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1 AMAZÔNIA OCIDENTAL (1870-1970) O PROCESSO DE INCORPORAÇÃO DO ARTESANATO PELA GRANDE INDÚSTRIA NA FORMAÇÃO SOCIAL DO ACRE Mamed, Letícia H. (Mestranda); Bertero, José F. (Profº Drº Orientador). Programa de Pós-Graduação de Mestrado em Ciências Sociais. Universidade Estadual de Londrina-UEL. CAPES (Agência Financiadora). ([email protected] ). A sociedade capitalista global apresenta-se estruturada por um processo de acumulação do capital que, pela divisão social do trabalho e propriedade privada dos meios de produção, realiza a extração do excedente social na forma de trabalho não-pago, ou seja, cumpre a extração da mais-valia que subsidia a sua reprodução. No entanto, as formas histórica e concretamente determinadas, por meio das quais se dá essa extração podem variar enormemente. O sistema capitalista de produção está em constante processo de ampliação, em busca de novos campos produtivos e espaços para intercâmbio de mercadorias, imprescindíveis para a manutenção de sua lógica acumulativa. No âmbito desse movimento é que o capital assenta e consolida sua hegemonia, o que não quer dizer, de modo algum, homogeneidade. Fundamentalmente, o processo de desenvolvimento capitalista não é homogêneo, generalizado e nem se efetiva de uma única vez, embora, com o tempo, possa implantar-se de modo mais definitivo. Trata-se de um processo desigual porque a tendência à universalização não se realiza pela homogeneização dos processos de trabalho e produção. A heterogeneidade define o movimento do capital, justificando a desigualdade na repartição dos frutos da exploração. E, portanto, a particularização dos espaços sociais em termos produtivos é expressão desse desenvolvimento desigual e combinado. Neste trabalho, tomamos como objeto de estudo a formação social da Amazônia Ocidental – Acre, a servir de exemplo para a análise do processo de expansão e incorporação capitalista e dos seus mecanismos diferenciados de realização histórica. Espaço regional criado a partir das necessidades impostas pelo avanço da industrialização

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AMAZÔNIA OCIDENTAL (1870-1970)

O PROCESSO DE INCORPORAÇÃO DO ARTESANATO PELA

GRANDE INDÚSTRIA NA FORMAÇÃO SOCIAL DO ACRE

Mamed, Letícia H. (Mestranda); Bertero, José F. (Profº Drº Orientador).

Programa de Pós-Graduação de Mestrado em Ciências Sociais.

Universidade Estadual de Londrina-UEL.

CAPES (Agência Financiadora).

([email protected]).

A sociedade capitalista global apresenta-se estruturada por um processo

de acumulação do capital que, pela divisão social do trabalho e propriedade privada dos

meios de produção, realiza a extração do excedente social na forma de trabalho não-pago,

ou seja, cumpre a extração da mais-valia que subsidia a sua reprodução. No entanto, as

formas histórica e concretamente determinadas, por meio das quais se dá essa extração

podem variar enormemente. O sistema capitalista de produção está em constante processo

de ampliação, em busca de novos campos produtivos e espaços para intercâmbio de

mercadorias, imprescindíveis para a manutenção de sua lógica acumulativa. No âmbito

desse movimento é que o capital assenta e consolida sua hegemonia, o que não quer dizer,

de modo algum, homogeneidade. Fundamentalmente, o processo de desenvolvimento

capitalista não é homogêneo, generalizado e nem se efetiva de uma única vez, embora,

com o tempo, possa implantar-se de modo mais definitivo. Trata-se de um processo

desigual porque a tendência à universalização não se realiza pela homogeneização dos

processos de trabalho e produção. A heterogeneidade define o movimento do capital,

justificando a desigualdade na repartição dos frutos da exploração. E, portanto, a

particularização dos espaços sociais em termos produtivos é expressão desse

desenvolvimento desigual e combinado.

Neste trabalho, tomamos como objeto de estudo a formação social da

Amazônia Ocidental – Acre, a servir de exemplo para a análise do processo de expansão e

incorporação capitalista e dos seus mecanismos diferenciados de realização histórica.

Espaço regional criado a partir das necessidades impostas pelo avanço da industrialização

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nos países centrais, o atual Estado do Acre, passado mais de um século de ocupação, tem

na atividade artesanal de extrativismo da borracha o elemento representativo da base

econômica de sua reprodução social. Assim, a partir da tradição materialista-histórico-

dialética, realizamos uma investigação social empírica nessa região, tendo por objetivo

geral apreender a síntese através da qual o movimento do capital perfaz a constituição

econômico-social da área; e por objetivo específico, compreender o próprio movimento

histórico-contraditório operado pelo desenvolvimento capitalista no Brasil. No curso local

do processo capitalista, desdobrado de estímulos industriais internacionais e depois

nacionais, a região acreana foi ocupada e consolidada como base produtiva manufatureira,

artesanal e especializada, de uma única matéria-prima – a borracha – para a grande

indústria. Em face dessa conjuntura, nossa investigação está orientada pela seguinte

hipótese de trabalho: a ocupação e particularização do Acre em termos produtivos é

expressão da incorporação do artesanato pela grande indústria, consubstanciado no

processo de desenvolvimento desigual e combinado.

O debate deste estudo, embora elabore referências a momentos anteriores

e posteriores, procura dar conta do horizonte temporal que vai da década de 1870 ao início

da de 1970. Ao longo desses cem anos, desdobraram-se os momentos fundamentais para a

compreensão crítica do nosso objeto: por um lado, a passagem entre os séculos XIX e XX,

onde temos o predomínio das relações decorrentes da consolidação mundial da produção

industrial, como núcleo do desenvolvimento capitalista internacional em sua feição

monopolista; por outro, o quadro temporal no qual se desenrola o processo brasileiro de

industrialização, principiado na década de 1930 e consolidado após 1960, com a formação

do núcleo de indústrias pesadas e deflagração da fase monopolista do capitalismo nacional.

Buscamos, portanto, explicitar as complexas relações entre a economia extrativista da

borracha e a industrialização como determinações do espaço regional tomado para debate.

O processo de constituição da região acreana tem início na década de

1870, momento a partir do qual podemos identificar as determinações da gênese da

economia extrativista, e assentar os elementos para a compreensão do extrativismo

gomífero como um subsetor produtivo manufatureiro, formado sob o império das

indústrias dos países centrais. A implantação da empresa extrativista da borracha

representa o fenômeno econômico-social mais expressivo que teve lugar na Amazônia, na

transição entre os séculos XIX e XX. De simples “droga do sertão”, objeto da curiosidade

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das expedições científicas no Vale Amazônico, a borracha ganha importância devido à

utilização que, aos poucos, lhe foi sendo conferida, máxime com o progresso da indústria

automobilística na segunda metade do século XIX. Desde então, o produto gomífero passa

a integrar e a ajustar decididamente o cenário econômico e social da área menos explorada

e conhecida do território nacional. Mas diferentemente da função desempenhada pelas

“drogas do sertão” durante os séculos XVII e XVIII, que atuaram como uma das alavancas

na acumulação primitiva do capital, a borracha funcionou como matéria-prima do boom

industrial europeu e norte-americano. Nesse sentido, o capital industrial internacional foi o

responsável por comandar o amplo movimento de reconfiguração econômica da Amazônia

visando a instalação da empresa extrativista da borracha.

A inclusão da borracha entre os produtos regionais exportáveis se efetiva

em três fases: a primeira, enquanto “droga do sertão”, na forma de artesanato indígena; a

segunda, quando ocorre sua adaptação ao uso industrial, ou seja, quando se transforma em

matéria-prima para a indústria, graças ao desenvolvimento técnico-científico do método de

vulcanização; a terceira, após a invenção dos pneumáticos e o desenvolvimento da

indústria automobilística. Paulatinamente, entre os anos finais do século XVIII e as

primeiras décadas do século XIX, os desenvolvimentos tecnológicos ocorridos nos EUA e

na Inglaterra possibilitaram a domesticação do látex selvagem, abrindo amplas

perspectivas para sua aplicação industrial. Daí por diante, instalou-se nesses países um

novo ramo de atividades, a indústria de elastômeros e derivados, que propiciou profundas

mudanças na debilitada economia amazônica. A definitiva transformação da borracha em

matéria-prima é fruto da descoberta do processo de vulcanização1 por Charles Goodyear,

em 1839, o que promove sua incorporação em elevado número de processos de produção

industrial. Foi a partir desse novo processo que, na seqüência, John Boyd Dunlop inventou

os pneumáticos em 1888 e, desde então, estes passaram a substituir as rodas de aro de ferro

das carruagens. Logo após, seguiram-se outras invenções como a bicicleta e o automóvel,

que também solicitavam a borracha como matéria-prima.

