marx política e emancipação humana 1848-1871

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LÍVIA CRISTINA DE AGUIAR COTRIM MARX POLÍTICA E EMANCIPAÇÃO HUMANA 1848-1871 PUC – São Paulo 2007

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Marxismo

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  • LVIA CRISTINA DE AGUIAR COTRIM

    MARX

    POLTICA E EMANCIPAO HUMANA

    1848-1871

    PUC So Paulo

    2007

  • 2

    LVIA CRISTINA DE AGUIAR COTRIM

    MARX

    POLTICA E EMANCIPAO HUMANA

    1848-1871

    Tese apresentada Banca Examinadora do

    Programa de Estudos Ps-Graduados em

    Cincias Sociais da Pontifcia Universidade

    Catlica de So Paulo, como exigncia parcial

    para obteno do ttulo de Doutor em Cincias

    Sociais, sob orientao do Prof. Dr. Miguel

    Wadi Chaia.

    PUC So Paulo

    2007

  • 3

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  • 4

    A memria de

    J. Chasin

    Ao Ivan, Ana e Vera

  • 5

    AGRADECIMENTOS

    Ao Prof. Dr. Miguel Chaia, que acolheu e orientou essa pesquisa, ao longo desses vrios

    anos, com grande firmeza intelectual e ainda maior gentileza pessoal.

    Ao Programa de Estudos Ps-Graduados em Cincias Sociais da PUC-SP e ao Conselho

    Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq) que ofereceram as condies

    institucionais e auxlio financeiro para o desenvolvimento deste trabalho.

    Aos amigos de tantos anos, que desde a Ensaio e a Ad Hominem compartilham a difcil

    empreitada de tentar manter a lucidez, e que, por caminhos e com responsabilidades e

    participaes distintas, foram fundamentais para a realizao deste trabalho. Em especial, ao

    Rago e Goreti, amigos de toda hora.

    A J. Chasin (in memorian), pela estatura terico-revolucionria e ainda mais pela

    integridade, empenho pessoal e estmulo ao pensamento de rigor e luta pela emancipao

    humana, que pautou permanentemente sua vida, e sob cuja inspirao este trabalho foi realizado.

    Ana e Vera, pelo carinho e entusiasmo pela vida.

    Ao Ivan, novamente e sempre, por tudo.

  • 6

    RESUMO

    Este trabalho investiga as relaes entre poltica e emancipao humana no pensamento

    de Karl Marx, por meio da anlise imanente de um conjunto de obras produzidas entre os anos

    de 1848 e 1871, nas quais abordou aqueles temas ao examinar acontecimentos histricos

    marcantes: os artigos escritos para o jornal Nova Gazeta Renana, publicado de junho de 1848 a

    maio de 1849; As Lutas de Classes na Frana, de 1850, O Dezoito Brumrio de Lus Bonaparte, de 1852,

    e A Guerra Civil em Frana, incluindo seus dois Esboos, de 1871. A pesquisa mostrou a

    continuidade da determinao ontonegativa da politicidade, descoberta pelo autor nos anos de

    formao de seu pensamento prprio, bem como seu desenvolvimento e concretizao pelo

    exame das lutas de classes e transformaes polticas ocorridas naquelas ocasies. A primeira

    parte aborda, pela anlise dos artigos produzidos para a Nova Gazeta Renana, o processo de

    revoluo e contra-revoluo no interior da misria alem, que no superada. A segunda parte

    examina a afirmao da revoluo social nas jornadas de junho de 1848, sua derrota e a emerso

    do estado bonapartista. Em ambas, foram destacadas as formas de atuao poltica e elementos

    da conscincia das diversas classes, as relaes entre a classe e sua representao poltica e os

    limites ou potencialidades manifestos por elas. A terceira parte examina os textos acerca da

    Comuna de Paris, entendida como anttese do estado, forma no estatal da emancipao social.

    Em anexo, so apresentados os artigos da Nova Gazeta Renana escritos por Marx e os de

    autoria no identificada, traduzidos do original alemo.

  • 7

    ABSTRACT

    The purpose of this work is to inquire the relations between politics and human

    emancipation in Karl Marxs thought through immanent analysis of texts produced between 1848

    and 1871 in which Marx focuses those subjects while examining remarkable historical events:

    articles written for New Rhine Gazette, published from June 1848 to May 1849; The Class Struggles in

    France, of 1850, The Eighteen Brumaire of Louis Bonaparte, of 1852, and The Civil War in France,

    including both of its Drafts, of 1871. This research shows that onto-negative determination of

    politics, found out by the author during the years when he constituted his own original thought,

    is maintained throughout the writings analyzed. That concepts development and concretization

    is also demonstrated through examining Marxs account on class struggles and political changes

    then taken place. In the first part of the research revolution and counter-revolution processes are

    approached within the never overcome German poverty, through New Rhine Gazette articles. In

    the second part, it is examined social revolution assertion in June 1848 insurrections, their defeat

    and Bonapartist state arousal. In both, forms of political actions and different classes

    consciousness elements were emphasized, as well as the relationships between classes and their

    political representations, their limits and potentialities. The third part focuses writings on Paris

    Commune understood as antithesis of the state, the non-state form of social emancipation.

    All the articles from New Rhine Gazette by Marx and those of unknown authorship were

    translated from the German originals and are presented as an appendix.

  • 8

    NDICE

    APRESENTAO 10

    PARTE I A ARMA DA CRTICA

    INTRODUO

    1. A misria alem: delineamentos iniciais 38 2. Antes da tormenta 41 3. Marx e a Nova Gazeta Renana 52

    CAPTULO I

    Junho de 1848 A revoluo contra a ordem 60

    CAPTULO II

    Revoluo e contra-revoluo na Alemanha

    1. Panorama da contra-revoluo alem 67 2. A misria alem e as revolues de tipo europeu 94 3. Reacionarismo e iluso a conscincia da burguesia alem 105 4. A conscincia do povo iluses politicistas 124 5. 1848: revoluo internacional 143 6. O corpo do estado: direito e foras armadas 152 7. Liberdade de imprensa 169 8. Necessidade e limites histricos do estado 175

    PARTE II A REVOLUO DE 1848 E O BONAPARTISMO

    INTRODUO 193

    CAPTULO I

    A revoluo social: a poesia do futuro 198

    CAPTULO II

    Os sentidos da repblica 216 1. A repblica social 220 2. A constituio da repblica burguesa 226 3. A repblica constituda 235

    CAPTULO III

    Da repblica ao bonapartismo 251

    CAPTULO IV

    O corpo do estado 268

  • 9

    CAPTULO V Classes sociais e representao poltica 276 1. O proletariado 276 2. Camponeses 293 3. Pequena Burguesia 308 4. Burguesia 325 5. Lus Bonaparte 347

    CAPTULO VI

    O estado bonapartista 355

    PARTE III A CRTICA DAS ARMAS

    INTRODUO 365

    CAPTULO I

    Da guerra franco-prussiana guerra civil

    1. O governo de defesa nacional e o desarmamento de Paris 383 2. Reao e corrupo 387 3. A revoluo de 1848 e a repblica 395

    CAPTULO II

    O imprio bonapartista 402

    CAPTULO III

    A Comuna

    1. Poltica e emancipao humana 424 2. Classes mdias e campesinato na Comuna 459 3. Os erros da Comuna 467

    CONSIDERAES FINAIS 476

    BIBLIOGRAFIA 514

  • 10

    APRESENTAO

    As contradies do capital e seu carter desefetivador do homem indivduo e

    sociabilidade talvez nunca tenham se evidenciado com tanta clareza flor mesmo das

    aparncias mais imediatas como neste novo momento histrico aberto com a mundializao do

    capital. Entretanto, talvez tambm nunca tenha estado to ausente a perspectiva de sua superao

    e de constituio de uma sociabilidade fundada na lgica onmoda do trabalho imperativos para

    a continuidade da autoconstruo humana. Indicativo da desefetivao aludida, a renncia

    autoconstruo se manifesta, entre outras formas, pelo recrudescimento da crena na eficcia da

    poltica.

    Nesse quadro, recuperar a perspectiva da transformao social impe a necessidade de

    proceder anlise crtica das tentativas at hoje empreendidas de superao do capital, bem como

    a de enfrentar tambm outra exigncia premente: a redescoberta do pensamento de Marx.

    no interior desses parmetros que busca se inserir esta pesquisa, voltada para o

    pensamento elaborado por Marx acerca do estado e da poltica, tal como ele se apresenta em um

    conjunto de trabalhos nos quais so examinados momentos histricos em que a luta de classes

    atingiu elevado nvel de agudizao, quais sejam: o conjunto de artigos escritos para a Nova Gazeta

    Renana (1848/1849), e para a Nova Gazeta Renana - Revista (1850) entre os quais As Lutas de

    Classes na Frana de 1848 a 1850 , O Dezoito Brumrio de Lus Bonaparte e A Guerra Civil em Frana,

    incluindo os dois Esboos preparatrios.

    Toda a obra de Marx vem sendo objeto de intenso debate h j mais de um sculo, e no

    diferente a situao quando se trata de sua anlise da poltica. A existncia de diversas leituras

    e propostas dela derivadas indica, certamente, a riqueza e vitalidade de seu pensamento, mas

    tambm uma dificuldade permanente em sua apreenso 1 . Tanto um aspecto quanto outro,

    entretanto, no derivam somente da genialidade (inquestionvel) do pensador alemo e da maior

    ou menor capacitao de seus vrios intrpretes, mas, considerando que o pensamento

    socialmente determinado (outra questo cara a Marx, e tambm objeto de larga discusso),

    preciso levar em conta os processos histrico-sociais que permitiram genialidade do primeiro

    alcanar determinados resultados, e dificultaram aos segundos a apreenso deles.

    Ainda que se trate de dois problemas distintos, sua interligao clara. Pois, embora a

    incompreenso de Marx seja motivada por razes mais antigas e essenciais, foroso reconhecer

    que, no sculo XX, a inviabilidade da revoluo social e a consolidao de uma sociedade regida

    1 . Por esta razo, reserva-se o termo marxiano para referir exclusivamente o pensamento elaborado pelo prprio Marx, tal como pode ser encontrado em seus diversos escritos. Para os herdeiros e seguidores de suas proposies, inclusive Engels, reservamos o termo marxista.

  • 11

    pelo capital coletivo/no-social em outros termos, a derrota da perspectiva do trabalho

    dificultou aquele entendimento e constrangeu ao predomnio de um pensamento que se move no

    crculo limitado da lgica do capital e das categorias a ela correspondentes, entre as quais avulta a

    politicidade e a respectiva razo poltica. Tais constrangimentos seriam j suficientes para

    condenar desconsiderao os melhores resultados dos esforos de recuperao de Marx

    efetivados nos auspiciosos incios do ltimo sculo.

