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1 A PROMESSA

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A PROMESSA

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À memória de A. e A..

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Iº De Belgas e Planquins

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I. A Tal Ferida.

Quando Laurinda, a bruxa, morreu caída num rego no Aguincho, foi taxativa e

enigmática. Repetiu três ou quatro vezes, “Dizem nas Pedras Lavradas que ao som das

levadas ainda se ouvem assobiar…”

O padre benzeu-a, até que três mulheres a levaram em braços. A meio do caminho morreu

e aí, dois homens, um da Teixeira e outro que já não sei de onde, embrulharam-na num

lençol e lá foram até à Cabeça. A missa foi rápida, porque todos queriam ir a Alvoco da

Serra. Morrera Sebastião.

A Serra sentia-se convocada, citada ou notificada, pois já antes tinham anunciado a morte,

mas era falso alarme e toda a Serra e trás-de-Serra voltou para casa. Naquele dia, afinal

era a sério. Os de Alvoco da Serra, aqui e acolá, em terras onde andavam, diziam que foi

rápido, que morreu como um pardalinho no ninho, mas já estava assim há um mês.

Tolhidinho de todo, mesmo tendo desligado da vida aos poucos.

Dormia todos os dias e um dia, naquele mesmo, não acordou. Embora os menos atentos

repetissem aos burros que os ouvissem, que “acordou morto”. Foi o caso do Semedo, o

novo, que ao repetir isso na mesa da cozinha, ao almoço, levou uma lambada do avô que

até os dentes sangraram. Sebastião estava morto, mas ninguém na Serra cuidava de

ofender-lhe a memória. Ai de quem o fizesse.

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Duas horas depois, os cavalos e os donos montados começaram a chegar. Era difícil chegar

a Alvoco da Serra, mas nem que nevasse, toda a Serra haveria de estar representada.

Desde 1825 que as gentes de Loriga e de Alvoco da Serra lutavam e enviavam cartas a

tudo e a todos por melhores acessos, mas nada. Passaram mais de sessenta anos e apesar

da força da gente da Serra, os ouvidos estavam mais mocos ou cheios de cera do que antes.

Sebastião morreu cedo, mas, com tanto casco de cavalo, acabou por ser enterrado no dia

seguinte e ao final da tarde. Por outro lado, esperavam por António que nunca mais se

perdoou por ter abandonado o pai, por dois dias, a pedido do irmão João, que o via

cansado e a enfraquecer de dia para dia.

Ninguém se atrevia a dizê-lo, mas todos os de Loriga queriam-no enterrado no cemitério

da terra, junto à Capela de Santo António. Mas ai de quem se atrevesse; mais do que

Alvoco da Serra em peso, os filhos nunca o iriam deixar ficar enterrado em Loriga. Assim,

todos os que podiam e não podiam, foram de baixo de uma valente chuva a Alvoco da

Serra.

Foi um amontoado de gente, para além de padres que tinham pela frente o cónego da Sé

de Évora e filho do defunto. O vento tornou-se forte e assobiadeiro. Depois juntou-se uma

chuva, daquelas que de tão forte só Deus a manda. Finalmente, uma saraivada de gelar o

mais quente dos vivos, à entrada da igreja.

Laurinda não teve a mesma sorte. Acho que nem carpideiras apareceram e xailes negros

contavam-se por uma mão e meia. Ninguém queria nada com gente que tem fama de

bruxa. Mas não era má mulher. Fora uma boa mãe para sete enteados que criou e não

pariu. Foi ela mesma, sem tirar nem pôr, que um dia na ponte das três entradas deu ao

Freire a mistela que o Sebastião arranjou, para salvar a vida a um dos Cabrais. Depois

claro, tinha um séquito de aprendizes de feiticeira que à hora morte todas a negaram

conhecer; incluindo a Eufémia, amante do boticário de Seia. E nem foi preciso o galo

cantar três vezes.

O propósito perde-se quando a pessoa perde a importância. Os nomes voam e as pessoas

apagam-se com o tempo, mas convém não esquecer muito ou pelo menos lembrar de vez

em quando, certas coisas e coisas nenhumas.

Num ‘quando’ desses e num dia, mais ou menos assim, Sebastião mudou de cavalo

esbaforido nas Pedras Lavradas na companhia de dois carregos e duas bestas. Tinha a

barba por fazer e perdera a navalha numa pensão de Lisboa. Ao certo, não sabia se tinha

sido roubado ou se a pressa tinha feito das suas. Mas pouco importava pois, de Coimbra

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para cima, embrulhava sempre o rosto em panos grossos de lã que mais o assemelhavam a

outro, entre muitos, salteadores.

Naquele dia, passara a manhã a amaciar e a bater com um calhau nas botas novas que

comprara na Rua dos Sapateiros e que apesar de dois dias passados, ainda estavam rijas e

direitas. Talvez tivesse gasto de mais, mas os calos obrigavam a bom calçado. Os carregos

eram também chatos de transportar, pois Sebastião foi perdendo a paciência com o passar

do tempo, dos anos e no amealhar de notas. Confiara muitas destas a uns irmãos

banqueiros cuja fama e a fortuna tinham origem na escravatura, algo que o enojava

valentemente, pois quem nasce em Loriga até dos pais quer rápida alforria. Mas era um

homem inteligente e pôs os filhos a estudar e a serem homens, porque também os obrigava

a montar, a cavar e a serrar. Faziam um pouco de tudo e tanto que até rezavam. Foi assim

mesmo que um deles chegou a cónego. Mas, como eu escrevia, Sebastião mudou de cavalo

e descansou apenas quando alcançou a Eira do Inverno, em Alvoco da Serra. Desmontou e

apressou-se debaixo de uma forte chuva a aliviar os carregos. Um deles era uma mulher,

embrulhada e disfarçada em xailes e mantas de viagem e o outro, uma criança meia

ranhosa, meia esfomeada... meia leca.

Quando estiou, duas mulheres e um homem aproximaram-se apressados e traziam roupa

para que os viajantes mudassem. Sebastião entrou para uma palheira e despejou dois ou

três baldes de água gelada sobre a cabeça, a camisa e as calças. Os pés estavam descalços

sobre o granito e as botas, ao lado, não disfarçavam a idade do couro. Depois vestiu uma

camisa bem branca e com aroma a casca de limão. Mudou de calças; enfiou o cinto e

beijou a cruz do fio de ouro que tinha ao peito. Nesse fio, estava um escaravelho egípcio

em pedra sabão que passava de geração em geração e do qual haviam mais dois ou três

exemplares; um deles, pertencia ao Zé da Cabeça, que certamente era seu parente. Na

Serra misturam-se muito os sangues, os nomes e os feitios. Ou talvez não fossem nada um

ao outro…e que D. Mendonça Arrais tivesse tido razão.

O outro homem cuidou de lhe dar as botas. O silêncio mandava e a reverência era quase

da realeza quando Sebastião o quebrou…

- Diz lá, Manuel se corre muita água no Poço da Angenha…

O homem, ergueu os olhos do chão, enrolou a roupa molhada do patrão e passou-a à

mulher mais nova, por de trás da porta meia fechada.

- É um mar de água e o Cardoso mais novo, ontem até disse que as trutas já dificilmente

voltam este ano.

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- Coisa de miúdo. Coisa de miúdo… Dá-me ali o cinto e depois e aquele par de meias.

- A patroa perguntou se vem jantar.

- Diz-lhe que não. Só torno cá amanhã. O padrinho está primeiro. Não vi o meu pai

morrer e não deixo a mão do meu padrinho, doa o que doer.

- E esta gente, Senhor?

- Esta gente vai comigo. É uma boticária e o filho. Ela é viúva e dizem que é a melhor.

- A Laurinda e as outras não vão gostar. Para além disso, vai ouvir pelas costas do

barbeiro…

- Homem que é homem insulta na cara, não manda recados. Agora diz-me lá se há neve no

Cerro dos Pardieiros.

- Há pouca, Senhor!

- Vou passar por lá e esperar que a trovoada assuste os galegos que devem andar à

espreita…

- Talvez tenham fugido ou andem lá mais para os lados da Alvoaça…

- Sim, mas não fiando, dá duas pistolas e dois punhais às minhas companhias e traz-me

uma catana ou um podão. Esta trovoada também me faz mal. Não sei se é do minério, mas

dói-me a cabeça sempre que há um relâmpago.

- Isso é mania da gente de Loriga!

- Eu digo-te se é mania da gente de Loriga! Olha, vou daqui a Arcazes. Subo à Cabeça do

Rebolo, dali aos Três Homens e depois ao alto de Cabrum. A ver se chegamos a Loriga

antes das três da tarde. Antes que anoiteça. É que foi toda a noite sempre a andar e

sempre o raio da chuva a cair. E do padrinho, o que é tu que sabes?

-O senhor, seu padrinho, continua numa agonia, mas não desiste. Até disse que vai morrer

ao Brasil, à cama onde nasceu.

- Isso já é a febre. Alguma vez ele deixava as netas? Nem que a porca torcesse o rabo.

O homem olhou de lado para as botas do patrão, enquanto o ajudava a vestir o colete.

- Tenho ali já duas encóspias para essas botas novas, Senhor…

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- Deixa-as estar. Tenho outras em Loriga melhores, mas preciso de dar cabo destas botas.

Batê-las mais. Estão ainda muito mariquinhas. Agora traz os animais, pois faz-se tarde e

não chove.

Assim dito e assim feito. Eram três, coisa e tal, da tarde quando a mão espalmou a porta

do Porto, em Loriga. Cheirava a terra molhada e o sorriso de Sebastião não era mais

aberto que os olhos brilhantes confessavam. Sentia-se sempre bem na sua terra, mesmo

que agora fosse filho de Alvoco da Serra, seria sempre de Loriga.

A porta abriu-se e o corredor estendia-se. A moça que abriu a porta baixou os olhos e os

três entraram. Sebastião tirou os lenços grossos, as luvas e soltou um sonoro…

- Então não beijas nem saúdas, rapariga? Já perdeste a educação? …Ou deixaste os modos

no Cabeço ou no Vinhõ?

A moça sorriu corada e beijou as costas da mão a Sebastião.

- E que coisa dizes tu deste mau tempo? Fala! Não tens boca?

- É sempre assim. Já lá vão duas semanas! O tempo não muda e a Ribeira de São Bento

vai cheia e até deitou courelas e cômbaros ao chão…

- E o teu avô? Como vai o Senhor, meu padrinho?

- Mal… A pele continua em ferida e ele não ma deixa ver.

- Ó canudo. Há cá mais teimoso?!

- Ele chama muito pelo afilhado. Dize-o todos os dias e a toda a hora…

- Di-lo, rapariga!... Di-lo!...

- Pois, dize-o, sim senhor!...

- Ainda me lembro quando nasceste e os berros que fazias. Estás quase maior do que eu…

Sebastião olhou para o banco corrido da entrada. Virou-se para a criança e disse-lhe:

- Fica aqui sentado. A rapariga já te dá uma broinha, um pele-de-leitão ou uma côdea de

trigo, enquanto eu e a tua mãe vamos ver o velho.

A criança olhou para a mãe e sossegou com o olhar materno de anuência. Pisaram então o

soalho, ele mais apressado do que ela e só pararam junto a uma cama, com um estrado e

uma braseira de cobre. Na cama, um homem rosado de olhos claros e cabelo branco

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parecia dormir. Tinha a barba de vários dias e os olhos lacrimosos. Os lábios estavam

cerrados e tremiam. A testa escaldava e escorria. Aos pés da cama de ferro, Romanov

dormia também sobre o cobertor. Sebastião sacou uma das mãos do velho, por baixo dos

lençóis, que beijou. Ajoelhou junto à cabeceira e aproximou os lábios junto do ouvido

esquerdo do doente.

- Já cá estou, meu padrinho e meu Senhor!

O sino bateu as quatro horas na torre da igreja de Santa Maria Maior de Loriga e o calor

da braseira aquecia tudo. Naquela noite, todos dormiram mais descansados.

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II. A Pomada

Como eu escrevi, Maria Aparecida dos Santos chegou com o filho, a Loriga, graças

a Sebastião que voltara a Alvoco da Serra ainda naquela noite de breu, apesar de

ter dito o contrário ao criado. Lá tornou a Alvoco da Serra, mas sem que não

antes, cumprimentasse, beijasse a mão do padrinho e nela enrolasse o seu rosário

de contas de mármore preto.

Quando chegou a Alvoco da Serra, Sebastião encontrou a cama quente e os braços

seguros de Dona Francisca, pois em casa mandava sempre ela e também em parte

significativa da terra.

Dois dias depois e também de noite, chegou a casa o moço preferido de seu pai.

