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Anais do III Seminário de
Graduandos e Pós-Graduandos em
História da Universidade Federal de
Juiz de Fora.
28 de novembro a 2 de dezembro de 2011
Anais do III Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade
Federal de Juiz de Fora.
ISSN: 2317-045X
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III Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da
Universidade Federal de Juiz de Fora
Centro Acadêmico de História
Gestão “Construindo Diálogos” (2011-2012)
Anais do III Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de
Fora. Juiz de Fora, 2012. ISSN: 2317-045X.
105 p.
1-Anais; 2-Seminário de História; 3-Comunicações
Comissão Organizadora:
Antonio Gasparetto Júnior – mestrando (UFJF)
Carine Muguet – graduanda (UFJF)
Filipe Queiroz de Campos – graduando (UFJF)
Laíz Perrut Merendino – graduanda (UFJF)
Luiz César de Sá Júnior – mestrando (UFJF)
Renata Silva Fernandes – graduanda (UFJF)
Diagramação e Formatação:
Antonio Gasparetto Júnior
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Sumário
Arte e Cultura
Do Manifesto à Utopia: a reabilitação jesuítica.
Raíssa Galvão ........................................................................................ Pág. 5
Mito e Ciência em Aby M. Warburg: uma análise da influência de Tito Vignoli na obra de
Warburg.
Serzenando Alves .................................................................................. Pág. 11
A Tempestade de Shakespeare: aproximações entre História e Literatura.
Daiana Pereira Neto ............................................................................... Pág. 21
E agora, Zsoze? Adaptação, fidelidade e intertextualidade em Budapeste.
Diego Schaeffer de Oliveira .................................................................. Pág. 31
Historiografia em Foco: um estudo sobre Richard Morse sob a perspectiva da Nova
História das Ideias.
Mariane Ambrósio Costa ....................................................................... Pág. 40
Alejo Carpentier por Richard Morse: notas do historiador norte-americano sobre o escritor
cubano no alvorecer de uma América em transformação.
Pedro Henrique Leite ............................................................................. Pág. 50
Brasil Colônia
A Expulsão dos Religiosos nas Minas: uma questão de poder entre Igreja e Estado.
Cristiano Sousa ...................................................................................... Pág. 55
História Econômica
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O Mercado de Bens Rurais e Urbanos do Termo de Mariana: espaços de produção e
hierarquia social, 1711-1780.
Quelen Lopes ......................................................................................... Pág. 63
Brasil Império
O Diário do Rio de Janeiro à Luz da Historiografia: algumas reflexões (1821-1834).
Laiz Perrut Merendino ........................................................................... Pág. 72
História Política
O Movimento Higienista do Início do Século XX e a Discussão dos Grupos Escolares de
Juiz de Fora.
Anderson Narciso .................................................................................. Pág. 79
Os Neo-Institucionalismos e as Teorias Sociológicas de Ação: um debate teórico-
metodológico.
Felipe Araújo Xavier ............................................................................. Pág. 88
Um Conflito de Difícil Solução: a atuação diplomática do Ministro dos Negócios
Estrangeiros Silvestre Pinheiro Ferreira na questão da Cisplatina (1821-1823).
Sandra Rinco Dutra ............................................................................... Pág. 97
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Arte e Cultura
Do Manifesto à Utopia: a reabilitação jesuítica.
Raíssa Varandas Galvão
Introdução
Esse artigo apresenta como objetivo primordial a análise da clara mudança de julgamento
dos jesuítas por parte de Oswald de Andrade, mudança essa que podemos identificar na
comparação entre o “Manifesto Antropófago”, lançado pelo modernista na década de 20, e
os seus diversos textos reunidos em “A Utopia Antropofágica”, datados dos anos 50.
Acreditamos que em “A marcha das utopias”, Oswald empreende uma reabilitação dos
jesuítas assim como da Contra-Reforma, enxergando uma plasticidade, uma flexibilidade
em ambos, que não havia notado nos tempos de manifesto.
Como base para essa análise, usaremos, além dos próprios escritos de Oswald, as
explanações de Benedito Nunes sobre o modernista, assim como os artigos de Beatriz
Domingues e Sonia Lino, onde, através das interpretações desses autores, poderemos
melhor entender a reavaliação sofrida pelos jesuítas.
Desenvolvimento
Inicialmente, acredito ser importante esclarecer que ao compararmos o manifesto de 1928,
com seus escritos da década de 50, estamos tratando não do mesmo Oswald, e sim da
comparação de um rebelde e irreverente, que junto com seus colegas modernistas causou
polêmica na semana de 1922, com um Oswald amadurecido e marcado por elementos de
sua fase marxista anterior. Durante sua fase de militância política, confessa ter sido uma
espécie de palhaço da burguesia, atingido pelo “sarampão antropofágico”. No entanto,
mesmo nessa fase, como Benedito Nunes nos adverte, Oswald de certa forma não
consegue abandonar de fato a antropofagia, pois parece sempre submeter o próprio
marxismo a uma espécie de “filtragem antropofágica”. Ao romper com o marxismo, em
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1945, o próprio Oswald anuncia o seu retorno à antropofagia, no entanto, a meu ver, uma
antropofagia mais madura que a de sua primeira fase. Com seus textos dos anos de 1950 e
sua conversão filosófica, buscará uma formulação da antropofagia como filosofia. Apóio
Beatriz Domingues quando essa diz discordar daqueles que acreditam serem os escritos
dessa fase mais moderados, e até mesmo capitulações, em relação a seus escritos da época
dos manifestos. Como diz a historiadora, a nova fase seria mais flexível e menos
hierárquica, daí a sua reavaliação dos jesuítas, mas também tomada de algo subversivo e de
uma maturação e maior teorização. A antropofagia, diferente da anterior, estaria agora
tomada por alguns elementos que o intelectual havia incorporado de sua fase militante,
pois apesar de ter abandonado o marxismo, Oswald não abandonará totalmente o
pensamento de Marx.
Em seu Manifesto Antropófago, Oswald declara-se “Contra todas as catequeses. E
contra a mãe dos Gracos.” 1
. Para Oswald, a catequese, empreendida pelos jesuítas, teria
sido nossa primeira censura, um órgão de repressão que representaria o superego coletivo.
Assim, seria a Companhia de Jesus responsável pela coibição da antropofagia ritual,
fazendo da sociedade brasileira, uma sociedade traumatizada pela repressão colonizadora.
Ao afirmar, em seu manifesto, ser contra nomes como Vieira, Anchieta, assim como
Goethe, a Mãe dos Gracos e D. João VI, Oswald estaria se colocando contra emblemas,
tabus intocáveis, que representariam justamente essa repressão da sociedade brasileira que
tanto nos traumatizou. Padre Vieira, além de missionário jesuíta, se associaria à retórica e à
eloqüência; Anchieta representaria todo o fervor apostólico e a catequese geradora da
censura; Goethe estaria ligado ao senso de equilíbrio, enquanto a Mãe dos Gracos e D.
João VI seriam símbolos da moral severa, o primeiro, e da dominação estrangeira, o
segundo. Dessa forma, o modernista opõe a esses tabus símbolos míticos como Jacy,
Guaracy e Jaboti, que sairiam do inconsciente primitivo, catalisando a operação
antropofágica e transformando o tabu em totem.
A transformação do tabu em totem, defendida por Oswald, significaria a libertação
de nossos recalques e a possibilidade de vivermos novamente em uma “realidade sem
complexos, sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias do matriarcado de
Pindorama.”. Baseando-se em um pensamento freudiano, essa transformação libertaria a
consciência coletiva de seu Superego, resgatando as energias psíquicas reprimidas, de
forma que poderíamos novamente seguir os roteiros do instinto caraíba gravado nos
1ANDRADE, Oswald. Manifesto Antropófago.
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arquétipos do pensamento selvagem: o pleno ócio, a livre comunhão amorosa, a vida
lúdica.
Contudo, ao escrever “A Marcha das Utopias”, em 1953, percebemos uma mudança
de posicionamento por parte do autor em relação à Companhia de Jesus. Essa teria nos
trazido a “religião de caravelas” e a cultura da Contra-Reforma em lugar da Reforma. Algo
que para Oswald de Andrade seria positivo, pois ao invés de nos transformarmos em
expressão da fria e mecânica concepção calvinista e de sua apologia ao trabalho e ao
negócio, nos tornamos fruto de uma concepção mais humana e igualitária da vida, de uma
cultura de predominância do ócio sobre o negócio, trazida pela Contra-Reforma através
dos jesuítas. Assim, para ele, apesar do calvinismo ser incontestavelmente superior no que
se refere ao incentivo para o progresso técnico, atingido o clímax da técnica, o calvinismo
deveria ceder espaço à concepção mais humana da Contra-Reforma.
Ainda creio que nossa cultura religiosa venha a vencer no mundo moderno a
gélida concepção calvinista, que faz da América do Norte uma terra inumana,
que expulsa Carlitos e cultiva McCarthy. 2
Para o escritor, os jesuítas passam a ser vistos como uma ordem plástica e
compreensiva, dona de uma cultura de larga visão e flexível, a tal ponto, que de acordo
com o próprio Oswald, “estava levando aos limites pagãos dos ritos malabares o seu afã de
ecletismo e de comunicação humana e religiosa.”. Essa postura pode ser vista na política
de sincretismo adotada pelos jesuítas na catequização dos indígenas. Aqueles buscavam
estabelecer uma “ponte”, uma via de comunicação entre o mundo indígena e o cristão,
procuravam aprender as línguas nativas e os costumes locais, de modo a facilitarem suas
pregações e tentativas de conversão. Analisando os costumes indígenas conseguiam, então,
elaborar inúmeras táticas e estratégias mais efetivas, como por exemplo, em alguns casos
em que os jesuítas, percebendo a grande autoridade dada aos pajés por parte dos índios,
procuraram assumir o papel desses e passaram muitas vezes a se dedicarem aos
atendimentos médicos. Através dessa política sincretista, expressavam o desejo da
Companhia de Jesus pela universalização.
Assim, sendo inevitável a colonização do Brasil, o que Oswald parece dizer é que é
preferível termos sido colonizados pela Contra-Reforma, que por sua maior plasticidade se
apresentava como mais tolerante às comunidades indígenas matriarcais, do que pela
2ANDRADE, Oswald. A marcha das utopias In: A Utopia Antropofágica. Rio de Janeiro: Globo, 1995,
p.163
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Reforma, que embora talvez nos possibilitasse maior progresso técnico, por sua
intolerância, seria ainda mais devastadora para a sociedade matriarcal de Pindorama. De
certo modo, a Contra-Reforma, ainda que patriarcal, seria um empecilho menor para a
concretização do novo Matriarcado anunciado por Oswald, onde o homem civilizado seria
substituído pelo terceiro termo de sua equação, o homem natural civilizado.
Ao tratar da oposição entre Reforma e Contra-Reforma, Oswald recorre de maneira
brilhante a uma oposição ainda mais antiga, a existente entre judeus e árabes, ambos povos
semitas, que acabaram por dividir o monoteísmo em dois grandes ramos. Enquanto os
judeus sustentariam a idéia da eleição, julgando-se o povo escolhido por Deus, criando
assim um racismo esterilizador e uma cultura fechada e endógena, os árabes, um povo
exogâmico e aberto para contatos com o exterior, criaram a miscigenação e uma cultura
baseada na flexibilidade, na absorção e na rica mistura.
De acordo com Oswald, essas duas culturas teriam produzido as duas concepções
de vida opostas tão conhecidas nossas, a Reforma e a
Contra-Reforma. Do sistema exclusivista e fechado dos judeus, da noção de povo eleito
que estes carregavam, surge o Protestantismo com a sua crença na eleição, dessa vez não
de um povo, mas do indivíduo. Da plasticidade política, da flexibilidade, da cultura
exógena aberta à miscigenação, que caracterizavam os árabes, abriu-se caminho para a
Contra-Reforma e para os seus maiores representantes aqui no Brasil, os jesuítas.
A grande presença árabe na Península Ibérica, faz de nós, brasileiros, um povo mais
miscigenado que qualquer outro. Não só somos produtos da miscigenação entre a cultura
indígena, africana e européia, como a própria cultura portuguesa que chegou até nós, já era
uma cultura miscigenada. Apesar da ocorrência da Reconquista, como o próprio Oswald
nos adverte, a arabização já havia se concretizado na península, e de certa forma se
transferido para os jesuítas, que são classificados pelo autor como “os maometanos de
Cristo”. É de se imaginar o escândalo que tal classificação causaria em Inácio de Loiola,
no entanto, para Oswald a comparação nada mais foi do que um elogio, pois, é devido às
raízes árabes que a cultura jesuítica se assinalou por tamanha plasticidade e lassidão
compreensiva, características responsáveis pela reabilitação dos jesuítas por parte de
Oswald. Assim, metamorfoseando o “deus de caravana” dos árabes no Cristo, o “deus de
caravela”, os jesuítas sairiam para conquistar a América.
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Vinda da Arábia petrificada e saída do deserto, a gente sarracena se mesclaria na
Península para continuar pelos caminhos do oceano o seu impulso exógamo e
conquistador, que trazia em si o errático e o imaginoso, a aventura e a fatalidade.
E que só havia de estacar nos verdes da Descoberta. Na Ilha de Vera Cruz, Ilha
de Santa Cruz, Ilha de Utopia, Brasil (p.170). 3
A essas idéias até aqui apresentadas podemos ligar as de Sérgio Buarque de Holanda, em
seu livro “Raízes do Brasil”. De acordo com ele, o domínio europeu entre nós foi mais
brando, menos obediente: “A vida parece ter sido aqui incomparavelmente mais suave,
mais acolhedora das dissonâncias sociais, raciais, e morais”4. Para Sérgio Buarque, essa
plasticidade social associava-se diretamente a inexistência de orgulho racial entre os
portugueses, o que os diferenciava do povo do Norte.
Essa modalidade de seu caráter, que os aproxima das outras nações de estirpe
latina e, mais do que delas, dos muçulmanos da África, explica-se muito pelo
fato de serem os portugueses, em parte, e já ao tempo do descobrimento do
Brasil, um povo de mestiços. 5
Desse modo, vemos que não é apenas Oswald quem enxerga nas raízes árabes boa parte
dos aspectos que caracterizariam a concepção mais flexível e exógena que seria trazida
para a colônia brasileira.
Contudo, é fundamental esclarecermos que, apesar de reabilitar os jesuítas e demonstrar
uma postura mais favorável à cultura da Contra-Reforma, Oswald não procura assumir um
compromisso religioso ou ideológico.
Quando exalto os jesuítas, de modo algum assumo para com eles um
compromisso religioso ou ideológico. Entendendo como entendo o sentimento
religioso universal, a que chamo sentimento órfico, o qual atinge e marca todos
os povos civilizados como todos os agrupamentos primitivos, isso de nenhuma
forma toca minha equidistância. 6.
Seu elogio à Contra-Reforma está ligado a essa ser oposta à visão de mundo árida e
mecânica que caracteriza a Reforma, por não ter rompido a cultura do ócio de forma tão
ferrenha quanto a religião de Calvino, e ter possibilitado que o Brasil se tornasse “a utopia
realizada, bem ou mal, em face do utilitarismo mercenário e marcante do Norte”. E como
3 ANDRADE, Oswald. A marcha das utopias. In: A Utopia Antropofágica. Rio de Janeiro: Globo, 1995,
p.170 4 HOLANDA. Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1994. p.22
5 HOLANDA. Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1994. p.22
6. ANDRADE, Oswald. A marcha das utopias. In: A Utopia Antropofágica. Rio de Janeiro: Globo, 1995,
p.166
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maior expressão dessa concepção de mundo contra-reformista, Oswald enxerga a cultura
jesuítica, que passa a ser exaltada por esse não em termos de uma devoção religiosa, mas
sim por ser ela responsável por trazer até nós a larga visão de mundo e a plasticidade que
têm como origem raízes sarracenas.
Referência Bibliográfica
ANDRADE, Oswald. A marcha das utopias. In: A Utopia Antropofágica. Rio de Janeiro:
Globo, 1995.
__________, Oswald. Manifesto Antropófago. Disponível em: <
www.fafich.ufmg.br/manifestoa/html/textos.htm>.
DOMINGUES, Beatriz Helena e LINO, Sonia. Utopia e religiosidade em Oswald de
Andrade. In: AMARAL, Leila e GEIGER, Amir. In vitro, In vivo, in silício: ensaios sobre
a relação entre arte ciência, tecnologia e o sagrado. São Paulo: CNPq/Pronex/Attar
Editorial, 2008, pp.34-56
DOMINGUES, Beatriz Helena. Modernismo e Religião: um estudo da abordagem de
Oswald de Andrade sobre o papel da Contra-Reforma no Brasil.
HOLANDA. Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1994.
NUNES, Benedito. A Antropofagia ao alcance de todos. In: A Utopia Antropofágica. Rio
de Janeiro: Globo, 1995.
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Mito e Ciência em Aby M. Warburg: uma análise da influência de Tito Vignoli na
obra de Warburg.
Serzenando Alves
Aby Warburg (1866 – 1929) foi um dos mais proeminentes historiadores da cultura
do século XX. Sua obra é, em grande parte, dedicada ao estudo do Renascimento Italiano
juntamente com um contexto cultural mais amplo, percebendo as influências e recepções
culturais de lugares longínquos como o oriente árabe e de regiões vizinhas como os países
baixos e os países de língua alemã. Sua obra é uma importante contribuição ao estudo da
cultura especialmente dos séculos XV e XVI e mais ainda, uma importante contribuição a
uma perspectiva historiográfica que busca compreender a cultura em consonância com
diversas manifestações do espírito humano, como a arte.
Ao longo de sua vida, apesar de não ter sido professor universitário até seus últimos
anos, manteve um contato próximo com vários pensadores contemporâneos importantes.
Em especial, durante sua formação universitária passou por diferentes universidades,
conheceu pensadores importantes ou que haveriam de se tornar e teve contato com
correntes do pensamento ocidental que foram cruciais para a elaboração posterior seu
pensamento e obra.7 Desta forma Warburg está inserido em um contexto de produção
científica e intelectual das mais importantes da história. O final do século XIX e início do
século XX testemunha um avanço científico e intelectual nunca antes visto e presencia o
vigor do pensamento filosófico alemão que teve grandes avanços desde o século XVIII.
Apesar da importância da obra de Warburg e do contexto em que está inserido, ele
foi por muito tempo conhecido principalmente pelo Instituto que carrega seu nome,
transferido para Inglaterra e incorporado na década de 40 à universidade de Londres. O
instituto reuniu importantes nomes do século XX ao seu redor. Em 1970 com a publicação
7 A biografia intelectual de Warburg escrita por Gombrich (GOMBRICH: 1992) é a discussão mais completa
sobre as influências que Warburg teve em sua formação e ao longo de sua vida como pesquisador. Outros
trabalhos, no entanto, têm sido desenvolvidos a partir de então articulando a obra de Aby Warburg com
outros pensadores, cito aqui alguns trabalhos notáveis. Para relação entre Aby Warburg e Jacob Burckhardt,
ver: FERNANDES: 2006. Para a influência do seu professor, Karl Lamprecht, em sua formação, ver:
BRUSH: 2001. Para a aproximação das teorias de sobrevivência de Aby Warburg e E. P. Tylor ver: DIDI-
HUBERMAN: 2002. Para a influência da teoria dos símbolos de Vischer em Warburg ver: RAMPLEY:
1997.
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de sua biografia, pelo renomado historiador da arte E. H. Gombrich, este quadro inverte de
forma que o interesse pela vida e obra de Aby Warburg vem aumentando desde então. Não
obstante, Warburg é ainda pouco conhecido no Brasil.8 Este trabalho tem, portanto, o
objetivo de discutir este importante historiador do princípio do século XX que é ainda
pouco divulgado no meio acadêmico brasileiro, compreender a relação da obra de Warburg
com o contexto intelectual do final do século XIX, especificamente a partir da influência
exercida pelo filósofo italiano Tito Vignoli, aprofundando com isso a discussão em torno
de um problema central na obra de Warburg: o conflito entre o racional e o irracional.
Uma reflexão sobre a obra Mito e Ciência de Tito Vignoli
O filósofo italiano Tito Vignoli nasceu em Rosignano Marittimo no ano de 1829.
Sua carreira como intelectual foi construída nos círculos eruditos da cidade de Milão. Sua
primeira obra foi publicada em 1876 e se intitulou Delle condizioni morali e civili d’Italia.
Em 1877 Vignoli publicou a obra Della legge fondamentale dell’intelligenza nel mondo
animale, nesta obra o filósofo elaborou uma reflexão sobre os processos cognitivos na
inteligência animal. Apesar da qualidade do trabalho, obteve pouca repercussão, de fato, o
problema central presente em “Da lei fundamental da inteligência no mundo animal” vai
ser ampliada em sua obra seguinte, momento em que o filósofo elabora com mais
maturidade seu pensamento. Desta forma, em 1879 Vignoli publicou sua grande obra Mito
e Scienza. “Mito e Ciência” alcançou grande repercussão, extrapolando os limites
geográficos da Itália. No ano seguinte ao lançamento do livro saiu publicado a versão
alemã. Em 1882 a obra alcançou o público Inglês com sua primeira tradução para o
idioma. Essas traduções foram responsáveis pela divulgação da obra de Vignoli, em
especial nos meios intelectuais evolucionistas de finais do século XIX. De fato, “Mito e
Ciência” consagrou Tito Vignoli como um importante filósofo evolucionista do século
XIX. Vignoli viveu até o ano de 1914 na cidade de Milão.
A partir das discussões evolucionistas do final do século XIX, Vignoli propôs suas
ideias que eram por si só muito audaciosas. O filósofo italiano parte de questões abertas em
Tylor e Spencer. Em Spencer, tomando como válida toda sua teoria fica uma pergunta
8 Ainda não existem traduções dos trabalhos de Warburg para o português. O primeiro ensaio sobre Warburg
que apareceu no Brasil em língua portuguesa está numa coletânea de Carlo Ginzburg, ver: GINZBURG:
1989. Recentemente a obra de Warburg tem despertado a atenção do meio acadêmico brasileiro e vem
surgindo os primeiros trabalhos publicados no Brasil, ver: FERNANDES: 2004, 2006; MATTOS: 2007;
TEIXEIRA: 2010.
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pendente: como é processado o irracional no homem? (VIGNOLI: 1882, p.15-16) Para
Tylor, Vignoli pergunta: o que faz com que o homem dê vida aos objetos que o circunda?
(VIGNOLI: 1882, p.16-17) A partir destas perguntas Tito Vignoli defende que em ambos
os pensadores a natureza do processo irracional no homem não está analisada, portanto,
sua proposta é compreender o processo irracional da mente humana (daqui para frente
chamado de mito) em sua gênese. Como manifesta Vignoli, o avanço de sua teoria é a
percepção do mito em sua origem, a saber, no reino animal, o que não foi feito por Comte,
Darwin, nem mesmo por Spencer. (VIGNOLI: 1882, p.161-162) Não adentrando em
demais aspectos conceituais da obra, cabe aqui discutir o que Vignoli entendia por mito e
como ele está integrado no homem. Esta é a questão central da visão do filósofo sobre o
homem e o processo histórico.
Na teoria de Vignoli o mito é pensado como uma faculdade própria do homem. Na
primeira página de sua obra há uma boa definição do mito que permite compreender a
percepção do filósofo quanto a esta faculdade. Aqui cito suas próprias palavras;
Nós sustentamos que o mito é, em sua mais geral e compreensível natureza, a
forma espontânea e imaginária em que a inteligência e as emoções humanas
concebem e representam tanto elas mesmas quanto as coisas em geral; é o modo
físico e psíquico em que o homem se projeta em todos os fenômenos que ele é
capaz de compreender e perceber.9
Para Vignoli o mito é uma faculdade presente em todos os homens independente da
sobrevivência ou não dos antigos costumes mitológicos. (VIGNOLI: 1882, 3) O que
Vignoli mostra ao longo da história que escreve do mito é que ele persiste mesmo nos
momentos de racionalização mais extrema. No entanto, seu pensamento é marcado por um
otimismo de caráter teleológico em relação ao triunfo final da ciência e consequente
aniquilação do mito, tal otimismo provém de outra faculdade inerente ao homem: a
ciência. A ciência aparece no pensamento de Vignoli como uma faculdade do homem
oposta à faculdade do mito, que de uma forma simples, pode ser definida como “a gradual
exaustão e dissolução do mito em objetos que são cientificamente investigados”.
(VIGNOLI: 1882, p.113) Embora o mito seja uma faculdade tanto dos homens quanto dos
animais, Vignoli estabelece uma diferença fundamental que esta faculdade assume em
ambos tendo como premissa a evolução do homem em relação aos animais. Enquanto nos
animais o mito é o responsável pela personificação dos fenômenos naturais, esta mesma
9 Tradução livre de: VIGNOLI: 1882, p.1-2.
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personificação quando feita pelo homem permanece na sua memória, ou seja, enquanto a
personificação não avança para outro estado nos animais, ela “é transformada pelo homem
em fetish”. (VIGNOLI: 1882, p.93) A faculdade da ciência como definida acima é,
portanto, a responsável por romper com estes fetishes criado pelo homem. Com estas
reflexões chegamos finalmente ao caráter dialético que o homem possui na visão de
Vignoli: composto por duas faculdades em eterna oposição, o homem é pensado a partir
deste conflito entre duas faculdades inerentes à sua natureza, o mito e a ciência. Vejamos
agora como a história humana está marcada por este caráter dialético.
Em consonância com o projeto manifesto em “Mito e Ciência” a narrativa história
assume um lugar central na obra, pois é através desta que é tecido a origem e o
desenvolvimento do mito e da ciência.10
Antes de tudo é preciso salientar que a perspectiva
histórica presente na obra é marcada por um evolucionismo e por um caráter generalizante.
Está presente até mesmo certo fatalismo. Em Vignoli a história é regida por certas leis, leis
que constituem a base da sociedade e possuem uma natureza metafísica. Vignoli afirma
que “As verdadeiras e eternas leis que fazem a sociedade possível, e consequentemente a
base de sua moralidade, são resultados inatos e genuínos das leis universais, sendo
impossível para a ciência destruir tal inevitável ordem das coisas e reduzir a humanidade
ao puro caos”. (VIGNOLI: 1882, p.37) Ou seja, para o autor, paira acima da ciência uma
ordem estabelecida por leis universais que direcionam a história da humanidade. Mas é
nessa história que Vignoli traça o desenvolvimento do mito e da ciência, história marcada
em sua essência pelo conflito. Desta forma a História assume um caráter dialético onde em
diferentes momentos dois polos opostos coexistem: o mito e a ciência. Vejamos como esta
perspectiva é pensada em um exemplo concreto: a civilização grega.
Ao tratar da civilização grega o primeiro momento de entrave entre o mito e a
ciência se dá na construção da poesia grega, vista como a transformação do mito em
direção ao ensino moralizante. (VIGNOLI: 1882, p.200) Com o surgimento da filosofia
pré-socrática este caráter dialético permanece à medida que um pensador como Tales de
Mileto é visto como fortemente influenciado pelas perspectivas mitológicas, fato
constatado pela eleição da água como princípio de todas as coisas. (VIGNOLI: 1882,
p.212) Mais adiante, mesmo Platão e Aristóteles em suas sistematizações filosóficas
geniais não fugiram da influência do mito, expressando assim de maneira característica a
dialética fundamental da história da humanidade. (VIGNOLI: 1882, p.220) A dialética,
10
Tito Vignoli destina o mais longo capítulo de “Mito e Ciência”, “A evolução histórica do mito e da
ciência”, para descrever em detalhes este processo. Ver: VIGNOLI: 1882, p.155-240.
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portanto, não ocorre somente no âmbito o indivíduo, mas é também vista como parte
integrante de toda uma civilização. Os dois trechos a seguir falam por si quanto o conflito
do mito e da ciência na civilização grega:
A partir desta breve descrição é evidente que enquanto o pensamento envolvia
uma sistematização mais racional do conhecimento universal, os antigos ídolos e
as interpretações mitológicas não foram abandonadas, ainda que assumindo uma
forma abrangente e mais científica.11
E consequentemente é fácil ver como muito da teoria de Platão sobre o físico e o
psicológico estão relacionadas ao necessário e histórico curso do mito, e às
escolas nas quais o mito foi modificado antes de seu tempo.12
No curso da história surge desta forma um importante elemento constituidor desta
dialética mito-ciência, este elemento é a sobrevivência dos antigos hábitos. Alguns hábitos
permanecem em diferentes contextos e civilizações, reaparecendo até em momentos de
elevado desenvolvimento racional e científico. Este processo garante a sobrevivência de
certos aspectos mitológicos que, ao encontrarem respaldo na faculdade do mito inata ao
homem, faz com que este conflito persista. Finalizo esta parte do estudo com o trecho em
que Vignoli expõe de maneira clara e direta este questão:
No discurso comum, mesmo nos dias de hoje, todos homens, letrados e não-
letrados, falam das coisas inanimadas como se elas tivessem consciência e
inteligência. Enquanto esta forma de expressão carregar o testemunho das
origens extremamente remotas da personificação geral dos objetos naturais, ela
permanecerá mostrando que mesmo agora nossa inteligência não está totalmente
emancipada de tal hábito, e que o nosso discurso inconscientemente retêm este
antigo costume.13
O conflito na obra de Warburg
Em 1866 nasceu Aby Warburg, filho primogênito do banqueiro judeu Moritz
Warburg. Aby Warburg nasceu e foi criado na cidade de Hamburgo. Ainda em sua
adolescência teve experiências marcantes: uma delas é o episódio em que vendeu sua
primogenitura ao seu irmão Max em troca promessa de sempre prover o suporte financeiro
para a compra de seus livros. Este episódio revela o seu amor pelo conhecimento que
culminará mais tarde em sua opção, feita aos vinte anos de idade, de se dedicar a estudos
da história da arte na universidade de Bonn. Até o ano de 1896 Warburg passou
11
Tradução livre de: VIGNOLI: 1882, p.213. 12
Tradução livre de: VIGNOLI: 1882, p.226. 13
Tradução livre de: VIGNOLI: 1882, p.125-126.