1 No Amazônia, os índios tradicionalmente usavam a borracha para fabricar um calçado parecido com um chinelo. Porém, havia um inconveniente, pois, com o calor do sol, o látex acabava derretendo, tornando-se pegajoso. Assim é que a invenção do processo de vulcanização por Goodyear permitiu sua larga utilização industrial. Em suma, esse processo corresponde a um tratamento científico da borracha natural (crua) com átomos de enxofre, que a torna, mesmo sob altas temperaturas, mais elástica, resistente e insolúvel.

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O invento da vulcanização logo passou a ser aplicado quase que

simultaneamente em ambos os lados do Atlântico, ou seja, fundamentalmente tanto nos

EUA como na Inglaterra. Isso acrescentou os usos confiáveis e duráveis da borracha,

impelindo a indústria do setor a uma posição destacada na economia mundial. Estavam

criadas, assim, as condições para uma grande corrida às fontes abastecedoras dessa

matéria-prima, movimento paralelo à fase de expansão imperialista dos países centrais.

Isso fez com que a indústria de artefatos de borracha surgisse e se desenvolvesse não

apenas no contexto das transformações engendradas pelo capitalismo industrial, mas

também fundamentalmente vinculada à política imperialista da segunda metade do século

XIX. Essa política materializou-se através da ocupação dos territórios que abrigavam as

principais fontes supridoras de borracha crua e da sistemática exploração de suas

respectivas populações. Desse contexto fazia parte a Amazônia que, por motivos históricos

e fundamentalmente geográficos, começou a atrair a atenção da indústria de artefatos de

borracha. Notadamente, de todas as áreas onde se operava a exploração da floresta para a

extração da borracha, a Amazônia era a que oferecia maior segurança e amplas

possibilidades, seja pela quantidade quase ilimitada de árvores gomíferas, seja pela própria

produtividade destas árvores. Assim, ao passo que a demanda do produto se intensificou, a

Amazônia passou a sentir os bons efeitos da mudança.

Anteriormente, a exploração amazônica das “drogas do sertão” fez parte

de uma economia que nasceu como reserva e participou como peça da pré-história do

capital, na época de expansão do sistema capitalista em escala mundial. Já a exploração

gomífera se desenvolve tendo como objetivo economizar, via importação de preços

coloniais à borracha, o capital constante utilizado nos empreendimentos industriais das

novas potências mundiais. Quanto ao panorama interno da economia brasileira nesse

período, precisamente entre 1870 e 1930, o processo em andamento caracteriza-se pela

formação de um novo pólo econômico no país. Diante do esgotamento do Nordeste,

tradicional sustentáculo da economia nacional dos tempos coloniais, assiste-se ao

surgimento da liderança econômica da região Sudeste, representada por São Paulo, Minas

Gerais e Rio de Janeiro, através da cultura do café.

O investimento inicial para a implantação da atividade extrativa, antes do

apogeu da indústria gomífera, foi relativamente possível mobilizar dentro dos limites dos

recursos privados existentes na região amazônica. No entanto, a elevação dessa produção

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exigiu uma mobilização de capital de tal ordem que somente fontes externas de

financiamento poderiam dispor. Na passagem entre o século XIX e o XX, a procura

externa pela borracha apresenta rápido crescimento, assim como os preços do produto têm

trajetória ascendente. A sustentação da produção nessas dimensões naturalmente passou a

exigir novos e maiores investimentos: para o incremento da infra-estrutura de mercadorias,

transportes e comunicações; para a incorporação de novas áreas produtoras; e para a

superação da escassez de mão-de-obra no interior dos seringais. Pois bem, regionalmente

desenvolveu-se uma necessária articulação de investimentos estrangeiros e nacionais para

consolidar e desenvolver a economia extrativista da borracha.

Embora detendo nesse momento praticamente a supremacia da produção

de borracha, o Brasil não assumiu o financiamento para a organização e a montagem da

produção dessa matéria-prima. Ao Estado brasileiro interessava mais captar os impostos

sobre o volume exportado de borracha, ademais de estar concentrado sobretudo nos

negócios do café no Centro-Sul. Desse modo, foi o capital estrangeiro que

progressivamente constituiu o sustentáculo da atividade extrativa, quer quanto ao crédito

para as exportações e importações, quer como capital de giro para empréstimos aos

governos regionais. Assim, a política imperialista do grande capital monopolista encontrou

plena corporificação no financiamento da economia gomífera na Amazônia. Os capitais

externos foram os principais estimuladores da nova economia regional, ao passo que ficou

reservado um papel secundário ao capital privado interno e aos investimentos do Estado

nacional. Logo, o controle do processo de produção esteve essencialmente nas mãos dos

centros industriais situados na Inglaterra e Estados Unidos que, através das praças

importadoras de Liverpool e New York, determinavam os cursos da economia extrativista

da borracha.

Com um mercado externo em constante expansão a exigir maior volume

de produção gomífera, dilataram-se os negócios, ampliaram-se as áreas de extração,

aumentaram os riscos do empreendimento, e as relações comerciais tornaram-se mais

diversificadas, colocando na ordem do dia a necessidade de parceiros e, mais efetivamente,

uma divisão social do trabalho compatível com o complexo produtivo. A dupla função de

exportador-importador, por exemplo, foi dividida. Isto é, o exportador, que tirava de si a

tarefa também de importador, foi paulatinamente se especializando. Com essa alteração no

sistema, os personagens da nova ordem passaram a auferir seus lucros específicos: o agente

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inglês ou norte-americano, que se especializa apenas em exportar, obtém os rendimentos

dos negócios da exportação e câmbio; o agente português, que antes do apogeu da

economia gomífera já era o tradicional importador da região, nesse momento volta a se

especializar na função de comprar nos mercados externos, mas agora para financiar os

empresários da borracha, obtendo os lucros e juros dessa operação; o empresário da

borracha, quase sempre também português, representa o grande financiador local, que

obtém as vantagens inerentes ao financiamento dos produtores diretos – os trabalhadores

seringueiros.

Estabelecida a montagem desse sistema, uma verdadeira cadeia de

fornecimentos a crédito vai-se estruturando com a partilha dos riscos entre os vários elos

dessa cadeia. Destarte, estava organizada a grande máquina creditícia que se tornaria o

arcabouço de todo o financiamento da empresa gomífera na Amazônia – o sistema de

aviamento. Na virada do século XIX, esse sistema já se encontrava plenamente

solidificado, com suas funções bem definidas e especificadas, contribuindo para a

revitalização econômico-social da Amazônia. A montagem dessa ampla rede de negócios

na região corresponde à necessária combinação de interesses entre o capital comercial local

e as representações do capital industrial internacional ou ainda do capital de origem

nacional centro-sulista. Contudo, ainda que as firmas nacionais se fundam em capitais

próprios, nacionais, seu funcionamento se realiza através de operação articulada com

capitais forâneos. Portanto, o capital estrangeiro segue diversificando-se em um amplo

conjunto de atividades infra-estruturais, que engloba desde as mais específicas da

economia extrativista, como a participação no setor de aviamento, até o setor de serviços

urbanos.

O avanço do extrativismo gomífero pela Amazônia ocorre justamente no

momento em que a matéria-prima gomífera se constitui mercadoria cada vez mais

indispensável à Modernidade. Esse avanço está diretamente relacionado à expansão dos

limites geográficos nacionais, que se faz em direção às terras mais férteis e potencialmente

produtoras de borracha: as terras da parte mais ocidental da Amazônia, até então

pertencentes à Bolívia e hoje integrantes do Estado do Acre. O processo de ocupação da

região acreana é, assim, complexamente determinado: de um lado, pelas condições de

reprodução da sociedade amazônica; de outro, pela transformação da produção em ramo da

atividade científica, movimento que caracteriza as economias centrais nos momentos de

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afirmação da base produtiva dominada pelo capital monopolista. Foi a através da ruptura

com as condições regionais de produção, de origem colonial, que os movimentos da

economia e o padrão de acumulação vigente, determinados pela industrialização nos países

imperialistas, incorporaram o Acre como nova área de exploração gomífera. A partir de

então, estabeleceram-se os fundamentos da conexão produtiva entre a grande indústria dos

países centrais e o extrativismo gomífero dos seringais acreanos, por meio do qual o

movimento do capital consubstancia a incorporação do Acre à divisão internacional do

trabalho e nele instala um universo produtivo particular, organizado como manufatura,

especializado no monoextrativismo da borracha e comandado pelo exclusivo seringalista.

