as reuniões

somam 35. Em 1714 o número mais que dobra se comparado ao ano imediatamente

anterior, são 78 reuniões durante o ano, o equivalente aos anos de 1712 e 1713 juntos.

Observe que o ano seguinte, 1715, as reuniões voltam a um número próximo ao dos anos

453

Para mais informações quanto à forma de se arrecadar os quintos ao longo do tempo em Minas Gerais, ver

CARRARA, Angelo Alves. A Real Fazenda de Minas gerais: guia de pesquisa da Coleção Casa dos Contos

de Ouro Preto, volume 2. Mariana: UFOP, 2004.

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posteriores à 1714, embora o número continue acima da média, são 49 reuniões. Nota-se a

semelhança entre o excesso de reuniões de 1714, com o início da cobrança dos quintos

pelo Senado da Câmara, também neste ano.

Vamos agora analisar o total de reuniões realizadas no primeiro mês de cada ano.

Isto é importante pois, normalmente, é no primeiro mês que se concentra parte

considerável das atividades de todo o ano. Isto se da pois, no início do ano que

normalmente ocorre as eleições e posses e outras rotinas administrativas. Vemos que 1711

não pode ser levado em conta, visto que mais de 50% das reuniões do ano ocorreram em

julho, justo por ser o primeiro mês de funcionamento da instituição. Foi um mês atípico,

muito precisava ser definido, como atribuições e ganhos de cada cargo. Em seguida, no

ano de 1712, com as atividades mais estáveis, vemos que 25,58% das reuniões do ano

ocorrem em janeiro, ou seja, o primeiro mês concentra cerca de 1/4 de todos as discussões

do ano. Em 1713 mantém-se o padrão, 22,86%, pouco menos de 1/4 das reuniões ocorrem

em janeiro. Em 1714, embora o número não seja esmagadoramente maior, notamos sim um

predomínio das reuniões em janeiro, 28,21%. Todavia, temos que lembrar que o ano de

1714 contou com mais que o dobro das reuniões de 1713, foram, como já dito, 78 reuniões.

Assim, janeiro de 1714 foi um mês muito mais ativo em termos de reunião se comparado

aos outros primeiros meses do qüinqüênio. Foram 22 reuniões em janeiro de 1714 contra 7

em 1711, 11 em 1712, 8 em 1713 e 9 em 1715. Nota-se que em 1715 há uma queda da

relação do primeiro mês frente ao resto do ano, são 18,37% das reuniões em janeiro, menos

de 1/5.

O que se pode observar em linhas gerais, é a grande exceção que foi o ano de 1714.

Foram muitas reuniões no ano, muitas também as reuniões em janeiro, isto não só em

números relativos mas, principalmente em números concretos. São 22 reuniões em 31 dias.

É evidente que algumas destas reuniões ocorrem no mesmo dia, mas, de todo modo, são

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números que despertam a curiosidade.

Ora, o que estava ocorrendo em janeiro de 1714 era justamente a discussão sobre

como se daria a implantação dos quintos. Na reunião do dia 6 de janeiro de 1714 454

,

reuniu-se no Senado da Câmara de Vila Rica, vários representantes das vilas e demais

homens bons para decidir, junto com demais autoridades, como seria feita a cobrança. Este

é o evento, ou seja, a discussão sobre a implementação desta nova rotina, que muda a

órbita da Câmara. Creio que o excesso de reuniões de 1714 pode ser um indicador desta

transformação. É evidente que isto será confirmado com a quantificação dos assuntos

discutidos, tarefa que está sendo feita e em breve será divulgada.

Por fim, devemos reforçar a importância que noto, com base nas vereações, da

implantação da arrecadação dos quintos, e como, de certo modo, isto mudou as prioridades

da instituição. É possível que a discussão sobre os quintos não tenha ocupado a maioria

parte do tempo, mesmo em 1714. Mas, é certo que, grande parte das novas discussões que

surgem a partir de 1714, tem um vínculo ao menos indireto com a implementação da nova

rotina. Isto pois esta novidade exige a criação de novas funções, ou seja, esta rotina gera

um efeito em cadeira, e gera novas rotinas, como eleições e posses de novos oficiais.

Cabe, neste encerramento, reafirmar que o objetivo deste trabalho foi expor a

metodologia adotada, o que cumprimos. A divisão dos assuntos em rotinas e eventos

parece ser a característica elementar da pesquisa. A elaboração da lista dos oficiais

camarários, embora básica e pouco reveladora neste momento, é fundamental para o

próximo passo, que é o cruzamento desta lista com outras fontes. Por fim, os

encaminhamentos, as indicações que tecemos nestas últimas linhas, parecem demonstrar a

relevância do tema estudado e dos resultados futuros.

454

BIBLIOTECA NACIONAL. Op. Cit. p. 293-294.

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325

Fonte:

BIBLIOTECA NACIONAL. Atas da Câmara Municipal de Vila Rica. Anais da Biblioteca

Nacional, Rio de Janeiro, v. 49, p. 200-391, 1927.

Bibliografia:

VASCONCELOS, Diogo de. História Antiga das Minas Gerais. Belo Horizonte: Ed.

Itatiaia, 1999.

CARRARA, Angelo Alves. A Real Fazenda de Minas gerais: guia de pesquisa da Coleção

Casa dos Contos de Ouro Preto, volume 2. Mariana: UFOP, 2004.

BOTELHO, Tarcísio Rodrigues; ABDO, Patrícia Ferraz. Administração camarária e

comércio na Vila Rica do século XVIII: os almotacés e as correições, 1754-1777.

Caminhos da História, Montes Claros, v. 13, n. 2, p. 23-40, 2008.

RUSSEL-WOOD, A. J. R. O governo local na América portuguesa: um estudo de

divergência cultural. Revista de História (USP), v. 55, n. 109, São Paulo, p. 25-79, 1977.

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Ensaio Sobre Gaetano Mosca, Vilfredo Pareto e Robert Michels: A abordagem

elitista da democracia.

Raphael Gustavo Ladeira Moreno

RESUMO: O artigo trata da exposição da chamada teoria das elites, a partir das

visões de seus precursores, os italianos Pareto e Mosca e o alemão Michels, que

como teoria científica política surgiu com forte carga polêmica antidemocrática e

anti-socialista, que refletia o grande temor das classes dirigentes dos países onde

conflitos sociais eram ou estavam para se tornar mais intensos.

PALAVRAS- CHAVE: democracia; teoria das elites; desigualdade política.

ABSTRACT: The article proposes to address exposure of so-called theory of elites,

from the precursors, the italians Pareto and Mosca, and the german Michels, as a

scientific theory that has emerged with strong political load undemocratic and anti-

socialist, which reflected the great fear of the ruling classes countries where social

conflicts were to become more intenses.

KEYWORDS: democracy; theory of elites; political inequality.

INTRODUÇÃO

No contexto da política democrática do final de do século XIX e inicio do

século XX, quando a desigualdade é questionada, que se reerguem as vozes dos que

Graduando em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).

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afiançam que ela é "natural" e "eterna" – o que talvez seja a definição mais simples

do elitismo. No seu sentido corrente, o elitismo pode ser descrito como a crença de

que a igualdade social é impossível, de que sempre haverá um grupo naturalmente

mais capacitado que deterá os cargos de poder.

Essa idéia não é novidade, conforme Finley, tanto Platão quanto Lipset

entregariam a política a especialistas. O primeiro, a filósofos de rigorosa formação,

que tendo aprendido a Verdade, seriam dali por diante guiados exclusivamente por

Ela. O segundo, a políticos profissionais (ou a políticos comprometidos com a

burocracia), que seriam guiados por suas experiências na arte do possível.455

A palavra "natureza" é crucial: para o elitismo, a desigualdade é um fato

natural, isto está na raiz da atração que o pensamento elitista tem sobre aqueles que

ocupam posições de elite. Em vez de estarem nessas posições por mero acaso, de

contingências ligadas à estrutura da sociedade, seriam recompensados por seus

méritos intrínsecos. Dando-lhes um reconfortante sentimento de superioridade,

acompanhado do desprezo pelos que não são tão bons.456

Este é o papel da teoria elitista sobre a política e democracia, desde que os

conservadores Mosca e Pareto às introduziram na Itália, na virada do século,

seguidos pelo alemão Robert Michels.

O interesse elitista esta em demonstrar que a história é repetitiva:

transformando-se numa monótona saga de conflitos, onde não contam os ideais, mas

a força e astúcia, e que as chamadas revoluções não são mais do que substituição de

uma classe dirigente por outra; e que as massas são apenas um exército de manobra

da nova classe política em ascensão457

.

455

FINLEY, M. I. Democracia antiga e moderna. Trad. Waldéa Barcellos, Sandra Bedram. Rio de Janeiro:

Graal, 1988, p. 20. 456

SARTORI. Giovanni. A política: lógica e método nas ciências sociais. Brasília: UNB, 1981, p.47. 457

DAHL, Robert. Analise política moderna. Brasília: UNB, 1982, p.112.

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Há o entendimento da política como uma pratica de lideranças que, por suas

origem e formação, atribuem-se o direito de dirigir, comandar e reprimir as massas

populares as quais, por sua condição social e histórica, não são aptas a governar,

neste contexto é natural que os “inferiores” sejam dirigidos pelos “superiores” que

possuem conhecimento na arte de comandar.458

A Teoria das Elites foi plasmada no pensamento de Gaetano Mosca com sua

doutrina da classe política; Vilfredo Pareto com sua teoria da "circulação das elites"

e Robert Michels com sua concepção da "lei de ferro da oligarquia". É a partir

dessas visões que pretendemos abordá-la.

BURNHAM E OS NOVOS MAQUIAVÉLICOS

James Burnham (1905–1987), importante teórico político norte americano,

em sua obra, The Machiavellians de 1970, em contraposição à concepção idealista

da política e a realista personalizada por Maquiavel, teceu elogios aos novos

maquiavélicos: Mosca, Pareto e Michels. De acordo com a reinterpretação de

Burnham, teóricos da elite não eram mais apologistas de regimes totalitários. Ao

contrário, ao longo de toda obra Burnham muito habilmente tenta confirmar o

subtítulo da obra: defenders of freedom.459

Apesar de Gaetano Mosca ser tido como o fundador da teoria das elites no

final do século XIX, decidimos iniciar esta explanação por Vilfredo Pareto, pois ele

trata do conceito de elite de forma mais geral, o que facilita a sua exposição inicial.

458

Cf. LIPSET, Seymour. Política e ciências sociais. Rio de Janeiro: Zahar, 1972, p.74. 459

BURNHAM, James. The Machiavellians: defenders of freedom. New York: Freeport, 1970. A análise de

Burnham centra-se em 3 autores: Gaetano Mosca, Vilfredo Pareto e Robert Michels, os “maquiavélicos”,

com alguns breves comentários sobre Sorel. Portanto, a exemplo da obra de Burnham este artigo manterá o

foco neste trio.

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VILFREDO PARETO: A ELITE DOS MAIS HABILIDOSOS

Na perspectiva de Pareto (1848-1923) existem em todas as esferas, em todas

as áreas de ação humana, indivíduos que se destacam dos demais por seus dons, por

suas qualidades superiores, portanto a desigualdade é natural, fruto dos diferentes

talentos, seria impossível eliminá-la, para não dizer injusto. Eles compõem uma

minoria distinta do restante da população – uma elite. A existência das elites revela a

desigualdade – natural – entre os homens, da qual a desigualdade social seria um

mero efeito.

Para o conceito paretiano, a elite define-se através das habilidadedes

intrínsecas de seus integrantes – ao contrário do emprego corrente do termo, que

incorpora a capacidade de influência.

O termo elite não será atribuído apenas a uma aristocracia, e sim qualquer

grupo que se destaque - o mais habilidoso - em sua atividade especifica: o sociólogo

e economista, aplaina diferenças fundamentais, presentes na sociedade, ao tratar as

muitas elites como se fossem idênticas. Já que para Pareto, o mendigo que faz ponto

na frente da igreja matriz, e, portanto, é o mais bem-sucedido na sua atividade, é tão

"de elite" quanto o bilionário que ganha rios de dinheiro com a especulação

financeira, ou seja, é possível falar numa elite de guerreiros, numa elite religiosa,

numa elite econômica e até mesmo de ladrões.

Em síntese a desigualdades entre os indivíduos contribuem diretamente para

o surgimento das elites.

Entretanto, Pareto introduz uma distinção essencial no seio da elite: a que

separa a elite governante, que exerce o poder político, de todo o resto a chamada

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elite não-governante. A existência de um grupo minoritário que monopoliza o

governo é, para ele, uma constante universal das sociedades humanas.

Ao diferenciar os elementos dentro da elite introduz a constate: da rotação

entre os integrantes da elite a teoria da "circulação das elites", Pareto elabora a teoria

do equilíbrio social, que estuda a interação das diversas classes de elite, cujas

principais são as elites políticas que têm dois pólos: os políticos que usam a força (os

leões) e os que usam a astúcia (as raposas).

A dinâmica da teoria da "circulação das elites" e sua importância para o bom

andamento do governo, de acordo com Pareto: haveria necessidade tanto da astúcia

quanto da disposição para o uso da força, isto é, a elite governante deve possuir tanto

indivíduos caracterizados por: raposas (indivíduos da classe I) e leões (indivíduos da

classe II). Para se perpetuar, esse governo deve cooptar os indivíduos talentosos que

existam dentro da sociedade. Ora, os leões, justamente por serem leões, não são

dados a compromissos, e não aceitarão a cooptação, que ocorre em geral para postos

- a princípio - subalternos. Só as raposas ascenderão ao poder, causando um

desequilíbrio. Em primeiro lugar, haverá um governo formado total ou

majoritariamente por indivíduos da classe I, que preferem usar apenas a astúcia e

vacilam em empregar a força. A segunda conseqüência é um acúmulo de leões

privados de poder, mas desejosos de alcançá-lo, formando uma "contra-elite". Chega

um momento em que a pressão é grande demais, os indivíduos da classe II

promovem uma revolução e instauram um governo leonino. E o processo se reinicia

o que o torna cíclico, como dito na introdução.

Pareto generaliza, esse processo cíclico, ao tratar da Revolução Francesa: a

idéia de que todas as mudanças políticas são, por trás das aparências, repetições do

mesmo processo, a luta dos leões contra as raposas. Assim, discutir as

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transformações nas estruturas sociais, a economia ou a ideologia é inútil. Seja a

Revolução Francesa, partindo pressuposto que a massa é incapaz de intervir no

processo histórico. Se parece que o faz, é porque está sendo manobrada por outro

grupo mais habilidoso, atribuindo tal conquista a elite que emergiu dessa massa.

Enquadrando o movimento a sua teoria de circulação das elites.

Outro fato a se pensar dentro dessa dinâmica de “circulação das elites” é essa

presença da palavra força no que se aplica aos indivíduos da classe II – os leões:

Uma vez que segundo Pareto, nenhum governo persiste sem sua quota de

leões, o uso da força deve ser aceito como inevitável na sociedade. Fato que se apóia

para legitimar a repressão.

O que se deseja, aqui, não é refutar as idéias de Pareto. Caso fosse este o

objetivo, seria necessário observar que sua concepção da sociedade e do ser humano

é simplificadora ou, ainda, que, ao tratar de temas como o uso da violência, ele

aplaina diferenças significativas. Para os objetivos deste artigo, o que interessa é

perceber que todo o esforço intelectual de Pareto está voltado à demonstração de que

qualquer ordenamento democrático é ilusório.

Pareto tinha convicção na superioridade das elites econômicas e políticas

porque acreditava que as desigualdades sociais faziam parte da "ordem natural" das

coisas. Devido à sua intransigente defesa da dominação das elites, e também por ser

um crítico contumaz de qualquer forma de regime socialista, Pareto é apontado

como o ideólogo precursor do fascismo. Não obstante, ele nunca aderiu formalmente

ao regime fascista italiano.

Agora para o entendimento dos enunciados de Mosca, achamos por bem

fazer paralelos com o que foi exposto sobre Pareto.

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GAETANO MOSCA: PODER UMA QUESTÃO DE ORGANIZAÇÃO

Mosca (1858-1941) conforme dito anteriormente, estabeleceu os

pressupostos do elitismo, entendeu que um dos aspectos mais óbvios de todos os

organismos políticos: que havia duas classes de pessoas, uma mais e a outra menos

numerosa, sendo a primeira dirigida e a segunda dirigente. O que distinguia a

minoria da maioria, conferindo-lhe o poder de dirigir, era, inicialmente, a

organização. Para ele, o domínio da minoria sobre a maioria é uma constante

universal.460

Conforme sua obra La clase política, a chave, para entender esse fenômeno,

é que a minoria é organizada, enquanto a maioria, justamente por ser tão numerosa,

está fadada à desorganização. Se quiser se organizar, precisará constituir uma

minoria dirigente dentro de si. O fato de ser organizada torna, a minoria mais

numerosa do que a maioria. Ou seja, o membro da maioria que se insurgir estará

sempre isolado contra a classe dirigente, que age em bloco.461

Portanto, ao contrário de Pareto, Mosca não está preocupado em determinar

quais são os mais habilidosos ou qualificados. Ele despreza as explicações

psicológicas, vinculando o domínio da minoria a uma questão organizativa.

O passo seguinte, em sua teoria, é a discussão da legitimação: a minoria se

faz passar, diante da maioria, como dotada de certa qualidade superior. Assim, o

exercício do poder é justificado em nome de princípios morais universais. Tais

princípios mudam historicamente, de acordo com a transformação material na

sociedade. Era a valentia, nas sociedades inseguras do passado, quando o gozo da

vida e dos bens dependia de força militar própria e os guerreiros governavam. Em

460

MOSCA, Gaetano. The Ruling Class. New York: McGraw-Hill, 1939, p.50. 461

MOSCA, Gaetano. La clase política. México: Fondo de Cultura Económica, 1992, p.57-58.

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seguida, com o aumento da produtividade da terra e a redução da insegurança, a base

do poder passa a ser a propriedade rural, e assim por diante. Trata-se de uma

perspectiva materialista, que, em vez da luta entre leões e raposas, apresenta o

conflito contínuo entre antigas fontes de poder, que querem se manter, e novas

fontes de poder, que desejam emergir.

Introduziu a hereditariedade como um dos elementos destinados ao acesso à

classe dirigente. Essa idéia levou-o a sustentar que a classe dirigente não poderia se

manter no poder somente na base da força. Ela deveria pautar-se em algum outro

princípio, quer fosse ele religioso legal ou moral. Seguindo linha próxima à Pareto,

Mosca, portanto, entenderam que na sociedade existem indivíduos mais bens

dotados que outros, e que aqueles, por causa de seus atributos, estavam destinados a

dirigir a maioria.

Mosca deu entrada para uma interpretação não ideológica da teoria das elites,

distinguindo duas formas diferentes de formação das classes políticas segundo a qual

o poder se transmite por herança, de onde provêm os regimes aristocráticos, ou

buscando constantemente realimentar-se das classes inferiores, de onde nascem os

regimes democráticos, tratado amplamente nas criticas de Gramsci (1891-1937), no

sistema de que ele denomina transformismo: que seria a perda dos lideres

(intelectuais) das classes subalternas, quando acabam por aderir a política

dominante, para manter-se na sua posição de destaque.462

Como a de seu compatriota, sua teoria também investe contra as "ilusões" do

movimento operário, que se propunha reunir a maioria da população e levá-la ao

poder. Impossível: “já que a maioria nunca governa, no máximo pode entronizar

462

GRAMSCI, A. Escritos políticos: 1910-1920. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2004. vol. 1. p. 74.

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334

outra minoria” 463

. Como visto, é uma teoria conservadora, pragmática: não adianta

tentar mudar o mundo, já que, em sua essência, ele permanece sempre o mesmo.

Enquanto Pareto e Mosca não se detinham em casos concretos, fazendo

grandes teorizações e depois pinçavam na história os exemplos que julgavam

adequados, Michels como veremos: adotava o percurso inverso.

ROBERT MICHELS: QUEM DIZ ORGANIZAÇÃO DIZ

OLIGARQUIA

Já Robert Michels (1876-1936) observa a relação entre a organização e grupo

de poder, seja inverso da que foi apontada por Mosca, pois para este doutrinador, a

organização é um instrumento para a formação da minoria governante, enquanto

que, para Michels, é a mesma organização que tem por conseqüência a formação de

um grupo oligárquico.

Com base em evidências empíricas demonstrou que mesmo dentro das

organizações partidárias que funcionam num sistema político democrático, há fortes

tendências à elitização, ou seja, concentração de poder num grupo restrito de

pessoas. Michels chamou essa tendência à elitização de "lei de ferro das

oligarquias".

O núcleo de sua tese é que qualquer tipo de organização caminha para a

burocratização. Aqui, ele fica com Mosca: a massa, o grande número, é incapaz de

se organizar. Quando resolve fazê-lo, deve fatalmente constituir um pequeno comitê

para dirigi-la. Isto é a burocratização: não há mais um movimento espontâneo de

massa, e sim algo com uma hierarquia, com regras, com disciplina.