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temporadas em diferentes lugares. Este período é importante para a formação de Warburg,
pois durante estes anos conheceu e manteve contato com diferentes pensadores da Europa
e dos Estados Unidos. É deste período também a sua tese de doutoramento onde estudou os
quadros “Nascimento de Vênus” e “Primavera”. Sua tese, publicada em 1893, revela a
essência das discussões que Warburg aprofundou em trabalhos posteriores. Ao regressar da
América em 1896 viveu em Florença e depois em Hamburgo até o ano de 1918. Neste
período Warburg publicou a maior parte de seus trabalhos, é neste também que o seu
fascínio pelo colecionismo de livros fez com que iniciasse o projeto de uma biblioteca
particular. Durante os anos de 1918 e 1924 Warburg enfrentou diversos problemas e crises
interiores, chegando a perder a sanidade mental. Após sua recuperação viveu até o final de
sua vida em Hamburgo. Neste período sua biblioteca particular já havia virado um centro
de estudos que reunia importantes nomes da recém-criada universidade de Hamburgo. Até
sua morte em 1929, Warburg continuou seu trabalho proferindo palestras e cursos, e
elaborando um projeto que deixou inacabado, o “Atlas Mnemosyne”.
A obra de Warburg compreende uma série de escritos não sistemáticos, de fato,
seus escritos são em maioria palestras que conferia ao público especializado. Sua obra é
fragmentária quanto ao aspecto formal, no entanto, possui um eixo que a interconecta,
podendo ser vista como uma importante contribuição à história da cultura, sobretudo, no
que se refere aos problemas que examina e ao método que adota. O primeiro trabalho de
Warburg, sua tese sobre os quadros mitológicos de Botticelli, pode ser tomado como um
exemplo sintético dos problemas que perseguiu em sua vida de pesquisador. Neste trabalho
Warburg analisou a composição dos quadros “Nascimento de Vênus” e “Primavera”
através das relações e do contexto cultural que envolvia o pintor Sandro Botticelli. Neste
contexto, uma figura central é Poliziano, mentor de Botticelli responsável por fornecer o
conhecimento clássico fundamental para a elaboração dos quadros através de uma relação
pintor-poeta, poeta-pintor. Essa tese pode ser vista como um primeiro esforço de
compreensão do círculo de Lorenzo, o Magnífico, que foi aprofundada em estudos
posteriores como “Arte flamenca e florentina no círculo de Lorenzo de Médici” (1901), “A
arte do retrato e a burguesia florentina” (1902), “Os últimos desejos de Francesco Sasseti
aos seus filhos” (1907). Mas pode ser pensada também a partir da presença de problemas e
perspectivas que constituem a o eixo central do pensamento presente em todos seus
escritos.
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A tese de Warburg já mostra uma metodologia de estudo da história que privilegia
o lugar do indivíduo.14
De fato, Warburg foi um grande erudito. As questões a que procura
responder em sua tese passa pela realidade empírica e o confronto com acontecimentos
reais. Outro aspecto notável é o lugar central da cultura. Aby Warburg pretendeu ao longo
de sua obra compreender o universo cultural, ou seja, o que estava em jogo era sempre a
maneira de pensar e compreender o mundo de determinada época histórica. O lugar central
dado ao universo cultural aparece em sua tese quando declara que o seu objetivo é
compreender através do estudo dos quadros “quais elementos da ‘antiguidade’
interessavam aos artistas do Quatrocento”. (WARBURG: 1999, p.89) Desta forma a
história da arte aparece na obra de Warburg integrada à história da cultura, uma vez que as
produções artísticas são entendidas como produtos e expressões da mentalidade de um
determinado contexto histórico.15
O elemento antigo é, em Warburg, outro eixo de
reflexão. Este aparece em sua tese, é formulado através do conceito “das Nachleben der
Antike”16
no seu ensaio de 1905 “Dürer e a antiguidade italiana” e repercute em seu último
projeto, o “Atlas Mnemosyne”, onde Warburg pretendia traçar um mapa a partir de
imagens que demonstrariam a sobrevivência das formas ao longo das diferentes épocas.
Contudo, sua obra também é marcada por uma visão dialética.17
Dois polos antagônicos,
mas coexistentes aparece em vários de seus escritos. É neste aspecto de sua obra que nos
deteremos.
Em sua tese Warburg mostrou os elementos antigos que apareceram na arte de
Sandro Botticelli, quebrando assim a concepção naturalista que este período adquiriu na
concepção de Vasari. Em seu estudo sobre a arte do retrato de Ghirlandaio, “A arte do
retrato e a burguesia florentina”, Warburg percebeu através da arte um ponto conflitante
daquela época: a mistura de uma visão secular e pagã com uma concepção cristã da vida.
Desta forma, Warburg assinalou que as obra de arte do período são “resultantes do
compromisso entre Igreja e mundo, entre antiguidade clássica e cristianismo”.
14
O lugar central ocupado pelo indivíduo na obra de Warburg foi muito bem assinalado por Gombrich, numa
tradição que privilegiava a interação individual em círculos individuais, que perpassa por Burckhardt, Carl
Justi e, finalmente, Aby Warburg. Ver: GOMBRICH: 1991, p.120. e GOMBRICH: 1992, p.39-40. 15
Esta postura de Warburg contrapunha sua obra à visão formalista da história da arte. Edgar Wind em 1931
inaugura este debate destacando a convicção basilar de Warburg da relação entre arte e cultura. Ver: WIND:
1997. 16
“Das Nachleben der Antike” ou pós-vida da antiguidade. Para uma breve discursão sobre o conceito e sua
tradução para o português, ver: TEIXEIRA: 2010, p.136. 17
Michael Steinberg faz uma análise crítica da interpretação do conflito na obra de Warburg elaborada a
partir de uma perspectiva popperiana por Gombrich. O mais importante aqui, no entanto, é, além desta
discursão, perceber que Warburg ressalta em seus escritos a presença na história de elementos que mesmo
opostos na teoria, assumem uma existência concomitante em determinados indivíduos e contextos culturais.
Ver: STEINBERG: 1995, p.67-68.
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(WARBURG: 1999, p.191) Em “Os últimos desejos de Francesco Sasseti aos seus filhos”
este conflito toma forma na personalidade de um importante banqueiro florentino na época
de Lorenzo de Médici. Warburg mostra Sasseti como um homem que conciliava em si dois
ideais antagônicos, mas não excludentes. Através da crença na deusa do destino, existia em
Sasseti uma visão cristã de mundo típica do período medieval que consistia na dependência
do Deus absoluto, e a crença tipicamente renascentista em si mesmo:
Nós agora percebemos porque a deusa do vento, Destino, repercutiu na mente de
Sasseti em sua crise mental de 1488 como um sistema para suas próprias tensões:
Tanto para Rucellai e quanto para Sasseti, ela funciona como uma fórmula
iconológica de reconciliação entre a crença medieval em Deus e a crença
renascentista em si mesmo.18
Em seu trabalho posterior onde Warburg já desenvolve seu pensamento de forma
mais madura, “Profecia pagão-antiga em palavras e imagens na era de Lutero” (1920), esta
temática do conflito aparece como fundamental. De fato, Warburg vê este período,
essencialmente religioso, onde se buscava o retorno às origens do cristianismo, como
marcado pela crença, essencialmente oposta ao cristianismo e à razão, na astrologia. Neste
sentido Warburg aponta para o paradoxo intrínseco a esta era:
Mesmo aqui, onde os sentimentos foram tão intensos contra o paganismo cristão
de Roma, tanto a astrologia babilônica-helenista quanto o augúrio romano
ganharam repercussão e – com certas reservas curiosas – assentamento. As
razões para o envolvimento com os remanescentes do arcanismo pagão – um
paradoxo em termos com qualquer visão linear da história – emerge das
diferentes respostas dadas por Lutero e Melanchton às crenças supersticiosas nos
signos e profecias.19
Os exemplos poderiam, de certo, serem ampliados e a análise aprofundada. No
entanto, o analisado acima é suficiente para perceber a visão dialética da história na obra
de Warburg e apontar para a notável semelhança com a obra “Mito e Ciência”, obra esta
que Warburg adquiriu no inverno de 1886 e que “lhe causou uma impressão tão profunda
que a maior parte de seu pensamento posterior deriva desta”. (GOMBRICH: 1992, p.76)
Desta forma, o conflito mito e ciência elaborado por Vignoli de forma essencialmente
teórica, pode ser visualizado na obra de Warburg através dos conflitos que percebeu em
situações reais, indivíduos específicos, onde dois polos coexistiram: paganismo e
cristianismo, individualismo e confiança em Deus, razão e profecia.
18
Tradução livre de: WARBURG: 1999, p.242. 19
Tradução livre de: WARBURG: 1999, p.603.
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WIND, Edgar. O conceito de Warburg de Kulturwissenschaft e sua significação para a
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A Tempestade de Shakespeare: aproximações entre História e Literatura.
Daiana Pereira Neto*
Introdução
É muito difícil ou talvez impossível encontrar um indivíduo que nunca tenha
ouvido falar em Shakespeare ou em seus famosos personagens Hamlet, Romeu e Julieta ou
a Megera Domada. Esse trabalho especificamente trabalhará com sua peça A Tempestade,
considerada um de seus últimos trabalhos, a peça foi escrita em 1611. Suas páginas contam
a história de um nobre chamado Próspero, duque de Milão, que traído pelo irmão é lançado
ao mar, junto de sua filha Miranda, indo encontrar-se na ilha onde a história se passa.
No decorrer dos séculos diferentes interpretações foram dadas ao texto. No entanto,
é inegável que A tempestade é fruto de seu tempo. Claro que também é necessário
acrescentar a isso o gênio de Shakespeare, por que como afirma Bárbara Heliodora, se toda
a sua obra se devesse somente a influências externas, teríamos hoje centenas de
Shakespeares, no entanto, existiu apenas um.
A Tempestade foi apropriada por diferentes escritores, no decorrer dos séculos,
destacando- se as discussões em torno da questão colonial, e no século XX, o debate entre
América Latina e Estados Unidos. As personagens vem sendo apropriadas por esses
escritores de acordo com o seu tempo e sua geografia. Concordo com a vertente explicativa
que enxerga no texto uma alusão ao processo de colonização do Novo Mundo, sendo clara
as alusões a textos como Dos Canibais de Montaigne e a Utopia de Tomas More.
O objetivo do presente artigo é, portanto, analisar A Tempestade, compreendendo-a
dentro de seu tempo, para posteriormente compreender como foi possível sua incorporação
por escritores tão distantes temporalmente do início do século XVII.
O autor e seu tempo
Considero como esclarecedora para o início dessa reflexão uma fala de Bárbara
Heliodora sobre Shakespeare, escreve ela:
* Mestranda em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora, sob orientação da Prof.ª Dr.ª Beatriz
Helena Domingues. Contato: [email protected]
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Sempre consideramos que Shakespeare se assemelha a um desses espelhos de
parque de diversões que alteram a imagem refletida: como espelho de sua época
ele observa, absorve e reflete, em sua obra, uma imagem filtrada a qual sua
mente deu forma e significação. Se com o passar dos anos nem sempre a imagem
refletida continue a revelar o mesmo tipo de alteração, restará aceitarmos a idéia
de que houve transformações no próprio espelho.20
Dessa forma, entendemos que a obra literária do grande dramaturgo carrega em si o
espírito de sua época, ou como o chamou os românticos alemães Zeitgeist. O texto de
Shakespeare é rico em metáforas, não somente a suas obras chamadas históricas, mas todo
o conjunto da produção. A Tempestade não é fruto de uma imaginação alheia a seu redor.
Roger Chartier levanta uma questão muito interessante em relação a autoria de
textos literários, a função autor, ou seja a distância entre o autor como identidade
construída e o sujeito concreto. Para exemplificar essa questão magistralmente ele recorre
a um texto de Jorge Luis Borges, presente em uma coletânea de textos chamada El fazedor,
onde o eu do criador pode ser ninguém ou nada21
. Quando Borges se refere a Shakespeare
ao iniciar seu texto escreve: “Ninguém houve nele; atrás de seu rosto (que ainda através
das más pinturas da época não se parece com nenhum outro) e de suas palavras, que eram
copiosas, fantásticas e agitadas, não havia mais que um pouco de frio, um sonho não
sonhado por ninguém.” 22
Para Borges é precisamente a grandeza de buscar uma identidade, que engrandece a
função do autor:
A história acrescenta que, antes ou depois de morrer, soube-se diante de Deus e
lhe disse: ‘Eu, que tantos homens fui em vão, quero ser um e eu’. A voz de Deus
lhe respondeu de um torvelinho: ‘Eu tampouco sou; eu sonhei o mundo como tu
sonhaste tua obra, meu Shakespeare, e entre as formas de meu sonho estavas tu,
que como eu és muitos e ninguém23
.
Discussões aparte nos enveredemos brevemente pela identidade construída por
Shakespeare, pelo menos dos dados passíveis de serem conhecidos. Afirma G. B. Harrison
“no mundo anglo-saxão nenhum lar é completo se não contém um exemplar da Bíblia e
20
HELIODORA, Bárbara. A expressão dramática do homem político em Shakespeare. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1978. p. 21. 21
CHARTIER, Roger. Debate: literatura e História. Topoi, Rio de Janeiro, n 1, p. 197-216. 22
CHARTIER, Roger. Debate: literatura e História. Topoi, Rio de Janeiro, n 1, p. 197-216. Apud. BORGES,
Jorge Luis. “Borges y yo”, em El hacedor, (1960), Madrid, Alianza Editorial, 1997, p. 52-55. 23
CHARTIER, Roger. Debate: literatura e História. Topoi, Rio de Janeiro, n 1, p. 197-216. Apud. BORGES,
Jorge Luis. “Borges y yo”, em El hacedor, (1960), Madrid, Alianza Editorial, 1997, p. 52-55.
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23
outro das obras completas de Shakespeare”24
, mas isso nem sempre foi assim. O inglês foi
ator e dramaturgo em uma época em que nenhuma das duas carreiras possuía grande
prestígio. A idéia de gênio inglês só surgiu passado um século de sua morte.
São poucos os dados sobre a vida íntima de Shakespeare. Os biógrafos dos
dramaturgos do século XVII contam com pouquíssimo material para compor o seu texto.
Os registros das paróquias guardam datas de batizado, casamento e morte, mas nem todos
esses documentos resistiram aos séculos. Jornais não existiam, e poucos são os que
escreveram cartas sobre os dramaturgos, que como já mencionado não eram pessoas de
muito prestígio. Os detalhes realmente interessantes da vida dos escritores desaparecem
com a morte daqueles que o conheceram, e é raro encontrar diários ou documentos que
mostrem que esses autores se envolveram com a política ou com a polícia, como foi o caso
de Christopher Marlowe.
Como afirma Harrison, no caso específico de Shakespeare, existem muito mais
fontes do que se poderia esperar. Temos registros paroquiais de Stratford-on-Avon, com
datas do batismo do poeta e de outros membros da família e a data de seu enterro. Ações
judiciais como autor, como réu e como testemunha, livros da Corte com somas pagas pela
família, e a tradição, embora, nem sempre confiável não deixa de ser uma fonte. Existe
também a fonte literária, há inúmeras referências a Shakespeare e a seus personagens em
textos de seus contemporâneos, por fim a própria obra do autor constitui uma fonte sobre a
sua vida.
Resumidamente, nasceu em Stratford-on-Avon, sendo batizado na igreja paroquial
em 26 de abril de 1564, terceiro filho do casal de um total de oito. Nada se conhece ao
certo sobre a sua infância, a não ser que estudou na escola local. Casou-se com Ann
Hathaway em 1582, o dramaturgo contava então com dezoito anos e a noiva com vinte e
seis anos, cinco meses depois em 26 de maio de 1583 a filha primogênita do casal foi
batizada, em 22 de fevereiro de 1585 seus filhos gêmeos. Sobre sua mocidade nada mais é
mencionado nos registros.
Não se sabe quando Shakespeare veio a Londres pela primeira vez, somente em
1592 se tornou uma personalidade no centro da vida inglesa. Daí em diante existem muitos
documentos que trazem o nome de Shakespeare. Em 25 de março de 1616 o dramaturgo
24
HARRISON, G. B. Shakespeare: traços da vida e aspectos da obra. São Paulo: Edições melhoramentos,
s/d. p. 7.
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faz seu testamento, que está atualmente em Londres, morre um mês depois em 25 de abril
de 1616 em sua cidade natal.
Como afirma G. Harrison depois da mocidade do poeta, uma maior gama de
documentos, nos revelam que em 1592 o dramaturgo já obtivera sucesso na capital, já em
1594 fazia parte da Companhia do Lord Chamberlain, reconhecida em 1603 como a
Companhia Real, e para esta companhia escreveu peças que obtiveram sucesso popular.25
Aliado ao gênio de Shakespeare existem outros fatores que podem ter influenciado
a sua produção, o primeiro deles é o aumento da produção de textos tipográficos, que foi,
sobretudo, facilitado pelo rompimento de Henrique VIII com Roma. Mesmo que a grande
maioria das peças de Shakespeare não tenham sido impressas, a questão é que a tipografia
possibilitou a circulação de outros textos, sobretudo, os que narravam as aventuras
provindas dos Descobrimentos. O Novo Mundo exerceu grande influência no Teatro
Elisabetano. Acredita-se ainda que a expansão da imprensa tenha estreita ligação com a
consolidação das línguas nacionais, o latim perdeu seu espaço quando da Reforma
Anglicana, e a língua vernácula ganhou cada vez mais espaço. Nesse sentido Shakespeare
ao escrever A Tempestade, peça que nos ocuparemos aqui, encontrava-se nesse turbilhão
de mudanças, sendo essas políticas, religiosas e econômicas, mudanças também motivadas
pelo encontro com Outro, com o Novo Mundo.
A Tempestade
A Tempestade foi escrita em 1611, sendo encenada pela primeira vez na Corte, no
mesmo ano. Suas páginas contam a história de um nobre chamado Próspero, homem culto
e amante dos livros, que teve seu ducado em Milão roubado por seu irmão Antônio.
Juntamente com sua filha Miranda, ainda uma criança, é abandonado ao mar a sua própria
sorte. Desta maneira Próspero vai se achar na ilha onde a história se passa. A ilha é então
habitada por um único ser humano, Caliban, definido no texto como um escravo selvagem
e deformado. Ao encontrar Caliban, Próspero o ensina a falar e o submete a sua magia, o
que obviamente causa uma grande revolta neste que é transformado em servo. Nesta
mesma ilha encontra-se o outro personagem ícone desta história, Ariel, um espírito do ar,
um ser com numerosos poderes também transformado em servo por Próspero dado a magia
deste. É Próspero quem liberta Ariel do feitiço que o mantinha preso a uma árvore, feitiço
25
HARRISON , G. B. Shakespeare: traços da vida e aspectos da obra. São Paulo: Edições melhoramentos,
s/d.p 28-29.
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este lançado pela mãe de Caliban, uma bruxa chamada Sicorax26
, banida e destinada a
viver e dar a luz sozinha na ilha.
Todavia, a história inicia-se com uma cena de naufrágio em uma poderosa
tempestade, arquitetada por Próspero com a ajuda de Ariel, para trazer a ilha a comitiva de
seu irmão Antonio, que também contava com a presença do rei de Nápoles e de seu filho,
além de outros nobres e marinheiros. A trama arquitetada pelo protagonista acontece de
forma a fazer com que o filho do rei se apaixone por sua filha e seu irmão pague por tê-lo
traído. Caliban nosso outro personagem ícone durante a peça tenta enganar Próspero sem
sucesso, passando a ter como senhor um dos bêbados do navio, tramando para que
Próspero seja morto, o que Ariel evita.
No fim da história, Próspero assume novamente seu ducado, sua filha torna-se
noiva do príncipe e Ariel é libertado para que possa juntar-se em liberdade aos elementos.
Quanto a Caliban é deixado na ilha.27
Não é possível definir uma fonte específica na qual Shakespeare se baseou para
escrever o texto da peça. Segundo Fernando Rodrigues é possível estabelecer relações
entre a peça e os textos Die schöne Sidea, de Jakob Ayrer (escrita antes de 1605), ou,
igualmente, com as obras espanholas Noches de Invierno (1609), de Antonio de Eslava, e
Espejos de Príncipes y Caballeros (1562), de Diego Ortuñez de Calahorra, todavia,
nenhum destes três textos pode explicar a sua trama geral28
.
No entanto, é clara a referência a diversos textos não ficcionais na peça
shakespeariana, o primeiro é o ensaio Dos canibais de Montagne, esse ensaio foi traduzido
para o inglês por John Florio em 1603, e era familiar a Shakespeare. Outro acontecimento
muito divulgado na Londres do inicio do século XVII é o naufrágio de Sir Thomas Gates
nas Bermudas, também conhecida como ilha dos Demônios devido a violência das
tempestades ali encontradas, quando tentavam alcançar a colônia da Virgínia, diversos
documentos circularam narrando a aventura dos sobreviventes29
. A história causou enorme
interesse não somente na metrópole, mas também na colônia, sendo o primeiro relato
publicado por Sylvester Jourdain, intitulado “Uma descoberta das Bermudas”, dado texto
circulou em forma de panfleto em 1610. Seguido pelo manuscrito da carta de Willian
26
É interessante o fato de Caliban ter ascendência africana, já que Sicorax é expulsa da Argélia. 27
SHAKESPEARE, Willian. A Tempestade. Tradução Geraldo Carneiro. Rio de Janeiro: Relume Dumará,
1991. 28
RODRIGUES, Fernando. A Tempestade e a questão colonial. In:__ Viso. Cadernos de estética aplicada.
N.5. julho-dezembro, 2008. Disponível em: www.revistaviso.com.br Acesso em outubro de 2011. 29
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N.5. julho-dezembro, 2008. Disponível em: www.revistaviso.com.br Acesso em outubro de 2011.
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Stracher, datada de 15 de julho do mesmo ano. E o conselho da Virgínia publicou sua True
Declaration of the state of the Colonie in Virginia. Dessa forma é inegável que a Londres
de Shakespeare sofreu influência dos relatos do Novo Mundo, tão presentes no teatro
elisabetano. 30
Outro texto não ficcional que merece destaque na narrativa de Shakespeare é a
Utopia de Thomas More, mesmo tendo sida escrita em 1516, o texto de More influenciou
essa sociedade marcada pelo descobrimento do Outro e por seus próprios vícios. Diante de
sua realidade compreendia por um emaranhado de vícios, More contrapõe uma sociedade
ideal, repleta de virtudes, onde todos são iguais. Na peça de Shakespeare a personagem
Gonçalo quando questionada sobre uma sociedade perfeita deixa entrever em sua fala
partes completas da Utopia. Vejamos:
Em minha república eu faria tudo pelo avesso. Não
Permitiria nenhum tipo de comércio, nem nomearia
juizes. Ninguém saberia ler ou escrever. Nada de ri-
queza, pobreza ou servidão. Nem contratos, heranças,
limites, demarcação de terra, nem lavouras, nem vinhedos.
(...) Nada de governo.
(...) Todas as coisas seriam partilhadas. A natureza daria tudo,
sem suor, nem esforço(...)31
No entanto, mesmo fazendo referência A Utopia de More, A Tempestade, não
constitui-se em texto utópico. Fátima Vieira, apresenta a literatura utópica como formas
alternativas de organização social, onde a ilha e o naufrágio são alegorias recorrentes.
Mesmo apresentando esses aspectos, A Tempestade através de seus três personagens
humanos cerne, sendo eles Próspero, Caliban e Miranda, não rompem com a organização
social vigente no exterior da ilha.32
Cabe então destacar que A Tempestade faz parte de um contexto de mudanças, das
quais a descoberta do Novo Mundo faz parte incomensuravelmente. Segundo Serge
Gruzinski, Caliban encarna o esfacelamento dos sonhos de Tomas More, ele é o selvagem
expulso de seus domínios por homens mais inteligentes. Caliban encarna a imagem bestial
que os ingleses fazem do ameríndio, enquanto na mesma época indígenas são recebidos na
Corte dos Médicis, vestidos a moda européia. Nesse sentido os selvagens apresentados nos
30
HOLDEN, Anthony. William Shakespeare. Trad. Beatriz Horta. São Paulo: Ediouro, 2003. 31
Ibiden. p.69. 32
VIEIRA, Fátima. O espaço da Utopia em A tempestade de William Shakespeare. In:__Estudos de
Homenagem ao professor doutor Antonio Ferreira de Brito. Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
Porto, s /e, 2004.
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ISSN: 2317-045X
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ensaios de Montaigne comoviam muito pouco os elisabetanos protestantes, tanto quanto os
conquistadores católicos33
.
A Tempestade na América
É inegável e recorrente o uso das personagens shakespearianas em diversos
contextos e lugares. De uma forma abrangente o texto que atravessou quatro séculos, foi
utilizado em diversas geografias para retratar diferentes relações. Dessa forma, sabemos
existir textos na Europa, África, Austrália e Américas.
Nosso trabalho se foca na compreensão dos autores que utilizaram-se de três dessas
personagens, Próspero, Ariel e Caliban, no período que se estende de 1898 a 1988, na
América Latina, para explicarem sua visão acerca do momento histórico no qual viviam. A
Tempestade tem sido vista por leituras pós-coloniais como uma metáfora da relação
colonizado colonizador. No decorrer do século XX, elas foram utilizadas no conflito entre
Estados Unidos e América Latina, algo também que não se opõe a visão Europa América,
uma vez que, a figura da dominação se transfere do Europeu para o norte-americano.
Comecemos então nossa pequena viagem dentre esses autores. Em 1898 tendo
como principal motivo a Guerra Hispano-Americana, travada entre Estados Unidos e
Espanha, tendo como cerne do conflito o domínio sobre as últimas colônias da segunda, a
Espanha perde Cuba, Porto Rico e Filipinas. Em 2 de maio do mesmo ano Paul Groussac
discursa em Buenos Aires, estabelecendo o primeiro uso da metáfora da qual temos
notícia. No discurso Groussac, apresenta as seguintes palavras: “Desde a brutal invasão do
Oeste, tem-se desprendido livremente o espírito iankee do corpo informe e calibanesco, e o
velho mundo tem contemplado com inquietude e terror a novíssima civilização que
pretende suplantar a nossa, declarada caduca”34
.
Seguidas as palavras de Groussac, o poeta e jornalista Rubén Darío, publica em
1898, o texto chamado “El Triunfo de Calibán”. O primeiro trabalho em texto por nós
descoberto. Seu artigo é uma confirmação da ideologia proveniente dos acontecimentos de
1898. Nele vemos a expressão da idealidade da herança latina, da defesa da antiga
metrópole colonizadora e da necessidade de união dos latino-americanos contra o inimigo
comum: OS Estados Unidos.
33
BERNAND, Carmen; GRUZINSK, Serge. História do Novo Mundo 2: As Mestiçagens. São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo, 2006. p. 636-637. 34
RODÓ. José Enrique. Obras completas. Madri: s/e, 1957.
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Federal de Juiz de Fora.
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O segundo autor a ser destacar é José Enrique Rodó. Intelectual uruguaio Rodó
publicou em 1900, Ariel. Segundo Fábio Muruci, a obra de Rodó, precisamente suas
concepções acerca da História, convidavam os intelectuais para estreitar laços culturais
entre os países latinos europeus e os hispano-americanos, buscando restaurar laços
rompidos com as lutas pela independência. Dessa maneira todo o ideário latino serviria
como fonte de exemplaridade melhor do que os utilitarismos e mecanicidade norte-
americanos.35
Esse primeiro grupo ao contrário dos trabalhos que virão posteriormente, enxergam
em Caliban o perigo dominador, ele representa os Estados Unidos. Do contrário, Próspero
é para Rodó a figura do mestre e Ariel da intelectualidade.
O segundo grupo de intelectuais escreve já na década de 1960. Esses intelectuais
inverterão as perspectivas dessa primeira geração. Caliban é agora visto com características
positivas. A revolta de Caliban tem sido utilizada principalmente através da frase do
mesmo em que ele diz que a única vantagem de ter aprendido a língua do colonizador foi
poder amaldiçoá-lo, dessa forma é uma revolta também lingüística. Essa geração na
América Latina é representada principalmente por George Laming, Aimé Césaire e
Roberto Fernández Retamar.
A obra de Laming escrita em 1960, The pleasures of exile, foi escrita quando o
Caribe dito britânico ainda encontrava-se sob domínio da Inglaterra. Seu Caliban é o negro
escravo introduzido na Caribe, que também possui características do indígena caribenho.
Para o autor o escravo negro e o indígena possuem o espírito de revolta calibanesco que
Próspero busca dominar. Caliban é em sua perspectiva o exilado de sua cultura, aspecto
com o qual Laming se identifica, um a vez que também considera-se exilado de sua terra.
Próspero em sua perspectiva é um velhaco tomado pelo espírito de vingança e inveja, um
“imperialista” pelas circunstâncias.
Dado o pequeno espaço que esse artigo comporta, gostaríamos de destacar ainda a
peça de Aimé Césaire, Una Tempestad, escrita em 1969, a peça de Césaire é uma releitura,
uma adaptação do texto shakespeariano para o teatro negro. Onde Caliban é um escravo
negro, que ameaça Próspero com a possibilidade de revolta, e Ariel um escravo mulato,
que consegue sua liberdade no espaço de tempo prometido. Em seu famoso Discurso sobre
o colonialismo, escrito em 1955, afirma:
35
SANTOS, Fábio Murici dos. O Arielismo nos escritos históricos de José Enrique Rodó. In:_ Anais
eletrônicos do VIII encontro internacional da ANPHLAC. Disponível em:
www.anphlac.org/periodicos/anais/encontro8/fabio_muruci_santos.pdf Acesso em 18 de setembro de 2011.
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Chegou a hora do bárbaro. Do bárbaro moderno. A hora estadunidense.
Violência, desmesura, desperdício, mercantilismo, exagero, gregarismo, a
estupidez, a vulgaridade, a desordem. (...) Ouçam que as grandes finanças
estadunidenses julgam que chegou a hora de saquear todas as colônias do
mundo. Então queridos amigos, atenção para este fato!36
Outro intelectual a ser destacado é Roberto Fernández Retamar, seu ensaio Caliban
de 1971, defende Caliban como símbolo latino-americano. Ele é aquele subjugado em sua
própria terra, obrigado a se comunicar através da língua do colonizador.