    O ainda recente desaparecimento da URSS e a reconverso de suas unidades nacionais,

    bem como dos demais pases que constituam o bloco ps-capitalista, ao capitalismo; o salto

    qualitativo no desenvolvimento das foras produtivas nas ltimas dcadas, demonstrando que o

    capital continua capaz de o promover, ainda que sob formas cada vez mais contraditrias e

    desumanizadoras; a conseqente transfigurao por que passa a classe trabalhadora, envolvendo a

    desapario ou, ao menos, a reduo e perda de importncia de categorias profissionais que

    encarnavam, desde meados do sculo XIX, a vanguarda do trabalho, o proletariado, sem que as

    que passaro a corporific-lo tenham se manifestado como tais em outras palavras, a evidncia

    final do fracasso do ps-capitalismo travestido de socialismo, a renovada capacidade do capital de

    promover a ampliao das foras produtivas materiais e espirituais, e o eclipse do sujeito

    revolucionrio pela extino do velho proletariado perfazem o quadro histrico no qual foram

    tambm enterrados os instrumentos prticos e as concepes tericas que caracterizaram as

    esquerdas, reais e nominais, ao longo do sculo XX. Se tudo isto deixa o gosto amargo da

    derrota, preciso reconhecer que esta ocorreu h mais de seis dcadas (quando a impossibilidade

    da transio para alm do capital gerou o capital coletivo/no-social, o complexo prtico e

    terico do stalinismo e extinguiu a esquerda)2 e que o desaparecimento de organismos partidrios,

    h muito estiolados, e ao menos das verses mais antigas e estreitas do marxismo vulgar formas

    de agir e pensar incapazes de opor crtica e resistncia efetivas ao avano do capital nos campos

    terico e prtico deixa campo livre posio adequada a repor a crtica do capital na ordem do

    dia e a revoluo social no horizonte.

    Diante desse quadro, a crtica contempornea ao capital e a recuperao da perspectiva

    revolucionria no podem vir desacompanhadas do esforo de repensar as formas pelas quais

    essa crtica se materializou e as razes das derrotas que vem sofrendo desde suas primeiras

    manifestaes no sculo XIX, uma das faces do complexo de problemas que envolve o

    prolongamento da utilidade histrica do capital e a morte da esquerda no plano mundial. Ainda

    que interligadas, j que cada uma delas condiciona em alguma medida a outra, no podem,

    2 . Ver, a esse respeito, J. CHASIN, A Sucesso na Crise e a Crise na Esquerda, in A Misria Brasileira. 1964-1984: Do Golpe Militar Crise Social, Santo Andr, Ad Hominem, 2000; e Marx Estatuto Ontolgico e Resoluo Metodolgica, in F. TEIXEIRA, Pensando com Marx, So Paulo, Ensaio, 1994.

  • 12

    entretanto, ser confundidas, guardando cada qual sua especificidade e decorrendo de movimentos

    e foras (ou debilidades) prprias. A morte da esquerda certamente conta, entre suas

    determinaes, com essa sucesso de derrotas e com o desconhecimento e/ou as diversas

    deformaes a que foi submetido o pensamento marxiano3, em especial ao longo do sculo XX.

    A recuperao da anlise marxiana de momentos marcantes da prtica da classe

    trabalhadora as revolues de 1848 e seus desdobramentos e a Comuna de Paris pode

    contribuir para a dupla tarefa de entender o sentido desses movimentos e de seu fracasso, e

    redescobrir o pensamento prprio de Marx a respeito dos problemas envolvidos na batalha pela

    emancipao humana.

    Marx afirmou que A anatomia do homem a chave para a anatomia do macaco,

    indicando a necessidade da maturao histrica do objeto para que seja possvel compreend-lo,

    bem como que essa apreenso permite, por sua vez, avaliar as manifestaes mais incipientes

    daquele objeto. Isso verdadeiro, tambm, mutatis mutandis, para o pensamento marxiano acerca

    da poltica: os limites do estado, da atividade e da razo polticas, a estreiteza da revoluo e

    emancipao polticas, a identificao destas com a burguesia e a sociabilidade do capital, e, em

    contraste, o liame entre a perspectiva de uma sociabilidade centrada na lgica onmoda do

    trabalho e a revoluo social e a emancipao humana geral tudo isso ganha relevo diante da

    tragdia do sculo XX, sculo que primou pela exaltao terica e prtica da politicidade.

    Relevo ampliado ainda pela considerao de que Marx iniciou a elaborao de seu

    pensamento prprio pela crtica ontolgica da poltica, a partir da qual atinge a crtica da

    especulao e chega da economia poltica, ambas igualmente ontolgicas4.

    No Prefcio a Para a Crtica da Economia Poltica, de 1859, Marx refere os pontos de inflexo

    significativos daquele perodo, que se inicia em abril de 1842 com a criao da Gazeta Renana,

    jornal vinculado a representantes da burguesia liberal renana em luta contra o absolutismo

    prussiano, fechado em 1/04/1843 por decreto deste ltimo, no qual Marx participa como

    articulista e, desde outubro de 1842, como redator-chefe. No decorrer dessa atividade jornalstica

    surgiram as dvidas que o fizeram rever sua concepo anterior e lhe permitiram alcanar uma

    posio inteiramente nova em relao a toda a reflexo poltica precedente, filosofia e cincia

    de ponta de sua poca. Marx afirma que, como redator da Rheinische Zeitung, encontrei-me pela

    3 . O termo marxiano reservado para referir exclusivamente os escritos e o pensamento expressos por Marx,

    enquanto marxista remete aos que se identificam com suas idias, includo F. Engels. 4 . A gnese do pensamento marxiano foi amplamente examinada por J. Chasin, que, apoiado na anlise imanente de um conjunto de textos dos artigos publicados na Gazeta Renana Misria da Filosofia atestou a inconsistncia da onipresente teoria do amlgama originrio entre os materiais empricos da economia poltica clssica, o pensamento poltico do socialismo francs e o mtodo filosfico hegeliano, e desvendou o modo especfico como Marx faceou a prtica, a filosofia e a cincia de seu tempo: a crtica ontolgica. As linhas que se seguem valem-se das descobertas chasinianas. Conforme J. CHASIN, Marx Estatuto Ontolgico e Resoluo Metodolgica, in F. TEIXEIRA, Pensando com Marx, So Paulo, Ensaio, 1994.

  • 13

    primeira vez na obrigao embaraosa de dar a minha opinio sobre o que costume chamar-se

    os interesses materiais5, mais precisamente sobre questes decisivas relacionadas objetivao

    das relaes capitalistas na Alemanha, cujo carter tardio resumiu depois sob a denominao de

    misria alem, quais sejam: As deliberaes do Landtag renano sobre os roubos de lenha e a

    diviso da propriedade imobiliria, /.../ a situao dos camponeses do Mosela e, finalmente, os

    debates sobre o livre-cmbio e o protecionismo6. necessidade de tratar dessa temtica somou-

    se a de abordar o socialismo e o comunismo francs: Por outro lado, nesta poca em que o

    desejo de ir para a frente substitua freqentemente a competncia, fez-se ouvir na Rheinische

    Zeitung um eco do socialismo e do comunismo francs, ligeiramente eivado de filosofia.

    Pronunciei-me contra esse trabalho de aprendiz, mas ao mesmo tempo confessei abertamente

    /.../ que os estudos que tinha feito at ento no me permitiam arriscar qualquer juzo sobre o

    teor das tendncias francesas7.

    Marx revela, pois, que, poca de sua colaborao com a Gazeta Renana, sentiu-se

    embaraado para tratar dos interesses materiais, e no conhecia a fundo o socialismo e o

    comunismo franceses.

    As dificuldades em relao aos interesses materiais decorriam da posio ento assumida

    por ele, ainda claramente circunscrita pela democracia e pela determinao ontopositiva da

    politicidade, atada a uma filosofia da auto-conscincia, redundando no julgamento de que a

    instaurao do estado poltico pleno, ainda inexistente numa Alemanha sequer unificada, seria

    necessrio e suficiente para a resoluo dos problemas socioeconmicos em tela8.

    A insuficincia dessa posio vai se evidenciando conforme posta prova na discusso

    sobre os interesses materiais, isto , conforme vai se tornando claro que o modo como

    compreendia o estado, as relaes entre este e o restante da vida, entre conscincia e atividade,

    entre filosofia e mundo, no permitia resolver os citados problemas suscitados pelos interesses

    materiais. a anlise dessas relaes tal como ocorriam efetivamente, levando s ltimas

    conseqncias aquela sua concepo, que a pe em xeque, e obriga o pensador alemo a reavali-

    la. As dvidas no foram, pois, suscitadas por questionamentos de ordem metodolgica ou

    gnosiolgica, mas sim pela considerao do modo como a prpria realidade se pe e se move,

    levando a descartar a centralidade da poltica.

    5 . Karl MARX. Contribuio para a Crtica da Economia Poltica (traduo de Maria Helena Barreiro Alves). Lisboa,

    Editorial Estampa, 1973, p. 27. 6 . Ib., pp. 27-28. 7 . Ib., p. 28. 8 . Celso EIDT. A Razo como Tribunal da Crtica: Marx e a Gazeta Renana, Ensaios Ad Hominem 1 Tomo IV: Dossi Marx, Santo Andr, Ad Hominem, 2001.

  • 14

    De sorte que, pouco antes do fechamento da Gazeta Renana, e aproveitando a iluso dos

    diretores daquele peridico, preferi deixar a cena pblica e retirar-me para o meu gabinete de

    estudos, em Kreuznach. , pois, a partir de meados de 1843 que inicia o processo de

    ultrapassagem de sua concepo juvenil, marcada pelo idealismo e pela defesa democrtica-radical

    do estado racional e, sempre de acordo com o prprio Marx, a nova posio conquistada posta

    a pblico no ano seguinte: O primeiro trabalho que empreendi para esclarecer as dvidas que

    me assaltavam foi uma reviso crtica da Filosofia do Direito, de Hegel, trabalho cuja introduo

    apareceu nos Deutsch-Franzsische Jahrbcher, publicados em Paris, em 1844. A filosofia hegeliana

    do direito era a expresso mais alta da determinao ontopositiva da politicidade, vale dizer, da

    afirmao da necessidade do estado, de sua perenidade e de sua condio de lcus da

    racionalidade, da liberdade e da comunidade (a Crtica da Filosofia do Direito de Hegel restou

    inacabada, como se sabe). De modo que, segundo o testemunho do autor, j neste momento

    havia chegado, acerca do estado e da poltica, bem como da especulao, concluso que

    caracteriza sua nova posio da em diante: as relaes jurdicas assim como as formas de

    estado no podem ser compreendidas por si mesmas, nem pela dita evoluo geral do esprito

    humano, inserindo-se pelo contrrio nas relaes materiais de existncia de que Hegel,

    semelhana dos ingleses e franceses do sculo XVIII, compreende o conjunto pela designao de

    sociedade civil; por seu lado, a anatomia da sociedade civil deve ser procurada na economia

    poltica9. Trata-se, pois, de uma viragem radical, impulsionada, de acordo com o prprio Marx,

    pelo fracasso da tentativa de solucionar politicamente problemas relativos vida material. O

    reconhecimento do impasse a que conduz tal abordagem levou Marx a questionar a conformao

    do mundo por ela pressuposta, resultando numa revoluo terica efetuada no com, mas contra a

    natureza do pensamento poltico contido em seus artigos da Gazeta Renana10.