Em linhas gerais, a evolução histórica dos índices de produtividade

gomífera permite destacar que o extrativismo amazônico da borracha tenha se

desenvolvido ao longo de quatro fases distintas: 1) a de elevação inicial moderada, de 1830

a 1850; 2) a de melhoria do tirocínio, com desenvolvimento acelerado da produtividade, de

1850 a 1870; 3) a denominada de “adestramento nordestino”, com modesta elevação, de

1870 a 1890; 4) a acreana, de 1890 a 1910, de maior crescimento histórico. A fase inicial

(1830-1850) ocorre num momento no qual a demanda mundial não convidava ainda a

grandes transformações. Num cenário amazônico selvagem e tecnicamente atrasado, a

maior parte da mão-de-obra era representada por índios e seus descendentes. Na segunda

fase, em que há melhoria dos tirocínios (1850-1870), presume-se que a experiência dos

anos anteriores houvesse se consolidado. Nesse momento, o domínio da selva já não

apresentava as mesmas e inúmeras dificuldades do princípio. Além disso, a navegação a

vapor, iniciada em 1853, possibilitava a descoberta de novos seringais, bem como o acesso

aos altos rios, de árvores mais produtivas, tornando mais profícua a aplicação dos

trabalhadores. Também é nesse momento que os cuidados técnicos na exploração das

árvores despertam a preocupação dos empresários e trabalhadores do extrativismo.

Notadamente, na fase inicial, a exploração desencadeava o abate puro e

simples da árvore, destruída assim após um único uso. Já na segunda fase, os indícios são

de que nela se firmou a organização típica do seringal amazônico, com certas divisões de

tarefas operacionais características, e uso de instrumentos de sangria e coleta mais ou

menos padronizados. Empresários e trabalhadores compreendem, assim, que a

permanência dos seus negócios e atividades dependia da preservação das árvores. Diante

dessas novas condições, a produtividade cresce expressivamente. Na seqüência, a terceira

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fase, denominada de “adestramento nordestino” (1870-1890) é marcada justamente pela

imigração de numerosos contingentes populacionais do Nordeste brasileiro em direção aos

seringais amazônicos. E dado que o imigrante não possuía experiência alguma de contato

com a floresta, tornava-se necessária nova aprendizagem. As sucessivas ondas migratórias

tiveram que readaptar hábitos e práticas, absorvendo as novas artes e apurando sua

eficiência técnica no trato com a seringueira até então desconhecida. Nesse momento, a

produtividade continuou crescente. Posteriormente, a fase acreana (1890-1910),

independente de outras condições benéficas apresentadas pelo Acre, caracterizou-se pelo

aproveitamento em larga escala dos ricos seringais desta região, que impulsionou

grandemente a produção. A organização e a disciplina nos seringais acreanos, autoritárias e

não raro brutais, inclusive com a instituição de pesadas multas por falhas técnicas,

garantiam a alta produtividade da matéria-prima gomífera, bem como a alta rentabilidade

do empresário seringalista.

O conjunto dessas quatro fases do extrativismo permite ilustrar o

paulatino crescimento produtivo da goma elástica e o conseqüente aumento populacional

registrado na região amazônica. Até 1823, a atual Região Norte contava com uma

população em torno de 127 mil habitantes, passando a cerca de 340 mil em 1872; em 1900,

somava aproximadamente 700 mil e, em 1920, algo em torno de 1.400.000 milhão. Como

se nota, o aumento, a partir da década de 1870, foi sensível, especialmente pela influência

da imigração nordestina, que significou um maciço incremento da força de trabalho para a

produção de borracha. Esse contingente populacional, movido pelos interesses econômicos

relacionados ao extrativismo, ocupa o interior da floresta, incorpora o território do Acre

(cerca de 245 mil km²), retirado da Bolívia, extermina parte da população indígena,

miscigena-se parcialmente com ela e ocasiona o crescimento urbano de Belém e Manaus,

os grandes pólos do comércio regional.

Em termos físicos, as exportações nacionais de borracha avançam,

indicando sensibilidade aos movimentos dos preços internacionais. Segundo dados

coligidos pelo IBGE (1990), desde 1827, data do primeiro registro de exportação da

borracha, algo em torno de 31 toneladas, a produção e a exportação conhecem aumentos

sucessivos. Em meados do século XIX, a produção totaliza aproximadamente 1.000 t,

enquanto na década de 1870, cerca de 8.000 t; no decênio 1890/1900, ela atinge uma média

de 21.400 t anuais, ao passo que na primeira década do século XX, atinge seu ponto

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máximo, cerca de 35.000 t. Assim sendo, a elevação da produtividade extrativa, associada

a um aumento extraordinário do volume populacional na Amazônia, são expressões da

crescente demanda industrial pela matéria-prima gomífera. Em que pesem as tentativas do

governo inglês no sentido de desenvolver o plantio da seringueira amazônica em suas

colônias asiáticas (Ceilão e Malásia), os preços internacionais da borracha brasileira

elevaram-se enormemente a partir da década de 1870: 45 libras a tonelada, em média, na

década de 1840/50; 118 libras na década seguinte; 182 libras no decênio 1870/80; 389

libras em 1900/1910. Esses preços refletem a enorme demanda industrial, relativamente a

curto prazo, sobre uma área natural potencialmente fornecedora da matéria-prima

requisitada.

Dessa maneira, a procura por borracha se assentava, de um lado, e como

característica mais geral, numa produção organizada em termos capitalistas. E, à medida

que avançavam novas aplicações para o material gomífero, mais fortalecidos ficavam os

determinantes da demanda industrial. Na ocasião do final do século XIX, a perspectiva que

se coloca para a estrutura produtiva regional não era, portanto, a de meramente ampliar o

volume produzido, processo que já se desdobrara, desde a metade do século, e contribuíra

de forma efetiva para elevar o valor das exportações regionais. Dadas as limitadas

condições da exploração fundada no trabalho indígena, o atendimento da crescente

demanda, ante as múltiplas possibilidades de uso da borracha, institui novas exigências.

Em primeiro lugar, o volume que passa a ser requisitado, além de superar em muito os

valores até então exportados pela região, terá como característica principal fundar-se numa

demanda em expansão, o que deve ser entendido, principalmente, como uma decorrência

do próprio funcionamento da acumulação capitalista, que fundamenta a produção

industrial.

Nesse sentido, o atendimento das novas necessidades industriais exigirá

profundas transformações no emprego e na distribuição espacial da população, tendo em

vista as características do trabalho e a configuração técnica do processo produtivo, sobre as

quais, até então, se organizava a coleta do látex. Em segundo lugar, mesmo que a produção

gomífera possa submeter-se à oscilações, possíveis em qualquer processo produtivo, estas

devem ser minimamente previsíveis e devem ocorrer sem levar a atividade produtiva a

níveis que possam problematizar a acumulação industrial. Por um lado, isso passa a exigir

um determinado volume produzido de borracha, capaz de permitir a formação de estoques

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controladores; e, por outro, a definição de um processo e de condições produtivas,

organizados de modo a imprimir um novo padrão de disciplina no trabalho de extração.

Em conjunto, essas exigências se diferenciam amplamente daquelas sobre as quais se

organizava tradicionalmente a produção regional. O novo momento torna necessária a

montagem de um segmento produtivo especializado no universo amazônico, reforçando,

aliás, a posição que historicamente a região assumia enquanto espaço construído a partir

das demandas externas. Isto é, são reforçadas as determinações do mercado mundial sobre

a economia regional, organizado em termos das necessidades da acumulação capitalista,

centradas agora na produção industrial européia e norte-americana.

