a promessa-xiii
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A PROMESSA
XIII – Nossos para sempre
O “Requeijão” era de Folgosinho. Casou cedo com a Perpétua, que era de
São Romão. O pai dela era um dos maiores vendedores das duas praças
que existiam em São Romão.
No início, a família dela não queria o casamento. Depois, era a família
dele que não a queria. A moça tinha fama de judia e dizia-se na Serra
que aos judeus nem os cemitérios os queriam. Por isso, um dia fugiram e
foram casar a Loriga. O pai dela soube e eles fugiram para Vila Cova à
Coelheira. Andaram assim uns tempos, a fugir de terra em terra. A
história daquele amor animava a Serra e as povoações foram-lhes
ganhando estima. Por fim, todos fizeram as pazes, mas o “Requeijão”
nunca mais voltou a Folgosinho e a Perpétua também não tornou a São
Romão.
A alcunha de “Requeijão” ganhou-a em Loriga, mas nunca ficou bem
explicada. Uns, diziam que era por causa de ter ficado com os cabelos
todos brancos antes dos trinta anos de idade. Outros, contavam que um
dia ele tinha estado para morrer junto de um Cântaro, por causa de um
nevão. Ao certo, nunca se soube e ele também não explicava. Não gostava
nada da alcunha, mas o povo não fixou bem o nome de Arménio e lá lhe
ia chamando outros nomes. Como as variações do nome eram piores que o
nome, ele acabou por aceitar ser chamado de “Requeijão”. Os avós do
“Requeijão” foram caseiros dos Marqueses de Gouveia, os Silva, família
dos Távora e que sofreram o mesmo destino destes após o famoso
atentado a D. José I.
Em Abril de 1807, já o “Requeijão” trabalhava para D. Cândida, matriarca
dos Leitões, viúva de mercador e mãe de treze filhos. O “Requeijão”
cuidava de levar para Loriga algumas das rendas de propriedades
vizinhas que pertenciam a D. Cândida e também geria o moinho da
Barriosa que pertencia à mesma família e que agora é um magnífico
restaurante chamado “Guarda-Rios”, mas teve o azar de querer ir
guardar o filho mais novo da patroa, o Eugénio, no malfadado dia de
Janeiro de 1809, quando o rapaz começou a acompanhar os homens do
“Arranca-Muros”. O “Requeijão” achava que o Eugénio era muito miúdo
para seguir as pisadas do pai, que morrera de coisa ruim. E, por isso,
seguiu o rapaz, às escondidas pelas serras e vales, com o conhecimento
dos restantes da comitiva para que ninguém se assustasse. O miúdo
tinha colocado, à socapa da mãe, umas chouriças que pouco tempo tinham
no fumeiro, nos alforges. A coisa só se notou com o tempo quente e
quando a comitiva saiu de Coimbra e o cheiro a podre se intensificou. O
“Hóstia” pegou no alforge do miúdo e aventou com o conteúdo, mas como
não passou por ervas e água, o cheiro manteve-se. Como antes escrevi,
essa comitiva de mercadores de Loriga foi surpreendida por uma
alcateia esfomeada, que foi seguindo o cheiro das chouriças, depois dos
colossais Penedos de Góis. Os homens e os animais foram violentamente
atacados e o sangue foi marcando o xisto até que conseguiram abrigo
na aldeia de Aigra Velha e lá, com a ajuda dos habitantes, sarar as
feridas e enterrar os que não resistiram aos lobos. Parecia que o
Diabo tinha andado à solta, mesmo estando longe o dia de São
Bartolomeu. Desses homens, sobraram apenas dois, o “Patas-de-Lacrau”, de
Casal do Rei e o “Requeijão”, de Folgosinho. O grupo era ainda
constituído por mais dezoito homens, dos quais, quinze eram de Loriga,
dois eram de Alvoco da Serra e um de Sandomil. O “Patas-de-Lacrau”
ficou sem dois dedos da mão esquerda, com uma cicatriz do canto da
boca à orelha direita e o requeijão nunca mais usou o braço direito, de
onde os lobos levaram carne e o olho direito, que cegou. Não fosse a
boa gente de Aigra Velha, a mesma gente que estima e adora gatos e
lhes constrói canais por dentro das habitações de xisto e nem um
homem sobrava.
Depois o “Patas-de-Lacrau” endireitou-se e foi guardar o vinho do Porto.
