administrando pessoas,recursos e rituais. kelly silva
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Etnografia na Milanésia.TRANSCRIPT
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Administrando pessoas, recursos e rituais. Pedagogia econmica como ttica de governo em Timor-Leste
Kelly Silva Departamento de Antropologia/ Laboratrio de Estudos daGlobalizao e do Desenvolvimento (LEG),
Universidade de Braslia/ Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq)
Este texto discute prticas de gesto de pessoas, recursos e rituais porparte de agncias de governo em Timor-Leste. Tendo por foco de anliseo tara bandu realizado no distrito de Ermera, em 2012, e propagandasoficiais, entrevistas e outros documentos produzidos entre 2012 e 2015,demonstro como certa racionalidade a respeito do dispndio de bensmateriais e simblicos, orientado pelo regime de ddiva em contextosrituais, tem se tornado objeto de governo, dando origem a uma pedagogiaeconmica. Tal pedagogia econmica intenta diminuir os investimentosmateriais e simblicos aplicados em rituais e prestaes de aliana etransformar em mercadorias recursos originalmente manejados comoddiva. No limite, implicado nesta pedagogia econmica figura um projetode purificao e monopolizao das fontes de governo.
Palavras-chave: economia, cultura, rituais, ddiva, mercadorias, Timor-Leste, pedagogia econmica
Abstract
This paper addresses current attempts to manage people, resources andritual practices by government agencies in Timor-Leste. Based on theanalysis of the tara bandu carried out in Ermera in 2012 and officialpropaganda, interviews and other documents produced in between 2012and 2015, I argue how certain rationale about the disposal of materialresources, oriented by the gift regime in ritual contexts, has come to be amatter of government concern. It gives origin to an economic pedagogywhich intends to turn into commodities resources managed as gifts. Inaddition, such economic pedagogy intents to decrease the material andsymbolic investments people do in rituals and alliance prestations. One alsoproposes to consider such economic pedagogy as purification endeavors.
Key-words: economy, culture, rituals, gift, commodity, East Timor, economicpedagogy
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Administrando pessoas, recursos e rituais. Pedagogia econmica como ttica de governo em Timor-Leste1
Kelly Silva Departamento de Antropologia/ Laboratrio de Estudos daGlobalizao e do Desenvolvimento (LEG),
Universidade de Braslia/ Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq)
Este artigo discute os modos pelos quais certa pedagogia econmica
figura como instrumento de governo nos processos de transposio da
modernidade em Timor-Leste. Tendo por base as anlises da prtica de tara
bandu realizada no distrito de Ermera em 2012, propagandas veiculadas
pela Rdio e Televiso de Timor-Leste (RTTL) e entrevistas produzidas entre
2013 e 2015, argumento que, implicado no processo de construo do
Estado-nao em Timor-Leste, figura uma pedagogia econmica que prope
a transformao em mercadorias de recursos manejados, em prticas
rituais, como ddiva2. Implcito em tal pedagogia figura um projeto
civilizacional e de subjetivao que prope: 1. a subtrao ou
enfraquecimento da agncia dos rituais e dos recursos neles dispendidos
1 Este artigo produto da linha de pesquisa intitulada Processos de inveno, transposio esubverso da modernidade, coordenada por mim no Departamento de Antropologia daUniversidade de Braslia. Agradeo ao CNPq por prover recursos, mediante os processos201269/2011-2, 307043/2012-6, 401609/2010-3 e 457845/2014-7, que permitiram aproduo das informaes aqui analisadas, bem como ao Instituto Nacional de Estudos sobreAdministrao Institucional de Conflitos (INEAC). Sou tambm grata a Daniel Simio eAlexandre J. M. Fernandes pela leitura crtica de verses prvias deste artigo.
2 O termo ritual, no mbito deste artigo, figura como categoria analtica, uma vez que no a categoria nativa pela qual os atores se referem s prticas cerimoniais pelas quais produzem e reproduzem seu mundo, exercendo agncia sobre ele. Os termos mais utilizados para fazer referncia a estes eventos so kultura, usos e costumes, tradio, lisan e adat.
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para fins de troca ou sacrifcio; 2. a proposio de que somente pessoas tm
agncia no mundo e de que elas devem se constituir exclusivamente pela
relao que estabelecem com instituies e ideologias modernas de
produo de diferena, como a escola e a circulao de bens como
mercadorias por meio de um regime de mercado por oposio a
circulao de bens e acumulao de direitos sobre pessoas via regime de
ddiva (wealth in people). No limite, inscrito em tal pedagogia est um
projeto de purificao/monopolizao das fontes de governo e prestgio por
parte do Estado.
Meu ponto de partida neste artigo o reconhecimento do carter
polirquico das dinmicas de governana no Timor-Leste ps-colonial. Boege
et. al. (2009), Cummins (2010) e Brown (2012), entre outros, tm
qualificado este fenmeno como governana hbrida, a qual se caracteriza
pela coexistncia de instituies e dispositivos de poder originrios, de um
lado, de estruturas estatais coloniais e nacionais (seculares e religiosas) e,
de outro, de dinmicas e instituies indgenas de organizao social. Tais
instituies cooperam e ao mesmo tempo disputam entre si espao poltico.
Parte significativa dos esforos de governo e controle da vida
individual e coletiva pelas populaes leste-timorenses tem sido realizada,
desde h muito, por meio de rituais (estilos) e das trocas de ddivas que
os constituem. Em tais eventos, a idia de reciprocidade ideologica e
pragmaticamente estrutural (Forman 1980). Por meio de tais eventos e
atravs de mediaes apropriadas e altamente reguladas, as coletividades
se comunicam com entidades espirituais, ofertando-lhes sacrifcios e outras
formas de expresso de reconhecimento e respeito e negociam entre si
direitos e deveres sobre pessoas, territrios e coisas. Vrios dos diferentes
atos rituais realizados pelas populaes leste-timorenses visam, no passado
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caioNotaEtnocentrismo
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e no presente, compensar e realimentar suas diversas entidades espirituais
(ancestrais, espritos da terra, das guas e do cu, entre outros) e as
relaes com elas mantidas, por figurarem como fonte de vida para o
mundo dos vivos. Muitos dos fenmenos mais importantes que compem a
vida dos vivos so pensados como ddivas ofertadas por entidades que
habitam outros planos de existncia, as quais preciso retribuir
devidamente a fim de garantir o equilbrio e reproduo da vida. Em tais
contextos, a capacidade de ofertar ddivas fonte fundamental para
poduo e reproduo do prestgio das casas e dos indivduos que as
compem (cf. Forman 1980, Traube 1989, Hicks 1984, 2004, entre outros).
