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ARTIGO DE REVISÃO 56 ALTERAçõES IMUNOLóGICAS E DA FUNçãO TIROIDEIA NA GRAVIDEZ E NO PERíODO PóS-PARTO RESUMO A gravidez está associada a um estado de tolerância transitória e seletiva para os aloantigénios paternos, através de mecanismos placentários locais e de mecanismos imunes sistémicos, influenciados por alterações hormonais. Este estado impede que haja rejeição do feto, que constitui um semienxerto, e permite a ocorrência de microquimerismo fetal. No período pós-parto, as alterações imunes não são imediatamente revertidas, mas gradualmente retornam ao seu estado basal nos 12 meses após o parto. Ocorrem também adaptações fisiológicas da tiroide à gravidez, havendo uma estimulação da glândula pela hCG (Human Chorionic Gonadotrophin) e uma correlação inversa entre esta e a TSH (yroid Stimulating Hormone); um aumento da T 4 (Tiroxina) e da T 3 (Triiodotironina) totais; um aumento do volume tiroideu, especial- mente em áreas com aporte de iodo inadequado; e um estado de défice relativo de iodo, sendo recomendada a ingestão de 250 µg/dia. Estão definidos intervalos de referência para a TSH em cada trimestre de gestação. O presente artigo de revisão pretende sistematizar as alterações imunológicas e as modificações fisiológicas da função tiroideia que ocorrem durante a gravidez e o período pós-parto. PALAVRAS-CHAVE: GRAVIDEZ, PERíODO PóS-PARTO, TIROIDE, SISTEMA IMUNE, DOENçA AUTOIMUNE TIROIDEIA Joana Filipa Barreira 1 , Celestino Neves 2 , César Esteves 2 , Luís Delgado 3 , José Luís Medina 2 , Davide Carvalho 2 IMMUNOLOGICAL CHANGES AND THYROID FUNCTION DURING PREGNANCY AND POSTPARTUM PERIOD ABSTRACT Pregnancy is associated with a transient and selective tolerance for paternal alloantigens through local placental and systemic immune mechanisms, influenced by hormonal changes. is state prevents the rejection of the fetus which is a semi-allograſt and allows the occurrence of fetal microchimerism. In the postpartum period the immune changes are not immediately reversed, but gradually go back to usual state within 12 months aſter delivery. ere is also a physiological adaptation of thyroid gland to pregnancy, occurring a stimulation of the gland by hCG (Human Chorionic Gonadotrophin) and an inver- se correlation between this and TSH (yroid Stimulating Hormone); an increase in total T 4 (yroxine) and T 3 (Triiodothyronine); an increase in thyroid volume, particularly in areas of inadequate iodine intake; and a state of relative deficiency of iodine. It is recommended a daily intake of 250 µg. ere are specific reference ranges for TSH in each trimester. is review article aims to systematize immunological and physiological changes in the thyroid function that occur during pregnancy and the postpartum period. KEY-WORDS: PREGNANCY, POSTPARTUM PERIOD, THYROID, IMMUNE SYSTEM, AUTOIMMUNE THYROID DISEASE 1. FACULDADE DE MEDICINA DA UNIVERSIDADE DO PORTO 2. SERVIçO DE ENDOCRINOLOGIA, DIABETES E METABOLISMO. CENTRO HOSPITALAR DE SãO JOãO. FACULDADE DE MEDICINA DA UNIVERSIDADE DO PORTO 3. SERVIçO E LABORATóRIO DE IMUNOLOGIA. CENTRO HOSPITALAR DE SãO JOãO. FACULDADE DE MEDICINA DA UNIVERSIDADE DO PORTO INTRODUçãO Durante a gravidez, as mulheres estão expostas a aloantigénios fetais e estabelecem tolerância imu- nológica para prevenir a rejeição do feto 1 , havendo alterações do sistema imune 2 . Ao longo dos tempos, foram já propostas várias teorias para a não ocor- rência de rejeição do feto, entre as quais o feto ser imunologicamente imaturo, o feto estar anatomi- camente separado da mãe e o sistema imune ma- terno estar inerte durante a gravidez. No entanto, estas hipóteses não têm sido comprovadas, uma vez que está atualmente demonstrado que as mulheres grávidas produzem anticorpos contra os antigénios fetais 3 , ocorre transferência de células entre a mãe e o feto (microquimerismo fetal) 4,5 e o sistema imu- ne materno é capaz de desenvolver uma resposta de defesa contra agentes infeciosos e uma resposta imunogénica a uma vacina 2 . Pensa-se que o útero da grávida é um local imunologicamente privilegia- do 6 . São vários os mecanismos envolvidos na alte- ração da resposta imunológica durante a gravidez, sendo de origem materna, placentária ou fetal. A regulação da função tiroideia durante a gestação é importante quer para a mãe quer para o feto 7 , es- pecialmente durante o 1º trimestre, em que o feto está dependente das hormonas tiroideias maternas para o seu desenvolvimento 8 . Verifica-se uma adap- tação fisiológica do volume tiroideu e da função tiroideia às necessidades energéticas e ao aporte de iodo 9 , ocorrendo, deste modo, alterações relevantes mas reversíveis da função tiroideia 10 . As doenças da tiroide são mais frequentes em mulheres, especial- mente em idade reprodutiva 11 . As doenças autoi- munes, nomeadamente as doenças autoimunes da tiroide são atenuadas durante a gravidez e sofrem uma exacerbação após o parto 12 . O presente artigo tem como objetivos sistematizar as alterações do sistema imune materno, bem como as modificações fisiológicas da função tiroideia que ocorrem durante a gravidez e o período pós-parto, no sentido de se compreender o motivo pelo qual as doenças autoimunes da tiroide podem ser modifi- cadas pelo curso da gravidez. GRAVIDEZ E TOLERÂNCIA IMUNOLóGICA O feto constitui um semienxerto, pois metade dos antigénios que possui são de origem paterna 1 . Du- DATA DE RECEPçãO / RECEPTION DATE: 13/11/2013 - DATA DE APROVAçãO / APPROVAL DATE: 07/02/2014 2015;29[2]:56-60