Sebastião nunca o dizia, mas de entre vários filhos, o terceiro era o preferido e

mais parecido com o pai. Eram tão parecidos em tudo que só com António é que

Sebastião gritava, berrava e tratava por tu. Isso não acontecia com mais nenhum

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dos filhos. Eram parecidos até nas mais pequenas coisas, como a alimentação ou o

bater à porta. Todos batiam de punho fechado, mas só Sebastião e António é que

batiam de mão bem espalmada e quatro vezes. Só eles é que acordavam e pediam

logo uma tijela de café com broa grossa migada.

Dos filhos de Sebastião, o mais velho seria cónego e deputado da nação; depois

nasceram duas raparigas que casariam bem, tendo a segunda casado com o Freire;

a seguir, surgiu o lento, mas hábil José; e finalmente nasceram António e Joaquim,

nomeadamente aqueles que seriam o 1.º Barão de São Domingos, depois 1º Barão

de Alvoco da Serra e o 2º Barão de Alvoco da Serra, que era ligeiramente menos

esperto que o mano António, mas tão sincero e franco como ele.

Nessa noite tinha havido missa devido a um caso bizarro e que passo a contar. Um

ano antes desapareceu Pacheco, um rapaz do Piódão que acompanhava António

para todo o lado. Um dia, Pacheco saiu e foi namorar uma moça para o Outeiro da

Vinha, mas não voltou de lá, nem sequer o corpo encontraram, mesmo com as

ameaças de Sebastião e de António. Ninguém sabia mesmo o que lhe tinha

acontecido e António tratou de arranjar outro moço valente, que tratasse bem dos

animais e soubesse pegar em armas, para além de saber dormir acordado.

Arranjou então um moço cigano que agarrou com uma mão, enquanto este fugia

por uma rua de Coimbra. Agarrou-o pelo pescoço e disse-lhe, “Queres ganhar

dinheiro a trabalhar ou acabar na cadeia?”. O miúdo olhou para trás e não pensou

duas vezes, aceitou e ainda jantou canja de galinha e frango.

Chamava-se também António e no início era uma confusão, pois Sebastião

chamava António e vinham os dois, o filho e o empregado. Chegados os dois,

Sebastião lá tinha que ouvir uma lengalenga do filho, a dizer ao moço que António

era só ele enquanto o cigano dizia que não. Ficavam assim uns minutos até

Sebastião gritar, “Parem lá com isso!”. E, foi assim durante uns dias, até que o

cigano concordou em ser chamado por Tó.

O Tó andou com António durante o resto da vida; até morrer de morte natural.

Mas logo chegado a Alvoco da Serra, ao Tó, parecia que um cigano mais cigano do

que ele, o embruxara. Começou com gripes, depois partiu um braço e finalmente

ficou vesgo do olho esquerdo, quando um dia caiu de um burro que montou.

Passou, então, a usar uma pala preta no olho. Dava-lhe aquele ar de sério e

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respeito que antes nunca conseguira impor a ninguém. Deixou depois de ser

tratado por cigano quando num jogo de cartas, na casa do mano José, em São

Romão, António jurou que o Tó tinha sido jagunço no Brasil e que por lá deixara

muitas cabeças cortadas. A coisa durou um tempo ou o tempo suficiente para que o

Freire temesse o jagunço, depois o Tó foi buscar os pais e o resto da família a

Águeda, mas conto mais à frente, se importar e eu tiver vagar.

No dia seguinte à chegada de António a Alvoco da Serra, Sebastião voltou a Loriga

ladeado dos filhos António e Joaquim, sempre com dois empregados mais atrás, o

Tó e o Augusto Maria, filho mais velho do que era conhecido pelo “Pássaro”, pai e

filho de Vasco Esteves de Cima. Pelo caminho, António sacou de uma lata e dela

tirou dois charutos; um para ele e outro para o irmão. O pai não fumava e não

gostava nada disso. Os charutos foram comprados a um galego chamado Galvan.

Galvan fazia um pouco de tudo em Lisboa. Era um galego de nascimento e de

trabalho. Graças a Galvan se devem as Brasileiras e as casas Havanezas de

Portugal. Claro que isso para Sebastião era indiferente e quando Joaquim

colocava um charuto na boca levava uma valente estalada e lá se ia embora o gosto

de fumar. Mas, quando António colocava um charuto na boca, Sebastião dava a

lambada; o charuto caía e António acendia, como se nada fosse, outro e outro, até

que Sebastião desistisse. Tinham os feitios iguais.

António voltara zangado de Lisboa. Gostava da capital, mas não gostava da gente.

Os alfacinhas para ele era tudo gente estranha. Os alfacinhas pobres exageravam

das camisas com xadrez e os alfacinhas ricos eram para António, uma maltinha de

camisa branca amarelada, de pretensiosismo burguês misturado com hipocrisia de

arrogante.

Anos mais tarde, já barão, numa noite que saiu em Lisboa, jantara com uns

conhecidos que falavam de que a Sociedade de Geografia estava a tentar organizar

uma expedição à Serra da Estrela ou “os lendários Montes Hermínios”, no dizer de

um deles. António pensava apenas nas “Minas de Salomão”, na versão de Eça de

Queirós e naquele Cabral de Belmonte que tão beirão como ele, tinha sido,

quatrocentos anos antes, mais esperto e inteligente do que os seus convivas.

Falavam dos habitantes da Serra da Estrela como se eles ainda vivessem em

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cavernas ou tivessem os dentes bem amarelos e mal cuidados, como só ele os tinha

encontrado em Lisboa.

Em Lisboa era sempre bem recebido, pois mesmo que cuspisse no chão, coisa que

nunca faria, seria sempre o 1º Barão de São Domingos, mesmo que não soubessem

onde ficava o tal Santo. Um barão ou um visconde não era um cão qualquer,

mesmo que fugisse. O título não lhe dizia nada e apenas o quisera porque sabia

claramente o que significam os títulos e a subserviência para quem não tem

nenhuma outra coisa do que puxar lustro aos sapatos de alguns. Igualmente,

porque sabia que isso abriria algumas portas aos negócios. António era polido

como todos da família, mas, como todos eles, também não tinha papas na língua

nem se engasgava facilmente. Por vezes, divertia-se a contar episódios de Lisboa.

Dizia ele que um dia, junto ao Grémio Literário, um sujeito lhe perguntou porque

e comia frango à mão; ao que ele respondeu, “Porque sabe melhor”. O cavalheiro

não satisfeito disse que não estava a habituado a comer onde comiam porcos.

António apenas respondeu, “Mas eu estou habituado a comer até onde não há

gente humilde”. A coisa atrapalhou-se porque faltava argumentação ao dito cujo

que, informando-se de quem era o oponente, prontamente pediu desculpas, mas

António não ligou. O sujeito decidiu, então, ofereceu uns vermutes, mas António

disse-lhe “Não bebo desde que parti os cornos com uma bebedeira, no Teixeiro, em

Loriga”. Mas o indivíduo não largava com “Senhor Barão” para aqui e “Senhor

Barão” para acolá; enquanto isso, António engrossava nos termos, juntando um

‘porra’ e um ‘alho’, para ver se afugentava a escava-terra. A coisa engrossou e

engrossou, até que o dito perguntou, “O Senhor Barão estudou?”. E isso, foi o que

mais ansiava António. O Barão olhou sorridentemente o sujeito e soltou, “Estudei!

Estudei anos a fio e aproveito este agradável encontro para discutir consigo toda a

obra existente, provável e hipotética de Heródoto!”. O sujeito tremeu e António

insistiu, “Gosta de Heródoto?”; ao que recebeu uma rápida e apressada desculpa,

“Gosto muito, Senhor Barão, mas faz-se tarde e ainda tenho de ir ao Calvário. Fica

para a próxima” e, posto isto, pirou-se.

Por tudo isso e mais qualquer coisa, António adorava estar em Alvoco da Serra,

mesmo que o frio não fosse a sua melhor companhia. Por outro lado, se Sebastião

não gostava de ter os filhos longe, D. Francisca ainda menos. Ela vivia para os

filhos, todo o ano; ora fazendo roupas, ora fazendo compotas, ora fazendo o que

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quer que fosse. Era uma verdadeira Senhora muito prendada e que muita falta fez

quando um dia começou a variar da cabeça.

Por Loriga, Maria Aparecida dos Santos passava os dias a colher ervas para criar

uma pequena farmácia privada. Ninguém sabia nada dela e, por isso, já existiam

cerca de vinte ou trinta histórias acerca do assunto. Para uns, era a amante do

velho do Porto que finalmente perdera a vergonha e a mandara chamar. Para

outros, era a filha que o velho abandonou. E, finalmente, para outros era uma

salganhada de conversas trocadas, sem pés nem cabeça.

A moça saía pouco e a distância não ajudava ao convívio. Naquela altura, a ribeira

de São bento tinha à mesma cinco pontes, mas muito piores que as actuais e a

principal, que unia os terrenos do velho do Porto ao fundo do Vinhô, era pouco

mais moderna do que a ponte pré-histórica de que resta um pedaço, no Chão da

Ribeira da Nave. Tinha apenas mais umas tábuas de madeira que evitavam que os

animais, em dias de chuva, passassem a vau a ribeira de São Bento.

Maria Aparecida dos Santos tinha sido mais uma das crianças da Roda, sem pais

para mostrar ao mundo. Apareceu na Roda num dia de Todos os Santos e assim

foi baptizada e depois crismada. Cresceu com a bênção e o carinho das irmãs

Doroteias que fizeram dela uma boa alma. Tentaram ainda fazer dela uma freira,

mas tiveram o bom-senso de respeitarem a sua decisão de não noivar o Senhor.

Perante isso, não desistiram e ensinaram-lhe tudo e o possível para que, com os

dotes aprendidos, não morresse à fome. Depois colocaram-na a aprender com um

velho Boticário até que conheceu Luís Seabra, empregado de uma carpintaria ao

lado do actual Hospital de Santa Marta.

A coisa andou, andou e lá casaram por altura do Santo António. Viveram uns

tempo em Santos, O Velho e um dia, já mãe de um filho de dois anos, vieram dizer

que o marido tinha caído de um andaime e morrido. Sem dinheiro para nada e

com contas para pagar, voltou a ajudar na Botica. Trabalhava noite e dia pelo

filho e por ele ganhou destreza tamanha que começou a ser gabada em toda a

cidade. Não havia ninguém que não ouvisse falar na “Afilhada das Doroteias”. Por

isso, quando Sebastião chegou a Lisboa e foi consultar o médico judeu,

descendente do mesmo que operara séculos antes, o sogro de Isabel de Castela, e

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que operara as cataratas do padrinho, o judeu não teve dúvida em recomendar-lhe

o trabalho de Maria Aparecida.

Sebastião procurou-a numa Segunda-Feira. Pediu-lhe uma pomada para a ferida

do padrinho. Ela indagou sobre o tipo de ferida e como ele não sabia responder,

disse-lhe, “Olhe Senhora, está contratada. Deixo-lhe já dez libras em ouro e o resto

quando me curar o padrinho. “ Maria Aparecida espantou-se e declinou, mas

Sebastião insistiu em levá-la a Loriga e colocou mais vinte libras em cima do

balcão da botica. A história parecia de fadas, mas sem asas e com um homem de

bigode, por isso Maria Aparecida aceitou.

Em Loriga, só existiam nessa altura na actual Rua do Porto, quatro casas e

terrenos. A casa mais antiga pertencia a um homem que tinha ido ao Brasil e

tardava em voltar. A segunda casa era do padrinho do Sebastião, enquanto na

terceira dormiam uns empregados do velho. Por fim e quase junto à Ribeira, num

pequeno carreiro que dava a outra pequena ponte, viviam duas irmãs; uma delas,

viúva e a outra solteira. A viúva tinha perdido um filho quase ao nascer e como D.

Francisca era seca de leite, ficou essa mulher para ama de Joaquim que nascera no

mesmo dia do anjinho da tal senhora. O marido morreu pouco tempo depois, já no

Brasil, pois decidiu emigrar, logo depois de perder o filho. A irmã andava sempre

colada à viúva. Onde ia uma, ia a outra. Passavam a vida a lavar para outros, a

fazer chinelos, a colocarem cotoveleiras e mais umas tantas horas no Terreiro do

Fundo, como escarameadeiras, naquela que era a única fábrica com teares em

Loriga. Ana e Maria Lages passavam muito tempo assim, mas depois que Ana

perdeu o filho, passaram a ser as empregadas principais de D. Francisca que até

arranjou para elas uma casa em Alvoco da Serra, onde viveram por uns tempos.

Por culpa, entre aspas, dessas ditas manas é que em Loriga e em Alvoco da Serra

há dois locais com o mesmo nome, As Lages.

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III. Mingau de Tapioca

Para conhecermos o Século XIX temos que recuar um pouco atrás, mas também o

podemos resumir ligeiramente em duas palavras ou dois momentos, cada um com

cinquenta anos, e que são, “tragédia” e “ansiedade”. Mas recuemos, por enquanto.