Diante de tais fatos reconhecidos, inclusive, muito antes da
consolidao de saberes antropolgicos contemporneos sobre as
populaes leste-timorenses, tal como atestam os saberes missionrios e
administrativos produzidos durante a administrao colonial portuguesa o
processo civilizacional de inspirao ocidental e crist empreendido por
diferentes atores em Timor-Leste tem tido como objetivo subtrair a agncia
atribuda aos rituais, s tecnologias e entidades espirituais que os povoam
para conformao e reproduo do mundo.3
Neste texto, duas prticas de governo distintas constituem meu
objeto de ateno, ambas voltadas, de maneira mais ou menos direta,
misso civilizacional acima referida. Primeiramente, exploro alguns dos
3 Minha principal fonte de inspirao para tal anlise so os trabalhos de Kaene (2007) que,inspirado por Latour, demonstra que a converso para o cristianismo protestante entrepopulaes de Sumba implicou na subtrao da agncia previamente atribuda a palavras,coisas e certos rituais. Kaene (2007) reconhece tal processo de monopolizao da agnciacomo um fenmeno de purificao, que se transformou em uma narrativa moral, pela qual sediferencia civilizados de no-civilizados. Assim, os no-civilizados seriam aqueles queatribuiriam indevidamente agncia a fenmenos desprovidos dela, como, desde o ponto devista de alguns, os rituais e as tcnicas que os caracterizam. Para uma discusso sobrealgumas das iniciativas e controvrsias que marcaram a atuao de missionrios catlicos noTimor Portugus entre 1945 e 1975 ver Fernandes (2014).
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modos pelos quais o Estado leste-timorense tem se apropriado, desde 2009,
da prtica denominada tara bandu. Como em Silva (2014), argumento que
tal fato tem se dado de modo a gerar efeitos de pacificao, integrao,
reconfigurao e monopolizao do poder.4 Contudo, neste artigo, dou
alguns passos alm. Tendo como base a anlise do tara bandu instaurado
em Ermera em 2012, bem como em outras prticas de governana
engendradas pelo Estado e pela Igreja Catlica, sugiro que tais fatos sejam
compreendidos como fenmenos que trabalham para produo de
mercadorias e para gerar efeitos de purificao das instituies de governo.
Por meio deles, certos agentes de governana tentam transformar recursos
que normalmente circulavam como ddiva em recursos que circulem como
mercadorias e, ao mesmo tempo, engendrar um projeto de subjetivao
especfico no qual palavras, objetos e rituais perdem lugar de agncia
sobre o mundo e sobre a construo da pessoa, pondo, em seu lugar, o ser
humano como nica fonte de agncia5.
Em um segundo momento, meu objeto de ateno um spot da
campanha educativa promovida pelo Estado leste-timorense e veiculada4 Desde tal chave analtica, a configurao hbrida das prticas de governana em Timor-Leste e alhures, nas quais as prticas rituais e as instituies e cosmologias que as informamtm papel importante, parece ser transitria (enquanto projeto e desde a perspectiva dogoverno central), configurando-se como uma etapa ou ttica pela qual o Estado moderno eoutros agentes de governana como as igrejas negociam e ampliam, aos poucos, o seupoder e a configurao moral que os sustenta. Tal fato est longe de ser indito, tendo umalonga histria social na trajetria de expanso dos estados coloniais.
5 Bruno Latour (1994) entende por purificao os processos de separao e imposio de fronteiras ontolgicas e limites de poder exclusivos entre o que so tomados como experincias, seres e domnios diversos que compem a vida social. Por meio desses processos de separao se inscreve tais agncias a certos lugares tpicos-ideais para sua existncia ou se projetam sobre elas configuraes tidas como legtimas. Destacam-se, nestecontexto, que os processos de purificao so instrumentos poltico pelos quais se produzem mltiplos efeitos de poder. Oposies como natureza e cultura, tradicional e moderno, poltica e conhecimento, justia e poder, humanos e no-humanos, civilizados e no-civilizados so exemplares deste processo de separao.
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caioNotapurificao seria igual a viabilizao?
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pela Rdio e Televiso de Timor-Leste (RTTL) a fim de fomentar pequenos
negcios no pas. Mais uma vez, destaco na anlise o quanto a problemtica
do dispndio de recursos em contextos rituais vertida em objeto de
governo. Nesse caso, a campanha visa pluralizar as esferas e regimes de
troca pelos quais o gado pode ou deve ser transacionado pela populao. A
campanha indica que sua circulao na esfera de troca ritual (onde figura
como ddiva) no contraditria nem excludente em relao sua
circulao no regime de mercado, e que a venda de parte do rebanho pode
melhorar a qualidade de vida da populao. Desde o ponto de vista
analtico, estamos diante de uma iniciativa que promove a transformao
do gado de ddiva em mercadoria. Assim, a narrativa apresentada na
campanha revela-se como outro exemplar de pedagogia econmica6.
