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Miguel Reis e Silva

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ACÇÕES SEM VALOR NOMINAL: ALGUMAS REFLEXÕES

Miguel Reis e Silva

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ACÇÕES SEM VALOR NOMINAL: ALGUMAS REFLEXÕES*

MIGUEL REIS E SILVA**

SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Acções sem valor nominal: 2.1. Conceito. Seus elementos; 2.2.

Acções; 2.3. Valor nominal. O capital social; 2.4. Proposta de definição de acções

sem valor nominal. 3. Enquadramento do Decreto-Lei n.º 49/2010, de 19 de Maio. 4.

Finalidades do Decreto-Lei n.º 49/2010, de 19 de Maio. 5. O regime português das

acções sem valor nominal: 5.1. Acções sem valor nominal como acções-parcela; 5.2.

As acções sem valor nominal como instituto central de Direito societário; 5.3. Prin-

cípios essenciais do regime das acções sem valor nominal; 6. Conclusão

1. Introdução

O recente Decreto-Lei n.º 49/2010, de 19 de Maio, mediante uma alteração ao CSC1,

consagrou, no ordenamento jurídico português, a possibilidade de as sociedades anónimas

e em comandita por acções emitirem acções sem valor nominal, constituindo, por isso, um

inquestionável marco no sistema jurídico – societário e mobiliário – nacional2.

Até à entrada em vigor deste decreto-lei3, a emissão de acções sem valor nominal

encontrava-se legalmente interditada4, não obstante a sua admissibilidade fosse há muito

* O presente estudo corresponde, com algumas alterações, ao trabalho final apresentado para avaliação no XV Curso de Pós-Graduação em Direito dos Valores Mobiliários, promovido pelo Instituto dos Valores Mobiliários, no ano lectivo de 2010-2011. ** Advogado. 1 Pertencem a este diploma as disposições legais citadas sem a indicação da respectiva fonte, excepto se o con-trário resultar manifestamente do contexto. 2 O impacto do Decreto-Lei n.º 49/2010, de 19 de Maio, sobre o Direito societário e mobiliário português é dobrado pela circunstância de este diploma ter efectuado a transposição da Directiva 2007/36/CE, de 11 de Julho, do Parlamento Europeu e do Conselho, relativa ao exercício de certos direitos pelos accionistas de socie-dades cotadas, publicada no JOUE L, n.º 184, de 14 de Julho de 2007, pp. 14-27, comummente denominada por Directiva dos Direitos dos Accionistas. 3 O Decreto-Lei n.º 49/2010, de 19 de Maio – que, surpreendentemente, atenta a sua indiscutível importância, não contém qualquer disposição reguladora da sua aplicação no tempo –, entrou em vigor em 24 de Maio de 2010, nos termos do disposto no art. 2.º, n.os 2 e 4, da Lei n.º 74/98, de 11 de Novembro.

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sustentada entre nós5 e apesar de uma certa tendência legislativa para a superação do con-

ceito de valor nominal (ainda que sem prescindir dele)6.

Tendo embora decorrido mais de um ano sobre o começo da vigência do regime das

acções sem valor nominal e sendo já abundante a literatura sobre o tema7, a irrecusável

relevância do novo quadro legal, bem como dos seus reflexos sobre o regime dos actos

societários praticados por sociedades emitentes de acções sem valor nominal, convida ao

exame mais detido das soluções introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 49/2010, de 19 de Maio.

É este o tema em estudo.

2. Acções sem valor nominal

2.1. Conceito. Seus elementos

A análise das alterações introduzidas ao CSC pelo Decreto-Lei n.º 49/2010, de 19 de

Maio, e a correcta apreciação do seu impacto no sistema jurídico supõem o conhecimento

4 O art. 276.º, n.º 1, na sua redacção anterior à introduzida pelo Decreto-Lei n.º 49/2010, de 19 de Maio, decla-rava peremptoriamente que “[o] capital social e as acções devem ser expressos num valor nominal”, assim tor-nando inadmissível, no Direito pregresso, a emissão de acções sem valor nominal. 5 Vide 3., infra. 6 Reportamo-nos ao antecedente legislativo próximo do Decreto-Lei n.º 49/2010, de 19 de Maio, o Decreto-Lei n.º 64/2009, de 20 de Março, que estabelecia “mecanismos extraordinários de diminuição do valor nominal das acções das sociedades anónimas” (cfr. o respectivo art. 1.º). No entanto, como adiante se dirá (cfr. 3., infra), o que este diploma, na verdade, possibilitava era a redução extraordinária do próprio capital social das sociedades anónimas, através de dois “mecanismos” distintos, que assentavam na diminuição do valor nominal das acções emitidas. 7 Sobre o novo regime das acções sem valor nominal, vide ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, “Acções sem valor nominal”, Revista de Direito das Sociedades, ano 2, n.os 3 e 4, Coimbra, Almedina, 2010, pp. 471-50; PAULO DE

TARSO DOMINGUES, “As acções sem valor nominal”, Direito das Sociedades em Revista, ano 2, vol. 4, Coimbra, Almedina, 2010, pp. 181-214; PAULO DE TARSO DOMINGUES, “As acções sem valor nominal no Direito portu-guês”, in AAVV: I Congresso Direito das Sociedades em Revista, Coimbra, Almedina, 2011, pp. 53-73; PAULO

DE TARSO DOMINGUES, “Traços essenciais do novo regime das acções sem valor nominal”, in PAULO DE TARSO

DOMINGUES / MARIA MIGUEL CARVALHO (coord.), Capital social livre e acções sem valor nominal, Coimbra, Almedina, 2011, pp. 107-130; PAULO CÂMARA / ANA FILIPA MORAIS ANTUNES, Acções sem valor nominal, Coimbra, Coimbra Editora, 2011; e PAULO OLAVO CUNHA, “Aspectos críticos da aplicação prática do regime das acções sem valor nominal”, in PAULO DE TARSO DOMINGUES / MARIA MIGUEL CARVALHO (coord.), Capital social livre e acções sem valor nominal, Coimbra, Almedina, 2011, pp. 131-152.

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prévio do conceito de acções sem valor nominal, tornando-se, portanto, necessário proce-

der à sua delimitação.

Atentando na expressão “acções sem valor nominal”, constatar-se-á que a mesma é

construída através da articulação de dois conceitos bem vincados de Direito societário:

“acções” e “valor nominal”.

O primeiro releva positivamente, permitindo a identificação do género: estão em causa

acções e não quaisquer outras participações sociais ou valores mobiliários.

O segundo releva negativamente, possibilitando a identificação da espécie dentro do

género: trata-se de acções caracterizadas pela circunstância de não terem valor nominal.

Importa, pois, analisar em que consistem estas realidades.

2.2. Acções

O vocábulo “acção” – cunhado pelo legislador, mas por ele não definido – é signo polis-

sémico que, historicamente, tem comportado três significados distintos: modalidade da par-

ticipação ou direito social (Aktienrecht); forma de representação da participação ou direito

social (Aktienurkunde); e fracção do capital social (Quote des Grundkapitals)8 / 9.

Examinemo-los sucessivamente.

8 Esta construção deve-se aos trabalhos de ACHILLES RENAUD, Das Recht der Aktiengesellschaften, Leipzig, Bernhard Tauchnitz edt., 1875, p. 90. 9 Sobre o conceito de acção no Direito português, vide JOÃO LABAREDA, Das acções das sociedades anónimas, Lisboa, AAFDL, 1988, pp. 5 e ss.; JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, “As acções”, Direito dos Valores Mobiliários, vol. II, Coimbra, Coimbra Editora, 2001, pp. 61-64 (existe separata); JOSÉ A. ENGRÁCIA ANTUNES, Os instru-mentos financeiros, Coimbra, Almedina, 2009, pp. 75-87, em especial pp. 75-77; PAULO OLAVO CUNHA, Direi-to das sociedades comerciais, 4.ª ed., Coimbra, Almedina, 2010, pp. 355-357; e PAULO CÂMARA, Manual de Direito dos valores mobiliários, 2.ª ed., Coimbra, Almedina, 2011, pp. 128-132.

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Numa primeira acepção, a acção é a modalidade da participação social (ou direito

social10) nas sociedades anónimas e nas sociedades em comandita por acções11, ou seja, a

socialidade ou condição de sócio, apresentando-se, por essa razão, como a medida da posi-

ção, absoluta e relativa, do sócio naqueles tipos sociais12.

Neste sentido, a acção é uma situação jurídica complexa, formada por um conjunto con-

catenado de situações jurídicas, activas e passivas, indissociáveis da condição de sócio de

sociedade anónima ou de sociedade em comandita por acções13 / 14.

Paralelamente, o termo “acção” é utilizado para designar o título representativo da par-

ticipação social. Neste caso, a acção corresponderá à própria forma de representação da

participação social e não à participação social, que será, então, tomada como realidade abs-

tracta15.

10 Entre nós, JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, As acções…, p. 62, refere-se à acção como modalidade da partici-pação social e modalidade do direito social, indistintamente. No entanto, esta relação de sinonímia afigura-se-nos de rejeitar (cfr. nt. 14, infra). 11 Cfr. os arts. 271.º e 478.º. 12 A doutrina é, aliás, convergente neste ponto. Reenvia-se para os autores mencionados na nt. 9, supra. 13 Como manifestação da indissociabilidade das situações jurídicas que integram a participação accionista, tenha-se presente o princípio da proibição do pacto leonino, consagrado no art. 22.º, n.º 3 (cfr., também, o art. 994.º do CCiv): é nulo o acordo por meio do qual se determine a exclusão de um sócio da comunhão dos lucros ou a sua isenção da participação nas perdas da sociedade. Dito de outro modo, são incompatíveis com a sociali-dade a exclusão do direito aos lucros e a isenção do dever de participar nas perdas. Isto é, não pode uma partici-pação social congregar, tão-só, situações jurídicas activas ou, apenas, situações jurídicas passivas. Em síntese: ubi commoda, ibi incommoda. Não deve, todavia, confundir-se a indissociabilidade das situações jurídicas que formam a acção em relação à condição de sócio com a sua incindibilidade. Efectivamente, certos direitos ine-rentes à participação accionista – maxime, o direito ao dividendo, ou seja, à fracção do lucro distribuível corres-pondente à acção, uma vez deliberada a sua distribuição (cfr. PAULO OLAVO CUNHA, Direito das sociedades…, p. 298) – são destacáveis, podendo ser alienados ou onerados. Porém, mesmo na hipótese de destaque, a fonte última dos direitos inerentes destacados é a condição de sócio: o direito destacado existe por causa da socialida-de. Ademais, diga-se que o destaque dos direitos inerentes à acção não afecta o conteúdo desta, nem a posição do accionista. 14 A definição oferecida – em que os autores convergem – impõe a rejeição da relação de sinonímia entre parti-cipação social e direito social, na medida em que a primeira, sendo uma situação jurídica complexa, e, portanto, composta por situações jurídicas activas e passivas, não pode ser entendida como direito subjectivo – permissão normativa específica de aproveitamento de um bem, na fórmula de ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito civil português, vol. I, Parte geral, t. I, 3.ª reimp. da 3.ª ed. (2005), 2011, pp. 331-334. Conferindo, embora, a titularidade de certos direitos subjectivos, como o direito de quinhoar nos lucros, de participar nas deliberações de sócios, de obter informações sobre a vida da sociedade e de ser designado membro dos órgãos de administração e de fiscalização da sociedade (cfr. o art. 21.º, n.º 1), a condição de sócio acarreta, igualmente, determinados deveres e obrigações, como os de realizar entradas e de quinhoar nas perdas (cfr. o art. 20.º). Assim, só a expressão “participação social” permite retratar, adequadamente, a condição de sócio. 15 Assim, JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, As acções…, p. 64.

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Semelhante entendimento do conceito de acção escora-se numa razão histórica: as pri-

meiras sociedades anónimas e em comandita por acções emitiram títulos16, documentos em

papel representativos das respectivas participações sociais.

Intui-se, com relativa facilidade, que esses títulos, representando as acções – rectius, as

participações sociais –, se confundiram, erradamente17, com elas, generalizando-se, conse-

quentemente, o uso do signo “acções” como referência aos títulos representativos das par-

ticipações accionistas.

Não obstante a necessidade de representação da participação social seja justificada, por

razões de reforço da segurança no tráfego jurídico e da confiança na existência e no con-

teúdo da situação jurídica representada18, a referência à acção enquanto forma de repre-

sentação tenderá a perder relevância, por diversas razões19.

Como é sabido, a nossa lei admite, actualmente, duas formas de representação das par-

ticipações accionistas: a representação cartular e a representação escritural.

A primeira modalidade, correspondendo à técnica de representação clássica, consiste na

emissão de um documento em papel (título) que incorpora a participação social, ao passo

que a segunda se traduz no registo informático da participação accionista numa conta aber-

ta em nome do respectivo titular junto de um intermediário financeiro integrado em siste-

ma centralizado, de um único intermediário financeiro indicado pelo emitente, ou da pró-

pria sociedade emitente20.

16 Questão mais delicada é a da qualificação, ou não, da acção como título de crédito, a que a doutrina vem res-pondendo afirmativamente: cfr., por todos, JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, As acções…, pp. 63-64. Sobre a noção de título de crédito, vide PAULO OLAVO CUNHA, Cheque e convenção de cheque, Coimbra, Almedina, 2009, pp. 187-194. 17 Dizemos erradamente, pois, como, com toda a propriedade, nota JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, As acções…, p. 64, o título é, apenas, um instrumento de representação da posição social, que não se apresenta, portanto, como essencial. Só assim se compreende que a perda ou a destruição do título não afectem a participação social, mas somente dêem origem à sua reconstituição ou reforma judicial (cfr. o art. 51.º do Cód.VM e os arts. 1069.º e ss. do Código de Processo Civil). Convergentemente, embora a propósito dos valores mobiliários em geral, PAULO CÂMARA, Manual…, p. 105. 18 Cfr. JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, As acções…, p. 63. 19 Cfr., por todos, PAULO OLAVO CUNHA, Direito das sociedades…, p. 356. 20 Cfr. os arts. 46.º, n.º 1, 61.º e 65.º, n.º 1, do Cód.VM.

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A forma de representação escritural constitui o resultado de uma natural evolução do

sistema jurídico societário e mobiliário, na medida em que o legislador, sem perder de vista

a necessidade de assegurar a certeza no tráfego, tem vindo a desenvolver um esforço de

remoção dos obstáculos de ordem formal à desejada celeridade do comércio jurídico, que

caracteriza o universo em que se movem as sociedades comerciais.

Ora, reconhecendo-se, hoje, que a acção tanto pode ser representada por um título,

como por um simples registo em conta, não tem sentido encará-la como forma de represen-

tação da participação social, já que semelhante entendimento assenta num pressuposto de

exclusividade da forma de representação cartular21. Para mais, deverá recordar-se, a propó-

sito das acções admitidas à negociação em mercado regulamentado, que os accionistas não

estabelecem, necessariamente, um contacto directo com as mesmas22.

A acção é, ainda, entendida como uma fracção do capital social, por meio da qual é

determinada a posição do respectivo titular numa sociedade anónima ou em comandita por

acções.

A acção funcionará, assim, como a medida concreta dos direitos e deveres do seu titular.

Recentemente, também esta acepção do conceito de acção tem merecido crítica de

alguma doutrina, com fundamento na possibilidade de emissão de acções representativas,

não do capital social, mas do património da sociedade23.

Sendo, contudo, certo que, nalguns ordenamentos jurídicos, as acções podem represen-

tar o próprio património da respectiva sociedade emitente e não o seu capital social – v.g.

as chamadas no par value shares características do Direito norte-americano –, cumpre

reconhecer que essa realidade corresponde a um traço identitário dos sistemas jurídico-

21 Sem prejuízo do que dissemos, deverá ter-se presente que a lei, ao qualificar a acção como valor mobiliário (cfr. o art. 1.º, al. a), do Cód.VM) e ao definir o valor mobiliário como documento representativo de situações jurídicas homogéneas, susceptível de transmissão em mercado (cfr. o art. 1.º, al. g), do Cód.VM), mantém, ain-da, actual o entendimento da acção como documento. Cfr., sobre este ponto, nt. 25, infra. 22 Neste sentido, vide PAULO CÂMARA, Parassocialidade e transmissão de valores mobiliários, Lisboa, FDL, 1996, pp. 350-356. 23 Vide PAULO OLAVO CUNHA, Direito das sociedades…, pp. 356-357.

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societários não enformados pelo regime do capital social24. Relativamente a estes, e somen-

te estes, o argumento colhe.

Porém, a crítica já improcederá quanto aos sistemas jurídico-societários de matriz euro-

peia, como o português, em que o regime do capital social é fundamental e imprescindível.

Enquanto assim for, a acção é (e deve ser percepcionada como) uma fracção do capital

social.

E mesmo que o que vem de dizer-se não procedesse, cabe recordar que, nos termos do

art. 271.º, nas sociedades anónimas e em comandita por acções (nestas, por remissão do

art. 478.º), “o capital é dividido em acções”.

Valem, aqui, portanto, as presunções de que o legislador soube expressar o seu pensa-

mento em termos adequados e de que consagrou as soluções mais acertadas (cfr. o art. 9.º,

n.º 3, do CCiv).

A par destes significados, o termo “acção” adquiriu, recentemente, um outro sentido: o

de valor mobiliário, como resulta directamente do art. 1.º, al. a), do Cód.VM. A acção é, des-

te modo, “uma realidade compósita que agrega as situações jurídicas representadas e a

forma de representação, unidas em torno da aptidão circulatória”, ou seja, uma “posição

jurídica representada”25.

Retenha-se, de entre as várias acepções apresentadas, a de acção enquanto participa-

ção social.