Os ingleses do Douro não podiam exportar, por isso, descobriram uma
forma de o fazer. Mandaram discretamente fazer bandeiras de Knifausen
, numa casinha escondida do Pinhão, perto da bela e actual estação dos
caminhos de ferro, pelos mercadores pagos em lã de Inglaterra, que
chegava nos mesmos barcos que levavam o vinho. knifausen era um
pequeno porto desértico da foz do Elba, que ninguém sabia onde ficava.
Assim saíram trinta mil barris de vinho do Porto disfarçado, mas por
cada barril embarcado, Junot recebia seis mil e quatrocentos réis, por
baixo da mesa, apesar do vinho ter sido desviado de Vila Nova de Gaia,
durante a ocupação do Porto pelo Marechal Soult, em 1809. A lã vinha e
chegava a Vila do Conde e a Póvoa de Varzim, de onde era despachado o
vinho, pela madrugada. Depois faziam caravanas compostas de trinta
homens em grupos de três separados por meia légua, que alcançavam
primeiro Macedo de Cavaleiros, onde eram recebidos pela família
Venceslau, depois a lã era escondida em Lamego pela família Nogueira
ou em Mêda pelos Ranhados. Apanhavam sempre vias romanas, Longroiva,
Marialva, Linhares, Folgosinho e apenas se desviavam delas para
escaparem a algum bandido que as rondasse. E, o mesmo caminho eles
seguiam, de Loriga a Alvoco, de Alvoco ao Fundão, do Fundão a Unhais, de
Unhais à Covilhã, da Covilhã a Ferro, de Ferro a Tajo Salor Almote, em
Cáceres ou das Idanhas a Belver e por aí a fora. Por vezes, os
mercadores e os seus moços de mulas também encontravam os rebanhos,
alguns que já vinham da Serra de Montemuro com os maiorais, que
recebiam por cabeça de rez que conduziam e que iam para os campos de
Idanha-a-Velha e de Ourique, protegendo estes nas rotas da
transumância, dormindo ao relento na sua companhia, mas durante as
invasões, só mesmo a lã de Inglaterra é que os safava, pois os
rebanhos, quando não eram roubados, eram comidos.
Sebastião serviu a menina Francisca durante cinco anos, como mercador,
mas depois o Zé da Cabeça e o Senhor Manuel Luís levaram o Monteiro ao
curandeiro que salvara a vida a Vaz Patto. O homem chamava-se
Henriques e tinha casado com a caseira da quinta Leão de Oiro, na
Carvalha, onde havia o maior pinheiro manso da região e um dos mais
velhos de Portugal. A quinta era de uma família de Loriga, desde 1640,
com uma ligeira interrupção no Século XVIII e que para lá fugiram
quase todos os membros dessa família durante o surto de Tifo que
atacou a vila, na primeira metade do Século XX, perto da estrada para
Alvoco das Várzeas e onde dizem que as bruxas muitas vezes se reúnem.
Dessa ida ao curandeiro, o Monteiro ganhou anos de vida e a saúde por
completo, mas isso fez com que Sebastião fosse criticado pelo que tinha
feito ou não feito e fosse mandado embora, sem grande estima ou
agradecimento. Os outros mercadores passaram-no a gozar e quem o
podia ajudar já tinha o grupo feito. Quando somos importantes, todos
nos respeitam e quando caímos em desgraça é que vemos a qualidade dos
amigos. Em 1816, o dinheiro era pouco e apenas lhe restava o cavalo que
devia e três mulas que eram mesmo suas, mas que velhas já pouco
podiam. Loriga, tinha as mulheres nas lojas a tecer e a cardar quando
não iam às fábricas de Alvoco buscar a mercadoria para dar o
acabamento. Apareciam agora algumas cerzideiras, tendo à cabeça a avó
da Senhora Maria Emília “do Zé do Lopes”, que viria a ser reconhecida
por santa pela gente de Loriga.