Por fim cabe destacar o texto do norte-americano Richard Morse, O Espelho de
Próspero, em todos os textos por mim localizados que trabalham A Tempestade, Morse
nunca é mencionado. Todavia, consideramos Morse o coroamento da visão positiva em
relação a Caliban. No texto de Morse é Próspero (representado pelos Estados Unidos) o
convidado a repensar suas ações, enxergando na América Latina uma opção cultural, que
pode servir de inspiração aos vizinhos do Norte.
Referências bibliográficas
HELIODORA, Bárbara. A expressão dramática do homem político em Shakespeare. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
CHARTIER, Roger. Debate: literatura e História. Topoi, Rio de Janeiro, n 1, p. 197-216.
HARRISON, G. B. Shakespeare: traços da vida e aspectos da obra. São Paulo: Edições
melhoramentos, s/d. p. 7.
SHAKESPEARE, Willian. A Tempestade. Tradução Geraldo Carneiro. Rio de Janeiro:
Relume Dumará, 1991.
RODRIGUES, Fernando. A Tempestade e a questão colonial. In:__ Viso. Cadernos de
estética aplicada. N.5. julho-dezembro, 2008. Disponível em: www.revistaviso.com.br
Acesso em outubro de 2011.
HOLDEN, Anthony. William Shakespeare. Trad. Beatriz Horta. São Paulo: Ediouro,
2003.
VIEIRA, Fátima. O espaço da Utopia em A tempestade de William Shakespeare.
In:__Estudos de Homenagem ao professor doutor Antonio Ferreira de Brito. Faculdade de
Letras da Universidade do Porto. Porto, s /e, 2004.
36
CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. Letras Contemporâneas. Ilha Santa Catarina , 2010. p.
82-83.
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Federal de Juiz de Fora.
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30
BERNAND, Carmen; GRUZINSK, Serge. História do Novo Mundo 2: As Mestiçagens.
São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006. p. 636-637.
SANTOS, Fábio Murici dos. O Arielismo nos escritos históricos de José Enrique Rodó.
In:_ Anais eletrônicos do VIII encontro internacional da ANPHLAC. Disponível em:
www.anphlac.org/periodicos/anais/encontro8/fabio_muruci_santos.pdf Acesso em 18 de
setembro de 2011.
CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. Letras Contemporâneas. Ilha Santa
Catarina , 2010.
RODÓ. José Enrique. Obras completas. Madri: s/e, 1957.
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Federal de Juiz de Fora.
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E Agora, Zsoze?
Adaptação, fidelidade e intertextualidade em Budapeste.
Diego Schaeffer de Oliveira*
"Chico Buarque ousou muito, escreveu cruzando um abismo sobre um arame e
chegou ao outro lado. Ao lado onde se encontram os trabalhos executados com
mestria, a da linguagem, a da construção narrativa, a do simples fazer. Não creio
enganar-me dizendo que algo novo aconteceu no Brasil com este livro." — José
Saramago, Folha de S. Paulo.
Francisco Buarque de Holanda, mais conhecido como Chico Buarque, nasceu no
Rio de Janeiro, em junho de 1944. Suas atividades começaram na música, mas trabalhou
também no teatro, cinema e escreveu até hoje 4 romances, sendo Budapeste, de 2003, o
terceiro, e Leite Derramado o último, publicado em 2010. Na carreira literária, foi
ganhador de três Prêmios “Jabuti”: “Melhor Romance” em 1992 com Estorvo, além de
“Livro do Ano”, tanto por Budapeste, em 2004, como por Leite Derramado, em 2010.
Como percebemos no prefácio do livro Budapeste, este se trata da “história de um
escritor dividido entre duas cidades, duas mulheres, dois livros, duas línguas”.
Em Budapeste, o narrador e também personagem principal José Costa é um ghost-writer,
um “escritor fantasma”: pessoa especialista em escrever cartas, artigos, discursos ou livros
para terceiros, sob a condição de permanecer anônimo. Costa escreve os textos na “Cunha
& Costa Agência Cultural”, firma em que é sócio com seu amigo Álvaro Cunha, este
especializado em promover o trabalho de José Costa.
Apesar de anônimos e desconhecidos, estes escritores realizam encontros e
conferências. E na volta de um desses congressos de autores anônimos, Costa é obrigado a
fazer uma escala imprevista na cidade título do romance, o que desencadeia uma série de
eventos que constituem o centro da trama: “Fui dar em Budapeste graças a um pouso
imprevisto, quando voava de Istambul a Frankfurt, com conexão para o Rio” (HOLANDA,
2003, p. 6).
Casado com a apresentadora de telejornal Vanda, José Costa conhece Kriska na
Hungria, que lhe batiza de Kósta Zsoze, pois lá o sobrenome vem anterior ao primeiro
nome (e pela diferença de pronúncia). Com Kriska, ele tem aulas de húngaro , segundo o
narrador, "a única língua do mundo que, segundo as más línguas, o diabo respeita". Entre
* Graduando em História pela UFJF. Email: [email protected]
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idas e vindas entre Budapeste e o Rio de Janeiro, a trama se alterna entre o seu
enfeitiçamento pela língua húngara e o seu fascínio em ver seus escritos publicados por
outros, bem como o seu envolvimento amoroso com Vanda e Kriska.
Assim que entra em contato com o húngaro, rapidamente, estes sons e novas
palavras “estranhas” tornam-se uma obsessão a dominar o mais rapidamente possível. No
Rio, José trabalha com Álvaro numa pequena agência, onde produz e escreve textos, mas
quem os assina são outros. “Confidenciabilidade” é o seu ofício. Ele é o pensamento e a
mão por detrás da cara e do sucesso de conhecidos talentos. Mas isto, que para qualquer
pessoa seria motivo de embaraço e até frustração, provoca em José um sentimento de
orgulho e vaidade ao saber que outros “somam vitórias” com os seus escritos.
Num vaivém entre duas cidades, duas identidades, vive também entre duas
mulheres: no Rio de Janeiro ama Vanda, mas (re)lembra Kriska; em Budapeste ama
Kriska, mas sente saudades de Vanda. E esse é seu drama, se escolhe um ou outro, e o peso
dessa escolha, ou “escolhas” entre esses dois mundos de inúmeras possibilidades. E é
como se a todo momento, uma voz exterior perguntasse a Costa, ou Kósta: E agora, José?
– como no célebre poema de Carlos Drummond de Andrade.37
Já Budapeste filme é uma produção cinematográfica húngaro-brasileira de 2009
dirigida por Walter Carvalho, com roteiro de Rita Buzzar, “aprovado” por Chico Buarque.
Na adaptação, Walter Carvalho, que afirmou em várias entrevistas não ter sido
completamente fiel ao livro, omite algumas cenas e acrescenta outras, como veremos mais
a frente nos argumentos de Robert Stam (no artigo Teoria e Prática da Adaptação: da
fidelidade à intertextualidade), “complementando” o livro. Há a falta de ligação coerente
entre algumas cenas, mas isso se deve ao fato da própria mistura narrativa de sonho e
realidade. Ao mesmo tempo, o diretor captou deslumbrantes imagens de Budapeste, e deu
vida a uma Kriska feita à medida da imaginação ao ler o livro.
No filme, José Costa, Vanda e Kriska são representados por Leonardo Medeiros,
Giovanna Antonelli e Gabriella Hamori, respectivamente. Ele não começa da mesma
forma que o livro, não é referida a irmã gêmea de Vanda e Álvaro ganha um novo físico,
porém estes pormenores em nada afetam a própria história. Aliás, ela está lá, só que o
percurso que acompanhamos ao longo da leitura, as interrogações e questionamentos que
sentimos da parte de José, não nos chegam talvez tão arrebatadores através da tela. Porém
37
Apesar da coincidência do nome dos personagens, essa relação que se tornou o título do artigo não se deu
por acaso: muitas vezes, enquanto pensava sozinho (nos quartos de hotel, em casa, na agência), era o
sentimento do poema de Drummond que se sente prespassando a vida de José Costa, e consequentemente, a
narrativa da obra.
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isso não faz do romance uma linguagem superior ao filme, mas sim é exatamente nisso que
se difere esse outro viés narrativo, onde devemos exaltar o que foi “ganhado”, ao invés de
lamentar “perdas”, como afirma Stam: “A literatura e o romance não mais ocupam um
lugar privilegiado; a adaptação, por implicação, assume um lugar legítimo, ao lado do
romance, como apenas mais um meio narratológico” (STAM, 2006, p. 24).
Dessa forma, só quem leu as páginas de Chico Buarque percebe que quando Álvaro
contrata um novo assistente e passado algum tempo outros tantos, o estilo próprio de José
deixa de o ser. Estes foram treinados para escrever da mesma forma que este escrevia,
fingindo ser outro. E a partir daí, o que José dava como a única certeza em si, fica abalada.
No filme, a agência Cunha & Costa nem chega a contratar novos “escritores fantasmas”.
Além disso, no livro, para além de estar dividido entre o Rio de Janeiro e Budapeste, Costa
está claramente com metade do coração em Vanda e com a outra em Kriska. Até o fim fica
a dúvida onde terminará o protagonista. No filme, a escolha fica clara bem mais cedo: o
coração de José pouco ou nada está dividido, mostrando sua escolha pela húngara.
Em contrapartida, só no filme temos a sequência da visita de Costa à estátua do
“Escritor Anônimo”, que realmente viveu séculos atrás na cidade húngara. A partir dessa
estátua, nos deparamos com o dilema interno do protagonista de querer ser reconhecido ou
continuar no anonimato para sempre. E ainda só no filme, temos a cena de um embate
corporal entre um José mais velho e “travestido” de húngaro com um José ainda com o
coração brasileiro: cena de muita significação, onde o diretor nos mostra a difícil luta
interna de José que precisa escolher entre esses “dois mundos”. Há ainda inúmeras outras
semelhanças e diferenças, algumas que serão citadas à frente, outras que só novas
interpretações permitirão.
Por conseguinte, o essencial em Budapeste, tanto livro como filme, é o jogo de
claro-escuro entre os dois idiomas, o português e o húngaro, “a única língua do mundo que,
segundo as más línguas, o diabo respeita”. José é capaz de escrever sobre qualquer assunto,
desde que seja sob a forma de prosa. Atinge o cume de sua carreira ao criar O ginógrafo,
autobiografia erótica de Kaspar Krabbe, um executivo alemão que “zarpou de Hamburgo e
adentrou a Guanabara”. Na pele de Zsoze, ele só escreve em versos. Assim que começa a
dominar o idioma magiar, cria um livro de poemas, Titkos Háramsoros Versszakok, ou
Tercetos secretos, que sai assinado pelo famoso Kocsis Ferenc, poeta húngaro em franca
decadência. São referências cruzadas e cenas que vão e voltam que se repetirão pelo livro.
Mas tanto no livro quanto no filme, muito bem estruturadas, muito bem colocadas. Em
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certo momento, José abandona Vanda no Rio de Janeiro para descobrir-se Zsoze nos
braços de Krista, em Budapeste, e vice-versa. Sempre que está na capital húngara ou na
capital fluminense, hospeda-se no Hotel Plaza, nome genérico que como afirma o narrador,
existe um em qualquer cidade do mundo.
Sobre a estruturação linguística e a problemática de Budapeste, o professor de
Teoria Literária da USP, José Miguel Wisnik, afirmou:
Tecnicamente, Budapeste é um romance do duplo, tema clássico na literatura
ocidental desde que a identidade do sujeito tornou-se problema e enigma. A
questão desfila nas narrativas do século XIX, através dos motivos da sombra, do
sósia, da máscara, do espelho, e evolui para a indagação dessa esfinge
impenetrável e desencantada que é a própria pessoa como persona e ninguém. Na
criação literária, no entanto, o escritor é o duplo de si mesmo, por excelência e
por definição, aquele que se inventa como outro e que escreve, por um outro, a
própria obra. Aos que se identificam mais com histórias do que com estruturas,
porém, a liberdade de José-Zsoze em lidar com seus devaneios guarda ecos de
Phillip Roth e Rubem Fonseca nos seus melhores momentos. A diferença é que o
personagem de Chico Buarque se revela voyeur de si próprio e de seus delírios.38
Além dessa questão do duplo e de José ser um “observador” de sua própria história,
é curioso lembrar que ao fim de Budapeste, o narrador conta essa história depois de tê-la
vivido, porém já na derradeira página, sua própria narrativa e sua vida se fundem numa só,
como percebemos nessa passagem, em que Costa lê o próprio Budapeste para sua amada
húngara (e ele termina como O Ginógrafo, mais uma peculiaridade dessa intensa e bem-
acabada narrativa):
E no instante seguinte se encabulou, porque agora eu lia o livro ao mesmo tempo
que o livro acontecia. Querida Kriska, perguntei, sabes que somente por ti noites
a fio concebi o livro que ora se encerra? Não sei o que ela pensou, porque fechou
os olhos, mas com a cabeça fez que sim. E a mulher amada, de quem eu já
sorvera o leite, me deu de beber a água com que havia lavado sua blusa
(HOLANDA, 2003, p. 174).
E ainda, há uma curiosidade: pouco antes do final, Chico Buarque “brinca” com
esse dilema dos ghost-writer. No livro, Costa que sempre negou a fama, se torna conhecido
e bem recebido na Hungria por conta de uma autobiografia sua escrita por um “escritor
anônimo” como ele (no caso o ex-marido de Kriska), autobiografia esta que se chama
Budapeste, ou seja, é o próprio livro. E no filme, o próprio Chico Buarque aparece fazendo
uma participação como ator, e essa intertextualidade é bem interessante, pois é como se o
próprio autor fosse um ghost-writer de seu personagem.
38
Artigo de Wisnik completo em: http://www.chicobuarque.com.br/critica/crit_budapeste_wisnik.htm.
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Seguindo com a argumentação de Robert Stam, temos a enumeração dos
preconceitos pelos quais a adaptação passa, e entre os citados pelo autor, como a
“antiguidade” (o pressuposto de que as artes antigas são necessariamente melhores) ou a
“dicotomia” (o pressuposto de que os ganhos do cinema representam perdas para a
literatura). Considero que Budapeste enquanto filme pode sofrer o preconceito gerado pela
“incorporação”, ou seja, que os personagens do livro de Chico Buarque ganhando um
“rosto”, sendo interpretados e encarnados por atores, pode causar um efeito negativo no
leitor, como quem diz: “não era assim que imaginava”, ou “esperava um personagem
melhor”, etc. Acredito que isso possa acontecer não por atuações ruins ou mal
selecionadas, mas sim pelas diferenças de opiniões e interpretações literárias ao vê-las
representadas na película. Como bem avaliado por Stam: Conforme a teoria descobre a
“literaridade” de fenômenos não-literais, qualidades consideradas como literárias se
revelam cruciais para o discurso e prática não literários (STAM, 2006, p. 23).
Essa frase se encaixa muito bem em Budapeste, pois o filme segue a linha do livro
nesse sentido, e temos um “narrador de fundo”, o próprio José Costa (como no livro).
Dessa forma, o ritmo fílmico tenta se aproximar do literário, e esse é um recurso essencial
para o transcorrer da história. Por conseguinte, Stam vem centrar seu trabalho no enfoque
do presente artigo: a “fidelidade”, a “intertextualidade”, o “dialogismo” de Bakhtin e
outras categorias denifidas por Genette, que veremos a seguir.39
Sobre a questão da “fidelidade”, Stam considera tal termo inadequado, pois carrega
um significado “moral” que não se encaixa para adaptações. Para o autor, devemos
substituir esse termo tão comumente usado por outras expressões, pois a adaptação é como
se o romance fosse “trazido a vida”, quando o filme “empresta voz” aos personagens
literários, ou como Stam afirma, um “modelo ventriloqual”. Inserindo a adaptação
estudada aqui, Budapeste pode ser considerada uma obra “ventriloqual”, na medida que o
filme segue a história do romance com bastante proximidade, retirando, claro, algumas
cenas e implementando outras, porém sem perder sua essência fundamental. Assim,
acredito ser importante utilizarmos os termos “transfiguração” e “recriação”, onde o
prefixo “trans” enfatiza as mudanças feitas pela adaptação e o prefixo “re” enfatiza a
função recombinante, complementar da mesma.
39
STAM, 2006, p. 26.
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Na questão da “intertextualidade”, Stam se concentra em conceitos de Mikahil
Bakhtin e Gerar Genette.40
No primeiro temos seu “dialogismo”, baseado na ideia de uma
“disseminação” de textos e culturas, de forma que todo texto é na verdade uma
“combinação”, um “troca-troca” de ideias de outros textos. Ou seja, em todo texto ou
filme, há uma intertextualidade intrínseca, afirmando que esse “dialogismo” nos ajuda a ir
além das contradições do que chamamos “fidelidade”, pois as expressões comunicativas,
como livro e filme, são muito mais amplas do que comumente vemos. E claro, Budapeste
não estaria fora dessas concepções, visto que a obra é trespassada por vários outros textos e
“dialogismos”, como o próprio personagem principal, José Costa, que escreve textos para
outros, porém confunde sua própria realidade com esse textos, e sendo ele mesmo o
narrador, faz uma “intertextualidade” com sua própia história que é “vivida” por ele mas
escrita à sua revelia, o próprio livro Budapeste, por um escritor-fantasma como ele próprio.
Chegamos então no segundo autor citado, Genette, que segundo Stam propõe o
termo “transtextualidade” ao invés de “intertextualidade”, referindo dessa forma a “tudo
aquilo que coloca um texto em relação com outros textos, seja essa relação manifesta ou
secreta”. (STAM, 2006, p. 29). Genette postula cinco tipos de relações transtextuais, todas
elas importantes na análise da adaptação: a “intertextualidade” (o efeito de co-presença de
dois textos); a “paratextualidade” (relação, dentro da totalidade de uma obra literária,entre
o próprio texto e seu “paratexto” – títulos, prefácios, entrevistas, no caso dos DVDs de
hoje, etc); “metatextualidade” (a relação crítica entre um texto e outro, seja quando o texto
comentado é citado explicitamente ou quando é evocado silenciosamente);
“arquitextualidade” (as taxonomias genéricas sugeridas ou refutadas pelos títulos e
subtítulos); e o quinto tipo, a “hipertextualidade” (se refere à relação entre um texto, que
Genette chama de “hipertexto”, com um texto anterior ou “hipotexto”, que o primeiro
transforma, modifica, elabora ou estende). Considero interessante relacionar Budapeste,
entre esses cinco tipos, a “paratextualidade”, que é o complemento da adaptação. E nesse
quesito, Budapeste pode ser bem aproveitado, pois podemos citar entrevistas com o próprio
Chico Buarque, ou com o diretor Walter Carvalho, que complementam e esclarecem
muitos aspectos da obra41
. Além disso, o DVD inclui sequências que foram gravadas mas
não incluídas na versão final. Dessa forma, segundo Stam: “Esse recurso paratextual
40
Idem, 2006, p. 27. 41
Entrevistas encontradas em: http://cinema.terra.com.br/noticias/0,,OI3714713-EI1176,00Por
+dentro+do+filme+Budapeste.html.
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permite ao espectador do DVD literalmente “visionar” versões alternativas da adaptação,
podendo lamentar (ou aplaudir) a perda de uma seqüência filmada” (STAM, 2006, p.30).
Finalmente, chegamos então às propostas de Stam para se lidar com a narrativa e a
adaptação em geral. Em primeiro lugar, ele cita a importância da “afinidade” entre o
romancista e o cineasta. Nesse sentido, Budapeste tem êxito, pois o autor Chico Buarque
não só “ajudou” com dicas e sua aprovação o roteiro e seleção de cenas, como participou
de uma delas (como já foi aqui explicitado). Depois disso, Stam levanta outras questões
cruciais sobre adaptações, baseado em Genette, que nos são muito úteis para a análise da
obra aqui analisada:
Outras questões sobre adaptação têm a ver com as modificações e permutas da
história. Aqui nós entramos no campo da narratologia, ou do estudo da mecânica
da narrativa. Os narratologistas do cinema se apóiam especialmente na análise
narratológica de Genette do tempo do romance. Em seu trabalho literário,
Genette enfatiza o duplo esquema do qual o romance de ficção faz parte, ou seja,
a relação entre os eventos narrados e a maneira ou seqüência pela qual são
contados. Os narratologistas do cinema extrapolaram três das principais
categorias de Genette: ordem (que responde à pergunta “quando” e “em que
seqüência”), duração (que responde à pergunta “quanto tempo”) e freqüência
(que responde à pergunta “com que freqüência”) (STAM, 2006, p. 36).
Desse ponto de vista, podemos “destrinchar” Budapeste. Na questão da “Ordem”,
que toca na sequência linear em contraposição com a não-linear, o filme Budapeste em
relação ao livro, para olhos desatentos, pode se tornar confuso pela sequência das cenas
(nem sempre na ordem que são narradas no livro). Porém, considero que isso se deve ao
próprio fluxo do romance: Budapeste é um livro de fôlego intenso, linguagem rápida e
constante mistura do que o escritor José Costa, ou Kósta Zsoze, vive, narra ou sonha.
Destarte, penso que a adaptação conseguiu seguir uma “Ordem” sem alterar o
sentido da obra. Já no quesito “Duração”, que tem haver com o tempo do discurso, ou com
o conceito de “velocidade” temporal, a adaptação de Budapeste deixa a desejar. Pois no
livro temos a nítida sensação do passar de muitos anos: um exemplo é que Joaquinzinho,
filho de Costa, que até meados do livro tem apenas 5 anos, chega ao fim do romance
adulto, fato que nem é mostrado no filme. Mas o que se percebe é que a adaptação
cinematográfica talvez “limitou” o tempo do livro para narrar a história mais facilmente,
por opção do diretor ou por dificuldades técnicas (e aí entramos em aspectos que não são
problemas na literatura, mas que podem se tornar empecilhos no cinema, como a questão
do “envelhecimento” dos personagens, etc).
Por último, no quesito “Frequência”, Stam nos mostra que esta se refere à relação
entre quantas vezes um evento ocorre na história e quantas vezes ele é narrado (ou
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mencionado) no discurso textual. Genette postula variantes principais: “narração
singulativa” (um único evento é contado uma única vez, a norma na maioria dos filmes de
ficção); “narração repetitiva” (um evento é relatado muitas vezes, nas narrações multi-
perspectivas; “narração iterativa” (um evento que ocorreu diversas vezes é relatado uma
vez); e um evento que ocorreu diversas vezes é relatado diversas vezes, o que é chamado
de “narração homóloga”. Mas tanto o cinema quanto o romance oferecem uma
possibilidade não mencionada por Genette que poderia, segundo Stam, ser chamada de
“narração cumulativa”, ou seja, casos onde um único evento casual é gradualmente
detalhado através de memórias repentinas (flashbacks) mostradas repetidamente ao longo
do filme. Nessa linha, podemos considerar Budapeste entre a narração “homóloga” e a
“cumulativa”, pois ao mesmo tempo que o narrador-personagem conta passagens que
acontecem algumas vezes, sem se importar em repetir, pois o estilo da linguagem do livro
é exatamente “embaralhado”; o mesmo narrador tem memórias repentinas, como um
“retorno” (flashbacks mesmo) de seu passado.
E para continuar essa análise, chegamos a uma ferramenta indispensável para
analisarmos certos aspectos das adaptações ao cinema: a “narratologia”. Ferramenta esta
que pode ser dividida em contextos; um deles, como nos mostra Stam, é o “temporal”, pois
em alguns casos, como afirma o autor, “a publicação do romance e a produção do filme
ocorrem em momentos muito próximos e diretos” (STAM, 2006, p. 42); que é o caso de
Budapeste, que da publicação do livro (2003) até adaptação em filme (2009) são apenas
seis anos de diferença (além da participação de Chico Buarque na produção).
Num segundo contexto relevante para nosso trabalho, é a questão da “localidade”.
Stam faz a seguinte pergunta: “As adaptações se situam no mesmo local que o romance ou
a localidade muda?”; e dá o exemplo de Coppola no Apocalipse Now, que transfere a
“floresta africana” do Coração das Trevas de Conrad para o Vietnã em guerra. Nesse caso,
Budapeste é peculiar, pois a “localidade” que alterna entre o Rio e a capital húngara é
fundamental na história, se seria difícil ou mesmo impossível a mudança (idem, 2006, p.
47).
Outro contexto imprescindível na adaptação, como argumenta Stam, é a “língua”.
Na adaptação de Budapeste, essa questão é fundamental, e muito bem realizada no filme,
pois assim como no livro, o personagem principal aprende húngaro aos poucos, e a
“língua” é um ponto central no livro, que ajuda a mostrar a “divisão” nos “dois mundos”
de José Costa.
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Por último, Stam vem dissertar, com base em Bakhtin, sobre a questão das
possíveis e múltiplas “aculturalidades” e “temporalidades”:
Já que as adaptações fazem malabarismos entre múltiplas culturas e múltiplas
temporalidades, elas se tornam um tipo de barômetro das tendências discursivas
em voga no momento da produção. Cada recriação de um romance para o
cinema desmascara facetas não apenas do romance e seu período e cultura de
origem, mas também do momento e da cultura da adaptação. Os textos evoluem
sobre o que Bakhtin chama de “o grande tempo” e freqüentemente eles passam
por “voltas” surpreendentes. “Cada era”, escreve Bakhtin, “reacentua as obras
[do passado] de sua própria maneira. A vida histórica de trabalhos clássicos é de
fato o processo ininterrupto de sua reacentuação” (STAM, 2006, p. 48).
E baseado nessa afirmação, podemos dar o exemplo de que, se daqui a 30 anos
Budapeste for novamente adaptado, ele pode ser realizado como “de época”, no caso os
anos 2000, ou “aculturado” a seu tempo, no caso a década de 2030, e esta nuance pode
acarretar mudanças concretas e fundamentais na adaptação.
Como conclusão, podemos citar o próprio arremate de Stam, por entender que é o
mesmo que chegamos no estudo ao qual se propôs o artigo: “Mas as adaptações, de certa
forma, tornam manifesto o que é verdade para todas as obras de arte – que elas são todas,
em algum nível, “derivadas”. E, nesse sentido, o estudo das adaptações causa
potencialmente um impacto na nossa compreensão de todos os filmes” (idem, 2006, p. 49).
Chegando ao final desse trabaho de análise, só podemos concluir que a Teoria e
Prática da Adaptação de Robert Stam possibilitou enriquecer ainda mais o já valioso
romance Budapeste, de Chico Buarque, bem como sua também valiosa adaptação, de
Walter Carvalho. Ou novamente nas palavras de José Miguel Wisnik: “Budapeste, no
exato momento em que termina, transforma-se em poesia”.
Referências bibliográficas
BUARQUE, Chico. Budapeste. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
STAM. Robert. Teoria e Prática da Adaptação: da fidelidade à intertextualidade.
Florianópolis, Revista Ilha do Desterro, n° 51, p. 019-053, 2006.
Filmografia
Budapeste. Direção: Walter Carvalho. 113 min. DVD. Imagem Filmes, 2009.
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Historiografia em Foco: um estudo sobre Richard Morse sob a perspectiva da Nova
História das Ideias.
Mariane Ambrósio Costa*
Introdução
Nos anos 1970 o fazer historiográfico passou por uma série de revisões com a
queda de muitos paradigmas. Jacques Revel afirma que o modelo tradicional da História
Social entrou em crise nesse período, exatamente no momento em que parecia triunfar
infindavelmente. Uma série de fatores contribuiu para a crise, a informatização de dados e
a especialização dos campos dentro da história mostravam que o fazer do historiador não
era tão unificado quanto pensavam. Soma-se a isso a crise de paradigmas dentro das
ciências sociais. As inquietações nesse período abriram também novas perspectivas para a
História Política, Intelectual e também para a História Social da qual a Micro-História é
um poderoso resultado. É também nesse momento de efervescência intelectual que a
chamada História das Idéias vai começar a revisar suas mtodologias.
O debate sobre as formas metodológicas válidas para a História das Idéias se
acendeu quando em 1969 Quentin Skinner publicou “Meaning and understanding in the
history of ideas” (SKINNER, 2000), criticando diversos campos da história das idéias
políticas acusando-os sobretudo de incorrerem no erro de anacronismo (JASMIM, 2005, p.
27-38). A partir desse programa básico uma pujante produção historiográfica foi
produzida, geralmente identificada sob o título de Escola de Cambridge e representada pela
coleção Ideas in context.
A chamada história dos conceitos, que tem em Koselleck seu principal expoente,
embora tenha iniciado seus desenvolvimentos metodológicos anteriormente aos trabalhos
da tradição skinneriana, ganhou destaque nas últimas duas décadas. Essa história como a
conhecemos hoje se iniciou com o historiador Otto Brunner e se concretizou no léxico
Geschichtlichte Grundbegriffe.42
* Mestranda pelo Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal de Juiz de Fora, orientada
pela Profª. Doutora Beatriz Helena Domingues. Contatos: [email protected] 42
Usaremos também a sigla GG.
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Esse trabalho tem como objetivo inicial realizar considerações acerca do debate
travado entre a História dos Discursos ou Contextualismo Lingüístico, compreendida por
grandes nomes dentre os quais, Quentin Skinner e Jonh Pocock e a chamada História dos
Conceitos (Begriffsgeschichte) que tem como nome de destaque Reinhart Koselleck,
ambas vertentes da chamada Nova História das Idéias, e posteriormente, demonstrar uma
forma de aplicabilidade do método, na analise da obra O Espelho de Próspero, de Richard
Morse.
Contextualismo Linguístico, História dos Discursos, História das Linguagens...
O campo da História das idéias em geral não apresenta um metodologia específica e
única. No entanto, a metodologia defendida por Skinner tornou-se muito respeitada,
sobretudo no campo de estudo dos discursos políticos. John Pocock enfatiza que uma
linguagem ou um discurso é no uso dele e de Skinner uma estrutura complexa que abrange
um vocabulário, uma gramática, uma retórica e um conjunto de usos, pressupostos e
implicações, que existem juntos no tempo e são empregáveis por uma comunidade semi-
específica de usuários de linguagem para propósitos políticos, que permite, e por vezes se
prolonga até, a articulação de uma visão de mundo ou de uma ideologia (POCOCK, 2006).
Em seu famoso texto de 1969, “ Meaning and understanding in the history of
ideas”, estão presentes as idéias chave da que ficou conhecida como Escola de Cambridge.
Já de início Skinner afirma que a grande dúvida quando se quer trabalhar um texto é: Quais
os procedimentos adequados que devemos tomar, quando intentamos alcançar a
compreensão de uma obra? Um balanço entre as duas ortodoxias vigentes é então traçado:
a história que preza o contexto como a chave de interpretação de um texto e a que defende
que o texto é a chave para seu próprio entendimento.
