agulhon. 1848-o aprendizado da republica (cap. 1 e conclusao)

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Por que a República? O ano de 1848 destaca-se na história francesa como uma no- va mudança de regime político1 — é esta sua característica mais evidente. A República substitui a Monarquia, ou uma monarquia. Um poder anónimo, mais ou menos coletivo, mas em todo caso amplamente dpsj^rsona1jz_gdri P Hessarrali?aHn vem substituir o reinado de um homem, um Soberano designado e tido como superior simplesmente por nascimento. Que significa essa forma de poder? Um expediente para ga- rantir o funcionamento do Estado na falta provisória de um mo- narca, ou seja, uma espécie de regência? Ou um sistema que de- ve ser escolhido por si mesmo, credor de méritos positivos? A primeira concepção — a de república transitória à espera da res- tauração da monarquia — não é estranha à história da França. Antecipemos um pouco o curso dessa história: encontraremos es- se tipo de república entre fevereiro de 1871 e janeiro de 1879. E sem dúvida já desde 1848 muitos políticos franceses só aceitam a República dentro de tal perspectiva. Contudo, esses republica- nos por passividade e por circunstância, republicanos pela força dos fatos — dir-se-ia até "republicanos de amanhã", subenten- 1. Este livro, que aborda um período curto e pleno de experiências políticas, teria necessariamente de centrar-se na política. As transformações económicas e so- ciais, que se processam em ciclos mais longos, são descritas em La France des No- tables (1815-1848). II. La vie de la nation, de A. Jardin e A.J. Tudesq, e Dc la fête impériale au- mur des federás (1852-1871), de A. Plessis, da coleção "Points Histoi- re" da editora Seuil. Aqui, merecerão apenas algumas referências.

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Maurice Agulhon, 1848.

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Page 1: agulhon. 1848-o aprendizado da republica (cap. 1 e conclusao)

Por que a República?

O ano de 1848 destaca-se na história francesa como uma no­va mudança de regime político1 — é esta sua característica mais evidente. A República substitui a Monarquia, ou uma monarquia. Um poder anónimo, mais ou menos coletivo, mas em todo caso amplamente dpsj^rsona1jz_gdri P Hessarrali?aHn vem substituir o reinado de um homem, um Soberano designado e tido como superior simplesmente por nascimento.

Que significa essa forma de poder? Um expediente para ga­rantir o funcionamento do Estado na falta provisória de um mo­narca, ou seja, uma espécie de regência? Ou um sistema que de­ve ser escolhido por si mesmo, credor de méritos positivos? A primeira concepção — a de república transitória à espera da res­tauração da monarquia — não é estranha à história da França. Antecipemos um pouco o curso dessa história: encontraremos es­se tipo de república entre fevereiro de 1871 e janeiro de 1879. E sem dúvida já desde 1848 muitos políticos franceses só aceitam a República dentro de tal perspectiva. Contudo, esses republica­nos por passividade e por circunstância, republicanos pela força dos fatos — dir-se-ia até "republicanos de amanhã", subenten-

1. Este livro, que aborda um período curto e pleno de experiências políticas, teria necessariamente de centrar-se na política. As transformações económicas e so­ciais, que se processam em ciclos mais longos, são descritas em La France des No-tables (1815-1848). II. La vie de la nation, de A. Jardin e A.J. Tudesq, e Dc la fête impériale au- mur des federás (1852-1871), de A. Plessis, da coleção "Points Histoi-r e " da editora Seuil. Aqui, merecerão apenas algumas referências.

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1848 o aprendunio da Repúblim

dendo-se "da Revolução" no início não são os mais fortes. A República é proclamada a 25 de fevereiro de 1848 em Paris por republicanos "da véspera", calorosos e convictos partidários da República pela própria República.

1 Um debate de história e política

Qual era, então, o sentido de tal aspiração? Nao merecem des taque as referências do exterior, lembranças escolares sobre ci dades livres de Atenas e Roma, nem tampouco o conhecimento dos Estados Unidos da América.

Certamente, Atenas e Roma fa/.em parte da educação bur guesa e os Estados Unidos sensibilizam um público instruído. Mas Demóstenes, Bruto ou Washington fornecem antes modelos de comportamento pessoal do que exemplos constitucionais e poli ticos. Para estes, a principal referência já é de caráter nacional Pensar na República de 1848 significava pensar na Revolução Francesa. Como se escreveu há alguns anos, 1848 e a "primeira ressurreição da Republica" (Henri Guillemin 2)

Imagem e lembrança da Revolução

Resta saber como os jovens de 1848 representavam a Primei ra República Francesa, e de que modo podiam apreciá-la. Tarefa nao muito fácil. O espírito do .Século dds.Luz.es, alibjirxlaJe-piilí

j j r a p a i g n a l H a r i p r i v i l , a m o r i p r n i H a d a das J n s t i t u i ç n P S e O o r g U -

Ihonarippal conwtm-— tudo isso que foi conquistado em 1789 go-dia conciliar-se com um regime monárquica. Foi o que ocorreu de 1789 a 1792, de 1804 a 1814, e voltou a ocorrer a partir de 1830. sob o símbolo da bandeira tricolor e o título de rei (ou impera dor) "dos franceses". Contentar-se com isso nao impedia nin­guém de ser, sem perder a honra, filosofo, liberal e patriota Mas ser republicano, invocando a época de 1792-1804, significava que rer algo mais Deixemos de lado os anos do Consulado (1800-1804), em que a monarquia imperial já estava em gestação

liiblii.gi.iíi.i. n " 39

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Por que a República?

Deixemos de lado a República do Diretório (1795-1800), cujo fra­casso político e social foi patente. Resta-nos a grande época de 10 de agosto, da Comuna e da Convenção. Pode-se sustentar en­tão que sem a exacerbação da energia revolucionária dispendida naquela época, haveria um grande risco de se perderem as pró­prias conquistas de uma revolução razoável e que era necessário 1793 para salvar e cumprir 1789. Mas tal teoria, hoje banal, ainda não tinha se estabelecido. Por muito tempo, ela foi escamoteada por uma evidência histórica mais forte: a República de 1792 (ano II) que levou a democracia à ditadura popular e o radicalismo ao Terror. Ser republicano era ser partidário da guilhotina e do ma-ximum* um opressor que policia pessoas e bens, um "homem de sangue".

Por volta de 1815, a imensa maioria dos franceses tinha essa imagem grosseiramente simplificadora e fortemente repulsiva da República. Nessa época, entre os que não morreram, nem foram seduzidos pelo oportunismo das monarquias constitucionais, nem sucumbiram ao ceticismo um tanto vergonhoso que "autocen-surava" seu passado, muito poucos eram aqueles que podiam testemunhar — e sobretudo a partir de seu próprio exemplo — os valores positivos da Revolução jacobina. O partido republica­no era essencialmente composto por esses homens e suas famí­lias — conjunto disperso e sem vínculos de pessoas idosas e seus filhos. Para que uma República pudesse tentar renascer em 1830, e consegui-lo em 1848, era preciso que esse grupo informe con­quistasse adeptos e adquirisse consistência. Esse avanço pouco nítido da ideia republicana ao longo dos reinados sucessivos da Restauração e do orleanismo foi a primeira das causas políticas da Revolução de 1848.

Muito pouco se sabe sobre o modo como sobreviveram e se difundiram os antigos combatentes da Primeira República. Com­parada à abundante literatura suscitada pela legenda de Napo­leão, a bibliografia referente à legenda republicana é bem peque­na. A figura do velho soldado que Balzac criou em O médico rural está presente na memória de todos; menos notório, porém, é o velho membro da Convenção evocado por Victor Hugo em Os miseráveis (o "bispo na presença de uma luz desconhecida"). É certo que Victor Hugo carrega seus personagens de tão forte sim-

Refere-se ao preço máximo dos géneros de primeira necessidade e ao salário máximo, fixados durante o Terror, assim como à reivindicação de imposição de um máximo ás fortunas. ( N T . )

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1848 — o aprendizado da República

bolismo, impondo-lhes imagens tão grandiosamente deformadas, que se torna quase impossível vê-los como tipos sociais represen­tativos. Mas assim como existiram os clássicos demi-solde* do Exér­cito imperial, também existiram antigos jacobinos que se torna­ram notários, artesãos ou pessoas que viviam de renda em suas cidadezinhas; e estes, certamente, contavam histórias durante os serões, davam conselhos aos vizinhos e até mesmo participaram (depois de 1831) da política municipal. Fora do âmbito pessoal e familiar, convém ainda ter em mente sua possível influência em associações como lojas maçónicas e sociedades secretas, bem co­mo em pequenos círculos. Nessa convivência com outros livres-pensadores, outros partidários da liberdade política e outros pa­triotas, os veteranos da República conseguiram atrair para seu ideal alguns orleanistas e até bonapartistas desiludidos.

O papel dos historiadores e da história

Mas a soma dessas influências de memórias individuais não seria suficiente caso a literatura não tivesse criado umajiiejmória çoleJtiyaL É graças à História que nos anos 1840 a República se torna mais conhecida e consegue recrutar adeptos por meios diretos, fora do âmbito restrito dos republicanos sobreviventes e das pes­soas a eles ligadas. A História da Revolução já nascera há muito tempo, no período de Restauração, quando os homens da ban­deira branca detinham o poder. Contra eles, liberais como Thiers e Mignet defendiam a grande opção de 1789 — a bandeira trico­lor e os valores de uma política moderna e racional. Esta linha de defesa da Revolução global exaltava a monarquia constitucio­nal e justificava o parêntese republicano como elo de um enca­deamento inelutável, cuja responsabilidade maior cabia à guerra imposta pelo estrangeiro. Contudo, uma vez iniciado o processo de resgate e reflexão do recente passado, já não era possível detê-lo, e se chegaria a estudos mais profundos, mais calorosos e po­liticamente menos circunspectos. Surgem então, quase ao mes­mo tempo (em 1847-1848, período que não chega a dois anos), Uhistoire de la Révolution, de Michelet, Uhistoire des Girondins, de Lamartine, Uhistoire de la Révolution, de Louis Blanc, e Uhistoire

* Militares inativos, que recebiam um soldo reduzido; em particular, ex-combatentes de Napoleão. (N.T.)