    Alm da referida Introduo, o nmero nico dos Anais Franco-Alemes tambm estampou

    Sobre A Questo Judaica, em que o foco igualmente a politicidade e a especulao.

    Lembre-se que estas notas sobre seu percurso intelectual visam a oferecer algumas

    indicaes sobre a seqncia dos meus prprios estudos da economia poltica11, isto , Marx

    expe o caminho que percorreu para chegar crtica desta ltima: foi preciso ultrapassar a

    filosofia poltica, em especial, e a filosofia especulativa, em geral, para alcanar a necessidade de

    proceder crtica ontolgica da economia poltica, de cujos primeiros passos do testemunho a

    redao dos Cadernos de Paris e dos Manuscritos Econmico-Filosficos. Como ficar claro, a crtica

    9 . K. MARX, ib., p. 28. 10 . J. CHASIN, op. cit., p. 358. 11 . Ib., p. 27.

  • 15

    marxiana envolve tanto as expresses intelectuais as teorias especulativas, polticas e

    econmicas quanto as realidades que elas expressam e nas quais radicam.

    Assim, Marx atesta, no mesmo passo, a importncia crucial da crtica da politicidade na

    passagem para sua posio prpria, o momento em que a alcanou, validando, em 1859, os textos

    de 1844 como expresses legtimas dela, e o carter ontolgico dessa transio, pois relativo

    apreenso de um modo de ser. As relaes jurdicas e as formas de estado no podem ser

    compreendidas por si mesmas, nem pela dita evoluo geral do esprito humano, graas no a

    qualquer razo de ordem epistmica ou gnoseolgica, mas porque de fato no existem daquele

    modo, e sim inseridas nas condies materiais de existncia. o que se confirma em seguida,

    quando Marx apresenta a concluso geral a que chegou nos estudos da economia poltica,

    iniciados em Paris e continuados em Bruxelas, e na qual se destaca a afirmao de que O modo

    de produo da vida material condiciona o desenvolvimento da vida social, poltica e intelectual

    em geral. No a conscincia dos homens que determina o seu ser; o seu ser social que,

    inversamente, determina a sua conscincia12. Afirmao relativa a problemas concernentes ao

    modo de existncia dos homens, ao ser social tal como posto por si mesmo.

    A Crtica da Filosofia do Direito de Hegel Introduo, Sobre A Questo Judaica e Glosas Crticas

    ao artigo O Rei da Prssia e a Reforma Social expem a ruptura ontolgica de Marx com a

    especulao e com a determinao ontopositiva da politicidade, bem como os lineamentos que

    vai conquistando acerca dessa esfera, a partir da nova posio conquistada a analtica das coisas,

    expresso cunhada por Chasin a partir da afirmao, contida na Crtica de Kreuznach, de que o que

    importa a lgica da coisa, e no, como em Hegel, a coisa da lgica13.

    Na Crtica da Filosofia do Direito de Hegel Introduo, atestando o vnculo entre a crtica da

    poltica e a da especulao, a obra hegeliana reconhecida como expresso mxima da filosofia

    poltica alem e recusada junto com o estado moderno, do qual o pensamento abstrato e

    exuberante, e pode s-lo porque o prprio estado faz abstrao do homem real, vale dizer,

    acolhe os indivduos j despojados das relaes e qualificaes concretas que os especificam,

    reduzindo-os ao cogulo supostamente natural, nucleado pela propriedade privada, que os

    igualiza. Nesse texto, Marx distingue entre a revoluo parcial, meramente poltica, que alcana a

    liberdade de mesmo tipo, e a revoluo radical, que conduz emancipao humana geral. Essa

    distino se arrima nas conhecidas afirmaes de que ser radical tomar as coisas pela raiz. Mas

    a raiz, para o homem, o prprio homem. E logo adiante: o homem o ser supremo para homem, o

    que leva ao imperativo categrico de derrubar todas as relaes nas quais o homem um ser abandonado

    12 . Ib., pp. 28-29. Na Parte III deste trabalho, essa concluso geral voltar a ser considerada com mais detalhe. 13 . J. CHASIN, Marx Estatuto Ontolgico e Resoluo Metodolgica, op.cit. As linhas subseqentes so devedoras das mltiplas indicaes nesse sentido de J. Chasin, explicitadas tanto neste quanto nos diversos textos que compem o Tomo III: Poltica, de Ensaios Ad Hominem 1.

  • 16

    e desprezvel. Pginas antes, Marx j havia estabelecido que o homem o mundo dos homens, o

    estado, a sociedade14. A revoluo poltica , ademais, determinada como a emancipao de uma

    parte da sociedade civil que instaura sua dominao, e s pode ocorrer se essa parte for

    reconhecida como representante geral da sociedade, encarnando em si a potncia da libertao,

    em contraposio a outra parcela que concentre todos os defeitos e limites da sociedade.

    Assim, a revoluo poltica depende de condies de possibilidade especficas, nem sempre

    presentes. Em outras palavras, como resultado de sua recm-conquistada posio, Marx remete a

    possibilidade da revoluo poltica para as condies concretas de existncia das classes, ao invs

    de entend-la como possibilidade universal porque assentada numa suposta condio inerente aos

    indivduos singulares: a razo ou a vontade. E onde ela possvel, restringe-se, na qualidade de

    emancipao parcial, a uma mediao para a emancipao humana geral. Ao contrrio, a

    revoluo radical, a emancipao humana geral, a verdadeira e ltima finalidade. Diferenciadas

    por seus contedos, tambm os modos de realizao se distinguem: a revoluo poltica conserva

    as relaes scio-econmicas e altera, de acordo com elas, as formas e relaes polticas, ao passo

    que a revoluo radical se vale da liberdade poltica, parcial, como meio para reconfigurar as

    condies de existncia dos homens.

    Assim, no alvorecer de seu pensamento prprio, Marx estabelece uma escala que

    inferioriza o territrio poltico /.../ em face da altitude do humano, deslocando a politicidade para

    os contornos de uma entificao transitria a ser ultrapassada, recusando-lhe a altura e a

    centralidade que ostenta ao longo de quase toda a histria do pensamento ocidental15. Enquanto

    a revoluo poltica no ultrapassa a condio de mediadora, e como tal pode ser dispensada,

    emancipao humana geral cabe a condio de objetivo ltimo, imprescindvel e infinito: a

    afirmao e construo do ser humano-societrio.

    Vale destacar que esse tlos no se pe nem como postulao extrada da suposta

    natureza humana de indivduos isolados, nem como dever-ser abstratamente contraposto ao

    existente, mas sim como possibilidade objetiva, como potencialidade presente na entificao

    social real.

    Reconfigurada a revoluo a ser buscada, seu agente tambm se redesenha. Ao invs de

    uma classe cujas condies particulares de existncia devem ser generalizadas como eixo da vida

    social, o sujeito da revoluo radical identificado como uma categoria social de cadeias

    radicais, uma classe da sociedade civil que no uma classe da sociedade civil, isto , que

    representa a dissoluo dela, cujas condies de existncia, portanto, no podem ser

    14 . K. MARX, Crtica da Filosofia do Direito de Hegel. Introduo, in Temas de Cincias Humanas n 2, So Paulo, Grijalbo, 1977 (traduo de Jos Carlos Bruni e Raul Mateos Castell), respectivamente p. 8 e p. 1. 15 . J. CHASIN, ib., p. 365.

  • 17

    generalizadas, que , numa palavra, a perda total do homem, j que despojada, no ato mesmo

    de as realizar, de todas as coisas e relaes que a tornam humana, e s pode, portanto, recuperar

    a si mesma atravs da recuperao total do homem16. Passagem cuja eloqncia evidencia que a

    revoluo radical ou emancipao global passa a ser /.../ o complexo entificador /.../ da efetiva e

    autntica realizao do homem, e no mais uma forma qualquer de estado ou de prtica

    poltica17, alm de desautorizar a impropriedade de tratar o proletariado como classe universal.

    O exame de Sobre A Questo Judaica, nucleado pela crtica do carter geral e essencial do

    estado, tal como se manifesta em sua forma mais plenamente desenvolvida, confirma e desdobra

    os lineamentos encontrados no texto anterior. Marx explicita a natureza da politicidade

    examinando a distino entre emancipao poltica e emancipao humana, apontando o carter

    limitado, parcial, da emancipao poltica, e em geral de toda soluo poltica: O limite da

    emancipao poltica aparece imediatamente no fato de que o estado pode se libertar de um

    constrangimento sem que o homem se liberte realmente dele; de o estado conseguir ser um estado

    livre sem que o homem seja um homem livre18. Esta parcialidade ou limitao no constitui um

    defeito, uma imperfeio da poltica, mas, ao contrrio, sua determinao essencial: o estado

    elimina, a sua maneira, as diferenas de nascimento, posio social, educao e profisso, ao declarar

    nascimento, posio social, educao e profisso diferenas no polticas; ao proclamar,

    desconsiderando tais distines, que todo membro do povo partcipe igualitrio da soberania

    popular, ao tratar a todos os integrantes da vida real do povo do ponto de vista prprio do

    estado. Ou seja, o estado permite que a propriedade privada, a educao e a profisso atuem a

    seu modo, a saber, como propriedade privada, educao e profisso, e faam valer sua natureza

    particular. De sorte que, longe de abolir essas diferenas efetivas, o estado descansa sobre essas

    premissas, s se apreende como estado poltico e s faz valer sua universalidade em oposio a tais

    elementos19. Entendido, assim, o estado poltico como expresso da vida genrica do homem

    em oposio sua vida material, e enfatizado que os limites da emancipao poltica no so um

    seu defeito, mas sua consumao, Marx reconhece sua importncia delimitando seu alcance:

    Sem dvida, a emancipao poltica representa um grande progresso. Porm, no constitui a

    forma final da emancipao humana, ainda que seja a ltima forma da emancipao humana

    dentro da ordem do mundo atual20. Ou seja, sem negligenciar o significado da emancipao

    poltica, Marx a vincula explicitamente (des)ordem humano-societria regida pelo capital, o que

    16 . K. MARX, Crtica da Filosofia do Direito de Hegel. Introduo, in Temas de Cincias Humanas n 2, So Paulo, Grijalbo, 1977 (traduo de Lus Carlos Bruni e Raul Mateos Castell), p. 17 . J. CHASIN, ib., p. 366). 18. K. MARX, Sobre La Cuestin Juda, in C. MARX, Escritos de Juventud, Mxico, Fondo de Cultura Econmica, 1987 (traduo de Wenceslao Roces), p. 468. 19. Ib., p. 469. 20. Ib., p. 471.