As duas ortodoxias correm o risco de cair no erro máximo do anacronismo
histórico. Pois é impossível considerar os textos, principalmente os clássicos sem levar em
conta nossas próprias expectativas sobre o que este texto deve ter dito. O pressuposto de
que as idéias necessitam de agentes, de homens para criá-las é descartado muito
facilmente, “dado que estas se levantam e combatem em seu próprio nome”. Corre-se
assim o risco de cair em absurdos históricos, como colocar na boca de um autor algo que
este não desejou transmitir. O primeiro destes absurdos históricos para Skinner é buscar
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aproximações entre textos que muitas vezes não dialogam entre si, e o segundo é dizer que
uma idéia determinada nasceu em um momento determinado.
Deve-se levar em conta que a obra de um autor não é homogênea. Geralmente o
historiador da idéias se prende em características definidoras de determinada disciplina
para a qual o autor estudado contribui, sem levar em conta os desenvolvimentos da própria
carreira do estudado, sua mudanças ideológicas, etc. O observador pode fazer uso de sua
perspectiva privilegiada incorrendo no perigo “de que la familiaridad mesma de los
conceptos que usa o historiador enmascare alguna inaplicabilidad fundamental al material
histórico” (SKINNER, 2000). A explicação da obra de determinado autor não pode se
basear em elementos nos quais este não tinha acesso.
Ao apresentar a perspectiva de que a obra explica-se por si mesma, Skinner afirma
que: “Lo cierto es que, cualquiera sera la opinión que ahora abracemos, el texto em si
mismo prueba ser insuficiente como objeto de nuestra investigación y compreensión.” Para
ele se desejamos entender uma idéia dada, ainda dentro de uma cultura e época
determinadas, não podemos nos concentrar apenas nas formas das palavras implicadas, por
que essas palavras podem ter intenções diversas e incompatíveis e nem podemos esperar
que o contexto de enunciação resolva necessariamente esse problema (SKINNER, 2000).
Debemos estudiar em su totalidad las diversas situaciones, que pueden cambiar
de maneras complejas, em las que la forma dada de las palavras puede usarse
logicamente: todas las funciones que las palavras pueden cumplir, todas las
variadas cosas que pueden hacerse com ellas (SKINNER, 2000, p. 30).
Dessa maneira, ainda, que o estudo do contexto social do texto possa servir para
explicá-los, isso não equivale a proporcionar os meios para sua compreensão. Assim, de
uma maneira mais ampla é necessário também recuperar as intenções do autor. Nas
palavras de Souza:
Neste sentido, deslocando a atenção do texto para o contexto e, ainda, para o
criador do texto, Skinner esforçou-se por demonstrar que são nos atos de fala dos
autores, em seu mundo mental e no repertório lingüístico de sua época que o
historiador das idéias deve buscar a interpretação de textos (SOUZA, 2007, p.
161).
No entanto a perspectiva skinneriana também sofre críticas. A primeira do
antiguarismo ou inutilidade desse tipo de história contextualista para a elaboração teórica:
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Nessa direção, se os significados dos conceitos anteriores não são transponíveis
para o presente senão por mecanismos ilegítimos de atualização, porque
produtores de deformação dos sentidos originais, melhor seria, ou deixá-los a si e
partir para uma elaboração da teoria sem referência histórica às idéias, ou
assumir como inevitável a traição da tradução para o contemporâneo e operar
como se (a título de ficção heurística) os autores do passado fossem parceiros
nos temas do debate contemporâneo (JASMIM, 2005).
Marcelo Jasmin oferece a resposta para essa crítica levando em conta
principalmente o trabalho de Jonh Pocock, “o centro de sua reflexão metodológica desloca-
se para a relação entre várias linguagens políticas que no seu confronto sincrônico,
conformam as tessituras lingüísticas na qual as diversas performances se tornam possíveis
e inteligíveis” (JASMIM, 2005).
Nesse ponto Pocock realiza a desnaturalização da
conceituação e dos horizontes teóricos contemporâneos.
A segunda linha de crítica defende que o Contextualismo Lingüístico tem
inviabilidade cognitiva, dado que o significado original é inapreensível. Skinner responde
essa crítica da seguinte maneira: a primeira é distinguindo os vários tipos de significado
que uma proposição pode ter: “o significado das palavras enunciados na frase, o
significado da proposição para mim ou para a comunidade contemporânea de intérpretes, e
o significado da proposição como ato de fala daquele que a proferiu” e é somente para esse
ultimo que o seu método foi desenvolvido, e que trata-se de reconhecer através das
convenções lingüísticas publicamente reconhecíveis em uma época, a intenção do autor do
texto em questão. Um segundo caminho para responder essa crítica, passa em amenizar a
certeza do método cientifico que é proposto, uma vez, que o que se obtém com a pesquisa
é um grupo de hipóteses plausíveis, que não pretendem ser resultados finais e
inquestionáveis (JASMIM, 2005).
História dos Conceitos ou Begriffsgeschichte
Um campo que se difere do anterior, mas que possui várias semelhanças é a
História dos Conceitos Alemã. Falamos em História dos Conceitos, mais o que constitui
um conceito na perspectiva koselleckana? Todo conceito se prende a uma palavra, mas
nem toda palavra é um conceito. Toda palavra possui um sentido, mas não são todos os
sentidos atribuídos a uma palavra interessante para a História dos Conceitos, para esta
interessam conceitos passíveis de uma teorização e cujo entendimento é também reflexivo
(KOSSELECK, 1992, p. 134-146). Os conceitos sociais e políticos contém uma exigência
concreta de generalização, ao mesmo tempo que são sempre polissêmicos. O conceito é
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mais que uma palavra, e esta só se torna um conceito na medida em que as circunstâncias
totais político-sociais se agregam a ela, como no caso do conceito de “Estado”, que
engloba em si a idéia de um governo, um exército, cidadãos, etc. A História dos Conceitos
nas palavras de Koselleck “tem por tema a confluência do conceito e da história”
(KOSSELECK, 2006).
Em Futuro Passado, Koselleck afirma que sem conceitos comuns não pode haver
uma sociedade e sobretudo não pode haver unidade na ação política. Por outro lado os
conceitos se fundamentam em sistemas político-sociais, em complexas comunidades
lingüísticas organizadas sob conceitos-chave. No entanto, a História dos Conceitos é uma
disciplina a parte da História Social.
Assim é interessante compreendermos os métodos utilizados. Koselleck afirma que
a especialização da História dos Conceitos teve grande influência sobre as investigações da
História Social. A exigência metodológica mínima é a obrigação de compreender os
conflitos sociais e políticos do passado por meio de delimitações conceituais e da
interpretação dos usos da linguagem feitos pelos contemporâneos do período estudado.
Constituindo assim um método especializado da crítica de fontes, que atenta para termos
relevantes do ponto de vista sócio- político (KOSSELECK, 2006).
Esse procedimento parte do objetivo de traduzir significados lexicais em uso no
passado para nossa compreensão atual. Na segunda etapa os conceitos são separados de seu
contexto situacional e seus significados lexicais investigados ao longo de uma seguência
temporal, para serem depois ordenados em relação aos outros, de modo que as análises
históricas de cada conceito isolado agregam-se a uma história do conceito. Nesse estágio o
método histórico filológico sobressai. Dessa forma a História dos Conceitos se afirma
como campo de pesquisa histórica (KOSSELECK, 2006).
O Geschichtlichte Grundbegriffe, léxico considerado a consolidação da História
dos Conceitos Alemã, abarca 120 conceitos e mais de 7 mil páginas, que busca estabelecer
uma correlação entre conceitos políticos e sociais e a continuidade ou descontinuidade das
estruturas políticas, sociais e econômicas. O tema desse projeto é o que eram esses
conceitos e como foram debatidos, se foram constantes ou se alteraram no tempo
(RICHTER, 2006).
Richter ainda enumera contribuições do GG, sendo as três principais: oferecer
descrições de como os conceitos-chave surgiram, se modificaram ou foram transformados,
o que facilita o trabalho dos interessados em política e pensamento político. Em segundo,
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ajuda a evitar o anacronismo para esses estudiosos, evitando más interpretações. Em
terceiro, permite aos especialistas em filosofia política perceber entre usos pretéritos e
atuais (RICHTER, 2006).
No entanto, assim como o Contextualismo Lingüístico, a História dos Conceitos
também sofre suas críticas. A mais famosa delas provém do próprio Skinner, ou seja, a
incapacidade de se existir uma História dos Conceitos. Dessa forma a História dos
Conceitos se afirma no campo do fazer historiográfico, como uma escola que ainda tem
muito a oferecer aos estudiosos da história e como um método único na crítica de fontes
escritas.
Possíveis aplicações dos métodos: Richard Morse e O Espelho de Próspero
Diante dessas duas vertentes apresentas, que resumem o debate acerca da nova
história das idéias surgido nos anos 1970, fazemos a opção de adotar um método
semelhante ao proposto por Skinner, tentando analisar o ato de fala de autor para buscar a
interpretação mais aproximada de sua intenção no momento de criação da obra, e
conseguir compreender, desta forma, suas idéias e intencionalidades acerca do tema
analisado. No caso deste artigo, a obra analisada foi O Espelho de Próspero, de Richard
Morse. A idéia proposta é analisar de que maneira Morse explicou como correntes
religioso-filosóficas influenciaram na constituição das identidades ibero e anglo-
americanas, contrapondo as concepções jesuítica e puritana de colonização. Para dar forma
a seu argumento, Morse retorna aos fins da Idade Média para mostrar como correntes
religiosas que vigoravam na Inglaterra e na Espanha moldaram o caráter de pensamento
que foi transportado para as colônias americanas.
Quando publicado no Brasil em 1988, o Espelho de Próspero desencadeou um
cerco de polêmicas, tendo sido visto como a palavra de um norte-americano supostamente
encantado com a pobreza do Sul. Mas a intenção de Morse jamais foi esta. Após mergulhar
de cabeça na cultura brasileira, devorando-a e deglutindo-a, e saindo completamente
modificado de tal experiência, escreveu as considerações que demonstra no livro. Se nos
atermos ao contexto no qual a obra está inserida, devemos pensar que esse é um momento
marcado no Brasil por profundas mudanças políticas e culturais, no qual o país saía de um
período ditatorial implementado pelos militares desde 1964 e enfrentava sobretudo graves
crises econômicas, assim como um momento em que seu país de origem, os Estados
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Unidos, passava também por uma intensa crise de paradigmas. Para basear suas propostas
de um novo olhar da cultura do norte para a cultura do sul, identificando-a como algo
positivo, escreve sua primeira parte chamada Pré História, onde demonstra as origens da
tradição ibérica, mostrando que a América Latina é fruto de uma opção cultural (MORSE,
1988).
A análise do texto de Morse começa com a constatação do mesmo de que a pré-
história européia tornou-se o pano de fundo da colonização do Novo Mundo, onde a
Inglaterra vivia a primavera do poder mundial, e Portugal e Espanha, o outono. O que antes
era uma parte da missão de se construir uma “história mundial” passou a se tornar uma
obrigação, uma espécie de corrida para ver quem conquistaria o Novo Mundo. A
civilização passou a ser um encargo, onde a preocupação geral era com a evolução, não
com a história. No caso da Ibero e da Anglo América, é importante termos em mente que a
questão fundamental para se compreender suas respectivas tradições surgiram de uma
mesma matriz moral, intelectual e espiritual, e que, dentro desta matriz forjada foram feitas
opções e escolhas que vieram a definir os padrões da civilização ocidental. Do ponto de
vista da América, Morse vê isso como uma coisa obscura, pois de um lado o continente era
dominado pelas tradições ibérica e britânica, enquanto outras culturas importantes como a
italiana e a francesa eram deixadas de lado; e por outro lado, os povos americanos ficaram
à margem da História, uma vez que tiveram a sensação de começar a partir de uma nova
base, mas na verdade estavam vivendo a continuação do momento de suas metrópoles, ou
seja, as colônias americanas foram o resultado da opção feita por suas metrópoles.
Ao analisar a opção adotada pela Ibéria, Morse nos mostra que a Espanha pouco se
influenciou pela Reforma Protestante, pelo Renascimento em sua forma italiana ou por
alguma teoria do contrato social. O que na perspectiva de Richard Morse, não constituiu
uma coisa ruim, pelo contrário, deu importantes contribuições a filosofa do Direito e a
modernização da metafísica. Ou seja, mesmo furtando-se às “grandes revoluções” do
pensamento corrente, a Ibéria foi sensível as tendências advindas de outras partes da
Europa, mas soube absorvê-las internamente. O que torna evidente que as tradições
européias que deram forma à Ibero-América foram essencialmente Ibéricas. Neste
momento, a vida intelectual espanhola era baseada no consenso com o restante da
sociedade, em um momento de extrema tolerância, e isso se refletia em certos pontos sobre
a natureza do governo, tais como as fontes de legitimidade, o alcance do seu poder de sua
missão civilizadora. Neste período de fervor intelectual, as universidades se tornaram
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fontes indispensáveis de letrados para integrar a administração que estava em franca
expansão.
Analisando a questão religiosa-filosófica, Morse diz que o contato com os mouros
permitiu a entrada das obras aristotélicas na Ibéria, obras estas que continham idéias que
vinham do conflito travado com a concepção cristã dominante na península. Com isso, São
Tomás de Aquino busca “cristianizar” o aristotelismo, buscando equilibrar a fé com a
razão. A adesão ao tomismo como forma de pensamento pode ser vista como uma opção
cultural, resultando em uma nova filosofia cristã que fortaleceu a fé católica, sendo
chamada por ele de Modernidade Medieval, onde ciência e religião permaneceram
conectadas, mas tendo na teologia uma orientadora. Logo, Espanha e Portugal contavam
com um programa nacional e com instituições legitimadas que se ajustavam à visão
aristotélica tomista, ou seja, dentro de uma matriz teológica moral e filosófica.
Já o caso inglês tomou um rumo diferente do ibérico. Duns Scot e Guilherme de
Occam separarm radicalmente fé e razão, pois acreditavam na oposição entre fé e ciência.
Morse chama esse movimento de Modernidade Moderna, onde manteve-se a separação
entre ciência e fé, invertendo as prioridades: caberia a ciência, e não à religião, moldar a
visão de mundo. Ao contrário da Ibéria, a Inglaterra não apresentava um programa
nacional organizado, se encontrando em conflitos internos, incluindo disputas dinásticas e
religiosas, que levaram a elaborações que visavam a manutenção da ordem através de uma
base racional e individualista.
Logo concluímos que Morse defende que a Espanha estava absorvida em um
programa nacional estabelecido com muito mais clareza do que qualquer outro povo
europeu da época, e possuía instituições político-religiosas melhor legitimadas para
construir uma colonização na América. Por conviver desde os primórdios com correntes
conflitantes de pensamento, que conseguiram coexistir e criar um ambiente baseado na
convivência, trouxe para a Ibero -América uma característica de tolerância muito maior do
que o puritanismo levou para a Anglo América, de convívio entre idéias antagônicas, mas
que coexistiam e conseguiram se adaptar ao novo continente.
Conclusão
A nova história das idéias constituiu uma nova forma de análise de discursos,
ensaios, livros e obras literárias, fontes preciosas para se conhecer e interpretar o
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pensamento de uma época. Ambas as vertentes da chamada história das idéias, tanto, o
Contextualismo Lingüístico, quanto a História dos Conceitos alemã, mostram ao
historiador novas ferramentas para a interpretação de textos históricos. O Contextualismo
Lingüístico da Escola de Cambridge, embora aceite que o contexto influi na produção da
obra, o autor não deve ser encarado como uma massa passiva no mar dos acontecimentos.
Sua singularidade deve ser levada em consideração na análise de seu discurso. Sua
formação, influências acadêmicas e pessoais, interferem de maneira notável na produção
da obra. Richard Morse é um autor singular, com idéias inovadoras que influenciaram e
influenciam inúmeros historiadores. Para compreender as proposições de Morse em O
Espelho de Próspero é interessante compreender sua trajetória intelectual e sua paixão
pelos vizinhos do Sul.
Por outro lado, ao apresentarmos aqui o discurso kolesseckano e a História dos
Conceitos, compreendemos que o que apresentamos ao tratar de Morse, por exemplo, não
exclui a perspectiva adotada pela História dos Conceitos uma vez que é necessário
compreender os conceitos empregados pelo autor para se entender o momento da fala do
mesmo. Dessa forma para todos os campos do conhecimento, sobretudo para o campo
historiográfico, interpretar as fontes escritas, sem incorrer no anacronismo é fundamental
para a produção de um trabalho de qualidade.
Podemos buscar na fala de Morse seu objetivo, ou seja, construir uma obra que
demonstrou que o processo de colonização ibero-americana foi mais bem sucedido do que
o anglo –americano. Morse buscou mostrar que o lado intelectual e religioso do homem
espanhol foi fundamental para que se constituísse na Ibero-América uma visão
compreensiva e unificadora, baseada na vontade geral e na tolerância.
Referências bibliográficas
JASMIM, Marcelo Gantus. História dos Conceitos e Teoria Política Social: Referências
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Alejo Carpentier por Richard Morse – Notas do historiador norte-americano sobre o
escritor cubano no alvorecer de uma América em transformação.
Pedro Henrique Leite*
Em um discurso pronunciado na Aula Magna da Universidade Central da
Venezuela, em 15 de maio de 1975, intitulado Consciência e Identidade da América43
,
Alejo Carpentier alertava para o problema de como viver e agir em meio a uma América
Latina em pleno desenvolvimento, como atuar em meio ao grande palco latino-americano,
que papel desempenhar nesse grande teatro. Essa preocupação com uma tomada de
consciência, de uma busca por definir Identidades esteve presente ao longo de toda a vida
deste intelectual cubano, e acabou refletindo em seus romances publicados ao longo do
século XX.
Agente ativo em seu tempo, Carpentier buscou traçar as bases do que entendia
sobre a América Latina sem deixar de lado os processos dos quais fazia parte. Assim,
esteve em meio às mudanças políticas ocorridas na América, apoiando inclusive, todo o
processo revolucionário em Cuba e participando ativamente do Governo de Fidel Castro.
Para além da atuação política, esteve em contato com o universo artístico europeu, e fez
parte de uma geração de intelectuais latino-americanos com a qual manteve frutíferas
relações e ajudou no desenvolvimento e na difusão de seu romance. Assim, entendemos
que uma análise de uma figura tão ativa se faz necessária com o objetivo de entender
alguns dos pontos de vista de um dos autores mais marcantes na literatura do continente
dentro do período que marcou o final da década de 1950 até os anos 70.
A partir disso, chegamos ao questionamento de como realizar essa análise? Como
entender a figura de Carpentier numa lógica em que leve em consideração suas ações e
suas publicações no período em questão? Uma possível solução ao problema é tentar traçar
um perfil de Carpentier a partir da visão de outros intelectuais sobre o mesmo. Nesse
sentido as considerações do historiador Norte Americano Richard Morse podem nos ser
especialmente úteis e reveladoras para alcançar nosso objetivo.
* Mestrando em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora, pertencente à linha de pesquisa:
Narrativas, Imagens e Sociabilidades. E-mail: [email protected] 43
CARPENTIER, Alejo. Consciência e Identidade da América. In: A Literatura do Maravilhoso. Trad. Rubia
Prates Goldoni e Sérgio Molina. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, edições Vértice, 1987.
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Morse ao longo de sua carreira esteve preocupado em entender melhor o continente
americano a partir de um olhar diferenciado da América Latina. Assim, procurou
estabelecer as bases dos movimentos intelectuais existentes, ressaltando a “verdade dos
poetas e romancistas latino-americanos” e “adotando a literatura, a ficção como uma tocha
a iluminar a ‘realidade’”44
. Enxergou ainda, dois momentos principais no desenvolvimento
da intelectualidade na América: um marcado pelo naturalismo, que possibilitou o
florescimento de uma intelectualidade latino-americana, e produziu os chamados
“romances de terra”; e outro que englobou os modernismos existentes na América e seus
desdobramentos posteriores. Dessa forma, Morse em seus estudos abordou uma quantidade
sem precedentes de personagens que contribuíram de alguma forma para o
desenvolvimento do pensamento latino-americano, dentre eles Alejo Carpentier. A partir
dos escritos de Morse podemos enriquecer nossa visão sobre a figura de Alejo Carpentier
entendendo-o não como um autor isolado em seu tempo, mas como uma figura que transita
em meio a uma América em transformação.
Em “The Multiverse of Latin American Identity, 1920-1970”45
Richard Morse
estabelece uma leitura sobre a ficção latino-americana traçando os principais aspectos que
a caracterizam desde a década de 1920. Entretanto, o autor retoma suas raízes que remetem
aos finais do século XIX, empenhando uma empreitada de grande fôlego. Assim, ele a
divide em dois pólos principais: um de orientação americanista, voltado para ideologias e
retóricas nacionalistas e anti-colonialistas; e outro de orientação universalista ou
cosmopolita, voltado para entender a cultura global, dentro da qual, as nações da América
Latina têm se definido. Complementa dizendo que esses pólos se alternam no decorrer da
história, e que explicar o porque é difícil, mas identificável.
Seguindo este modo de ver, Carpentier estaria inserido neste segundo pólo, numa
fase que compreenderia o final dos anos 1940 até os dias atuais, onde se situa o chamado
“novo romance latino americano”, que estende as descobertas da “Avant-garde”
internacional, incluindo o modernismo anglo-americano, e incorporando o “realismo
mágico”, a Literatura Fantástica e outras correntes experimentais. Contudo, vale ressaltar
que Carpentier antecipa essa fase, junto com autores como Mário de Andrade, Miguel
Angel Asturias, e Jorge Luís Borges.
44
Extraído de:
DOMINGUES, Beatriz H. & BLASENHEIM, Peter L.(Org.). Decifrando o Código Morse. In: O Código
Morse – Ensaios sobre Richard Morse. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. p.20. 45
MORSE, Richard. The Multiverse of Latin America Identity c.1920-c.1970. In: BETHELL, Leslie (Ed.)
Ideas and Ideologies in Twentieth Century Latin America. New York: Cambridge University Press, 1998.
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Morse coloca Carpentier como um importante personagem do que se convencionou
chamar “boom” da literatura latino-americana, e mais do que isso foi nas palavras do
historiador norte-americano “quem ganhou causa” sob o termo “realismo maravilhoso”46
.
Aliás, sobre este, Richard Morse coloca-o como uma visão de mundo de Carpentier, ele
acrescenta citando González Echevarria que Carpentier “adotou uma visão Splengeriana e
Orteguiana policêntrica da história do mundo que acomoda a especificidade cultural do
mágico e do maravilhoso”47
. Morse completa que o realismo maravilhoso traduz-se em
termos sociológicos de encantamento e desencantamento. Para ele a modernização e a
industrialização afetaram as esferas do comportamento institucional e pessoal, trazendo
como efeito uma racionalização de um ethos. Carpentier lamentou essa extrema
racionalização na Europa, e foi na América que ele encontrou a terapia. Segundo Morse: “
Aqui, apesar da pobreza e caudilhismo, ainda se encontram na pluralidade cultural, o mito,
eterno retorno, espontaneidade e o relacionamento humano” (p.123).
Ou seja, território propício para que uma idéia como a do realismo maravilhoso se
fecunde.
Outro ponto importante que perpassa a visão de Carpentier sobre a realidade
americana e caribenha é sua visão de uma América barroca. Ao largo de sua vida
intelectual o citado escritor cubano procurou demarcar uma visão da América Latina que
ultrapassava as barreiras do real maravilhoso, Carpentier em consonância com alguns
pensadores de sua época enxergava o mundo americano como um mundo barroco. O
também cubano Lezama Lima uma década antes de Carpentier já atentava para uma
“americanização do barroco”. Segundo Irlemar Chiampi48
o Barroco para Lezama
significava:
Um fato americano que supõe ‘o húmus fecundante que evaporava cinco
civilizações’, ou seja, o mundo ibérico e mediterrâneo, enquanto espaço de
encontro de línguas, culturas, ritos, tradições... o barroco é então uma chegada a
uma confluência, a do descobrimento da América. (p.7)
Nesse sentido o barroco seria para Lezama exclusivamente americano, algo que se
formaria aqui a partir da união de elementos europeus e nativo-americanos.
Carpentier faz uma revisão crítica do barroco. E devido ao seu prestígio
internacional, é a sua visão (e não a de Lezama) que se torna mais influente na América e
46
Idem.p.121. 47
Idem.p.123. 48
CHIAMPI, Irlemar. Barroco e modernidade. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1998.
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mais divulgada fora dela. Em uma conferência realizada no Ateneu de Caracas, em 22 de
maio de 1975, intitulada “O Barroco e o Real Maravilhoso” 49
, Alejo Carpentier traz a
idéia da América como “terra de eleição do barroco”, assim “toda simbiose, toda
mestiçagem engendra um barroquismo”. Contudo, ao mesmo tempo em que elege a
América como barroca, o autor, como bem coloca Irlemar “dissolve a especificidade
americana do barroco, usando a estratégia de universalizá-lo”. Assim fazendo, Carpentier
rompe com a idéia inicial de Lezama em que o barroco seria exclusivamente americano, e
o faz com a intenção simples e clara de positivar uma visão negativa que ainda se tinha nos
anos 60 e 70 na avaliação dessa estética. Alejo deseja dissociar o barroco das
interpretações negativas que ainda prevaleciam nos circuitos intelectuais contemporâneos,
e certamente, nos setores ortodoxos da Cuba Socialista. O barroco era visto por estes
setores, em ultima instância, como um instrumento da ideologia colonialista. Assim
Carpentier através de seu discurso buscava uma positivação da visão sobre o barroco,
definindo-o como ‘uma constante humana’, uma espécie de força criadora, presente em
toda a América, mas não apenas nela.
Deste modo uma possível conclusão sobre este ponto e que traz uma distinção
objetiva às visões sobre o Barroco tanto de Lezama quanto de Carpentier, é que, Lezama
pensa o barroco numa legitimação histórica em que busca converter o universal em
particular (o barroco como algo americano), diferentemente de Alejo Carpentier que trata o
barroco em sua particularidade tentando universalizá-lo.
Retomemos Richard Morse. Seguindo o “Multiverse”, o historiador ressalta ainda
algumas características que são bastante caras para estabelecermos um perfil do escritor
cubano em meio à grande produção cultural que marcou o período de efervescência do
“boom”. Para Morse, os comentários de Alejo Carpentier são extremamente úteis, pois “ele
escreve de sua experiência francesa e com e com uma clareza Galesa (ainda que não sem
contradição e ambivalência) na reapropriação de suas origens latino americanas.” 50
no
entanto completa dizendo que “sua verdade pessoal jaz em seus romances, não em seus
ensaios”, dando um valor alto aos romances carpenterianos frente aos seus discursos
proferidos ao longo da vida. Essa espécie de “supervalorização” dos romances de
Carpentier se torna compreensível quando entendemos que para além de um simples
49
CARPENTIER, Alejo. O Barroco e o Real Maravilhoso. In: A Literatura do Maravilhoso. Trad. Rubia
Prates Goldoni e Sérgio Molina. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, edições Vértice, 1987. 50
Opcit. p.123.
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espaço de projeção lúdica, o autor imprimiu uma marca pessoal capaz de abarcar não só
seus gostos pessoais, mas também suas visões de mundo, e sua perspectiva da história.
Para concluir
Esperamos que, de alguma forma, possamos ter contribuído com um pequeno
esboço do perfil de uma das personalidades mais ativas ao longo do século XX dentro do
quadro de intelectuais latino-americanos. A partir de algumas proposições do historiador
norte-americano Richard Morse sobre o novelista cubano Alejo Carpentier esperamos ter
contribuído de forma significativa para uma melhor visualização das idéias e das questões
as quais Carpentier procurou responder ao longo dos anos. Sua preocupação em definir
uma identidade ou identidades para o continente americano foi apenas um dos fatores os
quais ele ativamente refletiu durante a vida, identidade (ou identidades essas) que estão
inteiramente ligadas à sua visão de uma América barroca, e onde o realismo maravilhoso
funciona como uma ferramenta, um binóculo onde enxergamos a verdadeira realidade
latino-americana. Afinal, como dizia o próprio autor no famoso prólogo de “O reino deste
mundo”51
: “o que é toda a América, senão uma crônica do real maravilhoso?”.
Referências bibliográficas
BETHELL, Leslie (Ed.) Ideas and Ideologies in Twentieth Century Latin America.
New York: Cambridge University Press, 1998.
CARPENTIER, Alejo. A Literatura do Maravilhoso. Trad. Rubia Prates Goldoni e
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_____ O Reino deste Mundo. Trad. Marcelo Tápia. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
CHIAMPI, Irlemar. Barroco e modernidade. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1998.
DOMINGUES, Beatriz H. & BLASENHEIM, Peter L.(Org.). O Código Morse – Ensaios
sobre Richard Morse. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.
51
CARPENTIER, Alejo. O Reino deste Mundo. Trad. Marcelo Tápia. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
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Brasil Colônia
A Expulsão dos religiosos nas Minas: uma questão de poder entre Estado e Igreja.
Cristiano Oliveira de Sousa*
Estado e Igreja sempre tiveram uma estreita relação nos países ibéricos. Em
Portugal a sujeição da esfera eclesiástica ao Estado vem desde a constituição do próprio
Estado lusitano. Com efeito, desde a Idade Média, o poder real é justificado por sua origem
divina, “o monarca é o eleito de Deus; e por força desta eleição gratuita seu poder é
humanamente incontestável”52
. Ainda mais se tratando dos monarcas da península
ibérica — reconhecidos como reis católicos, famosos pela sua ação contra o avanço
muçulmano — este poder incontestável do monarca recebe o apoio da Sé Católica,
ampliando assim o poder real e contribuindo para a constituição das Monarquias
Absolutistas.