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Por que a República?

des Montagnards, de Alphonse Jjs^ruãos. Se Louis Blanc sempre associou o elogio do robespierrismo a convicções socialistas, os demais não são tão exclusivistas, e derivam exatamente desse fa­to sua novidade e sua importância. E m Michelet, assim como em Lamartine, percebe-se que á República não é associada apenas — e talvez nem mesmo em essência — aos poucos meses de dita­dura tensa, sombria e por vezes cruel da primavera e do verão do ano II; nota-se que a princípio, em 1792, a República fora o partido dos homens que reavivaram a chama de 1789, quando o rei e a maioria dos antigos constituintes deixavam-na esmore­cer. Percebe-se, errr suma, que a República não representou na história da Revolução apenas um parêntese ignominioso e curto, mas sim uma revolução nova, a de 1792, tão estimulante e gene­rosa quanto a de 1789. É o que afirmam Lamartine, da Academia Francesa, o poeta mais célebre da época, e também Michelet, in­signe universitário, professor do Collège de France. O partido re­publicano não precisava do pronunciamento explícito desses es­critores a seu favor, pois eles já representavam, quisessem ou não, uma caução moral.

Aliás, a história mobilizada pela Revolução de Julho contra o espírito passadista e retrógrado da monarquia restaurada voltara-se, em todos os campos, contra seu próprio conservado­rismo. Durante os primeiros anos de seu reinado, Luís Filipe man­dara erguer na Praça da Bastilha o obelisco comemorativo dos combates de julho, dupla homenagem aos combates populares — aos de 1830 por referência explícita, aos de 1789 pela escolha do local. Assim, mantinha-se no próprio coração da Paris operá­ria a lembrança oficial da tradição do recurso às armas. Na mes­ma época e no outro extremo da cidade — o alto dos Champs-Élysées, eixo do novo desenvolvimento —, o regime terminava a decoração do Arco do Triunfo. Rude esculpira Le départ des volontaires* para exaltar o ímpeto nacional em 1792. Nesse céle­bre relevo, nada faz lembrar — e com boas razões — a monarquia constitucional. A mulher que lidera a tropa em marcha é, em prin­cípio, o génio da guerra. Mas também pode ser vista como ale­goria da República. Não é casual o fato de Le départ des volontaires ser geralmente chamado de A Marselhesa, nome do hino ainda então considerado revolucionário. A "tirania" que ergue seu "es­tandarte sangrento" era austríaca e prussiana para Rouget de l'Is-

* " A partida dos voluntários." (N.T.)

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1848 — o aprendizado da República

le, mas bem depressa as circunstâncias da Revolução permitiram que fosse interpretada em termos de política interna. Mais uma vez o combate patriótico se tornara combate republicano. jSjria muito_djfici]J^^ ca. A incipiente monarquia de julho correra esse risco, ingenua­mente, ao erguer na capital do país duas imprudências icnográ-ficas. E é bem sabido que naquele tempo se levavam a sério mo­numentos e símbolos.

Evidentemente, o que os monumentos franceses demonstram é também simbólico. Com isto queremos dizer apenas que por ter a Revolução Francesa — nascimento da França moderna — si­do o que foi, sua trajetória teria de ser reproduzida no dinamis­mo romântico de sua exaltação. Assim como houve 1792 depois de 1789, a história encaminhou-se para 1848 após ter ensaiado 1830, e o Regime de Julho viria a morrer historicamente depois de ter surgido como a obra da idade áurea dos historiadores. Da mesma forma a República, desconhecida e aviltada trinta anos antes, já possuía no limiar de 1848 um passado honroso, parti­dários e um lugar na imprensa, na opinião pública e nas tribu­nas. Em suma, como qualquer outro regime, possuía credibili­dade.

O declínio das dinastias

Nem é preciso dizer que as suas oportunidades ganham ter­reno quando se tornam desacreditadas as soluções que concor­rem com elas. Na época, a França dispunha de nada menos que três dinastias. Mas a primeira — a dos Bourbon do ramo mais antigo — estava demasiado identificada à Contra-Revolução, à ne­gação do liberalismo, à preeminência do clero; portanto, as for­ças vivas do país tendiam a não aderir a ela. Além disso, o conde de Chambord, seu representante, era um príncipe ainda jovem (nascido em 1820), mas deixara a França quando criança e fora educado numa corte estrangeira, dentro de um espírito arcaico. A segunda casa monárquica, a dos Bonaparte, tinha mais chan­ces, uma vez que o Império inseria-se na linhagem da bandeira tricolor, era um prolongamento da República e podia reivindicar parte da glória e da tradição patrióticas. Um Napoleão, contudo, é sempre visto com reservas pelos verdadeiros amantes da liber­dade. Por outro lado, o representante dessa dinastia, príncipe Luís

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Por que a República?

(nascido em 1808), deixava a desejar. Tratava-se de um homem em plena maturidade, mas tudo que se conhecia dele eram duas imprudências, alguns panfletos não-conformistas, uma fuga pro­saica e a vida de dificuldades que levava em Londres. Os sobre-vientes e descendentes dos principais quadros militares e civis do poder imperial sequer cogitavam do príncipe Luís, e estavam, pelo contrário, a serviço de Luís Filipe. A terceira casa monár­quica, a dos Orléans precisamente, apresentava problemas bem conhecidos: a idade avançada do rei, cuja capacidade política já declinava; um herdeiro ainda criança, e portanto a perspectiva da regência de um príncipe pouco conhecido e pouco popular; o desgaste e a corrupção do poder; a política de Guizot, que nas eleições de 1846 preferira ligar-se à direita, aliando-se a alguns legitimistas, em vez de se ligar à esquerda, fazendo concessões ao partido da Reforma. Logo, o regime evoluíra em sentido con­trário ao de suas origens quase revolucionárias, e transformara-se em puro conservadorismo — conservadorismo empírico, que nenhuma teoria vinha enriquecer, pois a filosofia da ordem era monopolizada pelo legitimismo e pela Igreja. A análise política mostrava, assim, que a República — pelo fato de ter adeptos e pelo enfraquecimento de seus rivais — constituía uma solução.

2. Uma sociedade em crise

No entanto considerações políticas não bastam para explorar todo o terreno das possíveis causas. A Revolução de 1848 ficaria na história francesa como ajgojnuita diferente de uma reedição hgrp-jsiKpHíHa Ha Rpvojnção H P 18.30 Suscitou esperanças que, bem mais que liberais e patrióticas, foram também sociais. E não pretendeu corrigir apenas o funcionamento da máquina política, mas também o da sociedade humana.

O problema operário

Nos anos 1840, é colocada, com efeito, a questão operária. Embora seja difícil determinar com precisão o início de proces­sos objetivos como o advento de máquinas na indústria francesa,

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as concentrações em grandes oficinas, a duração mais longa da jornada de trabalho e todas as novas formas de "pauperismo" daí decorrentes, tampouco é fácil situar as primeiras manifesta­ções grevistas e indícios de organizações pré-sindicais. Não é di-fíaLjJorérn,precisar a data pm que tais rpaljdadps fnrarp rpyp|a-das à opinião pública: isto ocorreu entre 183ILe_184ÍL Os primei­ros á revelá-las foram oposicionistas. Republicanos como o dr. Guépin e legitimistas como Villeneuve-Bargemon, devido à sua doutrina filosófica, humanitária ou cristã, certamente inclinavam-se à piedade; e por combaterem o regime, sentiam a tentação na­tural de imputar-lhe todas as misérias patentes, sobretudo por se tratar de miséria da classe operária, quando o regime se gaba­va de representar a "classe média", a indústria e os negócios. Mas nem todas as denúncias do mal social vinham da oposição — longe disso. Villermé e Adolphe Blanqui não eram oposicio­nistas; muito ao contrário, haviam sido levados a estudar o pau­perismo exatamente por instância da Academia de Ciências Mo­rais e Políticas, que a Monarquia de Julho queria transformar em centro de estudos avançados, verdadeiro laboratório de reflexão e propostas. Fazíamos ver há pouco que a história se voltara contra o regime dos historiadores; mediante o mesmo esquema, é pos­sível dizer que a economia social se voltara contra o regime dos economistas. É clássico apresentar Luís Filipe em fins dos anos 1840, como vítima do impulso dado por seu próprio reinado à história nacional e ao patriotismo, no início dos anos 1830; é pos-

' sível vê-lo também como vítima de outro de seus estímulos ini­ciais — incentivo a todo tipo de estudos, à administração positi­va que tudo observa e tudo recenseia, desde o montante de im­postos territoriais até o número de crianças recolhidas e indigen­tes amparados. E m suma, à estatística. Um fato é evidente: por volta de 1830-31, nos primórdios das "missões" saint-simonianas, na época em que Charles Fourier envelhecia na solidão e o jo­vem Auguste Blanqui desprendia-se com dificuldade de seu ja­cobinismo de Quartier Latin, só uma pequena minoria de excên­tricos tinha ideias socialistas. Dez anos mais tarde, a questão so­cial já invadira a imprensa e a literatura. Cinco anos mais, a gre­ve geral dos carpinteiros de Paris apresentava-se como um acon­tecimento, e o maior orador da oposição, Berryer, ex-paladino da duquesa de Berry, defendia companheiros obscuros perseguidos nos tribunais por delito de coalizão.

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Por que a República?

O problema camponês

Sem dúvida, o proletariado era por demais minoritário e o movimento operário por demais incipiente para que pudessem constituir ameaça às instituições vigentes. Mas a questão social não se restringia aos subúrbios das cidades manufatureiras; existia também no campo. No fim do século, um dito de Jules Ferry — impressionante síntese histórica — seria repetido com frequên­cia: a^Primeira-Re^úbJiç^n^ ^a-Terr pira^jo-saber •

Mas se a França de 1900 dava a impressão — embora incom­pleta — de que existia uma democracia de camponeses-proprie-tários, o fato se devia até certo ponto à Revolução (que procede­ra à completa expropriação dos bens do clero e à expropriação parcial de bens de emigrados) e em parte também a uma série toda de processos espalhados ao longo do século XIX: desgaste de uma parte substancial das grandes propriedades ainda exis­tentes e o abandono da terra pelos camponeses mais pobres. Ora, essas duas evoluções decisivas ainda mal se esboçavam em 1848; continuava havendo grandes latifúndios, pertencentes a antigos nobres ou a proprietários mais recentes, e o número de proletá­rios nas aldeias era elevado. Aliás, talvez jamais houvesse sido na verdade tão elevado, pois o início da migração para os cen­tros industriais não compensou o crescimento demográfico que ainda prolongava o impulso verificado no século XVIII . E fora de dúvida, porém, que os departamentos* rurais franceses hoje me­nos povoados atingiram naquela época seu máximo populacional.

