a prÁtica pedagÓgica na formaÇÃo inicial: o estÁgio...

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1369 A PRÁTICA PEDAGÓGICA NA FORMAÇÃO INICIAL: O ESTÁGIO CURRICULAR EM QUESTÃO Isabel MELERO BELLO, Universidade Federal de São Paulo Marieta GOUVÊA DE OLIVEIRA PENNA, Universidade Federal de São Paulo Maria Cecília SANCHES, Universidade Federal de São Paulo Eixo Temático 01: Formação inicial de professores da educação básica [email protected] 1. Introdução O curso de Pedagogia foi criado no Brasil em 1939, pelo Decreto Lei nº 1.190, de 4 de abril de 1939, na Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil, e desde então passou por muitas reformulações e indefinições sobre qual seria sua identidade, como demonstram vários estudos a esse respeito (BRZEZINSKI, 1996; SCHEIBE, 2007; AGUIAR et al, 2006, entre outros). O impasse em relação ao campo de atuação do pedagogo chegou, a princípio, a um consenso, com a promulgação da Lei 9.394/96 (BRASIL, 1996) e, sobretudo, com a publicação da Resolução CNE/CP nº 01/2006 (BRASIL, 2006b), que institui Diretrizes Curriculares Nacionais para o Curso de Graduação em Pedagogia, licenciatura. Essas Diretrizes, no entanto, trazem um grande desafio às instituições formadoras, pois estabelecem várias funções ao futuro pedagogo, o qual deverá ser capacitado, para tanto, já na formação inicial: Art. 4º O curso de Licenciatura em Pedagogia destina-se à formação de professores para exercer funções de magistério na Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental, nos cursos de Ensino Médio, na modalidade Normal, de Educação Profissional na área de serviços e apoio escolar e em outras áreas nas quais sejam previstos conhecimentos pedagógicos. Parágrafo único. As atividades docentes também compreendem participação na organização e gestão de sistemas e instituições de ensino (BRASIL, 2006b) Assim, percebe-se que em exíguo espaço de tempo (três a quatro anos, em média), o pedagogo precisa estar apto a atuar como docente na educação infantil, nos anos iniciais do ensino fundamental, na educação de jovens e adultos, no ensino normal médio, trabalhar como gestor escolar, além de outras capacidades que dele se espera, de acordo com a resolução. Ou seja, espera-se que o pedagogo seja um polivalente não somente em relação ao domínio dos conteúdos clássicos (língua portuguesa, matemática, ciências, história e geografia), mas também em relação à diversidade de áreas e contextos que ele deverá ser apto a atuar.

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A PRÁTICA PEDAGÓGICA NA FORMAÇÃO INICIAL: O ESTÁGIO CURRICULAREM QUESTÃO

Isabel MELERO BELLO, Universidade Federal de São Paulo Marieta GOUVÊA DE OLIVEIRA PENNA, Universidade Federal de São Paulo

Maria Cecília SANCHES, Universidade Federal de São PauloEixo Temático 01: Formação inicial de professores da educação básica

[email protected]

1. Introdução

O curso de Pedagogia foi criado no Brasil em 1939, pelo Decreto Lei nº 1.190,

de 4 de abril de 1939, na Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil, e

desde então passou por muitas reformulações e indefinições sobre qual seria sua

identidade, como demonstram vários estudos a esse respeito (BRZEZINSKI, 1996;

SCHEIBE, 2007; AGUIAR et al, 2006, entre outros).

O impasse em relação ao campo de atuação do pedagogo chegou, a princípio,

a um consenso, com a promulgação da Lei 9.394/96 (BRASIL, 1996) e, sobretudo,

com a publicação da Resolução CNE/CP nº 01/2006 (BRASIL, 2006b), que institui

Diretrizes Curriculares Nacionais para o Curso de Graduação em Pedagogia,

licenciatura.