463

MOSCA, Gaetano. La clase política. México: Fondo de Cultura Económica, 1992, p.34-35.

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ISSN: 2317-045X.

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335

A burocratização assume uma característica especial, que é a oligarquização.

Para que a organização aja com eficiência, é necessária a criação de um quadro de

funcionários que se dediquem em tempo integral a ela. Ora, essa nova posição

funcional gera novos interesses, ligados a ela e diferentes daqueles que a base da

organização possui. O operário que se torna um quadro profissional do partido não é

mais um operário: é um burocrata ou um líder político. Para os militantes da base, a

organização é um meio para alcançar um determinado fim, que, no caso, era a

revolução socialista. Para o funcionário, a organização torna-se um fim em si

mesma, já que seu ganha-pão está no partido 464

.

Segundo Michels, isto levaria inexoravelmente ao abandono dos ideais

revolucionários. Primeiro, porque seus líderes já alcançaram uma posição

privilegiada dentro da sociedade; depois, porque uma tentativa revolucionária

poderia causar a dissolução do partido (e a perda do ganha-pão). O poder, diz

Michels é sempre conservador. Tal construção teórica, é a "lei de ferro da

oligarquia". Segundo ela, toda organização gera uma minoria dirigente, com

interesses divergentes dos de sua base. Embora os caminhos traçados sejam

diferentes, a conclusão é idêntica à de Mosca: só a minoria pode governar.465

Michels tocou em um ponto crucial para a implementação da democracia,

que é a relação entre representantes e representados. Sua teoria é útil para analisar o

desgaste atual dos partidos políticos, que pode ser creditado aos vícios que ele

descreveu. Experiências organizativas que procuram contornar esses problemas,

como a busca da rotatividade e da participação direta.

464

MICHELS, Robert. Sociologia dos Partidos Políticos. Tradução de Arthur Chaudon. Brasília, UnB, 1982,

p.223. 465

MICHELS, Robert. Sociologia dos Partidos Políticos. Tradução de Arthur Chaudon. Braília, UnB, 1982,

p. 219.

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Em sua obra: Sociologia dos Partidos Políticos, Michels confronta o Partido

Verde alemão, enquanto ainda uma pequena organização na década de 70, que fez

um esforço consciente para evitar a Lei de Ferro da Oligarquia. Qualquer um podia

se tornar dirigente. Não havia cargos ou secretários permanentes. Mesmo as menores

e mais rotineiras decisões eram levadas à votação. Porém, quando o partido começou

a crescer e a necessidade de efetivamente competir em eleições, arrecadar fundos,

fazer passeatas e trabalhar com outros partidos uma vez eleito, surgiu, isso fez com

que os Verdes usassem estruturas mais convencionais. O que comprovou para

Michels: que menor oligarquia gera, também, menor eficiência.

Em suma, a aplicação da lei férrea de Michels, feita no interior de partidos

ditos revolucionários, se da assim que as direções dos partidos revolucionários,

olhando pela sua auto- preservação, tratam de garantir a sua aceitação na vida

política (dos outros partidos governistas), afastando-se das vias perseguidas nos

primeiros anos de sua historia. Assim passam a se preocupar mais com crescimento

do aparelho partidário, reforçando o controle interno, partindo para a burocratização

e imobilidade de seus lideres.

Michels sublinha o fato de a organização se auto-proteger quando enfrenta

um desafio, mas deixa pairar a idéia de que o movimento normal das organizações,

na oposição ou no poder, é transformar seus objetivos de classe, o que os levam a

muitas das vezes a abandona -los em função de articulações mais vastas e úteis para

a própria organização, não mais representando o ímpeto inicial de mudanças, ao

quais esse partidos ditos revolucionários são frutos.

Tal demonstração empírica de sua lei férrea, no seio destes partidos

(sobretudo da Alemanha e também dos italianos e franceses), faz com que o

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sociólogo alemão afirme que nem as sociedade mais modernas e democráticas

podem escapar a essa tendência a oligarquia.

O que segundo ele, a longo prazo, promoverá a unificação dos pontos de

vista e a perda de relevância da diferença de opiniões. E os chefes (lideres dos

partidos), que não eram mais que órgãos executivos da vontade coletiva, em breve se

tornam independentes das massas, traçando o seu caminho como melhor imaginam.

Robert Michels não anula a luta política nas democracias: apenas procura

demonstrar que as bandeiras são fictícias (uma escolha entre símbolos

propagandeados como opostos), tendendo as oligarquias partidárias a comungar em

princípios doutrinais cada vez mais alargados por causa da conquista de camadas

cada vez maiores da massa.

Portanto, a maior contribuição a teoria das elites formulada por Michels se

refere ao fato, inusitado e paradoxal, de que a elitização ocorre até mesmo no

interior das organizações comprometidas com os princípios de igualdade e

democracia, ou seja, os partidos políticos de massa, sindicatos, corporações e

grandes organizações sociais. A chamada “lei de ferro”.

Partindo de uma perspectiva puramente política, que é absurdamente amoral

por definição, é claro que não há muito que refutar – e de fato, a realidade brasileira

atual parece profeticamente imitar a teoria de Michels: basta ver os partidos que

vimos nascer, crescer e morrer completamente determinados pela Lei de Ferro. E a

mudança social efetiva? Parece realmente não ter havido.

CONCLUSÃO

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Foram apresentados argumentos a respeito da teoria das elites enquanto

precursora da idéia da existência de uma categoria de pessoas, componentes de uma

minoria, que, portadoras de atributos que as destacam das maiorias que formam as

massas, estariam destinadas ao governo e à liderança de forma natural. Tal teoria, na

visão desses autores, versou sobre o entendimento acerca da existência de uma

"nata" de pessoas dirigentes, representativas de uma minoria, que estavam,

irremediavelmente, destinadas à liderança, em conseqüência de suas aptidões

naturais e superiores e, ainda, em conseqüência da incompetência e da apatia das

massa.

O desafio imposto pelas teorias de Mosca, Pareto e principalmente Michels é

que elas são bem fundadas e ainda assim parecemos não estar inclinados a aceitá-las,

talvez por algum idealismo remanescente, ou quem sabe por um sentimento

verdadeiramente ético. E este problema está na base da noção de ciência aplicada a

políticas sociais, já que uma ciência necessariamente trabalha com determinações, e

apreciamos pensar o sujeito político como dotado de pelo menos certas liberdades.

Se o sujeito político possui ou não liberdade, isso de fato não é um problema

da ciência política. Porém fica evidente que nenhuma teoria descritiva será capaz de

indicar caminhos possíveis (com qualquer teleologia, moral ou de outro tipo), e vice-

versa 466

. Talvez seja apenas o caso de que um "revolucionário", seja por tolice ou

sabedoria, simplesmente não possa ser um político.

Portanto, é no trabalho desses teóricos, onde se encontrou uma abordagem

linha-dura que explicava porque a dominação de uma classe sobre outra era

inevitável nas sociedades humanas.

466

WEBER, Max. Sobre algumas categorias da sociologia compreensiva IN: Metodologia das ciências

sociais, vol II. Campinas, UNICAMP, 1992. p.22.

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Conforme os “novos” maquiavélicos, as democracias modernas devem ser

consideradas oligarquias eleitas. Nesses sistemas, as diferenças efetivas entre os

rivais políticos são relativamente pequenas e limites estritos são impostos (pela elite

oligárquica) sobre o que constitui posições políticas “aceitáveis” ou “respeitáveis”.

Além disso, a carreira dos políticos como sabemos depende fortemente das elites

econômicas e intelectuais (mídia, etc.) que não foram eleitas.

Essencialmente a teoria das minorias governantes ou elitista, evolui

gradativamente para uma concepção desigual de sociedade, condizente com uma

visão cíclica da história e com uma atitude pessimista e uma incredulidade quase

total em relação aos benefícios da democracia, com uma crítica radical do

socialismo.

Tais interpretações sobre a democracia tendem a ser rebatidas com acusações

de que são: derrotistas, uma resposta a isso pode ser retirada das palavras de

Schumpeter “A comunicação de que um navio vai a pique nada tem de derrotista. O

espírito em que é recebida a comunicação, sim, pode ser classificado com

derrotista.” 467

ao rebater criticas a primeira edição de sua obra.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BURNHAM, James. The Machiavellians: defenders of freedom. New York:

Freeport, 1970.

DAHL, Robert. Analise política moderna. Brasília: UNB, 1982.

467

SCHUMPETER, Joseph. Capitalismo, Socialismo e Democracia. trad. Ruy Jungmann. Rio de Janeiro:

Fundo de Cultura, 1961. p.12.

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História em Rodapés: Os folhetins de França Junior.

Raquel Barroso Silva*

RESUMO: Em suas crônicas França Junior (1838-1890) revelou-se um exímio observador

do comportamento político e social da elite urbana da Corte no Rio de Janeiro. Sua sátira

muitas vezes se direcionou aos costumes dessas classes privilegiadas, como a importação

de hábitos, as eleições, os tipos freqüentadores dos cafés da Rua do Ouvidor, o

apadrinhamento político, os casamentos por interesse, os bailes e jantares, entre outros.

Isso faz de seus folhetins um fecundo manancial para os historiadores que pretendem se

debruçar sobre a sociedade carioca do século XIX. Dessa maneira, minha intenção nesta

comunicação é, a partir da análise de seus folhetins, todos publicados nas três últimas

décadas do Império Brasileiro, observar elementos da construção da nacionalidade

assumida pelos homens de letras do século XIX.

PALAVRAS CHAVE: Segundo Império; Folhetim; França Junior

ABSTRACT: In his chronicles França Junior (1838-1890) proved to be an expert observer

of the political and social behavior of the urban elite of the court in Rio de Janeiro. His

satire is often directed to the customs of these privileged classes, such as importing habits,

elections, types who frequented the cafes located at Rua do Ouvidor, the political

patronage, marriages of interest, the dances and dinners, among others. This makes their

chronicles a rich source for historians who want to study the society of Rio de Janeiro in

the nineteenth century. Thus, my intention in this communication is based on the analysis

* Mestranda em História - UFJF

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of their chronicles, all published in the last three decades of the Brazilian Empire, observe

the elements of the construction of nationality.

KEY WORDS: Second Empire; chronicles; França Junior

Em suas crônicas, França Junior (1838-1890) revelou-se um exímio observador do

comportamento político e social da elite urbana, ou burguesa, e até mesmo de parte da

aristocracia rural participante dos meios de sociabilidade da Corte no Rio de Janeiro. Sua

sátira muitas vezes se direcionou aos costumes dessas classes privilegiadas, como a

importação de hábitos e a supervalorização do estrangeiro, a moda afrancesada, as

eleições, os tipos freqüentadores dos cafés da Rua do Ouvidor, o apadrinhamento político,

os casamentos por interesse, os bailes e jantares, entre outros. Isso faz de seus folhetins um

fecundo manancial para os historiadores que pretendem se debruçar sobre a sociedade do

século XIX. Dessa maneira, minha intenção nesta comunicação é, a partir da análise de

seus folhetins, todos publicados nas três últimas décadas do Império Brasileiro, observar

elementos da construção da nacionalidade assumida pelos homens de letras do século XIX.

Em artigo publicado em janeiro de 1868, França Junior registrou qual era sua

concepção de folhetim:

O Folhetim é um verdadeiro salão de baile; “entra-se nele sem se

saber o que se vai dizer”. Ou antes, para me servir de uma imagem

que está mais à mão, é uma pasta de governo progressista, que o

ministro ainda imberbe aceita ignorando o que vai fazer468

.

A partir das duas metáforas que o autor utiliza para definir o folhetim a passagem

revela idéias que vão guiá-lo em seus escritos. A primeira é de que o folhetim é algo

despretensioso, leve, com uma função menos informativa e mais de entretenimento ou

468468

FRANÇA JUNIOR, Joaquim José da. Política e Costumes: folhetins esquecidos (1867-1868) Rio de

Janeiro, São Paulo, Bahia: Civilização Brasileira S/A, 1957. p.154.

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diversão do leitor ou leitora - a quem muitas vezes se remeteu diretamente. A segunda, um

tanto contraditória em relação à primeira é a utilização desses escritos como veículo de

crítica política. Ou seja, como uma maneira de intervir nos debates políticos de seu tempo.

Nascido na imprensa francesa, o folhetim apareceu pela primeira vez no Rio de

Janeiro em 1836, sendo denominado como tal dois anos depois quando ganha os rodapés

do Jornal do Comércio. Seu surgimento esteve ligado a difusão do hábito da leitura numa

pretensa sociedade moderna, através de um texto que visava, o entretenimento do(a)

leitor(a). Como ressaltou Marlyse Meyer, mesmo numa sociedade de maioria analfabeta as

leituras em voz alta despertavam aos poucos e em um público crescente o gosto pela

literatura469

. Estudando a participação do folhetim e da imprensa na conformação de uma

esfera pública no Rio de Janeiro do século XIX, Jefferson Cano observou que não demorou

muito para o folhetim cair no gosto do público, o que contribuiu para um aumento do

faturamento dos jornais da Corte no período, devido ao grande aumento de suas tiragens.

Desferindo um julgamento estético sobre este tipo de literatura, seus pais franceses

consideraram-no parte de uma“literatura industrial”, cuja qualidade menor decorria de sua

regularidade e, relativamente ampla, produção. Contudo, no que tange a crítica lierária,

basta lembrar que no Brasil, os grandes romances do século XIX foram publicados

inicialmente em formato de folhetins470

.

Ao menos no que concerne ao trabalho do historiador, o que nos chama a atenção é

justamente este caráter “industrial” que nos sugere que as crônicas e romances publicados

nos rodapés dos jornais brasileiros – da Corte em especial – tenham sido largamente

responsáveis pelo forjamento de nossa “nação imaginada” e da retórica que a confirma e a

469

MEYER, Marlyse. Folhetim: uma História. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. 470

CANO, Jefferson. Folhetim: Literatura, Imprensa e a conformação de uma esfera pública no Rio de

Janeiro do século XIX. Disponível em:< http://www.ifcs.ufrj.br/~nusc/cano.pdf >. Acesso em: 27/10/2009.

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recria, conforme a tese de Benedict Anderson, segundo a qual o advento da imprensa

capitalista é fundamental para explicar o surgimento da nação moderna471

.

Além do romances em folhetim e dos romance-folhetins também eram publicados

no mesmo formato um tipo de artigo mais parecido com a crônica atual. Era um misto de

“jornalismo e literatura de ficção, que serviu de espaço tanto para devaneios,

entretenimento, crítica teatral, exercícios de estilo, como para, no caso de França Junior,

José de Alencar, Machado de Assis e outros, falar de política, sociedade e costumes”472

.

Este tipo de folhetim foi caracterizado em seu tempo como um gênero leve e sem

pretensão à perenidade. Ou como o definiu França Junior “um verdadeiro salão de baile”

onde “entra-se (...) sem se saber o que se vai dizer”. Em 1875, José de Alencar já alertava

que essa despretensão era apenas aparente: “É uma arte difícil essa, de dizer tudo, não

dizendo nada”.

Diferentemente dos romances, que falam a todas as épocas, seu assuntos são mais

específicos da sua contemporaneidade. A leitura dos mesmos remete a uma “cumplicidade

construída entre autor e público”, uma nescessidade de articulação dos mesmos símbolos a

fim de viabilizar a comunicação entre ambos. Disso decorre uma certa dificuldade de sua

compreensão a posteriori473

.

Na crítica política embutida na segunda metáfora que França Junior utiliza para

definir o folhetim, “é uma pasta de governo progressista, que o ministro ainda imberbe

aceita ignorando o que vai fazer”, percebemos esta tentativa de intervenção na realidade.

471

ANDERSON, Benedict R. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do

nacionalismo. São Paulo Companhia das Letras, 2008. 472

FREITAS, Luiz Eduardo Viveiros de. Folhetins e Máscaras: a obra de França Júnior. PUC/SP.

Dissertação de mestrado em Ciências Sociais. 473

CHAULHOUB, Sidney; NEVES, Margarida de Souza; PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda (orgs).

História em cousas miúdas. Capítulos de história Social da crônica no Brasil. Campinas, Ed. da Unicamp,

2005.

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Essa característica dialógica, apesar de mais evidente nos folhetins, não esteve ausente das

demais formas de literatura do período.

As divergências teóricas, ideológicas e, até estéticas, que se apresentavam entre os

letrados do Segundo Reinado tiveram como campo de batalha principal, além da tribuna e

palcos, os jornais. Foi, principalmente, através de seus folhetins regulares para a imprensa

que esses homens exerceram sua política. E foi a partir de seus desempenhos teórico e

argumentativo nessas batalhas, nas quais utilizavam como arma a pena, que eles

adquiriram adeptos para as suas idéias, formando, e ao mesmo tempo servindo de caixa de

ressonância, da opinião pública.

Como destacou Norbert Elias: “Nenhuma pessoa isolada, por maior que seja sua

estatura, poderosa sua vontade, penetrante sua inteligência, consegue transgredir as leis

autônomas da rede humana da qual provêm seus atos e para qual eles são dirigidos” 474

.

Um indivíduo não pode transformar a sociedade sozinho e nem rapidamente, mas sua

posição pode determinar uma margem de decisão maior ou menor sobre essas

transformações. O letrado, detentor/manipulador da opinião pública possuía como poucos

o poder de influenciar nas transformações em curso na sociedade brasileira da segunda

metade do século XIX. França Junior tal como os demais, utilizou sua crônica como

instrumento, ou arma, na participação nestes debates. Conforme destacou Alexandre

Lazzari ao estudar Afonso Arinos de Melo Franco, literato contemporâneo a França Junior:

Tendo vivido em uma época de intensa elaboração e de polêmica a

respeito da identidade nacional entre a elite de literatos e bacharéis

do final do século XIX no Brasil, seus pontos de vista

representavam uma das vertentes de intensos debates e

antagonismos em torno de temas como raça e nação, tradição e

progresso, nacionalismo e cosmopolitismo475

.

474

ELIAS, Norbert. A Sociedade dos Indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994. p. 201. 475

LAZZARI, Alexandre. O buriti solitário e outras invenções: história, lugares e memórias da nação de

Afonso Arinos de Melo Franco (1868-1916). (mimeo)

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As mesmas considerações poderiam ser feitas a respeito de França Junior.O que

mostra que o autor estava imerso neste mesmo meio literário, compartilhando deste

ambiente cultural na segunda metade do século XIX.

Ao terminar a faculdade de direito em São Paulo e transferir-se novamente para o

Rio de Janeiro, França Junior trabalhou na redação do Bazar Volante, e iniciou sua carreira

como folhetinista no lugar de Ferreira de Meneses no jornal Correio Mercantil476

no qual

permaneceu até 1868. Adotara a essa época o pseudônimo Osíris, “metáfora da dispersão,

da fragmentação”477

como os artigos que pretendia escrever. Depois de quase dez anos

envolvido em outras atividades começou a escrever para a Gazeta de Notícias, e foi

correspondente deste jornal em Paris por ocasião da exposição de arte em 1878. Colaborou

ainda com outros jornais cariocas como, O Globo Ilustrado (1881-1882), O Paiz (a partir

de 1885478

) e Vida Fluminense, do qual ainda pouco sabemos e respeito de sua

participação.

Seus folhetins escritos para o jornal Correio Mercantil entre 29 abril de 1867 a 26

de julho de 1868, coincidem com o período em que esteve em vigor o terceiro gabinete

presidido por Zacarias de Góis e Vasconcelos principal alvo das críticas do folhetinista, já

que o Mercantil era, à época, um jornal conservador, descrito por ele próprio como órgão

genuíno deste partido. O folhetinista lançou mão de críticas e ofensas de todos os tipos

para enfatizar os defeitos de seus adversários políticos. Praticamente todos os folhetins

publicados fazem referência ao gabinete, aos progressistas ou aos liberais. Eram raros os

momentos em que França Junior se comportava como o que ele mesmo havia considerado

476

Seus folhetins publicados no Correio Mercantil durante os anos de 1867 e 1868 foram reunidos em

JUNIOR, França. Política e Costumes: Folhetins esquecidos (1867-1868) Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia:

Civilização Brasileira S/A, 1957. 477

FREITAS, Luiz Eduardo Viveiros de. Folhetins e Máscaras: a obra de França Júnior. PUC/SP.

Dissertação de mestrado em Ciências Sociais. 478

FREITAS, Luiz Eduardo Viveiros de. op.cit.

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“um folhetinista de regra”, aquele que deveria ocupar-se de acontecimentos sociais, bailes,

teatro e corridas de cavalo. Como uma maneira de justificar a política como alvo constante

de seus escritos o autor reclamava não haver outros assuntos interessantes naquela

“quadra”, por isso só o resta a presença diária na câmara dos deputados. “Sendo embora

uma distração ilícita e nociva, habituei-me a ela como ao charuto”.

Os ministros foram seus personagens constantes. Nesta série, os governantes são

tratados por várias expressões irônicas e satíricas como: os sete pecados capitais; os deuses

do Olimpo brasileiro; sete figuras sinistras; família composta de sete membros e diversos

agregados; sete pica-paus; sete gatos, entre outras. Ao chefe do gabinete referia-se,

ironicamente, como “o Guizot brasileiro”.