Em 1785, nasceram berrando em São Salvador da Baía, no Bairro do Pelourinho,

dois gémeos de peso elevado e netos de Tomé Simão, loriguense e rico. A filha

perdeu a vida da mesma forma que a mulher, uma francesa que fora actriz,

parindo. O pai das crianças partira um mês antes para a India portuguesa e de lá,

não mais deu notícias ou simples ‘ui’ ou ‘ai’.

Tomé criou as crianças, Augusto e Eduardo, com o amor de pai a filhos, na Capital

da Colónia, entre ‘sinhás’, povo do Santo, orixás, voduns e inquices, no sorriso de

beirão e a liberdade dos da Serra.

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Tomé saíra criança de Loriga e juntara-se à comunidade loriguense de Manaus. Os

loriguenses chegaram ao Brasil com Pedro Teixeira e até meados do Século XX,

foram chegando. Inicialmente, os loriguenses fixaram-se em Manaus, na sua

maioria e na sua minoria, em Belém do Pará. No início do último século, Manaus

foi sendo abandonada e Belém assumindo o seu papel.

Tomé não se deu bem com o clima e logo que pode fugiu da floresta. Teria pouco

mais de catorze anos quando se fixou em São Salvador da Baía e aí começou como

biscateiro; fazendo recados aqui e ali. Depois comprou uns pintos, uns coelhos e

finalmente porcos. Foi crescendo e aumentando a criação, entre uma colónia que

crescia e que não tinha tempo para cuidar de animais. Os criadores eram muito

poucos e a gente sempre a chegar, por isso, Tomé ficou honesta e esforçadamente

rico. Como era inteligente como os mochos e esperto como as raposas, cuidou de

aprender a ler e a escrever. Aperaltou-se e ganhou modos e educação. Embora

gozado por viver entre estrume, todas as portas se foram abrindo. Cultivava o

segredo e o silêncio. Ouvia sempre no dobro do que falava, pois só assim justificava

o facto de Deus lhe ter dado duas orelhas e apenas uma boca. Um dia e na idade

certa – que são todas -, apaixonou-se. A moça era exactamente o oposto de Tomé.

Rosada da pintura, mas de tez tão pálida como a melhor das cales. Transparecia a

fineza das filhas de famílias arruinadas, entregue ao trabalho por falta de pão para

a boca. Era francesa e uma jóia de criatura atirada para o teatro quando a fama

dessa arte não era das melhores. Jacqueline de seu nome, juntou a paixão à

salvação que Tomé igualmente representava e por quadris estreitos ou medicina

mal cuidada, viria a morrer parindo Maria do Carmo.

Maria do Carmo, recebeu o nome do pai, em honra da Nossa Senhora do Carmo,

cuja capela encima o bairro de São Ginez, em Loriga. Foi uma criança vistosa e

muito amada. Reinava nela a alegria da terra onde nasceu e um amor intenso pelo

senhor, seu pai. Foi aliás, esse amor filial, que fez com que casasse tarde, mesmo

que a beleza escondesse a idade.

Escolheu, assim, para noivo, um belo militar português que muito lhe fazia

lembrar a valentia do pai e a nobreza dos seus valores. E foi na terra de Caramuru

e de Paraguaçu que a bela Maria do Carmo, nasceu, casou e morreu.

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A partir da morte da sua única filha, Tomé nunca mais tirou o preto e estreitou a

relação que já tinha com as negras do Candomblé. O seu sorriso desapareceu e só

voltou quando os gémeos começaram a crescer. Eles eram exactamente iguais e só

o avô, que cedo começaram a tratar por pai, é que os conhecia bem e os distinguia

melhor. Brincavam nas ruas entre moleques negros e sorridentes, na alegria e no

colorido entre a Cidade Alta e a Cidade Baixa, por entre a escrevaninha do avô e

as descargas dos navios, no porto. Por isso, foi com dor e aquela saudade comum

às duas gentes, brasileira e portuguesa, que ambos embarcaram para Lisboa, a fim

de ingressarem no Colégio dos Nobres. E, não menos dolorosa foi a dor do avô que

viu tudo, o que quase lhe restava de família, partir.

No entanto, Tomé sabia da existência de uma irmã em Loriga, que nunca

conhecera, pois tinha nascido depois de ele ter partido. Sabia que tinha vários

sobrinhos e que parte deles tinham também partido para o Brasil, mas os laços

tinham-se cortado e o esforço para esse estreitamento, mais dele do que da mana,

sofrera quase definitivamente com a morte desta. Restava-lhe umas cartas, raras

por sinal, do padre da paróquia de Santa Maria Maior de Loriga a lamentar a

pobreza de uma sobrinha, que ele procurava ajudar à distância.

Quando os gémeos chegaram a Lisboa, a luminosidade do céu português e a

curiosidade de quem pouco conhecia, fez com que a saudade do avô fosse

apaziguada, pois sabiam que se melhores estudantes fossem, mais depressa

voltariam. À sua espera estava Pina de Aragão, um amigo de negócios do avô e

parente afastado do pai que não conheceram. Era um homem novo, corpulento,

esperto e tão responsável que parecia muito mais velho do que a idade que

realmente tinha.

Pina de Aragão, que tinha família perto de Gouveia, ia muitas vezes a Lisboa, em

negócios e possuía uma casa na Rua da Rosa. A casa não era vistosa, para que não

mostrasse ter os bens que tinha. Foi nessa casa, aliás, que os gémeos viveram

durante o tempo em que estudaram. Também em Lisboa conheceram vários

amigos que seriam amigos para sempre, como o jovem Arrais, Luís Pinto de

Mendonça Arrais, senense, filho de um juiz Desembargador da Relação do Porto e

sobrinho do bispo da Guarda e de Pinhel. Foi a este moço amigo que foram

gabando Loriga que não conheciam e contrariados pela rivalidade das virtudes de

19

Seia, propagandeadas pelo jovem Arrais, que depois de uma clara temporada de

animosidade, os gémeos adoptaram o senense como um familiar próximo e

querido. A mesma reciprocidade encontraram no colega que não descansou

enquanto não os deu a conhecer aos seus familiares e conterrâneos.

Mas se em São Salvador o ar era de alegria e de esperança, em Portugal sentia-se a

goela cada vez mais estreita e a aflição de uma nação que antes fora grande e agora

ajoelhava perante outros.

A 10 de Janeiro de 1792, a “Gazeta de Lisboa” noticiara o estado de insanidade da

rainha. Um mês depois, o príncipe D. João assumiu a governação, que nem dois

dias depois, com o início da Lotaria da Misericórdia no Porto, o povo alegrou. Em

Abril do mesmo ano, Tomás António Gonzaga é condenado ao degredo e José da

Silva Xavier, o Tiradentes, é enforcado.

O reino mostrava uma letargia que adivinhava coisa pior. Até nas coisas pequenas

se sentia tal coisa. Por exemplo, nesse ano a Academia Real das Ciências iniciava a

publicação de “Memórias da Língua Portuguesa” e no ano seguinte, publicou o 1º

volume do “Dicionário da Língua Portuguesa”, mas que não passou do 1º

volume…

Ainda em 1793, os ingleses desembarcam em Lisboa e Portugal e Espanha fazem

uns pequenos arranhões na França. Mas, logo em 1794, a Espanha negoceia em

Basileia com a França, um tratado onde Portugal não é visto nem achado.

O Santo Ofício ganha de novo importância com a extinção da Real Mesa da

Comissão Geral sobre o Exame e Censura dos Livros, isenção que só valeu para as

publicações da Universidade de Coimbra, dois anos depois.

O algodão foi fiado a título excepcional e importado para acorrer às necessidades

das fábricas de estamparias. Surge, entre tanto ou tão pouco, a obra

“Demonstração das Grandes Utilidades que devem resultar a todos aqueles que

empreenderem a fiação e tecelagem do algodão em Portugal”, de Jácome Ratton.

O ambiente político e social ia de mal a pior e por isso, ainda piorou quando, na

manhã do dia 17 de Janeiro de 1796, um forte abalo de terra se sentiu em Lisboa e

os mais velhos recordaram o que se havia passado 50 anos antes.

20

Muitas rezas e missas se celebraram e muitos em púlpitos pregaram, mas nada ia

de feição, pois a 29 de Fevereiro do mesmo ano caiu um forte nevão em Lisboa e

até aqueles que mais temiam a Deus, consultam bruxas e adivinhos. A agonia

andava de boca em boca e de alma em alma. Em 1799, o príncipe decidiu a união

das fábricas de lanifícios de Portalegre, da Covilhã e do Fundão. A lã escasseia e

tanto Alvoco da Serra como Loriga procuram amizade e negócios com os ingleses

do vinho do Porto que já trocavam com Inglaterra vinho por lã…

D. João ocupa a regência que só termina 17 anos depois com a morte da rainha D.

Maria I. Entretanto, entre cartas e escritos, Tomé sabe do falecimento da irmã e da

gravidez de uma sobrinha que enviuvara antes de ser mãe. A coisa arrelia-o e a

distância apoquenta-o. Por isso e a fim de criar uma maior relação familiar, enviou

uma carta aos netos para tomarem conta da prima. Em finais de 1799 e depois da

ocupação simbólica de Goa pelos ingleses, os gémeos enviaram uma carta ao padre

de Loriga confirmando uma visita aos Montes Hermínios e o agendamento do

baptismo da criança da prima. Eram outros tempos, mas com a ingenuidade de

sempre. . .

Depois do Governo de Pombal, os portugueses ficaram órfãos de mãos e punhos

fortes, mesmo que Pombal não tivesse sido simpático com os nossos compatriotas.

O que é nosso sempre foi mal estimado por nós e cobiçado pelos outros. Mesmo no

tempo de Pombal a cobiça atacava-nos, como foi o que nos aconteceu em Oman,

Mombaça, Pate e Zanzibar; fora a quantidade de vezes que holandeses, ingleses e

franceses tentaram conquistar Lourenço Marques.

A cobiça dos outros ao que é português foi e é tanta que até austríacos queriam

ficar com Moçambique. Mas até com Pombal e o seu orgulho, Portugal foi

perdendo terra e influência.

A expulsão da companhia de Jesus fez com que os mais sapientes portugueses

partissem para o Vaticano, para a Polónia, Rússia e outros sítios onde assumiram

outra nacionalidade; como, aliás, o fizera o povo de Spinoza, anos antes.

O Padroado da Ásia ficou bem mais pobre e o próprio papa começou a nomear

vigários-apostólicos de outras nacionalidades sem se preocupar em consultar ou

informar Lisboa. Goa mantinha a monumentalidade, mas era santo de pau oco.

21

Com o desaparecimento de Pombal, a Inquisição voltou mais escondida e mais

hipócrita. Representavam a tacanhez da alma humana e em nome de Deus,

impunham fantasmas, medos e pecados que seguramente ofenderiam o Deus que

diziam amar. A crendice beata e a loucura de D. Maria I ajudaram a essa gente

velhaca impor nas almas o que Deus jamais depositaria nos seus filhos.

Fosse por venda ao desbarato ou negócios bem-feitos, pese embora o mau clima

político, a economia nos finais do Século XVIII singrou e o dinheiro tilintava nos

bolsos. Os pés-descalços eram menos e a esperança do povo era muita, mesmo não

sabendo bem quem os governava. O clima entre nova e velha nobreza era ameno e

são; assim, como a relação destes com a burguesia.

Os gémeos visitaram Loriga na companhia de Arrais que os alojou na sua Casa

das Obras, em Seia, pois um dos gémeos tinha prometido ser padrinho do neto da

irmã de Tomé.

Chegaram a Loriga com dois dias de atraso, face ao nascimento da criança. O bebé

nascera fraco, colocaram-no sobre as costas de uma telha e em menos de uma

hora, ali o baptizaram, não fosse morrer e cair no Limbo. Como o padrinho não

chegou a horas, a criança foi apadrinhada por Nossa Senhora do Carmo e São

Ginez. O nome não poderia ser mais esperançoso, num século que nascia nesse ano

de 1800, Sebastião, pois assim quis a mãe, menos dada a desejados, mas a pensar

no nome do seu próprio pai, também ele, Sebastião.

22

IV. Os Achadiços

Em 1800, uma semana antes ou depois de nascer Sebastião, mais coisa menos coisa,

quando os figos cuidavam de serem doces e tentadores nas margens da levada para

a Cabeça e num dia de calor ardente ou de ‘chisneira’, como se diz em Loriga,

nasceu também berrando uma criança que prontamente foi baptizada, cuidando

que não caísse no Limbo, caso morresse sem o primeiro sacramento.

O acto passou-se muito longe da Serra da Estrela e numa capela, em terras planas

do Ribatejo. Filho indesejado de uma jovem solteira de uma das melhores famílias

da região, tinha como única defesa e garante de vida a força do avô materno, pois

até a avó cuidava que ele fora fruto de uma maldição do Diabo.

23

A mãe fora violada por um rapaz que trabalhava nas cavalariças da família. A

rapariga debatera-se em gritos e arranhões, enquanto era selvaticamente agredida.