Essas Diretrizes, no entanto, trazem um grande desafio às instituições

formadoras, pois estabelecem várias funções ao futuro pedagogo, o qual deverá ser

capacitado, para tanto, já na formação inicial:

Art. 4º O curso de Licenciatura em Pedagogia destina-se à formação de professorespara exercer funções de magistério na Educação Infantil e nos anos iniciais do EnsinoFundamental, nos cursos de Ensino Médio, na modalidade Normal, de EducaçãoProfissional na área de serviços e apoio escolar e em outras áreas nas quais sejamprevistos conhecimentos pedagógicos. Parágrafo único. As atividades docentes também compreendem participação naorganização e gestão de sistemas e instituições de ensino (BRASIL, 2006b)

Assim, percebe-se que em exíguo espaço de tempo (três a quatro anos, em

média), o pedagogo precisa estar apto a atuar como docente na educação infantil, nos

anos iniciais do ensino fundamental, na educação de jovens e adultos, no ensino

normal médio, trabalhar como gestor escolar, além de outras capacidades que dele se

espera, de acordo com a resolução. Ou seja, espera-se que o pedagogo seja um

polivalente não somente em relação ao domínio dos conteúdos clássicos (língua

portuguesa, matemática, ciências, história e geografia), mas também em relação à

diversidade de áreas e contextos que ele deverá ser apto a atuar.

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Dentre as atividades previstas para a formação inicial do pedagogo está o

estágio supervisionado, conforme previsto no artigo 7º da Resolução nº 01/2006

(BRASIL, 2006b):

O curso de Licenciatura em Pedagogia terá a carga horária mínima de 3.200 horas deefetivo trabalho acadêmico, assim distribuídas: [...] II- 300 horas dedicadas ao EstágioSupervisionado prioritariamente em Educação Infantil e nos anos iniciais do EnsinoFundamental, contemplando também outras áreas específicas [...]

É a partir desse contexto que este relato de experiência apresenta o estágio

desenvolvido no curso de Pedagogia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp)

como parte das atividades promovidas para a formação dos futuros pedagogos na

universidade, a qual é denominada como “Programa de Residência Pedagógica”.

Momento privilegiado de integração entre os saberes a que os estudantes tiveram

acesso ao longo do curso com o cotidiano escolar, a Residência Pedagógica (RP)

atende às exigências de um estágio supervisionado, mas vai além, como se verá ao

longo do texto, daí a denominação diferenciada. De acordo com o Projeto Pedagógico

do curso (UNIFESP, 2014),

A RP guarda proximidades e distanciamentos em relação à Residência Médica. Adiferença central encontra-se na finalidade: a RP é parte da formação inicial, éessencialmente uma aprendizagem situada que acompanha a graduação, enquanto aResidência Médica ocorre após a graduação [...]. A proximidade está na imersão doestudante, no processo de contato sistemático e temporário com práticas profissionaisreais [...]. (p.49)

Especificamente, dar-se-á foco às atividades realizadas pelos estudantes nas

residências em Educação Infantil e em Gestão Escolar. O objetivo é problematizar a

RP na formação inicial de professores como momento privilegiado para a promoção de

debates sobre a realidade escolar, a partir de conhecimentos teóricos. No texto, serão

analisados os temas de aprofundamento sobre a realidade escolar escolhidos pelos

estudantes para o desenvolvimento de seus relatórios de residência em Educação

Infantil e em Gestão Educacional, atividade que tem por objetivo proporcionar

aprendizagens de conhecimento, fundamentação teórica, diálogo e intervenção na

escola.

Mediante esse objetivo, este texto está organizado em quatro partes, além

desta introdução e das conclusões. Na primeira parte, faz-se uma discussão teórica

sobre a formação inicial do pedagogo a partir dos aspectos políticos, econômicos,

sociais e profissionais que envolvem a questão atualmente. Na sequência, apresenta-

se o programa de RP do curso de Pedagogia desenvolvido na Unifesp, seu

funcionamento e organização. Na terceira parte, faz-se um relato da experiência que

vem sendo desenvolvida na RP em Educação Infantil, com ênfase na discussão sobre

os temas escolhidos pelos estudantes para desenvolvimento de um relatório final da

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atividade. Em seguida, a experiência desenvolvida na RP em Gestão Educacional é

trazida à discussão, também com foco nos temas escolhidos pelos alunos. Por fim,

nas conclusões, a RP do curso de Pedagogia da Unifesp é discutida a partir dos

desafios impostos pelas disposições legais que se confrontam com os problemas reais

e cotidianos enfrentados, mas também a partir dos pontos positivos trazidos por essa

atividade para a formação do futuro pedagogo.