França Junior parece ter tomado para si a tarefa de relatar o período para a

posteridade. Mais de uma vez revelou, sempre com ironia, estar prestando um serviço para

a história de seu país através de seus comentários satíricos dos acontecimentos de sua

contemporaneidade:

Nos meus folhetins está a crônica da fase mais brilhante do

progressismo. (...)Cada um carrega como pode a sua pedra para o

edifício da pátria. Homero e Virgílio cantaram os seus heróis em

versos. Eu canto em prosa os feitos do meu tempo. 479

A Guerra do Paraguai (1865- 1870), como não poderia deixar de ser, foi tema

constante de seus comentários, que variaram entre elogios e críticas. Como patriota e

conservador defendeu e louvou as vitórias da Guerra e seus heróis e, por outro lado,

lançava criticas ferinas às decisões e omissões do gabinete frente ao conflito. Para ele o

aumento dos impostos, que o ministério justificava como decorrente dos gastos com a

Guerra era na verdade fruto da má administração “de um ministério à cuja frente está uma

479

FRANÇA JUNIOR, Joaquim José da. Um relatório Tipo. In: Política e Costumes: folhetins esquecidos

(1867-1868) Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia: Civilização Brasileira S/A, 1957. p.128.

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ISSN: 2317-045X.

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capacidade financeira” (Rio, 6 de outubro de 1867) e por isso deveria contribuir para a

resolução do problema.

Também se opôs ao recrutamento de negros, que muitas vezes eram oferecidos

como voluntários da pátria por seus senhores que em troca recebiam honrarias e

condecorações. Em 6 de outubro de 1867, constata: “um escravo começou a valer um

hábito da Rosa, quatro a comenda da dita e assim sucessivamente (...)”, em 3 novembro do

mesmo ano volta a tocar no assunto de que os progressistas “mandam negros para a

guerra” em 19 de janeiro do ano seguinte vai ainda mais longe:

Outrora um hábito de qualquer ordem simbolizava em uma farda

um feito de heroísmo, em uma casaca, um título nobre de serviços.

Presentemente as condecorações já não honram ninguém. Quem for

vaidoso e quiser se desfazer de um negro capenga... Para que

repetir o que todos já sabem? 480

A crise político-econômica decorrente da Guerra e de “outros contratempos que

afetavam o bom desempenho da economia, a exemplo do aumento das importações e da

queda acentuada do preço do café no mercado externo” 481

culminou na dissolução da

câmara e na exoneração do ministério Zacarias. Apesar de publicamente o ministério

declarar apoio ao comandante-chefe das tropas Paraguaias, o Marquês de Caxias, era

sabido que, na verdade, as divergências partidárias entre este e o general conservador

nunca deixaram de existir. Elemento chave para o desencadeamento desta desinteligência

entre o Marquês e o ministério foi a publicação de um artigo na Anglo Brasilian Times pelo

inglês Wiliam Scully culpando Caxias pela onerosa e demorada batalha em que a Guerra

havia se transformado. Como o periódico era subsidiado pelo governo, este foi

imediatamente responsabilizado pelo conteúdo do artigo. O fato serviu como gota d’água

480

FRANÇA JUNIOR, Joaquim José da. Política e Costumes: folhetins esquecidos (1867-1868) Rio de

Janeiro, São Paulo, Bahia: Civilização Brasileira S/A, 1957. p.161. 481

VAINFAS, Ronaldo (org.) Dicionário do Brasil Imperial. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002. pp.724-5.

Page 349: Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em ...¡rio... · Históricas (São Paulo: Editora Contexto, 2009) em que há um ensaio (de Maria de Lourdes Janotti) em que,

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ISSN: 2317-045X.

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para o Marquês, que pediu sua substituição no comando das tropas brasileiras alegando

problemas de saúde. França Junior vai lembrar do fato em 2 de fevereiro de 1868 ao dar

provas aos leitores de que estavam vivendo no “reinado dos disparates”:

Instado pelas folhas de oposição a declarar se aquele jornal [o

Anglo Brasilian Times] era subvencionado pelos cofres públicos, o

Sr. Zacarias mandou escrever no Diário Oficial que o Sr. Scully

tinha, é verdade uma subvenção, mas tão somente para ‘proteger os

interesses da imigração no estrangeiro’. E então? O governo quer

chamar emigrantes ao seio do país, e é o próprio a desmoralizar a

idéia, afirmando que paga um jornal para advogar seus interesses.

Que importância podem receber os artigos do Sr. Scully, á vistas de

uma tal declaração?482

Quando a notícia da vitória na, até então considerada invencível, passagem de

Humaitá chegou ao Rio de Janeiro, França Junior escreveu um folhetim intitulado A

passagem de Humaitá dando vivas aos heróis da pátria: “Viva a nação brasileira! Viva Sua

Majestade o Imperador! Viva o Marquês de Caxias! Viva o Barão de Inhaúma! Vivam o

exército e a armada!” (Rio, 3 de março de 1868). Na semana seguinte irá voltar ao tema

descrevendo o “regozijo que tem se apoderado” da população carioca desde que recebeu a

notícia “do brilhante triunfo de 19 de fevereiro” e da “terrível dor de dente” com que

“alguns”, leia-se os progressistas, receberam-na. Além disso, faz uma irônica retratação

quanto aos “vivas” que dera ao fim do folhetim anterior: “As glórias do acabamento

“honroso” da guerra não pertencem àqueles supostos heróis, mas sim ao imortal e

benemérito gabinete de 3 de agosto. Viva o invicto gabinete de 3 de agosto!!”. Com

extrema ironia irá registrar a “fundamental” participação de cada ministro na vitória de

Humaitá. Destacando a participação do então ministro da guerra João Lustosa da Cunha

Paranaguá pergunta: “Pode por ventura alguém contestar que o acabamento da guerra não

482

FRANÇA JUNIOR, Joaquim José da. Política e Costumes: folhetins esquecidos (1867-1868) Rio de

Janeiro, São Paulo, Bahia: Civilização Brasileira S/A, 1957. p.166.

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seja devido ao – recrutamento dos negros-minas, o feito mais brilhante do tino

administrativo daquele distinto estadista?” (Rio, 15 de março de 1868).

Com o advento do ministério conservador no dia 16 de julho o segundo qüinqüênio

liberal (ou liberal-progressista) havia chegado ao fim. No folhetim publicado quatro dias

depois, a mudança de temática a que o autor se submete é notória. A primeira parte deste

folhetim intitula-se “novos horizontes”.

Afastemos por um momento as vistas do quadro da política. Novos

horizontes se rasgam para o Brasil. No fundo daquele painel que

ainda ontem nos amedrontava com as cores mais negras, brilha

felizmente o arco íris, percussor da bonança. A política já não nos

causa receio. Nas ameias da pátria está içada a bandeira da ordem;

o sistema representativo vai entrar em seus eixos, sobre a liberdade

individual já não pesam os caprichos do arbítrio. (...) O folhetinista,

mais do que ninguém, deve ocupar o espírito com as diversões;

hoje aqui amanhã ali, vive de episódios (...) Se até aqui nos

preocupava a mente uma idéia fixa, não trepidamos em prometer ao

leitor que doravante havemos de ser um folhetinista em regra. 483

Aqui o autor retorna as duas idéias as quais foram destacadas no inicio desta seção;

o ataque aos inimigos políticos e a concepção do folhetim como um texto destinado ao

entretenimento do leitor(a). Prometendo cessar com as críticas políticas, seus folhetins a

partir de então deverão tratar de assuntos mais amenos, visando “ocupar o espírito com

diversões”. Com os conservadores no poder ele acredita poder abandonar o que ele mesmo

se referiu como uma “idéia fixa” e se destinar aos assuntos que “realmente” interessam ao

leitor(a) como “o baile da véspera, o acontecimento mais importante da semana, os dramas

que andam em voga nos teatros, a cantora que aportar às nossas plagas, o livro que vir á luz

da publicidade”.

483

FRANÇA JUNIOR, Joaquim José da. Política e Costumes: folhetins esquecidos (1867-1868) Rio de

Janeiro, São Paulo, Bahia: Civilização Brasileira S/A, 1957. p.277.

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Sua contribuição para a Gazzeta de Notícias, quase dez anos depois de haver

contribuído para o Correio Mercantil, realmente caracterizou-se por um tom mais leve,

mais de acordo com o que ele considerava ser o papel do folhetinista. Nesta série, o caráter

direto e ofensivo que demonstrara antes não está tão presente, os textos, em sua maioria,

são destinados a descrição satírica dos costumes da burguesia carioca. A leitura de alguns

títulos publicados neste período revela um espírito moralizador, elitista e urbano. Alguns

exemplos são: Bailes, Jantares, Visitas, O Namoro, Casamentos, Dilettanti, Os recitativos,

O cassino de Petrópolis, As nossas filhas484

. Em Visitas, assinala: “É na classe média, em

que figura a nossa boa burguesia, que as visitas devem ser estudadas” 485

. E a partir da

leitura dos demais folhetins podemos observar que o namoro, o casamento, os jantares e

etc., também foram “estudados” a partir da mesma perspectiva. A burguesia parece ter sido

a matéria prima e destino final de seus escritos, nesta série em especial.

A repetição de idéias e até de folhetins inteiros que já haviam sido publicados

rendeu-lhe muitas críticas por parte de alguns colegas de profissão que escreviam no

Besouro e na Revista Illustrada. Outro fator que foi motivo de muito chiste foi que seus

folhetins, enviados de Paris quando lá esteve, por ocasião da exposição de arte, tratavam de

piqueniques, feijoadas e outros assuntos tipicamente brasileiros. O que foi, literalmente,

um prato cheio para seus críticos que o alfinetavam com comentários do tipo: “Não é

exacto, como espalha a Gazeta, que o França Junior esteja em Paris. Sabemos de fonte

limpa que o autor das Feijoadas está bem perto de nós, em Guaratinguetá. E senão leiam os

seus folhetins”486

. Em outro número da Revista é simulado um encontro de França Junior

com o editor do Figaro (periódico parisiense) “- Eu sou o França Junior, folhetinista da

484 FRANÇA JUNIOR, Joaquim José da. Folhetins: Publicados na Gazeta de Notícias. 3.ed. Rio de Janeiro:

Livraria Jacintho Ribeiro dos Santos, 1915. 485

Idem. Ibidem, p.49. 486

Revista Illustrada. Ano 3 - 21 de Julho de 1878 – n°121 {1}.Biblioteca Pública do Estado do Rio de

Janeiro – Acervo digital – Periódicos.

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Gazeta, autor das Feijoadas e vim a Paris para não escrever cousa alguma sobre a

exposição...”487

.

Prometendo várias vezes não falar de política para não entediar a leitora,

perpassava pelo tema de maneira indireta. Como podemos observar em Mudanças, que

inícia-se com o aviso:

É de mudanças de casas e não de mudanças ministeriaes que vamos

nos occupar. Fazemos desde já esta observação, afim de que os

leitores e sobretudo as leitoras, para quem especialmente

escrevemos, não atirem a Gazeta, para um lado, e exclamem:

-Ora esta, temos política!488

Sempre prevendo uma reação negativa caso entrasse neste assunto ele inicia o

folhetim A República dando voz a um leitor imaginário que repugna assuntos políticos. E,

assim como em Mudanças, o folhetinista irá, antes de entrar no assunto a que se destina

naquele dia, fazer uma introdução onde suas opiniões políticas são expostas.

Porque chamam república o lar escolástico? Será porque a

desordem, entrando pela porta da rua, alli se installa com todo o seu

cortejo de extravagâncias e excentricidades, desde a sala, (...) até a

cosinha (...)? Será porque alli não há meu nem teu? Será porque...

Com os diabos, lá ia eu escorregando para a maldita política.489

Apesar de tranquilizar o leitor dizendo que irá falar de república como “a casa do

estudante”, simula ser traído pelo hábito e deixa registrada sua opinião a respeito deste

sistema político que cada vez mais se aproximava do único Império das Américas.

Os Folhetins publicados no O Globo Ilustrado (1881-1882) receberam a designação

de Notas de um Vadio. Nesta série França Junior não escrevia em seu nome e prometeu

487

Revista Illustrada. Ano 3 -17 de agosto de 1878 - n°125. Idem. 488

FRANÇA JUNIOR, Joaquim José da. Folhetins: Publicados na Gazeta de Notícias. 3.ed. Rio de Janeiro:

Livraria Jacintho Ribeiro dos Santos, 1915. p.63 489

Idem. Ibidem, p.199.

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publicava as notas que tinha em seu poder “tais quais” havia recebido. Em O Paiz , para o

qual contribuiu a partir de 1885490

sua contribuição foi maior. Sessenta e cinco de seus

Echos Fluminenses foram recolhidos e publicados por Alfredo Mariano de Oliveira para a

quarta edição ampliada de Folhetins. Nestes o tom cômico e satírico de seus folhetins

anteriores perderam-se em grande parte. Em algumas passagens sente-se a falta de assunto

(“Perguntar ao desgraçado Sizypho moderno, chamado jornalista, si quer um assunto é o

mesmo que perguntar ao pobre: - Queres uma esmola?”) ou até mesmo as restrições de

quem deveria escrever para agradar a todos (“não podemos externar com franqueza certos

pensamentos, sem ferir suscetibilidades e incorrer em desagrado” 491

) isso, de maneira bem

mais intensa que nos outros jornais. Também fez sentir um tom melancólico em relação a

própria vida, principalmente pelo fato de não ter tido filhos e em relação a um passado

mais glorioso. Características que se tornam compreensíveis quando pensamos esses anos

como anos em que tudo que ele sempre havia defendido, como o sistema monarquista e a

cultura conservadora, estava sendo destruído pelo progresso e pela força irreversível que o

movimento abolicionista e republicano havia ganhado então492

.

A partir desta pequena análise não pretendo reivindicar a elevação do nome de

França Junior para a lista dos grandes literatos do século XIX como Machado de Assis e

José de Alencar. Para o historiador esta análise literária tem valor secundário, pois o que

buscamos (a história) pode ser encontrado no mais brilhante romance ou no mais

corriqueiro folhetim. Posicionando-se abertamente a respeito das principais questões que

emergiram na segunda metade do século XIX, França Junior, assim como outros letrados

de seu tempo, fez da realidade “a uma só vez, a sua matéria prima e horizonte de

490

FREITAS, Luiz Eduardo Viveiros de. op.cit. 491

FRANÇA JUNIOR, Joaquim José da. Folhetins. 4.ed. Rio de Janeiro: Livraria Jacintho Ribeiro dos

Santos, 1926. 492

MELLO, Maria Tereza Chaves de. A república consentida: cultura democrática e científica do final do

Império. Rio de Janeiro: Editor FGV: Editora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Edur), 2007.

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intervenção”493

. Essa atitude nos permite utilizar seus folhetins como importante fonte

histórica para a compreensão da cultura letrada no segundo império.

BIBLIOGRAFIA

ANDERSON, Benedict R. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão

do nacionalismo. São Paulo Companhia das Letras, 2008.

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do final do Império. Rio de Janeiro: Editor FGV: Editora da Universidade Federal do Rio

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493

CHAULHOUB, Sidney; op.cit.

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Cataguás: historiografia e imaginário social494

Renata Silva Fernandes495

RESUMO: De modo geral, a história mineira é apresentada por meio de conceitos e idéias

gerais pré-estabelecidos, reduzida na maioria dos casos aos movimentos políticos e

econômicos. Neste discurso os indígenas que habitavam a região quase nunca são

referenciados ou eleitos como sujeitos ativos que integram a história. Refutando estas

abordagens, no presente trabalho, apresentaremos os resultados preliminares da pesquisa,

cujo eixo principal, se volta para um determinado grupo indígena - os Cataguá. Este grupo

teria habitado o Sul, Oeste e Centro Oeste mineiro sendo apontado como aquele que mais

incutira terror aos bandeirantes paulistas. Nosso objetivo consistiu em confrontar fontes

variadas com o intuito de verificar a existência de grupos Cataguá.

PALAVRAS-CHAVE: Cataguás; Minas Gerais; Imaginário Social

ABSTRACT: In general, the Minas Gerais history is presented through concepts and

general pre-determined ideas reduced in most cases to political and economical

movements. In this discourse, the indigenous people who inhabited the region are almost

never referenced or elected as active subjects that integrate, interact and constitute the

history. Rejecting these approaches, in this paper, we present the preliminary results of the

study, whose major axis, turns to a particular indigenous group - the Cataguá. This group

would have inhabited the South, West and Midwest Minas Gerais, being hailed as the one

494

Trabalho de pesquisa elaborado sob orientação da Profª. Drª. Ana Paula de Paula Loures de Oliveira no

âmbito dos projetos do Museu de Arqueologia e Etnologia Americana da Universidade Federal de Juiz de

Fora. 495

Graduanda do curso de história da Universidade Federal de Juiz de Fora e estagiária do MAEA-UFJF (e-

mail: [email protected])

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who instilled more terror to the Paulist. Our objective consisted to compare various sources

in order to verify the existence of groups Cataguá.

KEY-WORKS: Cataguás; Minas Gerais; Social Imaginary

INTRODUÇÃO

Durante a colonização do Brasil não foram poucas as incursões realizadas ao

território mineiro. Bandeiras oriundas da Bahia, do Espírito Santo e de São Paulo

adentravam os sertões em busca de terras e metais preciosos. Quando esses desbravadores

passavam pela região, esta não estava despovoada e , ao contrario, era habitada por

variados grupos indígenas que possuíam costumes, línguas e tradições diversas. Além da

busca por metais e terras estava também a captura de indígenas, que quando não

escravizados, tinham suas terras doadas a outrem. Assim, estas bandeiras foram

determinantes para o “desbravamento” e povoação de Minas Gerais, e não menos

responsáveis pela “dizimação” de diversos grupos indígenas (Resende, 2003).

Ainda de acordo com Resende (2003), ao longo do século XVII e início do século

XVIII, pode-se considerar que o contingente de desbravadores saídos de São Paulo

conhecia de forma mais intensa a região Sul e Centro Oeste do atual estado de Minas

Gerais. Também durante tal período, estes sertões eram conhecidos pela toponímia Minas

Gerais dos Cataguás. Esta denominação desperta indagações acerca de sua origem: seria

Cataguás um grupo étnico que habitava essa região ou apenas uma denominação genérica

diante o desconhecido a frente dos bandeirantes que desbravaram essas paragens?

HISTORIOGRAFIA TRADICIONAL

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Inicialmente vale explicitar que estamos reconhecendo enquanto historiografia

tradicional aqueles trabalhos que são referenciados como pioneiros sobre a história dos

indígenas de Minas Gerais. Estes trabalhos foram produzidos quando a escrita da história

era bem diversa, mesmo diante a diferença temporal existente entre as obras. Os pioneiros

da temática que tratamos- Nelson de Senna e Diogo Vasconcelos estiveram ligados ao

Instituto Histórico e Geográfico do Brasil (IHGB) em seus primórdios, o que torna como

características de suas obras o teor regional / local. Como observa Martins (2009) neste

período, fim do século XIX e início do século XX, no qual as pesquisas foram produzidas,

no Brasil ainda não havia sido construído um ambiente “propriamente acadêmico”, e as

corografias eram as publicações mais freqüentes. Estas corografias, “estudos geográficos

de um país ou de uma de suas regiões associados a fatos históricos”, muitas vezes são

caracterizadas, de acordo com Martins (2009), pelo emprego de informações orais

advindas de “testemunhas” ou originários da tradição coletiva. Esta adoção de relatos orais

como fontes atualmente vem ganhado espaço nas pesquisas históricas através da história

oral. Entretanto a história oral quando utilizada como fonte envolve uma gama de

pressupostos, não correspondendo assim à simples coleta de depoimentos, tal como ocorre

nas corografias.

Durante a revisão bibliográfica atentamos para a aceitação generalizada por

parte dos autores representantes da historiografia tradicional dos quais as obras foram

consultadas, Senna (1843), José (1965), Vasconcelos (1999), Barbosa (1979), acerca da

existência dos Cataguás enquanto grupo étnico. Barbosa (1979), por exemplo, apenas

aceita a existência do referido grupo indígena, sem maiores referências, através de

afirmações como: “Ali o nome [Minas Gerais dos Cataguás] se justificava: o Sul de Minas,

zona limítrofe de São Paulo, fora o domínio dos índios Cataguá” (Barbosa, 1979, p.35). Já

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José (1965), Senna (1843) e Vasconcelos (1999), dedicam alguns parágrafos de suas

pesquisas a tal grupo apesar das divergências quanto ao conteúdo do discurso.