6Entendo os regimes de troca como categorias analticas cunhadas para dar sentido sdiversas regras, expectativas e efeitos por meio dos quais pessoas e coletivos sociaistransacionam bens, direitos sobre pessoas ou sinais de reconhecimento. Considero tais trocasa base da socialidade. Os esforos epistemolgicos empreendidos para compreenso de taisfenmenos tm permitido a construo de trs tipos ideais de regimes de troca: o escambo,o mercado (commodity) e a ddiva. Cada um desses regimes frequentemente associado aesferas de troca especficas. Muito resumidamente, o regime de ddiva pode ser descritocomo aquele em que, por meio do intercmbio bens, palavras e gestos, as pessoas negociamrelaes que esto fora do ato da transao (Strathern, 1992). Nesse regime, pessoas ecoisas so tratadas como pessoas, sendo os objetos de valor suportes para produzir ereproduzir relaes de longo prazo. As partes envolvidas nas trocas so mutuamentedependentes e figuram uma diante das outras de forma assimtrica (Gregory 1982). O dom frequentemente visto como obrigatrio. No regime de escambo, por sua vez, os benstrocados so mais importantes que as relaes entre as pessoas envolvidas na transao dosmesmos. Tal regime marcado pela tentativa das pessoas acessarem outros objetos deconsumo distintos daqueles que elas detm ou produzem. Nesse regime as partes envolvidasna troca esto mais frequentemente em uma posio simtrica entre si e o valor de benstrocados definido contextualmente. A troca no obrigatria e as relaes entre as pessoasso instveis e pouco frequentes. No entanto, relaes de confiana e crdito entre as partesque trocam so importantes no regime de escambo. Finalmente, grande independncia entreos atores envolvidos nas operaes de troca e a presena de moeda como um meio dequantificar o valor so as principais caractersticas do regime de mercado (commodity). Emcomparao com o regime de ddiva, em operaes informadas pelo regime de mercado asrelaes entre as pessoas so experimentadas como relaes entre coisas. Vale a pena notarque estes regimes coexistem na dinmica social e so mobilizados de acordo com finsespecficos, mesmo na ausncia de todas as variveis associadas a cada um deles (Thomas1991). Desenvolvimentos contemporneos na teoria antropolgica tm demonstrado quealgumas operaes podem comear orientadas pelo regime de mercado e ser transformadasem trocas de ddivas, como Valeri (1994) demonstra ser caracterstico das trocasmatrimoniais em Seram, por exemplo. Alm disso, deve-se observar que um nico objetopode circular atravs de diferentes regimes de troca ao longo de sua vida social (Appadurai1986).
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Por fim, nas consideraes finais, sistematizo as caractersticas e
implicaes comuns aos eventos etnogrficos discutidos ao longo do artigo
e destaco certos efeitos de purificao a eles associados.
Usos contemporneos do tara bandu7
De um modo sinttico, o tara bandu (dependurar proibio) tem sido
descrito como um dispositivo local de governana que opera pela imposio
ritual de regras, proibies e punies. Nos rituais que o instituem tomam
parte autoridades locais e nacionais, bem como entidades espirituais s
quais se credita, em seu conjunto, agncia nos processos de reproduo
social. Em tais ocasies, so realizados sacrifcios e falas rituais. Tais
procedimentos tm como objetivo instaurar canais de comunicao entre as
autoridades (vivas e mortas) presentes e validar publicamente as proibies
prescritas, as quais so lidas em alta voz para a comunidade (Yoder 2007, p.
47) e inscritas em smbolos, que so a seguir fixados nas reas de cobertura
do tara bandu. Alm de instaurar proibies relativas a relaes entre seres
humanos e meio ambiente, seres humanos e instituies pblicas e entre
seres humanos e seres humanos, o tara bandu tambm pode instituir
punies queles que desobedecerem s ordens prescritas. A despeito de
sua origem colonial, como bem demonstra Roque (2012), o tara bandu tem
sido considerado como eminentemente local pelos vrios atores envolvidos
em sua configurao e manejo contemporneos.
O reconhecimento e estmulo s prticas de tara bandu no Timor-Leste
ps-ocupao indonsia derivavam, em um primeiro momento, de
preocupaes relacionadas preservao e manejo do meio ambiente
7 Parte das descries realizadas nesta seo foi publicada em Silva (2014)
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(Yoder 2007; De Carvalho e Correia, 2011). Entretanto, o incentivo
retomada de tal dispositivo ganhou novo flego a partir de 2006.
Considerando-o uma tecnologia local de governana eficaz para
recomposio da ordem para alm da relao com o meio ambiente, o
Estado leste-timorense e algumas agncias de cooperao internacional
passaram, a partir dos ltimos meses de 2006, a disponibilizar recursos para
realizao de tara bandu em Dli e em outros distritos do pas, criando para
tanto um novo rgo de governo no Ministrio da Solidariedade Social, a
Secretaria de Coeso Social (UNDP 2013, p. 34-35, 62). O tara bandu passou
ento a ser utilizado como um instrumento de pacificao entre grupos em
conflito (jovens envolvidos com gangues e outras associaes polticas) e,
posteriormente, como tecnologia de construo e manuteno da ordem em
um contexto de crise institucional das foras de segurana do Estado.
Assim, a fim de superar a crise de governana produzida em 2006, o Estado
passou a estimular a elaborao de leis de alcance local (com jurisdio
no domnio dos sukus ou de um conjunto de sukus), construdas e
consensualizadas pelos representantes comunitrios e outras autoridades
locais, a partir de alguma consulta popular e junto aos rgos do Estado.8
Estamos diante de usos de um elemento dos complexos locais de
governana, financiados pelo Estado, pelos quais o Estado introduz novas
moralidades, realiza sua ao de governana e assim, potencialmente,
aumenta seu grau de legitimidade e capilaridade no tecido social9. No
entanto, o tara bandu realizado em Ermera em 2012 era ainda mais
ambicioso. Vejamos.
8 Suco (em ttum, Suku) a unidade administrativa constituda por um conjunto de aldeias.O suco a unidade administrativa abaixo do subdistrito.
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Tara Bandu em Ermera
Em 2012, com o objetivo de promover o desenvolvimento econmico, a
segurana alimentar e a proteo ao meio ambiente (Akta, 2012),
autoridades locais ligadas a diferentes instituies no distrito de Ermera
Igreja catlica, organizaes no-governamentais e Estado trabalharam
juntas a fim de elaborar princpios gerais para um tara bandu de alcance
distrital, o qual, esperava-se, seria regulamentado de forma mais detalhada
em cada um dos subdistritos ou sukus que o compem. Segundo Pascoela
Aida da Costa Exposto, diretora da organizao Feto Kiik Servisu Hamutuk
(FKSH, Mulheres Pobres Trabalhando Juntas), tal iniciativa se consolidou em
razo da constatao dos altos ndices de pobreza entre a populao de
Ermera, a despeito do grande potencial de produo de riqueza da regio
em razo das plantaes de caf. De acordo com ela, isso seria decorrncia
dos grandes investimentos realizados pela populao em prticas rituais, os
quais necessitavam de algum controle externo a fim de propiciar um tipo de
acumulao material que permitisse s pessoas melhorar suas condies de
vida, de modo a ter segurana alimentar, prover educao escolar aos seus
filhos, cuidar de sua sade etc. Nesse sentido, alm de temas recorrentes
nas experincias de tara bandu citadas acima, a particularidade do caso do
9 Denomino complexos locais de governana aos conjuntos de dispositivos de regulao, controle, exerccio de agncia e reproduo social de grupos e indivduos sobre o mundo, de composio vria, que se configuram muitas vezes como fatos sociais totais e se ancoram em bases de legitimidade mltiplas, as quais podem se manifestar de modo combinado ou isolado. Tal complexo composto por diferentes agentes e agncias: 1. instituies que estruturam os modos locais de organizao social, das quais destaca-se a casa; 2. saberes rituais e suas tcnicas (sacrifcios, manejo das palavras para, por exemplo, imposio de proibies para fins de governo, rituais de ciclo de vida ou resoluo de conflitos); 3. posiesde autoridade para mediao com instituies do Estado e da Igreja (chefes de aldeia, professor catequista, por exemplo) e de mediao com foras ou entidades espirituais (sacerdotes rituais, bruxas, advinhadores), entre outros. Desde o ponto de vista de Dli, a referncia a elementos ou totalidade dos complexos locais de governana se d pela mobilizao dos termos lisan, adat, usos e costumes ou ainda kultura. Para uma discusso douso parasitrio que o Estado leste-timorense tem feito dos complexos locais de governana para sua edificao ver Silva (2014)
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tara bandu de Ermera reside na tentativa de controle de investimentos
rituais que tem como objetivo a produo ou reproduo de alianas entre
casas doadoras e tomadoras de mulheres e delas para com seus ancestrais.