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ARTIGODE REVISÃO56

AlterAções ImunológIcAs e dA Função tIroIdeIA nA grAvIdez e no Período Pós-PArto

resumoA gravidez está associada a um estado de tolerância transitória e seletiva para os aloantigénios paternos, através de mecanismos placentários locais e de mecanismos imunes sistémicos, influenciados por alterações hormonais. Este estado impede que haja rejeição do feto, que constitui um semienxerto, e permite a ocorrência de microquimerismo fetal. No período pós-parto, as alterações imunes não são imediatamente revertidas, mas gradualmente retornam ao seu estado basal nos 12 meses após o parto.Ocorrem também adaptações fisiológicas da tiroide à gravidez, havendo uma estimulação da glândula pela hCG (Human Chorionic Gonadotrophin) e uma correlação inversa entre esta e a TSH (Thyroid Stimulating Hormone); um aumento da T4 (Tiroxina) e da T3 (Triiodotironina) totais; um aumento do volume tiroideu, especial-mente em áreas com aporte de iodo inadequado; e um estado de défice relativo de iodo, sendo recomendada a ingestão de 250 µg/dia. Estão definidos intervalos de referência para a TSH em cada trimestre de gestação.O presente artigo de revisão pretende sistematizar as alterações imunológicas e as modificações fisiológicas da função tiroideia que ocorrem durante a gravidez e o período pós-parto.