Para Senna (1843) os Cataguás eram “terríveis índios da região Centro, Oeste e

Sul de Minas”. Descendentes dos Tremembés, o grupo teria saído do Jaguaribe em direção

aos Vales do Alto São Francisco e Rio Paranaíba. Para os Cataguás (gente boa) os paulistas

e os índios de além Mantiqueira eram a “gente ruim” (os Pixi-auás). Os sertanistas, com

auxílio dos Tremembé, no século XVII, repeliram os Cataguás do Sul (Sapucaí e Rio

Grande) para o Oeste (Rio das Mortes, Piumhy, Tamanduá e Abaeté). Ainda segundo

Senna, a memória “desses belicosos índios” é guardada por dois topônimos: o da cidade de

Cataguases, na Zona da Mata Mineira e o de um vilarejo no município de Prados,

conhecido como Catauá, visto que tal grupo foi “completamente batido” por Lourenço

Castanho Taques.

Barbosa (1979) discorda da informação referente à Cataguases. Para ele, o nome

original desta cidade mineira era Meia Pataca, e não há nenhuma relação entre o topônimo

e os Cataguás, mesmo porque este grupo se situava em uma região bem diversa da qual

está à cidade. Tal nome teria sido colocado quando o arraial foi elevado à vila, e por

influência do Coronel José Vieira, a toponímia foi determinada por fazê-lo lembrar da

infância, quando morava perto de uma localidade chamada Cataguás.

Vasconcelos (1999) é de opinião semelhante. De acordo com este autor os

Tremembés, saídos do Jaguaribe, se dividiram em dois seguimentos: uma parte do grupo

subiu o São Francisco até as suas nascentes e a outra percorreu o Parnaíba, ambas

encontrando-se no vale do Rio Grande. As duas levas lutaram entre si pelo domínio do

território e a posse foi decidida nas proximidades do Rio Sapucaí. Os derrotados

transpuseram a Serra da Mantiqueira, instalando-se nos arredores de Taubaté e os

vencedores permaneceram no território conquistado, espalhando-se até o Rio das Mortes.

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Na guerra eles chamavam a seus inimigos de pixaiauá (gente ruim) e a si mesmos de

Cataguá (gente boa). Aqueles, que haviam sido derrotados, se aliaram a bandeira de Felix

Jaques, repelindo seus inimigos para Pium-í e Tamanduá. Mais tarde, os Cataguás foram

definitivamente derrotados e massacrados pela bandeira de Lourenço Castanho Taques, em

1675, sendo que o lugar onde foi travada a luta ficou conhecido como Conquista.

Derrotados ou já miscigenados, os Cataguás debandaram em outras hordas.

José (1965) adota perspectiva semelhante. A única variação considerada

significativa é que segundo este autor os Cataguás não eram descendentes dos Tremembés

e sim foram expulsos da região de Jaguaribe pelos mesmos.

Podemos observar através deste recorte algumas informações fornecidas possuem

coerência. Revisando, alguns pontos parecem ser cruciais nestas abordagens: a) em todas

são estabelecidas analogias entre os indígenas Cataguás e os Tremembés; b) em relação à

geografia, o Rio São Francisco, o Rio Grande e o Rio Sapucaí são sempre citados; c) uma

possível briga interna do grupo sempre é mencionada; d) comumente o bandeirante

paulista Lourenço Castanho Taques é apontado como aquele que “derrotou

definitivamente” os indígenas Cataguás. Com vistas à compreensão de alguns destes

elementos individualmente – os Tremembés e a bandeira de Lourenço Castanho Taques -

vale explicitar o que frequentemente é narrado sobre eles.

De acordo com Gomes et al. (2000), o nome Tremembé parece ter sido dado a este

grupo indígena pelos portugueses devido aos locais que habitavam, conhecidos como

“tremedais”, “tremembés” e “tramembés” – equivalentes a pântanos. Para Pompeu

Sobrinho (1951) os Tremembés eram caçadores e pescadores nômades, que vagavam em

pequenos grupos abrigando-se em choupanas simples e pouco elaboradas. Ainda segundo

Gomes et al. (2000), estudos lingüísticos concluíram que a língua dos Tremembés era

autônoma, ou seja, sem possibilidade de enquadramento em uma das famílias e/ou troncos

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lingüísticos conhecidos. Resende (2003) discorda desta posição afirmando que os

Tremembés pertenciam à família lingüística dos cariris, grandes inimigos dos tupis.

Quanto à bandeira de Lourenço Castanho Taques, comumente é narrado que

adentrou o território mineiro e consolidou os caminhos para as Gerais em 1668. Segundo

Villanueva496

o sucesso desta bandeira se deveu a derrota imposta aos índios ‘cataquazes e

araxás’. Vasconcelos (1999) é de mesma opinião e afirma que: “A glória de Castanho foi,

sem a menor dúvida, o aniquilamento dos Cataguás...”. (Vasconcelos, 1999, p.96)

De todo modo, esta análise, apesar das especificidades, nos indica dois caminhos

possíveis: estes autores se basearam nas mesmas fontes, porém as interpretaram de forma

diversa, o que parece pouco provável visto a ausência de indicação das mesmas, ou, todos

seguiram os passos de um autor, neste caso Senna (1843), modificando aquilo que lhes

convinha ou acrescentando dados de acordo com outras fontes. Adotando-se esta segunda

perspectiva, as narrativas não deixam de ser relevantes, tendo em vista que estas pesquisas

foram produzidas em determinado contexto e aceitas por seus contemporâneos. A recepção

da informação, ou mesmo, o fato de que quem as escreveu acreditar em sua veracidade já é

significativo para a história, neste caso mais especificamente, para a história das

ideologias.

ABORDAGENS RECENTES

Ao contrário do que observamos em relação à historiografia tradicional, pesquisas

recentes vêm polemizando e colocando em dúvida a existência da Nação Cataguá. Isto

decorre principalmente do fato de que autores (Vasconcelos, Senna e Barbosa)

496

http://www.ifch.unicamp.br/ciec/revista/artigos/dossie5.pdf (25/08/09)

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considerados como principais referências acerca de tal grupo, não citam as fontes primárias

nas quais se apoiaram.

Tomaremos como exemplo o trabalho Arqueologia Regional da Província Cárstica

do São Fancisco de Henriques (2006). Antes de adentramos nos pressupostos estabelecidos

por esse pesquisador, cabe destacar que muitas de suas idéias já eram defendidas por

autores como Taunay (1948). Henriques (2006) afirma que algumas hipóteses associam

erroneamente os indígenas Cataguás as culturas ceramistas UNA e ARATU/SAPUCAÍ,

pois, no encalço de Senna (1843) e Vasconcelos (1999), os Cataguás, nestes casos, são

referenciados como grupo étno-histórico. Para Henriques (2006), os bandeirantes paulistas,

que não raramente eram fluentes na língua tupi, utilizavam o termo Cataguá para designar

os grupos indígenas que não habitavam as florestas. Desta forma Cataguá significa aquele

que vive no mato - caá (campo, mato ou árvore); tã (duro ou bruto) e guá (vale). Seria a

denominação genérica para os grupos indígenas que habitavam o atual território mineiro.

As hipóteses que fazem a associação entre os indígenas Cataguás e as culturas

ceramistas UNA e ARATU/SAPUCAÍ são encontradas nos trabalhos de Prous e Dias Jr.

Prous (1992).

Prous (1991), apresentando o sítio da fazenda São Geraldo, no município de Ibiá,

Minas Gerais, informa que a cerâmica encontrada inclui urnas globulares de superfície

áspera, com a boca circundada por uma incisão, e urnas intermediárias, reservadas

provavelmente a sepultamentos de crianças. O material lítico por sua vez, é formado por

lascas e pequenos blocos, além de alguns machados. Neste sítio, há coexistência de

cerâmica SAPUCAÍ com vasilhames assemelham-se com os da tradição UNA. Sobre este

aspecto comenta que Dias Jr., fez observações semelhantes:

falou na reunião em Goiás que o material da tradição Sapucaí

apresentava características por vezes mais próximas da tradição

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UNA do que da ARATU, da Bahia; no entanto não se estendeu em

pormenores sobre esse assunto. Esses sítios da região sudoeste

mineira costumam ser atribuídos aos Cataguás, que resistiram

demoradamente aos invasores brancos, mas não chegaram a ser

estudados. (Prous, 1991, p. 352)

Portanto, tanto Prous quanto Dias Jr. aceitam a existência dos indígenas da Nação

Cataguá enquanto grupo étno-histórico específico. A tradição ARATU é descrita por Prous

(1991) como originária do Nordeste, visto que, a datação mais antiga desta tradição (400

AD) foi obtida no Litoral Norte e no Recôncavo Baiano. A cultura UNA, presente em

extensa área do Brasil Central pode ser encontrada nos estados do Rio de Janeiro, Minas

Gerais, Goiás e Espírito Santo.

Tomaremos Resende (2003) como referencial dos trabalhos recentes de perspectiva

diversa a de Henriques (2006). Esta autora afirma que recentemente vestígios

arqueológicos dos indígenas da Nação Cataguá foram encontrados na Fazenda dos

Dutra497

, no município de Entre Rios de Minas onde ainda existe um lugarejo denominado

de Cataguá. A perspectiva adotada por Resende (2003) assemelha-se àquela narrada por

Senna (1843) e Vasconcelos (1999), no entanto, esta autora traz um novo elemento: a

citação de uma fonte primária que faz referência direta a este grupo, contrapondo deste

modo, um dos principais argumentos daqueles que tratam o etnômio Cataguás como uma

denominação genérica. Segundo esta autora, no Arquivo da Biblioteca Nacional498

, há

documentação de meados de 1730, segundo a qual o Conde de Sarzedas, através de

determinação régia, permitiu que Antonio Pires Campos escravizasse os indígenas

Cataguás “por causa das mortes, roubos e insultos que tem feito os gentios Cataguases e

mais bárbaros que infestam essas Minas”.

497

O sítio referido é denominado de João Maia e possui caráter multicomponencial pré-colonial. Foram

encontrados urnas funerárias e artefatos cerâmicos ao longo do trabalho realizado na área pela equipe de

arqueologia da UFMG. (www.iphan.gov.br/) (16/09/2009) 498

Arquivos da Biblioteca Nacional, sessão de manuscritos, Papéis Vários Manuscritos 1, 4, 1, doc. 18

(22/09/2009)

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Podemos observar através da análise das informações fornecidas pelos trabalhos

recentes, que os difusores da concepção da existência dos Cataguás, possuem um discurso

semelhante àquele proferido pelos autores da historiografia tradicional. Entretanto, as

principais críticas tecidas pelos que defendem a idéia de que essa era uma denominação

genérica, tal como Henriques, se fundamentam em uma atitude crítica em relação aos

trabalhos produzidos pela historiografia tradicional. Portanto, também não citam as fontes

primárias que conduziram suas interpretações. Trata-se de uma postura semelhante à

adotada pelos autores considerados tradicionais, que foram atacados justamente por este

motivo.

Independentemente das fontes aqui analisadas, sabe-se que os portugueses e os

bandeirantes identificavam os indígenas por termos que não correspondem à toponímia

com a qual tais indígenas se reconheciam, dificultando assim a pesquisa. Estes povos eram

denominados de “gentios”, “brasis”, “negros da terra” e mais, recebiam nomes advindos de

estereótipos estabelecidos. Por exemplo, os coroados não se reconheciam enquanto tal pois

esta designação lhes foi dada pelos portugueses, fazendo referência a forma circular dos

cabelos que estes utilizavam. O mesmo acontece com “tremembés”, “puris” e “botocudos”,

todas estas denominações externas499

.

IMAGINÁRIO SOCIAL

Além do trabalho dos pesquisadores já mencionados é possível encontrar

referências em relatos de indivíduos da região sul/oeste/centro oeste mineiro acerca dos

indígenas Cataguás.

499

Ver: FREIRE, Carlos augusto da Rocha & OLIVEIRA, João Pacheco de. Presença Indígena na Formação

do Brasil. Brasília: Edições MEC/UNESCO, 2006.

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A título de exemplo, em relatos informais500

, encontramos informações501

de que o

último chefe indígena da Nação dos Cataguás era conhecido como Itajibaçú e seu filho

como Jaquariuna, sendo que este último teve como descendente a Sra. Delfina Constança

de Magalhães ilustre moradora de Baependi, Minas Gerais. Há também lendas locais

acerca deste grupo502

, como a de São Tomé das Letras, segundo a qual, Lourenço Castanho

Taques, perseguindo os Cataguás, os encurralou na serra onde hoje se localiza o município

de São Tomé das Letras. Os índios depuseram as armas em uma gruta, na qual há

inscrições rupestres indecifráveis. Taques intrigado com as escrituras perguntou quem as

havia feito e os indígenas responderam: “Foi Sumé”. Os padres, quando chegaram á região,

aproveitaram-se da semelhança entre as nomenclaturas Sumé e São Tomé, atribuindo as

escrituras a este santo, que somados as letras da caverna deram o nome à cidade, São Tomé

das Letras.

Topônimos de cidades também são justificados mediante a presença dos índios

Cataguás. O nome Caxambu, por exemplo, segundo Maurício Ferreira503

tem origem no

dialeto dos nativos habitantes Cataguás, onde Caxambu derivaria de Catã-mbu (algo

semelhante a borbulhas na água).

Visto estes aspectos, constatamos a presença dos Cataguás no imaginário social.

Este elemento nos leva a indagar: se Cataguás era uma denominação genérica para os

grupos de além Mantiqueira, que não habitavam as florestas, por que os mesmos estão

presentes no imaginário social de uma região específica? Por que autores como Senna

(1843) e Vasconcelos (1999) afirmam a existência deste grupo?

500

Estamos denominando de “relatos informais” depoimentos de indivíduos dessa região retirados da

internet, que por isso, não reconhecemos enquanto fonte. Neste caso, estão representando uma tradição oral,

agora transcrita, porém que não foi coletada mediante o trabalho de história oral ou outra metodologia

acadêmica. 501

http://www.pedigreedaraca.com.br/barao_de_alfenas.doc?pedigree=c0351877e6d63baaa6 (25/07/2009) 502

http://www.viafanzine.jor.br/fonseca_mat.htm (01/08/2009) 503

http://www.descubraminas.com.br/DESTINOSTURISTICOS/hpg_pagina.asp?id_pagina=1660&id_pgiSu

per (25/07/2009)

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A primeira indagação talvez seja a resposta da segunda. Como mencionado

anteriormente, estes autores – Senna (1843) e Vasconcelos (1999), não

descontextualizados de seu meio (as corografias) podem ter-se baseado em relatos orais.

Além do mais, a inexistência da escrita indígena somada ao fato de que as fontes escritas

que possuímos acerca deste período foram produzidas pelo “outro”, portanto carregadas de

estereótipos, torna evidente a importância da tradição oral nesta temática,

independentemente do modo como os relatos orais foram recolhidos.

Mas e quanto à resposta a primeira indagação? O conceito de imaginário social é

definido de diversas maneiras, muitas das quais conflitantes. A perspectiva que adotamos

neste trabalho está relacionada com a concepção de que o imaginário social “compreende o

conjunto de imagens que formam a memória afetivo-social de uma coletividade,

permeadas por aspectos ideológicos”. Durand (apud Carvalho 2009) afirma que o

imaginário social é o estado de espírito de um grupo, de um país, de uma comunidade etc,

sendo que ele estabelece vínculo, é “o cimento social”. Por esta perspectiva, o imaginário

social é de significativa importância para o estudo desta temática, principalmente devido a

pouca disponibilidade de fontes documentais primárias. Pretendemos com o trabalho de

história oral, previsto para a segunda etapa, adentrar nesta perspectiva e com isso

compreender melhor a presença dos Cataguás na memória coletiva e também, somar

elementos que auxiliem a confirmação ou não de nossas hipóteses. Afinal, como observa

Silva (2004) o imaginário é uma representação mental, que ocorre de forma consciente ou

mesmo inconsciente, muitas vezes formada a partir de “vivências, lembranças e percepções

passadas”, que, no entanto, podem se modificar em decorrência de novas experiências.

CONCLUSÃO

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Diante análise das fontes secundárias e tendo em vista a presença deste grupo

indígena no imaginário social, arriscamo-nos a fazer proposições. Possivelmente os

Cataguás faziam parte de alguma coletividade que permitia aos colonizadores os

enquadrarem especificamente a esta denominação. Isto significa, por exemplo, que

possuíam língua, atitude ou aparência física e/ou cultural específica. Esta hipótese pode ser

confirmada pelo seguinte trecho, retirado do Códice Costa Matoso:

Entraram a conquistar desde São Paulo por esse lugares que hoje

são vilas. Itu, Parnaíba, [Mogi?], Jacareí, Pindamonhangaba,

Guaratinguetá, Piedade. Passando ao sertão, deram com uma aldeia

neste distrito de Rio das Mortes, a que chamam Cataguases, onde

prendendo muito gentio do beiço e orelhas furadas, estes falaram,

perguntando por que os perseguiam; se era pelo que traziam no

beiço e nas orelhas, que os largassem, que lhes iriam mostrar. Não

levados os paulistas detas oferta, nunca deixaram ” de os prender, e

logo para o rio das Mortes foi uma bandeira com seu capitão

chamado Jaguara, que na língua dos carijós é cachorro. A estes

mostrou um dos capitães do gentio o ouro no capim, em folhetas, e

outro, como grãs de minição. (p.218)

Ao que parece, o etnômio Cataguá (Cataguases) pode ter sido dado pelos

bandeirantes paulistas aos grupos que ali viviam, visto que são os “conquistadores” que

chamam a “aldeia” deste modo, o que contradiz a informação da autodenominação.

Entretanto, não é descartada a hipótese que estes indígenas podem realmente ter

constituído um grupo étnico, integrante dentre aqueles conhecidos genericamente como

botocudos, os gentios “do beiço e orelhas furadas”. Os botocudos, segundo Cunha (2008),

receberam esta denominação genérica, dada pelos colonos, devido à utilização de botoques

labiais e auriculares de madeira. Pertencentes a família Macro-Jê, como observa Marinato

(2007) os subgrupos denominados genericamente de botocudos, que inclui diversas etnias

como Poxijá, Jiporoc, Naknenuk, krenak, dentre outras, caracterizavam-se por diversidades

internas, inclusive lingüísticas, sendo muitos dentre eles rivais. Apesar das diversidades,

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segundo Mattos (2002) os botocudos compartilhavam um sistema sociocosmológico

semelhante. De acordo com Cunha (2008), os botocudos eram caçadores seminômades,

caracterizados pelo “constante fracionamento do grupo, pela divisão natural do trabalho e

por um sistema religioso centrado na figura dos espíritos encantados dos mortos”. Os

botocudos também eram conhecidos, segundo Marinato (2007) como “ferozes” e

“antropofágicos” devido à resistência e belicosidade por eles demonstrada aos

colonizadores sendo tratados por isso como “gentios bravos”.

Deste modo, encontramos informações pertinentes que induzem a aceitação da

existência dos Cataguás enquanto grupo étnico. Tanto os Cataguás como os botocudos são

caracterizados por divisões internas e ambos eram conhecidos como “gentios bravos” no

caso dos botocudos e como “aquele que mais incutira terror aos bandeirantes paulistas” no

caso dos Cataguás. Entretanto, o trabalho de história oral será necessário para confirmação

ou refutação desta hipótese e mais ainda para compreensão deste grupo no imaginário

social.

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Quando o “Libertino” Escreve Sobre Mulheres: Uma análise sobre as

personagens femininas nos romances de Voltaire.

Renato Sena Marques*

RESUMO: Este trabalho tem como principal objetivo discutir as representações de

Voltaire acerca das mulheres. Para tal intento, utilizo romances como fontes primárias.

Trabalho também partindo de um pressuposto: as representações das mulheres para o

Voltaire romancista diferem das tidas pelo Voltaire enquanto tratadista. Objetivo

apresentar os romances enquanto fontes possíveis para um melhor entendimento da

Ilustração, além de aumentar as possibilidades de conhecimentos sobre as diferentes visões

de Voltaire, enquanto romancista, sobre as mulheres dos setecentos. Trago também uma

discussão, tendo como sujeito de análise as mulheres, sobre a aplicabilidade (ou não) do

termo “libertino” para Voltaire.

PALAVRAS-CHAVES: Voltaire, mulheres, romances, libertinos.

ABSTRACT: This work has as main objective to argue the representations of Voltaire

concerning the women. For such intention, I use romances as primary sources. Work also

leaving of one estimated: the representations of the women for the romancista Voltaire

differ from the had ones for the Voltaire while author of a scientific treatise. Objective to

present the romances while possible sources for one better agreement of the Illustration,

beyond increasing the possibilities of knowledge on the different visões of Voltaire, while

romancista, on the women of the seven hundred. I also bring an analysis quarrel, having as

subject the women, on the applicability (or not) of “the libertine” term for Voltaire.

* Universidade Federal de Juiz de Fora.

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KEYWORDS: Voltaire, women, romances, libertines.

François Marie Arouet, o ”Voltaire” (1694-1778), está entre os personagens mais

importantes do movimento conhecido por Ilustração. De suas cartas, passando pelos

tratados e chegando até seus romances, a obra de Voltaire é deveras abrangente. Neste

trabalho, especificamente, utilizaremos o Voltaire romancista.

Observaremos como este autor se posiciona com relação às mulheres. Sabemos, a

propósito, que Voltaire já teria pensando a “mulher” em seu Dicionário Filosófico (1764;

Dictionnaire Philosophique). Contudo, vemos ali um estudo sobre um conceito. É a mulher

analisada sem a influência de um tempo específico. 504

E nisso não estamos interessados.