O discurso de Pascoela no um fato isolado. Desde 1999, pelo menos, a
configurao e agenda ritual das diferentes populaes leste-timorenses
tm sido mobilizadas por diferentes instituies do Estado e da cooperao
internacional, bem como pela Igreja (neste caso, muito antes de 1999),
como explicao para o que percebido como pobreza, dficit de
desenvolvimento do pas, violncia contra a mulher (em razo das trocas
matrimoniais), entre outros problemas. Em tais discursos o que
percebido como dispndio material excessivo para fins rituais relacionados
reproduo de alianas deve ser objeto de prticas de governo.
O tara bandu em Ermera regula, de forma mais abrangente, trs tipos de
relaes distintas: relaes das pessoas com a natureza; relaes das
pessoas com os animais e relaes entre as prprias pessoas. Assim, probe-
se, por exemplo, a colheita de frutas no maduras (Akta, 2012: Parte 1 Ab),
a destruio de bens pblicos (Akta, 2012: Parte I Ae), caa de animais
selvagens em terras secas ou alagadas protegidas pela comunidade (Akta,
2012: Parte II Ac), relaes sexuais com crianas entre os 5 e os 15 anos
(Akta, 2012: Parte III Aa) e trfico humano (Akta, 2012: Parte III Ae).
Chama a ateno, contudo, uma dimenso das proibies voltadas
relao entre pessoas. A proibio de realizao de rituais de desluto (kore
metan) e outras modalidades de istilo (rituais), durante os oito anos que
seguem instaurao do tara bandu (Akta, 2012: Parte III Bd), ou seja, at
2020. O tara bandu probe tambm a imposio de quantidades especficas
de animais para sacrifcio ou doao em rituais fnebres, quando as partes
envolvidas (em geral doadores e tomadores de mulheres de diferentes
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geraes) negociam as ddivas a serem ofertadas para tal fim. Sugere-se
explicitamente que a quantidade de animais a serem sacrificados ou doados
deve depender sempre das capacidades dos descendentes diretos da
famlia do defunto/ da defunta (Akta, 2012: Parte III Be). A ttulo de
ilustrao, vejamos o que texto do tara bandu nos diz diretamente:
III - Das relaes de pessoas com pessoas proibido:(...)i. Fazer rituais de desluto (kore metan)j. Sacrificar animais em nmero superior s capacidades da famlia
do defunto;k. Recorrer violncia fsica para resolver problemas;l. Praticar trfico humano (vender pessoas para outras pessoas).
(Akta, 2012. Traduo livre do original em ttum)
Podemos observar que o tara bandu de Ermera visa controlar as trocas de
ddivas realizadas entre diferentes coletivos sociais. Mais precisamente, por
meio da proibio de rituais de desluto ou da imposio de demandas de
ddivas entre as partes em relao em um determinado evento, procura-se
incentivar o acmulo de capital pela introduo de animais que seriam
sacrificados em rituais em outras modalidades de troca provavelmente por
meio da insero dos mesmos em transaes orientadas pelo regime de
mercado, embora isso no esteja explcito de modo que as pessoas
tenham acesso a recursos monetizados que permitam melhoria em seu
engajamento junto a instituies icnicas do projeto modernizador, como
escolas e hospitais, por meio da qual a qualidade de vida das mesmas
mensurada do ponto de vista do Estado e da Igreja Catlica.
A instaurao do tara bandu de Ermera se deu por meio de uma grande
cerimnia, na qual se fizeram presentes o bispo de Dli, Dom Alberto
Ricardo, bem como o ento presidente da Repblica, Jos Ramos Horta.
Desde ento, tal evento parece ser olhado com ateno por autoridades de
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Dli e da regio de Ermera, sendo objeto de avaliaes e comentrios em
diferentes partes do pas. Por ocasio do aniversrio de seis meses do tara
bandu, foi realizada em Ermera uma reunio de avaliao a respeito de seus
impactos. A minuta da reunio expressa bem os objetivos buscados pelas
diferentes agncias (Estado, Igreja, organizaes no governamentais)
envolvidas em sua concepo, indicando os modos pelos quais ele serve de
suporte para a transformao em commodity (comodificao) de certos
recursos e transposio de projetos modernos de organizao social e
subjetivao. Vejamos.
Avaliando o tara bandu em Ermera
Grosso modo, um tom laudatrio faz-se presente em todas as avaliaes
relatadas na minuta do encontro para avaliao do tara bandu, a qual serviu
de base para legitimar o desenvolvimento de outras tticas regulatrias
sobre trocas de ddivas correntes entre as populaes locais, das quais se
destacam as trocas matrimoniais10. A minuta da reunio que tomo para
discusso nesta seo registra as avaliaes sobre os efeitos do tara bandu
em Ermera por instituies de governo envolvidas em sua concepo e
execuo. Assim, as opinies da Igreja Catlica, dos representantes do
governo local (chefes de suku), dos representantes do governo central
10 De um ponto de vista antropolgico, as trocas matrimoniais realizadas como bridewealth(por oposio ao dote) consistem na troca de ddivas entre tomadores e doadores demulheres, a fim de selar relaes de aliana e direitos sobre pessoas. Tais alianas implicamuma srie de obrigaes recprocas. O nmero e o tipo de bens que compem o bridewealthdiferem em razo das posies sociais dos sujeitos, individuais e coletivos, envolvidos natroca. Nos contextos leste-timorenses urbanos contemporneos, barlake a categoriaacionada para falar das prestaes matrimoniais. No entanto, no h consenso sobre o queele consiste e sobre seu efeito sobre a sociabilidade das pessoas, pelo que barlake umsignificante flutuante. Na verdade, mediante a explorao dos diferentes significadosassociados ao barlake certos indivduos negociam seu lugar no mundo (cf. Silva e Simio2013).