O período do rush gomífero, quando apreendido por um enfoque que

evidencia a re-inserção da Amazônia no mercado internacional, define o universo regional

no momento em que este está subsumido às determinações de uma produção mais

intensificada de mercadorias. Dessa forma, no âmbito interno da região e nas relações

desta com condições externas, prevalecem os elementos determinantes de um ponto de

inflexão na dinâmica da economia amazônica. Esse é precisamente o momento de

superação da etapa comercial de coleta das denominadas “drogas do sertão”, herança da

fase colonial, pela incorporação do espaço amazônico na nova distribuição internacional do

trabalho, fruto das transformações experimentadas pelo mundo capitalista, a partir dos

desdobramentos do que se convencionou chamar de Segunda Revolução Industrial.

A expansão territorial e o recurso à força de trabalho nordestina

impulsionaram a atividade extrativista da hévea para os limites ao sul da Amazônia,

ultrapassando a área de fronteira na posição acordada entre o Brasil e a República da

Bolívia. A nova região incorporada pelo extrativismo corresponde ao Acre, localizado à

margem direita do rio Amazonas e detentor de vasta malha fluvial, onde estão localizadas

as bacias dos rios Purus e Juruá, assumindo posição de corredores principais. Foi

exatamente a ampla navegabilidade dessa malha fluvial que facilitou a ocupação do

território acreano, também detentor das mais ricas e densas reservas de Hevea brasiliensis.

Essa espécie gomífera, além de apresentar qualidades intrínsecas superiores às demais,

permitia a introdução de novas técnicas à produção e um novo modelo organizacional do

seringal. As variedades do gênero hévea consentem que a extração do látex sirva-se da

própria dinâmica regenerativa da árvore, permitindo que o produto por árvore seja muito

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superior ao da exploração predatória, praticada na fase inicial do extrativismo. Assim

sendo, a própria possibilidade de extração por árvore torna-se bastante ampliada no tempo.

O conjunto desses fatores diferencia qualitativamente a região acreana

dos demais espaços amazônicos, de maneira que nesta região terá emergência uma nova

forma organizacional e produtiva do extrativismo gomífero. Tais fatores levam à

substituição de uma exploração fundada em expedições para realizar a coleta do látex, por

uma exploração fundada numa atividade sedentária, organizada em seringais. Assim, a

nova fase de transformação da natureza pelo trabalho leva ao processo paralelo de

transformação do próprio homem, ao criar uma atividade que o assenta ao lugar. A

ocupação acreana ocorreu, pois, sob o signo do auge da extração gomífera, dirigido por

elementos da intrincada rede mercantil que se estabeleceu na região amazônica e

comandou desde o início esta atividade econômica.

Quando o território acreano é incorporado ao Brasil, em 1903, grandes

seringais já estavam plenamente constituídos, a partir de imensos latifúndios que

geralmente se prolongam da margem de algum rio importante para o interior da floresta. A

característica figura do proprietário-seringalista – o coronel de barranco – já organizava e

coordenava o seringal como empresa, disciplinando a força de trabalho e controlando a

produtividade gomífera. Mediante uma organização rígida da força de trabalho, esse agente

mantinha os laços de clientela e monopólio que o conectava às casas aviadoras em Manaus

e Belém. Os seringais acreanos foram assentados na medida em que os grupos de futuros

proprietários-seringalistas e seus trabalhadores-seringueiros subiam os rios, situando-se

aqui e ali, em busca das árvores gomíferas. No interior do seringal, conforme a nova

atividade constituída, os locais de trabalho e de moradia do seringueiro se confundem em

local próprio chamado de “colocação”. Os trabalhadores-seringueiros dividem-se, cada um,

em sua colocação, que comporta a casa de sua moradia, uma área com árvores

seringueiras, na qual executa a extração do látex, e a casa de defumação, onde ele prepara a

borracha. Assim, os seringais são unidades de negócio que detêm o domínio da

propriedade fundiária, na qual o espaço produtivo se caracteriza pela reunião de pequenas

unidades produtoras, as colocações.

A ampla estrutura comercial e creditícia, desenvolvida paralelamente ao

crescimento da demanda industrial pela goma elástica, e nucleada praças de Belém e

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Manaus, constitui o ponto de partida para a formação dos seringais. A possibilidade de

apropriação de terras cobertas por seringueiras era o fundamento do empréstimo inicial,

com alta margem de risco para o emprestador, logo submetida a elevados custos

financeiros. O volume desse empréstimo deveria cobrir as despesas iniciais na montagem

do novo seringal, que tinha como primeiro passo a apropriação de áreas de terra, além das

despesas com a contratação de força de trabalho. A dimensão inicial de cada seringal era

função direta do volume de empréstimo obtido. Entretanto, uma vez demarcado o ponto de

origem do seringal, era a propriedade fundiária, base do direito de exploração da hévea,

que funcionava como potencial de recrutamento da força de trabalho e levantamento de

mercadorias para o suprimento da empresa seringalista.

A propriedade seringalista da terra, tal como ela se configurou na região

acreana, é um dos elementos fundamentais na particularização da produção social nesta

região. Em vista das circunstâncias nas quais é constituída a manufatura seringalista no

Acre, por meio da associação de capital industrial internacional e capital comercial local,

podemos considerar que a terra passa a ser explorada como meio de produção e, portanto,

torna-se terra-capital. No caso da economia extrativista da borracha, as questões relativas à

formação do capital fixo, ou referentes à concentração dos meios de produção, remetem a

uma precisa compreensão da propriedade da terra. Recursos monetários eram necessários

tanto para a compra de terras como para a montagem do aparato de exploração do

potencial gomífero nelas existentes. Daí que o processo de ocupação acabava seguindo um

dos princípios sagrados da Lei de Terras de 1850, qual seja, a restrição do acesso à terra

aos que dispusessem de recursos financeiros suficientes para pagar por ela. Por isso, a

posse e o domínio das terras no Acre foram absolutamente restritivos, de maneira que as

relações de propriedade da terra estão entre os elementos determinantes na reprodução das

relações sociais sob o seringalismo.

Diante da crescente demanda externa pelo produto gomífero, a sociedade

amazônica buscou renovar-se promovendo uma mudança na organização produtiva da

região. Na base desse processo de reorganização, fundiram-se objetivos articulados em

torno de uma atividade monoextrativista da borracha, que encontraram particularmente no

Acre a possibilidade de se impor como elementos predominantes. Os momentos em que a

população perde o domínio sobre os meios de subsistência, espacial e temporalmente

exteriores ao seringal, é um dos mecanismos presentes na base coercitiva que favoreceu a

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montagem de um empreendimento monoextrativista no Acre. No âmbito do contexto

amazônico, os seringais acreanos apresentam, portanto, uma nova estrutura organizacional

e produtiva, que chega a incorporar determinados melhoramentos técnicos com vistas a um

maior volume da produção gomífera, de acordo com os níveis da demanda industrial

internacional. À essa nova estrutura conferimos o nome de seringalismo, responsável por

provocar a especialização do trabalho extrativista, direcionando-o de modo absoluto para o

monoextrativismo da borracha; e, simultaneamente, submeter esse trabalho às relações

monopólicas de comércio no interior do seringal.

Assim, a combinação de uma atividade altamente especializada a uma

determinada estrutura organizacional e produtiva, compõe a matriz material que reproduz

as relações hierárquicas do trabalho no seringal acreano. Nesses moldes, o

empreendimento seringalista assume os contornos da forma exclusiva de organização da

produção e do trabalho e, em torno de si, organiza e dá sentido à forma de vida social na

região. As bases seringalistas de produção condicionam, em sua reprodução, a interposição

de novas formas de controle social, à medida que se desenvolvem e se desdobram as

necessidades socialmente postas pela ampliação da massa populacional, entre outros

fatores. É a partir da década de 1870 que as relações seringalistas predominam nas

condições de reposição da forma particular de extrativismo assumido no Acre, portanto, é a

partir deste momento que se torna lícito falar de seringalismo.