A Revolução não pôs fim a todos os conflitos entre ricos e pobres, proprietários e arrendatários, "mestres" e diaristas; tam­pouco eliminou todos os arcaísmos. Ela aboliu, decerto, a "feu-dalidade", j]iasjw_oJicuiv^i£mp go rural. Continuava sem solução a questão das pastagens aber-

j á s j * * a exploração dos bens comunais permanecia um pomo de discórdia; por fim, e talvez o mais importante, o problema multi-secular dos direitos das comunas rurais, de utilizarem as flores­tas (antes) senhoriais, continuava a gerar todo tipo de conflito — processos, proliferação de furtos de lenha, tiros que passavam

* Divisão administrativa do território francês. (N.T.) ** E m francês, vaines pâtures, direito que remonta ao século xin, pelo qual os al­deões podiam deixar pastar seus animais nas terras não cercadas, terminada a colheita. (N.T.)

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1848 — o aprendizado da República

raspando nos guardas... Cabe até questionar se o acirramento des­ses litígios — pelo menos em certas regiões — acaso não chegou a atingir a sua intensidade mais forte. A vida dos camponeses pobres sempre depende dos recursos complementares que po­dem ser buscados nos bosques ou em terras "devolutas": pas­tos, possibilidade de conseguir diversos alimentos e de obter gra­tuitamente madeira seca ou madeira para fazer objetos, etc. Ora, tais incómodos se tornavam cada vez mais insuportáveis aos gran­des proprietários rurais, crescentemente interessados na agrono­mia racional e lucrativa; na época, a hulha ainda não era trans­portada com facilidade por via ferroviária, e os combustíveis lo­cais eram muito vendidos. Em Les paysans, Balzac situa nas flo­restas a luta de classes em estado puro; certamente teve para is­so bons motivos.

Os camponeses pobres cobiçavam as florestas do governo e da comuna tanto quanto as particulares. Sob este aspecto, ao su­primir todas as repressões, a Revolução satisfizera involuntaria­mente as pretensões de seus antepassados. Um novo Código Flo­restal votado em fins da Restauração restabelecera uma polícia rural rigorosa, e o Regime de Julho empenhara-se em fazê-la res­peitar. Temos aí outra faceta da questão camponesa em 1848: o pauperismo e o arcaísmo rurais se haviam atenuado muito pou­co, ao passo que os motivos de queixa eram inúmeros, e ainda mais irritantes por visarem a pessoas próximas — os grandes pro­prietários, os guardas, os cobradores de impostos.

Incluam-se nessa lista os usurários, pois o capitalismo inci­piente ainda não criara uma rede de crédito satisfatória para a indústria e o comércio urbanos, e por isso mesmo era ainda mais distante do campo. As pessoas tomavam empréstimos com os vi­zinhos ricos e com os negociantes que compravam as safras; ou então endividavam-se com hipotecas.

Contudo, à diferença dos males dos proletários, que são — convém repetir — bastante notórios e quase habituais, o mal-estar rural, mais distante, mais difuso e sobretudo imensamente di­versificado, só viria a se revelar por suas consequências. Em Le peuple (escrito em 1845-46), Michelet tem a sensação de estar na­dando contra a corrente ao escrever — em explícita contradição com os socialistas — que o camponês, mais que o operário, é o verdadeiro pária social.

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Por que a República?

3. O romantismo e a educação do povo

Operário ou camponês, "o povo", precisamente, era enca­rado com um favor geral, do qual só destoava o pessimismo de um Balzac. O clima humanitário — outro aspecto que vinha das origens da Revolução — predominava no mundo pensante.

Romantismo e populismo

O romantismo era onipresente. Pode-se mesmo dizer que nos anos 1840 os grandes poetas — Hugo, Lamartine, Vigny, Musset — brilharam com toda a intensidade, quer mantivessem uma pos­tura moderada, calassem ou mudassem de ideia, quer a própria moda parisiense se voltasse contra o autor de Les burgraves. Quem poderia então imaginar que dentro de poucos anos o visconde Hugo, membro da Câmara dos Pares, viria a encontrar uma no­va inspiração popular e uma nova perspectiva poética? Mas foi nesse momento — com o distanciamento imprescindível — que os românticos triunfaram no mais profundo da França. Na intel-ligentsia da província, fervilhante de poetas amadores, a geração dos êmulos de Béranger, cançonetistas de tabernas, voltaireanos e sibaritas, acabara de ceder lugar à geração dos jovens sisudos, que desfiavam os alexandrinos em longas tiradas lamartineanas transbordantes de sentimento. Entre esses poetas havia até al­guns jovens operários (geralmente empregados em oficinas e não em fábricas, é claro) cuja vocação parecia provir do interesse in­cipiente pela questão social; mais provavelmente, porém, a poe­sia operária dos anos 1840 advinha do desabrochar das associa­ções de operários, da maior difusão do hábito^de ler jornais nos cafés, e talvez mesmo dos primeiros efeitos .da. lei_Giii7.at quanto àTnstrução primária — ou seja, da confusa ascensão das massas a cultura, grande dádiva da época e em parte também do regi­me. E em Paris, os escritores românticos e socialistas do círculo de Michelet, George Sand e Pierre Leroux, inclinavam-se como­vidos ante a musa proletária, festejando o ingresso do povo na idade adulta.

Tudo, aliás, levava a elite intelectual a apontar no povo um reservatório de forças novas e sadias. Os inspiradores e os diri­gentes dos movimentos nacionais no Centro e no Leste europeus

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1848 — o aprendizado da República

voltavam a temas que o romantismo alemão lançara em fins do século anterior, e combatiam as cortes e aristocracias de cultura cosmopolita exaltando as viriud^s n a c i o n ^ dos can­tos e poesias populares, da saúde primitiva das massas. Mas na França a situação era diferente; considerava-se resolvido o pro­blema nacional. No entanto, os povos e nacionalidades que pro­testavam, da Grécia à Irlanda, da Polónia à Itália, eram caros aos liberais e republicanos da França, e a ideologia vagamente popu­lista subjacente às lutas europeias certamente impregnava tam­bém seus correligionários franceses.

Descoberta da França

Na própria França o folclore foi descoberto e apreciado, sem que contudo se tirassem do fato conclusões políticas e nacionais diretas; sem dúvida, porém, foi então que a classe mais culta des­cobriu o folclore, assim como descobriu seu próprio país. Nos anos 1830 e 1840, as longas viagens pela província perderam o caráter de raridade, de expedições fora do comum, e tornaram-se uma forma de lazer culto — ainda muito distante do turismo moder­no, mas já um início da evolução que levaria a ele. O fato de os membros mais representativos da elite intelectual terem desco­berto a França — descoberta apaixonada, apaixonante e finalmente feliz — foi parte do romantismo, alimentou-o e dele se alimen­tou, e certamente contribuiu para conduzi-lo a um populismo di­fuso. E m 1820, muitos burgueses ainda viam a França como uma minoria de elites esclarecidas, formadas pelas burguesias instruí­das e pelos negociantes das grandes cidades, e sempre sujeitas ao risco de serem sufocadas pela França das massas, cercada de fidalguetes e padres. Um século mais tarde, não mais seria acei­to esse maniqueísmo caricatural que justificava, entre outras coi­sas, leis eleitorais extremamente oligárquicas; quanto melhor se conhecem a riqueza e a diversidade de uma nação, mais é possí­vel encarar seu futuro com confiança.

Assim, várias e importantes correntes políticas e espirituais parecem conduzir à República de 1848: a progressão da ideia re­publicana, a aspiração a melhorias sociais, a abertura do espírito — em suma, disponibilidade e generosidade, a verdadeira con­tribuição do romantismo à vida coletiva.

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Por que a República?

Incerteza e confusões

Não nos iludamos, no entanto, com análises cuja evidência deriva de seu caráter retrospectivo. Descobrem-se as causas por se conhecer o fato. Evitemos, principalmente, a ideia de que os responsáveis por essas correntes tivessem consciência nítida de suas implicações, e muito menos do fato de que tendiam à con­vergência.

Nem todos os escritores românticos encaminharam-se para o populismo, sequer para a crítica política. Nem todos os repu­blicanos reconheceram a necessidade de transformações sociais. Michdei^auta^^ puMicarm viriuaL ma Já Proudhon era socialista, mas não se interessava de fato pela questão do regime político, nem se importava com a maioria das tendências sentimentais do romantismo. Seria possível citar, em nível espiritual menos elevado e em antítese semelhante, o re­publicanismo não-socialista de um Cavaignac e o socialismo3

não-republicano de um Luís Napoleão Bonaparte. Várias das convergências (república-socialismo-romantismo),

que hoje — vistas a distância e de outra perspectiva — parecem de uma evidência lógica, só vieram a ocorrer após a Revolução. E m fins de 1847, às vésperas portanto da própria Revolução, quan­tos de seus futuros admiradores partilhavam de fato as mesmas ideias, e quais eram essas ideias? Uma delas, sem dúvida, era a consciência de que o decidido conservadorismo de Guizot não se adaptava à complexíssima conjuntura económica, social e po­lítica; outra era a noção de que as soluções deviam ser buscadas na ampliação das bases do poder.

E m outros tempos, caso determinados governos e câmaras fossem julgados incapazes e corruptos, logo surgiria a tentação de um 18 Brumário. Mas na efervescência do inverno 1847-48 nin­guém parece ter pensado em soluções de tipo autoritário. Só era visto autoritarismo entre aqueles que detinham o poder. E sur­gia no país, em oposição a eles, um consenso no sentido de que fosse retomado e reforçado o movimento liberal que 18 anos an­tes fizera a Monarquia de Julho.