Queremos, ao contrário, compreender como Voltaire via a mulher dentro de um contexto

delimitado: o século XVIII. E nesse aspecto os romances, fontes principais deste artigo,

nos concede um apoio de suma importância. Por quê?

Para Ian Watt, os romances do século XVIII poderiam ser vistos como “modernos”.

Tal adjetivo se justificava, segundo o autor, pelo fato destes, ao contrário de gêneros

anteriores (as obras de “belas letras”, por exemplo) se comprometerem com uma descrição

de um pretenso “real”. Seria preciso (sem querer aqui acorrer em anacronismos) que os

leitores se identificassem com as ações descritas. Mesmo que para isto os romances

abdicassem de uma narrativa mais formal. Para Watt,

(...) já que o romancista tem por função primordial dar a impressão

de fidelidade à experiência humana, a obediência a convenções

formais preestabelecidas só pode colocar em risco seu sucesso.

Comparado à tragédia ou a ode, o romance parece amorfo –

504

Não negligenciamos, no entanto, que mesmo na própria formulação deste conceito exista a influência de

uma conjuntura setecentista.

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impressão que provavelmente se deve ao fato de que suas

convenções formais seria o preço de seu realismo. 505

Além deste rompimento com um certo formalismo narrativo os romances

buscavam, em sua maioria, descrever todas as ações com minúcias. E isto se vê tanto nas

especificações sobre o tempo e os espaços focalizados, quanto nos nomes das personagens.

Por essas características, Watt chega a comparar os romances com um

(...) outro grupo de especialistas em epistemologia, o júri de um

tribunal. As expectativas deste como as do leitor de um romance,

coincidem sob muitos aspectos: ambos querem conhecer “todos os

particulares” de determinado caso - a época e o local da ocorrência;

ambos exigem informações sobre a identidade das partes

envolvidas (...) e também esperam que as testemunhas contem a

história com suas próprias palavras. 506

Evidentemente, existiu um contexto por onde essa busca pela precisão se inscreveu.

Aceitamos, para balizar tal assertiva, o cenário traçado por Paul Hazard. Para este, parte da

Europa, no final do século XVII e início do século XVIII, teria experimentado uma “crise

de consciência”. 507

A despeito da pertinente opinião de Rouanet, que vê no século XVIII

não uma “crise de consciência”, mas uma “cristalização” de um ideal de civilização,508

não

nos circunscrevemos, no entanto, no recorte proposto por Hazard. Em outros termos:

entendemos que a “crise de consciência” não teria se findado em 1715. A “Fronda

Espiritual”509

, termo dado por Hazard à inquietação dos homens de finais do século XVII e

inícios do século XVIII, teria, em nosso parecer, permanecido nos debates que envolveram

505WATT, Ian. A Ascensão do Romance. Estudos sobre Defoe, Richardson e Fielding. Tradução de

Hildegard Feist, 1ª Edição. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 15. 506

Ibidem, p.31.

507C.f. HAZARD, Paul. Crise da Consciência Européia. Lisboa: Edições Cosmos, 1971.

508C.f. ROUANET, Sérgio Paulo. Dilemas da Moral Iluminista. In: NOVAES, Adauto (org). Ética. São

Paulo: Companhia das Letras: Secretaria Municipal de Cultura, 1992.

509HAZARD,Paul, op, cit.

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os homens de letras em todo os setecentos. Para Cassirer, seria nesses debates que o

movimento iluminista encontrava força para sua permanência e sua ascensão.

(...) o pensamento iluminista consegue sempre extravasar do

quadro rígido do sistema e libertar-se, justamente nos espíritos mais

fecundos e mais originais, da sua estrita disciplina. Não é nas

doutrinas particulares, nos axiomas e teoremas em que ele acaba

por fixar-se que esse pensamento manifesta com maior clareza a

sua estrutura e a sua orientação característica, mas quando se deixa

empolgar no próprio devir de sua elaboração, quando duvida e

averigua, quando derruba e constrói. A totalidade desse movimento

incansavelmente flutuante, em permanente fluxo, não poderia

reduzir-se a uma simples soma de opiniões individuais. 510

E, de certa forma, serão nas conseqüências destes debates que podemos ver

inseridos (e por que não surgirem?) os romances.

A “crise de consciência” é também uma crise de paradigmas. Trata-se de uma

percepção (e uma inquietação) dos indivíduos com um contexto de mudanças. Kosseleck

nos fala sobre uma modernidade que teria trazido, dentre outras, uma redução no campo

das experiências e um alargamento dos horizontes de expectativas. 511

É o que parece sentir

Jean Jacques Rousseau (1712-1778). Até mesmo para o filósofo genebrino a modernidade

lhe causa uma sensação de estranhamento:

Eu começo a sentir a embriaguez a que essa vida agitada e

tumultuosa me condena. Com tal quantidade de objetos desfilando

diante de meus olhos, vou ficando aturdido. De todas as coisas que

me atraem, nenhuma toca o meu coração, embora todas juntas

perturbem meus sentimentos, de modo a fazer que eu esqueça o que

eu sou e qual meu lugar. 512

510CASSIRER, Ernst. A Filosofia do Iluminismo. (Tradução: Álvaro Cabral). Campinas: Editora da

Unicamp, 1994, p. 12.

511C.f. KOSSELECK, Reinhart. Futuro Passado. Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de

Janeiro: Contraponto, 2006.

512ROUSSEAU, Jean Jacques, apud BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. São Paulo,

Companhia das Letras, 1987, p 17.

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Os romancistas escreviam, pois, nesta (e para esta) conjuntura. Destarte, não é de se

estranhar que homens como Montesquieu (1689-1755) e Jonathan Swift (1667-1745)

tenham ridicularizado o “reino do fantástico” contido em gêneros anteriores aos romances.

Em Cartas Persas (1721; Lettres Persanes), Montesquieu assim caracterizará os romances

de cavalaria: (...) “esses seriam nossos romances: aventuras tão insulsas e que a cada passo

se repetem, nos enfadam e nos repugnam os prodígios disparatados de que estão cheios”.

513 Swift, por sua vez, afirma desejar

(...) que fosse decretado por lei que, antes de qualquer viajante

publicar a relação das suas viagens, jurasse em presença do grã-

chanceler que tudo o que mandasse imprimir, fosse exatamente

verdadeiro, ou, pelo menos, que assim o julgasse. O mundo não

seria enganado como é todos os dias. 514

Não somente uma literatura anterior aos romances setecentistas foi criticada. A

História, com seu pouco apego à veracidade dos fatos e demasiada proximidade com as

belas descrições, também se constituiu alvo das críticas ilustradas. Rousseau, em seu

Emílio ou Da Educação (Émile ou De L’éducation), percebe a História como um trabalho

que distancia o leitor daquilo que é observado. Tal característica o leva, inclusive, a fazer

com que seu Emílio conheça os homens pela História. Somente assim, este último não se

aproximaria demasiadamente dos demais indivíduos. Distintamente, os romances, para o

genebrino, traziam situações “reais” que, por conseguinte, aproximava o leitor daquilo que

se narrava. A História, pensada por Rousseau, não poderia trazer qualquer tipo de

ensinamento moral. Era “distante”, “fria”, e, para muitos letrados (inclusive para

Rousseau), um trabalho falseado pelos historiadores. Os romances, ao contrário, poderiam

513MONTESQUIEU, Charles de Secondat. Cartas Persas. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1969, p.237.

514SWIFT, Jonathan. Viagens de Gulliver. São Paulo: Editora Brasileira, 1950, p. 334.

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fornecer algum tipo de ensinamento moral. Era íntimo ao leitor 515

e à conjuntura vivida

por este. Por esta razão, Rousseau, ao que tudo indica, enxerga nos romances – naquele

contexto específico – algo superior a História.

(...) pouca diferença vejo entre esses romances e vossas histórias, a

não ser pelo fato de que o romancista entrega-se mais à sua própria

imaginação, e o historiador submete-se mais à de outrem; ao que

acrescentarei, se quiserem, que o primeiro propõe-se um objeto

moral, bom ou mau, com que o outro pouco se preocupa.516

Rousseau nos traz um elemento novo: a idéia de uma “edificação moral” a ser

fornecida pelos romances. É o que também parece propor Daniel Defoe (1660-1731) em

seu Moll Flanders (1722; Moll Flanders).

Através da imensa variedade deste livro, apegamo-nos estritamente

a uma idéia básica: não incluir, em nenhuma parte, alguma ação

perversa que não dê origem a conseqüências infelizes: não por em

cena um autêntico vilão sem que acabe mal ou seja levado a se

arrepender: não mencionar qualquer ato criminoso sem condená-lo

na própria narrativa e nenhuma ação virtuosa e justa que deixe de

receber seu louvor. 517

Pelo trecho acima, podemos entender que a “edificação moral” seria, grosso modo,

o castigo para o “vício” e o louvor (uma difusão?) a ações vistas como “virtuosas”. E aqui,

ao que tudo indica, reside a “instrução” dos romances. Instruir seria, portanto, apontar o

caminho a ser seguido em um tempo de estranhamento. Os romancistas, sob esse prisma,

teriam um duplo papel: formar uma opinião pública e instruir aqueles que, em seus pontos

de vista, possuíam menos luzes518

. Mesmo que renunciassem a uma glória como homens

de letras (pois os romances eram, frequentemente, vistos como gêneros "menores"), os

515

É preciso, no entanto, ser cauteloso com o conceito “público”. Segundo Rouanet, a opinião pública, para

qual se dirigia os romances é distinta de uma opinião popular. C.f. ROUANET, Sérgio Paulo, op.cit.

516 ROUSSEAU, Jean Jacques. Emílio ou Da Educação. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p.314.

517 Ibidem, p. 12.

518 C.f. ROUANET, Sérgio Paulo. Mal estar na modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

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romancistas acreditavam no valor de tal sacrifício. Afinal, e assim acreditavam, era para o

bem público que escreviam. Segundo Swift,

(...) talvez me aconteça o mesmo; viajantes irão aos países em que

estive, inquirirão das minhas descrições, farão cair o meu livro e

esquecer (...) Veria isso como uma verdadeira mortificação, se

escrevesse para a glória; como, porém, escrevo para a utilidade

do público (negrito meu), nenhum cuidado me dá e estou

preparado para todas as eventualidades. 519

A importância dos romances para a pesquisa histórica reside, sobretudo, na

possibilidade de observarmos como certos conceitos foram aplicados dentro de uma

conjuntura específica. Existe, em nosso ponto de vista, uma diferença entre os

pensamentos do filósofo enquanto tal e os pensamentos do filósofo enquanto romancista.

Adotando uma postura um tanto generalizante, podemos dizer que o primeiro trata sobre

um conceito no âmbito do universal. Por sua vez, o segundo, pelas próprias características

do romance, expõe seu conceito à vivência (ou a percepção de vivência por parte do autor)

em um determinado contexto. E, especificamente para os romances setecentistas, que

procuravam “divertir, instruir e edificar”520

seus leitores, essa exposição de um

determinado conceito, em um tempo de “crise de consciência”, poderia acarretar uma

instabilidade para um determinado “ordenamento social”. E em tal cenário, estariam os

próprios romancistas isentos de sofrerem as conseqüências de suas obras?

Uma resposta a tal questionamento deve passar, assim supomos, por uma

observação às biografias de alguns destes “filósofos romancistas”. Voltaire, por exemplo,

está longe de abandonar uma vida de prazeres na corte. Sua distância com relação à

canaille521

é tão evidente quanto sua dificuldade em se aproximar de uma ética burguesa

519SWIFT, Jonathan. op, cit, p. 333.

520 C.f. VILLALTA, Luiz Carlos. Censura e Romances: perspectivas distintas de instruir, divertir e

edificar?

521 C.f. ROUANET, Sérgio Paulo, op.cit.

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do trabalho, nos moldes propostos por Max Weber.522

Daniel Defoe, por seu turno, é, ao

contrário de Voltaire, alguém mais distante dos salões. Seu prazer, a julgar por suas obras,

é a recompensa ao lucro. Se observarmos Robinson Crusoé vemos que este, através do

trabalho, vence uma ilha inóspita transformando-a em uma próspera colônia. Destarte tais

diferenças em suas biografias, tanto Voltaire quanto Defoe se aproximam ao pensar o

público para quem destinavam suas obras. De acordo com Defoe, em sua apresentação de

Moll Flanders, o romance não se dirigia a um público irrestrito. Era preciso que o romance

encontrasse um leitor que compreendesse o ensinamento moral e não que se abandonasse

na “mundalidade” de Flanders.

Mas, como esta obra se destina principalmente aos que saibam

lê-la e utilizar-se bem do que é recomendado ao longo de toda

ela (negrito meu), pode-se esperar que esses leitores fiquem mais

interessados pela moral que pela fabulação; mais com a aplicação

daquela que com a narrativa; mais com a intenção do escritor que

com a existência da personagem a respeito da qual escreve.

É nesta tensão – escrever sobre o “real” e limitar a apreensão deste a um público

específico – que Voltaire representava a mulher em seus romances. Talvez por essa razão

não nos seja possível circunscrever suas obras a uma “libertinagem de costumes”. Não

existia apenas a diversão. Em Voltaire fica evidente, especificamente ao tratar sobre as

mulheres, também o caráter “instrutivo e edificante” de suas narrativas. 523

Observemos três de suas protagonistas: Cunegundes, de Cândido ou O otimismo

(1759; Candide ou l'optimisme), Astartéia, de Zadig ou O destino (1747; Zadig ou La

Destinée) e Formosante de A Princesa de Babilônia (1768; La Princésse du Babylogne).

522C.f. WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. São Paulo: Pioneira, 1992. 523

Sobre a relação entre romances e libertinagem: C.f. PRADO, Raquel de Almeida. Ética e Libertinagem

nas Relações Perigosas. In: NOVAES, Adauto (org). Libertinos Libertários, op.cit.

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A principal característica, comum a essas personagens, é a beleza física.

Cunegundes é assim descrita: “(...) contava dezessete anos, era corada, fresca, rechonchuda

e apetitosa”. 524

Astartéia, por sua vez, “(...) era muito mais bonita do que aquela Semira

que tanto odiava aos caolhos, e do que aquela outra mulher que quisera cortar o nariz ao

esposo”. 525

Formosante é tida como (...) o que havia de mais admirável em Babilônia, o que eclipsava tudo o

mais, era a filha única do rei chamada Formosante. Foi segundo os seus retratos e estátuas que,

séculos após, Praxíteles esculpiu a sua Afrodite e aquela a que chamaram a Vênus das belas nádegas.

Que diferença, ó céus, do original para as cópias! De modo que Belus era mais orgulhoso da sua filha

que do seu reino. Tinha esta dezoito anos (...). 526

Essa idealização da beleza feminina, nos romances de Voltaire, parece ter um

propósito: realizar um contraste entre o belo – personificado na “pureza das formas” de

suas protagonistas – e um contexto onde determinados valores passaram a ser repensados.

Em outros termos: como se insere (ou deveria se inserir) uma bela mulher em um tempo de

“crise de consciência”?

O “Voltaire romancista”, ao pensar a mulher não como um conceito atemporal (que

parece ser a estrutura de seu Dicionário Filosófico), mas como um determinado ser

vivendo em determinada conjuntura (que é, a nosso ver, a proposta dos romances

setecentistas) cumpre um dos objetivos pensados por tais gêneros: o da instrução. Como já

dissemos, a mulher volteriana (pelo menos suas protagonistas) possui juventude e beleza.

Essas duas características, entretanto, poderiam ser maléficas àquelas que não possuíssem

524VOLTAIRE, François Marie Arouet. Cândido ou O Otimismo. Rio de Janeiro: Ediouro. São Paulo:

Publifolha, 1998, p. 12.

525_____________________________. Zadig ou O Destino. In: MORES, Ridendo Castigat, eBookLibris.

Disponível em: http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/zadig.html.

526_____________________________. A Princesa de Babilônia. In: MORES, Ridendo Castigat,

eBookLibris. Disponível em: http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/babilonia.html.

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conhecimentos. Jovens e belas, as mulheres, nos romances de Voltaire, são alvos da cobiça

masculina. Estes, por sua vez, nem sempre possuíam intenções “virtuosas”. 527

Como fugir a isso? Pelo uso da razão. E aqui devemos nos ater a um ponto: a

“Razão”, entendida como o valor da observação sobre preceitos já preestabelecidos, 528

é

também uma possibilidade feminina. Mais do que isso: é algo imprescindível para o bem

viver da mulher, pois ela é “em geral mais fraca do que o homem” 529

e propensa ao

domínio masculino: “não é espantoso que em todos os países o homem se tenha tornado

senhor da mulher, pois tudo está fundamentado na força e normalmente ele apresenta uma

superioridade muito grande tanto na força corporal como também na espiritual”. 530

É

assim que duas (Cunegundes e Formosante) das três protagonistas que selecionamos,

possuem destinos distintos.

Cunegundes, protagonista de Cândido ou O otimismo, é bela, porém, sem “luzes”

(no sentido do conhecimento como importante instrumento para se conter as paixões).

Cunegundes é para Voltaire o oposto do que foi, para Jean-Baptiste de Boyer (Marquês

D'Argens)531

a personagem Teresa, do romance Teresa Filosofa (1748; Thérese

Philosophe ou Mémories pour servir à l’historie du pére Dirrag et Mademoiselle Eradice).

Tanto uma quanto outra presenciam uma determinada relação sexual. As ações posteriores

a isso é que definirão o destino destas personagens.

527Em seu Dicionário Filosófico, Voltaire define o conceito “virtude” como sendo a “Beneficência para com

o próximo”. C.f. VOLTAIRE, François Marie Arouet. Dicionário Filosófico (tradução de Marilena de Souza

Chauí, Bruno da Ponte e João Lopes Alves). In: Voltaire. (Coleção “Os Pensadores”). São Paulo: Abril

Cultural, 1978, p. 294.

528C.f. VILLALTA, Luiz Carlos, op.cit.

529VOLTAIRE, François Marie Arouet. Dicionário Filosófico (tradução de Marilena de Souza Chauí,

Bruno da Ponte e João Lopes Alves). In: Voltaire. (Coleção “Os Pensadores”). São Paulo: Abril Cultural,

1978, p. 253.

530Ibidem, p. 254.

531Atribui-se a autoria deste romance à D'Argens, mas não existe uma certeza sobre isso. C.f. DARNTON,

Robert. Os best-Sellers proibidos da França pré-revolucionária. São Paulo: Schwarcz, 1998.

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Cunegundes não resiste às conseqüências de sua experiência como voyeur e procura

por Cândido. Ambos, ao que parece estar implícito na narrativa do romance, teriam

iniciado uma atividade sexual.

Um dia, em que passeava nas proximidades do castelo, pelo

pequeno bosque a que chamavam parque, Cunegundes viu entre as

moitas o doutor Pangloss que estava dando uma lição de física

experimental à camareira de sua mãe, moreninha muito bonita e

dócil. Como a senhorita Cunegundes tivesse grande inclinação para

as ciências, observou, sem respirar, as repetidas experiências de

que foi testemunha; viu com toda a clareza a razão suficiente do

doutor, os efeitos e as causas, e regressou toda agitada e pensativa,

cheia do desejo de se tornar sábia, e pensando que bem poderia ela

ser a razão suficiente do jovem Cândido, o qual também podia ser a

sua.

(...) No dia seguinte, depois do jantar, Cunegundes e Cândido

encontraram-se atrás de um biombo; Cunegundes deixou cair o

lenço, Cândido apanhou-o, ela tomou-lhe inocentemente a mão, o

jovem beijou inocentemente a mão da moça com uma vivacidade,

uma sensibilidade, uma graça toda especial; suas bocas

encontraram-se, seus olhos fulguraram, seus joelhos tremeram, suas

mãos perderam-se... Ora, o senhor barão de Thunder-ten-tronckh

passou junto ao paravento e, vendo aquela causa e aquele efeito,

correu Cândido do castelo, a pontapés no traseiro; (...). 532

A situação vivida por Teresa é muito parecida. Ao presenciar uma relação sexual

entre o Abade Dirrag e a noviça Eradice, a protagonista de D'Argens também sente as

sensações de uma voyeur. Todavia, duas situações a diferenciam de Cunegundes. Teresa

possuía a possibilidade de se instruir por seu próprio círculo de relações. O próprio

aristocrata, com quem Teresa se inicia na vida sexual, é caracterizado como um ilustrado

que possui “virtudes” (no sentido da virtude volteriana, já acima assinalada). Em outros

termos: a filosofia que permeia o romance (e a própria Teresa) não é uma filosofia

ridicularizada pelo autor. Cunegundes, ao contrário, acredita na filosofia do “melhor dos

532VOLTAIRE, François Marie Arouet. Cândido ou O otimismo. In: MORES, Ridendo Castigat,

eBookLibris. Disponível em: http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/candido.html.

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mundos”, personificada na figura do filósofo Pangloss (uma ironia de Voltaire à filosofia

leibniziana).