24 Sobre a relação entre as no par value shares e a superação do conceito (ou do dogma) do capital social, vide PAULO CÂMARA / ANA FILIPA MORAIS ANTUNES, Acções…, pp. 64-71. 25 PAULO CÂMARA, Manual…, p. 105. Apenas esta noção permite superar as insuficiências da definição legal de valor mobiliário (documento representativo de situações jurídicas homogéneas, susceptível de transmissão em mercado), que desconsidera, no que à acção respeita, que a mesma é, prima facie, a própria participação social nas sociedades anónimas e em comandita por acções, que o documento representa. Propondo um conceito mais abrangente de valor mobiliário, cfr. JOSÉ A. ENGRÁCIA ANTUNES, Os instrumentos…, pp. 51-54. Como valor mobiliário, a acção é, nos termos do art. 2.º, n.º 1, al. a), e n.º 2, do Cód.VM, um instrumento financeiro, ou seja, um instrumento jus-comercial, susceptível de criação e/ou negociação no mercado de capitais, cuja “finalidade primordial [é] o financiamento e/ou a cobertura do risco da actividade económica das empresas” (cfr. JOSÉ A. ENGRÁCIA ANTUNES, ob. cit., p. 7).

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Contudo, mais do que o conhecimento do seus diversos significados, é decisivo para a

compreensão do conceito de acção o conhecimento das respectivas características.

Assim, da análise da lei e recorrendo ao esforço de sistematização desenvolvido pela

doutrina, afirmar-se-á que as acções se caracterizam por serem indivisíveis, livremente

transmissíveis, representativas da mesma fracção do capital social e susceptíveis de agru-

pamento26.

Prescreve o art. 276.º, n.º 6 (correspondente ao n.º 4, na redacção anterior à introduzi-

da pelo Decreto-Lei n.º 49/2010, de 19 de Maio), que as acções são indivisíveis, isto é, que

são absolutamente insusceptíveis de fraccionamento (stock split)27 / 28.

Importante característica das acções é, igualmente, a da sua livre transmissibilidade, que

encontra acolhimento no art. 328.º, n.º 1.

Aliás, no Direito societário português, são ilícitas as cláusulas de intransmissibilidade

absoluta e as que restrinjam a transmissibilidade de acções não expressamente previstas no

art. 328.º, n.º 2.

Assim, as únicas limitações à regra da livre transmissibilidade das acções legalmente

admitidas são: a subordinação da transmissão das acções nominativas ao consentimento da

sociedade (cfr. a al. a) do n.º 2 do art. 328.º), o estabelecimento de um direito de preferên-

cia a favor dos restantes accionistas, na eventualidade de alienação de acções nominativas

26 Vide PAULO OLAVO CUNHA, Direito das sociedades…, pp. 358-360. 27 Como nota PAULO OLAVO CUNHA, Direito das sociedades…, pp. 358-359, a indivisibilidade das acções cir-cunscreve-se às participações sociais, não afectando os títulos que as representam. Deste modo, caso, nos termos do art. 97.º, n.º 1, al. b), do Cód.VM, um título seja representativo de várias acções, o princípio da indivisibili-dade das acções não constitui qualquer impedimento a que o respectivo titular solicite a divisão do título à sociedade emitente – solução que resulta, aliás, do art. 98.º do Cód.VM. 28 PAULO CÂMARA, Manual…, pp. 129, nota que esta característica vem perdendo relevância, como consequên-cia da possibilidade de destaque dos direitos inerentes à acção, circunscrevendo-se, hoje, aos direitos – ditos – políticos (v.g., o direito à informação e o direito ao voto). Todavia, a indivisibilidade da acção não deve confun-dir-se com a incindibilidade das situações jurídicas, activas e passivas, que a compõem. Efectivamente, a indivi-sibilidade da acção significa que a própria posição accionista, entendida como um todo, é insusceptível de divi-são, ou seja, não pode originar outras por vontade do respectivo titular (já o poderá ser, porém, por via de uma alteração do pacto social: neste sentido, PAULO CÂMARA / ANA FILIPA MORAIS ANTUNES, Acções…, p. 115), ao contrário do que sucede com a posição quotista (cfr. o art. 221.º). Ora, a indivisibilidade da acção não implica que as situações jurídicas que esta congrega sejam incindíveis. Trata-se, na verdade, de conceitos que operam a diferentes níveis.

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(cfr. o art. 328.º, n.º 2, al. b)) e a subordinação da transmissão de acções nominativas e da

constituição de penhor ou de usufruto sobre elas ao cumprimento de determinados requisi-

tos, objectivos ou subjectivos, conformes com o interesse social (cfr. o art. 328.º, n.º 2, al.

c)).

A regra é, pois, a inversa da vigente para as sociedades por quotas (cfr. o art. 228.º, n.º

2), o que se funda na necessidade de assegurar constante liquidez nos mercados de capi-

tais29.

Como traço identitário das acções no sistema jurídico-societário português30, cumpre

referir, ainda, a circunstância de aquelas “representarem a mesma fracção no capital social”,

como expressamente declara o art. 276.º, n.º 4.

Por último, e na medida em que a lei ou o contrato de sociedade podem condicionar o

exercício de alguns direitos sociais à titularidade de um certo número de acções – v.g., o

direito de exigir a prestação de informações por escrito, para o qual é necessária a titulari-

dade de acções representativas de dez por cento do capital social (cfr. o art. 291.º, n.º 1), e

o direito de voto nas deliberações da assembleia geral, que o pacto social pode atribuir

apenas aos accionistas titulares de um determinado número de acções (cfr. o art. 379.º, n.º

5) –, a lei societária admite, enquanto manifestação do princípio da igualdade de tratamen-

to entre os accionistas31, o agrupamento de acções, ou seja, a agregação das acções de um

accionista às de outro, com o específico propósito de exercício de direitos sociais, que, de

outra maneira, estaria vedado.

Recolhidos estes subsídios quanto ao conceito e às características das acções, passemos,

agora, à análise do conceito de valor nominal.

29 Recorde-se, a propósito, a lição de ALEXANDRE BRANDÃO DA VEIGA, Transmissão de valores mobiliários, Coimbra, Almedina, 2004, p. 16: “Os valores mobiliários existem para circular, valem em grande medida por-que circulam, criam mercado porque o fazem”. 30 Por seu turno, nos sistemas jurídico-societários não enformados pelo regime do capital social, as acções repre-sentam idênticas fracções do património da sociedade. 31 Sobre este princípio, cfr., por todos, PAULO OLAVO CUNHA, Direito das sociedades…, pp. 114-116.

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2.3. Valor nominal. O capital social

A referência a acções com valor nominal e a acções sem valor nominal é suficiente para

se perceber que a toda a acção é atribuído um valor. Na realidade, são-lhe atribuídos diver-

sos valores.

Segundo registam alguns autores, a acção é susceptível de ter os seguintes valores: o

valor nominal, correspondente a uma cifra invariável em dinheiro, formalmente ligado à

acção e, bem assim, ao capital social (o qual, por sua vez, é computado pela soma do valor

nominal da totalidade das acções emitidas); o valor contabilístico, obtido pelo quociente

entre o valor do património líquido da sociedade e o número total de acções emitidas (book

value); o valor real, calculado em função do número de acções da titularidade de certo

accionista, e que constitui um instrumento de avaliação da respectiva posição relativa na

sociedade emitente; o valor de mercado, que traduz o preço de aquisição de uma acção e

que, tendencialmente, reflectirá o seu valor real; e o valor de cotação, o preço de aquisição

de uma acção emitida por uma sociedade emitente de valores mobiliários admitidos à

negociação em mercado regulamentado, determinado pelos agentes económicos32.

A estes somam-se, desde a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 49/2010, de 19 de Maio,

o valor de emissão, que consiste na cifra em dinheiro, associada à acção (embora não for-

malmente) e temporalmente cingida ao acto societário da sua criação (emissão), aferido

através do quociente entre o capital social e o número total de acções emitidas, e o valor

percentual, que exprime a relação proporcional entre o número de acções detidas por um

accionista e o capital social33.

Ora, de todos estes valores da acção, o valor nominal era aquele que maior relevância

tinha, sob o ponto de vista jurídico, pelas suas implicações.

32 ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO / ADELAIDE MENEZES LEITÃO, anotação n.º 5 ao art. 276.º, in ANTÓNIO MENE-

ZES CORDEIRO (coord.), Código das Sociedades Comerciais Anotado, 2.ª ed., Coimbra, Almedina, 2011, p. 802. 33 Em boa verdade, o art. 44.º, n.º 1, al. b), do Cód.VM, já obrigava a que o valor percentual constasse do registo de emissão das acções escriturais e do título representativo das acções tituladas (em relação a estas, cfr. o art. 97.º, n.º 1, do Cód.VM).

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Como é sabido, a ideia de valor nominal accionista é uma característica específica dos

sistemas jurídico-societários enformados pelo regime do capital social, tornando-se, pois,

essencial compreendê-lo e às suas implicações em termos gerais.

As sociedades comerciais são pessoas colectivas de Direito privado cujo objecto é a prá-

tica de actos de comércio (cfr. o art. 2.º do CCom) e que se organizam em conformidade

com um dos seguintes tipos societários consagrados no CSC (cfr. o art. 1.º, n.º 2): sociedade

em nome colectivo, sociedade por quotas, sociedade anónima, sociedade em comandita

simples e sociedade em comandita por acções.

As sociedades comerciais têm por finalidade imediata o desenvolvimento de uma activi-

dade económica e por finalidade mediata a obtenção de lucro. Naturalmente, para que pos-

sam desempenhar a sua actividade, deverão munir-se com os recursos indispensáveis e ade-

quados à exploração da concreta actividade económica que pretendam exercer.

Ora, o conjunto dos meios financeiros, em dinheiro ou em espécie, reunidos pelos sócios

com vista ao desenvolvimento pela sociedade da respectiva actividade económica estatutá-

ria constitui o capital social, computado pela soma dos apports dos sócios, e que, aquando

da constituição da sociedade e, bem assim, no momento inicial do exercício da actividade

social, corresponde, a mais das vezes, ao respectivo património34.

Neste sentido, por “capital social” deve entender-se a cifra numérica, em dinheiro,

expressa em euros, de valor constante35, “correspondente ao património de constituição da

empresa”36.

34 Cfr. PAULO OLAVO CUNHA, Direito das sociedades…, pp. 459-460. 35 Em bom rigor, o valor do capital social é, apenas, tendencialmente constante, dado que a lei permite o seu aumento (cfr. os arts. 87.º e ss.) e a sua redução (cfr. os arts. 94.º e ss.). 36 Vide PAULO OLAVO CUNHA, Direito das sociedades…, p. 460, que adapta e actualiza a lição de PAULO SEN-

DIN, Curso de sociedades comerciais, Lisboa, AAFDL, policopiado, 1988. Ainda sobre o conceito de capital social, vide PAULO DE TARSO DOMINGUES, Variações sobre o capital social, Coimbra, Almedina, 2009, pp. 47 e ss..

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Esta definição espelha a diferença entre capital social e património social, sendo este o

valor apurado pela diferença entre o activo e o passivo da sociedade, tratando-se, portanto,

de uma realidade mutável por natureza.

O capital social é um conceito fundamental no Direito das sociedades comerciais portu-

guês, desempenhando funções internas e externas.

Por um lado, o capital social serve funções internas, de organização da vida societária. É

através da ponderação da participação social que se determina a posição, absoluta e relati-

va, de cada sócio na respectiva sociedade.

Paralelamente, o capital social representa um importante mecanismo de protecção dos

sócios, na medida em que todos os sócios deverão contribuir equitativamente para a socie-

dade37.

Ademais, o princípio da proibição da emissão de acções por um valor inferior ao do res-

pectivo valor nominal (emissão abaixo do par) constituía um importante obstáculo à dilui-

ção das participações dos primitivos accionistas, em consequência da subscrição de acções

por terceiros, em grande quantidade e por um preço inferior ao pago por aqueles – o que

poderia importar uma alteração do controlo da sociedade.

Por outro lado, o capital social, através do seu regime, constitui um factor de protecção

de terceiros, assumindo um papel de garantia dos credores sociais38.

Pondo de parte aspectos de pormenor, afirma-se que o capital social é uma garantia dos

credores pela consagração, entre nós, de dois princípios: o da intangibilidade do capital

social e o da conservação do capital social. Vejamos em que termos.

37 PAULO DE TARSO DOMINGUES, “O capital social como entrave ao financiamento das sociedades. Os novos conceitos e regime de capital social introduzidos pelo DL 64/2009 são solução?”, Direito das Sociedades em Revista, ano I, vol. II, Coimbra, Almedina, 2009, p. 177, nt. 9. 38 A centralidade do regime do capital social é, na verdade, pedra de toque dos sistemas jus-societários de matriz europeia. Recorde-se, a propósito, que a Segunda Directiva do Conselho em matéria de Direito das sociedades (Directiva 77/91/CEE, do Conselho, de 13 de Dezembro de 1976, JOCEE L, n.º 26, de 31 de Janeiro de 1977), comummente denominada por Directiva do Capital Social, proclamava, no seu quarto considerando, que “devem ser adoptadas normas comunitárias para conservar o capital, que constitui uma garantia dos credores, proibindo, nomeadamente, que seja afectada por indevidas distribuições aos accionistas e limitando a possibi-lidade de a sociedade adquirir acções próprias”.

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Como se referiu, “capital social” e “património social” são conceitos inconfundíveis, mui-

to embora o capital social corresponda, em regra, ao património inicial de uma sociedade

comercial, necessário ao desenvolvimento da sua actividade.

Ora, considerando que o capital social se destina, primeiramente, a dotar a respectiva

sociedade comercial dos meios necessários ao início da sua actividade, assim como à sua

implantação no mercado em que actua, impõe-se o reconhecimento da sua susceptibilidade

de erosão no momento fundacional da sociedade, bem como durante o exercício da activi-

dade social.

Por aqui se vê que o capital social não é, em si mesmo, uma garantia dos credores da

sociedade.

Na verdade, entendida em sentido técnico-jurídico, a garantia dos credores sociais é o

património da sociedade (cfr. o art. 601.º do CCiv).

Neste contexto, o capital social é, tão-só, a medida relativamente “à qual se determina

se no decurso do funcionamento da sociedade resultou acréscimo ou diminuição do patri-

mónio social”39.

Dito de outro modo, o capital social opera como bitola por meio da qual se afere a evo-

lução do património de uma sociedade comercial (a garantia dos credores)40.

Estas considerações preliminares facilitam a compreensão do princípio da intangibilida-

de do capital social, de acordo com o qual o capital social tem como afectação exclusiva a

reunião e a manutenção dos recursos necessários ao desenvolvimento da actividade com-

preendida no objecto social e não a satisfação dos interesses pessoais dos sócios.

Concretizando a intangibilidade do capital social, e procurando garanti-la, o legislador

consagrou, no art. 32.º, o princípio da conservação do capital social41.

39 Cfr. FERNANDO OLAVO (apontamentos dos alunos ALBERTO XAVIER e MARTIM DE ALBUQUERQUE), Direito comercial, vol. II, Lisboa, AAFDL, policopiado, 1963, p. 17. 40 Expressamente neste sentido, PAULO OLAVO CUNHA, “O novo regime da redução do capital social e o artigo 35.º do Código das Sociedades Comerciais”, in AAVV, Prof. Inocêncio Galvão Telles: 90 anos. Homenagem da Faculdade de Direito de Lisboa, Coimbra, Almedina, 2007, p. 1029.

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O art. 32.º, n.º 1, na redacção que lhe foi conferida pelo Decreto-Lei n.º 185/2009, de 12

de Agosto, interdita a distribuição dos activos da sociedade aos respectivos sócios, quando

o seu capital próprio42, incluindo o resultado líquido do exercício, constante dos documen-

tos de prestação de contas, elaborados e aprovados nos termos legais, seja inferior à soma

do capital social e das reservas (legais ou estatutárias) não distribuíveis, bem como quando,

em virtude da distribuição de bens, aquele se tornasse inferior ao valor da referida soma.

O princípio da conservação do capital social tem por finalidade promover e garantir uma

aproximação entre o capital social e o património social43.

O legislador, ao impor a intangibilidade e a conservação do capital social, procurou cons-

truir uma disciplina jurídica destinada e apta a assegurar que, durante o período em que a

sociedade exercer a respectiva actividade, o seu património social não é inferior ao capital

social44.

Em suma: o capital social corresponde ao núcleo intangível do património da sociedade

(cifra de retenção do património social). Por isso, se diz que é a garantia dos credores45 / 46.

Dito isto, debruçamo-nos, agora, sobre o conceito de acções sem valor nominal.

41 Na realidade, a consagração deste princípio deriva de uma imposição comunitária: cfr. o art. 15.º, n.º 1, al. a), da Directiva do Capital Social. 42 Segundo o art. 349.º, n.º 2, entende-se por capital próprio “o somatório do capital realizado, deduzidas as acções próprias, com as reservas, os resultados transitados e os ajustamentos de partes de capital em socieda-des coligadas”. Recordar-se-á, contudo, que o âmbito desta definição se circunscreve ao limite de emissão de obrigações por sociedades anónimas. Em termos gerais, vale a pena reter a noção proposta por PAULO OLAVO

CUNHA, Direito das sociedades…, pp. 466-467: “património (líquido) societário que é formado exclusivamente à custa de bens de que a sociedade beneficie com carácter de estabilidade, incluindo os que são necessários para cobrir o capital social acrescido das reservas legais (obrigatórias e especiais) acumuladas”. 43 Convergentemente, PAULO DE TARSO DOMINGUES, “Garantias da consistência do património social”, in AAVV, Problemas do Direito das sociedades, 2.ª reimp. da 1.ª ed. (2002), Coimbra, Almedina, 2008, pp. 497-545. Contra, PAULO CÂMARA, anotação n.º 3 ao art. 32.º, in ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO (coord.), Código…, p. 166, nt. 1, para quem o princípio da conservação do capital social visa somente promover a aproximação do capital social ao património social e não garanti-la. 44 PAULO DE TARSO DOMINGUES, O capital…, p. 177, nt. 8. 45 Na medida em que a distribuição de bens pelos accionistas nunca poderá afectar o capital social. 46 Não deve, no entanto, olvidar-se o preâmbulo do Decreto-Lei n.º 33/2011, de 7 de Março (que alterou o CSC, reduzindo o montante mínimo do capital social nas sociedades por quotas para dois euros e para um euro, nas sociedades unipessoais por quotas), que declara peremptoriamente que “o capital social não representa uma garantia para os credores e, em geral, para quem se relaciona com a sociedade”.

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2.4. Proposta de definição de acções sem valor nominal

Como é sabido, as acções representam a mesma fracção do capital social, nos sistemas

jurídico-societários de matriz europeia, enformados pelo regime do capital social.