J 3 . No sentido amplo em que os homens da época entendiam o termo.

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... porém democratismo difuso

Como se sabe, o sufrágio universal foi estabelecido imedia­tamente após a proclamação da República, conferindo-lhe seu conteúdo político essencial. O sufrágio universal era a meta lógi­ca a que visavam todas as intenções aqui referidas. Foi a expres­são jurídica da aspiração sentimental difusa de dar a palavra "ao povo", reconhecer sua dignidade e sua maturidade. Teria de ser o ponto de chegada do princípio republicano que via em todo ho­mem (e não apenas nos proprietários ricos e poderosos) um ci­dadão. Por que não seria, enfim, a panaceia social? Sofria-se pe­lo fato de existir uma sociedade egoísta e injusta, protegida por uma legislação absolutamente burguesa. O que, aliás, não espan­ta, pois só os burgueses votavam. Mas a partir do momento em que a grande maioria operária e camponesa ganhasse o direito do voto, evidentemente chegariam às câmaras os verdadeiros re­presentantes do povo; o trabalho também teria voz, assim como a riqueza, e seria enfim possível a harmonização de interesses.

E m poucas semanas (como veremos) esse raciocínio foi re­provado no teste da História; nem por isso cabe esquecer que ele representou, de certa forma, o fundamento da imensa e tríplice esperança de 1848 — esperança social, política e moral.

Retornemos brevemente ao crescendo de reivindicações pro­priamente políticas ocorrido durante todo o reinado de Luís Fili­pe. O rei se propusera à revisão da Carta, cujo dispositivo decisi­vo era baixar para 200 francos a cota eleitoral legislativa. Mas que importância poderia ter, em termos puramente lógicos e morais, esse patamar de 200 francos? Por que se justificaria mais que o de 1.000 ou de 300 francos, ou mesmo que os mais antigos, como o "marco de prata" ou os "três dias de trabalho"? Apresentava virtudes simplesmente empíricas, e sabe-se que o empirismo, sempre suspeito de oportunismo, é por natureza menos atraen­te que os princípios de rigoroso extremismo. O princípio de au­toridade — assim como o do voto universal, da tradição ou da democracia — permite talvez uma organização mais brilhante e pode ter efeitos muitíssimo mais positivos que o meio-termo pru­dente e prático do voto censitário. O justo meio se torna prosai­co devido à clássica deficiência intelectual de todo liberalismo mo­derado, sobretudo o que se recusa a evoluir erigindo em dogma seus antigos compromissos empíricos. Isto ficou patente duran­te todo o reinado: a maior parte da jovem intelectualidade voltou-se contra esse regime de professores e académicos.

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Por que a República?

Contudo, a crescente aspiração do país à democracia não de­ve ser reduzida a tais considerações, aliás bastante clássicas. A Re­volução de 1830 não se limitara a abolir o artigo 14, baixar a cota do censo legislativo e suprimir a hereditariedade do pariato; já em 1831 havia suscitado duas leis fundamentais:- aquejrestabelecia a G u a j ^ d j ^ a c ^ conseihoTmunicrpais. E m ambos os casos, a participação políBca" fícãWT^elnãbaixo da cota de 200 francos, na escala social. A pe­quena burguesia em peso, assim como os membros mais abasta­dos das classes populares — excluídos da eleição de deputados — começaram a ter participação política, elegendo os administra­dores locais e os oficiais da "milícia dos cidadãos". Tratava-se, decerto, de política menor, mas era o suficiente para tirar seus par­ticipantes da ignorância e da passividade. Essas conquistas foram definitivas J2£sdeJ834^04-£gimeJinha_cojQdiçc^ g ^ J ^ T — - - P ^ n a i n í p n a a - v í d a - . d a s associações e da imprensa, — frutoAa_explojsão^ "reação" espetacular, no entanto, não nos autoriza a esquecer nem o fato de terem sido man­tidas as conquistas institucionais de 1831 nem a progressiva de­mocratização da vida do país, efeito decorrente de tais conquistas.

Assim, nesse e em tantos outros domínios a que já nos refe­rimos — patriotismo, trabalho administrativo, instrução primá­ria pública, progresso das comunicações, primeiros impulsos in­dustriais —, o regime surgido em 1830 promovera ou acelerara um verdadeiro processo de maturação (seria o caso de dizer acul­turação?) da sociedade francesa profunda; mas tal crescimento voltava-se contra o regime, ou contra aquilo em que Guizot trans­formara o regime. A ânsia de reforma sensível em 1847 foi a as­piração mais ampla, mais forte e popularizada de reviver e pro­longar o "movimento" de 1830, rompido a partir de 1832. Assim também o Espírito de 1848 foi a vontade de dar novo ânimo ao espírito das revoluções de 1789, 1792 e 1830 — cujo conteúdo hu­mano potencial ainda não foi revelado por completo.

4. Um "partido republicano"

Todas essas evoluções levaram à criação de um "partido republicano".

"Partido republicano" se tornou a expressão consagrada, so-

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bretudo depois da obra clássica de Georges Weill, Histoire du par­ti républicain en France (1814-1870), lançada há meio século 4. Não nos enganemos, porém! Trata-se tão-somente Ha história rjnsj>ar-

jidários^daJ^epública, algo bem diferente de um "partido" no sentido atual da palavra. Naquele tempo, nenhuma organização comum estável congregava correligionários de um mesmo ideal político, fosse por se considerar a ideia de ação conjunta e disci­plinada incompatível com uma concepção política que valoriza­va a responsabilidade e a consciência individuais, fosse simples­mente pelo obstáculo legal, uma vez que não existia liberdade de associação. Logo, os acordos políticos eram sempre ocasionais, informais e parciais.

Havia três centros possíveis de atração e impulsão: a Câma­ra, os jornais e as associações (ou o que delas restava). Pode-se tentar descrevê-los, mas será bem mais difícil avaliar a amplitu­de e as modalidades de sua ação.

Deputados

A Câmara de Deputados contava quando muito com meia dú­zia de republicanos que nem sequer podiam declarar sua posi­ção, sob pena de sofrerem perseguições; aludir à República cons­tituía uma afronta ao princípio das instituições vigentes. Para con­tornar essa dificuldade, os deputados eram por vezgsxhamados

jde^adicais" , termo tomado dovocaíulário^õlítícomiglo-saxão para designar o mais extremado liberalismo político: aquele que, segundo a etimologia, pretende erradicar o mal antigo e promo­ver o progresso a partir da própria raiz, em vez de seguir os pru­dentes processos de poda e enxerto. Quem mais se destacava na Câmara era Alexandre-Auguste Ledru-Rollin (nascido em 1807), eleito deputado do Mans em 1841, após a morte de Garnier-Pagès (o mais velho). Não surpreende que a circunscrição mais solida­mente republicana da França fosse o centro administrativo do Sar-the. No mundo burguês do eleitorado censitário, as lutas históri­cas ainda costumavam ter papel determinante; e nos confins do Oeste armoricano, o espírito insurrecionista da Vendéia parecia ter despertado após 1830, e as cidades eram bastiões renitentes do partido " a z u l " . Tão logo se constatara a tibieza do monarca

4. Bibliografia, n? 34.

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Por que a República?

em combater o adversário partido "branco", passara-se do libe­ralismo avançado à República. Assim, Le Mans elegia fielmente os homens que seriam os porta-vozes da liberdade no Palais-Bourbon — o genebrino Benjamin Constant, o marselhês Garnier-Pagès e por fim Ledru-Rollin, burguês parisiense. Ledru-Rollin era advogado, bom orador, dotado de sentimentos generosos e também de considerável fortuna, que viria a se reduzir no apoio à imprensa republicana. E m política, era sincera e "radicalmen­te" liberal; era-o também em economia, pois jamais aderiu aos princípios do socialismo. Mas sendo igualmente liberal no senti­do moral da palavra — ou seja, generoso e humanitário — admi­tia pelo menos a necessidade de o Estado intervir na legislação antimiséria, e isso bastou para que contra ele se erguesse o egoís­mo sagrado da economia ortodoxa e burguesa. E m suma, Ledru-Rollin possuía "o coração à esquerda", alguns princípios sólidos e uma hostilidade irredutível para com os conservadores, que aliás pagavam na mesma moeda. E assim como Victor Hugo — embo­ra com menos repercussão — ele também pagou com vinte anos de exílio seu apego à República. Sua memória permanece até ho­je marcada pelos sarcasmos de Marx e os elogios de radicais mais recentes, quase nunca dignos do ilustre antepassado. A nosso ver, no entanto, não mereceu tal conjunção de afrontas.

Ledru-Rollin ofereceu à República sua eloquência. François Arago ofereceu-lhe o prestígio de seu renome de sábio. Já idoso, pois nascera em 1786, era o mais ilustre físico e astrónomo fran­cês, e membro do Instituto. Chefe de uma grande família bur­guesa de Estagel (Pirinéus Orientais), tinha raízes profundas em seu feudo eleitoral, ao contrário de Ledru-Rollin; deputado de sua cidade natal, representava o caso típico — comum entre os conservadores de todos os matizes e mais raro entre os republi­canos — do grande burguês de província, eleito "natural" de sua "terra", cuja opinião determina, mais do que é por ela determi­nada. Convém repetir, no entanto, qúe François Arago gozava em Paris de uma notoriedade devida, unicamente, a seus trabalhos.