  • 18

    tambm j estava implcito nas citaes anteriores. Examinando a Declarao dos Direitos do

    Homem e do Cidado, de 1793, demonstra como liberdade poltica do cidado abstrato,

    destitudo de suas condies concretas de vida, corresponde, na sociedade civil, a liberdade do

    homem egosta, do homem enquanto mnada isolada e auto-suficiente, retirado para o interior

    de si mesmo, do direito do indivduo circunscrito, fechado em si mesmo, do direito do interesse

    pessoal. Essa liberdade individual e sua aplicao constituem o fundamento da sociedade civil21.

    Na seqncia de sua anlise, afirma que A constituio do estado poltico e a dissoluo da sociedade

    civil em indivduos independentes, cujas relaes so regidas pelo direito, so levadas a cabo em um

    s e mesmo ato. sobre tal base que pode ser compreendida a observao de que a revoluo

    poltica considera a sociedade civil, o mundo das necessidades, o trabalho, os interesses privados

    e a lei civil como base de sua prpria existncia, como premissa inquestionvel, que subsiste

    inteiramente, portanto como sua base natural, de sorte que o homem real se reconhece apenas

    na forma do homem egosta, e o homem verdadeiro, somente na forma do cidado abstrato.

    Embora considerando a emancipao poltica um avano irrecusvel, Marx demarca

    sua estreiteza mostrando que ela se funda na, e expressa a ciso objetiva, decorrente de relaes

    de produo assentadas na diviso social do trabalho e na propriedade privada, de cada indivduo

    em homem (burgus) de vida privada e cidado de vida pblica, o primeiro privado de sua

    condio genrica, social, e assim naturalizado, o segundo defraudado de suas qualidades

    individuais; esse divrcio entre indivduo e gnero, essa cesura entre os indivduos

    autoprodutores e as foras sociais, genricas, por eles produzidas transformam-nas em fora

    poltica a eles contraposta. Fora poltica , pois, cogulo de foras sociais, genricas, usurpadas

    de seus produtores e concentradas. A emancipao humana, ao contrrio, supe a superao

    desta ordem societria em seu conjunto, em outros termos, implica a superao do capital, das

    condies materiais de vida, fundadas na diviso social do trabalho, que opem os homens uns

    aos outros e sua vida genrica, bem como da entificao poltica desta ltima: S quando o real

    homem individual reincorpora a si o cidado abstrato; quando, como indivduo, em seu trabalho

    individual e em suas relaes individuais se converte em ser genrico; e quando reconhece e

    organiza suas prprias foras como foras sociais, de maneira a nunca mais afastar de si fora social

    sob a forma de fora poltica, s ento levada a cabo a emancipao humana. Esta

    construo da mundaneidade humana a partir da lgica inerente ao humano, ou seja, do ser social,

    cuja natureza prpria ou segredo ontolgico a autoconstituio22. O desvelamento deste segredo,

    21. Ib., pp. 478 e 479. 22 . J. CHASIN, A Determinao OntoNegativa da Politicidade, in Ensaios Ad Hominem 1 Tomo III: Poltica. Santo Andr, Ad Hominem, 2000, p. 151.

  • 19

    frise-se, o pressuposto incontornvel do argumento marxiano, e sua desconsiderao abre

    campo para (des)entend-lo como uma antropologia.

    evidente o lao entre emancipao humana e revoluo social, ou seja, a revoluo que

    supera o conjunto da atual ordem societria regida pelo capital, resultando desta superao o

    desaparecimento do estado; enquanto a revoluo poltica e seu resultado, a emancipao poltica,

    por mais que representem um progresso importante, mostram seus limites ao deixarem em p

    exatamente aquela ordem. A esfera da politicidade um ndice e resultado da limitao do

    desenvolvimento humano, da fragmentao dos indivduos, de sua contradio consigo mesmos

    e com os demais. Longe, portanto, de ser tratada como esfera resolutiva dos problemas humanos,

    a politicidade entendida como parte do problema a ser resolvido.

    Acerca das Glosas Crticas de 44, em que Marx polemiza com Arnold Ruge acerca da

    insurreio dos teceles da Silsia, de junho de 1844, vale de incio ressalvar, dada a onipresena

    das concepes epistemologistas, que, embora presentes neste artigo os mesmos fundamentos

    expostos nos dois textos antes comentados, no se trata da aplicao de um referencial terico

    a um caso concreto, o que totalmente estranho aos procedimentos analticos marxianos, mas

    uma espcie de redescoberta das mesmas determinaes a partir da anlise de uma ocorrncia

    histrica23. Coerente com sua nova posio, Marx submete-se regncia do objeto, buscando

    extrair deste seus nexos prprios, ao invs de o submeter a um desenho analtico prvio, ainda

    que alcanado por ele mesmo. Esse procedimento a analtica das coisas , facilmente

    perceptvel nas obras marxianas, permite alcanar novas determinaes acerca de um mesmo

    complexo fenomnico. O artigo destaca a incapacidade do estado no s de resolver, como

    mesmo de entender o pauperismo, impotncia que no um defeito deste ou daquele estado,

    mas sim a lei natural da administrao, ou seja, de sua atividade organizativa, determinada pela

    sociedade civil sobre a qual se ergue, de sorte que eliminar essa impotncia exigiria extirpar seu

    cho social, portanto suprimir a si prprio. Baste a seguinte passagem: O estado no pode

    superar a contradio entre a disposio e a boa vontade da administrao, de um lado, e os seus

    meios e poderes, de outro, exceto se abolir a si prprio, j que descansa sobre esta contradio.

    Descansa sobre a contradio entre a vida pblica e a vida privada, e sobre a contradio entre os

    interesses gerais e os interesses particulares. Por esta razo, a administrao deve limitar-se a uma

    atividade formal e negativa, pois sua ao termina no mesmo ponto onde comeam a vida civil e

    seu trabalho. De fato, diante das conseqncias que emergem da natureza a-social dessa vida civil,

    dessa propriedade privada, desse comrcio, dessa indstria, da mtua pilhagem entre os vrios

    grupos na vida civil, fica claro que a lei natural da administrao a impotncia. Com efeito, esta

    23 . Ib., p. 154.

  • 20

    vileza, esta escravido da sociedade civil o fundamento natural do estado moderno /.../. A existncia

    do estado inseparvel da existncia da escravido24.

    Marx adensa a crtica da politicidade expondo a determinao e os limites da racionalidade

    poltica, oferecendo assim o que podemos chamar de crtica da razo poltica25, demarcando-a

    como aquela que pensa dentro dos limites da poltica e, por isso mesmo, incapaz de

    compreender a raiz dos males sociais. Vale reproduzir mais uma passagem: Quanto mais

    desenvolvido e generalizado se acha o entendimento poltico de um povo, mais o proletariado

    desperdia suas energias pelo menos no incio do movimento em revoltas irrefletidas, estreis,

    que so afogadas em sangue. Ao pensar sob forma poltica, divisa o fundamento de todos os

    males na vontade e os meios para os remediar na fora e na derrubada de uma determinada forma de

    governo. Temos a prova disso nas primeiras exploses do proletariado francs. /.../ O

    entendimento poltico lhes ocultava as razes da penria social, falsificava a compreenso de sua

    verdadeira finalidade; o entendimento poltico enganava, pois, o seu instinto social 26 . Afirmao

    contundente, largamente desconsiderada, joga nova luz sobre os objetivos e meios das lutas dos

    trabalhadores do ltimo sculo, e empuxa fortemente ultrapassagem do entendimento poltico,

    sob pena de prosseguir desperdiando energias.

    Estabelecido o fundamento da existncia do estado e sua correspondente impotncia para

    alter-lo, Marx repe a distino entre revoluo poltica, limitada e parcial, e revoluo social,

    radical e infinita, explicitando aqui o papel desempenhado por ambas na superao da ordem

    atual e construo do socialismo, avanando na concreo ao apanhar o elo existente entre os

    atos polticos, forma de atuao prpria do mundo do capital, e a revoluo social, que, visando a

    suprimir tal mundo, deve agir nele para o ultrapassar: Toda revoluo dissolve a velha sociedade,

    assim considerada uma revoluo social. Toda revoluo derruba o antigo poder, neste sentido

    uma revoluo poltica. /.../ E sem revoluo no pode o socialismo se realizar. Este necessita do ato

    poltico na medida em que tem necessidade de destruir e dissolver. Porm, ali onde comea sua

    atividade organizadora, ali onde se manifesta seu fim em si, sua alma, o socialismo despeja seu

    invlucro poltico27. H um efetivo lugar e papel, no para uma revoluo poltica, mas para o ato

    poltico nos quadros de uma revoluo social: mas este somente o de destruio e dissoluo do

    antigo poder. O reordenamento de todo o modo de vida, a construo de uma nova forma de

    interatividade entre os indivduos no se efetiva por meio de atos polticos ou pela mediao da

    24 . K. MARX, Glosas Crticas al Articulo El Rey de Prusia y La Reforma Social. Por un Prusiano, in C. MARX, Escritos de Juventud, op. cit., p. 513. 25 . J. CHASIN, ib., p. 155. 26 . K. MARX, Glosas Crticas al Articulo El Rey de Prusia y La Reforma Social. Por un Prusiano, in C. MARX, Escritos de Juventud, op. cit., p. 518-519. 27 . Ib., p. 520.

  • 21

    esfera da politicidade: o antigo poder deve ter sido dissolvido, de sorte que evidentemente a

    finalidade de todo o processo no a constituio de outro poder.

    Alm da crtica da razo poltica, as Glosas Crticas de 44 trazem tambm outra

    determinao basilar: a de que o estado resulta da fragilidade social, no das melhores qualidades

    humanas, como explicita a passagem j citada do texto marxiano: Com efeito, esta vileza, esta

    escravido da sociedade civil o fundamento do estado moderno, assim como a sociedade civil

    da escravido era o fundamento natural do estado da Antiguidade. A existncia do estado

    inseparvel da existncia da escravido. Mais do que reafirmar a sociedade civil como alicerce do

    estado, resta iluminado o ncleo dessa determinao: o estado emerge daquilo que esta sociedade

    civil tem de mais negativo sua vileza, sua natureza a-social, a escravido que lhe inerente. A

    referncia natureza da sociedade civil e do estado como tais, pois este s existe em oposio

    quela, e impotente diante dela, ou seja, impotente para corrigir os males sociais, porque s

    existe graas presena destes.