O barulho foi grande e depressa chegou gente a acudir. O agressor fugiu e foi

procurado dias sem conta, mas nunca foi encontrado. Para trás apenas deixou uns

papéis e um fio em ouro com um escaravelho egípcio verde, em pedra sabão.

A moça desejou e tentou a morte por dias, mas depois de bem lavada e sossegada,

entre orações e pedidos de perdão ao divino, acalmou e procurou esquecer tudo.

Depois, quando os dias pareciam ser maiores e as flores teimavam em florir, foi

desmaiando e enjoando, até que aquilo que parecia uma leve dúvida se tornou uma

certeza e um pesadelo.

Entre choros para aqui e para ali, o desmancho estava logo afastado à partida pelo

facto de ser pecado e porque nunca um Veiga tiraria a vida a um dos seus. Assim,

nasceu. E, logo ao nascer, sem que a mãe quisesse ver a criança, dela foi afastado

por vontade dela e pelo destino de clausura monástica da ‘Lectio Divina’ a que a

mãe seria obrigada, da Ordem do Carmo.

A criança cresceu assim com os avós maternos. O avô era um Veiga. Último de

uma linhagem de militares e fiéis incondicionais ao Rei, a Portugal, à família e a

Deus. Havia sangue e honra dos seus em todas as batalhas do reino e de quase

todas saíram vitoriosos.

Este Veiga não era menos dos que os outros, embora tivesse andado mais ausente

do cuidado da paternidade, em terras da Índia e do Brasil. Fora aliás no Brasil,

que os Veigas tiveram sempre uma segunda casa, antes e depois da descoberta de

filões de ouro. Os Veigas estiveram sempre na segunda linha de importância nos

“Brasis”, fossem os vice-reis Meneses, Noronhas ou Mascarenhas.

Com eles, também o território colonial cresceu. Viram crescer do nada o Rio de

Janeiro, Olinda e o Maranhão. Estiveram em momentos históricos e conheceram

bem os rostos e as feridas de Fernão Dias Pais Leme, Manuel de Borba Gato, de

Luís Castanho de Almeida e de outros mais bandeirantes. Nos momentos certos,

beijaram a mão a Anchieta e a Manuel da Nóbrega. Foi, aliás, um Veiga que

aproveitou as dissensões entre as partes em quezília para, na Guerra das

Emboadas, tomar o controlo das minas e da exploração do ouro de Minas Gerais,

24

mesmo que ainda uma grande dose desaparecesse constantemente por

contrabando. E, quando a extracção do ouro parecia aligeirar, os portugueses

descobriram diamantes naquela terra abençoada por Deus e bonita por natureza.

Apesar de tudo, voltavam sempre ao Ribatejo, como se a alma se misturasse com

os cavalos, o gado e o cheiro da terra.

Agora, os tempos eram outros e Portugal era uma panóplia de políticas, interesses

e velhacarias, em que tudo mudava constantemente. Desde 1790 e pouco ou mesmo

antes, falava-se de mudar a Corte para o Brasil, entre duas correntes cada vez

mais assanhadas, a anglófila e a francófona. Um Veiga nunca optaria por esta

última, pois significava humilhação e traição a tudo o que defenderia. Por isso,

para este recém-avô, seriam dias cruéis.

De oito filhos, Veiga veria quatro morrer a defender Portugal e fazê-lo pensar se as

cinco quinas valeriam o seu sangue e a sua dor, quando mais tarde o Rei e os seus

filhos apreciavam as areias claras e as frutas abundantes dos Brasis. Todas as

noites rezava para não perder a calma, a alma e mais filhos.

O seu único neto era a sua única esperança. Criança nascida no menos desejado

momento e do menos querido dos pais, Veiga perdoara tudo e até aquela ofensa ao

rapaz violador, pois o sorriso da criança desarmava a mais fria das criaturas…ou

não.

O moço, que violara a filha, era da Cabeça e entre pontapés daqui e dacolá, um dia

fixou morada nas terras da família Veiga. Jovem e atrevido face a uma moça que o

mais desafiante na vida fora o ponto-cruz, facilmente conseguiu o que sempre

desejava, pois desde nascença que vivia de acordo com a direcção do vento e do

capricho, sem eira nem beira.

A Veiga sobrava apenas a esperança de um Mundo bem diferente e melhor, em

que o neto pudesse crescer alegremente. Dos dois rapazes que tinha e sobravam, o

mais velho, Abílio, abraçou a religião e não pudendo abraçar a Companhia de

Jesus, como mais um dos seus pilares, rumou a Roma e ao Vaticano e que, durante

os pontificados dos papas Pio VI e Pio VII, foi secretário particular do cardeal

polaco Tadeusz Brzozowski, mais tarde Prepósito Geral da Companhia de Jesus,

quando foi reestabelecida em 1814. Quanto ao rapaz mais novo, António, o pai

25

procurara educar em vão, pois era o exemplo trágico do resultado dos mimos da

mãe. Era pródigo nos gastos, vaidoso onde deveria ser modesto e estúpido nos

modos, pese embora a educação recebida. Meteu-se em negócios que nada deram e

nunca se deu ao trabalho de trabalhar. A inteligência, por seu turno, também não

ajudava e a pouca que tinha era gasta em provocar ou fazer mal aos outros.

Portanto, a sua força era a sua enorme mediocridade e malvadez. Veiga tinha

igualmente duas filhas, quando nasceu o neto. A mais velha seria forçosamente

carmelita e a mais nova, Irene, embora mais esperta que António e menos má,

superava-lhe em preguiça. Nunca precisou de fazer nada, pois passou do sustento

materno para a exploração marital de um francês, filho de um banqueiro, que se

tinha apaixonado por Lisboa. Os quatro filhos eram assustadoramente diferentes,

sendo os dois mais velhos parecidos e os dois mais novos também…

E num ambiente tão pouco prometedor e convidativo, num Mundo que terminava

e noutro que parecia nascer em promessas de Liberdade, mas que só espalhava a

dor, o neto de Veiga foi baptizado com o irónico nome de José Benedito.

Enquanto José Benedito dormia sobre cetim e brincava com guizo de prata,

Sebastião dormia em colchão de palha e entretinha-se a tirar a palha pelos

remendos ou buracos da capa do colchão. José Benedito gastava as manhãs a

montar póneis e Sebastião a pastar cabras. Ao lanche, José Benedito comia scones

e Sebastião mugia e chupava as tetas das cabras e ovelhas. José Benedito crescia a

aprender a fazer bolas de sabão e a ver teatros de fantoches e Sebastião divertia-se

a tomar banho de ‘inqueiro’, nu em ‘loriguês’, ou a procurar grilos em buracos

nas courelas e malhadas.

Sebastião dormia numa cama de ferro agarrado pelos braços afagantes da mãe e

José Benedito nunca vira a mãe, apesar de dormir numa cama de estilo qualquer

coisa... Sebastião sorria quando comia arroz frio e José Benedito não chorava

quando ouvia diariamente palavras frias do seu tio António.

A mãe de Sebastião acariciava-o e cantava-lhe “Sebastião come tudo, tudo, tudo”.

O tio de José Benedito apertava-lhe as orelhas às escondidas e chamava-lhe

constantemente ‘bastardo’. Irene sempre que via um asno na propriedade do pai,

dizia “Lá vai um JB” e ria, ria...

26

Depois do nascimento de Sebastião e de José Benedito, a vida continuou como tudo

o resto.

Em 1802, apresenta-se em Lisboa um novo embaixador de França, o General

Lannes, mas a festa foi tamanha que muitos julgaram que Deus voltara à Terra

para o juízo final. E logo que Lannes chegou, exigiu por portas e travessas que o

intendente Pina Manique fosse corrido e assim foi. Lannes era agora como que a

segunda ou terceira figura da Nação e tão importante era a criatura que a 13 de

Junho de 1802, na noite de Santo António – pasme-se o Senhor e todos os anjos ou

querubins -, Lisboa e todos os alfacinhas ouviram tocar a marcha da Marselhesa

em honra do Santo António. Dias depois, não sei precisar o dia ou melhor a noite,

funda-se a Loja Maçónica Portuguesa, O Grande Oriente Lusitano. Lannes, em 19

de Dezembro de 1803, consegue a convenção garantindo a neutralidade de

Portugal. No mesmo mês, nasce o Colégio da Luz como símbolo do melhor que

ainda sobrevivia de Portugal e que seria o antecessor do Colégio Militar. Ainda no

mesmo mês três marcos importantes para o futuro da indústria portuguesa, a aula

de Desenho e Debuxo é incorporada na Academia Real da Marinha e do Comércio,

o luso-brasileiro José António Carvalho Rodrigues da Silva escreve “A Memória

Sobre o Estado Actual das Fábricas de Lanifícios da Vila da Covilhã e das coisas

que retardam a sua última perfeição” e Manuel Luís da Veiga, comerciante,

cristão-novo escreve a obra “Escola Mercantil sobre o Comércio”. Outras obras

surgem, como as de Joaquim José Rodrigues de Brito, de José da Silva Lisboa

sobre economia e a de Soares Franco sobre Agricultura.

Regulamentam-se, nos finais de 1804, os aforamentos dos maninhos e montados e

afirma-se o “individualismo agrário”. Napoleão reconhece a neutralidade e o peso

do “partido francês” provoca a ascensão de António de Araújo Azevedo à

Secretaria dos Negócios estrangeiros e na mesma noite celebra-se em Lisboa um

tratado de amizade e fraternidade entre as duas obediências maçónicas dos dois

Grandes Orientes de França e de Portugal.

A 20 de Abril de 1805 entrega cartas o novo embaixador de França em Portugal,

Junot, que antes passara por Madrid para decidir sobre a invasão franco-

espanhola de Portugal que apesar de neutral vivia infestado de tropas inglesas.

Nessa altura, o príncipe regente D. João anda mais ocupado com o sagrado e

27

propõe-se a criar seminários em todas as dioceses e também cemitérios públicos.

Por esse ano surge o cemitério de Loriga, no actual local do jardim de Santo

António. O cerco a Portugal desenha-se e avisado, o príncipe manda celebrar

missas.

1807 é u ano tramado, mas naturalmente precedido de um não menos ruim 1806,

que de Novembro a finais de Dezembro temos Napoleão Bonaparte a decretar o

Bloqueio Continental e os ouvidos mocos de Portugal

às ordens do natural de Ajaccio. Dá-se, ainda, a Conspiração de Mafra onde vários

nobres sonham com o afastamento de D. João. Os pombeiros Pedro Baptista e

Amaro José chegam ao Cazembe, no interior da África Austral. O Duque de

Lafões morre e Veiga vai ao velório e missa de 7º dia…

O pior está para vir.

28

V. In Hoc Signo Vinces

Em Julho de 1807, Napoleão ordena o fecho de todos os portos marítimos

portugueses e a 11 de Outubro ordena a Invasão a Junot.

Dias depois, no dia de 27 de Outubro de 1807, nasce o Tratado de Fontainebleau

que prevê a divisão de Portugal em três territórios, um para o rei da Etrúria, outro

para fazer parte da Espanha e o último para o Imperador plebeu.

Nesse mesmo dia, junto do actual Martinho da Arcada, secretamente um espião do

príncipe regente português entrega uma convenção secreta assinada e com lacre a

um militar inglês de baixa patente, que no Terreiro do Paço embarca para a Grã-

Bretanha. Nesse documento, a família real portuguesa declara que a Coroa de

Portugal é transferida para o Brasil e que autoriza a ocupação total da ilha da

Madeira, enquanto existirem operações militares britânicas em Portugal. No

mesmo documento, o príncipe pede perdão ao monarca inglês pelo sequestro de

29

todos os bens de famílias inglesas em Portugal, pois espera com isso, acalmar a

França e evitar a invasão. Mas horas depois, Junot invade Portugal e concentra

tropas em Abrantes, para avançar sobre Lisboa.

Na capital alfacinha, em apenas uma hora são emitidos 11 mil passaportes, muitos

deles escritos a lápis, como os dos gémeos, netos de Tomé Simão, e do amigo Luís

de Mendonça Arrais. O Intendente-Geral da Polícia, um francês que o povo

alcunhou de “Lagarto”, testemunha pelo punho, com tinta e pena sobre papel, que

“tratou-se da maior sangria de gentes e de dinheiro desde que Moisés abandonou o

Egipto”.

No dia 26 de Novembro de 1807, os nove membros, representantes da Nobreza, do

Clero e da Magistratura, são nomeados para o Conselho de Regência que irá

substituir a família real nas rédeas de Portugal.

Três dias depois, no dia 29, pela manhã e bem cedo, junta-se um vasto grupo de

gente composta pelo “Lagarto”, por assessores e secretários da Regência nomeada,

académicos, magistrados, nobres, comerciantes e outros, entre um peso

significativo de maçons, junto à Academia Real das Ciências que a cavalo e a pé

dirigem-se a Sacavém para pedir protecção a Junot e prestar vassalagem ao

Imperador da França.