A contextualidade acreana não é constitutiva de algum modo de

produção particular; ela é sim marcada por singularidades no universo da produção de

mercadorias na região amazônica. Na verdade, desde meados do século XIX ensejam-se

momentos onde prevalecem condições de exploração do trabalho associadas às paulatinas

transformações nas estruturas técnicas de produção. Na região acreana, as técnicas

disponíveis nos seringais, embora permanecessem tipicamente manuais, tornaram o

trabalho o mais produtivo possível e contribuíram para aproximar o seu resultado das

necessidades do capital industrial e, sendo essa a sua finalidade, impuseram ao trabalhador

(o seringueiro) o rendimento máximo. No âmbito dessa renovada organização produtiva, o

trabalhador não se defronta mais com os valores de uso imediatos. Ao contrário, o valor de

uso do produto seringueiro é mediato, pois exige a devida mediação do mercado para que

se converta (desde o ponto de vista do seringueiro) em valor de uso. São essas

transformações que afirmam o conjunto de diferenças entre a simples atividade de coleta

14

(de origem colonial), preponderante nas regiões de ocupação pioneira da Amazônia, e a

elaborada atividade de extração gomífera, típica da região acreana, na fase de apogeu da

economia extrativista.

Desconsiderar a determinação essencial das relações capitalistas de

produção sobre o seringalismo significa desprezar o fato concreto de que a nova economia

da borracha seja uma resultante da sua transformação em matéria-prima, levando-a a se

inscrever no contexto de amplos complexos produtivos industriais. Sendo assim, os

elementos colocados por esse processo de reorganização produtiva não estiveram apenas

relacionados à questão da ampliação da força de trabalho empregada e da necessária

extensão da ocupação territorial. As profundas transformações técnico-científicas da

indústria, paulatinamente consolidadas na Europa e EUA, permitiram o uso industrial da

borracha ao tempo que induziram às mudanças operadas no processo de trabalho dentro do

seringal. Considerando, então, os elementos até agora pontuados, podemos afirmar que as

transformações expostas na estrutura produtiva dos seringais acreanos expressam uma

organização manufatureira do trabalho, recriada na retaguarda do desenvolvimento da

grande indústria.

De acordo com nossas indicações anteriores, na virada do século XIX, o

processo de constituição do capitalismo se consolidava nas sociedades européia e norte-

americana, mediante o pleno desenvolvimento da produção mecanizada, organizada como

grande indústria. Simultaneamente, na sociedade amazônica ocorria um processo interno

de reorganização produtiva, cujo objetivo era garantir o suprimento da matéria-prima

gomífera nos níveis requisitados pelas indústrias daquelas sociedades imperialistas. A

conexão produtiva estabelecida entre esses dois contextos revela um movimento pelo qual

a grande indústria internacional incorpora o artesanato extrativista, adequando a borracha

como matéria-prima industrial e, portanto, integrando a sua produção ao circuito de

valorização do capital. Como mediação necessária desse processo de incorporação, dadas

as circunstâncias históricas locais em que este processo se insere, surge a organização

manufatureira do trabalho nos seringais acreanos.

Como já observamos, dentro do cenário econômico-social da Amazônia,

no final do século XIX, a região acreana vai se definindo por uma estrutura produtiva

caracterizada por sua especialização absoluta na produção de uma única matéria-prima – a

15

borracha – para a grande indústria. Essa particularização produtiva do Acre teve como

ponto de partida o encaminhamento de uma ruptura com as tradicionais condições de

produção na Amazônia. Dessa maneira, os movimentos da economia e o padrão de

acumulação vigente nessa época, determinados pela industrialização nos países

imperialistas, efetivaram uma base produtiva manufatureira, artesanal e especializada, no

espaço acreano. Isso significa dizer que o seringal acreano organizou-se como empresa

manufatureira, apresentando, assim, um processo de trabalho dividido e conectado a

operações diferenciadas, tanto do ponto de vista interno do seringal como do externo, no

sentido de que o trabalhador seringueiro executa uma operação parcial de produção da

matéria-prima que, posteriormente, se integra ao processo produtivo da indústria na Europa

e nos EUA.

No seringal acreano em plena atividade, a divisão social do trabalho

situava de um lado os não-produtores, representados por aqueles trabalhadores empregados

nas diversas atividades administrativas e organizativas da empresa, como o gerente, o

fiscal, o guarda-livros, o caixeiro, o comboieiro, o mateiro e o toqueiro; e de outro os

produtores diretos, correspondentes ao trabalhador extrator ou seringueiro propriamente

dito. O pessoal ocupado nesses específicos e diferentes ofícios do seringal, como em

qualquer empresa agrícola ou industrial, variava de acordo com o porte do

empreendimento. Evidentemente, essas operações parciais permaneciam pautadas por uma

base técnica artesanal, logo, a execução de cada uma dessas operações exigia os mesmos

requisitos que caracterizam o trabalho do artesão independente, por isso, a possibilidade de

explorar e desenvolver ao máximo o grau dos requisitos naturais e as especializações

requeridas pela função residia no seu exercício reiterado. Em seu processo de consolidação

e desenvolvimento, a empresa seringalista de tal modo organizada seguiu tornando

unilateral a atividade artesanal, restringindo a esfera de ação do trabalho ao mesmo tempo

que acrescentando a eficiência da atividade. Assim ela buscou responder adequadamente

aos estímulos postos pela conexão produtiva com a grande indústria internacional.

A partir de então, a estrutura produtiva e organizacional do seringal

acreano, especializada no monoextrativismo, teve como substrato as seguintes condições

sociais: a propriedade privada da terra, na forma de grandes latifúndios, exercida pelos

seringalistas; o trabalho assalariado, na forma de salário por peça, caracterizando os

trabalhadores seringueiros; o seringalismo e o sistema de aviamento, como formas de

16

organização e produção particularizadas nos seringais acreanos, através das quais o

proprietário-seringalista impunha o extrativismo gomífero como atividade exclusiva e,

concomitantemente, detinha o monopólio comercial da compra de borracha e da venda de

mercadorias ao seringueiro. Esses elementos fazem parte do trabalho abstrato que

proporcionava, pela divisão social do trabalho e propriedade privada dos meios de

produção, a extração da mais-valia que constitui a reprodução do capital.

Com base nessas condições, as empresas seringalistas funcionavam como

manufaturas homogêneas, operando a extração de mais-valia absoluta e a subordinação

formal do trabalho ao capital. Os seringais acreanos se distinguiram por apresentar um

processo de alteração das ferramentas ou instrumentos de produção, mas era o trabalhador

parcial que definia o essencial desse processo, ou seja, era o trabalhador quem manipulava

os instrumentos de produção. Em vista do caráter subjetivo do processo de trabalho na

manufatura, o trabalho concreto desenvolvido nos seringais acreanos exigia virtuosismo

por parte dos extratores de látex, de maneira que a força de trabalho nordestina, empregada

maciçamente nessas empresas, passava necessariamente por um processo de adaptação e

aprendizagem antes de cumprir o processo produtivo.

Face ao domínio do capital industrial na sociedade amazônica, algumas

das transformações verificadas na estrutura produtiva dos seringais acreanos são

indicativas da organização manufatureira do trabalho: as exigências para adequação do

látex como matéria-prima industrial, que chegaram a permitir um incremento técnico,

ainda que restringido, no processo de extração, buscando ajustar a produtividade local aos

níveis industriais. As revoluções técnico-científicas paulatinamente consolidadas na

Europa e nos EUA, possibilitaram o aproveitamento industrial da borracha e, nesse

sentido, motivaram a iniciação de mudanças substanciais no processo de trabalho dentro do

seringal. O conjunto dessas mudanças na produção gomífera desdobrou-se em dois

sentidos fundamentais. Em primeiro lugar, por uma perspectiva que contemple a forma

material do processo de trabalho, elas correspondem à incorporação de uma nova forma de

“sangrar” a árvore para obter o látex, seguida pelo processo de defumação, uma forma

especial de preparação e transformação do látex em pélas de borracha, que era o modo

mais adequado para o transporte e a conservação da matéria-prima. Através dessas novas

formas, promoveu-se uma reorganização do trabalho, capaz de gerar a elevação da

17

produção até níveis que compatibilizam e estabelecem os fundamentos da articulação entre

a demanda e a oferta da matéria-prima.