    Este conjunto de textos demonstra a radicalidade da ruptura efetivada por Marx em

    relao a seu pensamento anterior, e a natureza de sua nova posio, marcada pela determinao

    ontonegativa da politicidade, isto , por entender que a poltica no inerente ao ser social, vale

    dizer, no essencial existncia humana do homem, sendo produto de uma necessidade

    historicamente delimitada pelo perodo, ainda que longo, da pr-histria da humanidade. A

    determinao ontopositiva da politicidade, ao contrrio, atribui poder resolutivo a essa esfera e

    entende-a como inerente existncia humano-societria dos homens, tanto que conduz

    indissociabilidade entre poltica e sociedade, a ponto de tornar quase impossvel, at para a

    simples imaginao, um formato social que independa de qualquer forma de poder poltico28.

    Observao fundamental, a indicar um bice, presente tanto ao tempo de Marx como

    atualmente, seja para a compreenso da nova posio do filsofo alemo, seja para o

    entendimento da realidade e a conseqente identificao das alternativas que permitiriam

    prosseguir no caminho da autoconstruo humana.

    No mesmo Prefcio j citado, Marx d conta dos anos que transcorreram entre 1844 e

    1848, referindo outros textos nos quais foram expostos os desdobramentos de sua nova posio.

    Aludindo ao incio da colaborao com Engels, afirma que quando este, na primavera de 1845,

    se veio estabelecer tambm em Bruxelas, resolvemos trabalhar em conjunto, a fim de esclarecer o

    antagonismo existente entre a nossa maneira de ver e a concepo ideolgica da filosofia alem;

    tratava-se, de fato, de um ajuste de contas com a nossa conscincia filosfica anterior. Este

    28 . J. CHASIN, Marx Estatuto Ontolgico e Resoluo Metodolgica, op. cit., p. 368.

  • 22

    projeto foi realizado sob a forma de uma crtica da filosofia ps-hegeliana29. Impossibilitada sua

    publicao, o manuscrito dA Ideologia Alem foi, na frase mais do que clebre, abandonado

    crtica roedora dos ratos, sendo publicado somente dcadas depois da morte dos autores

    (mesmo destino da Crtica da Filosofia do Direito de Hegel e dos Manuscritos Econmico-Filosficos). No

    mesmo ano, publica A Sagrada Famlia. Crtica da Crtica Crtica, escrita em conjunto com Engels, e

    redige as Teses ad Feuerbach, que evidenciam a instaurao do novo materialismo. Dos trabalhos

    dispersos desta poca menciona o Manifesto do Partido Comunista e o Discurso sobre o livre-cmbio.

    Completam o elenco a Misria da Filosofia, de 1847, em que Os pontos decisivos das nossas

    concepes foram cientificamente esboados pela primeira vez, ainda que de forma polmica, e

    uma dissertao sobre o Trabalho assalariado, cuja impresso foi interrompida pela revoluo de

    fevereiro30.

    Deste amplo conjunto de textos, sero afloradas pouqussimas passagens de alguns deles,

    visando apenas ilustrar a nova posio marxiana acerca da politicidade, bem como, de modo

    ainda mais ligeiro, indicar a ruptura com a especulao e com a economia poltica.

    Sendo o primeiro passo de sua crtica da poltica o reconhecimento de que o estado

    determinado pela sociedade civil, evidente que este tambm um passo na crtica da

    especulao. Na mesma Crtica da Filosofia do Direito de Hegel, h inmeras indicaes de que Marx

    refuta o fundamento da especulao: a idia como produtora do mundo sensvel. Reconhecida a

    prioridade deste, e os homens, com suas idias, como partcipes desse mundo sensvel, Marx

    determina o mundo humano objetividade e subjetividade, sujeito e objeto como atividade

    sensvel. Essa conquista se estampa nos Manuscritos Econmico-Filosficos, nas Teses ad Feuerbach, em

    especial na primeira delas, e nA Ideologia Alem.

    Nos Manuscritos Econmico-Filosficos, dizia Marx: Que o homem seja um ser corpreo,

    dotado de foras naturais, vivo, efetivo, sensvel, objetivo, significa que tem como objeto de seu

    ser, de sua exteriorizao de vida, objetos efetivos, sensveis, ou que s em objetos reais,

    sensveis, pode exteriorizar sua vida31. o modo da exteriorizao de sua vida que especifica o

    homem como tal, pois a vida produtiva a vida do gnero. a vida engendradora de vida. No

    tipo de atividade vital jaz o carter inteiro de uma species, seu carter genrico, e a atividade

    consciente livre o carter genrico do homem, atividade designada linhas antes como

    trabalho, a atividade vital, a vida produtiva (MEF ? 180). Apreender a atividade sensvel

    autoprodutora como o carter genrico do homem apreend-lo como histrico, ou melhor,

    apreender aquela atividade como processo histrico: O comportamento efetivo, ativo do homem

    29 . K. MARX, Contribuio para a Crtica da Economia Poltica, op. cit., p. 30. 30 . Ib., p. 30. 31 K. MARX, Manuscritos Econmico-Filosficos, So Paulo, Boitempo, 2004 (traduo de Jesus Ranieri), p. 127.

  • 23

    para consigo mesmo na condio de ser genrico /.../ somente possvel porque ele

    efetivamente expe todas as suas foras genricas o que possvel apenas mediante a ao

    conjunta dos homens, somente enquanto resultado da histria32.

    A primeira das Teses ad Feuerbach, refutando o idealismo e o velho materialismo, indica

    como problema central de ambos a desconsiderao da atividade sensvel: o velho materialismo,

    Feuerbach incluso, tem por principal defeito s apreender a sensibilidade sob a forma de objeto

    ou de intuio, mas no como atividade humana sensvel, como prxis, no subjetivamente, enquanto

    o idealismo, ainda que desenvolva o aspecto ativo, desconhece a atividade real, sensvel, como

    tal. A objetividade, o mundo sensvel, , portanto, identificado como atividade sensvel. O

    mesmo ocorre com o sujeito, a subjetividade: enquanto no materialismo feuerbachiano e no

    idealismo a atividade humana entendida somente como atividade abstrata, terica, como

    atividade do pensamento, Marx a afirma como atividade objetiva33. De sorte que tanto sujeito

    como objeto so determinados como atividade sensvel: o primeiro, por sua atividade prtica

    consciente, capaz de dar aos objetos sensveis forma nova, presente anteriormente em sua

    subjetividade 34 ; o segundo, na medida das suas potencialidades, reconfigurado por aquela

    atividade, passando, pois, a ser objetivao, corporificao dela.

    Arrimadas nesta, a IX e a X Teses tratam da questo que o foco deste trabalho. Diz a IX:

    O extremo a que chega o materialismo intuitivo, isto , o materialismo que no apreende a

    sensibilidade como atividade prtica, a intuio dos indivduos singulares e da sociedade civil.

    E a X: O ponto de vista do velho materialismo a sociedade civil; o ponto de vista do novo a

    sociedade humana ou a humanidade social 35 . Em ambos os casos, o velho materialismo,

    desconsiderando a atividade prtica, no pode ultrapassar o patamar da sociedade civil, j que

    incapaz de apreender a histria, vale dizer, o processo de autoconstituio humana, e, assim,

    naturaliza os indivduos singulares (ou apreende sua essncia como generalidade interna, muda

    VI Tese) e a sociedade civil. O novo materialismo, ao contrrio, partindo do pressuposto da

    atividade prtica sensvel, dos homens como autoprodutores, pode visualizar a extino da

    sociedade civil do modo atual de realizao dessa atividade produtora e sua substituio pela

    sociedade humana ou humanidade social. Ainda que os termos aqui no sejam utilizados,

    evidente que a atividade revolucionria, prtico-crtica, referida ao final da I Tese, ou a

    prxis revolucionria, na III Tese, capaz de mudar simultaneamente as circunstncias e os

    32 . Ib., p. 123. 33 . K. MARX, Teses ad Feuerbach, in K. MARX e F. ENGELS, A Ideologia Alem (Feuerbach), So Paulo, Hucitec, 1986 (traduo de Jos Carlos Bruni e Marco Aurlio Nogueira), p. 11. 34 . Como componente da atividade vital prpria do homem atividade consciente , ou seja, enquanto predicado de um ser sensvel vivo, portanto ativo, a conscincia tanto receptiva (capaz de apanhar e reproduzir mentalmente as caractersticas objetivas do mundo sensvel, inclusive as dos homens indivduos e sociedade) quanto projetiva. 35 . K. MARX, Teses ad Feuerbach, op.cit., p. 14.

  • 24

    homens, remetem a esta transformao radical, em que todo o modo de ser, todo o modo da

    atividade transfigurado; remetem portanto revoluo social, pois a revoluo poltica fora j

    delimitada como aquela que deixa em p a sociedade civil.

    A Ideologia Alem apresenta desdobramentos das crticas ontolgicas da especulao e da

    poltica, dos quais, como foi o caso dos outros materiais mencionados, sero destacadas somente

    algumas poucas linhas.

    A afirmao da prioridade da atividade sensvel na produo do mundo humano

    objetiva e subjetivamente tambm se faz presente nA Ideologia Alem, que reafirma, assim, o

    reconhecimento pr-teortico, ou seja, no mediado por qualquer forma de arrumao prvia da

    subjetividade, e sim ontoprtico da realidade do mundo: o universo da prtica ou da vida vivida

    em sua qualidade de confirmao da dupla certeza da existncia do mundo e dos homens36.

    Basta remeter passagem seminal: Os pressupostos de que partimos no so arbitrrios, nem

    dogmas. So pressupostos reais, de que no se pode fazer abstrao a no ser na imaginao. So

    os indivduos reais, sua ao e suas condies materiais de vida, tanto aquelas por eles j

    encontradas, como as produzidas por sua prpria ao37. H, pois, pressupostos, certamente,

    mas estes so o mundo existente, por sua vez constitudo por indivduos reais, que atuam num

    mundo material determinado. Considerando que o primeiro fato a constatar , pois, a

    organizao corporal destes indivduos e, por meio disto, sua relao dada com o resto da

    natureza, Marx reconhece os homens como seres naturais, que entretanto distinguem-se dos

    restantes: Pode-se distinguir os homens dos animais pela conscincia, pela religio ou por tudo

    que se queira. Mas eles prprios comeam a se diferenciar dos animais to logo comeam a

    produzir seus meios de vida, passo este que condicionado por sua organizao corporal.