Quando Junot entra em Lisboa, acompanham-no todos, incluindo a amante, a

Condessa de Ega, cujo marido vive satisfeito e orgulhoso com o facto de ter sido

traído com quem; e tal peso, sobre a cabecinha, em nada atrapalha o seu trabalho

diplomático em Madrid, sendo que tal fama até lhe dá uma alegre e vistosa

notoriedade. O francês percorre triunfalmente as ruas da capital escoltado pela

Guarda Real da Polícia, sobre pétalas de flores azuis, brancas e vermelhas.

Em carta de 7 de Janeiro de 1808, para Fouché, ministro da Polícia, Napoleão

ordenava que fosse enviado para Portugal Pierre Lagarde, a fim de assumir o

comando da polícia. Pierre François Marie Lagarde tinha sido funcionário do

ministério da Marinha passando, após o golpe de Estado de 9 do Termidor, que

derrubou Robespierre, para o ministério dos Negócios Estrangeiros. Napoleão

encarregou-o de organizar a gendarmaria, que dirigiu durante três anos, ao

mesmo tempo que chefiou a divisão do Livro e da Imprensa, subordinada desde

30

1804 ao ministério da Polícia. Em 1805 foi enviado a Milão, para junto do príncipe

Eugénio de Beauharnais, a fim de organizar a polícia na Lombardia; no ano

seguinte era director-geral da polícia. Cumpriu estas missões com grande sucesso;

quando Veneza foi integrada no reino de Itália, Lagarde dirigiu a polícia de

Veneza e do Adriático. O mesmo, foi enviado para Portugal durante a I Invasão e

nomeado por Junot para o cargo de Intendente Geral da Polícia e, também,

conselheiro do governo. O Intendente foi também responsável pela edição da

Gazeta de Lisboa, transformada em órgão de propaganda francesa.

Homem lento, pensativo e de olhar tenebrosamente fixo, depressa ganhou a

alcunha de “Lagarto” devido aos olhos verdes e a uns tiques estranhos de muito se

abanar. Ir ter com o Intendente ‘Lagarto’ era não ter a certeza se voltaria a ser

visto por alguém e assim quando alguém era preso, o povo dizia alto, “Lagarto,

Lagarto, Lagarto” e o detido gelava ou morria de pavor, antes de avistar o cárcere.

A família real partiu atrapalhada para os “Brasis”, onde monstros terríveis viviam

nas histórias infantis de D. João, que tardava em demonstrar o comportamento de

adulto; e talvez, por isso, mas não serve de única desculpa, o Príncipe entrou

confuso no navio. Queria ir, mas ficar. Chorava, enquanto ria. Enfim, coisas que

nem ele, nem ninguém sabia. . .

Com ele, foram os que podiam e se mais pudessem, mais iam. Partiu assim, o neto

mais distinto do Santo Condestável; herói este, cuja inteligência e bravura fez

construir o seu exército com significativo número de homens dos Montes

Hermínios e que nunca virou as costas a uma luta, porque sabia que é melhor

morrer a lutar do que viver vencido.

Foi com raiva, tristeza e acometido de uma gripe sonora que tardava em passar,

assustando e fazendo temer todos os que o circundavam no cais, conhecedores dos

males históricos e pestes infindas que assolaram a alfacinha capital, que Pina de

Aragão firme e volumoso se despediu da família real, dos gémeos e de Luís de

Mendonça Arrais, em Belém.

Levavam com eles o incerto e o desejo de dias melhores num Mundo novo entre

meia dúzia de morcelas da Guarda, mais umas tantas garrafas de Dão, de Santar e

de Pinhanços, que rapidamente consumiram quando Cascais ainda era visível.

31

Enquanto isso, no farnel, restavam umas castanhas da Lapa dos Dinheiros, um

queijo amanteigado de Celorico e umas peras secas de Melo. Tudo foi comido ou

trocado depressa para que não se estragasse ou fossem roubados, pois entre tantos

ricos e outros remediados abunda sempre mais cobiça que entre pobres e doentes.

No cais de Belém ficaram os abandonados, temendo o incerto ou aguardando

silenciosamente um invasor altivo que barbaramente prometia liberdade,

fraternidade e igualdade, deixando um rasto de sangue, violência e pilhagem por

onde andava e que lhes prometia um destino risonho sob a égide de uma águia

imperial, que só os britânicos sonhavam depenar.

Pina de Aragão não cruzou os braços, nem lamentou ou teceu comentários ao que

ia, ao que ficava e ao que lá vinha. Montou o cavalo e só descansou, com o nome de

verdadeiro ‘descanso’, quando entrou em terras que considerava serem beirãs e do

distrito da Guarda. Pernoitou, já não sei onde; e, depois, com a força e a valentia

que dos avós e dos avós destes já vinha, em todas as terras que achou e viu

espalhou a palavra, sem que ninguém lhe pedisse, nos adros das igrejas, praças ou

feiras de que todos os que se sentissem capazes, acudissem à Sé Velha da Guarda, à

primeira missa do próximo Domingo e gritou, partindo, “Sem Rei teremos sempre

Deus e o bispo da Guarda e do Pinhel do nosso lado ou não sejamos beirões!”

O alvoroço e a confusão daquele homem alto e encorpado que aparecia nas terras,

bem vestido e que falava com uma voz que se ouvia nos extremos de cada povoado,

aldeia ou vila, punha todos de pantanas e em confusão, sem saberem bem porquê e

ao que iam, mas todos nomearam homens que foram à Guarda.

Pina de Aragão continuou galgando o caminho como uma seta rápida, segura e

directa com destino preciso, a cidade mais alta de Portugal.

Longe estavam as dores de ossos e os calos moídos em alguidares de latão com

água quente, que a mulher mandava aquecer aos criados. Havia nele a força de

uma vontade que não se rendia. Sentia-se em divida com todos os que antes dele

nasceram e dos que ante ele viviam. Um país não podia estar entregue à bicharada

e muito menos a estrangeiros. Alguém teria de mandar e se César não cuidava do

que era de César, então a Deus o que de César era!

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D. Mendonça Arrais, tio de Luís de Mendonça Arrais, servira toda a vida a Deus

como um fiel e zeloso soldado, que nada questiona e de nada se interroga sobre a

alçada do Superior. Chegara agora à idade dos dias curtos em que são mais as

dores de ossos do que os acordares felizes. Sem lamentos ou actos de contrição,

tinha a humildade dos verdadeiros príncipes, que nada reclamam e só de si exigem,

perante o que fazem e que acham sempre pouco. O sangue que trazia nas veias era

tão forte e misterioso como as serranias. Dizia a gente, de boca em boca, que os

Arrais vieram do Norte de África e que antes de Roma e que no seu sangue corria

o sangue puro de São Maurício, o mesmo que ficara com a lança que feriu Cristo.

Diziam que a família se espalhara por sítios e outros sítios, mas em todos os lugares

honrara, entre tristezas, a coragem, a destreza e a inteligência que, se nos Arrais

parecia lendária. Mas provada, é comprovada em escritos e feitos, do lado dos

Mendonças, também sangue seu. Era sobrinho, em grau que se perdia em conto, de

Joana de Mendonça, 2ª Duquesa de Bragança, uma das mais belas e inteligentes

mulheres que a terra lusa viu nascer e era também o mesmo “Mendoça” que fazia

parte do tecto dos brasões mais nobres de Portugal que cobre as cabeças, que no

palácio da Pena andem. Era parente de Brás Garcia de Mascarenhas e da madre

das freiras do Pinhel. Antiquário, pintor, poeta, historiador, poliglota que só

encontraria, talvez, gente à altura da sua grandeza na figura do Doutor João

Salgado de Araújo, o lendário Abade da Pêra, que Brás Garcia de Mascarenhas

imortalizou apelidando de ‘Tito Lívio desta Idade’. O senense bispo que passou a

infância em Avô, onde teve também casa a sua família e onde eram vizinhos dos

Soares de Albergaria, passou a juventude a caçar e a galgar as Penhas, em Loriga.

Conhecia míscaros como ninguém e tratava a espada como parte do seu corpo,

mas, como tudo, agora estava velho.

A velhice dava cabo do juízo e do resto que sobrava ao enorme Bispo da Guarda e

do Pinhel, incluindo o gasto solidéu.

Com um joelho no chão e outro dobrado, repetia baixinho para si o que lia

gravado num túmulo de uma das capelas da Sé da Guarda, “. . . anima mea ad te,

Deus.” e “. . . anima mea ad te, Deus.”, quando a albarda da porta maior da Sé

chiou. Eram sete da tarde e já mais de metade do país dormia, naquele tempo, em

que se deitavam com as galinhas. Um vulto com quase dois metros entrou e o bispo

cuidou que fosse Lúcifer pela grandeza da sombra. Depois o vulto, embrulhado

33

numa capa portuguesa, mas de burel e com o tricórnio seguro na mão esquerda,

ajoelhou com os dois joelhos no granito. Fez o sinal da cruz e beijou a mão. O bispo

sossegou e aproximou-se.

- Quem se atreve e ousa entrar nesta Sé e a esta hora?

O vulto não respondeu, pois ainda segredava umas frases em latim e depois ergueu

o rosto, ainda de joelhos, e disse:

- Um filho de Deus nunca é ousado quando entra na casa do Pai!

O bispo sorriu e completou ao reconhecer os traços familiares. . .

- Principalmente quando é afilhado do bispo da Guarda e de Pinhel. Dai-me um

abraço, meu querido filho!

Seguidamente, os dois trocaram notícias e cruzaram ideias, mas a Excelência

Reverendíssima tentava colocar água fria na fervura do visitante. Era o peso da

Instituição e o saber de uma vida, que lembrava que o único anarquista bem

sucedido de toda a História, foi Cristo e mesmo assim, morreu na cruz. O bispo da

Guarda e de Pinhel, D. Mendonça Arrais conhecia bem as dores das suas

paróquias e as agruras de outras revoltas. Tinha em si muito do que a Igreja

prega, mas também uma enorme experiência humana que não vinha de rosários

rezados ou de sermões bem apalavrados. Era um homem que sempre achou que a

melhor forma de servir a Cristo era por acções e não por palavras.

Desde criança que a pobreza dos outros lhe metia nojo, não por serem pobres, mas

pela indiferença de tantos. Para ele, não havia maior pecado que a omissão. Na

omissão estava mais do que a Parábola do Samaritano. Na omissão, estava o

desprezo que é o sentimento mais vil que se pode dar a alguém e que certamente

alguns merecem. Desde cedo, D. Mendonça Arrais dividiu, ainda que às

escondidas, o que tinha com os mais necessitados e às claras, foi dando cobertores

de papa, pão e o que era costume dar aos que podiam e queriam. Nunca foi homem

de ficar de braços cruzados e não era homem de ‘falinhas mansas’. Quando abria a

boca, alguém se sentia e alguém mordia a língua. Por isso, a raiva foi crescendo de

levezinho em Pina de Aragão, pois nunca vira tal coisa no homem que no dia do

seu próprio nascimento, gritara a sua mãe para que fizesse força e nascesse.

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No dia seguinte, Pina de Aragão reparou que o bispo talvez seguisse as ordens do

príncipe e que recebesse os franceses com simpatia e sem resistência, pois da

cabeceira da mesa, no jantar em casa de Alarcões, o bispo mandou calar o afilhado

quando ao dono da casa, Pina de Aragão disse que era hora de pegar em armas e

Alarcão não gostou. Este disse logo que era coisa idiota de cristão-novo, pois ele

sabia que todos os judeus estavam com os franceses. A conversa acalorou-se e

entre várias pessoas, apenas o tesoureiro-mor, Simão de Oliveira da Costa Melo e

Alvim, ficou do lado de Pina de Aragão, mas notava-se no Bispo uma luta interior

entre o padre e o homem. Também naquela mesa se notou imensa raiva aos judeus

e aos cristãos-novos que apenas acalmou quando Pina de Aragão disse que nunca

tinha conhecido, ele e os seus, outro Deus que não fosse o católico e que “Ou bem

que se é católico, ou bem que se é judeu! Agora isso, de cristão-novo não é nem

uma coisa, nem é outra!”. E depois, Simão que quase sempre se manteve calado,

colocou a pedra, “. . .E até Cristo era judeu”.

O Bispo da Guarda e de Pinhel recebeu bem os franceses, mas também foi o

primeiro homem em todo o Distrito e o primeiro Bispo em todo o país, depois do

primeiro crime dos franceses a excitar os fiéis à resistência e a organizá-la, tendo

como ajudante e seu braço-direito, Simão. O bispo espalhou armas e chegou a

formar um corpo de cónegos e outros eclesiásticos armados. Quando nem uma

bengala o segurava, a sua determinação fê-lo mexer e erguer mais rápido que São

Lázaro. A idade, a valentia e o carisma fizeram apenas que não fosse fuzilado pelos

invasores. Morreu cansado, sozinho, no Paço Episcopal de Melo onde passou os

últimos dias.