PALAVRAS-CHAVE: GrAvidEz, pEríOdO póS-pArTO, TirOidE, SiSTEmA imuNE, dOENçA AuTOimuNE TirOidEiA

Joana Filipa Barreira1, Celestino Neves2, César Esteves2, Luís Delgado3, José Luís Medina2, Davide Carvalho2

ImmunologIcAl chAnges And thyroId FunctIon durIng PregnAncy And PostPArtum PerIod

ABstrActpregnancy is associated with a transient and selective tolerance for paternal alloantigens through local placental and systemic immune mechanisms, influenced by hormonal changes. This state prevents the rejection of the fetus which is a semi-allograft and allows the occurrence of fetal microchimerism. in the postpartum period the immune changes are not immediately reversed, but gradually go back to usual state within 12 months after delivery.There is also a physiological adaptation of thyroid gland to pregnancy, occurring a stimulation of the gland by hCG (Human Chorionic Gonadotrophin) and an inver-se correlation between this and TSH (Thyroid Stimulating Hormone); an increase in total T4 (Thyroxine) and T3 (Triiodothyronine); an increase in thyroid volume, particularly in areas of inadequate iodine intake; and a state of relative deficiency of iodine. it is recommended a daily intake of 250 µg. There are specific reference ranges for TSH in each trimester.This review article aims to systematize immunological and physiological changes in the thyroid function that occur during pregnancy and the postpartum period.

KEY-WORDS: prEGNANCy, pOSTpArTum pEriOd, THyrOid, immuNE SySTEm, AuTOimmuNE THyrOid diSEASE

1. Faculdade de Medicina da universidade do Porto

2. serviço de endocrinologia, diabetes e MetabolisMo. centro HosPitalar de são João. Faculdade de Medicina da universidade do Porto

3. serviço e laboratório de iMunologia. centro HosPitalar de são João. Faculdade de Medicina da universidade do Porto

Introdução

durante a gravidez, as mulheres estão expostas a aloantigénios fetais e estabelecem tolerância imu-nológica para prevenir a rejeição do feto1, havendo alterações do sistema imune2. Ao longo dos tempos, foram já propostas várias teorias para a não ocor-rência de rejeição do feto, entre as quais o feto ser imunologicamente imaturo, o feto estar anatomi-camente separado da mãe e o sistema imune ma-terno estar inerte durante a gravidez. No entanto, estas hipóteses não têm sido comprovadas, uma vez que está atualmente demonstrado que as mulheres grávidas produzem anticorpos contra os antigénios fetais3, ocorre transferência de células entre a mãe e o feto (microquimerismo fetal)4,5 e o sistema imu-ne materno é capaz de desenvolver uma resposta de defesa contra agentes infeciosos e uma resposta imunogénica a uma vacina2. pensa-se que o útero da grávida é um local imunologicamente privilegia-do6. São vários os mecanismos envolvidos na alte-ração da resposta imunológica durante a gravidez, sendo de origem materna, placentária ou fetal. A regulação da função tiroideia durante a gestação é importante quer para a mãe quer para o feto7, es-

pecialmente durante o 1º trimestre, em que o feto está dependente das hormonas tiroideias maternas para o seu desenvolvimento8. verifica-se uma adap-tação fisiológica do volume tiroideu e da função tiroideia às necessidades energéticas e ao aporte de iodo9, ocorrendo, deste modo, alterações relevantes mas reversíveis da função tiroideia10. As doenças da tiroide são mais frequentes em mulheres, especial-mente em idade reprodutiva11. As doenças autoi-munes, nomeadamente as doenças autoimunes da tiroide são atenuadas durante a gravidez e sofrem uma exacerbação após o parto12. O presente artigo tem como objetivos sistematizar as alterações do sistema imune materno, bem como as modificações fisiológicas da função tiroideia que ocorrem durante a gravidez e o período pós-parto, no sentido de se compreender o motivo pelo qual as doenças autoimunes da tiroide podem ser modifi-cadas pelo curso da gravidez.

grAvIdez e tolerÂncIA ImunológIcA

O feto constitui um semienxerto, pois metade dos antigénios que possui são de origem paterna1. du-

dAtA de recePção / recePtIon dAte: 13/11/2013 - dAtA de AProvAção / APProvAl dAte: 07/02/2014