Sem surpresa, o regime do capital social repercutia-se, com relativa naturalidade e até

muito recentemente, sobre as próprias acções, as quais, consideradas nas suas múltiplas

acepções, serviriam, também, para alcançar os objectivos prosseguidos com a instituição

daquele regime47.

Por esta razão, a todas as acções era, necessariamente, atribuído um valor nominal, ou

par48, correspondente a um valor unitário, tendencialmente fixo49, apurado por via da

divisão da cifra do capital social pelo número total de acções emitidas50, e que traduz o

valor mínimo das entradas a realizar por cada participação accionista51.

47 Por este motivo, o valor nominal é menção obrigatória do contrato de sociedade (cfr. o art. 272.º, al. a)), e, bem assim, do título representativo da acção nominativa (cfr. o art. 97.º, n.º 1, ex vi art. 44.º, n.º 1, al. b), do Cód.VM), e do registo da emissão da acção escritural (cfr. o art. 44.º, n.º 1, al. b), do Cód.VM). 48 Sobre a sinonímia entre valor nominal e par, cfr. o art. 298.º, n.º 1. Na doutrina norte-americana, vide, FRE-

DERICK DWIGHT, “The par value of stock”, Yale Law Journal, n.º 16, 1907, pp. 247-284. 49 Dizemos tendencialmente fixo porque o valor nominal, reflectindo o capital social, variará quando este varie. Cfr., a título de exemplo, o art. 92.º, n.º 4, quanto ao aumento de capital, e o art. 94.º, n.º 1, al. b), relativo à redução do capital social por diminuição do valor nominal (como lembram PAULO DE TARSO DOMINGUES, O capital…, pp. 191, e PAULO CÂMARA / ANA FILIPA MORAIS ANTUNES, Acções…, p. 88, esta última hipótese é admitida entre nós pela possibilidade de emitir as chamadas penny stocks – acções com valor nominal diminuto (um cêntimo) –, estabelecida no art. 276.º, n.º 3 (anterior art. 276.º, n.º 2, na redacção conferida pelo Decreto-Lei n.º 343/98, de 6 de Novembro, que adaptou o CSC ao euro)). Sobre o conceito de penny stocks, vide PEDRO

MAIA, “As participações sociais”, in J. M. COUTINHO DE ABREU (coord.), Estudos de Direito das sociedades, Coimbra: Almedina, 2010, p. 135. 50 Nas sociedades emitentes de acções com valor nominal, o capital social corresponde, portanto, à soma de todas as acções emitidas. 51 PAULO CÂMARA / ANA FILIPA MORAIS ANTUNES, Acções…, p. 13. Na formulação de YURI BIONDI, “Le azioni”, in GIOVANNI. E. COLOMBO / GIUSEPPE B. PORTALE, Trattato delle società per azioni, vol. II, Turim, UTET Giuridica, 1996 (reimp. da ed. de 1991), pp. 14-17, o valor nominal é o mínimo estatutário de participação accionista.

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No Direito anterior, “[a] referência a um valor nominal constituía um esquema técnico

destinado a permitir a aplicação segura de determinadas regras”52.

Em sintonia com o regime do capital social, o valor nominal desempenhava funções

internas: de determinação da posição, absoluta e relativa, de cada accionista, de garantia do

princípio da igualdade de tratamento dos accionistas53 e, por último, de obstáculo a um

grave enfraquecimento das participações sociais dos primitivos accionistas (uma vez que o

valor nominal operava como preço mínimo de subscrição)54.

Pela sua relação umbilical com o capital social – o qual, no Direito precedente,

correspondia à cifra resultante da soma do valor nominal da totalidade das acções

emitidas –, o valor nominal operava, ainda, como instrumento de avaliação da situação

patrimonial da sociedade55.

Delimitados os conceitos de acção e de valor nominal, estamos, agora, habilitados a

definir o que seja uma acção sem valor nominal.

Colhidos e ponderados os elementos acima escalpelizados, dir-se-á que, por acção sem

valor nominal, se deve entender a participação social numa sociedade anónima ou numa

sociedade em comandita por acções desprovida de valor nominal.

Sendo certo que esta definição está longe de ser perfeita e tecnicamente adequada, a

verdade é que ela é, também, a única que permite uma análise compreensiva da figura56: é

que, tendo presentes as experiências jurídicas de outros ordenamentos e o labor

52 ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO / ADELAIDE MENEZES LEITÃO, anotação n.º 6 ao art. 276.º, in ANTÓNIO

MENEZES CORDEIRO (coord.), Código…, p. 803. 53 Neste sentido, vide JOHN COFFEE JR., “The mandatory / enabling balance in Corporate Law: An essay on the judicial role”, Columbia Law Review, vol. 89, n.º 7, 1987, p. 1637, e YURI BIONDI, Le azioni…, p. 15. Não obstante pudessem ser qualitativamente diferentes, as acções, conquanto representavam idênticas fracções do capital social, eram quantitativamente iguais. 54 PAULO CÂMARA / ANA FILIPA MORAIS ANTUNES, Acções…, p. 21. O princípio da proibição da emissão de acções abaixo do par, acolhido no art. 298.º, n.º 1, na sua redacção originária e anterior à introduzida pelo Decreto-Lei n.º 49/2010, de 19 de Maio, impedia – e continua a impedir – que os primitivos accionistas de uma sociedade vissem a sua posição social prejudicada pela entrada de novos accionistas que adquirissem acções por um valor inferior ao do par e em quantidades avultadas. 55 Cfr. 2.3., supra. 56 Convergentemente, RAINER FUNKE, Wert ohne Nennwert – Zum Entwurf einer gesetzlichen Regelung über Zulassung nennwerloser Aktien, Colónia, AG, 1997, p. 386.

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sistematizador da doutrina, podemos distinguir entre duas espécies de acções sem valor

nominal, consoante se enquadrem, ou não, em sistemas jurídico-societários enformados

pelo regime do capital social57.

Afigura-se-nos, por esta razão, da maior conveniência atentar nas soluções consagradas

noutras latitudes, ainda que sinteticamente.

Segundo a doutrina da especialidade, as acções sem valor nominal são um produto do

Direito belga58, posteriormente aproveitado e desenvolvido por outros ordenamentos59.

Como é reconhecido, a emissão de acções sem valor nominal por sociedades anónimas

(sociétés anonymes), bem como por sociedades em comandita por acções (sociétés en

comandite par actions), foi, primeiramente, possibilitada pela Loi du 18 mai 1873, tendo

encontrado posterior acolhimento nas Lois sur les sociétés commerciales, coordonées le 25

mai 1913 (cfr. o art. 41., 1§)60.

Saliente-se, desde já, que a técnica seguida no Direito belga passa pela possibilidade, e

não pela obrigatoriedade, de emitir acções sem valor nominal: é reconhecida aos

accionistas a liberdade de optar entre as acções com valor nominal e as acções sem valor

nominal.

57 Cfr., por todos, JOSÉ GABRIEL PINTO COELHO, “Estudo sobre as acções das sociedades anónimas”, Revista de Legislação e Jurisprudência, n.º 3093, ano 89.º, 1957, pp. 370-371. 58 Cfr. THIERRY TILQUIN, “Les actions et parts sans valeur nominale en Droit belge”, in AAVV, Bulletin JOLY Sociétés, Julho de 1998, pp. 738-754 (p. 739). Diferentemente, ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO / ADELAIDE

MENEZES LEITÃO, anotação n.º 8 ao art. 276.º, in ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO (coord.), Código…, p. 804, referem que as acções sem valor nominal surgiram no Direito norte-americano, em 1912. Todavia, JOHN

WILDMAN / WELDON POWELL, Capital stock without par value, Nova Iorque, Arno Press, 1980 (reimp. da ed. de Chicago, A. W. Shaw, 1928), pp. 22-23, indicam que a New York Stock Corporation Law se inspirou em legislação teutónica sobre sociedades mineiras, datada de 1865. 59 Não constitui nosso propósito desenvolver um estudo jus-comparativo sobre as acções sem valor nominal, pelo que nos furtaremos ao tratamento sistemático – e autónomo – das soluções consagradas noutros ordenamentos. Referi-las-emos, apenas, enquanto instrumento para a avaliação de algumas soluções con-sagradas pelo legislador nacional no Decreto-Lei n.º 49/2010, de 19 de Maio. Para um aprofundamento do estudo das acções sem valor nominal noutros sistemas jus-societários, cfr., por todos, PAULO CÂMARA / ANA

FILIPA MORAIS ANTUNES, Acções…, passim, em especial pp. 29-79. 60 As Lois sur les sociétés commerciales foram objecto de sucessivas alterações, que, dada a sua magnitude, terão justificado nova consolidação daquelas lois, conhecida como Lois sur les sociétés commerciales, coordonnées le 30 novembre 1935.

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Essa possibilidade é, ainda, reforçada pela circunstância de o sistema belga admitir a

coexistência, numa mesma sociedade, de acções com valor nominal e acções sem valor

nominal61.

Na disciplina das Lois sur les sociétés commerciales, as acções sem valor nominal

apresentavam-se como acções representativas de uma mesma fracção do capital social, ou,

se se quiser, de uma idêntica quota-parte no capital social, sendo, por isso, designadas por

acções de quotidade ou acções-quota (actions de quotité)62.

O montante de capital representado em cada acção-quota era determinado pelo

quociente entre a cifra do capital social e o número total de acções correspondentemente

emitidas63.

O irrecusável interesse de que se revestia semelhante solução, assim como os seus

comprovados méritos, parecem ter justificado a sua extensão às sociedades de

responsabilidade limitada (sociétés à responsabilité limitée), empreendida pelo art. 124.

daquelas Lois sur les sociétés commerciales64.

As actions de quotité correspondem a uma experiência adquirida do sistema jurídico-

societário belga, de que são traço identitário. É sintomática disso a circunstância de aquelas,

apesar de centenárias, terem sido recebidas no actual Code des Sociétés65.

Pela sua proximidade cronológica com o regime belga, vale a pena aludir ao Direito

luxemburguês, onde a possibilidade de emissão de acções sem valor nominal (também,

actions de quotité) foi introduzida pelo art. 26-5. da Loi du 10 août 1915, concernant les

sociétés commerciales.

61 Cfr., no Direito actual, o art. 476. do Code des Sociétés. 62 Cfr. JOSÉ GABRIEL PINTO COELHO, Estudo…, pp. 370-371. 63 Cfr. JOSÉ GABRIEL PINTO COELHO, ob. cit., pp. 337 e 370-371. 64 Na redacção que lhe foi introduzida pelo art. 34 da Loi modifiant les lois sur les sociétés commerciales, coor-données le 30 novembre 1935, du 13 avril 1995. 65 Cfr. os arts. 238., relativamente às sociedades de responsabilidade limitada, e 476., em relação às sociedades anónimas e em comandita por acções (estas por remissão do art. 657.).

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As soluções vigentes no sistema luxemburguês são, no essencial, semelhantes às que

vigoram no Direito belga66.

Como referência incontornável no quadro das experiências jurídicas europeias em

matéria de acções sem valor nominal, haveremos, ainda, de nos confrontar com a Directiva

do Capital Social, que representou um passo na direcção da consagração desta figura nos

sistemas jurídico-societários dos vários Estados-Membros da União Europeia.

O primeiro aspecto a reter sobre a Directiva do Capital Social é que se trata de um

instrumento comunitário de harmonização mínima, o que se projecta directamente sobre o

tema deste estudo: em momento algum aquela directiva impõe, aos Estados-Membros, um

dever de permitirem, nos respectivos ordenamentos jurídicos internos, a emissão de acções

sem valor nominal.

Efectivamente, a técnica do referido acto comunitário é a da devolução da competência

para a decisão de admitir, ou não admitir, a emissão de acções sem valor nominal aos

Estados-Membros. Retenha-se, a propósito, o disposto no art. 3.º, al. c), da directiva,

segundo o qual, “o número de acções subscritas sem menção de valor nominal, no caso de a

legislação nacional autorizar a emissão destas”67 , deverá constar dos estatutos da

sociedade.

Na verdade, e no que a este estudo importa, a Directiva do Capital Social, mais do que

estabelecer, para os Estados-Membros, a possibilidade de introduzirem, nos respectivos

ordenamentos jurídicos internos, as acções sem valor nominal, pretendeu acautelar as

soluções dos sistemas jurídico-societários belga e luxemburguês68.

Em termos substantivos, a referida directiva buscou, notoriamente, inspiração nos

Direitos belga e luxemburguês.

66 As acções das sociedades em comandita por acções podem, igualmente, não ter valor nominal (cfr. o art. 103. da referida lei, que remete para o regime das sociedades anónimas). Por seu turno, também as partes sociais das sociedades de responsabilidade limitada podem não ter valor nominal (cfr. o art. 182. daquela lei). 67 Destacámos. 68 Convergentemente, ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO / ADELAIDE MENEZES LEITÃO, anotação n.º 9 ao art. 276.º, in ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO (coord.), Código…, p. 804.

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Tendo em conta a imposição do regime do capital social, as acções sem valor nominal

admitidas pela Directiva do Capital Social correspondem à mesma fracção do capital social,

apurada pela proporção do número de acções detidas por determinado accionista no capital

social69.

Na verdade, “[o] que se autoriza é que a fracção correspondente ao capital social não se

exprima formalmente, mas se deduza simplesmente de uma obrigação estatutária de uma

cifra de capital e do número de acções subscritas”70.

Porém, o derradeiro impulso à consagração generalizada da figura das acções sem valor

nominal nos sistemas jurídico-societários de matriz europeia resultou, lateralmente, do

processo de adaptação dos ordenamentos jurídicos nacionais à terceira fase da União

Económica e Monetária71.

Nesse contexto, a Alemanha, a Áustria, a França, a Itália e Portugal promoveram, a nível

interno, debates alargados sobre o impacto do processo de redenominação accionista (por

essa altura, as acções eram, ainda, com valor nominal).

Apontavam-se, à época, os inconvenientes resultantes da obrigatória redenominação do

capital social e do valor nominal das acções72 / 73 como justificação suficiente para a

69 PEDRO ALEMÁN LAÍN, Función del valor nominal en las acciones. Una aproximación desde el Derecho nor-teamericano, Cizur Menor, Aranzdi, 2003, pp. 139-140. 70 PAULO CÂMARA / ANA FILIPA MORAIS ANTUNES, Acções…, p. 35. 71 Cfr. PAULO CÂMARA / ANA FILIPA MORAIS ANTUNES, ob. cit., passim, em especial, pp. 47-54, 56-64 e 81-85. 72 Cfr. o art. 1.º, segundo travessão, do Regulamento (CE) n.º 974/98, do Conselho de 3 de Maio de 1998, relativo à introdução do euro. 73 A operação de redenominação do valor nominal das acções poderia concretizar-se através da alteração do valor nominal pela aplicação da taxa de conversão ao valor nominal accionista (redenominação simples), por um lado, ou mediante a aplicação da taxa de conversão ao valor nominal da acção, acompanhada de um simultâneo ajustamento da cifra do capital social (por aumento ou redução), para que o valor nominal e o montante do capital social correspondessem a números inteiros, por outro lado. Segundo ensinam PAULO

CÂMARA / ANA FILIPA MORAIS ANTUNES, Acções…, p. 83, ambas as opções atrás enunciadas apresentavam inconvenientes: a redenominação simples poderia conduzir a que o valor nominal e a cifra do capital social não fossem números inteiros, o que não se afigurava prático; a redenominação acompanhada do ajustamento do montante do capital social obrigaria à prática dos actos societários necessários à sua implementação.

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consagração da possibilidade de emitir acções sem valor nominal74, de resto já permitida

pela Directiva do Capital Social.

Assim, o legislador alemão, através da Gesetz über die Zulassung von Stückaktien, de 25

de Março de 1998, que alterou o § 8 da Aktiengesetz, possibilitou às Aktiengesellschaften

(sociedades por acções) a emissão de acções com valor nominal (Nennbertragsaktien) e de

acções sem valor nominal ou acções-parcela (Stückaktien).

Diferentemente do que sucede com as actions de quotité, as Stückaktien não traduzem,

prima facie, uma percentagem de participação no capital social, caracterizando-se, antes,

pela ausência de uma associação directa e formal a uma fracção do capital social.

Com efeito, no sistema das Stückaktien, a posição de cada accionista na sociedade é

determinada pela quantidade de acções de que é titular. Ou seja, as Stückaktien são

consideradas per se.

Em todo o caso, saliente-se que o Direito alemão também se encontra balizado pela

Directiva do Capital Social e, consequentemente, o estabelecimento da admissibilidade da

emissão das Stückaktien não implicou o sacrifício do regime do capital social, o qual, apesar

de adaptado, se manteve, no essencial, intocado.

Nesta conformidade, as Nennbertragsaktien e as Stückaktien representam idênticas

fracções do capital social, assentando a principal diferença entre elas no modo de

determinação da fracção de capital social representada.

A fracção do capital social representada em cada Nennbertragstaktie corresponde ao

valor nominal, previsto nos estatutos da sociedade, enquanto que o montante de capital

representado por uma Stückaktie é apurado pelo quociente entre a cifra do capital social e

o número de acções correspondentemente emitidas (cfr. o § 8, 4, da Aktiengesetz) 75.

74 Cfr. a Comunicação da Comissão Europeia, de 3 de Julho de 1997, The impact of the introduction of the Euro on capital markets, passim, em especial pp. 7 e 21-25, disponível para consulta no portal oficial da União Europeia, em http://ec.europa.eu. 75 Assim, PAULO DE TARSO DOMINGUES, Traços essenciais…, pp. 109-110. Cfr. o § 8, 4, da Aktiengesetz.

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Este regime é, em tudo, similar ao vigente no Direito austríaco, que, aliás, procurou

inspiração no sistema alemão.

Com efeito, o § 8 da Aktiengesetz austríaca, na redacção conferida pelo Artikel IV da 1.

Euro-Justiz-Begleitgesetz, de 14 de Agosto de 1998, possibilitou às Aktiengesellschaften a

emissão de Nennbertragsaktien ou de Stückaktien, num esquema semelhante ao germânico.