Os demais deputados de extrema-esquerda eram bem menos conhecidos, mesmo que tivessem nomes célebres; é o caso de Hip-polyte Carnot, filho do grande Lazare Carnot, e Louis Antoine Garnier-Pagès, irmão mais novo do líder republicano dos anos 1830. Cabe citar ainda Marie, que se tornara famoso por esforço próprio, atuando como defensor em inúmeros processos contra

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jornais e militantes republicanos. Carnot, Marie e Ledru-Rollin eram advogados, profissão típica das famílias ricas e instruídas da burguesia bem estabelecida. Guarnier-Pagès, negociante, con­tinuara enriquecendo com os negócios enquanto seu irmão mais velho já ganhava renome nos tribunais; tal divisão de atividades era então comum entre as famílias cuja ascensão ao mundo da produção e da vida de rendas e lazer culto ainda não se comple­tara. A morte inesperada do irmão mais velho tornara o mais moço chefe da família, e depois político; não podendo dar ao partido voz e talento de advogado (o que levou Ledru-Rollin a ocupar a cadeira que fora de seu irmão), Guarnier-Pagès deu-lhe pelo menos sua experiência na área financeira. Naquela época ainda se acreditava que a contabilidade nacional e a de um banqueiro não requeriam formas muito diferentes de aprendizado.

Esses homens, demasiado poucos para que seus votos tives­sem grande influência na Câmara, não estavam contudo comple­tamente isolados. Constituíam um pólo de atração potencial pa­ra os que depois de eleitos se desligavam do regime — tanto os que vinham da oposição dinástica, como o advogado israelita Adolphe Crémieux, fiel aos princípios liberais de 1789 e 1830, quanto os que vinham da direita tradicional pela via do roman­tismo, como Alphonse de Lamartine. No Palais-Bourbon, porém, geralmente faziam declarações de princípios referentes às gran­des campanhas organizadas em outros lugares.

Jornais

No século XIX, o que havia de mais parecido com os escritó­rios, comités e estados-maiores de "partidos" do século XX eram as redações dosi jornais, lugar de permanentes debates e por ve­zes de ajustes, como ficara patente em 1830.

Vimos, em La France des Notables, que a imprensa republica­na contava com dois jornais principais, de linhas bastante dife­rentes. Le National, o mais antigo, fora fundado por Armand Car-rel, juntamente com Thiers e Mignet, pouco antes da Revolução de 1830, à qual, aliás, dera decisivo impulso. Sob a direção de Armand Carrel e mais tarde de Armand Marrast, tornara-se re­publicano e assim permanecera; podia ser considerado o maior adversário do Regime de Julho, que reconhecia suas virtudes com­bativas e moveu-lhe inúmeros processos, dos quais o jornal saiu vencedor, nos tribunais, na maioria das vezes.

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Por que a República?

Le National inspirava temor principalmente por ser bem redi­gido, muito polémico e provocador, e por ter o sucesso que cos­tumam ter os jornais desse género: grande número de leitores, fiéis a sua ração periódica de riso e emoção. Le National também inspirava temor por sua própria moderação política: muito mais republicano liberal que socialista, identificava-se com vários dos princípios dos liberais dinásticos, assim estabelecendo com eles uma aliança tática. Favorável, em princípio, ao sufrágio univer­sal, não se furtava a apoiar a curto prazo as campanhas dos mo­narquistas de esquerda ou centro-esquerda em favor de uma re­forma eleitoral bem mais limitada — plataforma da oposição, e capaz de pôr em risco o poder.

Mas Le National praticamente não contestava os fundamen­tos da sociedade. Não pretendia renunciar ao liberalismo econó­mico e social — longe disso; tendia antes a acreditar que o libera­lismo ainda não levara à prática todos os seus princípios (o que não deixava de ser verdade) e que, se os operários tivessem li­berdade de coalização e associação, haveria menos injustiça so­cial e miséria. Posição bem mais moderada que a do socialismo.

Por isto mesmo, vários republicanos vinham há muito ten­tando criar um órgão de divulgação mais radical e também mais social. É sabido que conseguiram isso desde 1843 — o jornal La Reforme —, graças aos esforços de Godefroy Cavaignac, que mor­reu em 1845 e foi substituído por militantes menos conhecidos, como Baune, Ribeyrolles e Flocon, este último redator-chefe em 1848. Ao contrário de Le National, La Reforme era declaradamente oposicionista, menos propenso a alianças táticas com a oposição dinástica. Adotava uma linha abertamente socialista, receptiva às fórmulas do direito e da organização do trabalho, já então incom­patíveis com a livre empresa. Publicava às vezes artigos de Louis Blanc.

Tal postura doutrinária levava La Reforme a abordar as polé­micas de modo mais teórico, mais grave e por isso mesmo me­nos ferino que Le National.

Não se pense, contudo, que as linhas de oposição de um jor­nal e outro diferiam muito. Hoje, a distância, é possível analisá-los melhor. A diferença entre os dois jornais republicanos resi­dia sobretudo na ênfase dada a programas e artigos, em ques­tões de expressão e estilo, e em questões relativas a pessoas, é claro. Não havia exatamente dois "partidos" em " u m " partido; os deputados mantinham vínculos com ambas as linhas.

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Associações?

Já as associações ficavam mais distantes de suas propostas. Na época, não passavam de fragmentos. Sempre haviam si­

do ilegais do ponto de vista jurídico (artigo 291 do Código Pe­nal); ap^aJRevolução de Julho, multipliçaram-seejoram muito atuantes; voltaram a ser perseguidos com rigor depois~dè~ãBril ãe 1834, tendo de ficar restritas à clandestinidade das sociedades secretas; sofreram cerceamento ainda maior a partir de 12 de maio de 1839. Às vésperas de 1848, os grandes rebeldes estavam pre­sos, condenados a penas perpétuas; alguns já tinham a saúde aba­lada, como Auguste Blanqui (que teve de ser transferido das mas­morras do Mont-Saint-Michel para o hospital de Tours), ou já ha­viam perdido a dignidade, como Aloysius Huber (que, de acor­do com boatos, se tornara informante da polícia). Também esta­vam presos Armand Barbes, Martin Bernard e vários outros. Os que continuavam em liberdade tinham uma atuação secundária, sobretudo em Paris, e conseguiam se manter em ligação com os que haviam escapado aos motins. Havia ainda algumas socieda­des secretas revolucionárias, de atuação já bastante fraca; em suas chefias se haviam infiltrado — ao lado de militantes irrepreensí­veis como o operário mecânico Alexandre Martin, chamado de Albert — traidores e agentes policiais como Lucien Delahodde,que mais tarde se gabaria de ter neutralizado os militantes parisien­ses incitando-os a ser prudentes e esperar.

As associações de província também estavam cerceadas, co­mo as de Paris. Alguns operários convictos pareciam engajados em atividades de mutualismo profissional, cujos frutos só se re­velam a mais longo prazo. Vez por outra, alguns jornalistas ten­tavam lançar um periódico local, ou reavivar os já existentes; mas não tinham dinheiro e a polícia seguia-lhes os movimentos.

As associações políticas pareciam perfeitamente contidas pe­la repressão; mas a política se infiltrava em associações criadas para outros fins. Jamais se saberá o número exato de burgueses republicanos que conseguiam se manter unidos, nas cidadezinhas de província, graças a "círculos" onde aparentemente se reuniam amigos em simples convívio social, e conversavam enquanto be­biam e comentavam as notícias dos jornais. Conhece-se um pou­co melhor o papel exercido pela franco-maçonaria, abrigo e pon­to de reunião de republicanos em determinados locais onde es­tes eram mais numerosos. A franco-maçonaria não tinha grande

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Por que a República?

expressão na época; era tolerada por não ter cunho político, mas era também — como sempre foi — potencialmente liberal, fermen­to do pensamento racionalista e das reflexões em grupo. Vários dos futuros militantes da República foram maçons, e alguns che­garam a dirigir lojas, como em Beaune, Chalon-sur-Saône, Mans ou Toulon.

Nenhuma organização, contudo, dispunha de uma rede com-̂ f pleta e coerente, capaz de cobrir toda a França, nem tampouco! tinha condições de unir todos os republicanos. Também sob esse aspecto, o que mais se aproximava de um partido moderno erá a imprensa, e não só no nível dos redatores, como já vimos, mas também no dos empregados subalternos.

Vários ex-combatentes de sociedades secretas voltaram-se ins­tintivamente para a imprensa, por verem nela a única arma de fato eficaz. O antigo militante lionês Mare Caussidière se tornara caixeiro-viajante de La Reforme; em suas viagens pela província (sobretudo em 1846), fazia bem mais que simples levantamentos e coletas de assinaturas para o periódico — também estabelecida ou restabelecida ligações, em plano mais geral. O papel então de­sempenhado pela imprensa faz pensar no que Lenin viria a des­crever cinquenta anos mais tarde, quando criou um jornal por ainda não ter condições de fundar um partido, e disse que um periódico era um "organizador coletivo".

São esses elementos dispersos do que não era ainda o "apa­relho" do partido republicano.

Por que vias exercia-se influência?

Resta ainda conhecer as influências de tudo isso. Já se constatou uma forte influência nos meios intelectuais,

literários e artísticos. Vale citar, como exemplo, La Revue Indépen-dante, de George Sand e Pierre Leroux, publicação de cunho não explicitamente político, porém aberta a todas as correntes de dis­cussão literária, moral e social. Tratava-se de uma revista ecléti­ca, igualmente receptiva ao liberalismo sentimental de Michelet e ao socialismo de Louis Blanc, além de bastante identificada — acima de quaisquer divergências — à oposição e ao povo. O mun­do editorial e jornalístico contava com muitos republicanos. Um dos grandes editores parisienses, Pagnerre, era um republicano idoso que já não participava de conspirações, mas não perdera seu renome nem sua influência.

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A República contava também com muitos adeptos no Quar-tier Latin, entre " a juventude das escolas". Na época, proclamar-se republicano naquele bairro era o mesmo que viria a ser, mais tarde, dizer-se "de esquerda" ou "revolucionário": algo bastante confuso, bastante diversificado, mas também muito profundo e quase instintivo. Recorde-se o grupo de jovens ao mesmo tempo tão diferentes e tão unidos, que Flaubert descreve no início de Uéducation sentimentale.