Com o direito do Padroado, a atribuição de benefícios eclesiásticos como a
nomeação de bispos, seja na metrópole ou no além-mar, passou a ser um privilégio do
monarca português, que era também Grão-Mestre da Ordem de Cristo. Em virtude desta
“associação” entre estado e igreja, o monarca português ficou responsável por implementar
a fé católica nos territórios descobertos. Além de tudo isso, o monarca lusitano ainda
contava com o beneplácito régio, que consistia:
Na declaração do imperante, pela qual atesta a todos os cidadãos e autoridades
que certa determinação eclesiástica provém do poder competente, que seu texto é
autentico e genuíno e nada contém ofensivo das leis e dos costumes louváveis do
País. Esse instituto foi direito régio, pelo menos desde o reinado de D. Pedro I,
direito de que os prelados se queixavam já nas Cortes de Elvas de 1361 e que
voltam a representar a D. João I, nas Cortes de Santarém de 142753
.
* Doutorando vinculado ao Programa de Pós Graduação em História – UFJF, Linha: Poder, Mercado e
Trabalho, desenvolvendo a pesquisa A elite dirigente da Ordem Terceira de São Francisco de Assis de Vila
Rica (1750 – 1820): Relações de poder, redes, prestígio e representatividade nas Minas; bolsista da
FAPEMIG e orientado pela prof. Dra. Carla Maria Carvalho de Almeida. 52
AZZI, Riolando. A cristandade Colonial: mito e ideologia. Petrópolis: Vozes. 1987, p. 37 53
AZEVEDO, Maria Antonieta Soares de. Verbete “Beneplácito Régio”. IN: SERRÃO, Joel, dir. Dicionário
de História de Portugal. Lisboa, Iniciativas Editoriais, 1971. V. 1, p. 328-9, apud BOSCHI, Caio César. Os
Leigos e o Poder (Irmandades Leigas e Política Colonizadora em Minas Gerais). São Paulo: Ática, 1986, p.
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Caio César Boschi afirma que além do Padroado e do Beneplácito Régio, que já
submetiam de certa forma a Igreja ao Estado Português, existia ainda a questão tributária.
A bula Inter Coetera de 1456 determina que a cobrança dos dízimos deveria ser realizada
pela Ordem de Cristo. Como o Monarca Português era também o Grão-Mestre da dita
Ordem, foi possível a incorporação dos tributos de caráter espiritual, como os dízimos
eclesiásticos, aos cofres régios54
.
Como visto a relação entre o Estado e a Igreja em Portugal era muito próxima,
confundindo-se varias vezes os papéis e jurisdições de cada instituto. No território das
Minas, com a descoberta do ouro, esta relação vai se tornar ainda mais complicada, pois a
Coroa, na tentativa de efetivar de uma maneira mais eficaz seu controle sobre aquele
território, vai publicar diversas medidas que tentavam excluir ao máximo possível o
controle que a igreja exercia ali. Temos que considerar aqui que se trata de uma típica
sociedade de Antigo Regime, dividida em “estados” ou “ordens" onde o Clero assumia
uma posição diferenciada, pois, possuía uma organização própria, regia-se por leis próprias
(direito canônico), era uma ordem não tributária, possuía isenção do serviço militar, e
ainda possuía todo o resto da sociedade como seus subordinados, no que se referia à sua
função específica55
. Era praticamente um Estado dentro do Estado. E isto incomodava
bastante a coroa, especialmente se tratando do domínio da região das Minas.
Caio Boschi em sua obra intitulada “Os leigos e o poder” trata da questão das
confrarias enfocando justamente o tema do poder. Segundo Boschi a Igreja, representada
pelas irmandades, teria chegado ao território das Minas antes mesmo do Estado enquanto
instituição, pois:
Simples aventureiro, sem eira nem beira, o objetivo do recém-chegado era o de
aproveitar-se das riquezas do Eldorado brasileiro e regressar a seu local de
origem. (...) Sua vida, toda incerteza, ao lado do instinto natural de se agrupar,
levaram-no a associar-se a pessoas que padeciam dos mesmos problemas, das
mesmas mazelas. Desse modo, quando, aos domingos, o adventício se dirigia ao
arraial para participar dos ofícios religiosos simultaneamente ao exercício da fé
cristã ele buscava encontrar um ponto de apoio, um local de conforto diante da
insegurança e da instabilidade de sua vida (...) E foi sob a sombra das capelas e
com essa perspectiva associacionista que os primeiros mineiros se aglutinaram
para instituir suas irmandades56
.
54
BOSCHI, 1986, p. 43 55
GODINHO, Vitorino Magalhães. A estrutura na Antiga Sociedade Portuguesa. Lisboa: Arcádia, 1971, p.
85. 56
BOSCHI, 1986, p. 22
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Em conseqüência desta primitiva presença da Igreja, enquanto instituição, no
território das Minas, as autoridades metropolitanas teriam que de qualquer forma encontrar
uma maneira que permitisse ao Estado assumir o controle destas associações, tomando
assim, efetivamente, o controle daquela região57
.
Uma das formas em que se deu esta postura do Estado Português, de maior rigidez
na tentativa de aumentar o controle da região, foi através da proibição da entrada de
religiosos e da proibição do estabelecimento de Ordens Religiosas no Território das Minas.
É vasta a documentação existente nos arquivos mineiros que tratam desta questão o que
também, por sua extensa quantidade, leva a crer que esta postura adotada não era
efetivamente cumprida.
O primeiro documento que trata desta questão que conseguimos encontrar é a carta
régia de 9 de novembro de 1709 pela qual foi nomeado “o Governador do Rio de Janeiro,
Antônio de Albuquerque Coelho de Carvalho, para Governador de São Paulo , e todo o
Districto de Minas do Ouro”, documento este que, além desta função, “recomenda que de
toda ajuda, e favor ao Arce-Bispo da Bahia, e Bispo do Rio, para que sejam bem aceitos e
para fazerem despejar a todos os Religiosos e Clérigos que se achem nas Minas sem
emprego necessário, que seja alheio ao seu Estado...”58
.
O historiador da arte Germain Bazin em sua obra intitulada A Arquitetura Religiosa
Barroca no Brasil cita alguns documentos, como a carta régia de 9 de Junho de 1711, que
exigia que “se não consinta que nas minas assista frade algum antes os lance fora a todos e
com violência, se por outro modo não quizerem sair. E que o mesmo execute com aquêles
clérigos que não tiverem ministério de Parochias”59
. Porém a explicação do motivo desta
repressão dada pelo autor se baseia apenas na questão econômica, ou seja, os padres
estariam sendo expulsos das minas pela fama de contrabando que os perseguia desde o
reino.
A má-fama dos religiosos portugueses era bastante conhecida. E não eram apenas
os padres que possuíam este desprestígio. Caio Boschi afirma que as propostas de Trento
foram adotadas em Portugal não com o sentido de combater o protestantismo, mas sim
57
Para maiores informações sobre a questão do poder e das Irmandades nas Minas setecentistas conf.:
BOSCHI, Caio César. Os Leigos e o Poder (Irmandades Leigas e Política Colonizadora em Minas Gerais).
São Paulo: Ática, 1986. 58
MINAS GERAIS/ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO. Coleção sumaria das próprias Leis, Cartas Regias,
Avisos e Ordens que se acham nos livros da Secretaria do Governo desta capitania de Minas Gerais,
deduzidas por ordem a títulos separados. Vila Rica, 1784. Revista do Arquivo público Mineiro, Belo
Horizonte, nº 16, 1911, doc. nº 1 p. 335. (Daqui em diante esta revista será referenciada pela sigla RAPM). 59
BAZIN, Germain. A arquitetura religiosa barroca no Brasil. Rio de Janeiro: Record, vol. I: Estudo
Histórico e Morfológico. Rio de Janeiro: Record, 1983, p. 195.
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com o intuito de se reformar a própria Igreja Católica, e renovar a religiosidade naquele
país. A este respeito Boschi cita Oliveira Martins, que diz:
O catolicismo não era então — como o era a religião protestante — uma fé
íntima e absorvente: era uma convicção para uns, uma convenção para outros,
uma conveniência para muitos, e um desvairamento para os defensores
intolerantes da fé. Havia decerto uma afirmação religiosa unânime e violenta;
mas desaparecera a unanimidade ingênua e espontânea da crença, que radica as
religiões. O catolicismo atravessava uma crise, de que saíra malferido; e a
violência com que se impunha estava denunciando que ficara sendo, antes uma
expressão de autoridade. do que uma expansão de sentimento popular. Isto fazia
com que o povo, sem renegar o catolicismo, fosse caindo num relaxamento; e
que, ficando com a religião, deixasse de lhe dar significação ou importância
moral. Muita devoção e muita devassidão; eis aí a concomitância resultante, e
universalmente provada pelos costumes das nações católicas depois da
Renascença60
.
A religiosidade em Portugal possuía um caráter mais popular, congregando
elementos étnicos os mais diversos. Era uma religião voltada mais para as procissões e
ritualismos que por reflexões dogmáticas, assumindo uma atitude mais exteriorizada e
festiva, do que interiorizada e reflexiva61
.
O clero também seguia esta tendência, e os adjetivos “ignorante”, “dissoluto” além
de “libertino” ou “corrupto” eram apenas alguns dos que frequentemente eram associados a
estes por estrangeiros que estiveram em Portugal no século XVIII62
. Ao se associarem uma
religiosidade popular impregnada por crenças e superstições com um clero corrupto, o
resultado não poderia ser outro a não ser um poder e uma influência muito grande nas
mãos dos últimos sobre os primeiros. Boschi ainda acrescenta a esses elementos, o fato de
o clero português possuir também inúmeros privilégios como o de foro, por exemplo,
assim como o de isenção fiscal, militar e direito de asilo63
. Estes seriam apenas alguns dos
fatores que levaram a coroa portuguesa a adotar uma postura agressiva contra os
eclesiásticos.
Mas voltaremos às medidas restritivas aos eclesiásticos no território das Minas. Na
Instrucção para o governo da capitania de Minas Gerais escrita em 1780 por José João
Teixeira Coelho, temos um capítulo, o oitavo, dedicado às “Reflexões sobre o estado
eccleziastico da Capitania de Minas Geraes”. Neste Capítulo Teixeira Coelho relata a
quantas andava a questão dos eclesiásticos em Minas, e inicia contando como a descoberta
60
MANTINS, Joaquim Pedro de Oliveira. História de Portugal. Lisboa: Guimarães & Cia., 1951, v.1, p.
354, apud BOSCHI, 1986, p. 36. 61
BOSCHI, 1986, p. 37. 62
BOSCHI, 1986, p. 39. 63
BOSCHI, 1986, p. 39.
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do ouro trouxe àquela região pessoas de todas as partes movidas pela ambição de
enriquecimento fácil. Entre estes novos povoadores ele inclui também “frades de diversas
religioens, levados pelo espírito do Interesse, e não do bem das Almas”. Ainda segundo
Teixeira Coelho “elles, como se fossem Seculares, se fizerão Mineiros e se ocuparão em
negociaçoens e em adquirir cabedaes por meios illicitos, sordidos, e improprios ao seu
Estado”.64
Ainda aí vemos apenas criticas às praticas econômicas exercidas por esses
eclesiásticos, porém não foi apenas esta a questão que levou a Coroa e tomar meditas tão
enérgicas contra o clero mineiro. Célia Borges deixa bem claro que esta política adotada
pelo Estado português levava em conta também os fatos ocorridos “em que eclesiásticos se
envolveram em rebeliões, sendo por isso, vistos como elementos desestabilizadores do
sistema”65
. De fato um olhar mais atento à documentação revela que os motivos que
levaram à expulsão dos frades algumas vezes era o fato de estes serem “muitos deles frades
e clérigos de ruim procedimento, revoltosos e ainda cúmplices no levantamento dos reinóis
com os paulistas”66
. O documento aqui citado é inclusive utilizado por Charles Boxer para
discutir o perfil da população da região das Minas, quanto à mobilidade e quanto ao
comportamento. Segundo Boxer:
Eram eles [os clérigos] apontados como sendo os piores culpados de vida
irregular, defraudação dos quintos reais, e adesão ao comércio de contrabando
em generosa escala. Desde o início, espalharam eles ‘a pestífera doutrina de que
a fraude dos quintos não pede restituição, por ter pena civil quando chegar a
descobrir-se’.67
Percebe-se aí já a preocupação com a má-influência que os religiosos poderiam ser
para os habitantes das Minas. Além da questão do contrabando que os religiosos eram
acusados pelo fato de não se submeterem à justiça comum devido ao privilégio de
imunidade eclesiástica que gozavam, aparece também na documentação relatos de que os
clérigos insuflavam a população a não pagar impostos, como o quinto, por exemplo. Os
clérigos eram considerados os cabeças de diversos levantes que aconteceram na região. A
carta régia de 12 de Outubro de 1711, por exemplo, trata da não admissão do Fr. Francisco
64
COELHO, José João Teixeira. Instrucção para o governo da Capitania de Minas Gerais. Revista do
Arquivo Público Mineiro. Belo Horizonte, 1903. no 8, p. 447, 448.
65 BORGES, Célia Maia. Escravos e Libertos nas irmandades do Rosário: devoção e solidariedade em
Minas Gerais – séculos XVIII e XIX. Juiz de Fora, Editora da UFJF, 2005, p. 57. 66
FUNDAÇÃO João Pinheiro. Códice Costa Matoso. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, CEHC,
1999. Doc. 28, p. 346-348. 67
BOXER, Charles R. A idade do Ouro do Brasil: dores do crescimento de uma sociedade colonial. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p. 76.
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de Menezes na região das Minas pelo fato de ele ter sido “um dos principais cabeças do
levam.to
das Minas contra os Paulistas”68
. Já a carta Régia de 26 de Março de 1711 pede
informações a respeito do procedimento do padre Cláudio Gurgel do Amaral, vigário da
vila de Ouro Preto, por ter sido ele “no R.o de Janeiro author de algúas revoluçoens em que
succederão mortes”69
.
Como se pode perceber pela documentação, os eclesiásticos que viviam nas Minas
eram constantemente observados, por serem considerados elementos responsáveis por
“grande prejuizo e perturbaçoens70
” e também como “os que mais descaminhão os
quintos71
”. Desta forma são constantes os pedidos de informações sobre o procedimento
dos clérigos, como também denúncias dirigidas à Corte relativas à ineficiência dos Bispos
em fazer cumprir as ordens de expulsão dos clérigos desnecessários. É em face desta
situação, que na carta régia de 9 de Junho de 1711 a Coroa muda de postura e autoriza ao
governador que utilize inclusive de força contra os eclesiásticos ociosos. A partir daí
também percebe-se a decisão metropolitana de também tributar o clero em relação aos seus
bens fundiários72
.
A questão tributaria foi também responsável por diversas desavenças entre as
autoridades da Igreja e do Estado nas Minas. É famosa a questão surgida entre o bispo D.
Manoel da Cruz e o ouvidor Caetano da Costa Matoso sobre a quem pertencia o monopólio
da fiscalização da contabilidade das confrarias em Minas. Essa questão se dava pois essa
era uma das principais formas de controle das atividades das confrarias no período
colonial. Esta disputa de jurisdição durou bastante e provedores e visitadores se alternaram
por muitos anos na fiscalização das contas das Irmandades até se chegar a conclusão que
era o momento da fundação da confraria que definia sua função eclesiástica ou secular.
Mesmo assim algumas irmandades alegavam que tinham “perdido” seu compromisso de
fundação (como foi o caso da Irmandade do Rosário do Alto da Cruz de Ouro Preto),
mostrando que até mesmo os irmãos tinham duvidas a respeito da questão sobre a quem
pertencia o monopólio. Ou ainda como afirma o historiador Marcos Magalhães Aguiar em
um artigo sobre o tema, “a flexibilidade na fiscalização dos compromissos (...) era a regra,
68
RAPM, nº 16, 1911, doc. nº 1, p. 393. 69
RAPM, nº 16, 1911, doc. nº 2, p. 393. 70
RAPM, nº 16, 1911, doc. nº 14, p. 395 71
RAPM, nº 16, 1911, doc. nº 6, p. 394. 72
Para maiores informações sobre esta questão de jurisdição, conf.: BOSCHI, Caio. “Como os filhos de Irael
no deserto”? (ou: a expulsão de eclesiásticos em Minas Gerais na 1ª metade do séc. XVIII). IN: Revista Varia
História. Belo Horizonte, n. 21, 1999, p. 119-141.
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e o principio de sobrevivência das instituições temperava a ação enérgica de provedores e
visitadores”73
. Mas essa já é outra questão, voltaremos à questão dos religiosos em Minas.
Levando-se em conta as ações da Coroa em relação à expulsão e proibição da
entrada e do estabelecimento de ordens religiosas no território das Minas, me arrisco a
considerar a postura assumida pela Coroa como uma postura de vanguarda, aos moldes da
que mais tarde seria adotada por Pombal e suas reformas ilustradas. De fato, foi apenas no
reinado de D. João V, com o descobrimento do ouro nas Minas, é que o estado português
passou realmente a tomar medidas mais enérgicas. A Coroa Portuguesa até então pode ser
vista mais como uma “monarquia corporativa”, como propõe Antonio Manuel Hespanha74
.
É a partir do reinado de D. João V, com a deixada de convocação das cortes e ações como
as discutidas aqui, a respeito da situação dos eclesiásticos nas Minas, é que a Coroa passa a
tomar atitudes consideradas mais enérgicas. Assim considero que — do mesmo modo
como mais tarde serão realizadas reformas profundas como as levadas a cabo Pombal e seu
absolutismo ilustrado — as atitudes assumidas pela Coroa inauguram nas minas uma
tentativa de se exercer mais energicamente o poder dito “Absolutista”, na tentativa de
fortalecer assim o controle que a coroa portuguesa deveria ter em uma região que, no
momento, era de fundamental importância para o Império Português. Para isso foi
necessário fiscalizar e até mesmo excluir daquela região elementos que ameaçavam este
controle, no caso, os eclesiásticos, conforme pode ser observado pelas justificativas
apresentadas nas cartas aqui citadas anteriormente.
Esta atitude da Coroa de impedir o estabelecimento de ordens religiosas regulares
nas Minas vai levar a um panorama diferenciado da religiosidade, onde a construção das
igrejas e alguns encargos do estado vão ser transferidos para as irmandades leigas que
surgem então naquelas comunidades que se formavam. As manifestações religiosas como
as procissões, festas, etc., vão assim ser organizadas e efetivadas por essas irmandades,
que, por sua vez, vão adquirindo uma importância e um poder especial naquela capitania.
Este é apenas um dos fatores que dá à História da Religiosidade Mineira características
singulares, tornando-a tão interessante.
73
Para maiores informações sobre esta e outras questões conf.: AGUIAR, Marcos Magalhães de. Estado e
Igreja na capitania de Minas Gerais: notas sobre mecanismos de controle da vida associativa. IN: Revista
Varia História. Belo Horizonte, n. 21, 1999, p. 43-57.
74 HESPANHA, Antonio Manuel. A constituição do Império português. Revisão de alguns enviesamentos
correntes. IN: FRAGOSO, João, BICALHO, Maria Fernanda e GOUVÊA, Maria de Fátima (org,). O Antigo
Regime nos Trópicos: A dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2001, p 163 - 188.
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História Econômica
O Mercado de Bens Rurais e Urbanos do Termo de Mariana: espaços de produção e
hierarquia social, 1711-1780.
Quelen Ingrid Lopes*
Introdução
A ocupação de Minas Gerais deveu-se ao atrativo potencial de enriquecimento que
o ouro, ali descoberto pelos paulistas, fazia reluzir na mente dos primeiros desbravadores.
Região de difícil acesso e longa jornada, pouco convidativa por ser ainda sertão a se
desbravar, logo nos primeiros anos gera alguns percalços no caminho da consolidação da
ocupação territorial. O principal deles era a penúria pela qual passavam os mineiros diante
da falta de alimentos suficientes para garantir suas subsistências, bem como dos escravos
que trabalhavam nas lavras. As duas crises de fome que se deram nos anos de 1698-1699 e
1700-1701 demonstraram que não seria possível estabelecer a tão desejada empresa
mineradora sem o empenho em se oferecer uma mínima estrutura para a fixação do homem
nas áreas auríferas.
Adriana Romeiro, analisando a influência que os surtos de fome tiveram sobre a
caracterização do espaço natural e simbólico das Minas, percebe um “padrão recorrente
nas situações de extrema penúria” praticada a princípio pelos paulistas e posteriormente
adotada pelos demais aventureiros que iam buscar a sorte na mineração. Quando das
correrias pelo sertão em busca do apresamento dos indígenas, os paulistas apreenderam um
“repertório de saberes sobre a natureza, que os capacitava a extrair dela todo o necessário à
vida, desde a subsistência até a farmacopéia”.75
Quando os paulistas se viam em
dificuldades buscavam logo o abrigo das matas, onde sabiam encontrar o que lhes era
necessário para subsistir até um momento propício para retornarem às suas regiões de
origem.
* Doutoranda em História pela UFJF. Esta pesquisa conta com o financiamento da CAPES/REUNI.
75 ROMEIRO, Adriana, ROMEIRO, Adriana. Os sertões da fome: A história trágica das minas de ouro em
fins do século XVII. In: SAECULUM – Revista de História, João Pessoa, jul./dez. 2008, p.
168.
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Aliada a essa “fuga para os matos”, um dos saberes que permitiu a penetração das
bandeiras no território que viria a se tornar a Capitania de Minas Gerais foi a técnica do
plantio de roças em determinados pontos ao longo do caminho, isto para que na volta das
expedições os exploradores pudessem se reabastecer com os víveres que haviam plantado.
Nos primeiros anos de povoamento de Minas Gerais manteve-se este tipo de técnica:
“Assim que chegavam as Minas, todos tratavam primeiro de plantar suas roças nas
imediações das datas minerais, instalando-se depois nos arraiais e povoados, para esperar
até que os mantimentos pudessem ser colhidos. Só então é que se tinham início os
trabalhos de mineração.” Mas devido à fragilidade de equilíbrio entre o aumento
populacional constante e a produção realizada, as crises de fome sempre assombravam os
mineiros.
Embora aquele cenário desolador do início da empresa mineradora, retratado no
relato de Antonil, evidencie os obstáculos impostos a mesma, as notícias vindas das áreas
mineradoras dando conta dos grandes lucros obtidos nas lavras animavam cada vez mais
indivíduos dispostos a encetar a empreitada mineradora. Empreitada que não requeria
grandes investimentos, pois o ouro de aluvião (tipo encontrado na região) era de fácil
acesso, necessitando, no limite do básico ao seu garimpo, de alguns poucos instrumentos
como a bateia e o almocafre. Mas o fator do abastecimento das Minas desde cedo se
mostrou questão de extrema importância para que se pudesse consolidar a atividade da
mineração no interior da colônia.
A tradição historiográfica da economia colonial baseada na noção de ciclos
econômicos de Roberto Simonsen76
, durante quase meio século entendeu que essa
demanda por bens de primeira necessidade criada por esse súbito e desordenado
povoamento de Minas Gerais teria sido sanada a partir da regularização de um
abastecimento externo. A estrutura econômica local voltada unicamente para a mineração
não teria como oferecer os artigos necessários, pois a utilização da mão-de-obra escrava e
todos os recursos disponíveis estariam investidos tão somente na produção do ouro. A
entrada em cena da agricultura, para tal perspectiva, se daria como alternativa de
subsistência diante da completa decadência que se abate sobre a capitania em virtude da
queda da produção aurífera, no final do século XVIII.
Participando dessa mesma linha de interpretação, ainda que sob enfoque da
dinâmica econômica interna à colônia, Mafalda Zemella define a prática agrícola durante o
76
Simonsen, Roberto C. História econômica do Brasil. São Paulo: Ed. Nacional, 1977.
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período de auge da mineração como uma atividade de participação muito limitada no
abastecimento regional, sendo apenas realizada com caráter ocasional. Sem constituir uma
estrutura produtiva capaz de oferecer o básico de bens de consumo que a população local
carecia, o abastecimento dos gêneros de primeira necessidade na capitania das Minas teria
sido substancialmente efetuado por outras áreas da Colônia. Nesse sentido, o Rio de
Janeiro (com a abertura do caminho novo) e a Bahia teriam sido os principais responsáveis
pelo envio - além dos produtos vindos do Reino - de gêneros alimentícios e de gado.
Somente quando a mineração entrasse em declínio o abastecimento de produtos externos
fora substituído por produtos localmente produzidos, nesse momento a agricultura teria se
estruturado de modo efetivo na capitania.77
O desinteresse em tornar a agricultura uma prática regular na capitania seria devido
a alguns entraves de ordem prática e também psicológica. Este último, determinado pela
ambição de enriquecimento, pois “o ouro atraía todas as atenções, condensava todas as
atividades, pela ascendência que exercia sobre os espíritos ambiciosos que acorreram às
Gerais. Somente no caso de haver absoluta impossibilidade de explorar uma lavra é que se
pensava em outras ocupações.” O outro entrave seria dado pelo caráter geológico da
região, que devido à pobreza dos solos em proximidade com as áreas de ocorrência de
minério teria um nível e qualidade produtivos inadequados para atender as necessidades
locais. Haveria ainda mais um obstáculo à implantação da atividade agrícola: a avidez da
Coroa em adquirir o ouro vindo do seu direito ao quinto, que a fazia “concentrar todas as
possibilidades de produção dos habitantes das Gerais na indústria mineradora”, proibindo
os trabalhos de manufatura na região e os engenhos de cana-de-açúcar.78
Somente a partir da década de 1980 tem início na historiografia uma tentativa de
equacionar a relevância da agricultura em Minas Gerais no período de auge minerador.
Tomando como objeto de estudo as cartas de sesmarias concedidas aos peticionários da
capitania de Minas Gerias, durante a primeira metade do século XVIII, Carlos Magno
Guimarães e Liana Maria Reis, constataram, além da efetiva existência e importância do
setor agrícola na região, a concomitância da mineração e da agricultura. Ambas as
atividades dividiam espaço e a força produtiva dos escravos, derrubando duas ideias
defendidas pela historiografia clássica: a de que as terras próximas as áreas de mineração
não seriam produtivas, e a de que não faria parte da lógica do sistema minerador permitir
77
ZEMELLA, Mafalda p. O abastecimento da capitania de Minas Gerais no século XVIII. São Paulo:
HUCITEC/Edusp, 1990. 78
Idem., p. 209.
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que o trabalho escravo fosse desviado para atividades menos rentáveis, em outras palavras,
que não se relacionavam diretamente ao mercado exportador. Desta forma, “a agricultura
na sociedade mineira colonial” não deve ser percebida apenas como uma atividade de
caráter eventual e quase desprezível, mas deve-se procurar:
(...) entender sua inserção no processo da colonização [que] necessariamente nos
levar a repensar este processo, e aquela sociedade. Trata-se no caso de
reconhecer a existência e a importância de um setor produtivo, na sociedade
mineira, que absorve expressivo contingente populacional de todas as condições.
A existência deste setor reflete ainda a existência de grupos de interesses
definidos, com peso específico no conjunto das forças que atuam naquela
sociedade.79
Em seu estudo sobre a agricultura e pecuária de Minas Gerais colonial, Ângelo
Alves Carrara estabelece dois modos de produção agrária como modo de interpretação
dessa sociedade agrária: um que é denominado modo de produção escravista, com
produção mercantil, tendo suas atividades divididas entre a mineração e a produção
agrícola de alimentos; e o outro, o modo de produção camponês ou familiar, caracterizado
por uma produção de agricultura de auto-consumo80
. Para o autor, estes dois modos de
produção conformam duas paisagens agrárias distintas, que são as categorias primeiras da
percepção geográfica setecentista, as “minas” e os “sertões” [que] conformaram
igualmente duas paisagens rurais distintas. Uma, nas áreas de ocorrência das jazidas
minerais ou à beira das principais estradas e caminhos que lhes acessavam,
compreendiam os sítios. Outra, sertaneja, curraleira, abrangia as fazendas.81
Dedicando-se à análise das unidades produtivas do termo de Mariana, entre 1750 a
1850- período que engloba o auge minerador até a predominância econômica das
atividades mercantis de subsistência-, Carla Maria Carvalho de Almeida, afirma que a
queda da produção do ouro nas últimas décadas do setecentos não teria levado a
capitania/província a uma completa desestruturação de suas atividades produtivas,
entrando em completo declínio sua economia e sociedade. Na verdade, o que demonstra o
estudo é um re-ordenamento da atividade nuclear da mineração para a agricultura mercantil
de subsistência, sendo mínimas as alterações das unidades produtivas ao longo de todo o
período estudado, nas palavras da autora: As mudanças ocorridas se deveram mais aos
79
GUIMARÃES, Carlos Magno & REIS, Liana Maria. Agricultura e escravidão em Minas Gerais (1700-
1750). In: Revista do Departamento de História. Belo Horizonte: UFMG, v. 1, n. 2, 1986, p 8. 80
CARRARA, Ângelo A. Agricultura e Pecuária na capitania de Minas Gerais 1674-1807. Rio de Janeiro:
UFRJ, 1997 (tese de doutorado). 81
CARRARA, Ângelo A. Minas e Currais: Produção rural e Mercado interno de Minas Gerais 1674-1807.
Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2007, p. 187, grifo do autor.
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ajustes necessários para a adaptação da economia às circunstâncias cambiantes do que
propriamente, a uma mudança estrutural no sistema econômico existente.82
De forma que,
ao final do auge minerador houve apenas um fortalecimento daquelas estruturas
produtivas, que se rearticularam em torno do mercado interno.
Seja como meio de reduzir os gastos da empresa aurífera, produzindo os produtos
básicos para a subsistência dos escravos, seja como alternativa econômica válida para a
aquisição do precioso ouro através da venda dos produtos localmente, ou mesmo para a
própria sobrevivência, a atividade agrícola esteve presente em Minas Gerais desde a
implantação da empresa mineradora, permitindo a “montagem” e garantindo a “expansão
da atividade mineradora, bem como foi a alternativa adotada quando da crise dessa mesma
atividade”.83
O estudo do mercado de propriedades rurais do termo de Mariana, Comarca de Vila
Rica, entre os anos de 1711 e 1780 revela características importantes da relação que a
atividade mineradora mantinha com a atividade agrícola e pastoril em Minas Gerais. A
análise das negociações de propriedades rurais em comparação com as das propriedades
urbanas e dos serviços de mineração poderá nos revelar como a queda da mineração se
refletiu neste mercado. Os dados agregados até o momento, que tratam de 892
propriedades rurais negociadas de 1711 até 1750, já nos oferecem algumas respostas para a
relação mantida entre a agricultura e a mineração no ambiente mais reduzido, ou seja, na
reprodução das propriedades rurais. Veremos uma estreita ligação- em muitos casos
ligação física- entre ambas as atividades que nos permite inferir que o espaço minerador do
termo de Mariana era também um espaço produtor agrícola.