O bispo D. Mendonça Arrais foi um dos mais corajosos e cultos homens que Seia

viu nascer e um dos mais amados pelo povo. Ao morrer teve um dos mais

populares enterros de sempre em Portugal.

Hoje, é uma vergonha que a sua última e imponente morada esteja em ruínas.

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VI. Inqueiçados

O dia 29 de Novembro de 1807 foi um daqueles dias em que o tempo estava tão

mau que não apetecia ir a lado nenhum, muito menos ao Brasil. A vida parece ter

um lado divino e um lado diabólico ou irónico.

Em seis naus, três fragatas, três brigues e duas escunas iam quinze mil pessoas da

potência europeia mais velha e com mais colónias, senhora e dona maioritária do

Atlântico e outros mais oceanos, a fugir de uma monarquia de um plebeu nascido

numa das ilhas mais pequenas de um pequeno mar que banha três continentes.

Mesmo assim, até nisso os portugueses foram pioneiros, pois a primeira cabeça

reinante que pisou o novo continente foi portuguesa e levou a família com ela. E

sempre a mesma contradição bem lusa de Arco na Rua Augusta com transeuntes

descalços por baixo.

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A tempestade que estava no Tejo e no Atlântico não sossegava os marinheiros que

também se confortavam com um enorme número de gente para quem um bom

banho de sabão era a maior aventura que tinham tido na vida.

Às ondas fortes contrapunham-se os gritos, os vómitos e outras coisas piores.

Assim, desatar um saco e encontrar broinhas e biscoitos de Loriga, foi o paraíso

para os gémeos, para o amigo Luís de Mendonça Arrais e ainda para outro miúdo

que se chegou por perto. Os biscoitos lagartos foram inventados a propósito do

Intendente “Lagarto”; e, como igual acto provocatório àquele que aconteceu

quando os austríacos criaram o “croissant” e humilharam os turcos. Os biscoitos

lagartos perderam a sua enorme popularidade, mas ainda estão entre os meus

biscoitos favoritos, principalmente se forem tão saborosos como são os biscoitos

lagartos de Loriga.

O miúdo que se chegou ao pé dos três amigos ficou a olhar como uma criança com

as mãos coladas ao vidro de uma montra de pastelaria. Tanto olhou o miúdo que

um dos gémeos sentiu-se mal em não partilhar os biscoitos. O miúdo apesar das

vestes humildes agradeceu muito educadamente e Luís de Mendonça Arrais,

suspeitando da personagem, indagou:

- Como te chamas?

- Gomes da Silva. Um criado de Vossa Senhoria.

Eduardo que era o gémeo mais brincalhão, não se conteve.

- Ena, ena. Vossa Senhoria não usa o primeiro e o último nome como o comum dos

mortais, de tão importante que se acha.

...E em segundos teve a resposta.

- Claro que não. Eu sou o primeiro Gomes da Silva de muitos que me seguirão.

Augusto replicou…

- Mas afinal quem é Vossa Senhoria, Gomes da Silva?

- Eu sou o que sou.

- Cristo disse o mesmo. Não pareces comparável ao Altíssimo.

37

- E não sou, mas tenho-O como modelo e também como ambição.

- Que a lei da morte te libertará. Ahahah.

- Pois é verdade. Mas até lá, tento!

- Cuidado com as tentações…

Arrais mantinha-se curioso e desconfiado da nova companhia e tentou saber mais

da boca do próprio.

- E és conhecido apenas por Gomes da Silva? Ou tens um título ou alcunha?

- Deveria ter o primeiro e tenho apenas o segundo, por enquanto. O meu pai é

Francisco José Rufino de Sousa Lobato. Conhecem, por acaso, Vossas Senhorias?

- Não! – Em uníssono os três amigos.

- Santa ignorância, mas esclareço. José Rufino de Sousa Lobato é o Senhor Barão

de Vila Nova da Rainha.

- Ena. Ena. Eu sabia que havia em Vossa Senhoria muita modéstia escondida e

vaidade por revelar. Portanto e por isso, em vez de um Sousa Lobato, Vossemecê é

um Gomes da Silva.

- Que quereis? A minha vida é uma tragédia!

- Conta! Conta!

- O meu pai é dado à luxúria e aos prazeres invejados e só atrevidos por alguns.

Um dia meteu-se com a minha mãe e fez-lhe um filho. Depois quando quis casar

bem, com uma filha de Visconde, livrou-se da mãe do filho e… do filho da mãe.

- Mas que homem sem carácter! Verdade?!

- Eu que sou igual ou pior do que o meu pai, garanto a Vossa Senhoria que sim!

Posso mentir e brincar com tudo, menos com a minha origem! Sobre a minha

origem não posso mentir. E é igualmente curial que não esqueçam Vossas

Senhorias que só Vos digo a verdade!

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- É certo que sim, mas um filho abandonado onde arranjou tão boa educação?

-Fui seminarista em Santarém e lá aprendi latim, filosofia, matemáticas, inglês,

francês, italiano e outras coisas mais . . .muitas mais!

- Mas aposto que não aprendeste retórica, aposto!

- Achais, por ventura, que preciso? Mas fui o melhor em tudo. O problema foi

mesmo esse . . .

- Problema?

- Sim! Porque quem muito sabe, muito se questiona e muito se é invejado. Fiz as

perguntas erradas aos padres e recebi más respostas de colegas e por isso fugi

depois de uma discussão memorável e quando já estava quase padre.

- E depois?

- Depois . . . Para mal dos meus pecados e cheio de fome, tentei-me fazer passar por

francês e quase fui fuzilado, mas escapei, pois Deus protege os órfãos e as viúvas.

- Mas tu não és órfão . . .

- É como se fosse! O meu pai pagou a outro para se fazer passar por tal e quanto à

minha mãe, enviou-a para África.

- Cruel esse vosso pai. O meu é o melhor do Mundo.

- O nosso, nunca o vimos -, desabafaram os gémeos.

A conversa não ficou por ali e assim começou uma bela amizade com o interessante

e bem divertido rapaz cuja alcunha era “Chalaça”

Do outro lado do mar, um mês depois, Veiga morreria de ataque cardíaco em

Santarém. Eram muitas as dívidas e as agonias que o seu filho António lhe dera.

O neto fez a primeira comunhão, vinte dias depois. Exactamente, no dia em que fez

sete anos. Até aos dez anos ainda foi protegido pela avó e os criados, depois a avó

faleceu e o tutor passou a ser o tio António, auxiliado pela tia Irene. Os manos

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eram muito pálidos, loiros e até se gabavam de nas suas veias se ver correr o vinho

tinto que bebiam. José Benedito saíra ao pai. Apesar dos olhos azuis-escuros dos

Veiga, era moreno e de cabelos bem negros. Destoava de todos os parentes e isso

soava a provocação do Diabo à família, como costumava dizer a avó.

Aos dez anos, José Benedito foi remetido para um canto da propriedade e aos

poucos passou a ser tratado como se um dos mais reles servos se tratasse. E depois,

claro, voltou a ouvir constantemente a palavra bastardo da boca do tio. Um dia,

cheio de raiva que já não conseguia conter, entrou na casa principal para pedir

satisfações ao tio, mas acabou por encontrar um testamento do avô a deixar-lhe

uma parte igual da herança que coubera aos tios. Tirou o documento e chegou com

às mãos de um advogado amigo da família, mas tal só lhe valeu uma carga de

tareia do tio, que soube pelo amigo, do facto. Depois, na Primavera, colocou um

ramo rijo de cerejeira na boca e com o ferro em brasa marcou o peito com o

símbolo com que o avô mandava marcar o gado. Finalmente, esperou e esperou

bem o momento. E no dia em que completou os doze anos, roubou tudo o que havia

de mais pequeno e valioso em casa. Colocou tudo em dois alforjes e antes de arrear

dois belos cavalos, sacou de um cofre o fio que fora do pai e que tinha o

escaravelho egípcio de pedra sabão, que prontamente colocou ao pescoço.

A mãe, disseram-lhe que tinha morrido à nascença, mas do pai disseram-lhe

apenas que tinha abandonado a mãe. Procurou durante algum tempo dados sobre

o pai e apenas descobriu que nascera na Serra da Estrela, na aldeia de Cabeça. Era

tudo o que tinha de coisa nenhuma. Nem o nome do pai tinha. Não sabia se era

alto, baixo ou gordo. Apenas o imaginário do pai e o pensamento de que se tão bom

tinha sido o avô, melhor seria o pai. Coisa de miúdos que crescem sem pai e que o

idealizam como a coisa melhor do Mundo.

Foi também por ser pai e ter crescido sem um pai, que Pina de Aragão negou-se a

reagir violentamente aos franceses quando eles invadiram a Beira Alta. Procurou

de proteger toda a família e mais o fez depois de os franceses terem cometido

crimes de sangue contra os seus familiares.

O pior dos crimes foi cometido no berço da família Pina de Aragão, na Quinta da

Ponte, em Faia. Ali fixou morada o primeiro Aragão, irmão da rainha Santa Isabel

e dali se espalhou o sangue por várias terras. Mesmo aqueles que foram perdendo

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o apelido sabiam que era ali o ninho. Quando os franceses souberam que um tal

Pina de Aragão provocou o povo a resistir, fizeram tudo por achá-lo e quando

encontraram um primo de igual têmpera, mantaram-no com requintes de

malvadez e incendiaram e pilharam-lhe os bens. E fosse ele ou outro que o fez, o

certo é que todos os franceses que destruíram a felicidade que reinava na Quinta

da Ponte, em Faia, apareceram mortos com um golpe fundo no pescoço, em menos

de uma semana.

A notícia espalhou-se e depressa descobriram o nome correcto do afilhado do bispo

da Guarda e de Pinhel. Os franceses encheram-se de raiva e ódio, mas como a

emoção perturba o raciocínio, Pina de Aragão escapou com a família para a Serra

da Estrela. A mulher e os filhos fingiram ter outro nome e subiram a custo à Lapa

dos Dinheiros e o cabeça-de-casal escondeu-se na casa que hoje é conhecida pela

‘Casa dos Ingleses’, em Loriga.

Correu de paróquia em paróquia a necessidade de acudir ao afilhado de D.

Mendonça Arrais e o povo não esquecia que - os poucos nobres que resistiam ao

invasores-, eram gente de bem e que muita fome tinham matado aos pobres.

Na Lapa dos Dinheiros, a família usou apenas o apelido mais usual da região e

apesar de serem caras novas na terra, foram estimados como filhos. Depressa a

população se juntou e lhes arranjou comida e dormida. Tal, só não aconteceu em

Loriga, porque Pina de Aragão esforçou-se por não ser visto nem conhecido por

ninguém, com o segredo dos padres dos concelhos de Loriga e de Alvoco da Serra.

A Iª e a IIª Invasão napoleónica foram verdadeiras derrotas para Napoleão que

nunca tinha perdido uma batalha.

Os portugueses viviam cheios de dívidas aos ingleses que entre simpatia e

esperteza, conseguiam com juros e taxas que os portugueses não só lhes devessem

mais do que o que lhes tinham fornecido, como se tornassem dependentes dos seus

mais velhos aliados. Portanto, uma amizade interesseira e cheia de cobiça.

A burguesia via nos franceses a salvação dessa gente e a hipótese de conseguir

respirar financeiramente. A nobreza, por seu turno, esperava de Napoleão uma

nova vida para um Portugal velho e abandonado por um príncipe deprimido, com

uma esposa ninfómana e uma mãe louca.

41

Quer burgueses e nobres eram vistos pelo povo como aproveitadores, oportunistas,

cobardes e traidores e por isso, toda a ajuda aos ingleses era sempre insuficiente.

Assim sendo e atendendo aos fracassos militares, Napoleão planeou

meticulosamente a IIIª Invasão de Portugal. Escolheu para tal Massena, um

general que era conhecido por ‘Filho Querido da Vitória’ e auxiliado por outros

generais que não tinham sido tão felizes por terras lusas, Reynier, Ney e Junot.

A IIIª Invasão foi uma invasão de vingança.

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VI. Uivo novo em terra velha

Se é certo que os últimos foram de os Sandomil. Certo deixa de o ser, quando se procuram

os primeiros.

Já antes da rota da seda os havia. O cão da Serra não é de cá.

Perdeu-se a história como se perderam os rastos dos seus filhos.

A Praça em Loriga não era assim como a vêem hoje. Duas casas não existiam, o ‘Pátio’ e o

‘Sindicato’. O terreno já era da família Reis, antes do Senhor Emídio ter mandado

construir o ‘Pátio’, mas o Senhor Emídio ainda não adivinhava nascer quando tudo

aconteceu. A Praça acabava nas portas do Vinhô, embora o muro da Quelha Escura já

existisse.