Além disso, a República era o "partido" da classe operária. Até que ponto, porém, seria mesmo? A população operária dos bairros do leste de Paris tinha, é certo, grande participação polí­tica. Combatera em 1830, 1832, 1834 e 1839, para citar apenas as sublevações mais importantes. Era óbvio seu distanciamento da monarquia. Os operários parisienses conheciam e liam as publi­cações republicanas, que já começavam, no entanto, a sofrer a concorrência da imprensa socialista e comunista, em especial La Démocratie Pacifique, de Victor Considérant, e Le Populaire, de Ci-bet. Divergência ou convergência? O que não se pode dizer, evi­dentemente, é que esses jornais fossem monarquistas. Mas ta­manha é sua insistência no problema da crítica económica e so­cial, que o problema do regime político é quase completamente negligenciado. Por várias razões, seria difícil considerar esses jor­nais como republicanos. Vemos assim que muitos operários da província ainda não haviam tomado consciência de política e se­quer do republicanismo mais elementar, enquanto em Paris gran­de parte do mundo operário já o fizera. UAtelier, o jornal de Bu-chez, cujos redatores são operários autênticos, era o único a mos­trar alguma influência cristã, e esforçava-se para dar sua contri­buição à república e ao socialismo, aproximando-se assim de La Reforme.

Operários e republicanos

Percebem-se, portanto, muita disponibilidade e muitas divi­sões na classe operária parisiense. E também muito arcaísmo. Convém evitar uma abordagem demasiado moderna da consciên­cia de classe dos trabalhadores da época, e não perder de vista seu relacionamento com os republicanos burgueses. Estes, qua­se sempre oriundos de profissões liberais, viviam bem; alguns eram até ricos, comparados à classe operária. Na época, a gama

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Por que a República?

de recursos e de padrões de vida era bem mais ampla que hoje. Sendo ricos e também humanitários, os republicanos burgueses não podiam deixar de ser filantropos e generosos. Seria absoluto anacronismo considerar como fatos de direita a caridade e o pa­ternalismo da época. Só mais tarde os meios conservadores vi­riam a erigir tais características em panaceia social, enquanto a esquerda, ao contrário, pretenderia definir-se apenas pela busca da justiça, pelo aperfeiçoamento social institucionalizado e pela autonomia de organização das massas. Um republicano de 1848 não veria no fato de fazer o bem qualquer quebra de seus princí­pios. Era muito comum os médicos — sobretudo eles, testemu­nhas das piores misérias — tratarem pessoas pobres sem cobrar; os vários médicos republicanos agiam dessa forma, e não eram os únicos a fazê-lo. A popularidade de Trélat e Raspail em Paris não se devia apenas a sua condição de "médicos dos pobres", mas também a seu passado de militantes políticos nos anos 1830. A classe operária mostrava-se sensível a tal atitude, e a ela cor­respondia. Não se furtava a chamar um burguês de "pai dos ope­rários" (expressão bem ao gosto da época, na qual se percebem talvez influências das associações operárias), mesmo sabendo que os conservadores, sobretudo em Paris, são bem mais gendarmes do que "pais" . Até os grandes burgueses republicanos, mem­bros da Câmara, mereciam igual devoção, se demonstrassem, por menos que fosse, um pouco de piedade para com o povo e não fossem muito desfavoráveis à ideia de uma legislação social. Arago foi certa vez procurado por uma delegação de operários que de­sejava felicitá-lo, Ledru-Rollin, que vociferava energicamente con­tra o poder, era chamado nas ruas de le dru*.

Já na província apresentava-se uma situação bem diferente. Lyon talvez fosse tão politizada quanto Paris, mas em outras lo­calidades havia ainda populações operárias quase maciçamente ligadas à Igreja (Marselha), ou então inteiramente inertes; outras, ainda, só se interessavam por política devido à atuação de algum filantropo destacado (Toulon). E m quase toda parte havia gru­pos muito reduzidos de "comunistas", em geral icarianos (discí­pulos de Cabet).

A questão das massas camponesas é ainda menos bem co­nhecida. Sem sombra de dúvida, encontravam-se bem longe da emancipação intelectual. Mas em certas regiões a República con-

* " O vigoroso." (N.T.)

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tava com a influência social de pessoas importantes — influência à qual era impossível, na época, escapar. Decerto, muito raramen­te o espírito republicano ou revolucionário seguiu caminhos sub­terrâneos que contrariassem as pessoas importantes; o comum era seguir os rumos por elas apontados. O fato veio a ser demons­trado primeiro pelo teste da liberdade, e depois pelo julgamento das urnas.

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2

Tentativa e fracasso de um socialismo (24 de fevereiro-4 de maio de 1848)

Na França contemporânea, os regimes políticos sempre se­guem determinadas regras, sob a forma de uma Constituição. Mas é preciso muito mais tempo para elaborar uma Constituição que para derrubar um regime; por isso, um novo regime só atinge a fase constitucional, regular e legítima, depois de um período mais ou menos longo de vigência provisória. Foi assim com a mo­narquia constitucional, de junho-julho de 1789 a outubro de 1791; com a I República, de 10 de agosto de 1792 a outubro de 1795; e também seria assim com a III República, de 4 de setembro de 1870 a dezembro de 1875, e com a IV República, de agosto de 1944 a dezembro de 1946. A II República francesa não é exceção à regra; só em novembro de 1848 veio a ter uma Constituição vo­tada e promulgada, e seu órgão essencial só foi estabelecido em fins de dezembro, após a eleição presidencial.

A maior parte do ano de 1848 decorreu, portanto, sob o sig­no do provisório e da constituinte, e durante 1849, 1850 e 1851 esteve em vigência uma política regular. O contraste jurídico e formal entre os dois períodos foi eclipsado por um contraste po­lítico mais importante, a ele simultâneo (1848: a República sem Bonaparte; 1849-1851: a República presidida por um Bonaparte). Esse contraste político não pode ser esquecido.

A análise adquire talvez contornos mais precisos se ficar res­trita àqueles meses de 1848 que foram os mais próximos da Re­volução inicial e também os mais ricos em fatos — como costu­mam ser as fases que antecedem uma Constituição.

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tituição de 14 de janeiro. O regime teria de ser ratificado por no­vo plebiscito.

Esse plebiscito realizou-se a 20 de novembro, nas mesmas condições do ano anterior, a apresentou resultados ainda melho­res: 7 800 000 votos " s i m " , 250 000 votos " n ã o " .

Era possível marcar a proclamação oficial do Segundo Impé­rio para o dia 2 de dezembro — data célebre e agora aniversário quádruplo. Dos quatro Dois de Dezembro, 1 5 só o terceiro se tor­naria simbólico, o "Dois de Dezembro". De certa forma, ele apre­senta o significado negativo do bonapartismo; o significado po­sitivo era exposto no discurso de Bordéus, discurso-programa e também ato de candidatura.

Convém, para concluir, examinar esses significados — o de bonapartismo, o da República, talvez até das Repúblicas.

15. E m 1804, a sagração de Napoleão; em 1805, Austerlitz; em 1851, o golpe do Estado; em 1852, o advento do Segundo Império.

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Conclusão

Já que a República democrática impôs-se como regime políti­co na França contemporânea, cabe pesquisar a contribuição dos quatro anos da primeira experiência republicana, que acabamos de descrever, à maturação desse regime.

A república, que finalmente prevaleceria nos anos 70 do sé­culo XIX, nasceu do fracasso das soluções monárquicas — quer devido à inadaptação dos Bourbon ao mundo moderno, quer de­vido à derrota do último Bonaparte em Sedan. A República res­surgiu quando se revelou a inviabilidade do Segundo Império, belicoso demais para a Europa inquieta, autoritário demais para a sociedade consciente.

Não cabe demonstrar aqui de que forma a República de Gam-betta e Jules Ferry veio a opor-se ao bonapartismo. Mas já em 1851 e 1852 é possível perceber o principal aspecto dessa antíte­se: o bonapartismo, sob este ângulo herdeiro do partido da or­dem, tira sua força da docilidade: docilidade dos soldados à "obe­diência passiva", docilidade dos "rurais" aos candidatos oficiais. Os partidários da República, por isso mesmo adversários do bo­napartismo, vinham de meios de espírito independente, eram operários de Paris e Lyon, intelectuais e até mesmo camponeses das províncias vermelhas cujas aldeias-burgos já apresentavam costumes citadinos; e talvez até "baionetas inteligentes"... Ver no bonapartismo o fruto da deseducação política e ver na Repú­blica o resultado da educação, da consciência e do civismo uni­versal — tal foi a posição não só de Jules Ferry, mas também dos

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que participaram de "quarenta e oito". Compreende-se que os sobreviventes da Segunda República — sendo Victor Hugo o mais célebre — se tenham identificado perfeitamente à Terceira, que acolheram com entusiasmo.

Fica assim exposta a primeira característica do saldo da Se­gunda República, a primeira lição desse aprendizado: a necessi­dade de educar as massas, dando-lhes não apenas a instrução ele­mentar que as capacite a ler, como também a prática política de­mocrática que enseja jornais livres, liberdade de reunião e asso­ciações livres.

Este saldo e este aprendizado não se devem aos governos que exerceram o poder durante aqueles quatro anos. Devem-se em parte à República que tentou viver entre fevereiro e junho de 1848 e tentou sobreviver entre junho de 1848 e janeiro de 1849; devem-se principalmente à República ideal, tal como a definiram e dese­jaram de 1849 a 1851 os únicos republicados verdadeiros da épo­ca, os da oposição.

A História precisa distinguir a contribuição da República ideal — regime dos "quarante-huitards", os verdadeiros, ideal dos mon-tagnards — da contribuição da República de fato — prática dos con­servadores que realmente governaram.

1. A República dos quarante-huitards

Trata-se, como foi dito, da educação e do civismo universal, que só podem provir da escola e da liberdade.

Trata-se também — como foi dito de modo especial acerca da insurreição de 1851 e de sua mescla de motivos — de uma forma constitucional que não se satisfaz em ser apenas isto, e pretende definir-se também pelo conteúdo popular. A República não é "verdadeira" ou "boa" se for apenas a não-monarquia ou a não-ditadura; só será de fato a República se as regras de seu funcio­namento visarem a fins progressistas.