Um outro aspecto que diferencia Teresa de Cunegundes é a postura de ambas com

relação àquilo que presenciaram (e que, para as duas, foi uma visão nova). Cunegundes

não procura a instrução sobre aquilo que viu e sobre aquilo que sentiu após observar

Pangloss e a camareira de sua mãe. Teresa, ao contrário, procura se instruir. E é nesse

sentido que a protagonista de D'Argens é vista como “filosofa”.

Diferentemente de Cunegundes, a princesa Formosante, de A Princesa de Babilônia

não se entrega à paixão que sente pelo protagonista da obra, Amazan. Sente, é verdade,

todos os “efeitos” deste sentimento. Mas não existe, até o momento escolhido por Voltaire,

qualquer contato físico entre os protagonistas. Formosante é descrita como uma mulher

que possui conhecimentos. E, ao contrário de Cunegundes, procura a instrução (inclusive

pelos romances) para sensações que ainda desconhece. “(...) A princesa, durante aquele

século de oito dias, fazia a camareira ler-lhe romances (...) esperava encontrar naquelas

histórias alguma aventura que se assemelhasse à sua e que: embalasse o seu pesar.” 533

Pode-se observar, nos destinos finais dados à Cunegundes e Formosante, que

Voltaire se posiciona, de certa forma, como o “público” que julga. Respeita, em boa

medida, a idéia de que mulher e homem possuem uma “origem natural” comum. Contudo,

o “Voltaire romancista” não desconsidera determinadas convenções sociais. E será por

essas que a mulher, em seus romances, serão julgadas. E isto, é preciso dizer, não se

restringe às duas personagens acima. É algo extensivo a todas suas outras protagonistas

(com exceção da personagem Cosi-Sancta, de conto homônimo).

O respeito de Voltaire às convenções sociais pode ser visto, assim entendemos,

como um reflexo do próprio aspecto edificante a que se propõe os romances (e,

533Idem.

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evidentemente, também os romancistas). Tal como Daniel Defoe, com seu Moll Flanders,

Montesquieu em Cartas Persas, Rousseau, em Júlia ou A Nova Heloísa (1761; Julie ou La

Nouvelle Heloise), também Voltaire criará “belas formas” para observá-las no mundo. De

observador a juiz, não se furtará, caso assim o entenda, em puni-las. É a punição que

servirá de exemplo a algo maior: ao público leitor.

Nesse sentido, Voltaire não é, como já dissemos, apenas um “libertino dos

costumes”. Pode, é verdade, também assim ser visto. Mas para assim o vermos, devemos

entender por tal conceito, além de um “livre pensamento”, uma separação entre moral e

religião534

. Voltaire é, sobretudo, um “libertino filosófico”. 535

Ou seja, é o “libertino” que

observa e julga seu contexto.

Como “libertino dos costumes”, Voltaire não teme expor suas protagonistas a, por

exemplo, uma depravação de homens da Igreja. Como “libertino filosófico”, por sua vez,

Voltaire utilizará deste fato (o sexo -às vezes estupros- realizado por padres) para se

posicionar com relação tanto a Igreja e seus dogmas, quanto ao próprio clero.

A mulher, nas obras de Voltaire, possui um peso fundamental. Através delas,

“visitará” a intimidade de padres, enfatizará o valor da experiência em oposição a dogmas

estabelecidos, se oporá a uma sobreposição da paixão em detrimento da razão e que, enfim,

demonstrará que por detrás de um Voltaire “circunstancial”, existe um Voltaire com

objetivos constantes: produzir para “instruir, divertir e edificar”. E este Voltaire não é

apenas o filósofo. É também o Voltaire romancista. Tentamos, neste artigo, apresentar,

através das mulheres, um pouco deste Voltaire.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

534Afinal, para Voltaire, “A moral não reside na superstição, não reside nos cerimoniais, nada tem de

comum com os dogmas. Nunca será demais repetir que todos os dogmas são diferentes e que a moral é a

mesma em todos os homens que usam a razão. Assim, a moral vem de Deus, como a luz. As nossas

superstições são apenas trevas”. Op.cit, p. 253.

535C.f. PRADO, Raquel de Almeida, op.cit.

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VOLTAIRE, François Marie Arouet. Dicionário Filosófico (tradução de Marilena de

Souza Chauí, Bruno da Ponte e João Lopes Alves). In: Voltaire. (Coleção “Os

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______________________________. Cândido ou O Otimismo. Rio de Janeiro: Ediouro.

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____________________________________. Zadig ou O Destino. In: MORES, Ridendo

Castigat, eBookLibris. Disponível em: http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/zadig.html.

________________________________. A Princesa de Babilônia. In: MORES, Ridendo

Castigat, eBookLibris. Disponível em: http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/babilonia.html.

WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. São Paulo: Pioneira, 1978.

Bibliografia teórica:

BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. São Paulo, Companhia das

Letras, 1987.

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Entre o Largo de Cima e o Largo de Baixo: memórias da política coronelista

na cidade de Montes Claros/MG no período da Primeira República.

Vítor Fonseca Figueiredo536

Camila Gonçalves Silva537

RESUMO: Pautada na utilização de depoimentos orais, a presente comunicação visa

analisar os reflexos da política coronelista na cidade de Montes Claros/MG, durante o

período da Primeira República (1889-1930). Destaca-se, nas análises, a cisão social

operada pela constante rivalidade política entre os dois grupos político-familiares da

cidade, as parentelas “Chaves, Prates e Sá” e a “Alves, Versiani e Veloso”.

PALAVRAS-CHAVE: Coronelismo, memória, política.

ABSTRACT: Guided in the use of oral testimony, this communication aims to analyze the

effects of the policy coronelista the city of Montes Claros/MG, during the First Republic

(1889-1930). Stands out the analysis, the social division operated by constant political

rivalry between the two groups political family of the of the city, the kindreds “Chaves,

Prates and Sá” and “Alves, Versiani and Veloso”.

KEYWORDS: Coronelismo, memory, politic.

O regime republicano instaurado em 1889 não trouxe qualquer alteração legal no

que se refere a mudanças profundas na política. Muito pelo contrário, a carta constitucional

de 1891, ao prever a participação política de todo e qualquer cidadão alfabetizado maior de

536

FIGUEIREDO, Vítor Fonseca. Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade

Federal de Juiz de Fora/UFJF. Bolsista de Monitoria UFJF. Orientadora: Profª Drª Cláudia M. R. Viscardi. 537

SILVA, Camila Gonçalves. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade

Federal de Juiz de Fora/UFJF. Orientador: Profº Drº Ignácio Godinho Delgado.

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21 anos possibilitou a inserção às hostes de eleitores de todo um agregado de indivíduos

que viviam à dependência dos coronéis e demais chefes. Ao se verem na condição de

eleitor, lavradores, sitiantes, vaqueiros, foiceiros, jagunços, comerciantes e até mesmo

profissionais liberais se encontravam na obrigação de atender o pedido ou a indicação de

voto do coronel. Caso contrário, o indivíduo deixaria de ser assistido e passaria a ser

perseguido.

Portanto, ao invés de refrear o tradicional poder privado dos coronéis, a carta de

1891 acabou surtindo efeito contrário ao proporcionar novo fôlego “a decadente influência

social dos chefes locais, notadamente dos senhores de terra”538

. Pois, lhes possibilitava o

controle de determinada quantia de votos, todos passíveis de barganha com os chefes

superiores. Em troca, os coronéis podiam auferir todo um universo de benefícios, tais

como: nomeações a cargos públicos, isenções fiscais e uma miríade de favores advindos da

administração pública. Esta era a essência de um compromisso em que “o Presidente do

Estado atendia aos pedidos de nomeação ou de força do chefe local – este fazia as eleições

com o Presidente”539

.

Em nossas análises, pretendemos, por meio dos depoimentos orais e registros

memorialisticos, estudar a condução da política coronelista na cidade de Montes

Claros/MG durante a Primeira República. Alia-se a essa proposta a possibilidade de

perceber em alguns momentos a atuação de importantes grupos de parentela que

dominaram o cenário político local por todo o período.

Foi por meio da análise dessas relações tão tradicionais e intrincadas da Primeira

República que Victor Nunes Leal se deparou com um padrão de comportamento político

pautado, sobretudo, na continuidade do mandonismo local e no binômio dependência e

538

LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil. São

Paulo: Alfa-Omega, 1986. p.20. 539

FLEICHER, David V. O Recrutamento político em Minas Gerais 1890/1918. Revista Brasileira de

Estudos Políticos, Belo Horizonte: UFMG, v.30, 1971. p.56.

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compromisso. Para ele, a origem dessa situação residia na superposição de formas

desenvolvidas do regime representativo, advindos com a constituição de 1891, a uma

estrutura econômica e social inadequada que concorreu, inevitavelmente, para a formação

de “(...) uma forma peculiar de manifestação do poder privado, ou seja, uma adaptação em

virtude da qual os resíduos do nosso antigo e exorbitante poder privado têm conseguido

coexistir com um regime político de extensa base representativa”540

. A esse tipo de

comportamento, Leal atribuiu o nome de coronelismo, em alusão a mais alta patente da

Guarda Nacional detida geralmente pelos grandes chefes políticos ou a eles conferida

nominalmente pela população em virtude do poder e status. Em depoimento, o seleiro

aposentado José Santos descreve com extraordinária lucidez como se dava à obtenção da

referida patente e relaciona alguns coronéis montesclarenses:

Os coronéis? Eram coronéis mas coronéis só de nome, ninguém

tinha patente, tinha alguns que tinha patente comprado, patente de...

(...) Coronel da Guarda Nacional! Eles comprava patente como

tinha de Capitão, de Major, de Coronel, cada uma tinha o seu

preço! De Tenente... Eu mesmo conheci aqui o... Coronel Filomeno

Ribeiro, Tenente Elis, Capitão... deixa eu ver... tinha outros, tinha

Capitão, tinha Major cada um tinha a patente mas porque

comprava. Pagava pra ter a patente, vinha aquelas farda bonita,

farda azul marinho toda cheia de dourado. Aquelas coisas toda de...

dourado da... coisa, sabe? E assim por diante, na ocasião de festa

eles vestiam aquilo, sabe? Eu conheci aqui conheci na Bahia todo

canto, no Brasil inteiro eles vendiam aquilo! Vendia. Essas fardas,

essas patente, era patente da Guarda Nacional, né? Era conhecido

assim. Era... conhecido patente da Guarda Nacional, Tenente,

Major, Capitão, Coronel tudo isso tinha as farda, a mais alta era a

do Coronel, sabe?541

Pelo relato pode-se constatar que somente os mais abastados poderiam lançar mão

de recursos para desfrutar do mais caro e alto posto da Guarda Nacional, ou seja, os que

ocupavam o topo da hierarquia política e econômica. Todavia, deter uma patente militar,

540

LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto... Op.Cit. p.20 541

José Santos. Depoimento concedido na cidade de Montes Claros/MG em 22/01/2009.

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mesmo que de grau inferior, era algo bem quisto e almejado pela maioria dos homens. A

patente seja qual for conferia status e distinção. Ademais, nada impedia a posterior

ascensão. Em uma de suas incursões pelo sertão norte-mineiro o memorialista Nelson

Vianna se deparou com a curiosa situação de um velho fazendeiro que por muito ostentou

o título de Tenente, mas que havia conseguido a elevação à Coronel. No entanto, o hábito

da população e dos amigos de lhe chamarem pela antiga patente lhe causava

aborrecimento, por isso mesmo, mandou emoldurar e afixar em uma das paredes da sala a

carta de Coronel. Quando algum incauto se esquecia da advertência exposta, o fazendeiro

bradava: “Ou o senhor me de tudo a que tenho direito ou não me de nada! Há que tempo já,

que sou Coronel!”542

A distinção militar imiscuía-se de tal forma à imagem do indivíduo que precedia ou

até mesmo substituía o seu nome. Além disso, a preocupação com a correta designação do

posto refletia a necessidade de afirmar constantemente sua posição na hierarquia social

local, posição também asseverada nos momentos públicos por meio da típica e chamativa

farda azul marinho com dourado tão bem descrita e gravada na memória de José Santos.

Portanto, eram nas bases, na vida cotidiana das pequenas cidades e lugarejos que o

coronelismo se desenvolvia de modo mais claro, mais intenso e violento ao abarcar nas

disputas políticas não apenas as facções, mas toda a população. Afinal, era o resultado das

urnas eleitorais de cada cidade que definiam as alianças a serem forjadas e, principalmente,

qual facção receberia o apoio governamental com suas benesses e a carta branca para agir

contra os adversários. Acerca do modus operandi da política interiorana à Primeira

República, notadamente em Montes Claros, o depoimento de Santos é elucidativo:

A política em Montes Claros antigamente o eleitor era, (...) eleitor

de cabresto, era o eleitor era o que o chefe queria, então o sujeito

542

VIANNA, Nelson. Foiceiros e Vaqueiros. Rio de Janeiro: Irmãos Pongetti, 1956. p.24.

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tinha que votar, tinha eleitor que eles até desconfiava do eleitor eles

tomava o título do eleitor e só fornecia no dia da eleição e os eleitor

todos era no cabresto sabe? De maneira que tinha o chefe político e

tinha os eleitores sabe? E tinha os cabo eleitoral como tinha esses

chefes político como Dr. João Alves, tinha os braço forte assim

como Carlos Leite era um fazendeiro e pecuarista que tinha muitos

eleitor, era amigo de João Alves. Tinha mais outros sabe? Como

tinha em São João da Ponte, tinha lá... o chefe lá em São João da

Ponte que era muito amigo de João Alves, trazia os eleitor (...),

trazia carros e carros cheios, naquele tempo eles transportava,

transportava o eleitor pra vim, pra vim votar sabe? E era uma coisa

que a gente não podia facilitar muito porque você via na rua

entendeu? Encontrava-se as vezes um senhor vestido com uma

capa colonial debaixo da capa tava-se uma espingarda e uma

capanga de bala né? Tanto aquilo era jagunço do chefe político de

maneira que se precisasse tava ali esses homem inteiramente as

ordem e (...) dava na ocasião de política tinha a casa cheia desses

homens ai tudo armado se precisar eles... taí pronto pra dar tiros

como eu assisti...543

O depoimento acima ilustra muito bem como se davam às relações entre chefes

políticos, correligionários, jagunços e eleitores em Montes Claros. Isto é, desconfiança,

clientelismo e violência compunham os ingredientes de uma amálgama que pressionava o

eleitor às urnas, seja a favor de uma facção, seja de outra. Neste sentido, todos os fatores

convergiram, inevitavelmente, para um acirramento das disputas políticas ao nível local

elevando os níveis de pressão sobre a comunidade como um todo e, conseqüentemente, da

instabilidade e divergência já existentes em Montes Claros. Soma-se a tudo, dois fatos

cruciais para o futuro político local: as eleições à edilidade de 1897 e a construção do

Mercado Municipal entre 1897 e 1899.

Em 1897, a parentela “Chaves, Prates e Sá” se encontrava sem os seus principais

chefes: o Doutor Chaves estava no Rio de Janeiro cumprindo com as obrigações do Senado

Federal; Camillo Prates, em Belo Horizonte exercia o múnus de senador estadual e

Francisco Sá, nesse mesmo ano, assumiu o cargo de Deputado Estadual no Ceará. O

resultado dessas ausências foi, logicamente, um enfraquecimento momentâneo do grupo a

543

José Santos. Depoimento concedido na cidade de Montes Claros/MG em 22/01/2009.

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nível local. Mediante a proximidade das eleições da Câmara Municipal e da percepção de

certa divergência entre os chefes adversários, Honorato José Alves e Celestino Soares da

Cruz, a parentela tentou uma manobra que não a alijasse totalmente do poder. “Chaves,

Prates e Sá” indicaram a candidatura de um adversário, Major Simeão Ribeiro dos Santos.

A indicação foi apoiada por Honorato, mas repudiada por Celestino. A divergência

culminou com a cisão entre os dois. Já a base de apoio montada para a candidatura Simeão

Ribeiro foi recebida pela população com surpresa, surgiu até uma sátira: “Prates, Chaves,

Versiani & Cia... Quem diria?”544

Entretanto, ao invés do esperado, a aliança arquitetada trouxe maléficas

conseqüências para o grupo dos Prates, uma vez que o Major Simeão Ribeiro deu

continuidade aos planos de construção do Mercado Municipal no Largo de Cima, área

habitada pelos “Alves, Versiani e Veloso”, e não no de Baixo, local em que residiam. O

fato foi encarado como uma verdadeira catástrofe, já que a questão comercial era um dos

pontos fulcrais de toda a comunidade e envolvia parcela significativa da classe política

local, composta, em sua maioria, por fazendeiros e comerciantes.

A esse período Montes Claros representava o importante papel de empório regional

congregando tanto operações de venda quanto de compra de produtos para o abastecimento

do mercado Norte-mineiro. Havia a crença de que a ereção de um centro comercial em um

dos largos automaticamente suplantaria o comércio do outro, por isso mesmo, as

discussões em torno da construção do mercado eram sempre tão problemáticas e

inviabilizadas pelos representantes políticos de um dos lados. Ademais, todos os sitiantes e

lavradores possuíam o hábito de concorrer às feiras e intendências sediadas no largo de seu

coronel. Mas, no caso da criação de um mercado único em território rival como ficariam as

relações de compromisso para com os seus chefes? Ou seja, a questão era complexa e não

544

PAULA, Hermes Augusto. Montes Claros: sua história, sua gente e seus costumes. Belo Horizonte:

Minas Gráfica Editora Ltda, 1957. p. 169.

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ficava restrito ao campo político e econômico, mas perpassava também os meandros das

relações sociais estabelecidas.

As lutas travadas por “Chaves, Prates e Sá” e “Alves, Versiani, Veloso” pela

construção do mercado em seus largos foram primaciais para que toda uma profunda onda

de divergências suplantasse os limites da Câmara e se alojasse no seio da comunidade. Isto

é, todos os tipos possíveis de relacionamento entre moradores do Largo de Cima e do

Largo de Baixo passaram a ser surpreendentemente informados pelo signo da divergência

política. A cidade literalmente se cindiu em duas!

O escritor Cyro dos Anjos em sua famosa obra memorialística “A Menina do

Sobrado” narra com profundo carinho e saudosismo as suas recordações da infância e

adolescência na Montes Claros das décadas de 1910 e 1920. Não obstante, Cyro foi um

observador privilegiado das questões políticas e econômicas locais, já que era filho do

comerciante Coronel Antônio dos Anjos e neto do médico Carlos José Versiani. Tal

combinação de fatores permitiu-lhe observar o impacto da construção do mercado sobre a

sociedade montesclarense, segundo ele foram “(...) nas últimas décadas do Império –

quando, ao inaugura-se o Mercado, o Largo de Cima arrebatou à antiga Intendência a sua

clientela de feirantes – a emulação foi crescendo com o tempo, até identificar os dois

logradouros públicos com as duas facções políticas: os Pelados passaram a ser os de Cima,

e os Estrepes, os de Baixo”545

. Outro bom relato sobre a cisão de Montes Claros, porém

identificando a continuidade histórica das divergências locais e os grupos familiares que

compunham as redes das duas parentelas foi feito pelo memorialista Hermes A. de Paula:

Eram os Ximangos e os Cascudos, os Liberais e Conservadores,

que estiveram em guerra durante todo o Segundo Reinado.

Depois, na República, vieram os Estrepes e os Pelados.

545

ANJOS, Cyro Versiani dos. A Menina do sobrado. Rio de Janeiro: José Olympio, 1979. p.76.

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Os estrepes mandavam nas ruas de Baixo. Os Prates, os Chaves, os

Teixeira, os Dias, os Fróes, os Figueiredos, os Souto, os Mendonça,

os Freitas, os Abreu, os Costa, os Durães, os Soares, os Guimarães,

além de muitos outros, compunham o partido.

Nas ruas de Cima , habitavam os Pelados. Os Alves, os Miranda, os

Ribeiro, os Versiani, os Sarmento, os Salgado, os Maurício, os dos

Anjos, os Peres, os Velosos, os Câmara, os Vale, dentre vários

outros, formavam os seus quadros.

Tudo era separado. As divergências políticas cortavam a cidades

em duas.

Duas bandas de música - a Euterpe e a União Operária, donde

saíram os apelidos de Estrepes e Pelados - animavam os dois

grupos adversários.

Ambos morriam de amores pelos governos do Estado e da

República. Tinham a mesma origem, o mesmo programa, a mesma

formação.

Eram, no entanto inimigos irreconciliáveis na política municipal.

Nas suas lutas, algumas vezes correu sangue.