A vila de Loriga, apesar de várias palheiras soltas, aqui e acolá, terminava ligeiramente

depois do cemitério e as casas, antes do Terreiro da Lição. Depois só se encontravam mais

palheiras na direcção do Piomal e do Teixeiro, mas tudo muito isolado, com excepção das

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chegadas a caminho da Ponte Nova. Era por esse velho trilho romano que a maior parte

da gente chegava a Loriga, vindo de Alvoco da Serra. Passar a vau a ribeira da Nave, nas

Lamas de Cima, junto à cascata, só mesmo de propósito. Abaixo da Ponte Nova e

passando pela Canada é para quem não tinha cavalo ou mula, na já chamada ribeira da

Ponte e por uma ponte improvisada de madeira sobre lapas. Por aí, eram muitas as

mulheres que passavam de carrego na cabeça. Entre elas sobressaíam as ‘Formino’;

família de manas e primas que, com parentela em Alvoco da Serra e arredores, eram

conhecidas por muito trabalharem e por serem as primeiras a acordar e a deitar.

As mulheres iam a Alvoco da Serra buscar panos, mantas e os primeiros cobertores

nascidos na Serra, para ultimar. Mas também em Loriga, homens mais idosos e mulheres,

tosquiavam a lã, que depois de escrameada era bem batida com uma vara, escaldada e

sugada, tratada com urinas e gredas, que depois de bem lavada nos poços da ribeira, era

pescada, seca sobre as pedras, mais tarde em râmbulas, pisoada em pisões de maço,

cardada à mão em tábua de pregos finos. E fiada. E tecida. Ainda não haviam fábricas em

Loriga na primeira metade do século XIX, mas uma forte empreitada de fiadoras e

cardadoras que valiam mais e trabalhavam mais que todas as fábricas juntas do Século

XX; bem como, cerzideiras que recebiam constantemente trabalhos de fora. A vida corria

dura, mas relativamente alegre até ao São Miguel, depois começavam os dias a minguar

mais do que no São João e o frio a aparecer. Vinham as chuvas geladas e as águas vivas.

Loriga ainda fica no meio de duas correntes de água, com um extenso trilho de socalcos

que se seguram por cômbaros e se regam por levadas. É uma vila que acorda valente no

topo de tudo. O amor a Loriga é mítico nos seus filhos e contam-se por uma mão os filhos

que não a amam.

Uma das correntes é a ribeira de São Bento, que se enche de força com as ribeiras da

Cerejeira e das Tapadas. A outra, é a ribeira da Nave, mais estimada e vista pelos da terra

que depois do Coiço do Botelho quando encontra a ribeira do Cortiçor, chamam-lhe da

Ponte. Finalmente, depois do casamento com a ribeira de São Bento, ganha o nome da

terra da qual se despede, Loriga.

Mais tarde, surgiram várias fábricas, mas na sua maioria, à beira da ribeira de São Bento.

A inclinação da sua água, arrefece-a mais e dá mais qualidade, resiliência e resistência, à

lã e ao pão.

Outras Praças maiores e mais importantes existiam no distrito da Guarda, mas as duas

que existiam em São Romão de panos de vara e de burel, e a de Loriga eram as mais

procuradas, no início do Século XIX. Rivalizavam de um lado da Serra, com Gouveia e

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Melo; e do outro lado, com o Fundão e a Covilhã, não sendo menos que qualquer uma. A

qualidade da ultimação de Loriga chegava a ser gabada em Portalegre e noutros sítios,

entre gente que conhecia bem a qualidade dos acabamentos.

Não se nascia mercador. Começava-se na praça a gabar ou a pedinchar um mercador e se

ele gostasse do rapaz, então começava uma vida dura, mas viajada. Teria que saber arrear

cavalos e mulas. Saber qual a comida que o animal podia comer e beber. Conhecer bem as

ervas e os pastos. Saber colocar segura a carga no lombo. Dormir com lume por perto ao

relento. Saber que se deve defender de ataques de gente e animais. Esconder dinheiro e

armas. Saber os gestos das gentes e a meteorologia pelos sinais da natureza. Preparar o

seu alimento. Numa palavra, ‘sobreviver’. Vivia-se uma vida assim, andando por todo o

país e por vezes para longe, como o Senhor Manuel Luís e outros tantos.

Um mercador era uma espécie de embaixador dos pobres, pois estava sempre de partida.

Por outro lado, não era tão pobre assim, mas tinha sempre o dinheiro bem contado no

bolso, que era uma improvisada tesouraria. Recebia encomendas e tinha vários teares à

sua conta. Era ofício de grande responsabilidade, pois ao mesmo tempo que viajava, tinha

de deixar a casa pronta.

Graças à sua actividade e a uma forte influência judaica, na Beira Alta, as caves das casas

são chamadas de lojas, pois além dos animais, ali ficava o tear que tecia a peça. Quando

um mercador casava, a mulher dele preparava-se para ficar como patroa da loja onde

duas ou mais mulheres ajudavam nas várias tarefas da lã até que ela fosse para o tear, já

em fio. Não era fácil portanto, gostar de alguém e só ver de novo essa pessoa passado

semanas e meses. Mas, mesmo assim rara era a mulher que traía o marido e fugia. Por

outro lado, cada terra era muito fechada sobre si e todos sabiam tudo sobre todos e

comentavam. Não era bom, mas por vezes, um problema que parecia grave facilmente

morria quando caía na boca do povo. Eram igualmente mulheres de enorme paciência,

pois recompunham os maridos, mimando-os e depois só os voltavam a ter de volta,

quebrados. Talvez por isso, é que não vale a pena colocar ‘travão’ nas mulheres de Loriga,

de Alvoco da Serra, de Vaso Esteves (de Cima e de Baixo), do Aguincho, da Teixeira, da

Cabeça, da Vide, do Muro, de Sazes da Beira, de Valezim, da Lapa dos Dinheiros e São

Romão, porque é sangue impregnado do sangue das suas valentes avós. Foram mulheres

que se fizeram a elas próprias.

A vida era muito dura e os que não conseguiam ser mercadores, guardar gado para o topo

da Serra, zelar águas ou ficar no cultivo dos cereais, só tinham uma forma de serem

felizes, partirem dali para fora. Os de Alvoco da Serra iam para a Argentina e os de

Loriga para Manaus e Belém do Pará, no Brasil.

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Depois de 20 de Maio de 1801, com aquela que em Portugal ficou conhecida pela Guerra

das Laranjas e no Brasil pela Guerra de 1801, em que perdemos Olivença e nos

expandimos no Rio Grande do Sul, nunca mais os mercadores tiveram paz e sossego.

Eram homens que não queriam nada com a política, que só queriam levar a sua vidinha

em paz e que agora se viam incomodados por tudo e por nada.

Quando era preciso passar uma mensagem secreta para os governos da Europa, recorria o

Terreiro do Paço, aos mercadores da Serra da Estrela. Faziam o seu serviço e depois ainda

ganhavam mais algum com o trabalho de mensageiro. Esse dinheirinho dava para um pé-

de-meia ou para comprar um tear novo de pau. O tear era uma coisa muito valiosa e

exigia saber, pois não é à toa que ele é o avô do computador.

Se, no século XX, o tio Moita era conhecido pela sua alegria e longevidade, em Loriga; no

século XIX, em Alvoco da Serra, o Senhor Manuel Luís foi o que chegou mais longe em

anos de vida, mesmo que tivesse ultrapassado os cem anos sem quase conseguir ver. Era o

mercador Manuel Luís Fernandes que fazia as maiores distâncias, indo várias vezes a

Bordéus, mas mesmo ele assegurava e dava nomes de gente da Serra que tinha ido muito

mais para cima.

Foi por causa das políticas que José Bernardo Ferreira e outros portugueses e ingleses

foram à Praça de Loriga, no início do século XIX, para que o vinho do Porto chegasse

seguro a Inglaterra, pois ninguém melhor que os que sempre percorreram caminhos para

guardarem a sua mercadoria. E foi por causa da guarda do vinho do Porto e também por

causa do enorme número de moços que emigraram nessa altura, que a Serra ficou

desfalcada e o negócio enfraqueceu bastante. A lã tardava em vir e em partir. A população

ansiava por gente valente como o António de Mascarenhas, do Casal, perto de

Travancinha que conhecia a Serra, de lés a lés, melhor que os pais conhecem as crias; e

que, em 1772, mostrou o pano de que era feito junto à Cruz de Vasqueanes, no sítio da

Senhora do Espinheiro, no lugar do Sabugueiro e no sítio da Senhora do Desterro.

Assim sendo, as mulheres ficavam paradas e isso ia desesperando, pois iam vendo o tempo

passar e nada vinha. Os dias iam ficando pequenos e ninguém se atrevia de fora a ir para

ali, no Outono e no Inverno. E se o trabalho não aparecia, então o bolso de notas secreto

do forro da saia ia ficando vazio e lá tinham que abrir um calote mo talho de São Ginez e

na mercearia do Reboleiro. Toda a gente ficava a saber e como toda a gente ficava a saber,

preferiam alguns, antes uma pobreza e fome escondida, que como toda a verdade, mais

tarde ou mais cedo, se revela. Foram dias de aflição e quando a IIIª Invasão se deu, aí,

mais desesperadas ficaram as pessoas.

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Laurinda nasceu cinco anos antes de o século nascer e no seguinte mês ao do nascimento

da menina Francisca. Com essa idade já muita chuva lhe tinha caído na moleirinha e

muita cruz tinha feito na boca. O pai era zelador das águas em Alvoco da Serra, apesar de

ser de Vasques Esteves e primo dos Galvões, mas a mulher, um dia, fugiu com outro e

deixou-o com três filhos. Assim, Laurinda cresceu das sobras do pouco afecto que aquele

pai podia dar aos filhos.

Quando Sebastião nasceu, a Laurinda ia na rua, agarrada a uma leiteira que largou e

tombou ao primeiro choro. Quis ver o bebé e ficou maravilhada. Quis ser madrinha, mas

já estava prometida a criança à Nossa Senhora do Carmo. Mesmo assim, apertou as mãos

bem forte e jurou a Deus e a Nossa Senhora, guardá-lo e defendê-lo como coisa própria

sua. Quase todos os dias, embrulhada num xaile, tentava chegar a Loriga cedo para ver o

‘seu menino’ e o padre muitas vezes lhe dizia, “Deixa lá o moço e cuida de ti, miúda!”, mas

era a única alegria que tinha, com os pés descalços sobre o chão gelado.

Longe, crescia a menina Francisca. Num colégio em Madrid, a menina sem mãe era

educada como uma princesa. O pai, um viúvo mercador, investira nela a sua vida e tudo o

que acareava era para que as suas duas filhas tivessem a vida que ele não teve. De tanto

que se esforçou, foi acumulando hérnias e um dia, ao acordar em Alvoco da Serra, nada

sentiu da cabeça para baixo. Gritou e as vizinhas acudiram. Muita cera se queimou junto

da Nossa Senhora do Rosário, de São Sebastião, de São Pedro, Santa Catarina e do

Espírito Santo, para que o homem ficasse bom, mas nada. Os homens de todas as famílias,

Mouras, Britos, Cardoso, Abranches e tantos outros, reuniram-se e deixaram a palavra

para o compadre do enfermo, o Senhor Manuel Luís. O homem não tinha ninguém e era

muita responsabilidade cuidar dele, dos dinheiros e dos três moços das mulas, sendo que

um deles aproveitou a maleita para se ir embora. Por sua vez, o Senhor Manuel Luís

também já não se sentia com saúde e vista para cuidar do amigo.

Assim, o Senhor Manuel Luís, em conjunto com os restantes fregueses de Alvoco da Serra,

decidiram ir buscar a menina Francisca a Madrid. O caminho era longo e perigoso,

naquele ano de 1807, pois poderiam ter de lidar com espanhóis e franceses. As armas eram

sobretudo punhais, facas, podões e navalhas, embora se soubesse que havia mais uma meia

dúzia de pequenas pistolas, traficadas por um belga. Portugal tinha nessa altura, armeiros

famosos de renome internacional, mas só para peças grandes, pois que para pequenas,

faltava-nos tecnologia e formação. Perdera-se a ensinar outros e agora comprava-se aos

alunos, os ingleses. Foram eles que quiseram a nossa tecnologia, quando a viram na mão

dos japoneses, no tempo do Fernão Mendes Pinto.

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Mesmo assim, partiram de Alvoco da Serra com destino a Madrid, quinze homens

capitaneados pelo Senhor Manuel Luís que engrossou a alcateia com mais quatro de

Loriga.

Um dia antes, preparam os cavalos e as mulas; uma, por cada um.