Por sua vez, em França, por via de uma modificação ao art. 268. da Loi n.º 66-573, de 24

juillet 1966, sur les sociétés commerciales, operada pelo art. 17. da Loi n.º 98-546, sur

diverses dispositions d’ordre économique et financier, de 2 juillet 1998, eliminou-se a

obrigatoriedade de o valor nominal das acções constar dos estatutos76.

Esta solução, presentemente vertida no art. 228-8 do Code de Commerce, assemelha-se

à vigente noutros ordenamentos, maxime nos Direitos belga e luxemburguês.

Assim, no sistema jurídico-societário francês, as acções sem valor nominal representam

uma quota-parte do capital social (actions de quotité), computada pela proporção do

número de acções detidas por determinado accionista no montante do capital social.

Finalmente, a consagração das acções sem valor nominal, no Direito italiano, teve lugar

em moldes idênticos aos do Direito francês, traduzindo-se na supressão da obrigatoriedade

da menção do valor nominal accionista nos estatutos, estabelecida no art. 2346, comma 1.º,

do Codice Civile, delineada no art. 384 do Decreto legislativo di 17 gennaio 2003, n.º 6 –

riforma organica della disciplina delle società di capitali e società cooperative, in attuazione

della lege di 3 ottobre 2001, n.º 366.

Na disciplina societária italiana, as acções sem valor nominal (azioni senza indicazione

del valore nominale) são representativas de idênticas fracções do capital social, como se

retira do estatuído no art. 2348 do Codice Civile, sendo o montante de capital social

representado em cada acção apurado pelo quociente entre a cifra do capital social e o

76 Consequentemente, eliminou-se o art. 434., n.º 1), da Loi n.º 66-537, que instituía a emissão e negociação de acções sem valor nominal como tipo jurídico-penal.

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número total de acções correspondentemente emitidas (cfr. o art. 2346, comma 3.º, do

Codice Civile).

Como se pôde constatar, em todos os sistemas jurídicos analisados, cada acção sem

valor nominal representa uma fracção do capital social – calculada pela sua proporção no

montante do capital social – independentemente de se encontrar directa e formalmente

associada à acção (acção-quota) ou não (acção-parcela).

Como refere alguma doutrina, a técnica das acções sem valor nominal dos sistemas

jurídico-societários de matriz europeia assenta na substituição do valor nominal por um

valor percentual ou contabilístico (na terminologia adoptada nos arts. 8.º e 9.º da Directiva

do Capital Social).

Efectivamente, dado que o art. 2.º. al. c), da Directiva do Capital Social impõe um dever

de mencionar o capital social nos estatutos da sociedade, toda a acção “sem valor nominal”

tem, na prática, um valor nominal, não expressamente determinado nos estatutos ou na

respectiva forma de representação, mas apurado por meio da proporção entre o montante

do capital social e o número de acções emitidas77.

Em boa verdade, trata-se de um valor nominal não expresso78, determinável, a todo o

tempo, por meio de uma operação aritmética simples79.

Por este motivo, é frequente apelidar as acções sem valor nominal admitidas pela

Directiva do Capital Social – acções-quota e acções-parcela – de acções sem valor nominal

impróprias (unechte nennwertlose Aktien).

A esta luz, a terminologia mais adequada parece ser a italiana: azione senza indicazione

del valore nominale80.

77 ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO / ADELAIDE MENEZES LEITÃO, anotação n.º 9 ao art. 276.º, in ANTÓNIO

MENEZES CORDEIRO (coord.), Código…, p. 805. 78 PAULO CÂMARA / ANA FILIPA MORAIS ANTUNES, Acções..., p. 59. 79 Vide KARSTEN SCHMIDT, “La reforma alemana de la sociedad de responsabilidad limitada: también una re-forma de Derecho concursal”, Revista de Derecho Concursal y Paraconcursal, n.º 10, 2009, p. 28. 80 Segundo MARCO SAVERIO SPOLIDORIO, “Capitale sociale, valore nominale delle azioni e delle quote e transizione all’Euro”, Rivista delle Società, ano 44, fascículo 2.º-3.º, Março-Junho de 1999, p. 356, nt. 16, os

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A construção dos sistemas jurídico-societários europeus é diametralmente oposta à

desenvolvida nos Estados Unidos da América.

Como é sabido, também no ordenamento jurídico norte-americano foram introduzidas

as acções sem valor nominal. Foram-no, porém, em moldes substancialmente diferentes

dos europeus.

Nos Estados Unidos da América, a emissão de acções sem valor nominal foi admitida

pela via jurisprudencial.

Com efeito, no caso Handley v. Stutz81, o United States Supreme Court entendeu que a

emissão de acções por um valor inferior ao do respectivo valor nominal – desconsiderando-

o, portanto – seria lícita quando fundada em considerações de racionalidade económica

(business judgement).

A partir da jurisprudência formada neste caso, iniciaram-se movimentos no sentido da

consagração das acções sem valor nominal, as quais foram admitidas, primeiro, na section §

12 da New York Stock Corporation Law, de 1912, que vigorava, unicamente, no Estado de

Nova Iorque, tendo sido, posteriormente, acolhidas em todos os estados federados norte-

americanos, por via da adopção do MBCA como parte da respectiva legislação estadual

(entretanto, substituído em vinte e dois estados pelo RMBCA)82.

Nos termos do disposto na section § 2.02, (b), (iv), do RMBCA, às acções (shares) pode

ser atribuído, nos estatutos, um valor nominal (par value).

Assim, conclui-se que, por princípio, no Direito norte-americano, as acções não têm um

valor nominal, excepto se previsto nos estatutos.

sistemas jurídico-societários de matriz europeia estabelecem, não uma possibilidade de emissão de acções sem valor nominal, mas uma faculdade de o valor nominal das participações accionistas não ser mencionado nos estatutos e nas respectivas formas de representação. 81 Processo n.º 139 U.S. 417 (1891). 82 Notam, no entanto, PAULO CÂMARA / ANA FILIPA MORAIS ANTUNES, Acções…, p. 66, que, não obstante o RMBCA não tenha sido adoptado em todos os estados federados, as acções sem valor nominal são admitidas em todos os Estados Unidos, na medida em que todos eles receberam o MBCA como lei estadual.

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Como regra, diversamente do que sucede nos sistemas jurídico-societários europeus, no

ordenamento jurídico estado-unidense, as acções são no par value shares (ou stock without

par value83)84. Vejamos, então, em que consistem.

É evidente que as no par value shares, sendo acções sem valor nominal, se caracterizam

por não terem um valor nominal85. Para que possamos avançar, importa ter presente a

superação do conceito de capital social, operada no Direito norte-americano.

No quadro dos sistemas jurídico-societários norte-americanos, a rigidez do regime do

capital social e os inconvenientes que lhe estão associados conduziram à emergência de um

sentimento generalizado favorável à sua abolição.

Convirá ter presente que o regime do capital social, pela sua inflexibilidade, dificulta o

financiamento das sociedades comerciais, em especial das cotadas, sem recurso a

operações de crédito (v.g., corporate finance e project finance)86.

Como prova do que se diz será suficiente recordar que o princípio da proibição da

emissão de acções abaixo do par impede que as sociedades anónimas cotadas, cujas acções

estejam a ser negociadas por um valor inferior ao do respectivo valor nominal, consigam

financiar-se mediante um aumento de capital por novas entradas87, já que, dificilmente, os

agentes económicos subscreverão acções por um valor superior ao seu valor de mercado ou

de cotação88 / 89.

Para além disso, a eficiência do regime do capital social é prejudicada pela existência do

valor nominal accionista, em parte pela adopção de condutas inconvenientes, tais como a

83 Na terminologia da section § 151 da Delaware General Corporation Law. Já na terminologia da section § 501 da New York Business Corporation Law, fala-se em shares without par value. 84 Mencionando a abolição da distinção entre par value shares e no par value shares, em virtude da aprovação do RMBCA, PAULO CÂMARA / ANA FILIPA MORAIS ANTUNES, Acções…, p. 67. Não acompanhamos esta leitura, ante a previsão da section § 2.02, (b), (2), (iv), do RMBCA. 85 A tautologia foi, neste momento, necessária. 86 Reenvia-se, de novo, para o estudo de PAULO DE TARSO DOMINGUES, O capital…, pp. 176-178. 87 Cfr., no Direito português, o art. 91.º. 88 Sobre estes conceitos, vide 2.3., supra. 89 Ressalvam-se, é claro, os casos de investimento especulativo.

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sobreavaliação das entradas em espécie90 e a decorrente emissão de acções com um valor

nominal superior ao valor real das entradas subscritas (watered stocks)91.

Finalmente, aponta-se o carácter ilusório do capital social e, bem assim, do valor

nominal das acções, na medida em que, destinando-se o capital social, em primeira linha, a

dotar as sociedades comerciais dos meios necessários ao início da respectiva actividade, se

verifica, quase imediatamente ao acto de constituição, uma assimetria entre a cifra do

capital social e o valor do património social92.

Por estas razões, aliadas ao estabelecimento da possibilidade de emitir acções sem valor

nominal, procedeu-se a uma necessária reformulação do conceito de capital social (legal

capital, share capital ou capital stock), que resultou na sua tripartição, justificada pela

admissibilidade da existência simultânea, numa mesma sociedade, de acções com valor

nominal e de acções sem valor nominal93.

Para a melhor compreensão deste problema, é conveniente não esquecer que, no

Direito norte-americano, o capital social não é indicado nos estatutos da sociedade, dos

quais somente consta o número de acções que a sociedade está autorizada a emitir94.

Deste modo, se uma sociedade anónima emitir apenas acções com valor nominal, o

montante do capital social é apurado segundo o critério clássico, isto é, pela soma do valor

nominal das acções correspondentemente emitidas95.

90 Cfr., sobre a verificação das entradas em espécie, no Direito português, o art. 28.º. 91 FREDERICK DWIGHT, The par value…, pp. 248-249. 92 Vide, a propósito, os comentários às sections § 6.21 e § 6.40 do RMBCA, in AMERICAN BAR ASSOCIATION, Official comment on the Model Business Corporation Act [RMBCA], disponível, para consulta, em http://www.americanbar.org. Cfr., também, embora relativamente à discussão sobre a abolição do regime do capital social no Direito europeu, THE COMPANY LAW SLIM WORKING GROUP, Explanatory memorandum with regard to the recommendations on the simplification of the First and Second Company Law Directives”, 1998, p. 11, disponível, para consulta, em http://ec.europa.eu. 93 Cfr., neste sentido, a section § 151 da Delaware General Corporation Law e a section § 501 da New York Business Corporation Law. 94 Cfr. a section § 6.01 do RMBCA. 95 Cfr. a section § 154 da Delaware General Corporation Law e a section § 506, (a), da New York Business Corporation Law.

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Se, pelo contrário, a sociedade emitir, exclusivamente, acções sem valor nominal, a cifra

do capital social corresponderá à soma dos valores por que as acções foram emitidas

(consideration), ou seja, ao valor das entradas correspectivas, salvo se, nos sessenta dias

posteriores ao termo do prazo de subscrição, o board of directors deliberar a afectação de

parte desse valor à constituição ou reforço de reservas96.

Por sua vez, quando uma sociedade for, simultaneamente, emitente de acções com

valor nominal e de acções sem valor nominal, o capital social equivalerá à cifra computada

pela soma do valor nominal da totalidade de acções com valor nominal

correspondentemente emitidas com os valores por que foram emitidas as acções sem valor

nominal (consideration), excepto se, nos sessenta dias posteriores ao termo do prazo da

subscrição, o board of directors determinar a afectação de uma parte do valor recebido

como consideration à formação de reservas, contanto que, por via dessa afectação, o

montante do capital social não seja inferior à soma do valor nominal da totalidade das

acções com valor nominal emitidas97.

Nas duas últimas hipóteses, fala-se em stated capital, numa alusão à discricionariedade

de que goza o board of directors na determinação do capital social98.

Pese embora tenha permitido a superação de alguns dos referidos inconvenientes

decorrentes do regime do capital social, o sistema do stated capital abriu caminho ao

surgimento de outro inconveniente.

Como é sabido, o valor de emissão (consideration) das no par value shares é, no regime

do stated capital, determinado através de uma deliberação do board of directors da

sociedade emitente, podendo ser inferior ao das acções anteriormente emitidas99.

96 Cfr. a section § 154 da Delaware General Corporation Law e a section § 506, (b), da New York Business Corporation Law. Estas disposições impõem a afectação da consideration recebida como contrapartida pela subscrição de acções com direito ao reembolso prioritário do seu valor em caso de liquidação da sociedade à formação do capital social, até que se realize o montante do privilégio. 97 Cfr. a section § 154 da Delaware General Corporation Law. A referida afectação deverá levar em linha de conta os limites referidos na nt. 96, supra. 98 Assim, PAULO CÂMARA / ANA FILIPA MORAIS ANTUNES, Acções…, pp. 69. Tal é, de resto, a terminologia da section § 506 da New York Business Corporation Law.

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Ora, este quadro facilita o financiamento das sociedades comerciais nos mercados, na

medida em que permite a emissão e a circulação de acções por um valor atractivo aos

investidores e não inflacionado em razão de uma proibição de emissão de acções abaixo do

par100.

Contudo, este regime promove a diluição das participações dos primitivos accionistas,

na medida em que, por força do princípio de que as acções representam idênticas fracções

do capital social (entenda-se, stated capital), os novos accionistas serão titulares dos

mesmos direitos que aqueles, ainda que, pelas acções que subscreveram, tenham pago uma

importância inferior ao preço pago pelos anteriores accionistas101.

Adicionalmente, notar-se-á que se, em dada emissão, o valor de emissão for

substancialmente inferior ao de anteriores emissões, fica possibilitada a subscrição de uma

maior quantidade de acções, o que pode, inclusivamente, provocar uma alteração de

controlo na sociedade emitente102.

Por esta razão, associada aos inconvenientes do regime do capital social, o

ordenamento jurídico norte-americano avançou em direcção à abolição do conceito e do

regime do capital social. Tanto do legal capital, como do stated capital103.

Actualmente, e porque a garantia dos credores é o património social, as acções (com ou

sem valor nominal) são representativas de idênticas fracções do património da sociedade

emitente104 / 105.

99 Cfr. a section § 153, (b), da Delaware General Corporation Law e a section § 504, (d), da New York Business Corporation Law. Cfr., também, a section § 6.21, (c), do RMBCA. 100 JAMES D. COX / THOMAS LEE HAZEN, Corporations, Nova Iorque, Aspen, 2003, p. 489. 101 Assim, PAULO DE TARSO DOMINGUES, O capital…, pp. 186-187. 102 Neste sentido, vide o comentário à section § 6.21 do RMBCA, in AMERICAN BAR ASSOCIATION, Official comment…, 6-23. 103 O RMBCA não contém qualquer referência ao capital social. 104 Convergentemente, PAULO DE TARSO DOMINGUES, Variações…, pp. 108 e ss.. 105 E o mesmo se diga quanto às acções com valor nominal (par value shares), permitidas pela section § 2.02, (b), (2), (iv), do RMBCA. O valor nominal atribuído a estas acções – que, segundo PAULO CÂMARA / ANA

FILIPA MORAIS ANTUNES, Acções…, pp. 70-71, é empregado como sinónimo de par value, apenas por comodidade linguística – mais não é do que um preço de subscrição de acções, previamente determinado nos estatutos e que não tem qualquer relação com o conceito de capital social.

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Deste modo, dir-se-á que as no par value shares norte-americanas – também chamadas

true no par value shares ou echte nennwertlose Aktien106 – correspondem às participações

sociais representativas da mesma fracção do património da sociedade que as emita107.

Em face do exposto, e consoante a amplitude da permissão do sistema jurídico em que

se enquadrem, por acções sem valor nominal deve entender-se: ou as participações sociais,

representativas de idênticas fracções do capital social, que se caracterizam por não

apresentarem uma ligação a qualquer valor, formalmente definido nos estatutos ou na

respectiva forma de representação (acções sem valor nominal impróprias), por um lado, ou

as participações accionistas caracterizadas pela inexistência de uma associação a qualquer

valor, formalmente estabelecido nos estatutos ou na respectiva forma de representação

(acções sem valor nominal em sentido próprio), por outro.

3. Enquadramento do Decreto-Lei n.º 49/2010, de 19 de Maio

A consagração, no Direito das sociedades comerciais português, da possibilidade de

emitir acções sem valor nominal beneficiou não só dos inúmeros contributos doutrinários –

nacionais e estrangeiros – sobre o tema, como, também, da experiência jurídica (nalguns

casos, bastante consolidada) de outros ordenamentos.

Entre nós, a discussão em torno da admissibilidade das acções sem valor nominal

remonta ao processo de adaptação do ordenamento jurídico português à terceira fase da

União Económica e Monetária.

106 ADOLPH BERLE, “Problems of non-par stock”, Columbia Law Review, vol. 25, 1925, pp. 44-45. 107 Expressamente neste sentido, PAULO OLAVO CUNHA, Direito das sociedades…, pp. 357. A esta conclusão somos conduzidos, ainda, pela circunstância de, no Direito norte-americano, serem admitidas as chamadas tracking stocks, que se caracterizam por representarem fracções da parte do património social afecto a determi-nada área de negócio. Sobre o tema, vide, na literatura estrangeira, GIUSEPPE B. PORTALE, “Dal capitale «assicurato» alle «tracking stocks»”, Rivista delle Società, ano 47, fascículo 1, Janeiro a Fevereiro de 2002, p. 162 e ss., e SANDRA THIEL, Spartenaktien für Deutsche Aktiengesellschaften. Übernahme des US-Amerikanischen Tracking Stock-Modells in Europäischen Rechtsordnungen, Colónia: Carl Heymanns, 2001 e, entre nós, FÁTIMA GOMES, “As «tracking stocks» como categoria de acções e a sua compatibilidade com o ordenamento jurídico português”, Direito das Sociedades em Revista, ano 2, vol. IV, Coimbra, Almedina, 2010, pp. 76-113.

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Aproveitando os resultados proporcionados pela investigação anterior108, importa aqui

lembrar, apenas, que, entre nós, as recomendações da Federação Bancária da União

Europeia109 e da Federação Europeia das Bolsas de Valores110, no sentido da consagração

das acções sem valor nominal, mereceram o apoio de diversos quadrantes da sociedade

portuguesa111 – v.g., do Banco de Portugal, da CMVM, da denominada Comissão Euro e do

Ministério das Finanças, a um tempo, e da doutrina112, a outro.