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(administrador de subdistrito e distrito) e de organizaes no-
governamentais, entre outros, so registradas na ata.
Do ponto de vista das autoridades eclesiais, os indicadores destacados
como efeitos positivos do tara bandu em Ermera eram: 1. aumento do
tempo de trabalho aplicado secagem de caf pela populao; 2. reduo
dos maus gastos das pessoas com os rituais no perodo da colheita do caf,
que levariam chamada corrupo cultural; 3. aumento da disciplina de e
para o trabalho por parte da populao. Os chamados maus gastos se
referiam, neste contexto, a investimentos rituais considerados excessivos,
manifestos no sacrifcio ou oferta de um grande nmero de animais ou na
doao de muito dinheiro (via o regime da ddiva) para efeitos de
construo ou reposio de alianas entre doadores e tomadores de
mulheres, para alm de outros fins. O aumento do nmero de animais
sacrificados ou aumento da circulao de dinheiro para dinmicas de
reproduo social locais qualifica o que se denomina como corrupo
cultural (Revisaum, 2012:1-2)11.
A ata da reunio revela a positivao do uso do tempo e da fora de
trabalho das pessoas na produo de caf, por oposio ao que era mais
comum, ou seja, o dispndio de trabalho e recursos para fins rituais
relacionados a trocas de ddivas. Importante notar, neste contexto, que o
caf um dos principais produtos de exportao de Timor, figurando como
um de seus principais commodities, no sentido estrito do termo. Assim, o
que est em jogo nesta celebrao o investimento da energia das pessoas
na produo de mercadorias por oposio produo ou troca de ddivas. A
positivao do redirecionamento do trabalho e/ou energia das pessoas na
11 Quando fazia trabalho de campo em Dili no inicio de 2013 ouvi, inclusive, vrios rumoresde que no interior do pas os padres no estariam administrando sacramentos queles queinvestiam recursos considerados excessivos em prticas rituais.
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produo de mercadorias faz-se presente tambm na sugesto de que um
dos efeitos do tara bandu teria sido o aumento da disciplina de e para o
trabalho das pessoas. Neste contexto, o trabalho parece estar associado
exclusivamente ao que se produz para efeitos de troca orientada pelo
regime de mercado. O trabalho dispendido para produo e circulao de
ddivas no visto como trabalho produtivo; ao contrrio, traz em si o risco
de corrupo cultural.
Alm de citar, mais uma vez, os impactos do tara bandu para o aumento
da produo de caf na regio, o administrador do distrito de Ermera
sugeriu que o ritual estaria contribuindo para consolidar as fronteiras
distritais. Como indicado anteriormente, a execuo do tara bandu implica a
exibio pblica (o dependurar) de smbolos que evocam as proibies por
ele impostas nos limites territoriais em que elas operam. Assim, a
distribuio dos smbolos do tara bandu de Ermera nos limites territoriais do
distrito estaria contribuindo para o aumento da conscincia dos limites
territoriais do prprio distrito. No obstante, o administrador tambm
destacou o fato de algumas pessoas avaliarem tal tara bandu como um
dispositivo ditatorial, ilegtimo em tempos de democracia (ibidem: 2). Tal
avaliao foi tambm relatada pelo representante da organizao no
governamental Hametim democracia no igualdade (Consolidar a democracia
e a igualdade), presente na reunio. Na percepo do administrador do
subdistrito de Hatualia, a dimenso mais desafiadora na implantao do
tara bandu seria aquela que diz respeito s relaes entre as pessoas
(ibidem: 3). Nesse sentido, ele demandou s autoridades e aos
representantes comunitrios ali presentes novas regulamentaes, voltadas
explicitamente s prestaes matrimoniais e s primeiras fases dos rituais
fnebres. Por fim, outro representante de organizaes no governamentais
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destacou os efeitos de pacificao do tara bandu. Segundo ele, teria havido
uma diminuio do nmero de casos de conflito encaminhados ao chefe de
suku para resoluo. Sugeriu, ainda, que a diminuio do nmero de
conflitos estaria contribuindo indiretamente para melhoria das condies
econmicas da populao, uma vez que, no sendo mais comum recorrer a
cerimnias para resoluo de conflitos, as pessoas no precisavam dispor
de animais nem de outras modalidades de recursos para fins de pagamento
de multas ou reconciliao (ibidem: 3-4).
Com base em tais avaliaes, pode-se concluir que o tara bandu em
Ermera visa e, em alguma medida, implica a domesticao e o controle
das condutas individuais e coletivas de modo a produzir corpos e outras
modalidades de recursos voltados produo de mercadorias pelo trabalho.
Tal fato parece ser cultivado e estimulado pelo controle da produo e
circulao de ddivas realizadas em ocasies rituais, sobretudo pelo
controle dos recursos nelas investidos. Paralelamente, celebram-se os
efeitos de pacificao produzidos pelo tara bandu, que facilitariam a
governana local. Tais efeitos de pacificao trabalham tambm a favor da
acumulao de outros recursos que permitiriam s pessoas a sada de sua
condio de vulnerabilidade e participao em outras instituies
civilizatrias, como a escola, por exemplo.
Parece, assim, que estamos diante de prticas ambguas. Por um
lado, as trocas de ddivas ritualmente reguladas para reproduo social so
abordadas como entraves ao engajamento das pessoas no processo de
desenvolvimento. Ao mesmo tempo, contudo, o Estado e outros agentes de
governana mobilizam o tara bandu que instaurado mediante sacrifcios
e trocas de ddivas rituais para promover o desenvolvimento, o que quer
que ele venha a significar.