2. O curso de Pedagogia e o estágio supervisionado

Maués (2014, p. 38), ao discorrer sobre as políticas de formação docente, as

percebe inseridas em movimento de reformas que visam a regulação social, a serviço

de “ideologia que vê na competitividade e no lucro as únicas razões de sua

existência”. Para a autora, as reformas educacionais incidem sobre a formação de

professores, acusada de ser muito teórica. O foco em uma formação mais prática diz

respeito à necessidade de os docentes viabilizarem ensino voltado à formação de

alunos adaptados às novas exigências do mundo do trabalho, que requer

trabalhadores flexíveis, eficientes, polivalentes, produtivos. A formação do professor,

nesse sentido, passa a se pautar por aspectos como universitarização;

profissionalização com ênfase em aspectos práticos; formação continuada e a

distância; pedagogia das competências.

A formação inicial para o exercício docente na educação infantil e nos anos

iniciais do ensino fundamental, de acordo com o estabelecido na Lei de Diretrizes e

Bases da Educação (BRASIL, 1996), deverá ocorrer preferencialmente em cursos de

Pedagogia, constituído como licenciatura (BRASIL, 2005; 2006a; 2006b). Em tal

formato, o curso de Pedagogia passa a ter como base a formação para a docência,

sendo a prática o eixo central da profissionalização do pedagogo (SCHEIBE, 2007).

Para Rodrigues e Kuenzer (2007), a formação do pedagogo assenta-se em visão

pragmática e tecnicista, com ênfase instrumentalizadora do conhecimento, que

privilegia a prática em detrimento da teoria.

Como já afirmado, são várias as funções nas quais o futuro pedagogo poderá

atuar. Uma formação que contemple o que está previsto nas Diretrizes Curriculares

Nacionais (BRASIL, 2006b) não é tarefa fácil de ser executada. Um dos aspectos

apontados por Gatti e Nunes (2008) ao investigaram ementas de cursos de Pedagogia

é a forte fragmentação existente nos cursos, dificultando aos futuros professores a

articulação entre teoria e prática.

Para Maués (2014), a formação do professor assume papel central nas

políticas públicas, a fim de que esse profissional seja preparado para contribuir com os

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ajustes da educação às exigências econômicas. Mas, de acordo com a autora, essa

mesma formação pode atuar na contramão, ao preocupar-se com “[...] uma formação

para a cidadania que inclua a capacidade de fazer críticas da realidade, contribuindo

para o bem-estar social” (MAUÉS, 2014, p. 65). Nesse sentido, assume-se aqui a

Residência Pedagógica como um dos momentos privilegiados na formação do

pedagogo, que pode permitir avanços numa tentativa de se escapar a uma formação

meramente instrumental, e ainda viabilizar o enfrentamento de questões referidas às

dificuldades e desafios presentes nas escolas públicas.

Partilha-se das ideias de Pimenta e Lima (2004), ao afirmarem que o estágio

supervisionado é momento propício à realização de formação que vá além de uma

perspectiva instrumental, configurando-se como espaço que pode permitir ao futuro

professor compreender a prática docente e a realidade na qual atuará de forma crítica

e reflexiva, a partir de perspectivas de análise históricas, sociais, organizacionais

sobre a escola. Em suas ações cotidianas, o professor deve ser capaz de confrontar

os conhecimentos relacionados à prática com a produção teórica sobre educação, e

assim refletir sobre suas ações. Para tanto, a teoria educacional necessita ser

disponibilizada aos professores como lente que amplia as possibilidades de leitura e

compreensão do universo escolar, potencializando a prática pedagógica. O estágio

supervisionado se destaca como local privilegiado para esse exercício metodológico.

Cabe ainda pontuar que, como explicitado por Marcelo Garcia (1991),

compreende-se o estágio supervisionado como momento de socialização profissional,

uma vez que os futuros professores, ao entrarem em contato com a escola, vivenciam

a experiência da cultura escolar. Assim, esse momento formativo torna-se favorável

para se discutir essa cultura, bem como valores e crenças arraigadas nos futuros

professores em decorrência de sua própria experiência como alunos.

A mudança passa pela reflexão. Para possibilitar a reflexão, as atividades

relacionadas aos estágios necessitam ser preparadas e acompanhadas, e é nesse

contexto que se insere a experiência realizada pela Unifesp, no curso de Pedagogia,

que aqui se quer relatar.

3. A residência pedagógica (RP)

No âmbito educacional muito se tem discutido a respeito da necessidade de

evidenciar o estágio pedagógico como componente curricular, campo de conhecimento

e eixo central na formação de professores, em detrimento de sua clássica redução a

uma atividade instrumental, de modo a fortalecer sua finalidade de possibilitar ao aluno

uma aproximação da realidade na qual atuará de forma crítica e reflexiva (PIMENTA;

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LIMA, 2004), relacionando-o à necessidade de se aprender a profissão a partir de

reflexões sobre as práticas pedagógicas e sobre a instituição escolar (MARCELO

GARCIA, 1991).