Mineração e agricultura: um espaço de reprodução conjunta.
O sentido do povoamento das Minas Gerais configurou-se, de modo geral, de
acordo com as descobertas de novos ribeiros e córregos auríferos. Cada novo descoberto
era demarcado e distribuído em datas minerais através das cartas de datas emitidas pelo
guarda-mor responsável pela distribuição das mesmas terras. Damasceno afirma que:
...na região dos descobrimentos, as primeiras concessões de terrenos não se
fizeram como em outras partes do Brasil, através de cartas de sesmarias; estas
82
ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de. Alterações nas unidades produtivas mineiras: Mariana – 1750-
1850. Niterói, UFF, 1994 (dissertação de mestrado, p. 207. 83
GUIMARÃES, Carlos Magno & REIS, Maria Liana, Op. Cit, p. 24-25.
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vieram depois, ‘como que a reboque das datas de mineração e dos primeiros
acampamentos’. Este fato em muito contribuiu para o rápido processo de
povoamento e para a maior densidade populacional que se verificaram em
Minas84
.
Enquanto para a sesmaria se concedia uma légua em quadra, a data de terra
mineral era medida segundo uma unidade bem menor, a braça em quadra85
. Na Vila do
Carmo, suas freguesias e paragens, povoadas e conformadas na primeira metade do século
XVIII com o sentido que lhes dava a mineração, seguiu a mesma lógica: núcleos de
exploração aurífera densamente povoados, pipocado por várias datas de explorações
auríferas que iam aos poucos se imiscuindo com as atividades agropastoris.
Não podemos afirmar ao certo o tamanho médio destas propriedades agrícolas, no
entanto, a análise da venda de dois sítios descritos com maiores detalhes nos fornece uma
amostra da extensão das mesmas. Ambos os sítios foram vendidos no dia 11 de outubro de
1712, um situava-se no caminho de Antônio Pereira para o mato dentro, tendo como
limites Antônio Borges de uma parte, Joseph Coelho de outra, e as vertentes do ribeiro dos
Monsus mais adiante, este sítio possuía 400 braças de terras em quadra86
. O outro sítio
limitava-se por um lado com uma estrada e por outros com outros quatro indivíduos.
Limitava-se também com águas vertentes para o Ribeirão do Carmo, media 500 braças e
situava-se no Sumidouro87
. Ambos os sítios tem em comum a proximidade com ribeiros
auríferos, mas em suas vendas não foi arrolada nenhuma data de terra mineral, o que não
significa que seus proprietários não as possuíssem. Possivelmente continuariam a mantê-
las, mesmo que colocando à venda as propriedades agrícolas levantadas em suas
imediações. Esta proximidade entre a mineração e agricultura era muito comum, para
Ângelo Carrara as datas [minerais] compõem o horizonte agrário para a quase totalidade
dos proprietários rurais. Além disso, os parquíssimos registros de concessões de datas
demonstram a mesma regra válida para as sesmarias: o mercado de terras é também um
mercado de águas minerais.88
De fato, serviços de águas, cartas de datas, faisqueiras, uma variada sorte de
trabalhos minerais com maior ou menor incentivo tecnológico (como roda de água de
minerar) em suas atividades extrativas estão presentes em um terço das propriedades rurais
analisadas.
84
FONSECA, Cláudia Damasceno, Op. Cit., 1998, p. 30. 85
Idem, p. 30. 86
AHCSM, 1º ofício, livro de nota 2, folha 100 verso. 87
AHCSM, 1º ofício, livro de nota 2, folha 102. 88
CARRARA, Ângelo A. Op. Cit., 2007, p. 156.
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Denominamos estes casos de propriedades mistas: que coadunavam a atividade
agrícola com a mineração. As propriedades que não possuíam nenhuma referência à
atividade mineradora foram denominadas simplesmente como propriedades agrícolas.
Podemos classificar a atividade mineradora inclusa nas propriedades mistas em dois
tipos: atividade mineradora direta ou indireta. A primeira foi definida por sua contigüidade
com a área produtiva agrícola da propriedade, demonstrando um vínculo físico direto e a
concomitância entre as atividades agrícola e mineradora dentro da propriedade. Estes casos
compõem 84,87% do total das propriedades mistas. Consideramos como atividade
mineradora indireta o serviço de mineração que é vendido junto com a propriedade
agrícola, mas que se constituía como um espaço de mineração que não apresentava
contigüidade física com a primeira, ou seja, estava estabelecido em outra área do termo.
A contigüidade física da atividade mineradora direta fica clara na venda de um sítio
localizado à Barra do Passa Dez no Rio Piracicaba no ano de 1717: “dois serviços de águas
metidas (nas) terras minerais um sito pela parte das casas do dito sítio e outro, pelo roçado
abaixo, acompanhando o Rio Piracicaba os quais houvera por título de os fazer com seus
escravos... de que tem cartas de datas... 89
” O proprietário, e então vendedor do mesmo
sítio, João de Melo do Rego, afirma que também o houve por o “fazer com o trabalho dos
seus escravos”, e da mesma forma incorreu em fazer os serviços minerais.
Se em outras regiões da colônia, como acima afirma Cláudia Fonseca, as cartas de
sesmaria proviam seu beneficiário de uma légua90
em quadra de terras, no termo de
Mariana a carta de data mineral apesar de prover os donatários com 2,2m (valor
correspondente a uma braça em quadra), parece ter sido um incentivo a se fazer uso das
terras em suas proximidades para produção de alimentos e criações de pequenos animais
que supririam, mesmo que parcialmente, a reprodução da atividade de mineração.
Em muitos casos o rio ou córrego onde se minerava passava por entre a parte
agrícola da propriedade, como uma espécie de divisor da propriedade. Muito embora, não
pareça tratar-se exatamente de uma divisa, funcionava como uma “marca natural” a
demonstrar o processo de constituição da estrutura da mesma propriedade. Em outras
palavras, após o início do trabalho ao longo do espaço demarcado nas terras minerais e
margens dos rios, o donatário tratou de construir pelas duas margens benfeitorias e
plantações, aproveitando as áreas ao redor dos trabalhos de mineração para a produção de
89
AHCSM, 1º ofício, livro de nota 6, folha 86 verso. 90
Segundo Ângelo Carrara a légua equivale à 6600m, para conferir pesos e medidas ver CARRARA, Ângelo
A. Op. Cit., 2007, p. 72-73.
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alimentos. Este é o caso de um sítio na paragem do Gualaxo, vendido em 1727 em cuja
menção aos serviços de mineração diz:
...uma roda de tirar ouro com 25 praças na dita roda e esta corrente de todo o
necessário e principiando a andar, 12 datas de terras medidas pelo Guarda-Mor
Caetano Álvares Rodrigues por quem foram passadas as ditas cartas (de datas),
cujo sítio lhe passa o rio pelo meio e de uma e outra parte tem terras...91
A parcela das propriedades mistas que não possuía os serviços minerais formando
uma unidade física juntamente com a parcela de terras voltada para a prática da
agricultura, possuía a atividade mineradora situada, em geral, na mesma paragem ou
freguesia. Portanto apesar de serem vendidas juntamente com a propriedade agrícola
encontravam-se fisicamente apartadas. De modo geral, pertenciam ao vendedor por inteiro
– quando ele era o único proprietário – ou em sociedade com um ou mais indivíduos, lhe
cabendo neste caso a meação ou partes fragmentárias coerentes com a quantidade de
sócios, ou de seu investimento em escravos ou no momento da compra. Seus limites eram
definidos na escritura de forma deixando claro a não associação física entre ambas.
Quando em setembro de 1725, o Tenente Coronel Domingos Vieira da Cunha
vendeu a Sigismundo de Araújo e Souza e a Domingos Fernandes Filgueira, um sítio e
roça na Freguesia de Catas Altas, lhes vendeu também a parte que lhe tocava da sociedade
em uns serviços de mineração na mesma Freguesia: “... dez cartas de datas que tem nas
capoeiras do Mestre de Campo Manoel Rodrigues Soares na paragem do Rio de São
Francisco da dita freguesia (de Catas Altas) em que é também sócio com o dito Paulo de
Araújo e o Mestre de Campo Manoel Rodrigues Soares...92
”.
A venda que fez Francisco Vieira Benfica do seu sítio e terras minerais à Domingos
Gonçalves da Cunha, em março de 1723, é um bom exemplo das duas situações que
analisamos acima, pois ele vendeu “um serviço de água que passa por dentro do mesmo
sítio que vem a ser o mesmo córrego que vai dos Camargos... como também oito praças
que tem no serviço da Cachoeira que se está [rompendo] no Rio Grande que vai para o
Gama...93
” (grifo meu). O local chamado Gama, ao qual a citação se refere, é uma paragem
da Freguesia dos Camargos.
Apesar de não ligadas diretamente, podemos perceber um grau de continuidade
entre ambas dado o fato de serem propriedades de um mesmo senhor e estarem situadas na
mesma paragem ou freguesia. O que nos leva a sugerir que este tipo de propriedade
91
AHCSM, 1º ofício, livro de nota 27, folha 74 verso. 92
AHCSM, 1º ofício, livro de nota 24, folha 100. 93
AHCSM, 1º ofício, livro de nota 20, folha 128 verso.
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agrícola teve por finalidade abastecer o setor extrativo do minério aurífero, se não
integralmente, ao menos com uma parcela dos víveres necessários a sua reprodução. Resta-
nos verificar até que momento tal quadro sofrerá transformações diante da queda da
produção mineradora e de que forma isso se refletirá no mercado das propriedades rurais
ao longo do tempo.
Abreviaturas
AHCSM - Arquivo Histórico da Casa Setecentista de Mariana/IPHAN regional
Referências bibliográficas
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Mariana – 1750-1850. Niterói, UFF, 1994 (dissertação de mestrado).
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Colonial, 1750-1822. Niterói, UFF, 2001 (tese de doutorado).
CARRARA, Ângelo Alves. Agricultura e Pecuária na capitania de Minas Gerais 1674-
1807. Rio de Janeiro, UFRJ, 1997 (tese de doutorado).
__________. Contribuição para a História Agrária de Minas Gerais – séculos XVIII-XIX.
Mariana: UFOP/Núcleo de História Econômica e Demográfica, Série de Estudos 1, 1999.
__________. Minas e Currais: produção rural e mercado interno em Minas Gerais 1674-
1807. Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2007.
CHAVES, Cláudia Maria das Graças. Perfeitos negociantes: mercadores das minas
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representações. In: Termo de Mariana: História e Documentação. Mariana: Imprensa
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Gerais (1700-1750). In: Revista do Departamento de História, Belo Horizonte: UFMG,
vol. 1, n. 2, pp. 7-36, jun. 1986.
ROMEIRO, Adriana. Os sertões da fome: A história trágica das minas de ouro em fins do
século XVII. In: SAECULUM – Revista de História, João Pessoa, jul./dez. 2008, p. 165-
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ZEMELLA, Mafalda P. O abastecimento das Minas Gerais no século XVIII. São Paulo:
HUCITEC/EDUSP, 1990.
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Brasil Império
O Diário do Rio de Janeiro à Luz da Historiografia: algumas reflexões (1821-1834).
Laiz Perrut Marendino*
Introdução
A história da imprensa no Brasil permanece encoberta de incertezas. Apesar dos
grandes progressos realizados por Werneck Sodré e outros, lacunas variadas percorrem as
fontes disponíveis. Discutirei alguns aspectos de um dos jornais menos discutido pela
historiografia no período das Regências, apresentando os rumos inicias de minha
investigação.
O jornal que discutirei é o Diário do Rio de Janeiro, primeiro diário criado no Rio
de Janeiro. Pretendo nesse texto expor as linhas gerais em torno da criação do Diário;
indicar seus objetivos, sua composição e sua circulação; apresentar a literatura mais
representativa acerca dele e da imprensa em geral de sua época.
Analise do jornal através das fontes
Foi o lisboeta Zefferino Vito de Meirelles o fundador do jornal. Criado no dia 1º de
junho de 182194
permaneceu sob o comando de Zefferino, que foi, ainda, seu primeiro
redator, até o ano seguinte, quando faleceu95
. As circunstâncias de sua morte são um tanto
obscuras. Sabe-se que Zefferino faleceu devido a um atentado, mas mesmo a data da morte
levanta problemas. Sacramento Blake96
sugere 12 de novembro de 1822. Contudo, Myriam
Pires, em sua dissertação de mestrado (UERJ, 2008), usa notícia do próprio jornal para
situar a morte de Zefferino em agosto de 1822.
* Graduanda em História pela Universidade Federal de Juiz de fora e bolsista de iniciação cientifica sob
orientação da Professora Drª Silvana Mota Barbosa 94
Zeferino Vito de Meirelles. “Plano para estabelecimento de um útil e curioso Diário nesta cidade”. Diário
do Rio de Janeiro, nº 1, 1º de Junho de 1821. 95
PIRES, Myriam Paula Barbosa. Impressão, sociabilidades e poder: três faces da tipografia do Diário na
corte do Rio de Janeiro (1821 – 1831). Rio de Janeiro, 2008. p. 98. 96
BLAKE, Augusto Vitorino Alves Sacramento. Dicionário Bibliográfico Brasileiro. Rio de Janeiro:
Imprensa Nacional, 1899.
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O substituto de Zefferino foi Antônio Maria Jourdan, personagem sobre o qual
ainda não detenho maiores informações. O jornal permaneceu dirigido por ele durante os
anos seguintes, anos nos quais o jornal se consolidou conforme as propostas editoriais
criadas por Zefferino Meirelles97
. Que propostas eram essas? Em primeiro lugar, Meirelles
preconizou que o jornal deveria ser marcadamente informativo. O plano de
estabelecimento do Diário98
elencava a análise meteorológica, anúncios e notícias
particulares (“inclusive anúncios dos divertimentos e espetáculos públicos”) e outras
informações essenciais como seus motes. O perfil do jornal conservou-se assim ao menos
até 1834, o que é bastante interessante, já que, ao largo dessa conjuntura, foram editados
muitos diários e pasquins deliberadamente criados para a propaganda política das correntes
então existentes. O Diário do Rio de Janeiro escapou a tais discussões, embora tenha
incorporado o noticiário oficial (extratos de debates ocorridos no senado, etc.) em seu
escopo. Nos periódicos doutrinários, cujos assuntos apresentavam caráter diretamente
político, as matérias traziam à tona a opinião explícita de seus redatores acerca dos
episódios ocorridos.99
No caso do Diário, essas opiniões não estão claramente colocadas, e,
para o ano de 1834 em geral e para a Assembleia Constituinte então ocorrida em particular,
vital em meu estudo, não pude encontrar um artigo que manifestasse alguma postura do
jornal em relação aos acontecimentos mais significativos100
. Tudo isso levou-me à
conclusão inicial de que o Diário se constituía, afinal, como um verdadeiro mosaico das
informações consideradas úteis ao público leitor.
Em termos de circulação do jornal, pode-se inferir alguns dados a partir da
documentação. Não tendo disponível a tiragem do Diário, optei por buscar o seu valor de
subscrição e de compra avulsa, comparando-o aos valores de outros periódicos. De fato, o
Diário era uma publicação de baixo custo: uma edição avulsa custava em torno de 40 réis
na época de sua fundação. Seu preço subiu para 60 réis ao redor do ano de 1831, preço
inalterado até 1834, limite de minha análise. O valor era equivalente a cerca de 5kg de
milho (em valores médios anuais, já que as flutuações dos preços poderiam ser
devastadoras). Os demais jornais custavam, em média, 100 réis. O valor de subscrição
inicial era de 640 réis, metade do preço de um jornal avulso. De todo modo, creio que os
97
Diário do Rio de Janeiro. 1821 – 1831. Rio de Janeiro. Microfilmes sob a guarda da Biblioteca Central da
UFJF. 98
Conferir nota nº 3. 99
BASILE, Marcello Otávio Néri de Campos. O Império em Construção: projetos de Brasil e ação política
na Corte Regencial. Rio de Janeiro, 2004 [Tese de Doutorado]. Instituto de Filosofia e Ciências sociais.
Universidade Federal do Rio de Janeiro. 100
Diário do Rio de Janeiro, Janeiro – Agosto de 1834. Rio de Janeiro.
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dados bastem para sinalizar o maior alcance potencial deste periódico em relação a seus
concorrentes. O seu conteúdo altamente informativo conduz-nos a parecer semelhante,
uma vez que devia buscar o maior público possível, e não, por exemplo, especificamente
partidários de dada corrente política.
Analise da bibliografia sobre a imprensa no período
Lúcia Maria Bastos P. Neves, em seu texto101
, aborda a questão da imprensa e da
consequente informação que chegava à população, evidentemente a elite, no inicio da
década de 1820. Trazidas pelo vintismo Português as ideias liberais chegavam ao Brasil a
partir de 1820, ganhavam divulgação inédita através da Imprensa, muitos jornais e folhetos
circulavam dos dois lados do Atlântico. Como sabemos, nessa década, a imprensa no
Brasil começava a dar seus primeiros passos, existiam ainda poucos jornais, com pequena
circulação. É nesse contexto que situamos o Surgimento do Diário do Rio de Janeiro.
Segundo Neves, o surgimento na Imprensa no país foi significativo para o aumento
da preocupação coletiva com o político até então inexistente. Além de ter contribuído para
o aparecimento de novos espaços de sociabilidades como cafés, livrarias, academias, onde
liam e discutiam as notícias trazidas à luz pelos periódicos, esboçando a formação de uma
esfera pública de poder.
Além de examinar a documentação, convém esclarecer as considerações já traçadas
pela literatura acerca desses problemas no referido jornal. Como ressaltei, poucos
dedicaram ao Diário mais do que atenção parcial em estudos de maior fôlego. É o caso de
Nelson Werneck Sodré, cuja História da Imprensa no Brasil (1966) aborda o Diário do
Rio de Janeiro brevemente. Também refletiram sobre o periódico Carlos Rizzini (em O
livro, o jornal e a tipografia no Brasil, 1945) e Hélio Vianna (Contribuição à História da
Imprensa Brasileira, 1945). Mais recentemente, a história do Diário do Rio de Janeiro
ganhou uma investigação de maior fôlego em dissertação de mestrado de autoria da
pesquisadora Myriam Pires, intitulada Impressão, sociabilidades e poder: três faces da
tipografia do Diário na Corte do Rio de Janeiro (1821-1831). Defendida na UERJ no ano
de 2008.
101
NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira. A “guerra das penas”: os impressos políticos e a independência do
Brasil. Niterói, 1999. Revista Tempo – UFF.
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Considerei importante a análise das obras de Sodré e Myriam Pires. Nelson
Werneck Sodré102
dedicou apenas poucas citações ao referido jornal, mas foram capazes de
influenciar toda uma geração. Em seu livro trata o Diário como “meramente informativo”,
veículo de anúncios, imprensa “neutra”, cuja existência não teria interferido na cena
pública, constituindo uma “folha omissa”. Em certo sentido, como salientei, é válido
concordar com as afirmações de Sodré. Todavia, sua insistência na neutralidade do jornal,
sua completa isenção, merece, no mínimo, um olhar mais atento, algo que pretendo fazer
no decurso da pesquisa. Entretanto, o próprio Sodré abriu um caminho para solucionar a
questão. Ele ponderava que, a partir de 1831, o Diário teria assumido um posicionamento
de caráter político, ligando-se ao grupo dos caramurus. Voltarei em breve a esta colocação.
Sodré foi, também, o responsável por divulgar os célebres apelidos do jornal, como
“Diário do Vintém” e “Diário da Manteiga”. O primeiro fazia menção ao seu preço e o
segundo aos seus anúncios que, entre outros produtos, noticiavam diariamente o preço da
manteiga. Tais apelidos ficaram marcados na historiografia, sobretudo porque Sodré
afirmara que eles faziam parte do vocabulário da época. Em conjunto, essas ideias apenas
reforçam seu argumento central, isto é, o de que o periódico não teria tido qualquer valor
enquanto mecanismo de difusão de opiniões políticas e enquanto agente interventor no
tecido social.
É forçoso colocar em debate as conclusões de Sodré. Segundo Myriam Pires, não
existem documentos que demostrem, por exemplo, que apelidos evocados por Sodré
fossem utilizados no contexto do Diário103
. O mesmo pode-se dizer quanto ao apelido
“Diário do Vintém”, pois, embora o valor do periódico fosse de fato baixo, ele excedia as
expectativas que o adjetivo empregado por Sodré poderia suscitar nos leitores (ele custou
inicialmente o dobro e, depois, o triplo do que Sodré sugerira).
Seguindo as definições de Francisco Falcon, Miriam trata o Diário como um
periódico ligado aos valores das “Luzes”. No Brasil, tais valores, tolerância,
humanitarismo, pedagogia e utilitarismo teriam sido disseminados em várias parcelas da
sociedade, tendo a imprensa uma atuação importante. Aqui apresentavam-se com maior
intensidade os valores relacionados à pedagogia e ao utilitarismo. O traço utilitário aparece
representado na imprensa pelo Diário, que, por meio do incentivo à curiosidade como um
caminho de alcance ao conhecimento, representou uma das formas de difundir a razão pela
102
Ver SODRÉ, Neslon Werneck. História da Imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad, 1999. 103
PIRES, Myriam Paula Barbosa. Impressão, sociabilidades e poder: três faces da tipografia do Diário na
corte do Rio de Janeiro (1821 – 1831). p. 64.
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expansão do acesso à informação. Nesse sentido, o “homem comum” chegava mais perto
dos problemas sociais104
.
Após uma análise das edições de 1821 até 1834, nota-se uma postura de instruir o
público acercadas inovações tecnológicas e científicas do mundo, uma preocupação com as
melhorias da condição de vida na cidade do Rio e seções destinadas à medicina e seus
avanços no trato das doenças. Concordando com a autora, embora o Diário não criticasse
diretamente o governo, foram trazidos por sua imprensa opiniões essenciais para o
aparecimento de uma nova forma de conformação social. Segundo Lúcia Neves, “embora
alguns jornais assumissem supostamente uma postura neutra, destinada a transmitir
meras notícias, como o Diário do Rio de Janeiro e o Volantim, muitos acabavam por
transcrever artigos publicados em outras regiões, adquirindo também um caráter
político.”
Isso poderia nos levar a uma revisão dos argumentos de Sodré (de que a partir de
1831 o jornal serviu à política caramuru)? Ainda é cedo para afirmá-lo, mas poderia
levantar um dado que se articula com as proposições de Pires quanto à postura ativa do
jornal, agora do ponto de vista político. Embora não houvesse de fato propaganda política
elaborada pelo jornal, uma de suas seções era certamente ligada a esse aspecto. O Diário
publicava, desde sua fundação, notícias de outros jornais em suas páginas, numa seção
chamada “obras publicadas”. Se considerarmos as notícias enquadradas nesta seção
durante o ano de 1834 até a promulgação do Ato Adicional, vislumbramos algumas
informações interessantes: dentre as obras publicadas, constata-se forte presença de
publicações vinculadas aos jornais exaltados (10 citações de jornais exaltados num
universo de 25 periódicos em algum momento referidos). Além desses, havia menções a
jornais moderados (4 citações) e Caramurus (3 citações), bem como outros 8 jornais que
não pude filiar a alguma das correntes supracitadas105
.
Fica claro, portanto, que não havia no jornal filiação política clara – o número
elevado de citações ligadas aos exaltados não é prova de filiação política, pois o número de
suas publicações excedia com folga as das demais correntes políticas, de modo que os
dados que colhi podem representar tão-somente a média proporcional das publicações
lançadas no período.
Considerações finais
104
Ibidem, p. 69. 105
Diário do Rio de Janeiro, Janeiro – Agosto de 1834. Rio de Janeiro.
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A presença de periódicos e folhetos no cotidiano da corte, envolvendo a maior parte
da elite letrada e alcançando, pelo “falar de boca”, até o público analfabeto, ajudou para o
aparecimento de uma esfera pública de poder. Nesses impressos encontra-se uma das mais
ricas fontes para identificar as ideias, os valores e os símbolos dos grupos políticos, no meu
trabalho, especificamente, os Liberais Exaltados, Liberais Moderados e Caramurus.
Num trabalho ainda em andamento já posso levantas algumas conclusões iniciais:
O Diário do Rio de Janeiro foi realmente, na época estudada, um jornal informativo, suas
intensões eram de transmitir as notícias e chegar ao maior público possível (o que podemos
inferir por se baixo custo), entretanto, não significava ser um jornal “omisso”, “neutro”.
Era informativo, não omisso e com isso conseguia intervir no tecido social da corte,
trazendo notícias que contribuíam para uma melhor forma de convívio social, como as das
sessões de medicina e urbanização.
Fontes:
Biblioteca Central da UFJF
Coleção Microfilmada do Jornal “Diário do Rio de Janeiro”, 1821 – 1867.
Coleção Microfilmada do Jornal “Aurora Fluminense”, 1834.
Coleção Microfilmada intitulada “Jornais Diversos”, 1834.
Referências bibliográficas
BASILE, Marcello Otávio Néri de Campos. O Império em Construção: projetos de Brasil
e ação política na Corte Regencial. Rio de Janeiro, 2004 [Tese de Doutorado]. Instituto de
Filosofia e Ciências sociais. Universidade Federal do Rio de Janeiro.
BLAKE, Augusto Vitorino Alves Sacramento. Dicionário Bibliográfio Brasileiro. Rio de
Janeiro: Imprensa Nacional, 1899.
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independência do Brasil. Niterói, 1999. Revista Tempo – UFF.
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PIRES, Myriam Paula Barbosa. Impressão, sociabilidades e poder: três faces da tipografia
do Diário na corte do Rio de Janeiro (1821 – 1831). Rio de Janeiro, 2008. [Dissertação de
Mestrado] Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ.
RIZZINI, Carlos. O livro, o jornal e a tipografia no Brasil 1500 – 1822. São Paulo:
Imprensa oficial do Estado/ Imesp, 1988.
SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad, 1999.
VIANNA, Hélio. Contribuição à história da imprensa brasileira. Rio de Janeiro: Imprensa
Nacional, 1945.
MOREL, Marco. O Período das Regências, (1831-1840). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
2003.
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História Política
O Movimento Higienista no Início do Século XX e a Discussão dos Grupos Escolares
de Juiz de Fora.*
Anderson J.A. Narciso**
Introdução
Ao se tratar da criação dos Grupos Escolares em Juiz de Fora – MG, a
historiografia atual nos remete a reforma João Pinheiro106
, que em 1906 vinha destinada
exclusivamente à educação pública. É neste contexto que os Grupos Escolares irão receber
todo um destaque sobre o avanço do ensino, em que os moldes republicanos marcam uma
nova etapa da educação em todo o país. A partir dessa reforma, com a criação dos Grupos
Escolares as então chamadas “escolas isoladas” aparentemente vão ser remodeladas de
acordo com os novos parâmetros adotados. Na maioria das vezes, estas escolas
funcionavam em lugares que originalmente não teriam sido projetados com o objetivo de
desempenhar tal função. O que acabou por acarretar na maioria das vezes, condições
desfavoráveis à qualidade do ambiente de ensino.
Juiz de Fora, considerada por muitos contemporâneos a “Atenas Mineira”,
apresentou nesta fase uma intenção de se projetar como agente construtora de um ensino
qualificado para os estudantes desta localidade. Não por menos, na primeira e segunda
década do Século XX, Juiz de Fora já estava sendo vista como precursora educacional, que
segundo relatos da época, possibilitava ao estudante local concluir seus estudos aonde
residia, sem precisar se afastar da família107
. Portanto, analisar a criação dos Grupos
* Este trabalho é um dos resultados do projeto intitulado Políticas de Educação, escolarização e estratégias de
Nação: a transição Império/ República e as quatro primeiras décadas republicanas, financiado pela
FAPEMIG e CNPq, coordenado pelo professor Dr. Marlos Bessa Mendes da Rocha, sediado na Faculdade de
Educação na Universidade Federal de Juiz de Fora. **
Graduando em História, pela Faculdade de História na Universidade Federal de Juiz de Fora e bolsista de
iniciação científica PIBIC/CNPq no referido projeto. E-mail: [email protected]. 106
João Pinheiro foi eleito Presidente do Estado de Minas Gerais em julho de 1906. Ainda no mês em que o
Presidente de Estado tomou posse, o Secretário de Interior Dr. Manuel de Carvalho Britto, que era o
responsável pela educação, anunciava a Reforma do ensino para Minas Gerais. 107
Artigo veiculado no Diário Mercantil do dia 15 de Fevereiro de 1913.
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Centrais de Juiz de Fora junto com o movimento higienista, é apenas mais uma etapa que
acrescenta o caminho educacional que esta cidade percorre ao longo de todo o século XX.
Juiz de Fora e os Grupos Escolares
Quando aconteceu na Província de Minas Gerais a reforma de 1906, se objetivava a
instalação de um ensino amplo que pudesse atender uma parte considerável da população
que por muitas vezes aclamava uma qualidade melhor para a educação. Eram por assim
dizer, as bases republicanas se instaurando nos cernes da educação. Juiz de Fora será uma
das primeiras cidades a contar com essa nova proposta para a educação que eram os
Grupos Escolares que tinham como função ressaltar o novo. Tinham que representar uma
reforma material, arquitetônica (dos espaços escolares) e por assim dizer do ensino e da
aprendizagem. Dentre os atores sociais presentes em todo esse processo, destacam-se
Estevam de Oliveira108
, Antonio Carlos Ribeiro de Andrada109
e José Rangel110
.
Em 04 de fevereiro de 1907, pelo Decreto nº. 1886 era instalado o Primeiro Grupo
Escolar dirigido por José Rangel, contendo em torno de 470 alunos matriculados. O
Segundo Grupo Escolar foi instalado em 23 de março, com 396 alunos. Ambos os grupos
irão ter o número de alunos elevado a entorno de 500, devido a matrículas extra-
regulamentares. A notícia da instalação pode ser observada através do Jornal do
Commercio:
Efetua-se hoje ás 11 horas a solemnidade da instalação do 1º grupo escolar desta
cidade. A esse acto poderão comparecer todos quantos se interessam pelos
assumptos que dizem respeito à instrução, pois não há convites especiais,
conforme nos informa o respectivo director nosso colega José Rangel. (Jornal do
Commercio, 04/02/1907, p.1).