Não obstante, à época, a opção do legislador nacional – à semelhança do que sucedeu

em Espanha113 – foi a da não introdução das acções sem valor nominal114.

O certo é que, em 2010 – mais de uma década volvida sobre a anterior discussão –, por

meio das alterações ao CSC promovidas pelo Decreto-Lei n.º 49/2010, de 19 de Maio, a

possibilidade de emissão de acções sem valor nominal foi, finalmente, estabelecida pelo

legislador português.

Indica-se, no oitavo parágrafo do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 49/2010, de 19 de Maio,

que se considerou “oportuno permitir em termos gerais a emissão de acções sem valor

nominal, conferindo carácter genérico à solução que, excepcionalmente, e por razões

conjunturais havia sido consagrada no Decreto-Lei n.º 64/2009, de 20 de Março”.

Dito de outro modo: o antecedente legislativo próximo do Decreto-Lei n.º 49/2010, de

19 de Maio, é o Decreto-Lei n.º 64/2009, de 20 de Março115.

108 Cfr. 2.4., supra. 109 Cfr. FEDERAÇÃO BANCÁRIA DA UNIÃO EUROPEIA, Redenomination and other harmonisation issues in the changeover to EMU, 1997, recomendação n.º 7. 110 Cfr. FEDERAÇÃO EUROPEIA DAS BOLSAS DE VALORES, The transition to the Euro: The views of the Federa-tion. Trading, settlement and the redenomination of securities, 1997, pp. 3-4 e 9-12. 111 Assim, PAULO CÂMARA / ANA FILIPA MORAIS ANTUNES, Acções…, pp. 81-85, em especial, p. 84. 112 Cfr., por todos, PAULO CÂMARA, O Euro e a reforma do Código das Sociedades Comerciais, Lisboa, CMVM, 1997. 113 Cfr. os arts. 47, n.os 1 e 2, e 49, n.º 1, da Ley de Sociedades Anónimas espanhola (Ley 1564/1989). 114 A opção legislativa ter-se-á devido a razões de índole cultural, segundo noticiado no jornal Público, de 28 de Julho de 1998, p. 32, apud PAULO CÂMARA / ANA FILIPA MORAIS ANTUNES, Acções…, p. 84, nt. 138. 115 Vide PAULO CÂMARA / ANA FILIPA MORAIS ANTUNES, Acções…, p. 84., e ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO / ADELAIDE MENEZES LEITÃO, anotação n.º 7 ao art. 276.º, in ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Código…, p. 803.

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O Decreto-Lei n.º 64/2009, de 20 de Março, tem como pano de fundo a profunda crise

financeira e económica mundial que se iniciou em 2007 e cujos efeitos depressivos na

economia são sobejamente conhecidos116.

A difícil conjuntura económica vivida conduziu a uma retracção dos mercados e do

consumo, a qual, por sua vez, se traduziu no incremento de situações de subcapitalização117

de várias sociedades comerciais portuguesas – incluindo algumas das sociedades de maior

envergadura em Portugal118 –, que as mesmas procuraram, sem sucesso, solucionar pelos

meios tradicionais, nomeadamente o recurso ao crédito (v.g., através de mútuos e de

esquemas de financiamento com um perfil mais sofisticado, como a corporation finance e o

project finance)119.

Dizemos sem sucesso porque um dos mercados mais afectados pela crise financeira

global foi, precisamente, o da concessão de crédito. Às sociedades subcapitalizadas restava,

pois, como hipótese de financiamento, o recurso ao aumento de capital.

Ora, a realização de operações de aumento de capital deparava-se, no Direito pregresso,

com significativos obstáculos, advindos da consagração do princípio da proibição da emissão

de acções por um valor inferior ao respectivo valor nominal, acolhida no art. 298.º, n.º 1 (na

sua redacção anterior à introduzida pelo Decreto-Lei n.º 49/2010, de 19 de Maio).

Com efeito, este princípio afigurava-se especialmente gravoso para as sociedades

anónimas emitentes de valores mobiliários admitidos à negociação em mercado

regulamentado, cujas acções estivessem a ser transaccionadas a um preço

(substancialmente) inferior ao do respectivo valor nominal, na medida em que dificilmente

116 Para uma explicação sobre a origem e os efeitos da crise financeira que atravessamos, vide ANTÓNIO

MENEZES CORDEIRO, “A crise planetária de 2007/2009 e o governo das sociedades”, Revista de Direito das Sociedades, ano I, n.º 1, Coimbra, Almedina, 2009, pp. 13-25. 117 Ou seja, a “insuficiência de capitais ou de meios financeiros para a prossecução de um determinado objectivo, que pode consistir na normal realização da actividade social”, na feliz expressão de PAULO OLAVO

CUNHA, Direito das sociedades…, pp. 468. 118 PAULO DE TARSO DOMINGUES, O capital…, pp. 178-179. 119 A vantagem do recurso ao crédito por sociedades comerciais emerge da circunstância de a contracção de mútuos não implicar variações do capital social e, consequentemente, todo o procedimento societário relacionado (v.g., alteração do contrato de sociedade, seu registo, emissão de novos títulos, etc.).

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conseguiriam financiar-se por meio de um aumento de capital por novas entradas120, já que,

em princípio121, os investidores não aceitariam subscrever acções por um valor superior ao

seu valor de mercado ou de cotação122 / 123.

No quadro legal então vigente, a única forma de uma sociedade anónima (e, em

particular, uma sociedade cotada) conseguir financiar-se através de um aumento de capital

por novas entradas assentaria na realização da denominada “operação harmónio”, isto é, de

um aumento do respectivo capital social precedido da sua redução para um montante que

tornasse a subscrição de acções por um valor igual ou superior ao seu valor nominal

apelativa para os potenciais investidores.

Só assim se poderia, dentro do sistema em vigor à época, superar as dificuldades

causadas pelo princípio da proibição de emissões abaixo do par.

Todavia, mercê da conjuntura depressiva decorrente da crise financeira e económica

mundial, algumas sociedades cotadas sofreram avultadas perdas no mercado de capitais, o

que conduziu a uma depreciação do valor de cotação das suas acções para um patamar

inferior ao do respectivo valor nominal, desacompanhada da correspondente diminuição do

seu valor contabilístico, que, em regra, como refere alguma doutrina, continuou superior ao

valor nominal dessas participações124.

Ora, nestas circunstâncias, tais sociedades não poderiam promover a redução do

respectivo capital social, por os prejuízos decorrentes da desvalorização bolsista das suas

acções não integrarem o conceito de prejuízos susceptíveis de cobertura mediante a

redução do capital social125.

120 Cfr. o art. 91.º. 121 Ressalva-se, naturalmente, o investimento especulativo. 122 Sobre estes conceitos, cfr. 2.3., supra. 123 Neste sentido, vide PAULO DE TARSO DOMINGUES, O capital…, pp. 176-177. 124 Assim, PAULO OLAVO CUNHA, Aspectos críticos…, p. 141. 125 Sendo certo que, nesse contexto, também não poderia ter lugar a redução do capital social para libertação de excesso de capital ou para uma finalidade especial. Cfr. o art. 94.º, n.º 1, al. a).

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Foi neste contexto que surgiu o Decreto-Lei n.º 64/2009, de 20 de Março, que

pretendeu facilitar a recapitalização das sociedades anónimas, em particular das cotadas,

através da flexibilização da regra da proibição da emissão de acções abaixo do par126.

Note-se que a opção legislativa então tomada foi diversa da seguida, por exemplo, no

Decreto-Lei n.º 49/2010, de 19 de Maio127, uma vez que assentou na introdução de

mecanismos extraordinários em legislação avulsa e não em termos centrais na disciplina

societária nacional.

A referida opção afigura-se-nos justificada, não só pelo carácter extraordinário dos

instrumentos jurídicos estabelecidos no Decreto-Lei n.º 64/2009, de 20 de Março, mas,

também, pela desejada transitoriedade deste regime.

Efectivamente, de acordo com o seu art. 5.º, este diploma legal só seria aplicável às

operações por ele reguladas que se realizassem até 31 de Dezembro de 2009 (o que não é o

mesmo que dizer que o diploma vigoraria, apenas, até essa data)128.

Vejamos, então, quais foram os mecanismos definidos neste decreto-lei.

O Decreto-Lei n.º 64/2009, de 20 de Março, tinha por objecto o estabelecimento de

mecanismos extraordinários de diminuição do valor nominal das acções das sociedades

anónimas129.

Assim, e como primeiro elemento a guardar deste regime, dir-se-á que o seu âmbito de

aplicação se circunscrevia às sociedades anónimas.

A opção pela concretização deste regime em diploma avulso, a sua transitoriedade e o

próprio elemento interpretativo literal conduzem à conclusão de que não operava a

126 Cfr. o segundo e o terceiro parágrafos (primeiro período) do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 64/2009, de 20 de Março. 127 Cfr. 5., infra. 128 Neste sentido, PAULO CÂMARA, “O Decreto-Lei n.º 64/2009: Diminuição extraordinária do valor nominal das acções”, Revista de Direito das Sociedades, Coimbra, Almedina, ano I, n.º 2, 2009, p. 337, e PAULO DE

TARSO DOMINGUES, O capital…, pp. 182-183. 129 Cfr. o art. 1.º desse diploma.

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remissão empreendida pelo art. 478.º, que determina a aplicação do regime das sociedades

anónimas às sociedades em comandita por acções130 / 131.

Importa, igualmente, referir que o que se permitia, no diploma em análise, era uma

diminuição extraordinária do valor nominal das acções das sociedades anónimas e não a

consagração, com carácter geral, das acções sem valor nominal.

Tratou-se, como se afirmou no quarto parágrafo do preâmbulo desse decreto-lei, de

uma opção consciente do legislador – “uma flexibilização […] introduzida no ordenamento

jurídico de forma prudente e limitada, à luz do enquadramento constante do Código das

Sociedades Comerciais, não se optando ainda pela consagração da possibilidade de acções

sem valor nominal, já vigente noutros ordenamentos jurídicos”132 – e não de uma

desconsideração dos elementos doutrinários e de Direito comparado disponíveis133.

O primeiro desses mecanismos extraordinários encontrava-se previsto no art. 2.º do

Decreto-Lei n.º 64/2009, de 20 de Março, traduzindo-se na redução do capital social por

diminuição do valor nominal das acções das sociedades anónimas (n.º 1)134.

Saliente-se que, no quadro deste mecanismo, à semelhança do que sucedia com o

mecanismo previsto no art. 3.º, a diminuição do valor nominal das acções tinha carácter

meramente instrumental da redução do capital social.

A doutrina divergiu a propósito do âmbito de aplicação desta norma, havendo autores

que consideram que a mesma se aplicava a todas as sociedades anónimas, sem excepção135,

130 Em sentido crítico da não aplicação daquele regime às sociedades por quotas, cfr. PAULO DE TARSO

DOMINGUES, O capital…, p. 182, para quem a opção legislativa viola o princípio da igualdade. 131 Solução, portanto, inversa à vertida no Decreto-Lei n.º 49/2010, de 19 de Maio. Cfr. 5.1. e 5.2, infra. 132 Nosso destaque. 133 O legislador terá considerado, à época, que a introdução da possibilidade de emitir acções sem valor nominal não seria a melhor forma de lidar com aquele problema. Assim, PAULO DE TARSO DOMINGUES, O capital…, p. 183, nt. 40. 134 Possibilidade que já era expressamente acolhida no art. 94.º, n.º 1, al. b), segundo lembram PAULO DE TARSO

DOMINGUES, ob. cit., pp. 191, e PAULO CÂMARA / ANA FILIPA MORAIS ANTUNES, Acções…, p. 88. 135 PAULO CÂMARA / ANA FILIPA MORAIS ANTUNES, ob. cit., p. 87.

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enquanto que outros entendem que só era aplicável às sociedades anónimas que não

fossem cotadas, já que, para estas, a lei havia previsto outro mecanismo (cfr. o art. 3.º)136.

Pela nossa parte, aderimos ao primeiro entendimento, porquanto a letra da lei indicia a

sua aplicabilidade a qualquer sociedade anónima, independentemente da sua natureza,

dimensão ou modelo de governação137.

O mecanismo ora analisado apresentava três especificidades que importa reter.

Em primeiro lugar, o recurso a esta possibilidade dependia da afectação do montante

correspondente à redução do capital a uma reserva especial, sujeita ao regime do capital

social, relativamente às garantias dos credores sociais (cfr. o art. 2.º, n.º 1, do referido

decreto-lei).

Tal operação não consubstanciava, portanto, uma diminuição das garantias dos credores,

na medida em que o montante de capital reduzido continuaria a integrar o património

social. É, contudo, importante notar que, ao contrário do que se estabeleceu no art. 3.º, n.º

1, desse diploma, não se previu qualquer destino para a reserva constituída nos termos do

art. 2.º, a qual se poderia, aliás, manter indefinidamente138.

Em segundo lugar, o n.º 2 do art. 2.º do Decreto-Lei n.º 64/2009, de 20 de Março,

determinava a inaplicabilidade do art. 95.º, n.os 1 e 3, à redução do capital social operada

nos termos daquele preceito.

Deste modo, seria sempre lícito deliberar a redução do capital social,

independentemente da situação patrimonial da sociedade.

Por último, o mesmo art. 2.º, n.º 2, daquele diploma eliminava a obrigatoriedade de a

redução do capital social por diminuição do valor nominal das acções, por si possibilitada,

respeitar as exigências de capital mínimo para o tipo sociedade anónima, previstas no art.

136 PAULO DE TARSO DOMINGUES, O capital…, pp. 187 e ss.. 137 E semelhante leitura resulta inequivocamente do emprego do adjectivo “qualquer”. 138 Como certeiramente salienta PAULO DE TARSO DOMINGUES, O capital…, pp. 188 e ss..

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276.º, n.º 3, do CSC, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 343/98, de 6 de

Novembro, e anterior à conferida pelo Decreto-Lei n.º 49/2010, de 19 de Maio139.

Passemos, agora, à análise do segundo mecanismo extraordinário de redução do capital

social acolhido no Decreto-Lei n.º 64/2009, de 20 de Março.

De acordo com o disposto no art. 3.º, n.º 1, do mencionado decreto-lei, as sociedades

cotadas poderiam deliberar a diminuição do valor nominal das respectivas acções,

desacompanhada da correspondente redução do capital social, se, cumulativamente: (i) a

sua situação patrimonial líquida – comprovada por balanço certificado pelo seu revisor

oficial de contas, reportado a data não anterior a seis meses contados sobre a data da

deliberação de diminuição do valor nominal accionista – fosse superior ao capital social (cfr.

a al. a)); e (ii) fosse simultaneamente deliberado, ou prévia ou simultaneamente autorizado,

um aumento de capital por novas entradas em dinheiro, no todo ou em parte, sob pena de

ineficácia da deliberação de diminuição do valor nominal das acções sem redução do capital

social (cfr. a al. b)).

O regime estabelecido por este preceito – exclusivamente aplicável às sociedades

anónimas cotadas – é completado pelas disposições seguintes.

Segundo o n.º 2 do art. 3.º do decreto-lei sub iudice, o montante da diminuição do valor

nominal das acções deveria “ser estabelecido tendo em conta o interesse social e a sua

adequação à realização do aumento de capital de acordo com as circunstâncias do

mercado”.

Da conjugação desta norma com a do art. 3.º, n.º 1, al. b), do aludido diploma resulta

que a diminuição extraordinária do valor nominal das acções se apresentava como mero

instrumento de um futuro aumento de capital140.

A determinação do montante da diminuição do valor nominal accionista deveria, ainda,

ser objecto de uma declaração de não oposição da CMVM (cfr. o art. 3.º, n.º 3), que a

139 PAULO DE TARSO DOMINGUES, O capital…, p. 192. 140 PAULO CÂMARA, O Decreto-Lei…, pp. 338, fala, a propósito, em “operações harmónio” camufladas.

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doutrina foi interpretando no sentido de só dever ser emitida no caso de conformidade da

diminuição do valor nominal accionista com o interesse social e a sua adequação à

realização do aumento de capital com as circunstâncias do mercado141.

Todavia, o aspecto mais relevante do regime que se vem analisando142 reside na

circunstância de ele promover uma subversão do conceito de capital social – à época, a cifra

correspondente à soma do valor nominal da totalidade das acções emitidas –, fundamental

na disciplina societária portuguesa, através dos n.os 4 e 5 do art. 3.º do Decreto-Lei n.º

64/2009, de 20 de Março, segundo os quais, após a redução do capital social nos termos

permitidos por este mecanismo, o capital social “passa a ser constituído por uma

componente representada pelo valor nominal das acções e por uma componente

correspondente ao diferencial resultante da diminuição do valor nominal”, que “apenas

pode ser utilizada para aumento do valor nominal das acções ou para emissão de novas

acções a atribuir aos accionistas, não podendo ser utilizada para o aumento de capital” de

que a redução de capital é mero instrumento.

Tendo presente que, durante a vigência do mencionado diploma, o capital social

correspondia à soma do valor nominal de todas as acções correspondentemente emitidas

(cfr. os arts. 272.º, al. a), e 276.º, n.º 1, na redacção anterior à entrada em vigor do Decreto-

Lei n.º 49/2010, de 19 de Maio), alguma doutrina considerou que a possibilidade de

diminuir o valor nominal das acções sem reduzir o capital social, estabelecida no art. 3.º, n.º

1, do Decreto-Lei n.º 64/2009, de 20 de Março, e a noção de capital social resultante dos art.

3.º, n.os 4 e 5, do mesmo diploma representavam um “entorse a um instituto societário

central”143.

Do regime analisado, importará reter que, contrariamente ao que o legislador parece

indicar no oitavo parágrafo do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 49/2010, de 19 de Maio, o

141 PAULO CÂMARA, ob. cit., pp. 335-336. 142 É, também, importante, enquanto instrumento de protecção dos accionistas das sociedades cotadas que tenham lançado mão do mecanismo aludido e da sua posição relativa, o art. 3.º, n.º 7, do Decreto-Lei n.º 64/2009, de 20 de Março, que interdita a eliminação ou limitação dos direitos de preferência dos primitivos accionistas das sociedades cotadas na subscrição de acções. 143 PAULO CÂMARA, O Decreto-Lei…, p. 336.