Dentro desse contexto, o curso de Pedagogia da Unifesp criou o Programa de

Residência Pedagógica, como uma alternativa de formação inovadora ao modelo

tradicional de estágio curricular. Baseado no princípio da imersão do estudante no

contexto da escola pública promove a articulação de aprendizagens teóricas e práticas

tanto para a formação inicial dos graduandos, quanto para a formação continuada dos

profissionais que recebem os residentes em seus ambientes de trabalho.

Nesse Programa, pequenos grupos de alunos (denominados “residentes”)

participam sistematicamente das práticas pedagógicas de escolas públicas da

educação básica do município de Guarulhos/SP, onde se encontra a Unifesp, e fazem

a imersão no ambiente profissional de gestores e professores, acompanhando seu

cotidiano e sua rotina de trabalho, sendo supervisionados por docentes do curso de

Pedagogia.

Acordos de cooperação técnica preveem contrapartidas da universidade em

relação à formação continuada de professores e gestores-formadores das escolas

campo, por meio de assessorias específicas, desenvolvimento de projetos e

pesquisas, organização de eventos e outras ações colaborativas.

A RP é organizada sob dois eixos: para a docência (educação infantil, ensino

fundamental e educação de jovens e adultos) e para a gestão educacional (em

escolas de educação básica dos diferentes segmentos e diretorias de ensino) a partir

dos quais se instituíram quatro unidades curriculares a serem cursadas pelos

graduandos a partir da segunda metade do curso de Pedagogia, com a seguinte carga

horária: RP em Educação Infantil: 105 horas; RP em Ensino Fundamental: 105 horas;

RP em Educação de Jovens e Adultos: 45 horas; RP em Gestão: 45 horas.

Os professores da universidade responsáveis por essas unidades curriculares

(denominados preceptores) acompanham de perto um grupo de, aproximadamente,

seis residentes, durante todo o período de imersão. Por meio de encontros semanais

de supervisão na universidade o preceptor presta informações gerais sobre a atividade

e, sobretudo, proporciona espaço de discussão e reflexão sobre as teorias estudadas,

articulando-as com a experiência vivenciada pelos residentes na instituição.

O grupo de residentes deve cumprir a carga horária mínima diária da

modalidade na qual estão matriculados, permanecendo na instituição por tempo

determinado, participando sistematicamente das atividades e acompanhando os

profissionais em suas atividades de planejamento, formação e docência, além de

realizar outras atividades orientadas por seu professor supervisor.

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Nas instituições onde a RP é realizada os residentes são supervisionados pelo

profissional de ensino responsável pela classe (denominado “professor formador”) ou

pela gestão da escola-campo (chamado de “gestor formador”).

Com relação à metodologia, é por meio da observação participante que os

residentes se aproximam da realidade institucional e apreendem seu cotidiano para

além do senso comum. Valendo-se de instrumentos como um roteiro de observação,

caderno de campo, relatórios institucionais, documentos legais, projetos pedagógicos

e outros tantos registros do trabalho na escola, os dados são coletados e

sistematizados durante o período de imersão e, a partir da problematização das

observações registradas, das análises dos documentos obtidos e reflexões

promovidas nos encontros na universidade, o residente será capaz de elaborar

relatórios sobre sua experiência formativa. São justamente os temas abordados nos

relatórios de residentes, entre os anos de 2012 e 2015, que serão tratados nos

próximos tópicos.

4. A RP e a formação para a docência na Educação Infantil

O residente em Educação Infantil vai a uma escola municipal de Guarulhos

conveniada com a Unifesp quatro vezes por semana, durante um mês, e acompanha a

mesma classe e educadores por todo o período e, uma vez por semana, encontra com

seu preceptor na universidade.

Na última semana do mês de imersão o residente deve assumir a classe para a

realização de um plano de ação pedagógica (AP) planejada em comum acordo entre

as orientações de seu professor preceptor e as orientações do professor. Essa AP

deve estar fundamentada teoricamente, prevendo ações práticas detalhadas, materiais

a serem usados, tempo e espaço de execução. Uma vez aplicada a AP, o residente

avalia o seu desenvolvimento de acordo com o direcionamento de seu professor

preceptor, produzindo um documento com seus comentários, que é entregue aos

educadores que o receberam na escola.