De certa forma, a imprensa divulgava aquilo que, poderia ser o sentimento de
orgulho, por estar fazendo parte de um pioneirismo em Minas Gerais, com a instalação
destes grupos escolares.
108
Estevam de Oliveira era Inspetor de Ensino em Minas Gerais quando os Grupos Escolares começaram a
ser criados no estado em 1906. Era também proprietário do periódico Correio de Minas. 109
Antônio Carlos Ribeiro de Andrada exerceu entre os anos 1908 e 1912 os cargos de Presidente da Câmara
e Agente Executivo do Município de Juiz de Fora. 110
José Rangel, formado na Escola de Farmácia de Ouro Preto, foi diretor da Escola Normal Oficial de Juiz
de Fora e diretor de dois grupos escolares na cidade.
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Somente em 1915, o Primeiro Grupo Escolar passaria a se chamar Grupo José
Rangel, e o Segundo Grupo Escolar seria denominado Delfim Moreira, que por estarem
instalados em um único prédio passariam a ser conhecidos pela denominação Grupos
Centrais. Em 1909, depois de intensas discussões, o Grupo Escolar de Mariano Procópio,
neste referido bairro foi criado. Constava-se que existiam em torno de 300 crianças em
idade escolar nesta localidade de Juiz de Fora, e que necessitavam de um local mais perto
para estudo, do que o Grupo do centro da cidade. Após esse momento, Juiz de Fora fica
com um período de oito anos sem ter um Grupo Escolar novo fundado. Este caso se reverte
em 1917, quando é criado o Grupo Escolar de São Matheus.
Uma análise das condições higiênicas dos Grupos Centrais e de Mariano Procópio.
Os grupos escolares como modelos de escolas nesse momento, deveriam
corresponder a um parâmetro higienista moderno. É importante relacionar este movimento
com as propostas de Estavam de Oliveira uma vez que em seus discursos havia
comentários sobre a qualidade do ensino assim como sua estruturação. Dentre seus
conselhos e normas para uma qualidade higiênica, destaca-se a utilização e conservação do
espaço escolar, assim como adequação de dimensões e da capacidade de alunos nas salas
de aula. A localização e tamanho das janelas e portas, a ventilação, iluminação e mobiliário
a ser utilizado nas salas pelos alunos e professores também ganham ênfase, sempre
justificadas a partir do discurso higienista.
Entretanto o grande diferencial destes grupos deveria ser na proposição de terem
lugares construídos especialmente para a educação escolar. Porém em meio a uma
demanda que deveria ser atendida o mais rápido possível, destaca-se a questão da
instalação dos grupos escolares em prédios originalmente não construídos com a função de
abrigá-los.
Devido ao pequeno tempo entre a promulgação da Lei, em fins de 1906 e o início
da funcionalidade dos Grupos Escolares de Minas Gerais em 1907, caberia ao Estado o
papel de alugar, arrendar ou receber doações de prédios da municipalidade ou particulares,
para estes fins (BRAGA, 2009). Conseqüentemente haveria assim uma adaptação por parte
do Estado para que estes locais abrigassem os Grupos. Mas deixa-se claro que havia
também, projetos de construção de lugares novos, que abrigariam os grupos:
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A Secretaria do Interior tem à sua disposição o engenheiro José Dantas,
incumbido especialmente de todo o serviço relativo à construção e adaptação de
prédios escolares (...). Para a construção desses prédios devem os terrenos ser
escolhidos na parte mais central da localidade, com uma área de 8 a 10 metros
quadrados para cada criança e satisfazer ainda as condições de uma declividade
regular, facilidade da instalação sanitária e alguma distância de outras
construções. (Minas Gerais, 1907, p.35)
Em 1909 algo semelhante vai acontecer. Com a criação do Grupo Escolar de
Mariano, o estabelecimento de ensino inicialmente funciona em um prédio originalmente
não capacitado para receber um grupo escolar. Houve a efetivação do projeto de instalação
do grupo escolar de Mariano Procópio, ficando situado em prédio cedido pelo município
na Rua Bernardo Mascarenhas neste bairro. A princípio era urgente a sua instalação. O
grupo escolar, fixado neste bairro, encontrava-se distante dos grupos centrais. Se um aluno
do bairro Mariano Procópio estudasse na área central, precisava percorrer uma distância de
aproximadamente cinco quilômetros. Ou seja, sua localização beneficiou os moradores do
bairro e sua redondeza.
No caso do Primeiro e do Segundo Grupo Escolar, suas instalações acabaram
sendo adaptadas no que era para ser um palacete. Este foi construído pelo Comendador
Manoel do Valle Amado, em 1861, para presentear o Imperador D. Pedro II que viria a
Juiz de Fora devido à inauguração da Estrada de Ferro União Indústria. O Imperador por
sua vez recusa o presente e aconselha para que o espaço fosse usado para fins de caridade
(COHN, 2007). Entretanto, o prédio fica fechado por mais de quarenta anos, quando
somente em 1904 é doado para a Santa Casa de Misericórdia de Juiz de Fora, após a morte
do filho do Comendador, o Barão de Santa Mafalda. Ali seria abrigada a primeira Escola
Normal Oficial da cidade. Mas em 1907, após um acordo firmado entre a Santa Casa de
Misericórdia e o Governo do Estado, o local passa a pertencer ao Estado sendo no mesmo
ano a Escola Normal desativada, e a inauguração dos dois grupos escolares. Em relatório
de Estevam de Oliveira à secretaria do interior, o mesmo comenta sobre o edifício em que
funcionou a Escola Normal de Juiz de Fora. Segundo o inspetor, o prédio é vasto
constituído de dois pavimentos, o térreo e o superior, pertence ao patrimônio da Santa
Casa e está “assentado” ao governo do Estado por escritura pública (Relatório a
Secretaria de Instrução, 1907). Porém os Grupos Centrais ganharam este nome não por
qualquer característica. Preenchendo um quesito importante que é o da centralidade, Braga
(2009, p.124) destaca que o prédio em que fora instalado o grupo estava localizado na Rua
Direita - atualmente a movimentada Avenida Barão do Rio Branco, no centro da cidade -
figurando um lugar onde tudo acontecia: Local das confeitarias, dos passeios nas ruas, da
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chegada do trem de ferro na estação central, dos hotéis luxuosos, da passagem dos
bondes, das repartições municipais, enfim, local da maior concentração de pessoas. Era
deste modo, que uma escola instalada e realizada pela República deveria ganhar os olhos
da população, dando certa visibilidade para os projetos realizados pelo governo.
Já o Grupo Escolar de Mariano Procópio, teve seu processo um pouco diferente dos
Grupos Centrais. O prédio que foi cedido para o funcionamento do grupo de Mariano era o
mesmo edifício do antigo conselho distrital de Juiz de Fora. Em sua estrutura, achava-se
em quatros salas. Sua fachada que ficava de frente para a rua apresentava um prédio
simples, longe do modelo de grupo escolar, não tendo muitos detalhes. Mas Braga (2009,
p. 139) ressalta que suas janelas amplas permitiam a boa entrada de ar e iluminação nas
salas, tanto com as janelas abertas quanto com elas fechadas, uma vez que foi utilizado o
vidro. Outro detalhe da fachada é a presença de aberturas para os porões que facilitavam as
adaptações ao terreno com seus desníveis topográficos, arejando o prédio e protegendo seu
piso e assoalho. Ressalta-se que, posteriormente, o grupo recebeu o nome de Antonio
Carlos, em homenagem ao ex- Presidente da Câmara Municipal. Aliás, Antonio Carlos foi
um nome que muito contribuiu para a prosperidade deste grupo.
Ao estudarmos as condições desses grupos, porém, encontramos algumas
diferenças e irregularidades entre um e outro. Com os Grupos Centrais é clara a
preocupação que se tinha para o convívio do aluno e conseqüentemente sua saúde. Mas
balanços feitos pelo próprio diretor José Rangel, apontam que a instalação e
funcionamento do Primeiro e Segundo Grupo Escolar de Juiz de Fora encontraram
dificuldades. Em um relatório, por exemplo, do diretor para a Secretaria do Interior, datado
de 05/02/1907, comenta-se sobre as dificuldades encontradas para a adaptação do prédio,
visto a oposição feita pela Santa Casa de Misericórdia em relação a algumas modificações.
Rangel explica que o grupo foi instalado no prédio onde funcionava a Escola Normal, e
que nele não existiam carteiras suficientes para os alunos, por isso foram utilizadas as que
existiam nas escolas das professoras Maria da Silva Tavares, Sylvia Coutinho e Maria
Goulart, todas as professoras do grupo. Neste mesmo relatório, ainda se discute sobre a
uniformização, em que as professoras inicialmente eram as únicas a usar, entretanto com o
passar do tempo à diretoria conseguiu uniformizar também os alunos, contando com o
auxilio da população para o fornecimento de vestuário e calçados às crianças pobres.
(RANGEL, 1907). Outro problema enfrentado pelo diretor José Rangel foi a freqüência
escolar. Este por diversas vezes reclamou sobre as faltas praticadas pelos alunos, fazendo
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inclusive uma lista das possíveis causas em uma correspondência para a Secretaria do
Interior ressaltando que causas múltiplas e complexas contribuem para que a freqüência
escolar não seja, por enquanto, tão brilhante como fora para desejar. Dentre os motivos
mais destacados por Rangel estão a não obrigatoriedade de ensino, motivo que
desapareceria se nas localidades onde existem escolas em número suficiente, fosse real a
obrigatoriedade; o grande desenvolvimento das indústrias que atraem para suas oficinas os
filhos de proletários ainda em idade escolar; o espírito sectário que condena o ensino leigo,
instituindo os diversos credos, escolas que visam o proselitismo do que a difusão do ensino
consciencioso; a carência da repressão à vadiagem; a falta de compreensão dos pais de que
a freqüência às aulas é condição primordial para o adiantamento dos alunos - assim é que
sob o mais fútil pretexto, por uma simples necessidade de ordem domestica ou por uma
condescendência imperdoável, o aluno deixa de comparecer à classe, muitas vezes com
cumplicidade de seus responsáveis; o fluxo e refluxo de uma população flutuante que
reside parte do ano na cidade e por ocasião das campinas e colheitas transferem-se para as
propriedades agrícolas; e por último a indiferença do povo. (RANGEL, 1907). Para
contornar essa falta de freqüência, o diretor dos grupos escolares toma uma série de
medidas, como exigir dos alunos faltosos, justificativa escrita. Quando a ausência
prolonga-se há mais de dois dias, é enviada uma carta pelo diretor ou é feita uma visita à
residência do aluno por um professor.
Analisando a funcionalidade interna de acordo com o Regimento Interno dos
grupos escolares datado de 1907, os grupos deveriam apresentar para os alunos as devidas
condições higiênicas, assim como locais espaçosos para as aulas, além de uma varanda e
pátio coberto. Chama-se atenção para os artigos três, quatro e cinco deste Regimento:
Art.3º - Em cada sala de aula, numerada pela ordem das turmas de alunos além
do material de ensino, inclusive o quadro negro que deve ter, pelo menos, quatro
metros de comprimento, haverá uma mesa de gaveta com cadeira e estrado para
o professor, um armário fechado para objetos escolares, uma talha ou torneira
d’água potável, um tímpano de mesa e uma cesta para papéis. Na varanda ou
pátio de recreio de cada sexo haverá uma torneira e lavabo com toalha, devendo
esta ser substituída diariamente.
Art.4º - Todos os aposentos do prédio serão varridos à tarde de cada dia, e
lavados aos sábados, com panos umedecidos em água creolinada. Os quadros
negros serão também limpos para o serviço de cada dia.
Art.5º - O prédio escolar será pintado exteriormente e os aposentos serão ao
menos caiados uma vez por ano. (MINAS GERAIS, 1908, p. 5-6)
Nota-se a partir deste trecho, certa preocupação com a higiene dos grupos escolares,
dentre eles manterem a salubridade dos pátios. Em vários relatórios sobre os estados e
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condições dos grupos centrais, por exemplo, encontram-se hábitos de limpeza que
melhoram a estadia dos alunos naquele local, como a constante limpeza do pátio em que os
alunos merendavam. As limpezas se davam com repetidos baldes de água, a fim de fazer
desaparecer o inconveniente do mau cheiro que certamente se desprenderia de tal local se
não fosse tomada essa providência. Ainda aplicava-se o conceito de que seria
indispensável ao prédio residente do grupo escolar a existência de água potável canalizada
– essencial para a vida humana, e a possibilidade de se fazer o assentamento do esgoto para
o serviço sanitário.
O Grupo Escolar de Mariano Procópio, entretanto foi alvo de severas críticas de
inspetores locais. Em algumas visitas realizadas ao prédio, o Inspetor Escolar Raymundo
Tavares alertava para o estado em que se encontrava o grupo. Tavares garante que a
situação deste grupo era de certo modo desesperadora; eram diversos inconvenientes do
edifício provisório, já que em 1913 o prédio original já passava por reformas, solicitado
através de não-condições higiênicas. As salas já não eram tão espaçosas, criando um estado
inconveniente e mostra-se que a diretora era obrigada a gastar com seu próprio dinheiro
uma quantidade considerável de creolina para a limpeza e higiene das salas e banheiros.
Seu pátio, destinado ao recreio, era úmido por natureza e necessitava receber aterramento
com areia grossa para melhor prestar a seu fim. A situação aqui era alarmante. Mesmo
sendo reformado, ainda continuava a se perceber que aquele não era um local ideal para
receber um grupo escolar. O inspetor Antônio Raymundo da Paixão, mesmo reconhecendo
que o Grupo Escolar Antonio Carlos apresentava uma melhor qualidade de higiene, ainda
se preocupava com o tamanho das salas. E estes problemas foram se alarmando quando,
em 1915 o Grupo de Mariano passa por novos problemas. Desta vez em relação às chuvas.
A diretora Francisca Lopes chamou a atenção para esses problemas em correspondência
com o Estado. Mesmo tendo sido reformado em um curto espaço de tempo, os tetos já
apresentavam goteiras e suas paredes começavam a estragar. O pátio, constantemente
estando alagado, era propício a propagação de doença, sendo que certas vezes, a diretora
era obrigada a mandar os alunos de volta para a casa.
Infelizmente, esses problemas persistem durante um bom tempo. Constata-se que
até a década de 1920, o Grupo Escolar Antonio Carlos passou por momentos de
dificuldades, sendo elas de alagamento, rachaduras que ameaçavam o desmoronamento do
prédio, além de propagação de doenças. Mesmo sofrendo alguns reparos, não eram
suficientes para se tornarem permanentes. A situação só foi de fato se resolver, quando a
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partir de 1927, começou a se construir novos prédios para os grupos escolares não só de
Mariano Procópio, como também em São Matheus (atual Escola Estadual Fernando Lobo)
e no Botanágua, onde hoje funciona o Duarte de Abreu. Estes prédios foram inaugurados
apenas em 1929, quando o então presidente do Estado Antonio Carlos veio a Juiz de Fora
para inaugurá-los. Fora assim, um longo percurso para este grupo escolar.
Considerações Finais
Os Grupos Centrais, através do tempo demonstrou o máximo de empenho em tentar
transcorrer o movimento higienista. Pelas mãos do empenhado diretor José Rangel, os
grupos se empenharam em práticas de higiene e salubridade, assim como colocaram a
disposição dos alunos, dentista e médico que através da puericultura tentavam manter o
máximo de alunos com boa qualidade de vida. Fora um processo lento e gradual, mas
acabou por começar a desvincular no ensino alguns aspectos da então escola isolada.
O Grupo de Mariano Procópio, posteriormente “Antônio Carlos” percorreu um
longo caminho. Esteve instalado em um pequeno local, passou por diversas reformas, que
mesmo assim não adiantaram muito. Durante quase duas décadas enfrentou problemas que
vinham atingir diretamente a vida e o cotidiano do aluno. Mas por fim, mesmo que
demorado, o Estado propiciou o local adequado e próprio para que esse grupo escolar
funcionasse.
Segundo pensamento da época, os aspectos de higiene e condições de vivência,
influenciava o desenvolvimento integral da cultura do aluno. Através deste pensamento
possamos interpretar que, os grupos escolares foram de importância fundamental para a
disseminação das práticas que integrariam essa cultura. Seja de forma que o aluno
participasse mais do cotidiano escolar, transmitindo a consciência de se prevenir contra
doenças que afloravam a cidade de Juiz de Fora no início do século XX, pelo simples fato
de realizar as práticas de higiene, ou por lutarem por um ambiente mais adequado de
ensino. Portanto, pode-se perceber que, focar as práticas de higiene e a salubridade desses
grupos, é de certa forma reafirmar as mudanças que permearam na virada do século a
história da educação mineira, e que foram a partir delas, que diversas práticas higienistas se
disseminaram ao longo do século XX.
Referências bibliográficas
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Os Neo-institucionalismos e as Teorias Sociológicas da Ação: um debate teórico-
metodológico.
Felipe Araújo Xavier*
Durante as décadas de 1960 e 1970, principalmente entre os estudiosos norte-
americanos, as discussões teóricas e metodológicas sobre a análise das instituições foram
permeadas pelas perspectivas behavioristas, que focaram as ações individuais como
determinante dos eventos, e pelo “velho institucionalismo” que, descrito sumariamente,
baseou suas interpretações em leituras estruturais, globalizantes e homogêneas. 111
Nos anos de 1970 e 1980, em oposição aos trabalhados produzidos por ambas
correntes citadas acima, emergiram dentro da ciência política e da sociologia novas
abordagens teóricas que se auto-classificaram como “neo-instituicionalismo”.112
Apesar de
terem em comum as análises comparativas e o interesse no entendimento da interferência
das instituições na vida social e política, seus estudiosos não formaram um modelo teórico
homogênio, tendo como representantes três “escolas” denominadas como Institucionalismo
Histórico, Institucionalismo da Escolha Racional e Institucionalismo Sociológico.
Uma das diferenças marcantes entre estas correntes está nas distintas formas de
trabalhar a relação entre as instituições e atores em ação. Portanto, este trabalho tem como
objetivo levantar um debate teórico que resgata a relação entre estas diferentes correntes do
neo-institucionalismo e as teorias da ação. Desta maneira, apresento os diálogos entre: o
Institucionalismo Histórico e as perspectivas de ação comunicativa de Habermas e a de
ação racional de Adam Przewoeski; o Institucionalismo da Escolha Racional e a leitura
weberiana de ação racional apresentada por Boudon; e para finalizar, a relação entre o
Institucionalismo Sociológico e a interpretação de Peter Berger sobre a ação individual e a
construção do mundo social.
O Institucionalismo Histórico: a ação comunicativa e a escolha racional.
* Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Juiz de Fora na linha
das “Narrativas, Imagens e Sociabilidades”. 111
STEINMO, S. THELEN. K & LONGSTRETH, F. Historical Institutionalism in comparative politics.
In:Structuring politics – historical institutionalism in comparative analisys. n/d. 112
HALL, Peter A; TYLOR, Rosemary C. R. Três versões do neo-instituicionalismo. n/d.
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Além do combate à perspectiva behaviorista, o institucionalismo histórico
desenvolveu-se principalmente como reação às concepção homogênea de grupos políticos
construídas pelo funcionalismo estrutural, que dominou os anos 1960 e 70.113
Em
contrapartida, defendeu a organização institucional da comunidade como a principal
instância de estruturação do comportamento coletivo, contestando a visão que atribui este
posto às características sociais, culturais e psicológicas individuais.114
P. Hall e Taylor ressaltam que os teóricos do institucionalismo histórico tendem a
interpretar as instituições como “procedimentos, protocolos, normas e convenções sociais e
oficiosas inerentes à estrutura organizacional da comunidade política ou da economia
política”115
. Além disso, compartilham quatro características: a tendência de abordar a
relação entre instituição e comportamento dos indivíduos de forma geral; ênfase na leitura
da assimetria de poder; privilegiam a abordagem da trajetória dos períodos de crise
institucional; e a relação entre as instituições e determinados momentos políticos.
Aqui nos interessa a primeira questão levantada: como as instituições afetam o
comportamento dos indivíduos? Para P. Hall Taylor, dentro do institucionalismo histórico
foram utilizadas duas abordagens dessa questão: as perspectivas “culturalista” e
“calculadora”.116
Exatamente nesse ponto que encontro a aproximação do institucionalismo
histórico com os teóricos da ação Jürgen Habermas e Adam Przerworski.
Em seu texto, Relações com o mundo e aspectos da racionalidade da ação em
quatro conceitos sociológicos de ação, Habermas aborda o conceito de ação comunicativa
através de um fio condutor lingüístico, onde este tipo de ação se embasa na interação dos
sujeitos que agem e se comunicam numa relação interpessoal. Os atores buscam se
entender na situação da ação, para coordenar de comum acordo seus planos. 117
O conceito central é a interpretação que se refere à negociação das definições e
situações suscetíveis de consenso. Através deste conceito, o filósofo afirma que somente a
ação comunicativa pressupõe a linguagem como meio de entendimento em que os falantes
e ouvintes se referem ao horizonte pré-interpretado. 118
113
S. Steinmo et al., Structuring Politics. Historical Institutionalism in Comparative Analysis. Cambridge
University Press, 1992. 114
HALL, Peter A; TYLOR, Rosemary C. R. Idem (id.). 115
Idem (id.). 116
Idem (id.). 117
Habermas, J. Teoria de la accion comunicativa. Tomo I Racionalidad de la acción y racionalización social.
Ed Taurus. 1987. 118
Idem (id.).
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Dentro dessas relações comunicativas encontramos como uma espécie de plano de
fundo o mundo da vida, onde estariam imersos a cultura, entendida como um acervo de
saber; a sociedade, definida pelas organizações legitimas onde os participantes regulam
suas propriedades a grupos sociais, assegurando a solidariedade; e a personalidade
entendida como competências que convertem a um sujeito capaz de linguagem e ação, que
os capacita de tomar parte nos processos de entendimento e firmar sua própria identidade,
trazendo a possibilidade de mudança para os quadros cultural e social compartilhados. 119
Tratando da visão “calculadora”, Adam Przerworski teve importante influência
dentro desse debate. Na busca de conciliar as análises marxistas macroestruturais e o
individualismo metodológico, o cientista político apresentou sinais de aproximação com o
viés teórico da escolha racional.
Em seu texto, Marxismo e escolha racional, Przerworski chama atenção para o
desafio de fornecer microfundamentos para a teoria da ação marxista através da
focalização da análise nos atos individuais, em contraposição às visões globalizantes e
homogêneas que permearam as análises institucionais estrutural-funcionalistas. 120
Apesar de frisar o entendimento da busca do cálculo estratégico dos indivíduos na
intenção maximizarem o rendimento das ações para atingir seus objetivos, o cientista
político trabalha a analise das ações individuais dialogando com as tradições marxistas.
lançando as seguintes objeções: as preferências se alteram historicamente; o interesse
próprio é inadequado para caracterizar as preferências; sob certas condições, a ação
racional não é possível, mesmo que os atores sejam racionais.
Perante isto, o cientista político insere a concepção de análise da ação racional no
contexto socioeconômico dos atores ao afirmar que a racionalidade depende do sistema
econômico, chamando atenção para a especificidade da interferência do sistema
capitalismo na moldura das identidades. 121
Desta maneira, as práticas dos atores não partem das determinações estruturais, mas
também não são totalmente livres. As escolhas individuais estão dentro de um campo de
alternativas possíveis, que geram condições para entendermos características
macroestruturais e diferenças entre as distintas classes sociais.
O Institucionalismo da Escolha Racional.
119
Habermas, J. Teoria de la accion comunicativa. Tomo II Racionalidad de la acción y racionalización
social. Ed Taurus. 1987. 120
PRZEWORSKI, Adam. Marxismo e escolha racional. RBCS. N° 6. vol. 5. fev. de 1988. 121
Idem (id.)
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O Institucionalismo da Escolha Racional teve sua origem nos estudos sobre a
complexidade dos comportamentos políticos do Congresso Norte-americano ao analisar o
paradoxo entre a reunião de uma maioria na aprovação das leis e a multiplicidade de
preferências entre os legisladores. Para explicar tal “anomalia”, estudiosos procuraram
decodificar a interferência institucional nas ações dos parlamentares. 122
Segundo P. Hall e Taylor, em geral, quatro propriedades estão presentes nas
análises dessa corrente: o pressuposto que os atores compartilham preferências e se unem
para potencializar as estratégias e satisfazê-las; a vida política sendo composta por uma
série de dilemas na formação de uma ação coletiva; as atitudes dos atores como fruto de
cálculos estratégicos perante as expectativas dos prováveis comportamentos dos outros
atores; e as instituições como atores que estruturam e influenciam as alternativas da agenda
com intuito de potencializar os ganhos dos atores. 123
Entre os estudiosos da escolha racional encontramos como um dos principais
expoentes o sociólogo Raymond Boudon. Em seu livro Tratado de Sociologia, o francês
veio a trabalhar a teoria da ação racional no texto Ação, onde iniciou sua apresentação do
paradigma da Sociologia da ação através das palavras de Max Weber: “A sociologia só
pode ter origem nas ações de um, de alguns ou de numerosos indivíduos distintos. É por
isso que ela é obrigada a adotar métodos estritamente individualistas”124
.
Sendo assim, o sociólogo segue afirmando a existência de dois princípios
primordiais de análises da sociologia da ação. O primeiro seria o individualismo
metodológico, que foca o indivíduo dentro de uma situação de socialização para examinar
o universo social dos grupos. O segundo está ligado à ênfase na pretensão do sociólogo de,
através do principio da racionalidade dos atores, explicar os sentidos dos comportamentos
que dão origem às ações. 125
Explicando melhor estes dois princípios, o sociólogo deixa claro que a socialização
não determina a ação, mas influencia as preferências do sujeito e que para entendermos a
racionalidade dessa ação é necessário nos colocarmos na situação deles. Dessa maneira,
poderíamos obter as informações necessárias para decodificarmos os comportamentos, sem
projetarmos nossas próprias subjetividades. 126
122
HALL, Peter A; TYLOR, Rosemary C. R. Idem (id.). 123
Ibidem (ibid.). 124
BOUDON, Raymond. Tratado de sociologia – Rio de Janeiro. Jorge Zahar ed., 1995. pág. 33. 125
Idem (id.). 126
Idem (id.).
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Tratando do campo de mudança da escala de análise, Boudon chama atenção para
os efeitos de composição, atrelando seu método ao seguinte trajeto: identificar o ator ou a
categoria dos atores; compreender o comportamento dos autores; explicar esses
comportamentos, fazendo um exercício que vai do micro para o macroscópico, captando o
motivo da agregação dos comportamentos individuais. 127
Sendo assim, os efeitos de composição simples assumem formas de soma, onde
todos comportam ou tendem a comportar da mesma maneira, e os efeitos complexos
tomam formas mais elaboradas, sendo necessário o resgate do teorema de possibilidade,
teoria do jogo, teoria da garantia e do dilema do prisioneiro.
Em seu Dicionário Crítico de Sociologia, Boudon aprofunda um pouco mais este
debate sobre ação coletiva ressaltando que a consciência e o interesse comuns são
necessários, mas não são determinantes. Consequentemente frisa outras condições para a
composição das ações coletivas como: a maior probabilidade de ocorrer aderência entre um
número de indivíduos restrito; a influência da coerção na formação das ações coletivas;
assimetria entre os interesses e os recursos dos participantes; grupos latentes fragmentados,
onde ação se dá em cada fragmento; organização exógena; lealdade; e situações em que os
custos da participação são nulos ou onde não há nada a perder. 128
Neste mesmo dicionário o autor também trabalha o conceito de agregação como
uma questão fundamental para analisar a relação entre as ações e preferências individuais e
os efeitos coletivos que produzem. Para isto Boudon trabalha o fenômeno da segregação
como fruto das preferências explícitas, implícitas e das preferências por afinidade, sendo
que a terceira se diferencia das outras duas definições, já que nas primeiras o efeito
coletivo traduz as predileções dos atores e a terceira o efeito coletivo tem caráter
emergente em relação às preferências.
Assim, o conceito efeito de agregação é descrito como categoria que apresenta a
realidade em um método que permite explicar fenômenos estruturais que não podem ser
interpretados como produto direto das preferências dos atores.
Institucionalismo sociológico
127
Ibidem (ibid.). 128
BOUDON; Raymond. BOURRICAUD; François. Dicionário crítico de sociologia. Editora Ática S.A. São
Paulo, 1993.
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Na década de 1970, dentro da Sociologia, emergiu o institucionalismo sociológico,
que pautou suas abordagens nos âmbitos das práticas culturais que permeavam a
estruturação das instituições, combatendo a idéia de que estas organizações sempre seguem
uma racionalidade em busca da maximização de seu desempenho para atingir os objetivos.
129
Para Peter Hall e Taylor, o institucionalismo sociológico desenvolveu uma maneira
específica de análise, onde se destacaram as seguintes características: a definição das
instituições de maneira mais global do que a ciência política, levando em consideração
símbolos, padrões morais, modelos cognitivos, rompendo com a dicotomia “instituição” e
“cultura”; e o afrontamento da relação entre a ação individual e as instituições numa
perspectiva “culturalista”.130
Dentro desta abordagem, constato a influência da perspectiva do contrutivismo
social onde Peter Berger é um dos principais teórico. em suas obras A construção social da
realidade131
e O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião132
, o
cientista social norte-americano se ocupou em construir uma leitura que foca as ações dos
indivíduos dentro de uma realidade social, vendo o mundo como produto humano que
retroage constantemente sobre seu produtor.
Para sustentar tal declaração, P. Berger segue apresentando três categorias, que
ajudariam no entendimento dessa construção dialética da realidade. Sumariamente seriam:
exteriorização entendida como “efusão do ser sobre o mundo”; objetivação: “conquista por
parte dos produtos dessa atividade (física e mental) de uma realidade que se defronta com
os seus produtores originais como faticidade exterior e distinta”; interiorização: “é a
reapropriação dessa mesma realidade por parte dos homens, transformando-a novamente
de estruturas do mundo objetivo em estruturas de consciência subjetiva”. 133
Para entendermos o complexo processo de construção da realidade social, temos
que resgatar a interação dialética dessas categorias. Sendo assim, iniciando pela
exteriorização, o sociólogo assegura que o homem é exteriorizante por essência. Pois
carece de instintos especializados, dirigidos e determinados naturalmente, como os demais
129
HALL, Peter A; TYLOR, Rosemary C. R. Idem (id.). 130
Idem (id.). 131
BERGER, Peter e LUCKMANN, Thomas:A construção social da realidade:tratado de sociologia do
conhecimento. Rio de Janeiro, ed. Vozes, 1978, 4° ed. 247 pp. 132
BERGER; Peter. O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. Tradução: José
Carlos Barcellos. Revisão: Luiz Roberto Benedetti. Ed. Paulus. São Paulo, 1985. 133
Idem (id.).