Foi no calor da chama dessa velha rivalidade, que Montes Claros

cresceu e progrediu.546

Pelo relato de Paula pode-se inferir que o elemento político agia em Montes Claros

como forte instrumento de desagregação social ao colocar em lados opostos conterrâneos

que só se distinguiam, muitas vezes, pelo local de residência e não por vínculos familiares

ou alianças políticas, pois, conforme os números apresentados (2.524) nem todos os

cidadãos, mesmo os da sede do município, eram eleitores. Todavia, passaram a

compartilhar cotidianamente, assim como a classe política, das divergências, lutas,

campanhas e provocações aos rivais. Era sem dúvida, uma forma de integrar um dos lados

e de não estar desamparado no fogo cruzado. Conforme José Santos: “(...) a política o

sujeito tinha... a tinha dois nome, Política de Cima e Política de Baixo. Porque a Política

Baixo é de quem morava lá embaixo e quem morava cá em cima acompanhava a Política

de Cima.”547

Isto é, todos que moravam nas mediações das casas dos atuais chefes das

parentelas eram automaticamente identificados como adeptos dela. Aqueles que como o

Deputado Camillo Philinto Prates residiam na parte inferior da cidade, nas imediações da

546

PAULA, Hermes Augusto. Montes Claros... Op.Cit. p.16. 547

José Santos. Depoimento concedido na cidade de Montes Claros/MG em 22/01/2009.

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praça da Matriz ou do Largo de Baixo, como era conhecida, recebiam a pecha de

Camilistas ou adeptos do “Partido de Baixo”. Já os que residiam na parte superior, junto ao

Largo de Cima, a exemplo das famílias “Versiani, Veloso” e da família do novo chefe, o

médico e Deputado Honorato José Alves, eram designados como Honoratistas ou

correligionários do “Partido de Cima”.

O fato, na verdade, não constitui algo de todo incomum, vários são os estudos de

caso sobre o poder local que identificam a formação de grupos faccionais rivais

estruturados em parentelas. O próprio sistema coronelista propiciava a rivalidade, a

violência e a cisão nas bases ao apoiar apenas o grupo vitorioso. Desse modo, os conflitos

ficavam restritos ao âmbito das cidades e vilas não perpassando aos níveis superiores.

Mesmo rivais incontestes como Camillo Prates e Honorato Alves não trocavam “farpas”

enquanto deputados federais no Rio de Janeiro, as suas disputas se davam apenas em

Montes Claros. Era essa a tônica de um arranjo capaz de conter as lutas no interior, mas de

ostentar na capital estadual e federal um grupo único, forte e cordato como o Partido

Republicano Mineiro/PRM. Ademais, a constituição política bi-faccional não pode ser

compreendida apenas como o reflexo de condicionantes internos e externos à comunidade,

como a temos apresentando, mas também, como fruto de uma cultura política nacional

historicamente construída com base na percepção do rival, na violência e na luta pelo e

para o poder.

Todavia, o caso de Montes Claros é extremamente representativo sobre a

capacidade do coronelismo de influir na sociabilidade do homem simples. Tanto o jeca que

vivia na roça quanto o citadino humilde não sabiam e não entendiam a origem das disputas

e conflitos, no entanto, defendiam com cólera seus coronéis, se identificavam enquanto

integrantes do séqüito de um dos largos e alteravam profundamente seu círculo de relações

sociais com base na orientação política.

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Nessa perspectiva, respaldada por critérios políticos, cada ala da cidade foi se

imbuindo de suas singularidades e passou a constituir espaços de sociabilidade distintos.

Esse processo de diferenciação é perceptível ao longo das memórias do escritor Cyro dos

Anjos. Para ele, o Largo de Cima representava o “centro nervoso da cidade”548

, a zona do

comércio forte, do progresso! Em contraposto, o Largo de Baixo é apresentado como uma

área decadente que apenas transpirava história e tradição”549

. Essa distinção dos dois largos

é perfeitamente compreensível. Para se afirmar enquanto identidade, um grupo necessita,

em primeiro lugar, marcar suas diferenças com relação ao outro. Em geral, esse processo

de diferenciação se dá com base na crença da superioridade. Por isso, apesar do escritor

reconhecer a imponência do Largo de Baixo o condena ao passado, principalmente após a

construção do mercado na área adversária. Todavia, ao fazer as distinções, Cyro não

apenas marca diferenças, mas ratifica sua identidade enquanto representante e defensor do

Largo de Cima.

Outra possibilidade de diferenciação, porém conciliada com provocação, se dava

pela atribuição de apelidos. Essa prática, muito comum no interior brasileiro visa

caracterizar e ao mesmo tempo hostilizar os membros do grupo rival. Entretanto, o próprio

ato de ultrajar e provocar o adversário por meio de rótulos acabava, contraditoriamente,

fortalecendo o sentimento de identidade e união do grupo ofendido. Isso se dava porque a

desforra não seria nutrida apenas por uma pessoa, mas por todo o grupo que compartilhava

tal alcunha. Desse modo, a ofensa do “outro” e a luta contra o “outro” detinha o potencial

de fortalecer os vínculos de identificação e solidariedade interna do grupo humilhado.

Contudo, a prática de atribuição de apelidos era algo comum, muitos surgiam baseados nas

características da facção ou do seu chefe. Em Minas Gerais, por exemplo, temos na cidade

de Andrelândia os “Veados” e os “Caranguejos”, em Passos os “Patos” e “Perus”, em

548

ANJOS, Cyro Versiani dos. A Menina do sobrado... Op.Cit. p.71. 549

ANJOS, Cyro Versiani dos. A Menina do sobrado... Op.Cit. p.75.

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Januária os “Luzeiros” e os “Escureiros” e assim em várias outras cidades. Em Montes

Claros, diversos apelidos foram utilizados, inicialmente, o grupo dos “Alves, Versiani e

Veloso” foram denominados de “Baratas” e os “Chaves, Prates e Sá” de “Molotros”, em

seguida, vieram as designações de “Carecas” e “Metidos”. Entretanto, as expressões que

ficaram consagradas na memória coletiva foram “Estrepes” e “Pelados”, originadas da

corruptela do nome das bandas de música de cada um dos lados, Euterpe Montesclarense e

União Operária.

Apesar de pouco estudadas, as bandas de música desempenhavam à Primeira

República um importante papel na vida social e política das pequenas cidades. As festas

animadas que se davam ao som das bandas serviam para quebrantar um pouco da

pasmaceira cotidiana da vida no interior. No entanto, eram as apresentações públicas

realizadas no coreto das praças, nas passeatas pelas ruas, nas eleições ou nas recepções de

autoridades que os shows tomavam grande proporção e entusiasmo popular. No caso de

Montes Claros, as bandas tiveram um contato estreito com a política, por isso mesmo,

serviram de base aos apelidos de cada facção. Após o racha de 1897 entre os chefes da

antiga ala conservadora, Honorato José Alves e Celestino Soares da Cruz, a banda Euterpe

Montesclarense optou por apoiar a política de ‘Baixo’, já a União Operária se devotou à

causa dos de ‘Cima’550

. A partir de então, cada um dos lados podia contar com uma

verdadeira banda marcial que animavam as suas festas e campanhas políticas. Hermes de

Paula relembra a participação da Euterpe durante as eleições: “A banda Euterpe tocava um

dobrado marcial. Os foguetes pipocando no ar. Os cavalos inquietos, fogosos. Os

aboiados... Era véspera de eleição e, justamente nesta praça passavam todos eleitores numa

demonstração de força e como que uma visita de apoio ao chefe”551

. Já a supervisora

educacional aposentada Ruth Tupinambá Graça prefere rememorar a rivalidade política

550

PAULA, Hermes Augusto. Montes Claros... Op.Cit. p.232. 551

PAULA, Hermes de Augusto de. Jornal “Gazeta do Norte”, 24 de janeiro de 1960. p.01.

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nutrida pelas bandas de cada um dos largos. Pelos seus relatos, a apresentação semanal

realizada em praça pública ia bem além de lazer e entretenimento. Todo cidadão

independente do nível socioeconômico, mas adepto a uma das parcialidades políticas

concorria apenas às retretas de sua banda. Neste sentido, o fosso da divergência só tendia a

aumentar, pois se evitava os contatos de toda a população; por outro lado, os vínculos de

identidade de cada um dos largos tendiam a serem reforçados pelo convívio.

De modo gradual, as diferenças entre os de ‘Cima’ e os de ‘Baixo’ foram aflorando

e, praticamente tudo passou a ser separado ou passível de separação. Até a década de 1930,

todas as entidades existentes ou que vieram a existir na cidade tiveram que conviver sob o

sigma da dissidência, pois, qualquer altercação entre os membros tendia a declinar para o

viés político e culminar em cisão. Foi assim com a banda de música, com o jornal, com o

grupo de teatro, com o time de futebol, com a escola, com as rodas de bate-papo, com as

brincadeiras de criança e com uma infinidade de relacionamentos. A professora aposentada

Yvonne de Oliveira Silveira relata suas lembranças acerca da divisão:

A política no tempo que eu era criança foi... era muito violenta.

Meu pai era político, fazia parte do partido de Honorato Alves e

doutor João Alves era o partido de Cima chamado. E Camillo

Prates dirigia o partido de Baixo, então eles... era uma rivalidade

muito grande cada qual tinha a sua banda de música, cada qual

tinha o seu jornal. Mas acontece que o jornal de Camillo Prates

desapareceu logo e ficou o (...) do partido de doutor João Alves que

meu pai era proprietário, diretor, redator, fazia tudo ao lado de um

amigo dele. E... então eles brigaram, brigavam, ninguém

freqüentava o mesmo local.552

Ao fim do relato, Silveira ressalta: “(...) ninguém freqüentava o mesmo local.”553

.

Essa também é afirmação de José Santos quando perguntado sobre o assunto: “Não,

relacionava não, porque quem era do Partido de Cima era do Partido de Cima, quem era do

552

Yvonne de Oliveira Silveira. Depoimento concedido na cidade de Montes Claros/MG em 16/01/2009. 553

Idem.

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Partido de Baixo era de Baixo, sabe? De maneira que cada um vivia...”554

. A mesma

resposta dos dois aposentados é emblemática, pois, apesar de se ligarem de algum modo ao

“Partido de Cima” ambos pertenciam a classes sociais distintas. Silveira era filha do

farmacêutico, jornalista e correligionário Antônio Ferreira de Oliveira, portanto, vinculada

diretamente ao ambiente de sociabilidade da elite política local; já Santos, pertencia aos

setores mais humildes da população e por residir na parte superior da cidade acompanhava

o “Partido de Cima”. Logo, ao contrário do que se possa pensar, não era apenas a classe

política que nutria sentimentos de rivalidade e antagonismo entre as partes, mas também os

extratos inferiores da sociedade que de algum modo seriam ao final atingidas pelos

resultados eleitorais.

Pode-se concluir que as lembranças da população montesclarense acerca dos

coronéis se devem especialmente pelo alto grau de rivalidade que afetava todos os

seguimentos da sociedade. Ou seja, desde os correligionários e políticos até o homem

simples do campo. Revolver a memória das pessoas que vivenciaram esse período, permiti-

nos auferir um mundo rico em histórias e registros os modos que a política interiorana

utilizava para se suster.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANJOS, C. A menina do sobrado. Rio de janeiro: J.Olympio; Brasília: INL,1979.

FLEISCHER, D.V. O Recrutamento Político em Minas Gerais; 1889-1918. Revista

Brasileira de Estudos Políticos-UFMG, Belo Horizonte, 1971.

LEAL, V. N. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil.

4 ed. São Paulo: Alfa-Ômega, 1978.

554

José Santos. Depoimento concedido na cidade de Montes Claros/MG em 22/01/2009.

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Gráfica, 1957.

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PORTO, C. H.Q. Paternalismo, Poder Privado e Violência: o campo político Norte-

Mineiro durante a primeira República. 2002, Dissertação (Mestrado) – UFMG.

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Cinema, Tropicalismo e Antropofagia no Brasil a Partir de um Olhar Sobre o

Filme “Macunaíma” (1969)

Wallace Andrioli Guedes*

RESUMO: O presente trabalho busca analisar o filme Macunaíma (1969), de Joaquim

Pedro de Andrade, em seus diálogos estabelecidos com alguns dos principais movimentos

artístico-culturais dos anos 60, como o Cinema Novo e principalmente o tropicalismo,

assim como destrinchar a apropriação que o filme faz do conceito oswaldiano de

antropofagia.

PALAVRAS-CHAVE: Macunaíma, antropofagia, tropicalismo.

ABSTRACT: This paper intends to analyse the film Macunaíma (1969), directed by

Joaquim Pedro de Andrade, studying its dialogues with some of the most important artistic

and cultural moviments of the sixties, such as Cinema Novo and, specially, tropicalismo.

The paper also intends to work with the apropriaton that the film does of the concept of

anthropophagy, created by Oswald de Andrade.

KEY-WORDS: Macunaíma, anthopophagy, tropicalism.

INTRODUÇÃO

O presente artigo busca apresentar algumas questões, e mesmo resultados

preliminares, da pesquisa por mim desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em

História da Universidade Federal Fluminense, na qual investigo as relações estabelecidas

*Mestrando em História Social – Linha de pesquisa História Contemporânea II pela Universidade Federal

Fluminense

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pelo cinema brasileiro de fins da década de 1960 com um dos mais controversos e

estudados movimentos artístico-culturais do período: o tropicalismo.

Centro meu olhar, entretanto, em um caso específico: o do filme Macunaíma

(1969), do cineasta carioca Joaquim Pedro de Andrade, tido costumeiramente como

exemplo máximo de “cinema tropicalista” produzido no Brasil. Ao olhar para Macunaíma,

busco compreender tanto as possibilidades de análise estética do filme, ou seja,

concernentes ao discurso interno à sua narrativa, quanto suas relações externas, a partir,

especialmente, de um acompanhamento detalhado de sua trajetória nos cinemas nacionais e

internacionais, sua repercussão em festivais e na crítica especializada – consequentemente,

estendo essa análise para a trajetória de seu diretor, acompanhando suas entrevistas em

jornais e revistas da época555

.

Feita essa análise, caminho então para a investigação das proximidades e

afastamentos do filme de Joaquim Pedro em relação ao tropicalismo, utilizando-me, para a

compreensão deste movimento, do grande número de obras publicadas a seu respeito,

assim como do já citado acervo digital da revista Veja, onde encontra-se inúmeras

referências ao movimento, tanto em seu mais conhecido campo, o musical, quanto em suas

ramificações para outras formas artísticas – o cinema entre elas.

Há, no entanto, um ponto fundamental em minha pesquisa, que na realidade

constitui-se em seu ponto de partida: o estudo do conceito de antropofagia. Explico: tanto o

tropicalismo, em sua vertente musical, quanto o filme Macunaíma recuperaram, naqueles

últimos anos da década de 1960, as discussões em torno da prática antropofágica na cultura

brasileira apresentadas, entre as décadas de 1920 e 1950, pelo (poeta, filósofo, ensaísta,

romancista, dramaturgo, jornalista) modernista Oswald de Andrade. Entretanto, e isso é

555Utilizo-me, até o presente momento de minha pesquisa, principalmente de fontes recolhidas no arquivo

da Agência O Globo, que resumem-se a uma série de recortes de jornais e revistas reunidos sob uma pasta

intitulada “Joaquim Pedro de Andrade”, e no acervo digital da Revista Veja, disponibilizado no endereço

eletrônico http://veja.abril.com.br/acervodigital

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algo que busco explicitar em meus escritos, essa recuperação se dá de formas diversas, e,

logo, podemos falar em diferentes antropofagias nesse momento do cenário artístico-

cultural do país.

Julgo necessário aqui um esclarecimento: iniciei minha pesquisa de mestrado tendo

como ponto central desta justamente este estudo do conceito de antropofagia no filme

Macunaíma, buscando diferenciá-lo do “original” oswaldiano, historicizando-o,

colocando-o no tempo, lançando sobre ele um olhar diacrônico. Esta é uma ambição que

mantenho no estágio atual de minha pesquisa. Entretanto, o contato com determinadas

fontes fez com que a antropofagia, ou melhor, essa busca por uma “história do conceito de

antropofagia”, deixasse de ser o ponto central da pesquisa, tornando-se então uma espécie

de chave, responsável por abrir-me portas para a compreensão da complexa relação entre o

Cinema Novo brasileiro, e mais especificamente o filme Macunaíma, e o movimento

tropicalista. Essa é uma relação geralmente naturalizada. O que intento aqui é contribuir no

sentido de problematizá-la.

CINEMA NOVO NO BRASIL: MULTIPLICIDADE E CONTRADIÇÕES DE UM

MOVIMENTO

É provável que, mesmo evitando-se qualquer esforço de julgamento e comparação

imprópria, o movimento conhecido como Cinema Novo represente o momento mais

relevante da história do cinema brasileiro. Foi o ápice artístico dessa arte no país. Teve

inúmeras limitações (algumas das quais buscarei apontar adiante), mas trouxe reflexões e

novidades ausentes até então do métier cinematográfico brasileiro, e deixou marcas

profundas neste – e não é preciso procurar muito, hoje em dia, para observar-se a

permanência destas marcas.

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Numa apresentação breve e simplista, o Cinema Novo foi uma tentativa conduzida

por um grupo de jovens cineastas – liderados pela figura incontornável do baiano Glauber

Rocha – de produzir um cinema no Brasil marcado pela condição de subdesenvolvimento

do país, tematizando pela primeira vez o povo, os despossuídos, os marginalizados, os

oprimidos (no campo e na cidade). Um cinema muitas vezes rústico, no sentido de

preocupar-se muito mais com um papel revolucionário (socialmente) da arte que produzia

do que com um grande apuramento estético. “Uma câmera na mão e uma idéia na cabeça”,

proclamava Glauber Rocha. Mais vale uma idéia revolucionária, concretizada em uma arte

revolucionária, do que um excessivo debruçar sobre o cuidado técnico com os filmes

produzidos. Faço uma mea-culpa: como disse no início desse parágrafo, essa é uma

apresentação simplista da prática cinemanovista; o movimento foi muito mais complexo do

que isso, promovendo, em muitos casos, pesquisas de linguagem em suas obras, que

revelaram-se fundamentais para o avanço da prática cinematográfica no país.

Na verdade, há uma diferenciação importante a ser feita: ainda que tocando-se e

compartilhando temas e preocupações, existem grupos e momentos distintos dentro do

Cinema Novo. É difícil definir, afora os filmes de Glauber, o que é e o que não é Cinema

Novo. O próprio cineasta baiano aponta o início do movimento no ano de 1960. Entretanto,

Nelson Pereira dos Santos, posterior participante do núcleo central cinemanovista, é, antes,

um grande influenciador de Glauber, produzindo filmes – dois especialmente, Rio

Quarenta Graus (1955) e Rio, Zona Norte (1957) – fortemente marcados pelos princípios

do neo-realismo italiano, e anteriores ao início da carreira de Glauber Rocha e da

sistematização de suas idéias, sendo tido, por este, como um modelo a ser seguido pelos

filmes do Cinema Novo.

Existem também filmes sendo produzidos segundo pressupostos próximos aos dos

cinemanovistas, mas ligados a forças políticas e partidárias muito claras: refiro-me aqui à

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produção cultural dos Centros Populares de Cultura (os CPC's) da União Nacional dos

Estudantes – no caso do cinema, do filme Cinco Vezes Favela (1962). Este consistiu em

um longa composto por cinco episódios (cada um a cargo de um diretor), todos trazendo

temáticas populares, um olhar positivo sobre os oprimidos, tidos como agentes de uma

revolução que estava por vir. Joaquim Pedro de Andrade dirigiu um desses segmentos,

provavelmente o mais elogiado deles, Couro de Gato. E também aquele que foge um

pouco do esquema nacional-popular das produções dos CPC's (até porque o filme foi feito

antes do início do projeto Cinco Vezes Favela, sendo posteriormente incorporado ao

longa).

Para esse cinema, seja o Cinema Novo de Glauber, seja aquele produzido pela

UNE, a tematização do povo não bastava por si só: era preciso que o povo assistisse a esses

filmes. E aí esteve o grande dilema desses cineastas. Seus filmes, em sua grande maioria,

foram grandes fracassos de bilheteria no país – mesmo premiados em alguns dos principais

festivais de cinema do mundo. O público do Cinema Novo era uma classe média

intelectualizada, universitária principalmente. O “povo” não assistia aos filmes de Glauber,

Nelson Pereira dos Santos, Leon Hirszman, Joaquim Pedro de Andrade, Carlos Diegues

entre outros. O debate em torno dessa questão foi pungente no seio do movimento,

provocando grandes discussões sobre a facilitação ou não da linguagem dos filmes para

que o público almejado fosse alcançado556

.

Joaquim Pedro de Andrade inseriu-se nesse movimento, ainda que de uma forma

bem particular. Participou do grupo central (o chamado “núcleo histórico”) do Cinema

Novo, era bastante próximo de Glauber Rocha, entretanto, seu cinema sempre foi dotado

de características muito peculiares, que, por mais que dialogasse com os pressupostos

556Nesse sentido, é de enorme riqueza o livro de Alex Viany O Processo do Cinema Novo, organizado por

José Carlos Avellar. Tal livro consiste, na realidade, em uma série de entrevistas realizadas por Viany com

alguns desses cinemanovistas, onde debates em torno da questão da falta de público para o cinema produzido

pelo movimento aparece com particular força.