Ao término da imersão os residentes, em duplas, têm cerca de um mês para

produzir um relatório circunstanciado e reflexivo sobre um tema observado ou

desenvolvido na AP. Esse registro deve recuperar a experiência na escola-campo,

considerando fontes teóricas e práticas estudadas no curso de graduação, além de

problematizações sobre os episódios formativos presentes em seus registros de

observação.

De acordo com os relatórios produzidos por residentes que fizeram a imersão

em uma mesma escola de Educação Infantil entre os anos de 2012 e 2015, de um

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total de onze trabalhos, pôde se identificar três grandes temas eleitos para aprofundar

reflexões, sustentados por argumentos que apontam problemas, fragilidades e

dificuldades enfrentadas na escola, compondo um dos cenários da Educação infantil

do município de Guarulhos: o planejamento, o brincar e o papel do educador.

Com relação ao planejamento, os relatórios indicam que as atividades eram

propostas pelos educadores sem um objetivo educacional definido, surgindo como um

instrumento de preenchimento de tempo e distração das crianças. A organização das

salas e a rotina das turmas refletiam uma prática essencialmente diretiva, centrada

nas mãos das professoras, que não contavam com um ambiente planejado com

diferentes propostas de brincadeiras ou situações intencionais de aprendizagem.

No curso de graduação os residentes compreendem que o planejamento

pedagógico “é a atitude crítica do educador diante de seu trabalho docente. Por isso,

não é uma fôrma! Ao contrário, é flexível e, como tal, permite ao educador repensar,

revisando, buscando novos significados para sua prática pedagógica” (OSTETTO,

2000, p.177). No entanto, era comum as professoras disponibilizarem brinquedos pela

sala para que as crianças manipulassem e se mantivessem ocupadas, enquanto elas

se ocupavam com demandas burocráticas como o preenchimento de fichas, relatórios

etc. não demonstrando um objetivo a ser atingido que não fosse o de manter as

crianças ocupadas.

O modo como as ‘rodas de conversa’ eram conduzidas, por exemplo,

apresentava um caráter mais instrumental do que propriamente formativo. Era um

momento usado mais para transmitir informações e ressaltar combinados do que para

incentivar e viabilizar o exercício da oralidade das crianças. Nas poucas ocasiões em

que as professoras abordavam um determinado tema a ser explorado, davam pouca

ou nenhuma oportunidade de participação às crianças para expressarem sua

compreensão, seus interesses ou seus desejos.

A falta de planejamento, segundo os residentes, repercutia na falta de interação

entre as crianças por meio de linguagens corporais e orais, impedindo a negociação

de suas perspectivas e escolhas, bem como a expressão de seus desejos, medos,

capacidades, ansiedades e potencialidades. Desse modo, os interesses e

necessidades das crianças não eram considerados, mas submetidos a uma rotina

estabelecida e inflexível privando-as, sobretudo, de seu direito de brincar.

Em relação a esse último tema, os relatórios de residentes que atuaram desde

a creche, com bebês, até crianças na última etapa da Educação Infantil, apontaram

que a ênfase no aspecto cognitivo foi se tornando cada vez maior. As práticas

educativas se aproximavam, muitas vezes, de práticas pedagógicas realizadas no

ensino fundamental, ocasionando a escolarização antecipada das crianças. À medida

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que cresce, a criança foi sendo direcionada e avaliada para a aprendizagem

escolarizada e para objetivos a serem alcançados na turma, em detrimento de

aspectos como o desenvolvimento e a valorização individual, as relações de

afetividade, os valores éticos, as múltiplas interações, as expressões corporais, as

artes e a espontaneidade.

Os aspectos lúdicos e espontâneos da criança foram aos poucos perdendo

seu lugar; a autonomia que poderia ser desenvolvida e estimulada vai sendo tragada

pela forma escolar, que exige um comportamento cada vez mais previsível e

controlado, sem lugar para as brincadeiras espontâneas, dando lugar ao brincar

marcado pelo tempo, pela obrigatoriedade do silêncio, pela falta de oportunidade para

as movimentações infantis, por constantes interferências dos adultos, revelando uma

concepção de educação que parece desprezar o simbolismo e a inserção social da

criança.