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Decreto-Lei n.º 64/2009, de 20 de Março, não consagrou (nem sequer com carácter

limitado), a possibilidade de emitir acções sem valor nominal, tendo sido, no entanto, um

inquestionável passo em direcção à superação do conceito de valor nominal, e, portanto,

decisivo para a introdução das acções sem valor nominal no ordenamento jurídico

português.

Poder-se-ia, inclusivamente, pensar que o Decreto-Lei n.º 64/2009, de 20 de Março,

pela sua transitoriedade, terá sido um teste ao estabelecimento da possibilidade de emissão

de acções sem valor nominal.

4. Finalidades do Decreto-Lei n.º 49/2010, de 19 de Maio

No preâmbulo do Decreto-Lei n.º 49/2010, de 19 de Maio, o legislador apresentou as

razões justificativas da consagração, no ordenamento jurídico nacional, das acções sem

valor nominal.

Deste modo e em primeiro lugar, com a introdução da possibilidade de emissão de

acções sem valor nominal procurou expandir-se as possibilidades de financiamento das

sociedades comerciais portuguesas, nomeadamente através da realização de operações de

aumento de capital por novas entradas, que, em virtude da obrigatoriedade de atribuição

de um valor nominal às acções e do princípio da proibição da emissão abaixo do par144,

estariam interditas, salvo se se recorresse à “operação harmónio” – de resto, nem sempre

permitida no Direito pregresso145.

Em segundo lugar, com o estabelecimento das acções sem valor nominal, pretendeu

alinhar-se o sistema jurídico-societário português com os sistemas de outros países, que já

haviam procedido ao reconhecimento legislativo da figura das acções sem valor nominal146,

144 Cfr. o art. 298.º, n.º 1, na sua redacção anterior à introduzida pelo Decreto-Lei n.º 49/2010, de 19 de Maio. 145 Cfr. o sexto e o sétimo parágrafos do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 49/2010, de 19 de Maio. 146 Cfr. 2.4., supra.

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de modo a remover as desvantagens competitivas susceptíveis de afectar as empresas

nacionais em relação a empresas estrangeiras147.

Em terceiro lugar, e em sintonia com a primeira finalidade apontada, o legislador visou,

com a consagração da admissibilidade da emissão de acções sem valor nominal, simplificar

os actos societários, permitindo evitar os procedimentos e custos inerentes à realização de

uma “operação harmónio”148.

Por último, a introdução das acções sem valor nominal serviu um propósito de aumentar

a transparência na vida societária, implicando o reconhecimento, pelo legislador, de que o

valor nominal não constitui um instrumento idóneo de avaliação do valor das participações

accionistas e da situação patrimonial da sociedade149 / 150.

5. O regime português das acções sem valor nominal

5.1. As acções sem valor nominal como “acções-parcela”

O regime das acções sem valor nominal consagrado no CSC é o resultado de alterações

introduzidas neste código pelo art. 2.º do Decreto-Lei n.º 49/2010, de 19 de Maio.

Atentando no referido decreto-lei, facilmente se constata que o legislador não ofereceu

qualquer noção do que sejam as acções sem valor nominal introduzidas na disciplina

societária e mobiliária nacional, e, em particular, se o que aquele diploma vem possibilitar é

a emissão de acções sem valor nominal próprias ou, pelo contrário, de acções sem valor

nominal impróprias (omitindo, a propósito desta última hipótese, se se trata de “acções-

quota” ou de “acções-parcela”).

147 Cfr. o nono parágrafo do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 49/2010, de 19 de Maio. 148 Cfr. o décimo parágrafo do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 49/2010, de 19 de Maio. 149 Cfr. o décimo primeiro parágrafo do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 49/2010, de 19 de Maio. 150 Cfr. THE COMPANY LAW SLIM WORKING GROUP, Explanatory memorandum..., p. 11.

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Fê-lo – rectius, tentou fazê-lo –, contudo, no preâmbulo, onde, no primeiro período do

sexto parágrafo, se lê que o Decreto-Lei n.º 49/2010, de 19 de Maio, “vem permitir no

[D]ireito português acções sem valor nominal, expressas apenas pelo número de acções do

capital da sociedade anónima”151.

Trata-se de uma redacção manifestamente infeliz, não só pela evidente tautologia de

que enferma, mas também por evidenciar um certo desconhecimento do sistema jurídico

societário português152.

Dizer que as acções sem valor nominal são acções expressas apenas pelo número de

acções do capital social é encará-las, exclusivamente, enquanto forma de representação da

participação social – e, na verdade, unicamente como título –, olvidando que elas são, antes

de mais, a própria participação social153.

Depois, notar-se-á que a definição de acções sem valor nominal avançada pelo

legislador, ao partir do entendimento da acção enquanto título, peca por ignorar que só as

acções tituladas se encontram representadas num título154.

Efectivamente, a par destas, existem acções escriturais, cuja forma de representação é

um registo informático em conta aberta em nome do accionista junto de um intermediário

financeiro integrado em sistema centralizado, de um único intermediário financeiro

indicado pelo emitente, ou da própria sociedade emitente 155. Ora, como dissemos, só tem

sentido empregar o termo “acções” para designar a forma de representação cartular156.

Como crítica, registe-se, ainda, que a noção avançada no preâmbulo daquele diploma,

na medida em que considera as acções sem valor nominal como as acções expressas apenas

151 Destacámos. 152 Em sentido concordante, vide PAULO CÂMARA / ANA FILIPA MORAIS ANTUNES, Acções…, p. 14. 153 Cfr. 2.2., supra. 154 Cfr. o art. 46.º, n.º 1, do Cód.VM. 155 Cfr. os arts. 46.º, n.º 1, 61.º e 65.º do Cód.VM. 156 Cfr. 2.2. supra. Pense-se que não é usual falar-se em “acções” enquanto referência ao registo das participações accionistas. Essa alusão cinge-se aos títulos.

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pelo número de acções do capital social da sociedade anónima, é susceptível de gerar

problemas interpretativos onde os não há.

Com efeito, deverá ter-se presente que as alterações que o Decreto-Lei n.º 49/2010, de

19 de Maio, introduziu no CSC incidem, prima facie, sobre a disciplina das sociedades

anónimas. Bastará recordar que os arts. 272.º, 276.º, 277.º, 279.º, 295.º, 298.º, 316.º, 341.º,

342.º e 345.º se inserem, sistematicamente, no título IV do CSC, que tem por epígrafe

“Sociedades Anónimas”157.

Sem prejuízo do que vem de dizer-se, o art. 478.º estende o âmbito de aplicação do

regime das sociedades anónimas às sociedades em comandita por acções, na medida em

que o mesmo se mostre compatível com as normas do capítulo I do título V do CSC, o qual

tem por epígrafe “Sociedades em Comandita”, e, bem assim, com os arts. 479.º e 480.º.

Deste modo, o regime das acções sem valor nominal será, em princípio, aplicável às

sociedades em comandita por acções, porquanto se afigura manifesto que, do mesmo, não

resulta qualquer conflito com o estatuído nos arts. 479.º e 480.º.

Poder-se-ia, eventualmente, pensar que a intenção do legislador havia sido a de

interditar a possibilidade de emitir acções sem valor nominal por sociedades em comandita

por acções.

Contudo, tal hipótese é, a nosso ver, de rejeitar, porquanto do texto legal não é possível

retirar qualquer indicação nesse sentido.

A aparente restrição do regime das acções sem valor nominal às sociedades anónimas,

empreendida no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 49/2010, de 19 de Maio, não poderá deixar

de ser interpretada como um lapso.

E mesmo que assim não se entendesse, sempre se haveria de dizer que, uma vez que os

preâmbulos de actos normativos não têm força de lei – relevando, somente, enquanto

157 As alterações introduzidas aos arts. 22.º, 25.º, 28.º e 92.º, inseridos no título I, cuja epígrafe é “Parte Geral”, visam adaptar determinados preceitos à admissibilidade das acções sem valor nominal.

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elemento interpretativo lógico, formalmente incluído na fonte158 –, o parágrafo sexto do

preâmbulo do Decreto-Lei n.º 49/2010, de 19 de Maio, é insusceptível de, por meio de

interpretação ab-rogante lógica159, determinar a inaplicabilidade da norma do art. 478.º ao

regime das acções sem valor nominal.

Por estes motivos, teria sido preferível que o legislador tivesse observado o brocardo

“omnis defitinio in iure civile periculosa est”.

Em todo o caso, do regime introduzido pelo Decreto-Lei n.º 49/2010, de 19 de Maio,

retira-se, inequivocamente, que as acções sem valor nominal cuja emissão é admissível

entre nós são acções sem valor nominal impróprias.

E a esta conclusão se chega por duas razões.

Em primeiro lugar, a Directiva do Capital Social consagrou o dogma do capital social nos

sistemas jurídico-societários de matriz europeia, pelo que o seu art. 8.º apenas confere aos

Estados-Membros a possibilidade de admitirem, nos respectivos Direitos internos, a

emissão de acções sem valor nominal representativas de idêntica fracção do capital social.

Ora, por força do primado do Direito da União Europeia sobre o Direito interno dos

Estados-Membros da União Europeia, o legislador português, encontrando-se limitado pela

norma do art. 8.º da Directiva do Capital Social, somente poderia estabelecer, no

ordenamento jurídico nacional, a possibilidade de emissão de acções sem valor nominal

impróprias.

Em segundo lugar, porque é este o entendimento que se extrai da leitura do art. 276.º,

n.º 4, que, como decorrência das imposições da Directiva do Capital Social, declara que

“[t]odas as acções devem representar a mesma fracção no capital social”.

158 Assim, JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, O Direito. Introdução e teoria geral., 6.ª reimp. da 13.ª ed. (2005), Coimbra, Almedina, 2011, pp. 408-409. Como recorda este autor, o tipo de elemento interpretativo referido, sendo embora dotado de autoridade – por revelar o pensamento do legislador – não tem, todavia, o mesmo valor do texto legal, por não ter o sentido de determinação (isto é, de pôr Direito), mas apenas o de esclarecer o Direito posto. 159 Sobre o conceito de interpretação ab-rogante lógica e a sua admissibilidade no Direito português, vide JOSÉ

DE OLIVEIRA ASCENSÃO, O Direito…, pp. 430-431.

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Ainda a propósito da noção de acções sem valor nominal avançada pelo legislador, uma

última consideração.

Cumpre esclarecer que as acções sem valor nominal cuja emissão se admite no

ordenamento jurídico português são acções-parcela e não acções-quota160: é esse o sentido

da expressão “acções sem valor nominal, expressas apenas pelo número de acções do

capital”, que o legislador – de novo, tautologicamente – empregou no sexto parágrafo do

preâmbulo do Decreto-Lei n.º 49/2010, de 19 de Maio.

Efectivamente, sem prejuízo de as acções sem valor nominal cuja emissão é admitida no

ordenamento jurídico português representarem a mesma fracção no capital social, inexiste

qualquer disposição legal que determine o estabelecimento de uma associação formal e

directa entre as acções sem valor nominal e as fracções de capital social que representam.

Dizendo de outro modo: as acções sem valor nominal permitidas no Direito societário

nacional não estão formalmente associadas à fracção do capital social representado. Elas

são, em primeira linha, consideradas per se.

Contudo, a fracção de capital social representada em cada acção-parcela é facilmente

apreensível, através do quociente entre a cifra do capital social e o número de acções

correspondentemente emitidas161.

5.2. As acções sem valor nominal como instituto central de Direito societário

Passando, agora, a um exame mais detido das soluções estabelecidas por meio do art.

2.º do Decreto-Lei n.º 49/2010, de 19 de Maio, constatar-se-á que a técnica seguida pelo

legislador nacional na introdução das acções sem valor nominal no ordenamento jurídico

160 Neste sentido, ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO / ADELAIDE MENEZES LEITÃO, anotação n.º 11 ao art. 276.º, in ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO (coord.), Código…, p. 805, e PAULO DE TARSO DOMINGUES, Traços essenciais…, p. 110. 161 Recorde-se, a propósito, que o Decreto-Lei n.º 49/2010, de 19 de Maio, não modificou o art. 9.º, n.º 1, al. g), que continua a exigir que os estatutos indiquem a fracção de capital social detida por cada sócio.

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português assentou na sua inserção sistemática no principal diploma enformador do nosso

Direito das sociedades comerciais, o CSC, e não em legislação extravagante.

Esta opção, que se alinha com as seguidas noutros ordenamentos jurídicos – v.g., na

Bélgica, no Luxemburgo, na Alemanha, na Áustria e em Itália162 –, afigura-se de louvar, uma

vez que a centralidade do regime das acções sem valor nominal no nosso Direito permite

evitar a proliferação de regimes jurídicos diversos, a decorrente complexidade e os

problemas interpretativos a que tal multiplicação pode dar origem163.

Assim, torna-se possível, a partir do que ficou dito, retirar um elemento fundamental na

determinação do regime das acções sem valor nominal: trata-se de um instituto geral de

Direito societário português, que deverá ser atendido, a título subsidiário, na interpretação

de normas jurídicas, maxime contidas em legislação especial.

Por esta via se pode concluir pela enorme amplitude do domínio de aplicação do regime

das acções sem valor nominal admitidas no sistema jurídico-societário nacional.

Com efeito, o regime é aplicável às sociedades anónimas, nos termos do art. 276.º, n.º 1,

e às sociedades em comandita por acções, por força da remissão para o regime das

sociedades anónimas operada pelo art. 478.º. E é justamente pela centralidade do regime

das acções sem valor nominal, assim como pela ausência de uma intervenção sobre o art.

478.º, bem como de uma norma no art. 2.º do Decreto-Lei n.º 49/2010, de 19 de Maio, que

restrinja o âmbito de aplicação da permissão da emissão de acções sem valor nominal às

sociedades anónimas, que se superam as dificuldades que a noção de acções sem valor

nominal avançada no primeiro período do sexto parágrafo do preâmbulo daquele diploma

poderia suscitar164 / 165.

162 Cfr. 2.4, supra. 163 Recorde-se o que dissemos a propósito da definição de acções sem valor nominal constante do primeiro período do sexto parágrafo do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 49/2010, de 19 de Maio. 164 Reconhecendo, expressamente, a possibilidade de emissão de acções sem valor nominal por sociedades em comandita por acções, PAULO CÂMARA / ANA FILIPA MORAIS ANTUNES, Acções…, p. 101. Esta é, de resto, uma solução semelhante à vigente na Bélgica (cfr. o art. 657. do Code des Sociétés), em França (cfr. o art. 226-1, do Code de Commerce) e no Luxemburgo (cfr. o art. 103. da Loi du 10 août 1915, concernant les sociétés commerciales).

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E isto independentemente da envergadura da sociedade, da sua natureza aberta166 ou

fechada, da sua admissão à negociação em mercado regulamentado ou da disseminação do

respectivo capital167.

Ainda relativamente ao âmbito de aplicação das acções sem valor nominal, dir-se-á que

estas não representam uma nova categoria de acções168, mas uma nova modalidade na

determinação da participação accionista e da posição de cada accionista na respectiva

sociedade, aplicável, igualmente, a acções ordinárias e a acções privilegiadas.

5.3. Princípios essenciais do regime das acções sem valor nominal

Vejamos, agora, os princípios e características fundamentais do regime português das

acções sem valor nominal.

Como resulta do art. 276.º, n.º 1, e, lateralmente, de outras disposições, o legislador não

suprimiu as acções com valor nominal, substituindo-as por acções sem valor nominal.

Tal afirmação é demonstrada, a um tempo, pela inclusão das duas modalidades de

acções – com e sem valor nominal – no texto da norma citada e, a outro tempo, pelo

emprego de uma forma verbal do verbo “poder” (“podem”), o que impõe a conclusão de

que a emissão de acções sem valor nominal é uma faculdade atribuída por lei aos

accionistas.

Efectivamente, seguindo de perto as soluções consagradas noutros ordenamentos

jurídicos169 / 170, o legislador nacional reservou à autonomia privada a decisão sobre a

165 É interessante notar que esta solução difere da vertida no art. 1.º do Decreto-Lei n.º 64/2009, de 20 de Março, que restringia a disciplina dos “mecanismos extraordinários” de diminuição do valor nominal das acções introduzida por esse diploma às sociedades anónimas. Cfr. 3., supra. 166 Cfr. o art. 13.º do Cód.VM. 167 Expressamente neste sentido, vide PAULO CÂMARA / ANA FILIPA MORAIS ANTUNES, ob. cit., p. 101. 168 Sobre o conceito de categoria de acções vide PAULO OLAVO CUNHA, Direito das sociedades…, pp. 371 e ss.. 169 Assim na Alemanha (cfr. o § 8, 1, da Aktiengesetz), na Áustria (cfr. o § 8, 1, da Aktiengesetz austríaca), na Bélgica (cfr. o art. 476. do Code des Sociétés), em França (cfr. o art. 228-8 do Code de Commerce), em Itália

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emissão de acções com valor nominal ou de acções sem valor nominal, o que se funda “no

primado da autonomia estatutária [– isto é, da autonomia privada –] e no respeito por

culturas accionistas mais conservadoras”171 / 172.

Relativamente a este aspecto, colocam-se duas questões a que cabe dar resposta.

A primeira consiste em saber qual é, à luz do novo regime, a modalidade paradigmática

das acções: as acções com valor nominal ou as acções sem valor nominal.

A nosso ver, a resposta variará consoante a sociedade tiver sido constituída antes ou

após a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 49/2010, de 19 de Maio.

Na primeira hipótese, a resposta parece-nos ser a de que a modalidade paradigmática

da participação accionista é a acção sem valor nominal, porquanto, até à entrada em vigor

das alterações introduzidas ao CSC pelo Decreto-Lei n.º 49/2010, de 19 de Maio, todas as

acções tinham um valor nominal, que deveria constar expressamente dos estatutos da

sociedade emitente173.