Nessa altura, os homens de Loriga que não tinham emigrado para
Manaus ou Belém do Pará, cuidavam dos animais na Serra, de uma ou
outra courela, viviam o tempo fora como mercadores ou andavam a
tentar arranjar algum dinheiro para conseguirem ir para o Brasil ou
a Argentina. E foi nesses últimos, que procuravam maneira de sair da
terra, que o povo chamava de “barromões”, por não se verem a trabalhar
ou a fazer algo com jeito e paria, que Sebastião arranjou moços de
mulas, ficando o macho para ele. Assim, passaram a ser moços de mulas, o
Quim “da Alfredina”, o Manel “do Fundo” e o Carlos “do Reboleiro”. Como
os mercadores pagavam à semana, nas primeiras semanas Sebastião
esfolou-se e gastou as solas para conseguir ter lá e peças para vender
e obter dinheiro para pagar aos moços. Havia ainda que ter dinheiro
para pagar parte do cavalo ao Calheiros e lhe dar comissão nas
vendas, que este vigiava e estava sempre a colocar em dúvida.
Depois da guerra, os ingleses deixaram de receber lã e preferiram
dinheiro vivo. Tirando o perigo ultrapassável do Caixão da Valeira e
apesar da demolição das suas enormes lajes e limpeza do estreito
canal entre 1780 e 1791, Os rabelos sentiram-se mais seguros no Douro,
deixando de ser vigiados nas margens pelos homens da Serra da
Estrela. O vinho do Porto ganhava uma nova vida, com o incremento da
fortificação, ou seja, a prática de adição de aguardente ao vinho antes
que este tivesse acabado de fermentar, e que é hoje uma parte
inseparável do processo de produção do vinho do Porto, que raramente
era seguida no início do século XVIII, que se tornou regra depois pois
de 1820, mas que teve como feroz opositor o Barão de Forrester que
morreria no desfiladeiro do Caixão da Valeira, após ter salvo D.
Antónia Adelaide Ferreira. A lendária personagem escocesa ficaria como
um herói da história do vinho do Porto, que o Douro levou para sempre
juntamente com um cinto de libras de ouro à cintura, depois de um
simpático almoço na Quinta das Vargellas, na companhia da
Ferreirinha, da Baronesa da Roêda e de outros ilustres, em 1862. O vinho
é muito diferente do que era em 1800 ou quando dois mercadores
ingleses do Vinho Verde, pela primeira vez o provaram, em Lamego. O
ano de 1820 foi bom para o Vinho do Porto, assim como foi bom o ano de
1811.
Corria o ano de 1811, quando, a 25 de Março, o astrónomo francês Honoré
Flaugergues descobriu um cometa brilhante visível a olho nu.
Geralmente os cometas recebem o nome do descobridor. Designado por
cometa Flaugergues, o dito foi visível durante 18 meses, tornando-se
num dos cometas de maior período de visibilidade de sempre. Napoleão
considerou o cometa um bom presságio, aquando da sua campanha na
Rússia, vindo posteriormente a mudar de opinião. Entretanto em
Portugal era produzido um Porto que se revelaria de excelente
qualidade, classificado em literatura que consultei como um vintage de
cinco estrelas, que é a classificação máxima. A associação do vintage
de vinho do Porto de 1811 ao grande cometa do mesmo ano, parecia assim
perfeita. Entre fraternidade dos apreciadores do vinho do Porto foi-se
instalando o costume de atribuir nomes aos vintage. Ao de 1815 chamou-
se Waterloo e ao de 1811 Cometa. O vinho do cometa permitiu aos
produtores capitalizar a sua fama até 1880, muito embora e
ironicamente o ano de 1811 tenha marcado uma viragem nas exportações
de vinho do Porto, no sentido de um decréscimo. A fama daquela
colheita ficaria de tal modo associada ao cometa que Ferdinand Hoefer
lhe faz referência na sua ‘Histoire de l'Astronomie’, publicada em Paris,
em 1873. Leão Tolstoi não quis deixar de assinalar a visão do cometa e
escreveu sobre o mesmo, no seu livro Guerra e Paz. O vinho do Porto de
1811, foi um dos que deveu a sua existência à protecção dos mercadores
da Serra da Estrela que guardaram as margens e as quintas do Douro,
durante as Invasões Francesas.
Com o tempo, D. Cândida nunca mais perdoou o “Requeijão”, que não lhe
protegera o filho. Despediu-o e aos caídos também ficou sem a mulher,
quando se meteu na pinga. Arrastava-se pelas ruas e quelhas de Loriga,
sendo algo de anedotas e de zombaria, por quem valia menos do que ele,
pois só fala mal dos outros quem nada tem que fazer.
Depois a vida compôs-se e mais desafogado, enquanto a Junta que
governava Portugal e se preparava para assassinar de forma vil e
canalha Gomes Freire, Sebastião organizou um regresso a Aixa Velha.