A finalidade é o bem do povo, ou, se preferirmos, o socialis­mo. Por mais vagas que sejam as noções de bem-estar, de povo e até de socialismo, é impossível depreciá-las; sua força de im­pulsão não fica prejudicada pela imprecisão de seus contornos (pelo contrário, pode até ser condicionada por ela). A República

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Conclusão

dos quarante-huitards e daqueles que foram tão adequadamente chamados de démoc-soc desagua tão naturalmente no socialismo quanto o ideal dos sans-culottes de 1793 no babovismo no ano IV; tão naturalmente, de fato, que no discurso de Albi de Jaurès o primeiro desdobramento (a República) encadeia-se ao segundo (o socialismo) e ao terceiro (a paz universal), numa progressão de conquistas morais cada vez mais ambiciosas.

É preciso contudo repisar que a República que visa ao socia­lismo é a do socialismo pelo direito. Esta é sua constante mais sólida, do princípio ao fim, desde as Jornadas de fevereiro de 1848 — quando graças a Lamartine foram repudiadas a violência e a opressão da herança de 1792 —, até as Jornadas de dezembro de 1851 — quando os revoltosos morriam pelo "pedaço de papel" do artigo 68. Sendo a República o primado da lei, a violência só se justificaria em defesa da própria lei e de seus representantes autorizados. Por isso a rebelião operária de junho, apesar de tão bem coadunar-se à tradição que vinha dos sans-culottes e levava aos partidários da Comuna, pareceu tão insólita, tão alheia e em última instância tão afastada da França. Inevitavelmente, o novo espírito veria naquela revolta uma espécie de regressão. E a isso se deve, principalmente, a profunda repulsa que causou o golpe de Estado, que desprezava o direito. Luís Napoleão teria sem dú­vida aderido à hierarquia de valores formulada por um chefe de Estado mais recente nos termos seguintes: " A necessidade em primeiro lugar, a política em segundo lugar, e o direito, na medi­da em que é possível respeitá-lo, em terceiro lugar". 1 O espírito de Quarenta e oito revoltou-se exatamente contra essa ideia de relegar o direito ao terceiro lugar, se possível... e reivindicou tam­bém a primeiro lugar para o que mais tarde seria designado pela expressão consagrada de "respeito à legalidade republicana".

As tristes experiências de 1850 (lei Falloux) e de 1851-1852 (apoio do clero ao regime instaurado pelo golpe de Estado) leva­ram os revolucionários de quarenta e oito a um profundo anti-clericalismo. Fala-se muito da eurofia conciliatória das primeiras semanas e da República lamartiniana abençoada pelos padres, de tão curta duração. Fala-se muito dos sincretismos religiosos que mostram Cristo como proletário e Deus como cimo do edifício me­tafísico, sem se considerar que tais teísmos horrorizavam os ver-

1. Conversa entre Charles de Gaulle e M. Jean Foyer, citada por J. R. Tournoux em Jamais dit, Plon, 1971. pp. 286-7.

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dadeiros crentes. Não tardou que os quarante-huitards encarassem o catolicismo como inimigo. Nem todos, é claro, no mesmo ní­vel; alguns ressaltavam mais o papel da Igreja como força políti­ca e social conservadora; outros, indo mais longe, julgavam ne­cessário combater o próprio espírito da religião, por considerá-lo incompatível com a nova educação. E m um ponto, porém, todos concordavam: era preciso retirar a Igreja da esfera de influência temporal e social. Já constava das intenções dos republicanos da Segunda República aquilo que seria o grande combate da Terceira.

Tudo isto — República ideal, despertar das consciências e ci­vismo de massa, bem-estar do povo, primado do direito, laiciza­ção — foi pensado e também vivido e sentido com entusiasmo. E teve peso no cômputo geral, embora sempre mencionado em tom de caricatura.

O espírito de Quarenta e oito foi ardente, eloquente, sentimen­tal, desordenado. As "velhas barbas românticas" fazem sorrir, por ser a expressão tão equívoca quanto banal. Na verdade, as "bar­bas românticas" só se tornaram velhas no tempo da Terceira Repú­blica. Às vésperas de 1848, os não-conformistas que deixavam cres­cer a barba (e o cabelo) eram quase todos jovens, que desafiavam o cabelo curto e as faces barbeadas escanhoadas dos grandes cava­lheiros,2 burgueses e até republicanos (dos 11 membros do gover­no provisório, só o operário Albert, o mais jovem e pobre, usava mesmo barba; Armand Marrast tinha uma barbicha rala, "impe­rial", e Flocon usava bigode; os demais eram glabros3). Só aos poucos a barba veio a se tornar uma característica dos militantes revolucionários, dos adversários; mas por fim se tornou sua dou­trina, a ponto de ser proibida na Universidade, como vimos. Ro­mantismo, é claro, bem evidente entre os militantes cultos, em cu­ja convicção política se mesclavam tinturas de Lamartine, Hugo, Michelet e George Sand. 4 Mas também, de certa forma, um ro­mantismo popular, espontâneo e talvez mais importante.

2. Na obra La première réssurrection, de H . Guillemin, há uma coleção interessante de retratos da época (n? 39). 3. Victor Hugo, em 1848 um burguês acomodado e barbeado, ainda não usava barba em 1851; só a deixou crescer no exílio, em Guernesey, e ao que se diz para proteger do frio a garganta fraca... Uma verdade prosaica, que a muito custo triun­fou sobre a verdade simbólica! É quase impossível imaginar sem barba o autor de Les misérables e La legende des siècles, o senador de 1880. 4. O jornalista burguês Louis Reybaud, criador do personagem Jérôme Paturot, divertia-se empregando nessa história, muitas vezes, o adjetivo ''cabeludo" em vez de "romântico" , como sinónimo zombeteiro.

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Conclusão

Não se pode esquecer que em várias regiões logo aderiram à ideia republicana pessoas muito pobres e simples, cujo com­portamento espontâneo ainda não atingira o nível de razão. Esse comportamento poderia ser considerado "tradicional", "folcló­rico" ou "primitivo"? Seja qual for o termo, o essencial é subli­nhar que nem sempre a República conquistou as massas pela edu­cação positivista das mentalidades; às vezes conquistou-as de um assomo, como nova mística proveniente de uma verdadeira con­versão. Não raro, a República assumiu aspectos de Esperança e de Valor impregnado de sagrado, principalmente — mas não ex­clusivamente — no campo. Não negava a religião, era uma nova religião. Essa aura sentimental e mística tem caráter essencial. Aju­da a compreender, antes de tudo, a força e o ardor do partido republicano no período 1849-1851. Ajuda sobretudo a compreen­der seu intenso expressionismo e a importância do elemento ale­górico e figurativo que os homens de 1848 deixariam como he­rança. Decerto Marianne não foi de todo uma invenção deles; (a Primeira Revolução também contribuiu). Mas eles lhe deram a feição final, configuram-na e popularizaram-na, depois de a te­rem batizado.

Karl Marx não previra esse idealismo, e cometeu seu primei­ro erro de diagnóstico. Parece ter julgado que só as monarquias pudessem ser "mistificadoras", e que a República, sistema des­personalizado de relações políticas, seria necessariamente trans­parente às relações de classe. Segundo enfoques sociológicos pu­ros, a racionalização das lutas políticas deveria progredir bem de­pressa, depois de estabelecida a República. A luta de classes em junho de 1848 era o corolário lógico de fevereiro. Na verdade não o foi, e por diversas razões, inclusive por ser a República menos aberta do que parecia. Contudo, "mistificadora" ou não, não fez morrer os idealismos políticos; de fato, engendrou mais um idealismo.

2. A República oficial

Esta, ao contrário, era "realista". De janeiro de 1849 a de­zembro de 1851, a República não esteve em mãos de governan­tes republicanos, mas de pessoas que não haviam desejado o re-

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gime, apenas toleravam-no e o viam como algo provisório, que só duraria até as circunstâncias permitirem a restauração monár­quica. A restauração não foi a que esperavam Thiers ou Falloux — foi antes a do "terceiro ladrão". Durante três anos, as forças da burguesia conservadora haviam governado a França sem mo­narca, e nem por isso perderam seus bens e suas cabeças.

A possibilidade de uma República burguesa, que permitia a participação dos partidários da monarquia em campos de inte­resse comum e sua não participação em campos dos quais dis­cordassem, não terá sido mais um legado histórico desse perío­do aos períodos posteriores? Certamente não foi por acaso que Adolphe Thiers, principal mentor do jogo político durante a fase conservadora da Segunda República, conta-se entre os fundado­res da Terceira. Após 1870, Thiers simplesmente aceitou como duradouro aquilo que em 1848-1851 suportara como necessidade temporária.

Isto não significa, é claro, que Thiers tenha tornado montag-nard na velhice. Sequer se trata da mesma República. A Repúbli­ca que Thiers veio a aceitar diferia muito da dos quarante-huitards; era uma forma constitucional pura, que se satisfazia em prescin­dir de monarca ou de ditador, praticamente irrepreensível do pon­to de vista jurídico, porém desprovida de mística popular e de pretensões de reforma social. Era uma República que se mostra­va prudente, muito prudente, quanto à democratização da vida cívica.

E m suma, pode-se dizer que a República dos quarante-huitards foi de concepção moral e conteúdo máximo, enquanto a Repú­blica de Thiers, não deliberada, foi de concepção puramente cons­titucional e de conteúdo mínimo.

Nem é preciso acrescentar que ambas as concepções são ho­je familiares sob as denominações, respectivamente, de direita e esquerda.

A Segunda República francesa está na origem comum das duas principais tradições políticas da época contemporânea; é a ancestral autêntica de toda a ideologia de esquerda, que vem dos quarante-huitards, heróis malogrados; e é também, através dos bur-graves e de outros dirigentes conservadores, precedente e mo­delo de todos os centros-direita futuros.

Conclusão

3. A ditadura bonapartista

Mas antes de as políticas assim concebidas entre 1848 e 1851 voltarem a poder confrontar-se, a cena seria protagonizada, du­rante 20 anos, pelo homem do Dois de Dezembro.

Que significa isto? Conhecemos a reação da esquerda repu­blicana: foi possível derrubar a República porque as massas (es­pecialmente as rurais) ainda não estavam plenamente conscien­tes e instruídas. Pode ser. Mas por que Bonaparte, e não os bur-graves? Por que um cesarismo vagamente demagógico, e não um conservadorismo abertamente burguês? Talvez porque Bonaparte estivesse presente, e Joinville e Chambord no exílio; ou talvez por razões mais profundas, que exigissem alguém novo para serem postas em prática.