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rante a gravidez ocorre microquimerismo fetal5, que se refere a um fenómeno de migração de células fetais para a circulação materna através da placenta4, in-cluindo células hematopoiéticas progenitoras Cd34+ e Cd34+Cd38+ (Cd - Cluster of differentiation)13,14, eritrócitos nucleados, células trofoblásticas e leucóci-tos5,13. podem ser encontradas na corrente sanguínea e tecidos maternos, como a tiroide4 e permanecer na circulação materna muitos anos após o parto14. Tanto os mecanismos placentários locais como os mecanismos imunes sistémicos, influenciados por alterações hormonais (Figura 1), têm um papel na geração de tolerância imune ao feto15. A expressão de antigénios mHC (major Histo-compatibility Complex) classe i pelas células tro-foblásticas está consideravelmente reduzida1 e os antigénios de classe ii estão ausentes16. O reconheci-mento dos aloantigénios fetais pela mãe não se deve à estimulação direta de células T pelos antigénios mHC, mas necessita da apresentação indireta pelas ApC (Antigen presenting Cells)17. O citotrofoblasto extraviloso expressa HLA (Hu-man Leukocyte Antigen) -E, HLA-F e HLA-G, genes não clássicos de classe i. A mucosa uterina da grávida possui um grande número de células NK (Natural Killer)1, que expressam altos níveis de Cd56, produzem grande quantidade de citocinas imunorreguladoras [(iFNγ (intracellular Gamma-interferon), Gm-CSF (Granulocyte-macrophage Colony-stimulating Factor), TNF (Tumor Necrosis Factor)]2 e pensa-se que atuam na defesa localizada contra vírus1, apesar de serem menos citotóxicas2. As proteínas HLA-E e HLA-G interagem para inibir a morte celular mediada por células NK1 e a HLA-G modula a função das células dendríticas, tornando-as mais tolerogénicas1,13. O sinciciotrofoblasto expressa e segrega a enzima idO (indolamine 2,3-dioxygenase), que metaboli-za o triptofano. A depleção deste aminoácido pre-vine a proliferação de células T1,2 e os produtos do catabolismo previnem a ativação e proliferação de células B e células T. A idO também inibe o dano mediado pelo complemento1. O sinciciotrofoblasto expressa o Fas ligando (Cd95L), uma molécula que quando se liga ao Fas (Cd95) nos linfócitos ativados induz a sua destruição e das proteínas do comple-mento (como Cd46, Cd55 e Cd59), diminuindo a ativação do complemento2. A produção de LiF (Leukemia inhibitory Factor) pelo endométrio é essencial para a implantação do blastocisto1,13 e pen-sa-se que tem um papel imunológico na tolerância materno-fetal13. A modulação imune conduzida pela placenta promove a supressão de uma resposta imune TH (T

Helper) 1, associada à imunidade celular, e um pre-domínio relativo de respostas imunes TH2, associa-das à resposta imune humoral e alérgica13. O TGFβ1 (Transforming Growth Factor β) é uma citocina imunossupressora que promove a diferenciação TH2, para além de inibir a proliferação de células B e T, a atividade citotóxica das células NK e a citoto-xicidade das células T, participando, por isso, na re-gulação imunológica da gravidez18. A progesterona sintetizada pela placenta pode atuar sistemicamente e na interface materno-fetal, desviando a resposta das células TH para a produção de citocinas TH2 e influenciando outras moléculas imunologicamente ativas19. As altas concentrações de estrogénios, por sua vez, contribuem para a diminuição da produ-ção de autoanticorpos pelas células B18. Tem sido dada grande atenção às células Treg (T reguladoras) Cd4+Cd25+Foxp3, capazes de supri-mir a proliferação e ativação de outras células T, através de contacto direto célula-a-célula ou atra-vés da libertação de citocinas imunossupressoras, como iL (interleucina)-10 e TGFβ, sendo importan-tes na prevenção da rejeição do feto2 e manutenção da tolerância1. Estas estão aumentadas em número1, principalmente na decídua e em menor extensão no sangue periférico20. Aumentam precocemente na