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Dadas as avaliaes e demandas apresentadas na reunio de avaliao
de seis meses do tara bandu de Ermera, o coletivo de governo ali presente
decidiu pela insero de duas novas proibies em seu interior: proibiu-se a
realizao de prestaes matrimoniais que, em sua totalidade, fossem
superiores a US$2.500. Prev-se que o desrespeito desse limite implica
pagamento de multa no dobro do valor dispendido e proibio de realizao
de desluto e outras modalidades rituais por 16 anos. Imps-se tambm o
limite de sacrifcios de animais para cerimnias fnebres que vo do velrio
at o que, em ttum, chamado de ai-funan midar12. Para tanto, pode-se
sacrificar, no mximo, dois bfalos, dois porcos e dois cabritos. O
desrespeito a tais limites implica pagamento de multas, de modo que se
forem sacrificados trs bfalos a multa consistir em dois bfalos,
acrescidos de US$ 1.000. Se forem sacrificados quatro bfalos, quatro
bfalos tambm devem ser pagos como multa, acrescidos de mais US$
2.000 e outros animais. Em ambos os casos, os infratores ficam proibidos de
praticar rituais por 16 anos (Revisaum, 2012: 4-5).
Estamos, assim, diante de prticas de governo que procuram controlar e
diminuir, tanto quanto possvel, os investimentos individuais e coletivos na
produo e circulao de ddivas a fim de redirecionar os recursos que
seriam nelas investidos para circularem em outras esferas e regimes de
troca, como o mercado, e para produzir bens que possam nele circular,
12Em diferentes contextos leste-timorenses os rituais fnebres vo muito alm do velrio edo enterro. So realizados mediante rituais que marcam diferentes momentos da passagemdo defunto/defunta para outros domnios de existncia, pelos quais os mesmos voadquirindo diferentes status diante dos vivos. H grande variao nas intensidades,configuraes e temporalidades relacionadas execuo de tais rituais entre as populaesleste-timorenses. Entre algumas delas, denomina-se aifunan moruk (flor amarga) o primeiroritual realizado depois do enterro do corpo e de aifunan midar (flor doce) o ritual seguinte.Ambos antecedem o desluto (kore metan).
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como caf e alimentos. Sendo as trocas matrimoniais a ddiva inaugural e
estrutural das dinmicas de reproduo social entre vrias populaes leste-
timorenses, por meio das quais se impe obrigaes e deveres entre
doadores e tomadores de mulheres e pelas quais tais partes cultivam e
reproduzem seu prestgio, no acaso que elas representem um dos
principais focos de resistncia e desafio administrativo aos complexos de
governana responsveis pela transposio da modernidade, em Timor-
Leste e alhures.
Por ocasio do aniversrio de um ano desse tara bandu, foi publicada
uma matria especial no stio eletrnico semioficial da presidncia da
Repblica em Timor-Leste, no qual se registraram as avaliaes de
autoridades envolvidas em sua execuo. Entre outras coisas, o
administrador de Ermera destacou os grandes efeitos positivos do ritual
para diminuio da violncia e de conflitos entre a populao bem como do
percentual de pessoal em situao de grande vulnerabilidade (com fome ou
sem casa). Isso porque o tara bandu teria como consequncia aumento do
tempo investido pelas pessoas na produo de alimentos e de caf. Ele
ressaltou tambm o aumento do nmero de crianas nas escolas e
melhorias nas condies de sade da populao, de modo geral13.
Super Trainer e a gesto de rebanhos no Timor-Leste rural
A constatao de que a gesto de recursos por parte de populaes
rurais leste-timorenses obedece a uma tica particular, voltada, entre outras
coisas, gesto das relaes com entidades espirituais, observncia de
obrigaes rituais e a negociao de direitos sobre pessoas um fato que
13 Matria consultada a 20.03.2013, em http://aitaraklaranlive.wordpress.com//?s=tara+bandu&search=Go
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tem sido tomado como desafio administrativo por parte do Estado e demais
agncias de governo responsveis pela transposio da modernidade a
Timor-Leste. A priorizao local do consumo de carne bovina e suna na
forma de sacrifcios em eventos relacionados a rituais de ciclo de vida e
reproduo de alianas muitas vezes percebida como uma irracionalidade.
Isso porque os animais so vistos por alguns agentes e instituies de
governo como importantes fontes de protenas, fundamentais para o
combate subnutrio percebida entre as populaes locais.
Ao lado disso, a resistncia das populaes locais em vender parte de
seu rebanho a fim de adquirir dinheiro bem como de produzir excedentes
para comodificao e circulao em mercados mais amplos tambm so
vistos como problemas a serem governados. Para tanto, diferentes
iniciativas tm sido desenhadas a fim de difundir formas de produo e
circulao de recursos mais afeitas lgica do mercado, como uma esfera
de troca particular. Dentre elas, destacam-se as prticas do Instituto de
Apoio ao Desenvolvimento Empresarial (IADE), instituio tutelada pela
Presidncia do Conselho de Ministros e pelo Secretariado de Estado de Apoio
e Promoo do Sector Privado. O IADE tem como funo disponibilizar
formao e treinamento, promoo e apoio empresarial para pequenas
iniciativas14.
Dentre as atividades desenvolvidas por este rgo, consta a
campanha educativa veiculada pela RTTL, intitulada Super Trainer. Ela
constituda por diferentes spots de propaganda, que veiculam estratgias
para melhor gesto de pequenos negcios e empreendimentos em Timor.15
14 Para demais informaes sobre o IADE, ver http://www.iade.gov.tl/pt/15 Para conhecer todos os episdios da campanha educativa Super Trainer, verhttp://www.iade.gov.tl/pt/legals/super-trainer/
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A campanha foi financiada pela Organizao Internacional do Trabalho (OIT)
e pela Irish Aid, Agncia de Cooperao Internacional Irlandesa. A produo
da campanha foi realizada pela empresa Pixelasia Productions Dili.
Para efeitos da anlise aqui proposta, foco minha ateno na pea
intitulada Super Trainer 6 Mautimu. Trata-se do sexto episdio da
campanha. Seu roteiro versa sobre o encontro entre um proprietrio de
restaurante em Dili, Mr. Riku, que quer comprar uma cabea de gado, e um
habitante da zona rural do pas, Mautimu, que possui um pequeno rebanho.
O pequeno drama gira em torno da demanda de venda do gado por parte
de Mr. Riku e da recusa em proceder a tal por parte de Mautimu. A voz do
narrador da histria, ao fundo, sugere que Mautimu no quer vender parte
de seu rebanho porque deseja utiliz-lo exclusivamente para fins de
cerimonias tradicionais, ou seja, enquanto ddiva.