Do ponto de vista físico da produção, as transformações em curso

implicaram diretamente na questão da produtividade. A manter-se o padrão técnico

anterior, que provocava a derrubada da árvore, cada árvore teria o ciclo produtivo

encurtado; ou seja, cada trabalhador obteria, em cada área, um volume do produto, por

unidade de tempo, limitado à quantidade de látex existente no momento do abate de cada

árvore. À medida que se aumenta o tempo de vida produtiva da seringueira, cada

trabalhador passa a obter um maior volume do produto, por unidade de tempo,

principalmente quando reordena as árvores em circuitos de extração dando a cada grupo de

árvores – estradas de seringa – um período de descanso. O ciclo de vida das árvores passa a

incorporar-se à atividade produtiva. Assim, quando submetidas a cuidados mínimos de

limpeza das bandeiras e ao rodízio no corte, as árvores em produção eram estimuladas pela

sangria e geravam um volume maior de látex. Isso bem demonstra que a produção

gomífera transitava de uma fase caracterizada pela mera coleta, atividade predatória que

promove a sua auto-extinção, para um momento onde a atividade produtiva assume a

feição de um processo de trabalho, que se reitera a cada ciclo produtivo, ao tempo que

reitera a sua base espacial. A implantação do seringal acreano corresponde ao momento no

qual a exploração gomífera se integra à moderna exploração florestal “vinculada ao

processo de reprodução”.2

Com efeito, essa perspectiva física da produção nos fornece uma

adequada dimensão da produtividade do trabalho no âmbito do seringalismo, indicando as

condições técnicas prevalecentes e a forma concreta que assume o processo de trabalho nos

seringais acreanos. No entanto, manter a questão da produtividade do trabalho restrita a

essa perspectiva física é um procedimento insuficiente para estabelecer uma global

apreensão do seringal acreano. Em vista disso, as transformações responsáveis pela

reorganização manufatureira do extrativismo gomífero devem ser analisadas por meio de

uma perspectiva mais ampliada, que nos dimensione o sentido maior do seu

desdobramento. Destarte, em segundo lugar é necessário retomar a questão das

2 MARX, Karl. Elementos Fundamentales para la Crítica de la Economía Política – Grundrisse (1857-1858). 4. ed. México: Siglo Veintiuno Editores S. A., 1978. v. II, p. 253.

18

transformações por uma perspectiva que explicite as condições de incorporação da

atividade extrativa ao processo de acumulação capitalista liderado pela produção industrial.

O decurso do trabalho nos seringais acreanos é parcela integrante de uma

rede de processos de trabalho, responsável por promover a incorporação da borracha como

matéria-prima industrial e, simultaneamente, integrar o trabalho seringueiro ao circuito

maior de valorização do capital.3 Quando assumimos a perspectiva macroeconômica, que

permite a visualização do percurso do produto seringueiro até o produto final da indústria,

o trabalho nos seringais revela-se produtivo por se integrar como “órgão do operário

coletivo”.4 Transversalmente, promove-se a anexação do seringueiro a uma “operação

parcial”, subordinando-o ao capital no contexto de “uma organização do trabalho que

aumenta a força produtiva”.5 Ele apresenta-se, portanto, como resultado de uma

redistribuição do trabalho social desde uma perspectiva da valorização do capital.6 E a

incorporação da força de trabalho nordestina, no âmbito da economia extrativista, surge

como o resultado de uma re-divisão do trabalho social, ou seja, decorrência da operação da

lei do valor numa perspectiva internacionalizada, com todas as dificuldades e repercussões

que tal evento possa impor à formação dos espaços geográficos nacionais.

A participação do trabalho seringueiro na definição do padrão de

produtividade coletiva, quase sempre desconsiderada, abre espaço para a interposição das

relações de comércio no seringal, conectando o consumo seringueiro à produção industrial.

A partir disso, o conjunto das relações que articula a reprodução da economia extrativista

não pode ficar mais empalmado, de forma exclusiva, pelo sistema do aviamento (esfera da

circulação). Em outras palavras, não se pode desprezar as determinações essenciais do

3 Nesse sentido, podemos retomar a seguinte observação de Marx (1978): “[...] essa divisão do trabalho se distingue apenas subjetivamente da manufatureira, pois aqui o observador vê, num único passar de olhos, a variedade dos trabalhos parciais espacialmente unida, enquanto lá a conexão é obscurecida pela sua dispersão por grandes áreas e pelo grande número dos que estão ocupados em cada ramo específico [...]”. Consulte-se MARX, KARL. El Capital – crítica de la economía política. México: Fondo de Cultura Económica, 1978. v. I, p. 288. 4 Idem, Ibidem, p. 425. 5 Idem, Ibidem, p. 290. 6 O recurso à noção de “operário coletivo” – desenvolvida por Marx (1978), a partir das determinações postas pelo desenvolvimento do trabalho no interior da manufatura – é um exercício de analogia que encontra suporte na existência de vínculos internos entre os ramos produtivos que integram o complexo gomífero. Não se pretende, no entanto, desprezar o fato de que “[...] entre a divisão do trabalho na sociedade e a divisão do trabalho no interior da fábrica existem diferenças não somente de grau, mas também diferenças essenciais [...]”. (MARX, 1978, El Capital, I, p. 288). Não há parcelização do produto gomífero que se põe, desde o seringal, como mercadoria. O produto gomífero submete-se, por conseguinte, a um ajustamento às necessidades industriais, a posteriori, como resultado das operações de compra e venda.

19

processo de trabalho nos seringais e tornar o espaço da circulação de mercadorias a única

instância a explicar e justificar a economia extrativista. Com o desenvolvimento do

seringal acreano, organizado em moldes manufatureiros, ocorre a produção de “novas”

forças produtivas, que estão plasmadas no processo de subsunção formal do trabalho ao

capital, responsável por garantir a extensão máxima da jornada de trabalho, assim como

exigir a conversão do trabalho na mercadoria força de trabalho e a interferência sobre o

processo produtivo.

Desde então, há uma busca de níveis mais elevados de produtividade do

trabalho, mesmo diante dos níveis incipientes de conhecimento científico, no campo da

botânica, referentes ao gênero hévea, ou seja, mesmo num estágio em que o

desenvolvimento científico é genérico e não específico da produção gomífera.

Notadamente, o processo de trabalho gerador da borracha como matéria-prima industrial

exige virtuosismo do trabalhador, sendo, assim, caracterizado como artesanal e

especializado, desenvolvido em moldes manufatureiros. Entretanto, embora as condições

técnicas do processo fossem bastante rudimentares, utilizando-se de uma base empírica do

conhecimento, elas não excluem resultados de descobertas e invenções em andamento,

frutos do íntimo relacionamento entre economia e desenvolvimento científico; ao

contrário, é uma decorrência deste.

Além dessas, outras duas questões são indicativas da incorporação do

artesanato extrativista pela grande indústria internacional. A primeira diz respeito ao

processo de proletarização dos trabalhadores e a segunda está relacionada às mudanças na

dinâmica do capital mercantil regional. O processo de proletarização do trabalhador

seringueiro é exterior à ocupação do novo território acreano, à medida que os imigrantes

são recrutados no Nordeste brasileiro e encaminhados para o trabalho extrativo no seringal,

sob o comando do proprietário-seringalista. Esse processo tem sentido posto “pela

separação entre o trabalhador e o seu produto, entre a força de trabalho subjetiva e as

condições objetivas do trabalho”.7 No Acre, a incorporação da força de trabalho se

submete às condições particulares propostas pela manufatura seringalista: de um lado, a

dispersão dos locais de trabalho (colocação) define os mecanismos de controle sobre a

atividade produtiva; de outro, nos seringais acreanos prevalece como forma de

7 MARX (1978, El Capital), op. cit., v. I, p. 3.

20

remuneração do trabalho o pagamento com base no produto – o salário por peça.8 Nesses

termos, as transformações observadas na configuração do seringal acreano constituem o

núcleo em torno do qual se processam mudanças essenciais na dinâmica do capital

mercantil.

Na fase inicial da produção regional, quando predomina a coleta das

“drogas do sertão”, o capital mercantil define, a partir de si próprio, os rumos e as

necessidades da produção, na medida em que busca atender necessidades do consumidor

direto nos mercados de destino. Logo, é compreensível que a limitação dos mercados, ou a

escassez, tenha sido o elemento essencialmente predominante nas relações econômicas da

região, mantendo a atividade produtiva em limites estreitos, submetendo-a a uma dinâmica

voltada para a reprodução de uma mesma base. Diante dessas condições, sob o capital

mercantil, a possibilidade de lucros máximos se definia em grande parte no aspecto da

estruturação dos mercados e por uma forma de organização do trabalho, que não estabelece

a partir do seu próprio desempenho na produção de mercadorias, as referências ou os

elementos (custos) da sua reprodução. Por outro lado, no contexto dos seringais acreanos,

no momento de auge da economia extrativista, o poder de monopólio (da propriedade

privada e do comércio no interior do seringal), estabelece os fundamentos para a extração

de trabalho de uma forma generalizada, do conjunto da sociedade consumidora, e não

exclusivamente dos produtores diretos. A imposição de determinações próprias do sistema

de produção capitalista constitui mudanças qualitativas, novas formas de obtenção e de

valorização do valor, não excluindo, entretanto, a organização da escassez como momento

imanente das condições de valorização.