Primeiro, cuidou de tratar do “Requeijão”. De lhe dar respeito, ânimo,
estima e amor-próprio, para além de sopa de feijão com couve migada e
comida decente. O assunto tocava muito os restantes mercadores da
praça de Loriga e também as famílias dos falecidos, mesmo a Júlia
“Unheira” que vivia em Vila do Conde, mas que era viúva do António
“Raimundo” de Loriga, queria o marido enterrado em Loriga.
Júlia nasceu em Vila do Conde, mas era filha de um mercador de Unhais
da Serra, o Barata. O casamento nunca foi querido, pois diziam as
mulheres mais velhas de Loriga, que de Unhais, de Vila do Conde e da
Póvoa de Varzim, vinha o ‘sangue ruim’ que nada tinha a ver com a
maleita do sangue de Teresa, da Maria e do seu filho, o Conde da
Covilhã, mas sim, como aquilo que seria depois estudo do Professor
Mário Corino da Costa Andrade, a “Polineuropatia Amiloidótica
Familiar”, vulgarmente chamada de “paramiloidose”, doença de “Corino de
Andrade” ou doença dos pezinhos, por inicialmente se revelar nos
membros inferiores. Mas Júlia não sofria da doença e não tinha tido
tempo de ter filhos de António “Raimundo”. A pressão das velhas foi
muita e por isso, depois de ter ficado viúva, partiu para Vila do Conde
e lá voltou a casar com um pescador, trinta e tal anos após a viuvez.
O tempo passava, e aquilo roía por dentro. Sebastião não gostava de ver
os olhos tristes da Lourdes “do Tomé”, na quelha da Oliveira.
Arrependia-se de ter que enfrentar a dor da “tia Taleiga” no adro ou
lábios serrados das filhas do “aleluia”, ‘piacima’ e ‘piabaixo’. Era tudo
gente que tinha maridos, filhos ou pais enterrados em Aicha Velha e
que por muito Pai-Nosso e Avé-Maria rezada, não podia velar nenhum
corpo. Ao contrário da gente que morre no mar, aqueles tinhas campa
certa, mas estavam longe e enterrados em terra que não era sua.
Sebastião organizou um regresso a Aixa Velha, que só integrou homens
e de Loriga, mesmo que outros da vizinhança quisessem ir, mas ninguém
quis e muito menos deixou. Agradeceram, mas era um assunto da terra e
pelos da terra devia ser tratado. A coisa tinha sido pensada por
altura da Páscoa e alinhava em dia de Domingo de Ramos. O Sebastião
falou a dois moços, enquanto o Jaime do “Ai-Jesus” enrolava tabaco e
foi ele que espalhou aqui e ali a conversa. Depois os homens foram, um
a um, falar em segredo com o Sebastião. Em dia certo, vestiram o preto,
como ensinara Pina de Aragão a que se tinham habituado e arranjaram
sacos da apanha da azeitona, de pás, de cães com coleiras de picos, de
armas e partiram em silêncio em cima de cavalos e mulas, como família.
A conversa já se tinha espalhado pelas terras vizinhas e todos diziam
que os cartagenos iam buscar os seus.
Chegados a Aixa Velha, o “Requeijão” e gente de lá mostrou onde estavam
enterrados os de Loriga, que tinham morrido atacados pelos lobos. Eram
montes que só cruzes de pau assinalavam, sem nomes nem mais nada.
Depois, cavaram. Colocaram os ossos juntos nos sacos que levavam e
voltaram pelo mesmo caminho, em silêncio, sem conversas, nem risos. Por
fim, no cemitério de Loriga, perto da subida para a eira do Chão do
Velho e não muito longe da fonte e do actual monumento aos soldados
do Ultramar, abriram uma cova funda e larga e depositaram os ossos.
Não houve missa. Não houve nada, apenas silêncio. Como em todas as
terras, há gente de todo o tipo em Loriga, mas raros são os que nascem
em Loriga e lá não queiram voltar sem vida para serem enterrados. Três
dias depois, chegou a Loriga a notícia do que tinha sucedido ao Gomes
Freire. E entre persignarem-se e dizerem uma oração pelo defunto,
também se acrescentava que gente que fizera aquilo haveria de ter mau
fim.
Quanto ao “Requeijão”, disseram-me que se cuidou melhor e que acabou
por ir morrer em paz e já velho, à terra dele.