Entre outros problemas enfrentados pela escola destacam-se: número

excessivo de crianças por sala, espaço e tempo exíguos para o desenvolvimento de

atividades lúdicas; falta de material à disposição e de fácil acesso; falta de

organização da sala com brinquedos e cantinhos pedagógicos, falta de envolvimento

dos professores na mediação do trabalho com sua turma de crianças.

O papel do educador, outro tema presente nos relatórios, parece perder força,

pois ele se vê ocupado com ações burocráticas demandadas pela escola e pela

secretaria municipal de educação, mantendo uma relação com as crianças que mais

se aproxima de um cuidador, na medida em que mantém os pequenos ocupados,

alimentados e evitando que se machuquem, do que propriamente um educador

consciente de seu papel formativo, que deveria atuar com ações planejadas e

intencionais para o desenvolvimento das crianças.

Nos momentos de reunião entre os professores, destinados à formação e ao

planejamento, raríssimos foram os momentos de reflexão, nos quais a união em torno

do desenvolvimento de uma atividade ultrapassasse a dimensão da obrigatoriedade

de cumprimento das exigências administrativas, restando pouquíssimo espaço para

discussões, planejamento, troca de experiências, leituras formativas etc.

A relação que os educadores mantinham com as crianças era, em grande parte

das vezes, unilateral, isto é, a palavra do educador era dirigida à criança para dar-lhe

uma ordem ou repreendê-la, e dificilmente sob a intenção de estabelecer um diálogo,

de modo a ouvi-la em retorno.

Os registros dos residentes evidenciam uma lógica de funcionamento

institucional que privilegia o controle do tempo e do espaço, a submissão e a

obediência ao professor e o desprestígio dos docentes, que não desfrutam de plenas

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condições de trabalho e cuja prática não encontra espaço para o planejamento, mas

para o enfrentamento dos inúmeros problemas que a escola pública apresenta

cotidianamente, muito distante de uma educação formativa que pudesse ser

promovida e potencializada pelo mais valioso alimento infantil: a brincadeira.

5. A RP e a formação de gestores

A RP em Gestão Educacional ocorre em escolas estaduais de ensino

fundamental e médio de São Paulo localizadas em Guarulhos e conveniadas com a

Unifesp. Trata-se de uma atividade de observação e acompanhamento dos gestores

escolares em seu cotidiano de trabalho.Os residentes, em grupo de seis estudantes, no máximo, após o fim da imersão

nas escolas-campo, elaboram um relatório final no qual, além de descreverem

aspectos da escola-campo (infraestrutura, número de funcionários, número de alunos,

número de docentes, etc.), elegem para discussão um tema para aprofundamento de

estudos e análise. No período 2012-2015 vários tópicos foram escolhidos pelos residentes para

discussão e identificados em 23 relatórios finais apresentados. Os assuntos tratados

foram agrupados aqui em três temas: gestão democrática versus relações de poder;

avaliações externas e impactos sobre o cotidiano; indisciplina, violência escolar; o

papel do professor mediador. Os residentes realizaram suas residências em duas escolas estaduais, as

quais serão chamadas aqui de escola A e escola B. Durante as reuniões com os

preceptores as impressões dos estudantes eram compartilhadas por todo o grupo, o

que permitiu que se percebessem as diferenças e as semelhanças no modo que as

duas gestões dirigem as instituições escolares que estão localizadas no mesmo bairro.O tema “Gestão democrática versus relações de poder” foi o que mais chamou

a atenção dos residentes, sendo o principal ponto de discussão dos relatórios

analisados. Nesse eixo os residentes destacaram a relação que os gestores

estabelecem com os professores e demais profissionais da escola, com os alunos e

suas famílias. Consideraram, durante a imersão, que a escola A adota uma postura

mais democrática, com participação maior de toda a comunidade escolar nas decisões

a serem tomadas, assim como na divisão das responsabilidades das atividades e

funções que a instituição demanda. Já a gestão da escola B adota uma postura mais

centralizadora, sendo a figura do diretor escolar o centro dessa organização e das

decisões. Um segundo tema foi o relacionado com as avaliações externas e seus

impactos sobre o cotidiano escolar. As escolas públicas estaduais de São Paulo, além

das avaliações aplicadas pelo Ministério da Educação, também são submetidas a uma

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avaliação aplicada pela Secretaria Estadual de Educação chamada de Sistema de

Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São Paulo (SARESP). Os residentes

que fizeram sua imersão nas escolas no período de aplicação das provas do SARESP

perceberam que a gestão escolar e os demais profissionais centralizam sua atenção

nessa atividade, alterando a rotina escolar. Os residentes perceberam a grande

preocupação que a avaliação gera nas duas escolas, já que os resultados se tornarão

públicos e também porque o bom desempenho dos alunos implica em retorno

financeiro para os professores, o chamado “bônus”. Por fim, um terceiro tema voltou-se para a questão da violência escolar,

indisciplina e o papel do professor mediador. Esse tema foi alvo apenas dos residentes

que realizaram sua imersão na escola B. Nas escolas estaduais paulistas, se a direção

desejar, é possível contar com esse profissional - normalmente um docente afastado

da sala de aula por problemas de saúde - que atuará na gestão de conflitos entre os

estudantes e entre estes e os professores. Na percepção dos residentes, essa figura

tem falhado na sua função, sobretudo porque adota uma posição que não se volta

para o diálogo com os alunos, mas sim de imposição e de aplicação de “castigos” a

aqueles que fogem da ordem imposta. Ainda na percepção dos residentes, isso

acontece, em parte, por causa da gestão centralizadora e pouco democrática que a

escola adota em relação a todos os problemas que surgem no cotidiano. Essa experiência, segundo os residentes, foi muito importante a sua formação,

pois permitiu lidar, cotidianamente, com os problemas enfrentados pelos gestores e

também as soluções adotadas mediante as situações inusitadas que surgiam. É

importante esclarecer que nas reuniões com os preceptores o residente é incentivado

a não julgar as ações dos gestores e demais profissionais, mas sim a refletir e tentar

compreender porque e como tais situações surgem mediante as inúmeras dificuldades

enfrentadas pelas escolas públicas, e como esses profissionais procuram atender as

pressões oriundas dos órgãos oficiais e da população.

6. Conclusões

A experiência acumulada com o Programa de Residência Pedagógica do curso

de Pedagogia da Unifesp tem se mostrado muito significativa para a formação dos

futuros pedagogos, tendo em vista a proximidade e vivência compartilhada e diária

que a atividade proporciona, evidenciadas com a sistematização das temáticas

abordadas pelos residentes em seus relatórios finais. Tal temática é estabelecida a

partir das anotações realizadas pelos residentes em seus diários de campo no período

em que estão imersos na escola.

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O contato com o cotidiano escolar promove aprendizagens, que podem ser

formativas se forem alvo de reflexões críticas. No caso específico da RP, tal contato

ocorre de forma ininterrupta, permitindo ao residente uma experiência bastante intensa

sobre a realidade escolar. Para que tal experiência seja formativa, o futuro pedagogo

necessita indagá-la a partir de pressupostos teóricos, ampliando sua compreensão

sobre a escola como instituição social. Quando da elaboração dos relatórios, os

residentes, a partir da temática escolhida para aprofundamento e dos debates

promovidos nos momentos de supervisão, são incentivados a retomar as leituras

realizadas em outras Unidades Curriculares do curso de Pedagogia, além da

realização de novas leituras e discussões, ampliando sua compreensão sobre o

fenômeno em pauta. As temáticas abordadas pelos alunos em seus relatórios

permitem vislumbrar conjunto de reflexões significativas sobre a realidade escolar,

evidenciando potencial formativo dessa modalidade de estágio curricular.

Além disso, cabe destacar o estabelecimento de parceria entre a universidade

e as escolas-campo, o que permite acompanhar de forma mais próxima as atividades

desenvolvidas. Os acordos de cooperação estabelecidos entre a universidade e as

escolas permitem, ainda, que o professor formador das escolas públicas e o professor

preceptor da universidade conheçam melhor o funcionamento dessas instituições, de

forma recíproca, assim como favorece o estabelecimento de um compromisso mútuo

em relação à formação do pedagogo.

É claro que problemas surgem quando se opta por um modelo diferenciado.

Dentre eles, tem-se a falta de verbas para disponibilizar transporte de ida e volta para

os residentes, o reduzido número de professores da universidade para atender a

demanda, greves (tanto na universidade como nas escolas) que provocam a

interrupção da imersão, falta de material para desenvolver as AP, entre outros.

Contudo, apesar dos percalços, a experiência tem sido importante para a formação

dos estudantes, pois possibilita que conheçam e socializem com seus pares e

professores, de forma crítica e reflexiva, a realidade das escolas públicas brasileiras

em que possivelmente irão atuar.

Referências Bibliográficas

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