Figura 1 sumárIo dos mecAnIsmos envolvIdos nA tolerÂncIA mAternA em relAção Ao Feto.* Ido – indolaMine 2,3-dioxygenase; lIF - leukeMia inHibitory Factor; tnFl6 - tuMor necrosis Fator ligand suPerFaMily MeMber 6; treg – células t reguladoras; hlA – HuMan leukocyte antigen; t

h2 – t HelPer 2;

nK – natural killer.adaPtada de WeetMan aP. iMMunity, tHyroid Function and Pregnancy: Molecular MecHanisMs. nat rev endocrinol. 2010 Jun;6(6):311-8. (reProdução autorizada)

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gravidez e atingem o máximo no segundo trimes-tre2,20, sendo atraídas para o local da implantação pela hCG (Human Chorionic Gonadotrophin)2. Nos casos de abortamento espontâneo, verifica-se uma baixa proporção de células Treg1,2. Outras populações de células Treg são ativadas, como por exemplo as células T Cd8+ ativadas precocemente por trofoblastos placentários humanos, que expres-sam o marcador Cd103 e usam elementos de restri-ção mHC únicos e sinais coestimulatórios1. pensa-se que o aumento das células Treg se deve à apresentação de antigénios fetais e à expressão de quimiocinas induzida pelos estrogénios20. A pro-gesterona pode ser responsável pela redução das células Treg no 2º trimestre de gravidez, enquanto a produção de quimiocinas pelo trofoblasto pode explicar a sua acumulação na decídua. A interação local entre as células Treg e as células dendríticas naive pode levar a que as últimas expressem idO, que as torna potentes inibidoras da proliferação de células T, com predileção por subtipos específicos (células TH17 virtualmente ausentes da decídua hu-mana, células TH1 com reduzida produção de iFNγ, células TH2 presentes na mesma frequência que na circulação)1. Como resultado destas alterações, as células ma-ternas e fetais são reciprocamente reconhecidas por cada um dos sistemas imunes, resultando na capaci-dade da mãe em tolerar o semienxerto fetal, enquan-to o feto adquire um ambiente tolerogénico que pode estabelecer proteção contra doenças autoimunes1. desta forma, a gravidez não está associada a um esta-do de imunossupressão como se pensava antigamen-te, mas a uma tolerância seletiva, sendo transitória e específica para os aloantigénios paternos2.

2. AlterAções dA tIroIde nA grAvIdez

durante a gravidez ocorrem alterações hormonais e metabólicas com o objetivo de modificar a econo-mia tiroideia, que resultam na modificação dos seus parâmetros bioquímicos11. A TBG (Thyroxine Binding Globulin), a transtir-retina e a albumina constituem as proteínas trans-portadoras de hormonas tiroideias no sangue. A TBG é a que apresenta maior afinidade e tem ca-pacidade de interconversão entre formas de alta e baixa afinidade15, apesar da sua baixa concentração sanguínea18,21. É responsável pelo transporte de 68% da T4 (Tiroxina) e 80% da T3 (Triiodotironina)21. durante a gravidez, a produção de TBG pelo fíga-do está aumentada2,21 e a sua semivida é prolongada (de 15 minutos para 3 dias21), devido ao aumento da