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cinemanovistas, jamais demonstrou total sujeição a eles. Por mais que essa denominação

possa ser estendida a boa parte dos participantes do movimento, Joaquim Pedro parece-me

ser um típico caso de auteur557

. Não deixa de ser instigante, então, que seja um filme seu,

Macunaíma, o primeiro grande sucesso de público de uma obra produzida por um

cinemanovista.

ANTROPOFAGIA E TROPICALISMO NO BRASIL: UMA TORTUOSA VIAGEM

DOS ANOS 20 AOS ANOS 60

Muito já foi dito, debatido e escrito sobre o movimento tropicalista brasileiro – ou

simplesmente Tropicália. As propostas musicais-artísticas-estéticas-políticas do grupo

liderado por Caetano Veloso e Gilberto Gil (e que acabou por envolver, de alguma forma,

um sem número de artistas, como Maria Bethânia, Gal Costa, Tom Zé e Os Mutantes)

foram polêmicas desde seu surgimento, nos idos de 1967-68. Definir a Tropicália,

portanto, pode ser, ao mesmo tempo, um exercício de repetição do que já foi dito (logo,

mais do mesmo), e também uma tarefa de grande dificuldade. Vamos aqui a duas

definições que parecem-me opostas, e vejamos o que se pode tirar delas.

A primeira é José Ramos Tinhorão, no livro História Social da Música Popular

Brasileira:

557Vale aqui a citação de sua clássica resposta, em uma entrevista, à pergunta “por que você faz cinema?”,

que acabou até mesmo musicada pela cantora Adriana Calcanhoto: “Para chatear os imbecis/ Para não ser

aplaudido depois de sequências dó de peito/ para viver à beira do abismo/ para correr o risco de ser

desmascarado pelo grande público/ para que conhecidos e desconhecidos se deliciem/ para que os justos e os

bons ganhem dinheiro, sobretudo eu mesmo/ porque de outro jeito a vida não vale a pena/ para ver e mostrar

o nunca visto, o bem, o mau, o feio e o bonito/ porque vi Simão do Deserto/ para insultar os arrogantes e

poderosos quando ficam como cachorros dentro d'água no escuro do cinema/ para ser lesado em meus

direitos autorais.” Essa resposta me parece uma demonstração de seu olhar sobre a arte que pratica, um olhar

ao mesmo tempo romântico, no sentido de reconhecer um potencial subversivo do cinema, e prático, ao

reconhecer o lado profissional de sua atividade, a necessidade de ganhar dinheiro com ela. Joaquim Pedro

não parece, ao menos aqui, preocupado com um “projeto de Brasil”, mas com um “projeto de cinema”, ainda

que não seja um projeto que funcione como uma prescrição para outros cineastas.

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“[o tropicalismo] constituiu a tentativa de – como definiria o

próprio líder do grupo, Caetano Veloso – obter 'a retomada da

linha evolutiva da tradição da música brasileira na medida em que

João Gilberto fez'. (...) o tropicalismo propunha-se a representar,

em face da linguagem 'universal' do rock, o mesmo que a bossa

nova representara em face da linguagem 'universal' do jazz. (...)

Assim, enquanto os criadores de música de linha nacionalista,

politicamente preocupados com a invasão do internacionalismo

programado pela multinacionais, reagiam usando recursos da

bossa nova (não mais americanizada) na procura de um tipo de

canção baseada em sons da realidade rural (Edu Lobo, Vandré) ou

da vida popular urbana (Chico Buarque), os baianos ligados ao

tropicalismo fariam exatamente o oposto. Alinhados com o

pensamento expresso por seu líder Caetano Veloso, 'Nego-me a

folclorizar meu subdesenvolvimento para compensar as

dificuldades técnicas', os tropicalistas renunciaram a qualquer

tomada de posição político-ideológica de resitência e, partindo da

realidade da dominação do rock americano (então enriquecido pela

contribuição inglesa dos Beatles) e seu moderno instrumental,

acabaram chegando à tese que repetia no plano cultural a do

governo militar de 1964 no plano político-econômico. Ou seja, a

tese da conquista da modernidade pelo simples alinhamento às

características do modelo importador de pacotes tecnológicos

prontos para serem montados no país.”558

A segunda definição é do próprio Caetano Veloso, em seu livro de memórias

Verdade Tropical:

“(...) um impulso criativo surgido no seio da música popular

brasileira, na segunda metade dos anos 60, em que os protagonistas

(...) queriam poder mover-se além da vinculação automática com as

esquerdas, dando conta ao mesmo tempo da revolta visceral contra

a abissal desigualdade que fende um povo ainda assim

reconhecivelmente uno e encantador, e da fatal e alegre

participação na realidade cultural urbana universalizante e

internacional, tudo isso valendo por um desvelamento do mistério

da ilha Brasil (...) movimento que tentava equacionar as tensões

entre o Brasil-universo paralelo e o país periférico ao Império

Americano (...) Um movimento que queria apresentar-se como a

imagem de superação do conflito entre a consciência de que a

versão do projeto do Ocidente oferecida pela cultura popular e de

massas dos Estados Unidos era potencialmente liberadora –

reconhecendo sintomas de saúde social mesmo nas demonstrações

mais ingênuas de atração por esta versão – e o horror da

558José Ramos Tinhorão. História Social da Música Popular Brasileira, pp. 323-325.

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humilhação que representa a capitulação a interesses estreitos de

grupos dominantes, em casa ou nas relações internacionais.”559

As duas visões são passíveis de críticas, mas críticas em sentidos diferentes. O que

se poderia repudiar no olhar de Caetano Veloso sobre o movimento seria justamente fazer

o que Tinhorão faz, ou seja, julgar negativamente o tropicalismo, vinculá-lo aos interesses

do capitalismo internacional do período, e ao desejo do governo militar brasileiro por

alienação da população jovem do país. Já o sentido da crítica à interpretação de Tinhorão

me parece puramente metodológico-estético. Metodológico por ele chamar o que faz de

“História Social”, entendendo isso como simplesmente realizar um panorama econômico e

político do contexto estudado, inserindo posteriormente, de forma subordinada, as

manifestações culturais daquela sociedade. E estético pela simples ausência de estética em

sua análise. Não há nenhuma preocupação com elementos artísticos do tropicalismo – há

somente uma busca por análise político-ideológica do movimento.

Nesse sentido, parece-me mais válida, ao menos para a proposta de meu trabalho, a

definição dada por Veloso, o que não significa ignorar o fato de tratar-se talvez da

principal figura de tal movimento, nem o fato de Verdade Tropical ter sido escrito 30 anos

após o surgimento da Tropicália.

Pois bem, escolhida a definição de tropicalismo a ser trabalhada aqui, falta

acrescentar a esta um elemento fundamental, também apresentado por Veloso em seu livro:

os diálogos estabelecidos entre os tropicalistas e o pensamento do modernista Oswald de

Andrade, particularmente com seu conceito de antropofagia. Conceito profundamente

contestador e subversivo da realidade sócio-cultural brasileira, que buscou, nas palavras de

Randal Johnson e Robert Stam, a criação de uma cultura nacional genuína, através da

consumação e da reelaboração crítica tanto da cultura nacional quanto das influências

559Caetano Veloso. Verdade Tropical. pp.16 e 17.

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estrangeiras560

. “Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago”561

,

dizia Oswald em determinada passagem do Manifesto Antropófago de 1928. “Contra o

mundo reversível e as idéias objetivadas. Cadaverizadas. O stop do pensamento que é

dinâmico. O indivíduo que é vítima do sistema. Fonte das injustiças clássicas. Das

injustiças românticas (...)”562

, continua o escritor. O antropófago devora o que não é seu, o

estrangeiro, para digerí-lo e devolvê-lo sob uma nova forma, marcada pelo primitivismo.

Na efervescência dos anos 60, nos embates estabelecidos com os defensores de

uma arte nacional-popular, a antropofagia oswaldiana seria de grande valor às intenções

dos tropicalistas. Recorro novamente à Caetano:

“A idéia do canibalismo cultural servia-nos, aos tropicalistas, como

uma luva. Estávamos 'comendo' os Beatles e Jimi Hendrix. Nossas

argumentações contra a atitude defensiva dos nacionalistas

encontravam aqui uma formulação sucinta e exaustiva. Claro

que passamos a aplicá-la com largueza e intensidade, mas não sem

cuidado, e eu procurei, a cada passo, repensar os termos em que a

adotamos. (...) Nunca perdemos de vista, nem eu nem Gil, as

diferenças entre a experiência modernista dos anos 20 e nossos

embates televisivos e fonomecânicos dos anos 60.”563

Caetano, como o próprio conta em seu livro, descobrira Oswald de Andrade em

1967, por conta da encenação da peça O Rei da Vela (escrita pelo modernista 30 anos

antes), pelo Teatro Oficina, comandado por José Celso Martinez Corrêa. Segundo o

tropicalista, ali percebera que “havia de fato um movimento acontecendo no Brasil. Um

movimento que transcendia o âmbito da música popular.”564

Seria esse um movimento

amplo de redescoberta da antropofagia, que ecoaria também, para além da música e do

teatro, no cinema. Aqui entra Macunaíma-filme.

560Randal Johnson & Robert Stam. op. cit.

561Oswald de Andrade. op. cit.

562Ibidem, pp. 48-49.

563Ibidem, pp. 247 e 248.

564Ibidem, p. 244.

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MACUNAÍMA E O “CINEMA TROPICALISTA BRASILEIRO”

Como apontado anteriormente, Macunaíma foi a primeira obra de um

cinemanovista a alcançar verdadeiro êxito de bilheteria – tendo, inclusive, tornado-se

referência nesse sentido entre os cineastas do período565

. O sucesso de público venho

acompanhado de premiações em festivais, nacionais e internacionais566

, o que contribuiu

para o fortalecimento do filme como um exemplo a ser seguido.

Ao adaptar para o cinema a rapsódia escrita 40 anos antes por Mário de Andrade,

Joaquim Pedro trilhou caminhos arriscados. Primeiramente, abriu de qualquer pretensão de

fidelidade exagerada. Percebeu ser impossível transpor o texto de Mário para o cinema da

forma como este estruturava-se no papel – o que deveria ser feito era reinventar

Macunaíma, em diálogo com o Brasil dos anos 60. Para isso, Joaquim Pedro realizou um

movimento que já vinha ocorrendo em outros setores do campo artístico brasileiro – como

apontou Caetano Veloso: o de redescoberta de Oswald de Andrade e da antropofagia. A

antropofagia é fundamental para a compreensão de Macunaíma-filme. Como aponta Ismail

Xavier,

“(...) Macunaíma-filme elege (...) a antropofagia como princípio de

interação entre as personagens, regra da sociedade. Ela aparece,

portanto, como núcleo temático de seu discurso sobre a barbárie

moderna (entenda-se, o capitalismo num país periférico)”567

565Como aponta Fernão Ramos Pessoa: ““O filme [Macunaíma], na época foi constantemente citado em

entrevistas de integrantes do Cinema Novo como exemplo da possibilidade de atingir o grande público sem

as fórmulas gastas da narrativa clássica”. Fernão Ramos Pessoa. História do Cinema Brasileiro. São Paulo:

Art Editora, 1987.

566Macunaíma ganhou, entre outros, os prêmios de melhor ator, melhor roteiro, melhor argumento, melhor

cenografia e melhor ator coadjuvante no Festival de Cinema de Brasília de 1969, melhor filme do Festival de

Cinema de Marília, em São Paulo, melhor ator e melhor fotografia no I Festival de Cinema de Manaus, em

1969, e melhor filme do Festival de Mar del Plata, Argentina, também em 1969. In: Ivana Bentes. Joaquim

Pedro de Andrade. A Revolução Intimista. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1996.

567Ismail Xavier. Alegorias do subdesenvolvimento. São Paulo, Brasiliense, 1993. p. 150.

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Nessa passagem de Xavier está um primeiro indício do caminho analítico a se

seguir no que concerne às relações do filme com o movimento tropicalista. Macunaíma é,

tradicionalmente, considerado um “filme tropicalista”. Mais: ao lado de Terra em

Transe568

, de Glauber Rocha, é comumente tido como exemplo máximo dessa “vertente”

no cinema brasileiro, um fase que teria surgido no interior do Cinema Novo, a partir de

1967-68, rompendo com a busca pelo nacional e o popular, sofrendo forte influência dos

feitos de Caetano e Gil na música – nesse caminho, uma série de outros filmes teriam sido

feitos seguindo pressupostos tropicalistas, como Brasil Ano 2000, de Walter Lima Jr.

Vejamos alguns comentários que comprovam essa caracterização de Macunaíma-filme

como tropicalista.

Na edição do dia 29 de outubro de 1969, a revista Veja noticiava o encerramento do

I Festival Norte do Cinema Brasileiro, em Manaus, do qual Macunaíma sagrou-se o grande

vencedor. Diz a reportagem:

“O primeiro festival de cinema brasileiro deste ano, encerrado

domingo último em Manaus sob um calor de 36 graus, confirmou,

com a vitória de Macunaíma, (...) um tendência para premiar filmes

coloridos, de produção cara e cuidada, com temas bem nacionais. E

é certo que o tropicalismo, morte e enterrado na música popular,

continua cada vez mais vivo no cinema brasileiro.”569

Ainda a Veja, agora na edição do dia 24 de dezembro do mesmo ano, anuncia a

estreia do filme de Joaquim Pedro em São Paulo:

568A relação de Terra em Transe com o tropicalismo é, no mínimo, curiosa. Também naturalizado como um

“filme tropicalista”, aquele que talvez seja a obra máxima de Glauber foi, na verdade, um catalisador do

movimento, um dos elementos deflagradores deste, como afirma o próprio Caetano Veloso: “Se o

tropicalismo se deveu em alguma medida a meus atos e minhas idéias, temos então que considerar como

deflagrador do movimento o impacto que teve sobre mim o filme Terra em Transe, de Glauber Rocha, em

minha temporada carioca de 66-7”. Caetano Veloso. Op. Cit. p. 99).

569Revista Veja. Rio de Janeiro, 29 de outubro de 1969. p. 71. In: http://veja.abril.com.br/acervodigital

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“(...) versão colorida e tropicalista do livro de Mário de

Andrade...”570

Nove anos depois, em 1978, o diretor de teatro Antunes Filho, que encenava uma

adaptação da rapsódia modernista, ao ser entrevistado pela revista Veja, e questionado

sobre a semelhança ou não de sua versão de Macunaíma com a de Joaquim Pedro, declara:

“Joaquim Pedro, a quem eu admiro muito, estava na época

engajado no movimento do tropicalismo e fez um filme

decididamente tropicalista, que servia ao movimento. Eu

particularmente não gosto do filme: acho que, ao servir às

contingências de um determinado momento, Joaquim Pedro

reduziu muito o livro de Mário de Andrade...”571

Por fim, as palavras de Robert Stam e Randal Johnson, dois grandes estudiosos do

cinema brasileiro do período:

“Macunaíma is generally classified as part of the (...) so called

'cannibal-tropicalist' phase. (...) Because of rigorous censorship, the

films of this period tends to work by political indirection, often

adopting alegorical forms...”572

Pois bem, vale questionar aqui o seguinte: ser antropofágico, ou tematizar a

antropofagia, nesse contexto, significa necessariamente ser tropicalista? Parece-me que

não. Existem formas diversas de apropriar-se do pensamento oswaldiano, e significados

múltiplos para a antropofagia em fins da década de 1960. Por isso a relevância do que diz

Xavier na citação acima. Assim, se Caetano Veloso vê na antropofagia oswaldiana paralelo

com o que os tropicalistas estavam fazendo, em sua devoração indiscriminada e sem

570Idem, 24 dezembro de 1969, p. 15.

571 Idem, 4 de outubro de 1978, p. 4.

572Randal Johnson & Robert Stam. Brazilian Cinema. Austin, Texas: University of Texas Press, 1988.

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preconceitos das mais diversas referências, nacionais e estrangeiras – “só me interessa o

que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago” – Joaquim está falando de outra

antropofagia. “O núcleo temático de seu discurso sobre a barbárie moderna (entenda-se, o

capitalismo num país periférico)”, aponta Xavier. Ou seja, Joaquim Pedro de Andrade está,

em Macunaíma, falando do canibalismo que move as relações capitalistas de uma

sociedade em processo de industrialização e modernização, daqueles que são engolidos,

devorados nesse processo. Mais: naquele ano de 1969, Joaquim Pedro falava também de

Macunaíma como “um brasileiro devorado pelo Brasil”, que sucumbe, ao som do hino

patriótico Desfile aos heróis do Brasil, de Villa-Lobos, e deixa para trás sua jaqueta verde-

oliva, de onde emerge seu sangue. Enfim, parece-me inegável que existem diferenças

visíveis entre a antropofagia dos tropicalistas e a de Macunaíma-filme.

No entanto, se poderíamos questionar o enquadramento de qualquer filme do

período dentro do tropicalismo – mesmo que fosse para, no final, concordar com tal

classificação, mas ao menos embasando-a empiricamente – no caso da obra máxima de

Joaquim Pedro há ainda um outro problema, que extrapola os sentidos intrínsecos à sua

narrativa. Refiro-me aqui ao esforço do próprio cineasta por afastar-se ideologicamente da

Tropicália, algo explicitado em declaração sua à revista Fatos e Fotos, em 1970:

“Macunaíma mostra que o balão inchado e colorido do

tropicalismo estava furado mesmo e tinha que se esvaziar, do

mesmo jeito que Macunaíma, personagem, festeja muito, mas

acaba comido pelo Brasil.”573

Nesse sentido, parece-me óbvio que essa relação entre Macunaíma e o tropicalismo

é uma relação a ser problematizada, complexificada, discutida. Algo que, até o momento,

573Joaquim Pedro de Andrade. In: JOÃO, Antônio. “Dizem que meu filme é grosso. Também acho.”, in

Fatos e Fotos, Rio de Janeiro, 2 abril de 1970. Apud: Heloísa Buarque de Hollanda. Macunaíma: da

literatura ao cinema. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora e Embrafilme, 1978.

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somente foi esboçado por Heloísa Buarque de Hollanda, em seu clássico livro sobre o

filme de Joaquim Pedro – e não deixa de ser curioso que esta tenha sido a primeira obra

escrita sobre Macunaíma-filme, ainda em 1978. Como mostra esta citação da autora:

“No caso do filme Macunaíma (feito em 1969, época em que o

tropicalismo já tendia a se dissolver em 'curtição'), se a imagem,

por um lado, pode sugerir a aproximação com os traços de

representação acumulativa e anacrônica da alegoria tropicalista, a

opção pela articulação unívoca e didaticamente política da linha

narrativa do filme se opõe à adesão.”574

CONCLUSÃO

Heloísa Buarque de Hollanda aponta então que há aproximações, especialmente na

estruturação da linguagem do filme, entre Macunaíma e o tropicalismo. Não se trata,

portanto, de uma mera negação de tal relação, desqualificando todas as análises realizadas

em que tal aproximação é feita. Como disse anteriormente, o objetivo aqui é complexificar,

problematizar – e não negar. Afinal, tal aproximação não é, e nem poderia ser, gratuita.

Estudar minuciosamente o filme de Joaquim Pedro. Estudar minuciosamente o

tropicalismo. Esse é o caminho que pretendo seguir nesta pesquisa, para alcançar o

objetivo proposto. O que faz com que retorne, aqui, ao olhar sobre o conceito de

antropofagia. Como dito na introdução deste texto, foi o estudo desse conceito que levou-

me a essa temática de pesquisa. E parece-me que um olhar crítico, rigorosamente empírico,

sobre os usos da antropofagia no cenário artístico-cultural brasileiro da década de 1960 é a

chave para o êxito de minha proposta. Afinal, parece ser ela a principal responsável pela

confusão, ou melhor, pela naturalização das relações entre Cinema Novo (e Macunaíma,

574 Heloísa Buarque de Hollanda. Op. Cit., pp. 101-102.

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no caso que me interessa mais) e tropicalismo – e pode ser também a responsável pela

mudança nesse olhar. Assim espero.

FONTES:

Acervo digital revista Veja: http://veja.abril.com.br/acervodigital

BIBLIOGRAFIA

ANDRADE, Mário de. Macunaíma. 23 ed. Belo Horizonte, Editora Itatiaia, 1986.

ANDRADE, Oswald de. A Utopia Antropofágica. Obras completas. Rio de Janeiro,

Editora Globo, 1995.

BENTES, Ivana. Joaquim Pedro de Andrade: a revolução intimista. Rio de Janeiro,

Relume Dumará, 1996.

HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Macumaíma: da literatura ao cinema. Rio de Janeira,

Livraria José Olympio Editora e Embrafilme, 1978.

JOHNSON, Randal & STAM, Robert. Brazilian Cinema. Austin, Texas, University of

Texas Press, 1988.

PESSOA, Fernão Ramos. História do Cinema Brasileiro. São Paulo: Art Editora, 1987.

TINHORÃO, José Ramos. História Social da Música Popular Brasileira. São Paulo: Ed.

34, 1990.

VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. São Paulo, Companhia das Letras, 1997.

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XAVIER, Ismail. Alegorias do subdesenvolvimento. São Paulo, Brasiliense, 1993. p. 150.