A manufatura seringalista, gestada na retaguarda do desenvolvimento

industrial europeu e norte-americano, representa um avanço na forma de organização da

produção em comparação com a forma anteriormente predominante do seringal

amazônico. Mesmo assim, ela não revoluciona as bases técnicas da produção artesanal que

condicionam o extrativismo gomífero, englobando desde a etapa de corte-coleta do látex

até a sua transformação em pélas de borracha na etapa de defumação. Desse modo,

devemos analisar o caráter do progresso das forças produtivas representado pela 8 O salário por peça constitui a forma de salário mais adequada ao curso do desenvolvimento capitalista na região. Conforme a definição de Marx, ele serve de alavanca ao prolongamento do tempo de trabalho e rebaixamento do salário, tendo grande margem de aplicação durante o período da manufatura propriamente dito. Veja-se MARX, K. (O Capital, 1984), op. cit., t. II, p. 139-144.

21

manufatura seringalista em dois planos: em referência às condições regionais de produção

até então vigentes; e em referência às condições internacionais de produção apresentadas

pelos pólos consumidores da matéria-prima gomífera, nos quais já vigora a produção

mecanizada, organizada como grande indústria.

A derrocada do extrativismo amazônico ocorre a partir do momento no

qual surgem formas especificamente capitalistas de produção gomífera, com os seringais

de cultivo racional da Ásia e a posterior produção industrial de borracha sintética, tanto na

Europa e EUA como no Centro-Sul brasileiro. A estreita base técnica da manufatura

seringalista, que impede o controle do processo de trabalho pelo capital, mediante sua

reduzida capacidade de incrementar a produtividade do trabalho, tornará pretérita essa

forma de organização da produção. A manufatura seringalista impunha duplo limite à

dominação capitalista da produção, como resultado de sua base técnica inadequada: limita

a valorização do capital e impede seu domínio sobre a produção em sua extensão.

O advento da manufatura seringalista no último quartel do século XIX

certamente significou um progresso na forma organizacional e produtiva dos seringais

amazônicos, notadamente quando comparada ao contexto produtivo anterior, pautado por

uma atividade expedicionária, ou nômade, voltada para a coleta. Mas quando comparada

ao cenário produtivo industrial existente na Europa e nos EUA, a manufatura seringalista

evidencia suas limitações. Trata-se de uma dinâmica contraditória no núcleo do processo

de expansão capitalista, pois o desenvolvimento internacional da produção mecanizada,

organizada como grande indústria, faz avançar na Amazônia a produção da matéria-prima

gomífera, imprimindo a organização manufatureira do artesanato extrativista como forma

de adequar sua produtividade aos níveis exigidos pela indústria. No entanto, esse

movimento ocorre na retaguarda da grande indústria, pois são mantidas as bases técnicas

da produção manufatureira sem revolucioná-las. A partir da conexão produtiva

estabelecida entre esses dois pólos da produção capitalista – o pólo fornecedor da matéria-

prima gomífera e o pólo industrial que a consome –, podemos sugerir um quadro de

coexistência das relações de subsunção formal (no contexto da manufatura seringalista) e

de subsunção real do trabalho ao capital (no contexto da grande indústria). E essa,

portanto, seria uma evidência concreta do movimento de expansão e realização

contraditória do capital.

22

Com base nesses elementos, reafirmamos que a explicitação da complexa

rede de relações estabelecidas entre a produção gomífera manufatureira e a grande

indústria implica a ponderação de todas as dimensões – geral e particular – envolvidas no

processo de desenvolvimento capitalista na Amazônia. Por uma perspectiva global, não se

pode desprezar o fato de que as renovadas formas de extração e preparação do látex

(processo de trabalho), bem como a nova forma de organização manufatureira do trabalho

e todas as demais condições sociais subjacentes à economia extrativista do apogeu,

emergem na retaguarda da industrialização européia e norte-americana. Assim sendo, é

preciso considerar na análise desse renovado contexto a fundamental ruptura estabelecida

com as formas extrativistas anteriores, baseadas na simples coleta florestal.

Já por uma perspectiva particular da região, não se pode perder de vista

que as condições da subsunção formal se mantêm predominantes quando se consideram as

situações de atraso da atividade extrativista, praticada na Amazônia, em relação à atividade

industrial consolidada na Europa e nos EUA. Nessa, em que a subsunção real compreende

momentos essenciais do seu desenvolvimento, o avanço técnico-científico manifesta a

perda de domínio do trabalhador sobre o processo de trabalho. As máquinas e os sistemas

de máquinas passam a polarizar a atividade produtiva, agora mediada pelo homem. Essa

diferença afastava formalmente o processo de trabalho nos seringais das atividades de

ponta do sistema capitalista de produção e, posteriormente, nucleou os aspectos da própria

dinâmica da economia extrativista e a sua derrocada.

A crise do extrativismo amazônico ocorre numa fase ulterior de avanço

científico-industrial, quando se realiza a incorporação da matéria-prima gomífera a partir

de uma base técnica adequada ao andamento da nova fase de acumulação do capital. Ao

longo do período de apogeu da borracha amazônica, entre as décadas de 1870 a 1910, a

economia extrativista experimentou resultados crescentes e esteve como condutora do

processo de ocupação e povoamento da região acreana. No entanto, ela permaneceu

submetida a uma mesma estrutura técnica de produção. Por todo o período, não se

promoveram transformações no investimento em capital fixo capazes de promover

alterações significativas nas condições de produção regional. A totalidade da produção

obtida manteve uma feição marcada pela “produtividade natural” e os investimentos

realizados em capital fixo estiveram essencialmente voltados para a esfera dos transportes.

23

A partir do momento no qual a borracha foi desarticulada dos interesses

industriais internacionais, a região acreana enfrentou uma longa fase de estagnação

econômica, responsável por debilitar a estrutura produtiva dos seus seringais nativos. Mas

ainda quando está imersa nesse contexto de crise, a região ressurge como produtora

gomífera, neste novo momento incorporada ao desenvolvimento tardio da indústria

nacional, iniciado na década de 1930 e potencializado no pós-II Guerra. As determinações

que levam à reprodução desse recorte regional permanecem fundadas numa base produtiva

artesanal e tecnologicamente retardatária, de condições técnicas resistentes à incorporação

dos avanços tecnológicos já existentes. Entretanto, não tomamos essas determinações

como resultados exclusivos das condições “internas” à região acreana. Ao contrário,

procuramos analisá-las em face do andamento das transformações econômicas que levam à

efetivação do capitalismo no Brasil. Assim, chegamos à explicitação das condições de

afirmação da economia extrativista enquanto potência social, totalidade na qual e pela qual

se definem as condições de reprodução social.

Nessa perspectiva, o desenvolvimento do processo de industrialização

constitui o fulcro através do qual

“[...] o regime capitalista de produção se apodera de um ramo inteiro de

produção, e mais ainda, tão logo incorpore todos os ramos decisivos da

produção [...]. A partir daí, se eleva como forma geral, socialmente

imperante, do processo de produção”. (MARX, 1978, O Capital, I, p.

427).

Em tais circunstâncias, as transformações técnicas e econômicas passam a estar submetidas

às determinações que regem o movimento de capitais. Ou ainda, as condições

concorrenciais, que caracterizam o relacionamento dos capitais operando nos ramos

industriais, expressam os elementos objetivos que formam o plano das potencialidades da

acumulação. Por outro lado, as condições de existência de diferenças estruturais no sistema

estão incluídas como momentos da acumulação de capital. O sistema de produção

capitalista, entendido como uma

[...] totalidade, impõe seus pressupostos próprios e o seu

desenvolvimento total obriga-o a subordinar a si todos os elementos

24

constitutivos da sociedade ou a criar, a partir de si próprio, os órgãos que

ainda lhe faltam. É assim que se torna historicamente uma totalidade.

(MARX, 1978, Grundrisse, I, p. 220).