(cfr. o art. 2346 do Codice Civile) e no Luxemburgo (cfr. o art. 26-5 da Loi du 10 août 1915, concernant les sociétés commerciales). 170 Diversamente, na Austrália e no Canadá, as acções são sempre sem valor nominal. Cfr. a section 245-C do Corporations Act australiano, de 2001, e a section C-44 do Canada Business Corporations Act canadiano, de 1985. 171 PAULO CÂMARA / ANA FILIPA MORAIS ANTUNES, Acções…, p. 103. Mais adiante (p. 104), estes autores apresentam este argumento como justificação para a não abolição do valor nominal. 172 Este princípio conhece um importante desvio relativamente às sociedades de investimento mobiliário e às sociedades de investimento imobiliário, dado que as acções representativas do respectivo capital social são, obrigatoriamente, acções sem valor nominal (cfr., quanto às primeiras, o art. 81.º-C do Regime Jurídico dos Organismos de Investimento Colectivo, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 252/2003, de 17 de Outubro, na redacção que lhe foi conferida pelo Decreto-Lei n.º 71/2010, de 18 de Junho, e, no que concerne às segundas, o art. 58.º-C do Regime Jurídico dos Fundos de Investimento Imobiliário, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 60/2002, de 20 de Março, na redacção que lhe foi atribuída pelo Decreto-Lei n.º 71/2010, de 18 de Junho). PAULO CÂMARA /ANA

FILIPA MORAIS ANTUNES, Acções…, p. 122, pronunciam-se contra esta opção do legislador, argumentando que a obrigatoriedade da emissão de acções sem valor nominal só se justificaria quanto às sociedades de investimento mobiliário de capital variável (SICAV) e às sociedades de investimento imobiliário de capital variável (SICAVI), na medida em que nestas sociedades a admissibilidade da emissão de acções com valor nominal não teria sentido, atenta a natural variabilidade do seu capital social. Em relação às sociedades de investimento mobiliário de capital fixo (SICAF) e às sociedades de investimento imobiliário de capital fixo (SICAFI), consideram aqueles autores que deveria valer o regime societário geral. 173 Cfr. o art. 272.º, al. a), na redacção anterior à introduzida pelo Decreto-Lei n.º 49/2010, de 19 de Maio.

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A esta luz, e para as sociedades anónimas e em comandita por acções constituídas

anteriormente ao princípio da vigência desse decreto-lei, a emissão de acções sem valor

nominal dependerá de uma prévia alteração dos estatutos, nos termos gerais174 / 175.

Dir-se-á, assim, que, relativamente às sociedades constituídas anteriormente à entrada

em vigor do Decreto-Lei n.º 49/2010, de 19 de Maio, as acções têm, por defeito, valor

nominal.

Pelo contrário, tratando-se de sociedades anónimas ou em comandita por acções

constituídas após a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 49/2010, de 19 de Maio, afigura-se

que a lógica será precisamente a inversa.

Efectivamente, aos respectivos accionistas é dada, logo no momento fundacional da

sociedade, a opção pela emissão de acções com valor nominal ou de acções sem valor

nominal.

Por isso, e não obstante a emissão de acções sem valor nominal se apresentar como

uma faculdade, ela tornou-se, para as sociedades constituídas em momento posterior ao da

entrada em vigor daquele diploma, no regime supletivo, como, aliás, demonstra a nova

redacção do art. 272.º, al. a): “[d]o contrato de sociedade devem especialmente constar: […]

[o] número de acções e, se existir, o respectivo valor nominal”176.

O emprego da expressão “se existir” indicia, a nosso ver, inequivocamente, que o

legislador assume a não atribuição de um valor nominal às acções emitidas por sociedades

anónimas ou por sociedades em comandita por acções constituídas posteriormente à

entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 49/2010, de 19 de Maio.

Assim, como regra supletiva, as acções das sociedades anónimas e em comandita por

acções incorporadas após o princípio da vigência daquele diploma não têm valor nominal,

174 Cfr. os arts. 85.º, sobre as alterações ao contrato de sociedade, em geral, 383.º, n.º 2, quanto ao quórum constitutivo e deliberativo para a formação da deliberação de alteração do pacto social, e 386.º, n.º 3, relativo à maioria necessária para a alteração dos estatutos. 175 Neste sentido, PAULO CÂMARA / ANA FILIPA MORAIS ANTUNES, Acções…, passim, pp. 103 e 118-119. 176 Destacámos.

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salvo se os accionistas, ao abrigo do disposto no art. 276.º, n.º 1, convencionarem, no

contrato de sociedade, que as acções terão valor nominal177.

Por sua vez, a segunda questão respeita à concretização da possibilidade de emissão de

acções sem valor nominal estabelecida no art. 276.º, n.º 1, e consiste em saber se a mesma

se circunscreve a futuras emissões ou, pelo contrário, é igualmente aplicável às acções (com

valor nominal) anteriormente emitidas.

Dizendo de outro modo: a questão está em saber se é possível a conversão de acções

com valor nominal (já emitidas) em acções sem valor nominal.

Refira-se, preliminarmente, que, em tese, ambas as hipóteses se mostram viáveis.

Aliás, no âmbito da discussão sobre a admissibilidade das acções sem valor nominal nos

diversos sistemas jurídico-societários de matriz europeia motivada pelo processo de

redenominação das acções, enquadrado na transição para a terceira fase da União

Económica e Monetária, a solução que se havia proposto caminhava no sentido da restrição

da admissibilidade da emissão de acções sem valor nominal a futuras emissões,

salvaguardando-se as emissões anteriores, na medida em que o valor nominal, pela sua

relação umbilical com o regime do capital social, constitui uma aquisição cultural178 / 179.

No entanto, a mencionada proposta apresentava um significativo inconveniente, que se

traduziria na reformulação do conceito de capital social – que os legisladores europeus

procuraram, a todo o custo, manter, considerando a previsão da Directiva do Capital Social

(cfr. os arts. 3.º, n.os 1 e 2, e o art. 8.º).

Com efeito, se se houvesse acolhido semelhante proposta, o capital social das

sociedades anónimas e em comandita por acções emitentes, simultaneamente, de acções

com valor nominal e de acções sem valor nominal passaria a ser entendido, não como a

177 Em sentido diverso, PAULO CÂMARA / ANA FILIPA MORAIS ANTUNES, Acções…, p. 103, para quem a novidade do regime das acções sem valor nominal é suficiente para a manutenção do paradigma anterior. 178 Cfr. H. WIEDEMANN, Gesellschaftsrecht, vol. I, Munique, Beck, 1980, p. 558. 179 Cfr. AAVV, The introduction of the Euro in the securities sector: a consultant document from Amsterdam Exchanges, apud PAULO CÂMARA / ANA FILIPA MORAIS ANTUNES, Acções…, p. 104, nt. 165.

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cifra correspondente à soma das acções sem valor nominal, mas como a cifra

correspondente à soma do montante agregado do valor nominal de todas as acções com

valor nominal e do volume agregado do valor de emissão das acções sem valor nominal180.

Sendo certo que, sob um prisma totalmente teórico, esta solução não põe em causa o

regime do capital social, as suas desvantagens decorrem da circunstância de o valor de cada

participação accionista não ser imediatamente apreensível por meio de um simples cálculo

aritmético, o que constitui um obstáculo de natureza prática ao funcionamento das

assembleias gerais de accionistas – v.g., no cômputo das participações sociais (e dos direitos

de voto inerentes) para o apuramento da verificação do quórum constitutivo e do quórum

deliberativo das assembleias gerais de accionistas e da maioria necessária para a formação

de deliberações sociais)181.

Vejamos, então, qual foi a solução consagrada no Direito português.

A resposta à questão atrás enunciada, encontra-se no n.º 2 do art. 276.º, que,

lapidarmente, declara que “[n]a mesma sociedade não podem coexistir acções com valor

nominal e acções sem valor nominal”.

Vigora, pois, entre nós, o princípio da não coexistência, na mesma sociedade, de acções

com valor nominal e de acções sem valor nominal, à semelhança do que sucede na

generalidade dos sistemas jurídico-societários182 / 183.

180 Remete-se para os inconvenientes do regime do stated capital no Direito norte-americano, maxime nas section § 154 da Delaware General Corporation Law e a section § 506 da New York Business Corporation Law, referidos em 2.4., supra. 181 Se bem percebemos, é este o entendimento de PAULO CÂMARA / ANA FILIPA MORAIS ANTUNES, Acções…, pp. 104, para quem a permissão de conversão das acções com valor nominal se mostra como a opção mais flexível e que melhor se coaduna com o respeito do princípio da autonomia estatutária e da tradição societária continental. 182 Assim se passa na Alemanha (cfr. o § 8, 1, da Aktiengesetz), na Áustria (cfr. o § 8, 1, da Aktiengesetz austríaca), em França (cfr. o art. 228-8 do Code de Commerce), e no Luxemburgo (cfr. o art. 26-5 da Loi du 10 août 1915, concernant les sociétés commerciales). Discute-se, em Itália, se vigora este princípio, na medida em que inexiste qualquer disposição expressa que impeça a coexistência, na mesma sociedade, de acções com valor nominal e de acções sem valor nominal. A generalidade da doutrina tende, no entanto, a ler no art. 2346 do Codice Civile a previsão do princípio da não coexistência, na mesma sociedade, de acções com valor nominal e de acções sem valor nominal. Sobre este tema, vide GIUSEPPE B. PORTALE, Dal capitale..., p. 162, e PAOLO

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Este princípio – apelidado por alguma doutrina de princípio da exclusividade184 – parece

fundar-se, apenas, em razões de ordem prática, que se relacionam com a necessidade de

possibilitar, com relativa simplicidade e celeridade, a determinação da posição accionista,

absoluta e relativa, por meio de um mero cálculo aritmético, nomeadamente porque não

obriga, como se referiu, à construção de um novo conceito de capital social.

Assim, temos como boa a opção do legislador, na medida em que diferente solução, não

obstante possível, conceptualmente e ao abrigo da Directiva do Capital Social185, se

revelaria de grande complexidade, designadamente por, a mais das vezes, a coexistência de

acções com valor nominal e de acções sem valor nominal, numa mesma sociedade anónima

ou em comandita por acções, fomentar a criação de dificuldades de índole prática na

determinação do valor relativo das participações accionistas, o que poderia revelar-se

problemático – e contrário à lógica de simplificação dos actos societários que presidiu à

reforma186 –, em matéria de funcionamento das assembleias gerais de acionistas (no cálculo

das participações sociais para a verificação de quórum constitutivo e deliberativo da

assembleia geral e para a formação das maiorias de aprovação das deliberações sociais).

Aliás, a coexistência, numa mesma sociedade anónima ou em comandita por acções, de

acções com valor nominal e de acções sem valor nominal poderia, ainda, representar um

importante entorse à transparência na vida societária que o Decreto-Lei n.º 49/2010, de 19

de Maio, procurou incrementar187.

CENDON (org.), Commentario al Codice Civile – Artt. 2325-2362 – Societè per Azioni, vol. I, Milão: Giuffrè, anotação ao art. 2346, pp. 445-446. 183 Diferente solução foi consagrada no Direito belga (cfr. o art. 476. do Code des Sociétés) e nos sistemas jurídicos de alguns estados federados norte-americanos (cfr. a section § 151 da Delaware General Corporation Law e a section § 501 da New York Business Corporation Law). 184 PAULO CÂMARA / ANA FILIPA MORAIS ANTUNES, Acções..., pp. 104-105, aludem à proibição da coexistência, numa mesma sociedade, de acções com valor nominal e de acções sem valor nominal como “princípio da exclusividade”. A nosso ver, afigura-se preferível reservar essa terminologia para as hipóteses em que a lei admita, somente, acções com valor nominal ou, pelo contrário, apenas acções sem valor nominal. 185 A Directiva do Capital Social não exclui a coexistência, numa mesma sociedade, de acções com valor nominal e de acções sem valor nominal. 186 Cfr. o décimo parágrafo do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 49/2010, de 19 de Maio. 187 Cfr. o décimo primeiro parágrafo do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 49/2010, de 19 de Maio.

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Em todo o caso, cumpre referir que o princípio da não coexistência, numa mesma

sociedade, de acções com valor nominal e de acções sem valor nominal é temperado, entre

nós, pelo princípio da não obrigatoriedade (ou, segundo alguma doutrina, da

facultatividade188) da emissão de acções com valor nominal ou de acções sem valor nominal

e pelo princípio da cogente alterabilidade do contrato de sociedade189.

Efectivamente, de acordo com a letra do art. 276.º, n.º 1 e n.º 2, podem os accionistas,

livremente e a todo o tempo, deliberar a conversão de acções com valor nominal em acções

sem valor nominal e o inverso, dada a ausência de restrições legais a semelhante prática190.

Vigora, assim, no Direito societário português o princípio da reversibilidade da

conversão de acções com valor nominal em acções sem valor nominal e da conversão de

acções sem valor nominal em acções com valor nominal.

Entramos, agora, na análise do último traço identitário do regime das acções sem valor

nominal estabelecido no sistema jurídico-societário nacional.

Atentemos, então, na exposição de motivos do Decreto-Lei n.º 49/2010, de 19 de Maio,

onde se menciona que “[a] eliminação da obrigatoriedade do valor nominal das acções

também não prejudica, de modo nenhum, as funções que lhe são reconhecidas [ao valor

nominal], uma vez que, por um lado, a sua função informativa pode ser assegurada pela

percentagem que a acção representa em relação ao universo accionista, e, por outro lado, a

função organizativa pode ser substituída pelo conceito de «valor de emissão», que permitirá

garantir a preservação [dos princípios] da intangibilidade [e da conservação191] do capital

social”192.

188 PAULO CÂMARA / ANA FILIPA MORAIS ANTUNES, Acções…, pp. 102-104. 189 Sobre o princípio da cogente alterabilidade do contrato de sociedade, vide PAULO OLAVO CUNHA, Direito das sociedades…, pp. 111-113. 190 Expressamente neste sentido, vide PAULO CÂMARA / ANA FILIPA MORAIS ANTUNES, Acções…, p. 119. 191 Uma vez que o princípio da conservação do capital social é uma decorrência do princípio da intangibilidade do capital social. Cfr. 2.3., supra. 192 Cfr. o décimo segundo parágrafo do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 49/2010, de 19 de Maio.

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Daqui e do regime das acções sem valor nominal estabelecido no CSC – cfr., v.g., os arts.

22.º, 25.º, 28.º, 92.º, 276.º, n.os 1 e 4, 277.º, 279.º, 295.º, 298.º, 341.º, 342.º e 345.º – pode

concluir-se pelo reconhecimento legislativo da substituibilidade funcional do valor nominal,

de onde resulta um princípio de substituição do conceito de valor nominal pelo de valor de

emissão.

Com efeito, uma das funções tradicionalmente imputadas ao valor nominal é a de

permitir a identificação e a delimitação da posição, absoluta e relativa, de cada accionista na

sociedade anónima ou em comandita por acções em que detém acções193.

Dizendo de outra maneira: o valor nominal, formalmente associado a uma acção pelos

estatutos ou pela respectiva forma de representação, prossegue uma finalidade informativa,

dado que possibilita ao accionista titular da acção o conhecimento imediato da sua posição

absoluta na sociedade – apreensível apenas pelo conhecimento do valor nominal da acção

ou das acções que detém – e da medida concreta dos seus direitos e deveres inerentes à

condição de accionista (posição relativa), através de um simples cálculo aritmético, obtido

pelo quociente entre o valor nominal das acções detidas e a cifra do capital social194.

Para além disso, salienta-se que o valor nominal serve um propósito organizativo, já que

através dele, pelo conhecimento imediato da posição relativa do accionista que proporciona,

é possível computar os direitos e os deveres dos sócios.

Adicionalmente, o valor nominal, enquanto fracção unitária e tendencialmente fixa do

capital social, representa um importante mecanismo de protecção dos sócios, uma vez que

todos os sócios deverão contribuir equitativamente para a sociedade195.

Acresce que o princípio da proibição da emissão de acções por um valor inferior ao do

respectivo valor nominal196 era entendido como um importante obstáculo à diluição das

participações dos primitivos accionistas – realidade que poderia decorrer da subscrição de 193 Cfr. 2.3., supra. 194 PAULO CÂMARA / ANA FILIPA MORAIS ANTUNES, Acções…, pp. 20-21. 195 Cfr. 2.3., supra. 196 Cfr. o art. 298.º, n.º 1, na sua redacção originária e anterior à entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 49/2010, de 19 de Maio.

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acções por terceiros, em grande quantidade e por um preço inferior ao pago por aqueles, e

que poderia acarretar uma alteração do controlo da sociedade (change of control)197.

A isto soma-se o argumento de que a atribuição de um valor nominal, unitário e

tendencialmente imutável (salvo nas hipóteses de aumento ou de redução do capital social),

a todas as acções emitidas beneficia a igualdade de tratamento entre os accionistas, já que

estes terão, pelo menos quantitativamente198, os mesmos direitos e deveres199. Isto é, na

medida em que cada acção tem, formalmente, o mesmo valor, os direitos e deveres que lhe

são inerentes são iguais para todas as acções.

Paralelamente, era atribuído ao valor nominal, como reflexo do regime do capital social,

correspondente à soma do valor nominal da totalidade das acções emitidas, uma função de

protecção ou garantia dos credores sociais.

Efectivamente, o montante agregado do valor nominal de todas as acções emitidas por

uma sociedade anónima ou em comandita por acções, constituindo o capital social,

permitiria avaliar a situação patrimonial da respectiva sociedade emitente200.

Em sentido contrário, argumentou-se que todas as funções que vêm sendo atribuídas ao

valor nominal podem ser desempenhadas por um valor percentual ou fraccionário do

capital social – idêntico em todas as acções –, nomeadamente no que respeita às funções

informativas e organizativas que se imputam ao valor nominal, bem como às de protecção

dos sócios201.

Ademais, quanto às funções de protecção dos credores sociais, aponta-se o carácter

ilusório do valor nominal accionista, enquanto reflexo do capital social, na medida em que,

destinando-se o capital social, em primeira linha, a dotar as sociedades comerciais dos

meios necessários ao início da respectiva actividade, se verifica, quase imediatamente ao

197 Cfr. 2.3., supra. 198 Ressalva-se a hipótese de se estabelecerem direitos especiais para certas categorias de acções. Cfr. o art. 24.º. 199 Cfr. 2.3., supra. 200 Cfr. 2.3., supra. 201 PAULO CÂMARA / ANA FILIPA MORAIS ANTUNES, Acções…, pp. 20-26. Cfr. 2.3. e 2.4., supra.