    Produzindo seus meios de vida, os homens produzem, indiretamente, sua prpria vida

    material 38 . Novamente o modo especfico da atividade determinante, e esta atividade

    produtiva, de fato auto-produtiva. Enquanto determinada forma de atividade dos indivduos, o

    modo de produo determinada forma de manifestar sua vida, determinado modo de vida dos

    mesmos. Tal como os indivduos manifestam sua vida, assim so eles. O que os indivduos so

    coincide, portanto, com sua produo, tanto com o que produzem, como com o modo como

    produzem. O que os indivduos so, portanto, depende das condies materiais de sua

    produo39. Indivduos atuando praticamente no mundo manifestam sua vida produzindo-a, vale

    dizer, produzindo suas capacidades e as condies materiais em que estas se efetivam; produzem

    36 . J. CHASIN, apud Ester VAISMAN, Dossi Marx: Itinerrio de um Grupo de Pesquisa, in Ensaios Ad Hominem 1 Tomo IV: Dossi Marx, Santo Andr, Ad Hominem, 2001, p. V. 37 . MARX, K. e ENGELS, F. A Ideologia Alem (Feuerbach), op.cit., p. 26. 38 . Ib., p. 27. 39 . Ib., pp. 27-28.

  • 25

    seu modo de vida objetiva e subjetivamente, por sua atividade sensvel. Estes pressupostos,

    evidentemente contrrios ao pressuposto especulativo no a conscincia que determina a

    vida, mas a vida que determina a conscincia so os que permitem afirmar que A estrutura

    social e o estado nascem constantemente do processo de vida de indivduos determinados. A

    fim de compreender melhor os desdobramentos acerca do estado que aparecem nesta obra,

    preciso ter em mente que, tratando dos pressupostos da histria, Marx afirma como primeiro

    ato histrico tanto a produo da prpria vida material quanto a produo de novas

    necessidades, j que esta se realiza pela ao e pelo instrumento adquirido para satisfazer aquela.

    Vale dizer: produzir a vida material significa tambm produzir os carecimentos que impulsionam

    ao, isto , significa produzir a prpria vida em toda a sua extenso. Ao que se deve

    acrescentar, como o faz Marx, a produo de outros homens, fsica e socialmente, de sorte que,

    como j os Manuscritos de 44 e a Questo Judaica estampavam, o carecimento do outro parte

    ineliminvel das necessidades humanas. o que reafirma a constatao de que a produo da

    vida tanto relao natural quanto relao social, social no sentido de que se entende por isso a

    cooperao de vrios indivduos, quaisquer que sejam as condies, o modo e a finalidade40.

    Mediando por essa explicitao das vrias determinaes e resultados do trabalho, Marx

    chega ao tratamento da diviso social do trabalho, que se torna realmente diviso apenas a partir

    do momento em que surge uma diviso entre o trabalho material e o espiritual, isto , quando

    estas atividades passam a caber a indivduos diferentes. Trata-se da ciso da atividade

    especificamente humana a separao entre os dois momentos da atividade que d forma aos

    objetos, inclusive aos prprios homens: o momento da elaborao e projeo subjetiva dessa

    forma, e o de sua efetivao; portanto a ciso dos prprios indivduos, que se manifestar dos

    mais diversos modos. E Marx acrescenta: diviso do trabalho e propriedade privada so

    expresses idnticas: a primeira enuncia em relao atividade, aquilo que se enuncia na segunda

    em relao ao produto da atividade. Com essa diviso social do trabalho, fundamento da

    propriedade privada, j que a atividade o fundamento de seu produto, dada ao mesmo tempo

    a contradio entre o interesse do indivduo ou da famlia singulares e o interesse coletivo de

    todos os indivduos que se relacionam entre si; e, com efeito, este interesse coletivo no existe

    apenas na representao, como interesse geral, mas se apresenta, antes de mais nada, na

    realidade, como a dependncia recproca de indivduos entre os quais o trabalho est dividido41.

    Vale destacar que com a diviso do trabalho, com a ciso entre os dois momentos da atividade

    humana, que se d a contradio entre interesse singular e coletivo; esta , pois, expresso

    daquela; desse modo, tanto os interesses singulares quanto os coletivos so reais. Com a ciso

    40 . Ib., pp. 39 a 42. 41 . Ib., pp. 44 a 47.

  • 26

    entre ambos, isto , com a diviso no voluntria, e sim natural, da atividade, a prpria ao do

    homem converte-se num poder estranho e a ele oposto, que o subjuga ao invs de ser por ele

    dominado. /.../ Esta fixao da atividade social esta consolidao de nosso prprio produto

    num poder objetivo superior a ns, que escapa a nosso controle, que contraria nossas

    expectativas e reduz a nada nossos clculos um dos momentos capitais do desenvolvimento

    histrico que at aqui tivemos42. Mais explicitamente adiante: O poder social, isto , a fora

    produtiva multiplicada que nasce da cooperao de vrios indivduos exigida pela diviso do

    trabalho, aparece a estes indivduos, porque sua cooperao no voluntria mas natural, no

    como seu prprio poder unificado, mas como uma fora estranha situada fora deles43. De sorte

    que, cindindo a atividade e o produto dessa atividade, a diviso social do trabalho cinde tambm

    interesse singular e coletivo, isto , separa o poder social, produzido pelos indivduos, destes

    mesmos indivduos. Esta ciso se manifesta como estado: justamente desta contradio entre

    o interesse particular e o interesse coletivo que o interesse coletivo toma, na qualidade de estado,

    uma forma autnoma, separada dos reais interesses particulares e gerais e, ao mesmo tempo, na

    qualidade de uma coletividade ilusria, mas sempre sobre a base real dos laos existentes em cada

    conglomerado familiar e tribal /.../ e sobretudo /.../ baseada nas classes, j condicionadas pela

    diviso do trabalho, que se isolam em cada um destes conglomerados humanos e entre as quais

    h uma que domina todas as outras 44 . O estado, portanto, origina-se da diviso social do

    trabalho, em especial da contradio entre interesse particular e coletivo que dela resulta, e a

    encarnao autonomizada desse interesse coletivo; , portanto, a corporificao de interesses dos

    indivduos, de seu poder social, previamente extrados, separados deles. Ainda uma ltima

    passagem: Justamente porque os indivduos procuram apenas seu interesse particular, que para

    eles no coincide com seu interesse coletivo (o geral de fato a forma ilusria da coletividade),

    este interesse comum faz-se valer como um interesse estranho aos indivduos, independente

    deles, como um interesse geral especial e particular45.

    Reconhece-se facilmente a mesma posio assumida em Sobre A Questo Judaica e nas

    Glosas Crticas de 44: o estado como expresso da vida pblica, da generidade, da coletividade

    (assim tornada ilusria) separadas da vida privada, da individualidade, como corporificao,

    separada dos indivduos, de seu poder social, como usurpao de foras sociais.

    Se nas Glosas Crticas estava j indicado que o estado se origina da e exprime a fragilidade

    societria, aqui este nexo fartamente desdobrado, ao desvelar que a diviso social do trabalho,

    fundamento do estado, decorre do baixo desenvolvimento das capacidades produtivas, isto ,

    42 . Ib., pp. 47-48. 43 . Ib., p. 49. 44 . Ib., p. 48. 45 . Ib., p. 49.

  • 27

    daquelas foras sociais. Expondo os pressupostos prticos necessrios para superar a alienao,

    Marx destaca a existncia da massa da humanidade como massa totalmente destituda de

    propriedade; e que se encontre, ao mesmo tempo, em contradio com um mundo de riquezas e

    de cultura existente de fato coisas que pressupem, em ambos os casos, um grande incremento

    da fora produtiva, ou seja, um alto grau de seu desenvolvimento; sem este pressuposto,

    apenas generalizar-se-ia novamente a escassez e, portanto, com a carncia, recomearia

    novamente a luta pelo necessrio e toda a imundcie anterior seria restabelecida46.

    De sorte que a diviso social do trabalho responsvel pela alienao, isto , pela ciso e

    oposio entre os indivduos e suas foras sociais, de que o estado uma das manifestaes

    resulta, por sua vez, da carncia, do baixo desenvolvimento dessas mesmas foras sociais; a

    restrio mesma das capacidades humanas que exige a diviso social do trabalho, a ciso entre

    essas foras e seus produtores. A forma do capital, e do estado moderno que lhe corresponde,

    so as expresses mximas dessa ciso. Mais frente, Marx detalha: Partimos, at aqui, dos

    instrumentos de produo e j aqui mostra-se a necessidade da propriedade privada para certas

    fases industriais. Na industrie extractive, a propriedade privada ainda coincide inteiramente com o

    trabalho; na pequena indstria e em toda a agricultura anterior, a propriedade a conseqncia

    necessria dos instrumentos de produo existentes; na grande indstria, a contradio entre o

    instrumento de produo e a propriedade privada o produto da grande indstria, que deve estar

    j bastante desenvolvida para cri-la. A superao da propriedade privada, portanto, s se torna

    possvel com a grande indstria47.

    Marx esboa uma histria do estado nas pginas finais dessa primeira parte de A Ideologia

    Alem. Afirmando que a primeira forma de propriedade a propriedade tribal, que entre os

    povos antigos /.../ aparece como propriedade do estado, menciona o desenvolvimento da

    propriedade at chegar ao capital moderno, condicionado pela grande indstria e pela

    concorrncia universal, isto , at chegar propriedade privada pura, que se despojou de toda

    aparncia de comunidade e que excluiu toda influncia do estado sobre o desenvolvimento da

    propriedade. A esta propriedade privada moderna corresponde o estado moderno, determinado

    como segue: Atravs da emancipao da propriedade privada em relao comunidade, o

    estado adquire uma existncia particular, ao lado e fora da sociedade civil; mas este estado no

    mais do que a forma de organizao que os burgueses necessariamente adotam, tanto no interior

    como no exterior, para a garantia recproca de sua propriedade e de seus interesses.

    A diviso social do trabalho e a propriedade privada que lhe corresponde tm, pois, uma

    histria, cujo sentido foi a ampliao da prpria diviso social do trabalho e, conseqentemente, a

    46 . Ib., p. 50. 47 . Ib., p. 102.

  • 28

    ampliao da ciso entre propriedade e comunidade, at o ponto em que, tendo a propriedade

    alcanado a forma pura, isto , extinta a comunidade, a sociabilidade toma a forma de estado

    separado da sociedade civil. Tambm coerentemente com o exposto em textos anteriores, a

    constituio plena tanto da sociedade civil48 quanto do estado decorre da completa separao

    entre vida privada e vida pblica, entre indivduo e sociedade, ou entre indivduo e gnero.

    Cindidas do conjunto dos indivduos e coaguladas sob a forma de estado, as foras sociais so

    apropriadas, evidentemente, por outros homens pela burguesia.

    A necessidade da luta poltica e simultaneamente sua limitao tm seu cho social assim

    exposto: Como o estado a forma na qual os indivduos de uma classe dominante fazem valer

    seus interesses comuns e na qual se resume toda a sociedade civil de uma poca, segue-se que

    todas as instituies comuns so mediadas pelo estado e adquirem atravs dele uma forma

    poltica49. A forma poltica , portanto, demarcada como aquela assumida pelas instituies

    sociais no interior da sociedade de classes e na presena da dominao de classe, cuja forma o

    estado. Vale dizer, a forma poltica a forma assumida pelas relaes sociais num perodo

    histrico bem determinado, de modo que, extinto o estado pela extino da diviso social do

    trabalho, propriedade privada, classes e sua dominao, extingue-se com ele a poltica a forma

    que o estado imprime s instituies, por conseqncia inexistente sem ele.