sialilação induzida pelos estrogénios11, atingindo os valores mais elevados entre a 20ª e a 24ª semanas18. A produção de hCG pela placenta inicia-se na 1ª semana após a conceção e atinge o valor máximo na 10ª semana, diminuindo a partir de então e atin-gindo um patamar na 20ª semana15. As moléculas de hCG e TSH (Thyroid Stimulating Hormone) apresentam semelhanças, devido à subunidade α comum2,21, à homologia da subunidade β22, assim como dos seus recetores. Consequentemente, a hCG estimula a glândula tiroide através de receto-res TSH, sendo este efeito dependente da amplitude e da duração do pico de hCG11, embora para níveis circulantes elevados o efeito global possa ser subs-tancial23. verifica-se uma correlação negativa entre a TSH e a hCG15,22, com TSH baixa no 1º trimestre em consequência dos níveis elevados de hCG2,15. Em seguida, os níveis de TSH aumentam e atingem o valor mais elevado no 3º trimestre24. Os níveis de T4 e T3 totais aumentam durante a gravidez. isto deve-se principalmente ao aumento da TBG e resultante diminuição das frações livres de T4 e T3 . por outro lado, verifica-se a inativação da T4 e T3 pela desiodinase iii, na placenta, de forma a proteger o feto da passagem excessiva de hormonas tiroideias maternas. Estes dois mecanismos levam à estimulação da produção de TSH e, consequen-temente, de hormonas tiroideas21. muitos autores consideram que os níveis de T4 e T3 livres são infe-riores durante a gravidez15, embora se mantenham habitualmente dentro dos intervalos de referência25. vários fatores podem influenciar o nível de hormo-nas tiroideias livres, como o nível de hCG, o aporte de iodo pré-gestacional e o facto de a mãe ser fuma-dora. A diminuição da T4 livre pode não ser apenas uma consequência do aumento da TBG, mas tam-bém do aumento da sua afinidade, embora faltem estudos nesta área. A albumina diminui durante a gravidez, diminuindo a possibilidade de libertação fácil da T4 ligada15. Alguns autores defendem o uso de intervalos de referência específicos para cada idade gestacio-nal24,26,27. de acordo com as diretrizes publicadas pela ATA (American Thyroid Association), se os in-tervalos de referência da TSH específicos para cada trimestre não estiverem disponíveis no laboratório, são recomendados os seguintes: 1º trimestre: 0,1-2,5 mui/L; 2º trimestre: 0,2-3,0 mui/L; 3º trimestre: 0,3-3,0 mui/L. devido à grande variabilidade de resultados do doseamento da T4 livre, são necessá-rios intervalos de referência específicos para cada método e para cada trimestre28. São vários os fatores que influenciam o tamanho da tiroide: aporte de iodo, genética, sexo, idade,

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TSH, parâmetros antropométricos, paridade e ta-bagismo15. durante a gravidez, o volume da tiroide mantém correlação positiva com o imC (índice de massa Corporal) e correlação negativa com a TSH29. Nas áreas com aporte adequado de iodo, o volume geralmente não varia durante a gravidez15, apesar de existirem casos descritos de aumento do volume29, que pode relacionar-se com alterações he-modinâmicas, pois verifica-se um aumento da vo-lémia e, consequentemente, do peso corporal15, bem como aumento da vascularização2,15. Nas áreas com deficiência de iodo pode haver aumento do volume tiroideu2. A depuração renal de iodo aumenta, devido ao aumento da taxa de filtração glomerular11,15,21 e ve-rifica-se também redistribuição pelo feto2, havendo um défice relativo18. Em áreas em que o aporte de iodo é suficiente, o aumento da depuração não tem repercussões21,23, mas em áreas com deficiência de iodo pode levar a bócio e hipotiroidismo2,21,23. A in-gestão diária recomendada durante a gravidez é de 250 µg28,30. Em portugal, existe evidência recente da existên-cia de deficiência de iodo em populações de risco, nomeadamente em grávidas e lactentes31-33. Num estudo realizado em 17 maternidades do Continen-te e regiões Autónomas, verificou-se que apenas 16,8% das grávidas do Continente apresentavam valores de iodúria adequados, conforme a definição da OmS (Organização mundial de Saúde)31. Outro estudo realizado na região do minho demonstrou que as grávidas e as mulheres em idade fértil apre-sentavam deficiência de iodo, com existência de bócio em 14% das grávidas32. Num outro estudo na mesma região, verificou-se que o perfil de hormo-nas tiroideias durante a gravidez não era o adequa-do para suprir as necessidades do feto33.