Nesse contexto, aparece a figura do super trainer que, como um heri
civilizador, ensinar a Mautimu que ele pode vender parte de seu rebanho e
ainda assim manter outra parte para fins de trocas rituais. Assim
procedendo, Mautimu poderia, a um s tempo, manter seus compromissos
com suas obrigaes rituais/de ddiva e ainda acessar dinheiro para suprir
outras necessidades. Vejamos o dilogo que estrutura o roteiro:
Narrador: Super Trainer helps Mautimu to handle a cattle business.Mautimu has many cows, but he lives in poverty. Mr. Riku, arestaurant owner from Dili comes to buy a cow for a barbecue and abig party. Mautimu refuses to sell because he may need these cowsfor traditional ceremonies.Mr. Riku: If you dont sell I will give my money for someone else. Mautimu: I dont sell. Mr. Riku: Thats it, then. Narrador: Mautimu needs help. Super Trainer explains. If Mautimu hasmany cows, but only keeps this for traditional ceremonies his life willstay the same and he will not earn money. But if Mautimu sells some of these cows and keep some for breadinghe can make money to improve his leaving condition. Still, he willhave cows for traditional ceremonies.
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Mautimu understands. Mautimu is taking good care of his cows. Hefeeds them with good nutritious food and calls the veterinary tovaccinate the cows. Mautimu now has income from his cattlebusiness. And then he is able to live a better life. Mautimu is happy and super trainer is happy.
Ao lado do texto pronunciado pelo narrador e pelos personagens, alguns
elementos visuais do roteiro so importantes na construo de sua
mensagem. Em primeiro lugar, salta aos olhos o prprio nome do
proprietrio do restaurante, Mr. Riku, que em ttum significa simplesmente
rico. Mr. Riku o prspero habitante da cidade que sabe como manejar e
fazer dinheiro, por oposio a Mautimu, que retratado como o pobre do
interior do pas, apegado sua kultura. A oposio entre Mr. Riku e Mautimu
parece uma oposio entre Dli e as montanhas (Foho) em Timor, na qual o
que vem de Dli quase sempre figura como ente civilizacional diante do que
est localizado nas montanhas. Nesse ltimo caso, as montanhas figuram
como significantes do que local, do que origem e kultura, entre outras
coisas16. O figurino com o qual Mautimu aparece nas primeiras cenas
tambm expressivo dessa oposio moral entre foho e Dli. Nas primeiras
cenas da pea educativa, Mautimu retratado como o tpico habitante das
montanhas, com roupas gastas e encardidas. Aps a venda do gado a Mr.
Riku o figurino de Mautimu alterado. Ele aparece vestindo uma camisa
azul nova, bem passada, e muito contente contando o seu dinheiro. A
relao construda com Mr. Riku, por meio da qual Mautimu acessa dinheiro,
retratada como algo que traz melhorias imediatas em sua condio de
vida, manifesta na alterao imediata de seu figurino.
Como podemos observar, o principal objetivo desta pea consistia em
estimular as pessoas a vender o seu gado. Este estmulo construdo por
oposio prtica comum de o rebanho ser mantido tendo como fim
16 Para uma discusso da oposio entre Foho e Dli nos imaginrios colonial e ps-colonial leste timorenses ver Silva, 2012.
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exclusivo as trocas rituais pelas quais se d a reproduo social local. Assim,
a propaganda visa pluralizar as esferas de troca pelas quais o gado circula,
sugerindo sua insero na esfera de mercado. Destaca-se que a circulao
do gado no regime e na esfera de mercado no representa uma ameaa ao
seu uso no regime de ddiva e na esfera de trocas e sacrifcios rituais. O
manejo correto do gado, realizado por meio de cuidados com sua
alimentao e sade permitiria ainda um padro de reproduo que
disponibilizaria rebanho seja para venda, seja para transaes no regime de
ddiva. Parece-me, assim, que estamos diante de uma prtica pedaggica
que visa transformar recursos normalmente manejados como ddiva em
commodity (Gregory 1982).
Na imagem acima, extrada do vdeo educativo, o super trainer
explica ao expectador que a manuteno do rebanho (karau barak) para fins
exclusivamente rituais (adat deit), impediria a aquisio de dinheiro. Por
oposio (opo abaixo) o manejo de parte do rebanho (karau balun ba
adat) para fins cerimoniais e outra parte do rebanho para venda (Karau
balun atu fan), permitiria a aquisio de dinheiro. Ademais, indica-se que o
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acesso a dinheiro permitiria a Mautimu mudar, para melhor, sua qualidade
de vida. A venda de gado apresentada como estratgia para que a vida
no permanea como est. Atribui-se a Mautimu um desejo naturalizado por
mudana.
O desejo de mudana atribudo a Mautimu pode ser interpretado, ao
menos parcialmente, como uma projeo dos prprios objetivos de governo
do IADE. Em abril de 2015 tive a oportunidade de entrevistar o tcnico do
IADE que interpreta o Super Trainer na campanha acima analisada. Aurito K.
Rofrigues Bahan, alm de interpretar o Super Trainer tambm o chefe do
Departamento de Pesquisa de Mercado e Apoio Empresarial do IADE.
Segundo ele, a campanha educativa que tem como protagonista o Super
Trainer foi desenhada como meio de promover mudanas de mentalidade
entre as populaes leste-timorenses de modo a fomentar pequenos e
mdios negcios. Na sua viso que, no contexto da entrevista,
apresentada como a prpria viso do IADE, dficits de habilidades e,
sobretudo, problemas de mentalidade, seriam os principais entraves ao
desenvolvimento de iniciativas privadas de sucesso em Timor-Leste. Diante
disso, por meio de propagandas e treinamentos, o IADE procura fornecer
ferramentas para aumentar as capacidades das pessoas e, principalmente,
para alterar suas mentalidades.
Segundo Aurito, trs caractersticas da chamada mentalidade leste-
timorense seriam empecilhos ao desenvolvimento de negcios de sucesso
por parte da populao, a saber: 1. a busca pelos prazeres imediatos que o
acesso ao dinheiro pode trazer, por meio da aplicao de recursos em
festas, jogos, e gastos tidos como desnecessrios e no-planejados (em
seus termos, as pessoas gostam de gozar rapidamente o dinheiro que
ganham e o fazem de forma arbitrria); 2. o investimento excessivo de
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recursos na kultura, em sacrifcios e trocas cerimoniais relacionadas a rituais
de aliana e ciclos de vida; 3. ausncia de iniciativa e certa preguia de
trabalhar, manifestas em uma postura passiva diante do Estado, visto como
grande provedor para toda e qualquer necessidade.