    Forma nascida da limitao do desenvolvimento humano, pode ser superada quando esta

    limitao deixada para trs, a partir, pois, da grande indstria. Quando esta se pe, isto , sob a

    regncia do capital, as foras produtivas aparecem como inteiramente independentes e separadas

    dos indivduos, como um mundo prprio ao lado destes, o que tem seu fundamento no fato de

    que os indivduos, que so as foras daquele mundo, existem fragmentados e em oposio mtua,

    ao passo que, por outro lado, essas foras s so foras reais no intercmbio e na relao desses

    indivduos. Atente-se para a afirmao de Marx de que o fundamento da situao a

    fragmentao dos indivduos, que de fato dupla: cada qual fragmentado e se ope aos demais;

    a diviso social do trabalho, que atribui a cada indivduo somente um dos momentos que

    constituem a atividade humana, tanto cinde internamente cada um quanto os ope. De um lado,

    portanto, temos uma totalidade de foras produtivas que adquiriram como que uma forma

    objetiva e que, para os prprios indivduos, no so mais suas prprias foras, mas as da

    propriedade privada e, por isso, so apenas as foras dos indivduos enquanto proprietrios

    privados. Em nenhum perodo precedente as foras produtivas tinham adquirido esta forma

    indiferente para o intercmbio entre os indivduos enquanto indivduos, porque seu prprio

    48 . A expresso sociedade civil aparece no sculo XVIII, quando as relaes de propriedade j se tinham desprendido da comunidade antiga e medieval. A sociedade civil, como tal, desenvolve-se apenas com a burguesia. Ib., p. 53. 49 . Ib., p. 98.

  • 29

    intercmbio era ainda limitado. De outro lado, enfrenta-se com estas foras produtivas a maioria

    dos indivduos, dos quais estas foras se destacaram e que, portanto, despojados de todo

    contedo real da vida, tornaram-se indivduos abstratos; mas que, por isso mesmo, s ento so

    colocados em condies de relacionar-se uns com os outros enquanto indivduos50. A abstrao que

    caracteriza os indivduos pela perda do contedo de sua vida de suas foras produtivas

    permite que se relacionem enquanto indivduos medida que destri a identificao de cada um

    com uma nica atividade, com uma nica capacidade. concretude limitada que caracterizava os

    homens em perodos histricos anteriores, sucede a infinitude abstrata: a possibilidade, posta sob

    forma extremamente contraditria e no realizada, de cada um, enquanto indivduo, ser

    genrico51 .

    Acrescentando que A nica relao que os indivduos ainda mantm com as foras

    produtivas e com sua prpria existncia o trabalho perdeu para eles toda aparncia de auto-

    atividade e s conserva sua vida atrofiando-a, Marx conclui: As coisas, portanto, foram to

    longe que os indivduos devem apropriar-se da totalidade existente de foras produtivas, no s

    para alcanar a auto-atividade, mas to-somente para assegurar sua existncia, apropriao

    triplamente condicionada: pelo objeto a ser apropriado /.../ deve necessariamente apresentar

    um carter universal correspondente s foras produtivas e ao intercmbio; pelos indivduos

    apropriadores. Apenas os proletrios da poca atual, inteiramente excludos de toda auto-

    atividade, esto em condies de impor sua auto-atividade completa; e pelo modo como deve

    ser realizada: atravs de uma unio universal, e atravs de uma revoluo que, de um lado,

    derrube o poder do modo de produo e de intercmbio anterior e da estrutura social, e que

    desenvolva, de outro lado, o carter universal e a energia do proletariado necessria para a

    realizao da apropriao; e na qual, alm disso, o proletariado despoja-se de tudo o que nele

    ainda resta de sua anterior posio na sociedade passagem que desdobra a afirmao sinttica

    da III Tese ad Feuerbach, relativa transformao simultnea das circunstncias e dos homens, e

    aponta para a auto-supresso da classe trabalhadora.

    Posta a necessidade de apropriao pelos indivduos das foras produtivas e seus

    condicionantes, possvel entender o sentido dela: A apropriao destas foras nada mais do

    que o desenvolvimento das capacidades individuais correspondentes aos instrumentos materiais

    de produo. A apropriao de uma totalidade de instrumentos de produo , exatamente por

    isso, o desenvolvimento de uma totalidade de capacidades nos prprios indivduos. E mais

    adiante: na apropriao por parte dos proletrios, uma massa de instrumentos de produo deve

    50 . Ib., p. 104. 51 . De forma um pouco menos ligeira, essa questo ser retomada na Parte III deste trabalho. Aqui importa destacar a presena dessa argumentao, bastante prxima, ainda que menos desenvolvida, da que Marx apresentar mais de uma dcada depois nos Grundrisse.

  • 30

    ser subsumida a cada indivduo, e a propriedade a todos. E, finalmente: Apenas nesta fase a

    auto-atividade coincide com a vida material, o que corresponde transformao dos indivduos

    em indivduos totais e ao despojamento de todo seu carter natural. A transformao do trabalho

    em auto-atividade corresponde transformao do limitado intercmbio anterior em intercmbio

    entre indivduos enquanto tais. Com a apropriao das foras produtivas totais pelos indivduos

    unidos, termina a propriedade privada52.

    O conjunto dessas passagens clarssimo, e expe a radicalidade da revoluo social, o

    sentido do comunismo ou da emancipao humana geral. Evidentemente, suprimida a

    propriedade privada pela supresso da diviso social do trabalho que a gerou, o estado deixa de

    ter qualquer sustentao, e muito menos funo.

    Atente-se para o fato de que, ao longo de toda a Ideologia Alem, bem como nos anteriores

    textos marxianos citados, o ponto de partida e o ponto de chegada so os indivduos; so os

    indivduos que atuam, que produzem sua vida, que estabelecem relaes entre si, de sorte que as

    capacidades produtivas e as relaes sociais so suas capacidades e relaes, que s se separam

    deles justamente pelo modo com que os indivduos as produzem e estabelecem, e que portanto

    podem ser reapropriadas pelos indivduos, e devem s-lo, se se tem em vista a continuidade da

    autoconstruo humana. O quadro que Marx esboa na ltima passagem citada corresponde ao

    fim da pr-histria da humanidade pelo alcance da autodeterminao de indivduos sociais, ou de

    indivduos livres voluntariamente associados. Autodeterminao agora posta plenamente como

    autoproduo de capacidades e relaes.

    A Ideologia Alem traz ainda observaes acerca da relao entre indivduo e classe de que

    preciso tratar53. Ainda que o proletariado tambm seja mencionado, essa questo abordada

    principalmente no mbito da constituio da burguesia como classe, no interior das cidades a

    partir da Idade Mdia, j em franca oposio ao campo. Para no alongar demais esta Introduo,

    sero apenas alinhavados os momentos mais significativos.

    A diviso em classes, diz Marx repousa diretamente na diviso do trabalho e nos

    instrumentos de produo. Marx expe, com detalhes, a formao das cidades novas a partir dos

    52 . Ib., pp. 104 a 107. Diga-se de passagem que este o sentido efetivo de uma passagem anterior da mesma obra: Com efeito, desde o instante em que o trabalho comea a ser distribudo, cada um dispe de uma esfera de atividade exclusiva e determinada, que lhe imposta e da qual no pode sair; o homem caador, pescador, pastor ou crtico crtico, e a deve permanecer se no quiser perder seus meios de vida ao passo que na sociedade comunista, onde cada um no tem uma esfera de atividade exclusiva, mas pode aperfeioar-se no ramo que lhe apraz, a sociedade regula a produo geral, dando-me assim a possibilidade de hoje fazer tal coisa, amanh outra, caar pela manh, pescar tarde, criar animais ao anoitecer, criticar aps o jantar, segundo meu desejo, sem jamais tornar-se caador, pescador, pastor ou crtico (p. 47). 53 . Assim como ocorre a respeito da sociedade civil e do estado, tambm o termo classe cobra em Marx dois sentidos. O mais geral remete aos grupos constitudos pela diviso social do trabalho (atividade, meios e produtos do trabalho) em qualquer sociedade que a apresente. O segundo, mais especfico, remete apenas configurao assumida por tais grupos na sociedade moderna, determinada pelo aprofundamento da diviso social do trabalho, de que resultou a propriedade privada pura e o estado moderno.

  • 31

    servos libertos, a estabilizao do artesanato ligado ao comrcio, a organizao corporativa e

    militar, e a transformao operada com a separao entre produo e comrcio, os contatos

    estabelecidos entre as cidades e a formao da classe burguesa a partir das burguesias locais. Aqui

    se quer destacar a seguinte observao marxiana: As condies de vida dos diferentes burgueses,

    em decorrncia da oposio s relaes sociais existentes e do tipo de trabalho que isso impunha,

    tornaram-se simultaneamente condies comuns a todos eles e independentes de cada indivduo.

    Os burgueses criaram essas condies na medida em que se destacavam da associao feudal, e

    foram criados por essas condies na medida em que estavam determinados por sua oposio

    feudalidade existente. O texto marxiano mostra, pois, como indivduos inseridos em

    determinadas relaes de classe, ao transformar sua atividade, geram outras capacidades

    produtivas e outras relaes de produo, alterando, pois, suas condies gerais de vida, e assim

    produzindo outra classe, qual, entretanto, os indivduos passam em seguida a subsumir-se. Diz

    Marx: A prpria burguesia s se desenvolve paulatinamente dentro de suas condies; ramifica-

    se, por sua vez, em diferentes fraes, de acordo com a diviso do trabalho, e acaba por absorver

    em si todas as classes possuidoras preexistentes (ao mesmo tempo em que transforma numa nova

    classe o proletariado a maioria da classe no-possuidora que existia anteriormente e uma parte

    das classes at ento possuidoras), na medida em que toda propriedade transformada em capital

    comercial ou industrial. A classe, pois, como qualquer outra relao social, gerada pela ao

    dos indivduos ao relacionarem-se entre si e com a natureza de um determinado modo, para

    produzir sua prpria vida material: Os indivduos isolados apenas formam uma classe na medida

    em que tm que manter uma luta comum contra outra classe; no restante eles mesmos

    defrontam-se uns com outros na concorrncia. evidente que tanto a necessidade de manter

    uma luta comum contra outra classe quanto a concorrncia em que se defrontam so produtos de

    um modo determinado de produzir sua vida, modo este cuja gerao pelas aes humanas Marx

    buscou alinhavar nas pginas anteriores. Entretanto, tambm como as demais relaes sociais

    fundadas na diviso social do trabalho, especialmente quando esta assume a forma moderna,

    como aqui o caso, a classe autonomiza-se em face dos indivduos, de sorte que estes ltimos

    encontram suas condies de vida preestabelecidas e tm, assim, sua posio na vida e seu

    desenvolvimento pessoal determinados pela classe; tornam-se subsumidos a ela. Trata-se do

    mesmo fenmeno que o da subsuno dos indivduos isolados diviso do trabalho, e tal

    fenmeno no pode ser suprimido se no se supera a propriedade privada e o prprio

    trabalho54.