A questão foi logo formulada, em especial pelos pensadores socialistas.

E m La Révolution sociale démontrée par le coup d'État, Proudhon aceita a tese bonapartista de que Luís Napoleão aproximava-se mais do povo que os burgueses da Assembleia, por ser ele mes­mo fruto do sufrágio universal, decorrência da ascensão das mas­sas; afinal, por que não? Era talvez uma oportunidade de aten­der ao anseio socialista das massas. Daí a célebre exortação:

" Q u e ele [Bonaparte] assuma ousadamente seu título fatal,5

que erija ele, no lugar da cruz, o emblema maçónico, nível, es­quadro e prumo: sinal do Constantino moderno, a quem é pro­metida a vitória: in hoc signo vincesl Que o Dois de Dezembro, abandonando a falsa posição a que o obrigou a tática dos parti­dos, 6 produza, desenvolva e organize, sem demora, o princípio que o faz viver: o anticristianismo, ou seja, a antiteocracia, o an-ticapitalismo, a antifeudalidade; que ele destrone a Igreja, a vida inferior, e crie nos homens os proletários, grande exército do su­frágio universal, agora batizados filhos de Deus e da Igreja, que não têm luzes, trabalho nem pão. Este o seu mandato, esta a sua força.

5. Entenda-se aí seu título popular, que é "fatal" porque necessariamente ligado (fatum: "destino") à origem primordial de seu poder, a eleição de 10 de dezem­bro de 1848. 6. Fique claro: trata-se da aliança com o partido da ordem, a que o obrigara a re­sistência dos montagnards, censurados por Proudhon exatamente por isto.

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"Fazer cidadãos os servos da gleba e da máquina; transfor­mar em sábios os crentes perplexos... Algo capaz de satisfazer a ambição de dez Bonapartes." 7

Com grande lucidez, Proudhon percebeu o que havia de po­tencialmente renovador em determinado aspecto do bonapartis­mo, e percebeu também que seria difícil conseguir o progresso, devido à aliança entre conservadores e clericalistas, que sob ou­tro aspecto fundamentava esse progresso. Poucos meses após ter escrito essa brochura, Proudhon reconheceu em seu círculo privado8 que o governo se inclinava para a pior tendência, e que "o orleanismo e o jesuitismo são maioria no Élysée". Proudhon não tardou a integrar-se à oposição, e denunciou a principal con­tradição política desse bonapartismo, motivo por que ele cons­tantemente oscilava entre aliar-se ao partido da ordem e af astar-se dele. Mas Proudhon não parece ter percebido muito mais, além dessa alternativa: ou conservadorismo retrógrado ou revolução social. Por isso, na conjuntura de 1860, se poderia com certo exa­gero chamar de "proudhonianos" os que acreditavam que o des­potismo esclarecido pudesse levar ao progresso social.

Mas talvez houvesse outra alternativa, um bonapartismo sui generis que não representasse os proletários nem as pessoas eminentes.

Na mesma época, Karl Marx julgou ter discernido essa reali­dade. Pouco depois do golpe de Estado, quando publicou Le 18 Brumaire de Louis-Bonarparte, livro onde analisa o episódio, regis­trou em páginas que se celebrizariam a consonância entre as "ideias napoleónicas" e os anseios, necessidades e preconceitos do "camponês parceleiro". Os pequenos proprietários isolados — massa mais numerosa da população francesa — não "podiam" ser republicanos, " t inham" de se expressar através do bonapar­tismo. E Marx apresenta como "necessária" a queda posterior do bonapartismo, que destruiu as ilusões desses camponeses e lhes abriu os olhos. A desmistificação que a República de 1848 não produziu seria conseguida pela República seguinte.

" E r a necessária a paródia do imperialismo, a fim de que a massa da nação francesa se libertasse do peso da tradição, e se revelasse em toda a sua pureza o antagonismo existente entre o Estado e a Sociedade." 9

7. Citado por A . Thomas (n? 32), pp. 35-6. 8. Carta de julho de 1852, ibidem, p. 37. 9. Ver Bibliografia, n? 25, p. 97.

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Conclusão

Foge a nosso âmbito examinar essa previsão; cabe-nos po­rém, para nos limitarmos a 1852, observar que Marx atribuía o mandato de Bonaparte, não só aos camponeses, mas também a outra categoria: os subproletários. Já vimos várias vezes o quan­to Marx e Engels se haviam impressionado com o papel contra-revolucionário do "lumpemproletariado" parisiense; aludem tam­bém, por último, à Sociedade do 10 de dezembro. Ampliando ou­sadamente a noção de súcia, Karl Marx inclui nela, por analogia, os aventureiros notórios e os financistas mundanos. E escreveu:

"Antes de tudo, Bonaparte se apresenta como chefe da So­ciedade do 10 de Dezembro, representante do subproletariado, ao qual ele mesmo pertence,10 assim como seu círculo, seu governo e seu exército, e cuja preocupação maior é cuidar dos próprios interesses e tirar bilhetes de loteria californiana". 1 1

O livro termina com tintas panfletárias. Diz que o novo pes­soal do governo é um "bando de velhacos" que não se sabe de onde vêm, uma "boémia barulhenta, de má fama, saqueadora"; em suma, " a camada superior da Sociedade do 10 de dezembro". Imagem semelhante à que mostram Hugo em Les châtiments e Ré-musat em suas Mémoires.

Na concepção de Marx, o bonapartismo, representante des- . ses dois grupos sociais heterogéneos — camponeses parceleiros / e parasitas de todo tipo — permaneceu alheio às duas classes fun- I damentais, a burguesia capitalista e o proletariado. O diagnósti- \ co foi decerto prejudicado pela comoção gerada pelas violências de dezembro e pela falta de distanciamento histórico.

Caso tivesse prosseguido em suas observações sobre a Fran­ça, (o que não fez, exceto no caso da Comuna, e de uma perspec­tiva inteiramente diversa), Marx certamente notaria que a efer­vescência dos negócios continha mais do que especulações para­sitárias e uma súcia de "luvas amarelas"; surgira a segunda ge­ração do capitalismo francês. Dois anos antes, de modo bem mais sugestivo e útil o próprio Karl Marx observara (no início de Les luttes de classes en France) que no tempo de Luís Filipe reinava ape­nas parte da burguesia, uma espécie de "aristocracia financeira", e que a "burguesia industrial" propriamente dita estava na opo­sição. Sem levar a detalhes essas identificações — que gerariam

10. Grifo nosso. 11. Le 18 Brumaire, p. 98. A última alusão refere-se às perspectivas abertas à Bolsa de Valores com a descoberta de minas de ouro na América, fato realmente decisi­vo naquele momento e naquela conjuntura.

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longas discussões — basta ater-se ao princípio da distinção entre grupos de interesses instalados, conservadores, e grupos inova­dores, dinâmicos e pouco à vontade. E m termos de "necessida­de" histórica, é possível dizer que o bonapartismo produziu o impulso de que precisava o setor moderno ("saint-simoniano") da burguesia a fim de se livrar da timidez da coalizão de abasta­dos, mais bem expressa no partido da ordem.

Do ponto de vista moral, foi pena que o progressismo eco­nómico não se fizesse acompanhar pelo progressismo político... mas isso iniciaria outra série de reflexões, que não vêm ao caso.

Quanto às análises de Marx acerca das afinidades do bona­partismo com " a parcela" e o "subproletariado", seriam mes­mo incompatíveis com a tese do Império "saint-simoniano"? Não necessariamente. Mais tarde, os discípulos de Marx analisariam um dos grandes partidos franceses do século XX ora como ins­trumento de certos grupos de negócios, ora como representante das classes médias urbanas e rurais. 1 2 Seriam análises contradi­tórias? De certa forma, sim, e é fácil perceber por que. Mas são também, de modo mais profundo, análises complementares, pois algumas buscam em um partido as forças sociais dominantes que dele se servem, e outras buscam as forças sociais subordinadas e mais ou menos mistificadas que constituem sua base maciça. Os esboços de estudos dedicados em 1852 a esses importantes fatos novos e desconcertantes — a República e o cesarismo ple-biscitário — são a origem da ciência política moderna. A história da segunda República ainda é atual, porventura por ter ela sido também laboratório.

12. Essas apreciações são de Maurice Thorez e se referem ao partido radical. Não cabe discutir aqui seu fundamento; foram citadas apenas como exemplo da am­bivalência que existe na identificação social de uma realidade política.

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Apêndice

Estatística da repressão da insurreição de dezembro de 1851 (Arch. Nat. BB 30 424. Registro)

Definição:

"O número de pessoas presas ou perseguidas na França por oca­sião da insurreição de dezembro de 1851 foi de 26 884."

Classificações

a. Por origem geográfica (departamentos). Os números decrescem desde o Var (3 147), o Sena (2 962), o Hérault (2 840), os Baixos-Alpes (1 669) ... até a Mancha (1) e à Córsega, Finistère, Ille-et-Villaine (zero). Con­sultar o mapa n? 6, à página 176.

b. Por profissão (ordem alfabética de ofícios). Ver adiante. c. Por estado civil.

- homens: 26 715; mulheres: 169 (Sena, 44; Hérault, 20; Drôme, 19, etc.) - franceses: 26 634; estrangeiros: 250 (os dados não são precisos) - casados (ou viúvos): 17 403; solteiros: 9 481 - menores de 16 anos: 52 (Sena, 35, etc.) — de 16 a 20 anos: 1 253 — de 21 a 30 anos: 8 332 — de 31 a 40 anos: 9 648 — de 41 a 50 anos: 5 873 - de 51 a 60 anos: 1 882 — mais de 60 anos: 344.

d. Por destino: " O s acusados foram classificadas, pelas comissões mis­tas e pelas comissões militares, da maneira seguinte" (1? coluna de números).

"Após as medidas de clemência, as decisões precedentes foram mo­dificadas" ... e chegou-se ao "número real para cada categoria a 30 de setembro de 1853" (2? coluna de números).

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