3. Período Pós-PArto

3.1. alterações iMunológicaspensa-se que muitas das alterações imunológicas que ocorrem durante a gravidez não são imedia-tamente revertidas pela expulsão da placenta, em-bora gradualmente retornem ao seu estado prévio nos 12 meses após o parto. Alguns estudos sugerem nenhuma ou uma ligeira alteração no número total de células T circulantes no período pós-parto pre-coce34. verifica-se uma relação inversa das células T Cd4+/Cd8+ e, no que respeita à relação de células Cd4+ TH1/TH2, uma alteração no perfil de citoci-nas a favor de respostas TH15,13. As células T ativa-das, que estão marcadamente aumentadas durante

a gravidez, retornam ao estado basal uma semana após o parto. A apoptose através do Fas ligando mantém-se elevada no pós-parto precoce. Apesar de a tolerância das células T maternas para os aloan-tigénios paternos reverter após o parto, o momento e o grau destas alterações não foram bem estuda-dos, verificando-se que aos 6 meses pós-parto tanto a mãe como o filho ainda apresentam tolerância em relação ao outro34. verifica-se uma ligeira reversibilidade no período pós-parto do sinal negativo enviado pelos estrogé-nios para a função das células B durante a gravidez. Em muitos estudos, os níveis de ig (imunoglobuli-na) G total34 e de anticorpos aumentam durante o pós-parto5,13,34, sugerindo uma estimulação imune contínua, não específica34. Noutro estudo verificou-se um aumento das células B circulantes e do nível de AdCC (Antibody dependent Cell-mediated Cytotoxicity), não havendo, no entanto, uma modi-ficação de acordo com o mês do pós-parto35. As alterações na glicosilação das imunoglobulinas são revertidas. pode haver aumento da formação de imunocomplexos, que pode ter significado nas pacientes suscetíveis, como por exemplo, naquelas com artrite reumatoide34. As células que migram para a circulação mater-na e se fixam nos tecidos durante a gravidez po-dem sobreviver sem serem destruídas, podendo estabelecerem-se por elas próprias e sobreviverem durante alguns meses após o parto. Em condições normais, muitas células fetais são perdidas durante este período. Aquelas que permanecem nos tecidos maternos após o parto são principalmente células imunes, incluindo células T imunologicamente competentes, que podem modular as doenças au-toimunes da tiroide, desempenhando o papel de ApC. podem ser células estaminais pluripotentes e a sua diferenciação pode ser em resposta a uma lesão pré-existente do tecido, como autoimunidade ou infeção5.

3.2 alterações da tiroideOs níveis de TBG diminuem no 3º ou 4º dia pós-parto15, sendo nesta altura que a TSH atinge o nível mais elevado36, mas aos 4 meses, os níveis de TSH são inferiores aos do 3º trimestre e 1 ano após o parto são inferiores aos do 2º e 3º trimestres, exceto num estudo15. A T3 e a T4 livres aumentam no 3º ou 4º dia após o parto36 e retornam ao basal 4 meses após o parto, não estando associadas com a concen-tração urinária de iodo15. Nas mulheres cujo volume tiroideu aumentou durante a gravidez por alterações hemodinâmicas, verificou-se diminuição do volume após o parto15.

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conclusões

Com a realização desta revisão concluiu-se que a gravidez não está associada a um estado de imunos-supressão, mas a uma tolerância imunológica tran-sitória e seletiva para os antigénios paternos, fenó-meno que permite que não ocorra rejeição do feto. durante a gravidez verifica-se uma supressão das respostas associadas à imunidade celular (TH1) e um predomínio de respostas humorais e alérgicas (TH2), razão pela qual as doenças autoimunes, no-meadamente as doenças autoimunes da tiroide são atenuadas durante a gravidez e sofrem uma exacer-bação após o parto. No período pós-parto, as alterações imunológicas

não são imediatamente modificadas, mas gradual-mente são revertidas. A função tiroideia sofre também uma alteração durante a gravidez, estando envolvidos vários me-canismos, entre os quais a produção de hCG pela placenta. devido à alteração das concentrações de hormonas tiroideias, estão definidos intervalos de referência para cada trimestre gestacional. A gravi-dez está associada a um défice relativo de iodo, que pode levar a hipotiroidismo em áreas com defici-ência de iodo. por esta razão, é fundamental uma ingestão adequada durante a gravidez. É importante compreender a fisiologia tiroideia durante a gestação, de forma a permitir um harmo-nioso desenvolvimento do feto e da saúde materna.

reFerÊncIAs

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2015;29[2]:56-60