    54 . Ib., pp. 83-84.

  • 32

    Frise-se, pois, que, sendo produto da ao prtica dos homens ao produzirem sua

    existncia, as classes, ainda que se autonomizem, tal como o estado e o prprio capital, em face

    de seus produtores, no se torna jamais em Marx uma entidade existente por si, capaz de atuar

    independente dos indivduos que a constituem. Ainda que subordinados s suas condies de

    vida determinadas, s suas relaes sociais, so sempre os indivduos que agem. Alm disso, vale

    tambm frisar quer a subordinao classe posta por Marx como uma limitao ao

    desenvolvimento individual, limitao que deve ser rompida. Por isso, como j foi visto, o

    proletariado pode ser o sujeito da revoluo radical: porque suas condies determinadas de vida,

    que o constituem como classe diante da burguesia, permitem-lhe no apenas lutar em favor de

    sua sobrevivncia como classe (como a prpria burguesia fez, desde o nascedouro), mas

    fundamentalmente porque lhe possibilitam romper com sua subordinao classe, suprimindo a

    prpria classe ao suprimir a diviso social do trabalho. Nos termos de Chasin, porque permitem-

    lhe lutar como a negao da negao55, perspectivando aquela condio de indivduos livres

    voluntariamente associados, subsumindo a cada um a totalidade de suas capacidades genricas.

    De sorte que, tambm por esse ngulo, a revoluo comunista ultrapassa os limites da revoluo

    poltica.

    Vale encerrar com uma passagem da Misria da Filosofia. Logo depois de afirmar que a

    luta de classe contra classe uma luta poltica, diz Marx: A existncia de uma classe oprimida

    a condio vital de toda a sociedade fundada no antagonismo de classes. A emancipao da classe

    oprimida implica, pois, necessariamente, na criao de uma sociedade nova. /.../ Isso quer dizer

    que, aps a derrocada da velha sociedade, sobrevir nova dominao de classe, traduzida em

    novo poder poltico? No. A condio de emancipao da classe operria a abolio de todas as

    classes, do mesmo modo que a condio da emancipao do terceiro estado, da ordem burguesa,

    foi a abolio de todos os estados e de todas as ordens. No transcurso de seu desenvolvimento, a

    classe operria substituir a antiga sociedade civil por uma associao que exclua as classes e seu

    antagonismo; e no existir j um poder poltico propriamente dito, pois o poder poltico ,

    precisamente, a expresso oficial do antagonismo de classe, dentro da sociedade civil56.

    Em sntese, Marx comea a constituir sua nova posio em 1843, enfrentando os modos

    de ser e pensar ento dominantes de modo singular: pela realizao de crticas de cunho

    ontolgico politicidade, especulao e economia poltica. Crticas ontolgicas porque tratam

    de esclarecer prioritariamente a respeito de modos de ser, e no de formas de pensar; estas so

    aceitas ou recusadas conforme reproduzam ou no o objeto tal como existe. E crticas radicais no

    55 . J. CHASIN, Ad Hominem Rota e Prospectiva de um Projeto Marxista, op. cit. 56. K. MARX, Misria da Filosofia, So Paulo, Grijalbo, 1976, pp. 164-165.

  • 33

    sentido marxiano do termo, que envolve apreender a gnese, a necessidade, o desenvolvimento e

    a desapario de algo existente, ao invs de apenas recus-lo, no todo ou em parte.

    No desdobramento de sua crtica ontolgica politicidade, Marx comea por recusar ao

    estado enquanto tal, ainda que plenamente posto, o estatuto de mxima encarnao da

    racionalidade, passa pela descoberta de sua determinao pela sociedade civil, mais exatamente

    pelas contradies que a cindem, e sua complementaridade com esta, e se ala percepo de que

    a necessidade do estado e da poltica em geral histrica, no perene, tanto quanto a das relaes

    sociais materiais que os geram indo da mais evidente para a mais fundamental: as classes sociais,

    a diviso social do trabalho e o baixo desenvolvimento das foras produtivas, vale dizer, das

    capacidades do indivduo social.

    A determinao ontonegativa da politicidade a reproduo intelectual desta condio

    real das instituies e relaes polticas, e a conseqente identificao, enquanto alternativa real,

    gestada pela ampliao das capacidades produtivas sob a regncia do capital, de uma revoluo

    que liquide a politicidade ao suprimir todo o modo de vida atual. Nesse sentido, salta vista que a

    determinao ontonegativa da politicidade no significa a recusa liminar de qualquer atuao, de

    qualquer pugna em torno do estado de qualquer luta poltica , mas sim uma tambm radical

    alterao nos modos, meios e objetivos dessa luta. Uma vez que se dirige abolio da

    politicidade, no pode restringir-se esfera ou lgica da prpria poltica, que tende

    reproduo de si mesma e da sociedade da qual brota e se alimenta. A atuao, ainda que referida

    s instituies polticas ou as tendo como foco, deve buscar suas razes sociais, e transform-las:

    deve ser metapoltica. Nesse sentido, nem a anlise da realidade, nem as propostas, nem as

    formas de organizao ou de luta, e muito menos os objetivos dela, podem se restringir esfera,

    lgica ou aos instrumentos polticos.

    Os escritos aqui enfocados tm caractersticas distintivas, que preciso ter em mente j de

    incio. Neles, Marx se debrua sobre revolues burguesas e proletrias, contra-revolues

    feudais e burguesas, implicadas em significativas alteraes na esfera da politicidade, envolvendo

    as formas e o papel do estado, o tipo de ao poltica das classes sociais, as representaes

    parlamentares, os partidos etc. Esquematicamente:

    - de fevereiro a junho de 1848, na Frana, o proletariado se apresenta como classe

    independente, especialmente nas jornadas de junho, pondo praticamente em pauta a superao da

    ordem do capital; encerra-se o perodo de ascenso revolucionria da burguesia, que passa a se

    apresentar como classe conservadora, transfigurao que trar conseqncias s formas de sua

  • 34

    dominao. Nesse quadro, afloram as razes sociais, caractersticas e limitaes do estado

    republicano democrtico;

    - de maro a dezembro de 1848, na Alemanha, frustra-se a perspectiva de uma revoluo

    burguesa, consolida-se, dando um novo passo, a misria alem, forma particular de objetivao

    do capitalismo; expem-se os problemas da posio e das tarefas do proletariado e do

    campesinato em pas com tal configurao; a burguesia, contra-revolucionria, renuncia a seu

    domnio poltico direto;

    - de 1848 a 1851, na Frana, o conservadorismo burgus adquire seus contornos,

    repercutindo na esfera poltica: com a renncia da burguesia ao exerccio direto do domnio

    poltico, desenvolve-se a ltima forma do estado burgus, o bonapartismo;

    - 1871, na Frana, a ecloso de uma revoluo proletria, brevemente vitoriosa, esboa

    pela primeira vez uma nova forma de organizao social, desmontando o estado;

    So momentos em que se produziram viragens histricas fundamentais, envolvendo

    configuraes e reconfiguraes de classes sociais burguesia, proletariado, campesinato , novas

    formas de estado, expanso do capitalismo industrial e simultnea emergncia da perspectiva de

    sua abolio. Reconhecendo-os como tais, Marx exps seu significado nas obras que aqui

    tratadas.

    A politicidade examinada nesses momentos crticos, em que, nas palavras de Marx, a

    luta de classes se desenvolveu sob formas gigantescas; nessas condies, a maturao histrica

    alcanada e o tensionamento prprio dos perodos de crise iluminam e ressaltam os relevos,

    tramas e conexes que a conformam (assim como fora um momento tambm de agudizao de

    lutas de classes a insurreio dos teceles da Silsia que o levara anos antes a apreender os

    modos de ser do estado e da poltica, embasando a ruptura ontolgica j mencionada). Marx,

    alis, reconhece essa condio, e a explicita, afirmando que a Nova Gazeta Renana prefere estudar

    as lutas de classes e a repblica democrtica onde elas so levadas at o fim, e no onde esto

    recuadas, latentes.

    Ao iniciar a elaborao dos mais recuados dos textos aqui sob anlise, Marx j atingira,

    conforme ser mostrado adiante, sua fisionomia adulta, isto , j desenvolvera as trs crticas

    ontolgicas que constituem o processo de emerso de seu pensamento prprio: as crticas da

    politicidade, da especulao e da economia poltica. Contra Hegel, afirmara a busca da lgica da

    coisa, ao invs da coisa da lgica, bem como apreendera os homens, suas relaes e sua

    conscincia como produtos da atividade prtica social dos indivduos mesmos.

    A crtica da poltica (assim como a da especulao e da economia poltica) abrange a um

    tempo uma teoria uma dada maneira de apreender a realidade e a prpria realidade

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    apreendida; trata-se, pois, no apenas da crtica da concepo que tem em Hegel seu expoente

    mximo, como da crtica politicidade mesma; de fato, esta ltima que possibilita a primeira.

    Por essa razo, no deu nem poderia dar lugar a uma nova teoria poltica, sob cuja tica fossem

    observadas as situaes concretas, ou com cujas pinas fossem estas agarradas, seja porque o

    objetivo apreender a lgica da coisa, isto , o objeto tal como existe por si mesmo, seja porque

    aquela crtica envolve a percepo dos limites da razo poltica. Ao invs de uma teoria poltica,

    divisamos um exame que busca descortinar e reproduzir mentalmente as determinaes,

    conexes, processos etc. constitutivos do existente. Apanhadas as categorias e suas inter-relaes,

    trabalho possibilitado pela mencionada maturao e tensionamento do prprio objeto, resultar

    igualmente iluminado o nvel e a forma da generalizao de cada uma delas, isto , ser possvel

    identificar sua presena, sob forma determinada, em outros lugares e pocas, ou, ao contrrio, em

    uma nica regio ou perodo. Em outras palavras, os diferentes nveis de generalizao presentes

    nas obras em foco so reprodues intelectuais de categorias reais, no criaes apriorsticas do

    autor.

    Nas obras aqui destacadas, encontramos a crtica da poltica na dupla acepo referida:

    Marx mostrar a gnese, necessidade e transformaes da politicidade mesma e das concepes a

    respeito dela, principalmente sob a forma das iluses alimentadas pelos expoentes das vrias

    classes em luta.

    Visando a explicao de acontecimentos especficos, Marx nos apresenta obras-primas de

    anlise histrica, at hoje insuperadas, embora produzidas no calor da hora. Diferente de outros

    trabalhos marxianos, aqui seguimos quase que diar