Conforme ressaltamos inicialmente, a tendência à universalização, caminho inerente à

acumulação capitalista, impelindo o mundo da mercadoria para uma posição de mecanismo

universal de socialização, não se realiza pela homogeneização dos processos de trabalho. A

heterogeneidade é a marca do desenvolvimento da produtividade, que valida a

desigualdade na partilha dos frutos da exploração. A particularização do espaço em termos

produtivos é, assim, expressão desse desenvolvimento desigual e combinado.

A dinâmica que se expressa através de atos individualizados de

investimento produtivo tem como necessidade atingir rentabilidade máxima. Daí que a

mobilidade do capital esteja sincronizada ao ritmo da acumulação e que a análise concreta

do desenvolvimento industrial brasileiro indique uma situação na qual preponderam níveis

de elevada concentração e centralização dos pólos produtivos em pontos espaciais

específicos. Nesse sentido, a existência da produção gomífera, como área produtiva de

baixa taxa de lucro, se articula ao conjunto das determinações postas pelo avanço e

aprofundamento das relações capitalistas de produção. Logo, a explicitação das suas

determinações implica desvendar as complexas relações que mantém com o processo de

industrialização. É nesse contexto, por conseguinte, que se estabelecem os movimentos

responsáveis pela superação da posição monopólica ocupada pela produção amazônica nos

mercados internacionais. Assim como vimos, a domesticação da hévea é resultado do

desencadeamento de forças concorrenciais no âmbito de operação dos capitais nas

economias centrais. Com isso, o processo de transferência da produção gomífera da

Amazônia para as regiões da Ásia, submetidas às nações centralizadoras do uso industrial

da borracha, segue o movimento de afirmação de um padrão tecnológico, que nucleará a

reorganização das relações internacionais sob a égide do capital monopolista.

As economias de caráter retardatário submetem-se às determinações mais

gerais do desenvolvimento industrial das economias centrais. Nos momentos iniciais da

crise da borracha amazônica, o processo de industrialização brasileiro inicia a estruturação

de um ramo produtivo em resposta à afirmação da indústria automobilística como núcleo

dinâmico daquelas economias. E a produção gomífera amazônica, ao perder o domínio

25

sobre o mercado mundial para a produção obtida em bases agrícolas racionalizadas, é

deslocada da órbita da produção industrial no centro, passando a orbitar uma

industrialização de caráter periférico. Os resultados desse movimento sobre a economia

extrativista promovem significativas implicações: em primeiro lugar, a formação dos

preços para o produto amazônico, obtido a partir das bases nativas, que passa a ter por

referência as condições produtivas nos seringais asiáticos de base agrícola; em segundo, o

padrão técnico de uso da matéria-prima, como resultado dos desdobramentos das

condições tecnológicas de produção nos países centrais.

Durante as fases nacionais de industrialização restringida e de

industrialização pesada, os ramos industriais que definem o padrão de acumulação

asseguram, em seu interior, a concentração dos investimentos produtivos. Esse movimento

promove, ao mesmo tempo, a redefinição continuada dos níveis de rentabilidade

prevalecentes na economia e, em última instância, a elevação dos valores mínimos para a

constituição de novas parcelas de capital. Desse modo, são estabelecidas contratendências

ao movimento de capitais, o que equivale à formação de um “freio”, em termos espaciais,

na tendência à homogeneização. Isso afirma uma periferia de atividades integradas aos

pólos da industrialização, no entanto, fundadas em unidades produtivas tecnologicamente

retardatárias.

A força de trabalho em ação na economia, distribuída nesse conjunto

produtivo tecnologicamente heterogêneo, submete-se a níveis de rendimentos

hierarquizados pelas condições sob as quais se efetiva o dispêndio de trabalho. A expressão

do desenvolvimento capitalista desigual e combinado exacerba as diferenças entre os pólos

dessa cadeia produtiva: ao lado de atividades exercitadas sob condições tecnológicas de

ponta, desenvolvem-se, também, produções onde o trabalho se sujeita a elevados níveis de

exploração. Assim, ao se tomar a questão a partir de uma perspectiva que contemple as leis

mais gerais do movimento de capitais, torna-se possível reconhecer que a existência de

estruturas diferenciadas de exploração do trabalho são momentos imanentes aos

desdobramentos do desenvolvimento capitalista. Não se reconhece, portanto, as teses tais

como as de “colonialismo interno”, que pressupõem exploração entre formações

culturalmente diferenciadas para explicar a existência de recortes regionais, ou seja, que

atribuem a formação das configurações regionais à ação de leis e tendências externas ao

andamento da acumulação de capital.

26

As teses dualistas sobre a questão regional supõem um entendimento de

que o “moderno” cresce e se alimenta da existência do “atrasado”, ou seja, que a região em

desnível apresenta-se como funcional à expansão da região desenvolvida. Isso significa

entendê-las como formações econômico-sociais distintas, que mantêm entre si somente

relações externas, muito embora indispensáveis à acumulação. Esse entendimento da

questão resulta, entretanto, de uma inadequada apreensão do movimento real. Ao contrário

dessa abordagem, compreendemos que a questão regional da economia extrativista deve

ser recuperada e analisada através do movimento do capital, o que implica entendê-la como

esfera da produção social a partir da apreensão do capital como uma totalidade, isto é,

desde sua forma mais geral de existência. Por essa perspectiva, a problemática da

economia extrativista é devidademente recolocada dentro do processo de acumulação do

capital e seus movimentos estarão regidos pela lei do valor. Assim sendo, podemos

apreendê-la como trabalho socialmente distribuído, cuja produção atende às necessidades

sociais que se definem a partir de uma estrutura de valorização do capital.

De modo concreto, o processo de constituição da região acreana é

apreendido enquanto momento posto pela relação recíproca entre tendências que são

próprias ao desenvolvimento desigual do capitalismo. Consequentemente, as condições

internas de reprodução das bases produtivas regionais não são entendidas como “barreiras”

absolutas. Na verdade, quando encaradas em suas dimensões econômicas e, a partir daí em

suas dimensões políticas, os fatores que caracterizam as condições internas às regiões, ao

contrário de ser entendidos como barreiras, podem ser superados ao nível das

determinações da própria acumulação de capital. E nesses termos, as taxas de lucro

potenciais funcionam como elemento coordenador do movimento espacial do capital.

Por todo seu período de vigência, aproximadamente entre 1870 e 1970, a

economia extrativista da borracha implicou o redimensionamento dos espaços econômico-

sociais do país. Provocou a incorporação de terras, a alocação de capitais (comercial e

financeiro), a drenagem de força de trabalho e políticas estatais para a Amazônia,

demarcando o modo pelo qual se impôs nacionalmente a divisão internacional do trabalho.

O auge dessa economia gerou riquezas, possibilitou o acúmulo de capitais, produziu

cidades, portos e vias de comunicação. Contudo, no momento de transição entre as décadas

de 1960 e 1970, a economia extrativista em decadência gerou grandes áreas estagnadas,

dentre as quais avaliamos o caso do Acre como caso típico. Isso porque a região acreana

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particularizou-se no universo amazônico em função do exclusivo seringalista, que

restringiu enormemente a diversificação da sua base material e, no momento de

acirramento da crise gomífera, conduziu a região a um estado próximo à letargia mercantil,

conservando apenas uma irregular produção, de pouco volume na produção social.

As questões pontuadas neste trabalho tornaram-se possíveis a partir de

uma revisão crítica da ampla literatura sobre a constituição e os desdobramentos históricos

da economia extrativista, tendo por horizonte temporal o andamento do processo nacional

de industrialização até a consolidação da fase de industrialização pesada. Desse modo,

reconhecemos que a partir da década de 1960, o andamento da industrialização brasileira

seja amplamente reformulado mediante a ação dinamizadora própria do movimento do

capital, principalmente face à emergência das novas circunstâncias que se anunciam para

as relações internacionais neste período. No plano interno, a “modernização”, a que se

submete a agricultura no Centro-Sul brasileiro, repercute de forma a reorganizar

espacialmente a produção e a estabelecer profundas alterações na matriz nacional dos

preços relativos da terra. No contexto regional da Amazônia, o percurso que os capitais

ensaiam no início da década de 1970, chega a indicar uma tendência ao processo de

homogeneização espacial que, no entanto, é invertido na década de 1980, com o

agravamento da crise internacional capitalista.

* * *

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