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acto de constituição, uma assimetria entre a cifra do capital social e o valor do património

social202.

Considerando os desenvolvimentos doutrinários e de Direito comparado nesta matéria,

o legislador reconheceu a não essencialidade do valor nominal, como expressão do valor da

participação accionista, tendo procedido à sua substituição – no que respeita às acções sem

valor nominal –, pelo conceito de “valor de emissão”, que, todavia, também não define.

O que acaba de dizer-se é, aliás, confirmado pelo art. 5.º do Decreto-Lei n.º 49/2010, de

19 de Maio, segundo o qual “[a] expressão «valor nominal» utilizada em qualquer outra lei

ou regulamento considera-se substituída pela expressão «valor de emissão», quando se

refira a acções sem valor nominal”.

Todavia, o cotejo do novo articulado do CSC permite a constatação de que o legislador,

além da referência ao valor nominal (que continua a relevar no regime das acções com valor

nominal), alude a três valores distintos, no que diz respeito à disciplina das acções sem valor

nominal: valor proporcional (cfr. o art. 22.º); valor de emissão (cfr. os arts. 25.º, 28.º, 276.º,

277.º, 279.º, 295.º, 298.º, 341.º, 342.º e 345.º); e valor contabilístico (cfr. o art. 92.º).

Os conceitos de valor proporcional e de valor de emissão são de fácil apreensão.

Por valor proporcional, deve entender-se o valor de cada acção, enquanto participação

social, que exprime a sua proporção no capital social, isto é, no conjunto das acções

emitidas203.

Este valor traduz, como se vê, a fracção ou a percentagem de capital social representada

por cada acção.

Por valor de emissão deve entender-se a cifra em dinheiro (expressa em euros), não

formalmente associada à acção e temporalmente cingida ao acto societário da sua criação

(a emissão), apurado pelo quociente entre o capital social e o número de acções

correspondentemente emitidas.

202 Cfr. 2.4., supra. 203 Cfr. 2.4., supra.

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O valor de emissão consiste, deste modo, no valor de subscrição de cada acção, em

dada emissão204 / 205.

Impõe-se, pois, concluir que estes conceitos se equivalem, uma vez que expressam a

mesma realidade, a fracção do capital social representada em cada acção, mas sob formas

diferentes: o valor proporcional corresponde a uma fracção, na acepção matemática do

signo – pelo que, também, se afigura correcta a terminologia de valor fraccionário –, ao

passo que o valor de emissão corresponde a uma cifra numérica em moeda com curso

legal206.

Mais delicada se mostra, contudo, a delimitação do conceito de valor contabilístico,

recebido no art. 92.º.

Dissemos acima que, em princípio, o valor contabilístico se reporta ao valor de cada

acção no património líquido social, computado pelo quociente entre o valor do património

líquido da sociedade e o número total de acções emitidas – o chamado book value207.

Todavia, parece-nos que, no Direito societário português, o conceito de valor

contabilístico relevante para a disciplina das acções sem valor nominal não poderá ser o de

book value.

A introdução do conceito de valor contabilístico accionista no regime português das

acções sem valor nominal poderá ser explicada como uma mera recepção do conceito de

valor contabilístico acolhido na Directiva do Capital Social208, que, apesar de não delimitado

por ela, tem sido interpretado209 como correspondendo à noção de pair comptable ou de

rechnerischen Wert, respectivamente dos Direitos francês e alemão (e austríaco), e que

204 Cfr. 2.4., supra. 205 Trata-se de um valor tendencialmente fixo, uma vez que apenas se alterará nas hipóteses de variação do capital social (aumento ou redução de capital). 206 Reenvia-se, novamente, para o art. 276.º, n.º 4. 207 Cfr. 2.3., supra. 208 Cfr. os arts. 8.º, n.º 1, 9.º, n.º 1, 10.º, n.os 2 e 4, 19.º, n.º 1, al. b), e n.º 2, 20.º, n.º 2, e 22.º, n.º 2, als. b) e d), da Directiva do Capital Social. 209 Vide o denominado Relatório Winter: HIGH LEVEL GROUP OF COMPANY LAW EXPERTS (JAAP WINTER co-ord.), A modern regulatory framework for Company Law in Europe, 2002, acessível para consulta em http://ec.europa.eu.

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traduz o valor da acção obtido através da divisão da cifra correspondente ao capital social

pelo número total de acções emitidas210.

Dois argumentos justificam este entendimento.

Por um lado, a margem de actuação do legislador encontra-se limitada pela Directiva do

Capital Social, que assume a opção pelo regime do capital social como garantia dos

credores211, pelo que, representando as acções o capital social e não o património da

sociedade emitente212, o valor contabilístico relevante no quadro das acções sem valor

nominal não poderá traduzir uma representação de uma fracção do património social.

Por outro lado, notar-se-á que, caso se entendesse que o conceito de valor contabilístico

corresponde ao de book value, estar-se-ia a fazer tábua rasa do disposto no art. 276.º, n.º 4,

segundo o qual as acções são representativas da mesma fracção do capital social e não do

património social.

Ora, na medida em que a interpretação de normas deve atender ao elemento literal,

sem, todavia, a ele se cingir, e procurar reconstituir a partir do texto legal o pensamento

legislativo, a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que as normas interpretadas

foram elaboradas e as condições específicas do tempo em que são aplicadas, como

determina o art. 9.º, n.º 1, do CCiv, é forçoso reconhecer que o valor contabilístico de uma

acção sem valor nominal expressa a proporção desta no capital social.

Recorde-se, ainda, que, no artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 49/2010, de 19 de Maio, e no

décimo segundo parágrafo do preâmbulo desse diploma, se indica, como instrumento de

substituição do valor nominal, o valor de emissão e não o valor contabilístico.

Por esta razão, estamos em crer que o valor contabilístico de uma acção expressa a

fracção no capital social por ela representada, calculada pelo quociente entre a cifra do

210 Neste sentido, vide PAULO DE TARSO DOMINGUES, Acções sem valor nominal no Direito português, p. 65, e PAULO OLAVO CUNHA, Aspectos críticos…, p. 152. 211 Cfr. o quarto considerando da Directiva do Capital Social. 212 Diversamente do que sucede nos Estados Unidos da América. Cfr. 2.4. supra.

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capital social e o número total de acções emitidas, identificando-se, pois, com o valor de

emissão213.

Importa uma análise mais detida do regime do valor de emissão.

Como primeiro traço identitário deste regime, cumpre salientar a circunstância de o

valor de emissão de cada acção dever corresponder, pelo menos, a um cêntimo, nos termos

do disposto no art. 276.º, n.º 3. Trata-se de um resquício do Direito anterior, plenamente

alinhado com o Direito alemão 214 , que possibilita a emissão de penny stocks e o

fraccionamento de acções215.

Este aspecto e o princípio da proibição da emissão de acções sem valor nominal por um

valor inferior ao do respectivo valor de emissão, estabelecido na versão renovada do art.

298.º, n.º 1, indiciam uma certa severidade num regime que, declaradamente, visava

incrementar as possibilidades de financiamento das sociedades anónimas e em comandita

por acções216.

Não obstante, o legislador introduziu um mecanismo corrector da solução consagrada

no art. 298.º, n.º 1.

O princípio da proibição da emissão de acções sem valor nominal por um valor inferior

ao do respectivo valor de emissão significa, antes de mais, que, numa mesma emissão, não

podem ser emitidas acções por diferentes valores217 / 218.

Só assim se compreende o disposto no novo n.º 3 do art. 298.º, de acordo com o qual, é

admissível a realização de uma emissão de acções sem valor nominal por um valor de

213 Assim, valor de emissão, valor percentual e valor contabilístico correspondem, no Direito português, à mesma realidade. Cfr. PAULO CÂMARA / ANA FILIPA MORAIS ANTUNES, Acções…, p. 105-109. 214 Neste sentido, ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO / ADELAIDE MENEZES LEITÃO, anotação n.º 8 ao art. 276.º, in ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Código…, p. 804. 215 Cfr. PAULO CÂMARA / ANA FILIPA MORAIS ANTUNES, Acções…, p. 108. 216 Retenha-se, por isso, a observação de PAULO DE TARSO DOMINGUES, O capital…, p. 183, de que só as no par value shares são aptas a captar o financiamento nos mercados. 217 Veja-se, sobre o tema, TIAGO SOARES DA FONSECA, anotação n.º 9 ao art. 298.º, in ANTÓNIO MENEZES

CORDEIRO, Código…, p. 851. 218 PAULO DE TARSO DOMINGUES, Traços essenciais…, pp. 116-117, justifica este princípio com a necessidade de garantir a igualdade de tratamento entre os accionistas.

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emissão inferior ao valor de emissão de acções anteriormente emitidas, contanto que o

órgão de administração elabore um relatório sobre o valor fixado e sobre as consequências

financeiras da emissão para os accionistas.

A falta de apresentação desse relatório aos accionistas determina a anulabilidade da

deliberação de emissão das acções sem valor nominal por um valor de emissão inferior ao

valor de emissão das acções anteriormente emitidas, nos termos do art. 58.º, n.º 1, al. c),

por falta de fornecimento de elementos de informação mínimos aos accionistas219.

A conjugação da condição atrás referida para a realização de uma emissão de acções

sem valor nominal por um valor de emissão inferior ao das acções anteriormente emitidas

com o desvalor que se associa à sua não verificação permite concluir que se alcançou, neste

ponto, um reforço da transparência na vida societária – finalidade prosseguida pelo

Decreto-Lei n.º 49/2010, de 19 de Maio.

Introduziu-se, assim, a possibilidade de, numa mesma sociedade, coexistirem acções

com diferentes valores de emissão220.

Neste contexto, importa, ainda, aludir ao art. 92.º, relativo ao aumento de capital por

incorporação de reservas.

De acordo com o n.º 1 daquele normativo, sendo deliberada, numa sociedade emitente

de acções sem valor nominal, a realização de um aumento de capital por incorporação de

reservas, a participação de cada accionista aumentará proporcionalmente ao valor

contabilístico da respectiva participação, anterior ao aumento, excepto se, havendo sido

convencionado um diferente critério de atribuição de lucros, os estatutos determinarem a

sua aplicação à incorporação de reservas, ou, ainda, se se estipular algum critério especial.

Como se disse, o conceito de valor contabilístico acolhido no regime das acções sem

valor nominal assimila-se ao de valor fraccionário, pelo que é a este que se deverá atender

219 PAULO CÂMARA / ANA FILIPA MORAIS ANTUNES, Acções…, p. 113. 220 Convergentemente, TIAGO SOARES DA FONSECA, anotação n.º 12 ao art. 298.º, in ANTÓNIO MENEZES

CORDEIRO, Código…, p. 853.

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na determinação da proporção do aumento da participação accionista resultante do

aumento de capital por incorporação de reservas.

Naturalmente, sendo realizado um aumento de capital por incorporação de reservas

numa sociedade emitente de acções sem valor nominal, a ausência de um valor nominal,

formalmente associado às acções emitidas e constante da respectiva forma de

representação (em particular, dos títulos representativos de acções tituladas), torna

desnecessária a emissão de novas acções221.

Deste modo, afigura-se-nos que a alteração ao art. 92.º introduzida pelo Decreto-Lei n.º

49/2010, de 19 de Maio, correspondeu ao propósito de simplificação dos actos societários,

enunciado no décimo parágrafo do preâmbulo deste diploma.

É este o sentido da norma do art. 92.º, n.º 2, que é, como, aliás, não poderia deixar de

ser, inverso à lógica que preside à solução vigente para as acções com valor nominal,

prevista no n.º 4 do mesmo artigo.

Relativamente às acções com valor nominal, continua a ser necessário definir a forma

como se processa o aumento das participações accionistas na proporção do aumento: se

pela emissão de novas acções ou se pela manutenção do número de acções, acompanhada

do correspectivo aumento do seu valor nominal (solução supletiva).

Ainda a propósito do valor de emissão, cumpre salientar o regime das acções

preferenciais sem voto desprovidas de valor nominal, resultante da alteração legislativa.

As acções preferenciais sem voto são aquelas que conferem aos respectivos titulares o

direito a um dividendo prioritário, que não será inferior a cinco por cento do seu valor

nominal (acções com valor nominal) ou a cinco por cento do respectivo valor de emissão,

descontado o prémio de emissão ou ágio (acções sem valor nominal) 222.

221 Cfr. FRANCISCO MENDES CORREIA, anotações ao art. 92.º, in ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO (coord.), Código…, pp. 321-323. 222 O ágio, ou prémio de emissão, constitui o valor excedentário ao valor de emissão das acções sem valor nominal, pago pelo novo accionista, com o propósito de igualar o valor das participações dos primitivos

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Tendo o legislador optado por permitir a emissão de acções sem valor nominal com

prémio de emissão223, a nova redacção do art. 431.º, n.º 2, afigura-se prudente, na medida

em que evita potenciais conflitos em torno do cálculo do dividendo prioritário, já que se

poderia supor, tendo em conta a eliminação do valor nominal – que, no Direito anterior, se

distinguia claramente do prémio de emissão –, que o valor de emissão relevante para o

cálculo do dividendo prioritário corresponderia a todo e qualquer valor pago pela subscrição

de acções preferenciais sem voto (incluindo, portanto, o ágio).

Na ausência da referida alteração legislativa, os accionistas titulares de acções

preferenciais sem voto teriam direito a receber, a título de dividendo prioritário, uma

importância proporcionalmente superior ao valor das suas contribuições, uma vez que o

prémio de emissão seria tratado, na prática, como incluído no valor de emissão e, como tal,

relevaria, por maioria de razão, para a determinação dos direitos dos accionistas.

Fica, assim, esclarecido que o ágio não é incorporado no valor de emissão – solução que

já resultava do Direito pretérito, que distinguia o prémio de emissão do valor nominal

accionista224.

Também aqui se verifica uma plena substituibilidade do valor nominal pelo valor de

emissão.

No que respeita aos restantes traços do regime das acções sem valor nominal, bastará

dizer que a técnica consagrada na lei é a da substituição do valor nominal pelo valor de

emissão ou pelo valor proporcional, inexistindo diferenças substanciais a assinalar

relativamente ao regime anterior, nomeadamente na delimitação do direito dos accionistas

ao lucro (cfr. o art. 22.º, n.º 1) e dos deveres e obrigações, designadamente de quinhoar nas

perdas e de realizar entradas (cfr., respectivamente, os arts. 22.º, n.º 1, e 25.º, n.os 2 e 3) 225.

accionistas. Veja-se, sobre o tema, JORGE HENRIQUE DA CRUZ PINTO FURTADO, Curso de Direito das sociedades, 5.ª ed., Coimbra, Almedina, 2004, p. 321. 223 Sobre esta temática, vide PAULO OLAVO CUNHA, Aspectos críticos…, pp. 147-148. 224 Cfr. o art. 341.º, n.º 2, na redacção anterior à conferida pelo Decreto-Lei n.º 49/2010, de 19 de Maio. 225 Cfr. os arts. 28.º, n.º 3, al. e), 272.º, al. a), 277.º, n.º 2, 279.º, n.º 2, 295.º, n.º 3, als. a), c), e d), 342.º, n.º 1, e 345.º, n.º 6 (o legislador, por lapso, referiu-se ao n.º 6 do art. 345.º, quando pretendia referir-se ao n.º 4).

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Sintetizando: consideramos que, com excepção das dissemelhanças de regime

enunciadas, a maioria das alterações introduzidas ao CSC pelo Decreto-Lei n.º 49/2010, de

19 de Maio, foi no sentido de acondicionar as acções sem valor nominal ao quadro

tradicional do sistema jurídico-societário português.

6. Conclusão

O Decreto-Lei n.º 49/2010, de 19 de Maio, consagrou no ordenamento jurídico

português a possibilidade de emissão das acções sem valor nominal impróprias, na medida

em que as participações accionistas – com e sem valor nominal – continuam a representar

uma fracção do capital social e não do património social.

Uma vez que o estabelecimento da admissibilidade da emissão de acções sem valor

nominal foi levada a cabo mediante uma alteração ao CSC, as acções sem valor nominal são,

entre nós e à semelhança do que sucede noutros ordenamentos, um instituto jurídico-

societário central, aplicável, portanto, às sociedades anónimas – independentemente da sua

natureza aberta ou fechada, da sua dimensão ou do modelo de governação adoptado – e às

sociedades em comandita por acções.

Por se encontrar limitado, na sua margem de actuação, como decorrência das

imposições da Directiva do Capital Social, que consagrou o dogma do capital social

enquanto garantia dos credores, o legislador português não promoveu, com o Decreto-Lei

n.º 49/2010, de 19 de Maio, uma ruptura com os quadros tradicionais do Direito das

sociedades comerciais nacional, razão por que as alterações introduzidas ao CSC

decorrentes deste regime foram precisas, destinando-se, na sua maioria, a receber as

acções sem valor nominal ao nosso sistema jurídico-societário.

Corrobora o que se diz, por um lado, a circunstância de a doutrina dominante,

considerar que o que o Decreto-Lei n.º 49/2010, de 19 de Maio, veio possibilitar foi a

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emissão de acções com um valor nominal não expresso, e, por outro lado, a adaptação do

princípio da proibição da emissão de acções abaixo do par às acções sem valor nominal.

Efectivamente, o art. 298.º, n.º 1, proíbe que, numa mesma emissão de acções sem

valor nominal, coexistam diferentes valores de emissão – situação que seria atentatória do

princípio da igualdade de tratamento entre os accionistas.

A principal – que não única – novidade introduzida pelo Decreto-Lei n.º 49/2010, de 19

de Maio, consiste no novo n.º 3 do art. 298.º, que possibilita a emissão de acções sem valor

nominal por um valor de emissão inferior ao valor de emissão das acções anteriormente

emitidas, desde que o órgão de administração elabore um relatório sobre o valor fixado e

sobre as consequências financeiras da emissão para os accionistas.

Ora, esta norma é suficiente para deixar entrever que o Decreto-Lei n.º 49/2010, de 19

de Maio, consagrou soluções adequadas a alcançar as finalidades que visava atingir,

nomeadamente, o incremento das perspectivas de financiamento das sociedades anónimas

(maxime, das cotadas) e o reforço da transparência na vida societária.