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animais, necessitando assim de constituir estruturas sólidas, para instaurar uma estabilidade
à vida humana.
Sem uma relação pré-estabelecida com a natureza, o homem precisa produzir um
mundo social e colocá-lo em equilíbrio com consigo, onde este mundo torna-se,
dialeticamente, como já dito acima, invenção humana e logo elaborador deste mesmo
homem produtor.134
Este mundo socialmente construído pela exteriorização do homem seria o que
Berger conceitua de cultura, ou seja, a totalidade dos produtos do homem, materiais ou
não. Conseqüentemente, dentro da parcela imaterial da cultura encontra-se a sociedade,
que, na visão do sociólogo, seria fragmento privilegiado dela, já que os homens são
sociáveis por essência e a construção deste mundo, uma atividade coletiva. Deste modo, a
sociedade não só é resultado da cultura, mas também condição necessária dela, pois é em
seu interior que se estrutura, distribui e organiza a sua construção.135
Nesse processo de composição social da cultura, o homem constrói objetos,
materiais ou não, dos quais podem ser experimentados e aprendidos. De tal modo, esta
transformação dos produtos do homem em um mundo que estes atores confrontam fora de
sua subjetividade, seria o que o sociólogo define como objetivação. 136
Na visão de Berger, para que isso ocorra, seria necessário um reconhecimento
coletivo de uma dada realidade objetiva, pois limitada à consciência individual, não
existiriam nas consciências dos demais sujeitos sociais. Por isto, inserir-se numa cultura é
compartilhar de um mundo de objetividades, e a sociedade, como parcela da cultura, só é
organizada, ou seja, objetivada, se imposta à relutância coletiva. 137
Contudo, dando uma ênfase à ação dos atores e à constituição de uma leitura de
realidade social em movimento, Berger explora a capacidade re-significação dos produtos
culturais, por meio da interpretação subjetiva dos indivíduos. Para isto, o sociólogo utiliza
a categoria de interiorização entendida como a “reabsorção na consciência do mundo
objetivado de tal maneira que as estruturas deste mundo vêm a determinar as estruturas
subjetivas da própria consciência”138
. Além disto, descreve o processo de socialização,
remetendo à função normativa da sociedade em relação à consciência individual.
134
Idem (id.). 135
Ibidem (ibid.). 136
Idem (id.). 137
Idem (id.). 138
Idem (id.).
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Contudo, essa socialização apenas atingiria êxito ao constituir uma simetria entre o
mundo objetivo e o mundo subjetivo.139
E como Berger deixa explicito, essa harmonia
nunca poderia ser concluída, pois os indivíduos se apropriam ativamente do mundo
objetivado por meio de uma contínua conversação com a realidade social e, neste contexto,
os sujeitos estão ininterruptamente re-significando esse mundo objetivado, do qual
necessita de plausibilidade subjetiva para se manter. 140
Deste modo, quando a conversação com o mundo objetivo é rompida, o status de
realidade social objetivada, em voga, perde sua plausibilidade. Com isso o mundo objetivo
se coloca em reordenação que, por conseguinte, geraria um novo entendimento da
realidade socialmente construída. 141
Visto isto, o sociólogo deixa afirmar que o processo de interiorização é entendido
numa dialética que inclui momentos da exteriorização e objetivação, já que o indivíduo é
formado na continua conversação em que é participante ou exteriorizante, e o mundo
objetivo é apropriado ativamente por ele. Conseqüentemente, enxergamos que as estruturas
sociais e o processo ordenador do mundo se perdem em meio do precário processo
solidificador de seu mundo ou de sua segunda natureza, da qual Peter Berger chamaria de
cultura.
Conclusão
Como vemos, apesar das afinidades e similaridades, os neo-institucionalismos
alimentam diferenças nas bases teóricas que solidificam seus trabalhos. Tais informações
sobre a relação entre o institucionalismo histórico e as perspectivas de ação comunicativa e
ação racional, o institucionalismo da escolha racional e a leitura weberiana de ação
racional e o institucionalismo sociológico e a visão construtivista são essenciais para
entendermos o cerne das diferentes perspectivas do neo institucionalismo e seus
pressupostos teóricos que dão vivacidade ao empirismo das suas análises baseadas na
concretudo dos atores em ação.
Referências bibliográficas
139
Idem (id.). 140
Idem (id.) . 141
Idem (id.).
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BERGER, Peter e LUCKMANN, Thomas:A construção social da realidade:tratado de
sociologia do conhecimento. Rio de Janeiro, ed. Vozes, 1978, 4° ed. 247 pp.
BERGER; Peter. O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião.
Tradução: José Carlos Barcellos. Revisão: Luiz Roberto Benedetti. Ed. Paulus. São Paulo,
1985.
BOUDON, Raymond. Tratado de sociologia – Rio de Janeiro. Jorge Zahar ed., 1995.
BOUDON; Raymond. BOURRICAUD; François. Dicionário crítico de sociologia. Editora
Ática S.A. São Paulo, 1993.
HABERMAS, J. Racionalidad de la acción y racionalización social. Ed Taurus. 1987.
HALL, Peter A; TYLOR, Rosemary C. R. Três versões do neo-instituicionalismo. n/d.
PRZEWORSKI, Adam. Marxismo e escolha racional. RBCS. N° 6. vol. 5. fev. de 1988.
STEINMO, S. THELEN. K & LONGSTRETH, F. Historical Institutionalism in
comparative politics. In:Structuring politics – historical institutionalism in comparative
analisys. n/d.
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Um Conflito de Difícil Solução: a atuação diplomática do ministro dos Negócios
Estrangeiros Silvestre Pinheiro Ferreira na questão da Cisplatina (1821-1823).
Sandra Rinco Dutra*
A região do Rio da Prata era “uma área de interseção entre as possessões ibéricas
na América com características homogêneas”, amplamente povoada e, por isso, com uma
estreiteza de relações entre os colonos de ambas as Coroas. Contudo, no início de 1680,
com a fundação da Colônia do Sacramento – “o primeiro núcleo urbano e de povoamento
efetivo na costa da Banda Oriental”142
–, em uma estratégia do governo português para
garantir a integridade do seu território, os conflitos tornaram-se recorrentes, e o domínio
desta obedeceu ao estado das relações entre Portugal e Espanha, conduzindo-se “em uma
sucessão de guerras e acordos”, que, a partir de finais do século XVIII, teve sua situação
agravada diante dos desdobramentos da Revolução Francesa, e, nesse sentido, dos
caminhos diplomáticos seguidos por um e por outro.143
Além disso, a perspectiva de
controle de tal região foi sendo cada vez mais aventada, não só com a intenção de agregar
aquele promissor entreposto comercial aos domínios do Império português, mas,
sobretudo, como um modo de retaliação contra a perfídia e as capciosas pretensões
espanholas.144
Isso porque, a partir do século XVIII, a região do Prata gradualmente
intensificou o seu comércio, dentro da lei ou à margem dela, e o contrabando com o Brasil
tornou-se uma “das bases da economia rural de toda a Província Oriental”. E o principal
ponto de escoamento dessas mercadorias era o Rio Grande de São Pedro, a capitania em
todo o Brasil “mais suscetível às trocas com a América espanhola, dado o seu caráter de
fronteira povoada”.145
* Doutoranda em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), orientada pela Prof.ª Dr.ª
Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves. Pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio de
Janeiro (FAPERJ). E-mail: [email protected]. 142
SANTOS, Eugénio Francisco dos. A Presença Portuguesa na Região Platina. In: Colóquio Internacional
Território e Povoamento: a presença portuguesa na região platina, 2004, Colônia do Sacramento. Colóquio
Internacional Território e Povoamento: a presença portuguesa na Região Platina. Colônia do Sacramento:
Instituto Camões, 2004. 143
PIMENTA, João Paulo G. Estado e Nação no Fim dos Impérios Ibéricos no Prata (1808-1828). 2ª ed. São
Paulo: Hucitec, 2006, pp. 58-56. 144
LYRA, Maria de Lourdes Viana. A Utopia do Poderoso Império. Portugal e Brasil: bastidores da política
(1798-1822). Rio de Janeiro: Sette Letras, 1994, pp. 108-9. 145
PIMENTA, João Paulo G. O Brasil e a América Espanhola (1808-1822). Doutoramento. São Paulo: USP,
2003, pp. 35-8 passim.
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Nesse turbulento período, muitos foram aqueles que se empenharam para reverter
as dificuldades enfrentadas pela Monarquia portuguesa. Dentre eles está Silvestre Pinheiro
Ferreira. Chegando ao Brasil em 1809, diante da sua lastimável condição econômica e dos
vetos, pelo ministério, as suas pretensões de obtenção de cargos, foi obrigado a abandonar
seus anseios de dar seguimento ao trabalho diplomático desempenhado anteriormente na
Corte de Berlim e suplicar diretamente ao príncipe regente um posto qualquer na
burocracia do Estado, que somente obteve em 1811, como deputado da Real Junta do
Comércio. Apesar das conquistas e do reconhecimento que foram alcançados ao longo do
período em que permaneceu no Rio de Janeiro (até 1821), não foram poucas as vezes que
Pinheiro Ferreira teve que lidar com questões cruciais, que também o proporcionaram,
dessa forma, muitos dissabores e desafetos na Corte fluminense. E, sem dúvida, a situação
mais difícil que se envolveu foi de cunho diplomático, e será um dos temas mais
fortemente discutido por ele à frente do ministério dos Negócios Estrangeiros e da Guerra,
a partir de 1821: a questão da Cisplatina, uma questão de muitas nuances, personagens e
interesses.
A queda de Napoleão e a volta de Fernando VII ao trono espanhol em 1814 (e com
ele a restituição das tendências absolutistas, com a recusa da constituição de Cádiz e as
efêmeras tentativas da retomada dos territórios americanos), propiciaram um relativo grau
de tranquilidade ao governo do Rio de Janeiro, mas este nunca se deu de forma concreta.
Segundo João Paulo G. Pimenta, após o restabelecimento da ordem europeia, o estado
decadente das Monarquias ibéricas, principalmente pela crise de relações com suas partes
constitutivas, “inviabilizará um rearranjo de poderes que, assentando exclusivamente em
solidariedades calcadas nos tradicionais valores dinásticos, ignorasse a concretização de
novas e alternativas formas políticas que agora tinham seu epicentro na América”. É por
esse motivo que a coroa portuguesa não deixou de negociar com o governo revolucionário
de Buenos Aires, atitude vista aos olhos da Espanha com extrema desconfiança.146
Além
desses fatores, o reavivamento do conflito entre Buenos Aires e Montevidéu alimentou as
aspirações de uma nova possibilidade de ação invasiva portuguesa na região platina. Para
tal, se pautaria na justificativa de resguardar a integridade das fronteiras.147
A partir de 1816, as pretensões lusitanas de adquirir influência na região já não
pareciam tão complexas frente ao movimento artiguista, dominante desde o ano anterior,
pelo seu desgaste, não resistindo, por fim, ao confronto com as tropas portuguesas, que
146
PIMENTA, João Paulo G., “O Brasil e a América...”, op. cit., pp. 174-5. 147
Ibidem, p. 197.
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invadiram novamente a Banda Oriental em 1817 (uma primeira investida lusa já havia
ocorrido em 1811), e definitivamente o extinguiram e a sua influência, em 22 de janeiro de
1820, na batalha de Tacuarembó.148
Com o advento da Revolução do Porto, em agosto de 1820, o governo português foi
obrigado a se voltar para novos problemas, agora de ordem interna. À medida que a
situação se agravava, mais aumentava a instabilidade política da Coroa, resultando no
movimento Constitucionalista do Rio de Janeiro, de 26 de fevereiro de 1821. No novo
ministério organizado em meio à agitação no Largo do Rocio, Silvestre Pinheiro Ferreira
foi nomeado para assumir as pastas ministeriais dos Negócios Estrangeiros e da Guerra.
Seu grande desafio à frente do ministério, como dito, será a questão da Cisplatina,
que, em suas próprias palavras, era “um dos assuntos mais importantes da minha
Repartição”.149
Mas essa não seria a primeira vez que Pinheiro Ferreira estaria envolvido
nesta matéria. Nove anos antes, em 1812, ele havia sido designado para negociar um
armistício com a República de Buenos Aires, que na ocasião estava em conflito com
Montevidéu. Contudo, prevendo o grande perigo em tratar com um governo insurgente e o
provável fracasso de tal empreitada recusou a missão. Devido a essa posição, ele enfrentou
a indignação do conde das Galveias (ministro dos Estrangeiros no período) e recebeu uma
ordem de prisão e exílio na Ilha da Madeira, que quase chegou a ser consumada a não ser
pelo fato de ter sido perdoado momentos antes da partida, quando já se encontrava a bordo
do navio.150
Em 1821, conforme nos explica Garrido Pimenta, a dificuldade de chegar-se a
consensos nesse período inseria a Cisplatina em um campo de grande complexidade, pois,
apesar de existirem algumas possibilidades para a resolução do caso, a melhor opção seria
a que tivesse menos consequências futuras, mas conjeturar não era tarefa fácil. Isso quer
dizer que, por um lado, diante do quadro que se encontrava, era conveniente que a
ocupação se tornasse permanente; mas, por outro, ela “representava uma realidade
incômoda ao regime constitucionalista português, além de ameaçar seriamente a segurança
do Brasil agora destituído da condição de sede da monarquia”.151
148
PIMENTA, João Paulo G., “O Brasil e a América...”, op. cit., pp. 204-6. 149
“Carta a Felipe Ferreira de Araújo e Castro expondo seus pontos de vista contrários à ocupação da
província Oriental”. Rio de Janeiro – abr. 1821. Revista del Instituto Historico y Geografico del Uruguay.
Tomo XII. Montevidéu, 1936, p. 163. 150
PEREIRA, José Esteves. Silvestre Pinheiro Ferreira: o seu pensamento político. Coimbra: Universidade
de Coimbra, 1974, pp. 17-18. 151
PIMENTA, João Paulo G. “O Brasil e a América...”, op. cit., pp. 340-1.
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Silvestre Pinheiro Ferreira era de opinião que as tropas portuguesas se retirassem
e fosse reconhecida a independência da Província Oriental. Entretanto, isso devia ser feito
como uma opção daqueles povos e não por imposição, caso contrário a retirada repentina
do controle português poderia ser encarada como um sinal de fraqueza monárquica. Essa
também era a concepção das Cortes de Lisboa. Diante do impasse, propunha o ministro dos
Estrangeiros a realização de uma convenção – a Assembleia dos Povos Orientais – aos
moldes das Cortes portuguesas, em que alguns representantes nomeados popularmente
decidiriam sobre o seu destino: continuar a Província Oriental sob a competência da coroa
lusitana, ou sob a competência de algum outro governo circunvizinho, ou, ainda, ter
reconhecida a sua independência. Aqui, é importante salientar que a ideia do congresso já
havia sido aventada por Pinheiro Ferreira em 1812, contudo, o conde das Galveias não
conferiu o menor crédito.
Em 16 de abril de 1821, quase dois meses após sua nomeação ao ministério,
finalmente ele conseguiu levar o assunto à deliberação no Paço. Conforme ele próprio
relatou, as justificativas da sua posição em relação aos entraves na fronteira-sul renderam-
lhe a aprovação unânime da sua proposta. Segundo ele, a presença das tropas na Província
Oriental, mesmo após o armistício com Buenos Aires, era um fator extremamente
prejudicial, por ser muito onerosa aos cofres reais que já não podiam mais arcar com as
perdas, e muito menos esperar por compensações. Além disso, a agitação, os desgostos, “a
devassidão e o mal exemplo” da Divisão dos Voluntários Reais havia chegado a tal ponto
que era provável que alcançasse um nível permanente de corrupção e a situação ficasse
ainda pior com os países vizinhos, ao passo que a falta de uma resolução sobre o assunto
por parte de D. João VI, ao chegar à Europa, resultaria em ainda mais difíceis negociações
com a Espanha. Outro ponto discutido por Pinheiro Ferreira foi a questão da organização
administrativa da Banda Oriental, caso ela se unisse ao Brasil. Ele acreditava que “decretar
S. M. a união ao Reino do Brasil e dar-lhe a forma de província dele organizando a sua
administração, magistratura, clero e força militar de uma maneira análoga às demais
províncias”, não poderia ser feito nem antes da iminente partida do rei, nem mesmo depois,
pois mesmo que fosse realizado da melhor forma possível, ainda sim não funcionariam,
uma vez que a tropa da província “jamais [poderia ser] tropa portuguesa”, muito menos o
corpo eclesiástico, os magistrados e os administradores; “e ainda mais que eles, os povos
jamais se poderão amoldar as nossas leis civis, criminais e de fazenda”. Nesse caso, ele
alerta que se o Brasil encontrava dificuldades para manter unidas suas próprias províncias
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– dá como exemplo a Bahia –, “o que se pode esperar de uma província que fosse anexada
a este reino por força de um decreto?”.152
Diante disso, Silvestre Pinheiro enviou ao Rio da Prata o emissário João Manuel
de Figueiredo, encarregado de duas missões: transmitir o reconhecimento, por parte do
governo português, da independência das províncias daquela região, de modo a estabelecer
a abertura, “de governo a governo, [de] todas as relações assim políticas, como comerciais
que o Direito das Gentes tem admitido entre as nações” – tudo muito bem disposto em um
ofício para o governador de Buenos Aires –; e também entregar as devidas instruções para
que o barão da Laguna concedesse a independência da Província Oriental, por meio da
formação de Assembleias Eleitorais para a escolha dos representantes do congresso.153
Ao analisar a atuação de Silvestre Pinheiro diante da questão, João Paulo G.
Pimenta afirma que o ministro teve uma boa percepção da realidade da conjuntura na
região do Prata, a qual “a união da Província Oriental ao Brasil encontraria sempre
obstáculos intransponíveis”, apesar do que reportava o barão da Laguna à Corte. Isso quer
dizer que se a posição oficial do governo sinalizava no sentido de conceder a
independência à província, Lecor pressionaria para que o congresso votasse a favor da
união ao Brasil.154
Para garantir que a Assembleia dos Povos Orientais deliberasse favoravelmente
pela incorporação, o general “subverteu as instruções recebidas de Silvestre Pinheiro,
ignorando as diretrizes de proporcionalidade de representantes por cada parte da Província
e de livre escolha dos mesmos pela população”. Isso quer dizer que, na prática, ele
manipulou a escolha da representação do congresso, de modo que quatorze dos dezoito
representantes eram partidários dos propósitos pretendidos pelo barão da Laguna. O
resultado disso foi a tão ambicionada adesão da Província Oriental ao Império do Brasil,
agora renomeada como Província Cisplatina, em 18 de julho de 1821.155
Quando Pinheiro Ferreira escreveu em abril mencionando “certos indivíduos
erigindo-se em interpretes da vontade” que “afiançam sobre sua palavra e só porque eles
assim entendem que conviria”, é bem provável que estivesse se referindo também ao barão
152
“Carta a Felipe Ferreira de Araújo...”, op. cit., pp. 163-5. 153
“Observações para o senhor João Manuel de Figueiredo na comissão, com que parte desta Corte, de
agente junto ao governo de Buenos Aires, e mais províncias do Rio da Prata”. Rio de Janeiro – 16 abr. 1821.
Correspondências de personalidades da época. Arquivo Histórico do Itamaraty. Loc.: Lata 172 / Maço 3 /
Pasta 11. 154
A decisão da incorporação se deu em 18 de julho, contudo, os trabalhos do congresso perduraram de 15 a
8 de agosto. – PIMENTA, João Paulo G. “O Brasil e a América...”, op. cit., pp. 343-7 passim. 155
PIMENTA, João Paulo G. “O Brasil e a América...”, op. cit., pp. 347.
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da Laguna. O ministro dos Estrangeiros não estava totalmente apartado da movimentação
na Cisplatina, ele tinha algum conhecimento das intenções de Lecor. Dois dias antes da
convenção, João Manuel Figueiredo comunicava-o um certo clima de segredo por parte do
general. O emissário reportou estar impedido de deixar Montevidéu em direção a Buenos
Aires devido à excessiva delonga de Lecor em providenciar-lhe uma embarcação – com a
justificativa de primeiramente realizar os ajustes determinados pelo soberano quanto à
Província Oriental –, responsabilizando-o, assim, por todo e qualquer eventual desgaste
proveniente dessa falha “com os governos das províncias limítrofes”. O representante
português somente chegou a Buenos Aires no dia 23 de julho, e obteve muito bom êxito na
sua missão, uma vez que o governo portenho, naquele momento, viu com bons olhos a
investida do monarca – agora de volta a Portugal – apesar da comoção naquela província
em razão do resultado da Assembleia dos Povos Orientais.156
Quando, em Lisboa, Silvestre Pinheiro recebeu notícias sobre o resultado do
congresso, imediatamente enviou um ofício ao barão da Laguna exigindo esclarecimentos
e informações de tudo quanto havia se passado na província platina desde o recebimento
das instruções, em 16 de abril. Indignado, ao obter do ministro dos Negócios do Reino do
Brasil “um exemplar impresso do Ato de Incorporação da Província Oriental do Rio da
Prata ao Reino do Brasil”, foi constrangido a crer nos boatos sobre uma possível
manipulação na composição do congresso e consequente resultado – uma vez que tal união
era uma suposição remota –, contrariando as ordens reais e causando um enorme embaraço
ao governo português, visto como dúbio e mal intencionado, principalmente pela Espanha.
Diante disso, requeria sem demora um pormenorizado ofício sobre todos os
acontecimentos em Montevidéu, no sentido de refrear tais rumores, ou, na melhor das
hipóteses, contornar os prejuízos.157
Ao observar o documento acima de Pinheiro Ferreira, notamos que Lecor não
apenas forjou a eleição, mas também protelou ao máximo em informar a Corte lisboeta os
efeitos das suas ações – Silvestre Pinheiro somente teve acesso ao Ato de Incorporação
pela interceptação da correspondência do barão da Laguna pelo governo regencial do
Brasil, e esta foi enviada ao Reino pelo conde dos Arcos. Mas a atitude do general estava
prestes a ter consequências muito mais grave. Com a volta de D. João VI para a Europa,
156
“Correspondência expedida de João Manuel de Figueiredo para Silvestre Pinheiro Ferreira”. Rio de
Janeiro – 8 ago. 1821. Correspondências de personalidades da época. Arquivo Histórico do Itamaraty. Loc.:
Lata 172 / Maço 3 / Pasta 22. 157
“Documentos relativos à Cisplatina (1821-23)”. Lisboa – 22 nov. 1821. Biblioteca Nacional do Rio de
Janeiro. Divisão de Manuscritos. Loc.: I-32, 22, 012.
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tiveram início tentativas de uma reaproximação com a Espanha. Naturalmente, os
acontecimentos na Província da Cisplatina repercutiram também naquele país, e a
possibilidade de uma tentativa de usurpação do território estremecia ainda mais as
complexas relações na Península Ibérica. E foi justamente isso o que reportou ao governo
lusitano, em 20 de novembro, seu representante em Madri, Manuel de Castro Pereira.
Segundo o agente português, as negociações em curso do novo tratado de comércio e
aliança entre Portugal e Espanha teriam sido gravemente prejudicadas pelas notícias “que o
governo de S. M. C. recebeu dos sucessos de Montevidéu e do reconhecimento público da
independência de Buenos Aires”, e afrouxado novamente os laços de amizade e a
confiança que estavam em processo de restabelecimento.158
Essa ocorrência levou Pinheiro
Ferreira, em 3 de dezembro, a repreender duramente Lecor por suas atitudes
insubordinadas, pela falta de informações oficiais, inexistentes na Corte portuguesa até
aquele momento e, principalmente, pela perda nas relações diplomáticas com a Espanha,
“uma potência com quem hoje mais [do] que nunca nos importa manter a mais leal e
estreita amizade”, conforme justificava o ministro dos Estrangeiros.159
Já o tratado de “recíproca defesa” aventado entre Portugal e Espanha, não chegou
a ser referendado, conforme nos explica Maria Luiza Coelho, devido à falta de
entendimento entre os países, fundamentalmente, pela questão da Cisplatina. De toda
forma, a inviabilidade de negociações – seja na Europa seja na América – tornou-se uma
constante com a reação antiliberal que se disseminava pela Europa, frustrando as tentativas
de defesa da instituição constitucional.160
Não tendo mais poder de ação, Pinheiro Ferreira
pediu demissão do ministério, em maio de 1823, mas manteve as honras do cargo.
Quanto a Província Cisplatina, com a independência do Brasil, esta se dividiu em
duas vertentes: a primeira, dos chamados imperiais, era formada pelos que defendiam a
continuação da união ao Brasil, sob o comando do general Lecor; a segunda, dos lusitanos,
apoiavam ficar sob a égide do governo português, com o brigadeiro Álvaro da Costa de
Souza Macedo no comando das tropas. Em fevereiro de 1824, os portugueses acabam
deixando a Província Oriental e o conflito. Contudo, a saída dos grupamentos lusos da
região debilitou os contingentes de ocupação, o que inevitavelmente levou à intensificação
158
“Correspondência expedida de Manuel de Castro Pereira para Silvestre Pinheiro Ferreira”. Madri – 20
nov. 1821. Correspondências de personalidades da época. Arquivo Histórico do Itamaraty. Loc.: Lata 172 /
Maço 3 / Pasta 4. 159
“Documentos referentes à Província Cisplatina”. Lisboa – 3 dez. 1821. Arquivo Nacional do Rio de
Janeiro. Loc.: Códice 546, vol. 1 / Diversos códices / NP. 160
COELHO, Maria Luiz R. C. A Filosofia de Silvestre Pinheiro Ferreira. Braga: Livraria Cruz, 1958, p. 35.
Anais do III Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade
Federal de Juiz de Fora.
ISSN: 2317-045X
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do movimento em prol da autonomia da Cisplatina, que no ano seguinte rebelou-se. Além
dessa sublevação, ainda Buenos Aires enxergou a possibilidade de conseguir a posse do
território a tanto tempo almejado.161
Assim, em dezembro de 1825, Brasil e Argentina declararam formalmente guerra.
Entretanto, como nos explica Garrido Pimenta, a ação beligerante foi extremamente
prejudicial e custosa para ambos os Estados, pois acarretaram uma grave crise financeira e
política. No Brasil, “a impopularidade do conflito fazia crescer a oposição ao imperador,
revelando a fragilidade política do regime”. Na Argentina, os conflitos entre federalistas e
unitários se intensificaram, e a ascensão do federalismo, mesmo que de um tipo peculiar,
dava fim a mais uma tentativa de anexação do território platino. O conflito terminou sem
nenhum vencedor, com a assinatura do tratado de paz em agosto de 1828, e a criação da
República Oriental do Uruguai162
.
Referências bibliográficas
- Documentação manuscrita
“Carta a Felipe Ferreira de Araújo e Castro expondo seus pontos de vista contrários à
ocupação da província Oriental”. Rio de Janeiro – abr. 1821. Revista del Instituto Historico
y Geografico del Uruguay. Tomo XII. Montevidéu, 1936.
“Correspondência expedida de João Manuel de Figueiredo para Silvestre Pinheiro
Ferreira”. Rio de Janeiro – 8 ago. 1821. Correspondências de personalidades da época.
Arquivo Histórico do Itamaraty. Loc.: Lata 172 / Maço 3 / Pasta 22.
“Correspondência expedida de Manuel de Castro Pereira para Silvestre Pinheiro Ferreira”.
Madri – 20 nov. 1821. Correspondências de personalidades da época. Arquivo Histórico do
Itamaraty. Loc.: Lata 172 / Maço 3 / Pasta 4.
“Documentos relativos à Cisplatina (1821-23)”. Lisboa – 22 nov. 1821. Biblioteca
Nacional do Rio de Janeiro. Divisão de Manuscritos. Loc.: I-32, 22, 012.
“Documentos referentes à Província Cisplatina”. Lisboa – 3 dez. 1821. Arquivo Nacional
do Rio de Janeiro. Loc.: Códice 546, vol. 1 / Diversos códices / NP.
161
GOLIN, Tau. A Fronteira: governos e movimentos espontâneos na fixação dos limites do Brasil com o
Uruguai e a Argentina. Porto Alegre: L&PM, 2002, p.332. 162
PIMENTA, João Paulo G. “Estado e Nação no Fim dos Impérios...”, op. cit., pp. 247-9.
Anais do III Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade
Federal de Juiz de Fora.
ISSN: 2317-045X
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“Observações para o senhor João Manuel de Figueiredo na comissão, com que parte desta
Corte, de agente junto ao governo de Buenos Aires, e mais províncias do Rio da Prata”.
Rio de Janeiro – 16 abr. 1821. Correspondências de personalidades da época. Arquivo
Histórico do Itamaraty. Loc.: Lata 172 / Maço 3 / Pasta 11.
- Bibliografia
COELHO, Maria Luiz R. C. A Filosofia de Silvestre Pinheiro Ferreira. Braga: Livraria
Cruz, 1958.
GOLIN, Tau. A Fronteira: governos e movimentos espontâneos na fixação dos limites do
Brasil com o Uruguai e a Argentina. Porto Alegre: L&PM, 2002.
LYRA, Maria de Lourdes Viana. A Utopia do Poderoso Império: Portugal e Brasil:
bastidores da política (1798-1822). Rio de Janeiro: Sette Letras, 1994.
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PIMENTA, João Paulo G. Estado e Nação no Fim dos Impérios Ibéricos no Prata (1808-
1828). 2ª ed. São Paulo: Hucitec, 2006.
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Internacional Território e Povoamento: a presença portuguesa na região platina, 2004,
Colônia do Sacramento. Colóquio Internacional Território e Povoamento: a presença
portuguesa na Região Platina. Colônia do Sacramento: Instituto Camões, 2004.