Tais caractersticas atribudas mentalidade leste-timorense so, nos
termos de Aurito, produto do passado colonial, tanto portugus como
indonsio. Do tempo portugus ele destaca a pouca valorizao dada
educao, que se faria presente tambm entre as prprias populaes
nativas. O envio de seus filhos escola no era uma prioridade, de modo
que eles no puderam adquirir habilidades que os capacitassem a
desenvolver negcios de sucesso. Com relao ao perodo da ocupao
indonsia, Aurito sugere que os investimentos polticos em atividades de
resistncia por parte da populao dificultaram a aquisio de
conhecimentos tcnicos que a habilitasse a ser empreendedora. Diante de
tais legados e conquistada a independncia, seria preciso trabalhar para
cuidar da casa desde dentro, atravs de iniciativas que estimulem
mudanas de mentalidade.
Em face de tais fatos e desde a antropologia, os eventos discutidos
acima podem ser interpretados tambm de outro ponto de vista. A
campanha Super Trainer parece expressar uma pedagogia econmica e
civilizacional (no sentido de domesticar corpos e mentes em um sentido e
para fins particulares) que prope a transformao de certos bens tomados
como ddiva em commodity. No caso de episdio Mautimu, o que parece
estar em jogo uma narrativa que estimula a circulao do gado por
esferas e regimes de troca que no so orientadas pelo regime de ddiva.
Tal procedimento permitiria s pessoas adquirir recursos monetrios,
aumentando sua participao e engajamento no mercado. Na imagem
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abaixo, tambm extrada do vdeo, o personagem Mautimu, com sua camisa
azul nova e bem passada, regozija-se com o dinheiro recebido de Mr. Riku,
advindo da venda de gado.
Ademais, as caractersticas atribudas mentalidade leste-timorense
importncia demasiada kultura, s festas e a gastos desnecessrios
parecem expressar uma preferncia entre a populao em fazer os recursos
circularem enquanto ddiva. Diante de tal configurao, as prticas
pedaggicas desenhadas para confrontar tal mentalidade so tticas
administrativas que estimulam a transformao de ddivas em mercadorias.
Tais prticas pedaggicas se revelam em diversas iniciativas, das quais o
tara bandu de Ermera e a campanha Super Trainer so somente
manifestaes crticas.
Consideraes Finais
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Discuti, ao longo deste artigo, alguns dos modos pelos quais certas
tticas de governo realizadas em Timor-Leste por diferentes atores e em
distintos contextos visam disciplinar o manejo de recursos materiais a fim
de produzir mercadorias e potencializar o engajamento das pessoas na
esfera e regime de mercado. Assim, certos atores fazem uso do tara bandu,
que instaurado via sacrifcios rituais, para difundir valores e preceitos
modernos de sociabilidade. Mais importante, contudo, a constatao de
que o tara bandu tem sido mobilizado para controlar a circulao de bens e
servios realizada no regime de ddiva. Atores como a Igreja Catlica e
representantes do Estado nacional e poderes locais em Ermera pareciam
considerar prejudiciais os investimentos das pessoas em trocas cerimoniais
para o engajamento das mesmas com formas e instituies modernas de
subjetivao e reproduo social.
Por meio da anlise do tara bandu realizado no distrito de Ermera,
argumento que o complexo de governana envolvido em sua realizao
estava trabalhando para desvincular a constituio de pessoas individuais e
coletivas (como a casa) do quanto elas so capazes de doar para fins de
aliana ou sacrifcio, propondo ser o trabalho, a escolarizao e a reteno
de bens modos privilegiados de produo de status e prestgio. Parece-me,
neste caso, que estamos diante de um processo de purificao manifesto
em uma pedagogia econmica voltada fazer do Estado e das instituies e
ideologias que o caracterizam fontes exclusivas de produo de diferena,
prestgio e de governo. Tais efeitos podem estar sendo produzidos por meio
de: 1. enfraquecimento das trocas e sacrifcios rituais de recursos para a
produo e reproduo do mundo; 2. proposio de que somente pessoas
tem agncia no mundo e de que elas devem se constituir exclusivamente
pela relao que estabelecem com instituies modernas de produo de
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diferena, como escolarizao e a reteno/acumulao de bens (por
oposio a acumulao de relaes e bens de e para a troca). Nesse
sentido, alguns dos usos do tara bandu parecem trabalhar para enfraquecer
o papel das trocas cerimoniais e dos rituais, de modo geral, na construo
da pessoa.
Ao trabalhar para o enfraquecimento dos rituais, certos usos
contemporneos do tara bandu podem estar trabalhando, no limite e em
uma perspectiva de longa durao, para diminuio da agncia dos
ancestrais e da construo material da subjetividade, como fonte de
governo e prestgio entre as populaes leste-timorenses.
No entanto, tal objetivo no pode ser alcanado de uma s vez.
Parece ser preciso fazer negociaes e mediaes. A campanha educativa
elaborada pelo IADE e veiculada pela RTTL parece propor s pessoas um
meio termo entre o investimento das mesmas na produo e gesto de
recursos para prticas de reproduo social locais (denominadas kultura
desde o ponto de vista local) e o engajamento das mesmas no regime de
mercado. Sugere-se que o compromisso das mesmas com as chamadas
cerimoniais tradicionais no est sob ameaa se elas venderem parte de
seus animais para acessar dinheiro. Ao contrrio, indica-se que possvel
gerir os recursos de modo a responder compromissos relacionados esfera
da cultura/tradio e da modernidade. A correta gesto dos recursos
permitiria que a vida das pessoas no permanecesse como est porque,
entre outras coisas, elas teriam acesso ao dinheiro. Tais fatos as tornariam
mais felizes, supe-se.
Em uma perspectiva de longa durao, a domesticao das prticas e
investimentos rituais por parte do Estado e outros agentes de governana,
por meio de pedagogias econmicas como aquelas discutidas acima, pode
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contribuir para a monopolizao das fontes de produo de diferena e
prestgio por parte do Estado e outras instituies modernas. Os impactos
dessas prticas conheceremos no devir histrico.
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