Um cavalo arreia-se da seguinte forma, à maneira de um mercador. Primeiro, segura no

cavalo e coloca-lhe o cabresto e a guia para controlá-lo. Amarra-o num poste ou

dormentes de madeira para deixar as mãos livres e escová-lo bem, com escovas de cerda e

sem esquecer de pentear a crina e o rabo. Limpa-lhe depois os cascos com a escova, antes

de colocar o arreio. De seguida, desliza o colar por cima da cabeça do cavalo,

desprendendo a corda de guia para passá-lo pelo pescoço. Alinha o colar no centro do

peito do animal, recolocando a guia para mantê-lo amarrado com segurança. Coloca

depois a sela sobre as costas do cavalo, após ter colocado a manta ou o cobertor,

afivelando as duas tiras de frente para as ripas na parte de trás do colar. A cinta larga que

envolve o corpo do cavalo atrás do garrote é chamada de sela, e ajuda a deslizar o arreio

para trás, enquanto ele puxa. Puxa então as tiras traseiras de volta para a anca do cavalo,

para prevenir que se embaracem enquanto prepara e ajusta a retranca. Coloca então, de

seguida, o arreio de carroça no traseiro do animal, centralizando e puxando o rabo de lado

para prevenir que os seus cabelos fiquem entalados nas tiras. Prenda as longas tiras da

sela à retranca, tendo cuidado para não torcê-las enquanto fivela as correias. Desate o

cabresto e retire-o da cabeça, torcendo em volta do pescoço para segurá-lo firmemente,

enquanto encaixa o freio. Segure a ponta numa mão e a parte de cima do cabresto na

outra, colocando a ponta contra os lábios e dentro da boca enquanto desliza o freio sobre

as orelhas. Afivele a tira do pescoço, certificando-se de que possa colocar dois dedos entre

o pescoço e a tira, para prevenir um aperto excessivo do animal. Passe as rédeas através

das guias de cada lado do arreio, prendendo-os na ponta. Ande ao redor do cavalo,

verificando todas as fivelas para certificar que estão bem apertadas para completar o

afivelamento do arreio. Por fim e finalmente, prenda os alforges com as fivelas e estará

pronto para partir como os mercadores fizeram vezes sem conta e anos a fio.

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VIII. A Menina e mais outros tantos . . .

Loison, alcunhado pelos portugueses de ‘Luisão’ e de ‘Maneta’, entrou na cidade

da Guarda a gritar pelo ‘Mitra’, mas horas antes e pouco depois de D. Mendonça

Arrais lembrar do púlpito que a força e a nobreza de qualquer pessoa reside

apenas nas suas atitudes, na sua coragem e na forma como trata os outros, o

mesmo foi raptado, atado e escondido num carro de bois que o levou a Melo. Caso

contrário, o Maneta seria capaz de matar o bispo da Guarda e de Pinhel, mas

talvez ficasse para sempre sem dentes se o encontrasse pela frente.

Os franceses que escreveram a história, gravaram em jornais e livros que Loison

entrou como um grande herói e guerreiro na forte cidade, mas na verdade não foi

assim. Havia na Guarda apenas um canhão em condições de fazer frente ao

invasor e mesmo nessa peça já faltavam asas.

49

A Guarda não deixou de ser forte por causa do que sucedeu, mas os franceses

entraram, destruíram e saquearam o que quiseram na Guarda sem nenhuma

resistência.

Os egitanienses não resistiram só por serem pais e filhos, mas também por verem

tão grande número de franceses. Não foi nunca falta de coragem, mas juízo…

Quase todos fugiram e os assassinatos foram de pessoas idosas e deficientes, que

lamentavelmente não conseguiram fugir. Depois de uma tarde de sangue, seguiu-se

a rapinagem de tudo. Não houve honra, nem coragem dos franceses, mas os relatos

escritos pelos cronistas do 4ºExército falam de uma grande resistência e uma

vitória impar.

Os homens foram a Madrid buscar a menina Francisca, mas foram sem a ajuda do

“Abrólio“, pois este tinha ido para o Douro guardar o vinho do Porto, para

portugueses e ingleses. Também, nessa altura, para lá foram o “Malha-pão” e o

“Patas-de-Lacrau”. O “Abrólio” era vítima constante das frieiras. Fossem elas nos

pés, nas mãos ou nas orelhas. Até a própria face, às vezes, aparentava a roxidão

das ditas. As mulheres que soravam o queijo invejavam-lhe as mãos geladas e ele

só as queria quentes.

Os ingleses começavam agora a comprar várias quintas e tinham nomes como

Taylor, Offley, Croft ou Sandeman, mas quase todos esses eram apelidos de

mercadores ingleses do vinho Verde enriquecidos, depois de despacharem muito

vinho em barcos que partiam de Viana do Castelo, com destino aos portos de

Londres e de Porthsmouth. As origens desses eram de mercadores com o mesmo

sangue vermelho dos mercadores de Loriga, de Alvoco da Serra, de Manteigas, de

Folgosinho e eu sei lá de onde…

Depois, uma segunda geração de ingleses chegou ao Porto para orientar

administrativa e contabilisticamente essas firmas. Era uma nova geração, mais

culta, como o talentoso pintor e Barão Forrester ou Sir Robert William

Woodhouse Lancaster. Foi este grupo de ingleses que depois deu origem às belas e

heróicas histórias do Palácio da Feitoria, na agora rua dos ingleses e que serviram

de inspiração a Júlio Dinis para “Uma Família Inglesa”.

50

Com a partida da família real portuguesa, Lisboa rendeu-se aos franceses e o

Porto, mais comercial e burguês, tendeu para a Grã-Bretanha. O Porto nunca se

renderia ou renderá. Nem que morressem ou morram todos.

O “Abrólio“ era de Seia e começou como moço de mula do Senhor Manuel Luís.

Bom homem, trabalhador e senhor do seu ofício, apenas com um valente defeito. O

“Abrólio” teve várias alcunhas, todas ganhas em Loriga, sendo que só essa vingou,

pois falava mais do que devia e esse atrevimento custou-lhe a vida ao desafiar o

salteador João Brandão. Mas até à morte, ainda teve tempo de ser marido de uma

rapariga tecedeira muito bonita, de Gouveia e que ficou cega na juventude. Desse

casamento nasceu, Ana Augusta Pereira, tão bonita quanto a mãe. Se o nome

“Abrólio” nada lhe diz, já o nome do neto talvez diga algo, Afonso Maria de

Ligório.

Afonso foi encontrado às 10 horas da noite à porta de Maria de Jesus, em Santiago,

como “Exposto da Roda”. Assim foi feito por baptismo na igreja de Santiago, no

dia 7 de Março de 1871, muitos anos depois desta história agora contada.

“Ligório”, em homenagem ao arcebispo de Milão que protegia os jesuítas. Em

adulto detestava falar das suas origens e cuidava que esse mistério adensasse a

lenda e o herói que foi.

Teve então também o neto do “Abrólio” um sem-número de alcunhas, Jacobino de

Algodres, Conspirador Bolchevista, Chefe de Calceteiros e Mata-Frades. Joaquim

Vieira escreveu na sua Fotobiografia: «Pertence àquela pequena galeria de homens

que passaram à História envoltos por lendas. Apologéticas e demonizadoras. Ora

idealista e patriota. Ora ambicioso e sem escrúpulos. Ora democrata. Ora ditador.

Chegou dele a dizer-se que batia na mãe...»

Afonso, aos três anos, quase morreu com uma angina. Os médicos diziam tratar-se

de um milagre e o miúdo ria. “Tinha o sangue quente”, dizia a gente. Pequeno e

gorducho, raramente não passava o dia sem andar à pancada ou em guerras de

pedrada e cabeça rachada. Os ninhos raramente sobreviviam por onde ele passava.

Quando tinha dez anos foi perfilhado pela filha do “Abrólio”, Ana Augusta e o

marido, Sebastião Fernandes da Costa. Este outro Sebastião era quase padre

51

quando se apaixonou por Ana Augusta. Foi um escândalo, mas lá casou e como

homem inteligente, depressa se formou em Direito e em Coimbra.

Assim, com o perfilhamento, ‘Ligório’ passou a ser Afonso Augusto da Costa.

Os pais mandaram-no para a Guarda e para Coimbra estudar e em ambos os

lugares brilhou nos estudos e nas brigas. Falava alto, como homem livre e sem

medo. Um serrano em tudo o que fazia e isso assustava os submissos. Tinha 19

anos e ardia de raiva contra o ‘Ultimatum’, fazendo de seu herói o grande

Magalhães Lima, maçon e fundador de ‘O Século’, que desafiara o rei D. Luís e

que estava preso no Limoeiro.

Magalhães Lima foi o mesmo que se bateu ao sabre com Pinheiro Chagas, então

director do Diário da Manhã, deixando-o ferido.

Afonso era mais apurado que Magalhães Lima. Ácido, nos advérbios. Claro, no

argumento. Transparente, nas emoções. Preciso, nas soluções. Doutorado em 1900,

com 29 anos, tornou-se deputado. E no dia 19 de Junho de 1900, Poças Falcão,

presidente da Câmara de Deputados, deu-lhe, inquieto, a palavra, pela primeira

vez. O país nunca mais foi o mesmo.

No jornal O Norte, João Chagas escreveu, «Todos os olhares caem sobre o

deputado do Porto, que começa a falar alto e no seu habitual tom de energia.

Começa a ler, lentamente, como um juiz lê uma sentença, aquela formidável moção

de ordem. O murmúrio, a princípio vago, vai aumentando. É a tempestade que

quer rebentar. Mas Afonso Costa não lê: impõe. Quando ele conclui – porque

conclui! – é um ah! de espanto!». O resto é história, que todos deveriam saber,

sobre aquele que Seia guarda com carinho, amor e paixão numa rotunda para

muitos caminhos.

Também no ano de 1810, quando os homens partiram para Madrid, em Loriga,

nasceu uma criança menos famosa, que Afonso Costa viria a ser, o Zé da Teresa.

Na Serra os nomes dos pais, por vezes, passam a alcunhas dos filhos, assim

aconteceu com o Zé da Teresa.

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A Teresa casou três vezes, não por falta de virtude ou virtudes físicas a mais. Os

maridos simplesmente imigravam para o Brasil e lá morriam em Manaus, de uma

maleita pior do que a da Varíola ou da Pneumónica que assolou a Vide, para não

saltar até ao século XX e ao Tifo de Loriga, que me levou uma bisavó.

Teresa simplesmente enviuvou, como enviuvou a mãe dela, que teve duas filhas de

dois maridos. A meia-irmã de Teresa, Maria, tinha olhos verdes e cabelo cor de

milho, em fim de gestação. Maria era bem diferente, em tudo e até na saúde. Linda

de fazer abrir as bocas e de provocar os sonhos menos castos, aos moços e homens

da vila. Todos sabiam que ela não era para qualquer um e ela também o sabia. Por

ser demasiado bonita e excessivamente esperta, casou com Vicente Calheiros, de

Valezim.

Vicente era um funcionário da administração que conhecia bem o meio e que dele

tirava os melhores frutos e amizades. Era profundamente, esperto, ambicioso e só

cobiçava o melhor. Havia nele o recalcamento de alguns, que tendo sido de famílias

ricas, não descansam enquanto não volta a fortuna. Vicente era neto de um conde

do Norte, que perdera tudo em jogos de azar e com amantes. Tal passado

engasgara muitas vezes o pai de Vicente e a este não lhe corria na garganta.

Emprestava a juros. Comprava a quem tinha a corda na garganta e só não tinha o

que não queria. Acordava e deitava-se, desde muito novo, a pensar no dinheiro, em

terras que havia de ter e como as havia de ter. Raramente, ficou sem as ter.

Vicente veio a ser o avô do 1º Conde do Refúgio e 1º Conde da Covilhã, que

também nasceu no seu solar, em Valezim.

Teresa não teve a mesma sorte da meia-irmã, até porque não há tantos ricos como

míscaros na Serra. Teresa casou com homens simples e Zé era filho do primeiro

deles.

O filho nunca conheceu o pai, mas conheceu os outros maridos da mãe e mais sete

meias-irmãs.

Teresa, gordinha e de ossos largos, tinha os cabelos castanhos-escuros e os olhos

azuis que envelheceram a lavar muita roupa e a ultimar muita peça de lã, mas

nunca perdeu o sorriso franco, rasgado nos lábios, que mesmo nas piores

53

desgraças se mantinha e que derretia qualquer. Tantas mães da Serra foram

assim, esforçadas e corajosas frente às tristezas.

Teresa criou os filhos sozinha, pois até o último marido, marceneiro, filho mais

novo da “tia Taleiga”, cedo se magoou e entravado ficou. Ele, foi homem que

nunca pensou sair de Loriga, pois viu todos os irmãos partirem para o Brasil e

sobrou por cá, para cuidar dos pais na velhice.

O Zé da Teresa criou-se com amoras, castanhas, nozes e todas as frutas que ia

apanhando pelo caminho e as irmãs, criaram-se a trabalharem no mesmo que a

mãe e ao contrário da sua tia Maria. Era moço de carinho e amava a família como

o Sol ama o dia e a Lua ama a noite. Foi ele que fez aquela estrada que liga a Lapa

dos Dinheiros ao mundo, quando já velho passeava elegantemente de bengala.

Gostava de vestir bem, mas só vaidoso para ele mesmo e nunca para se afirmar

entre os outros. Nisso, era talvez humilde em demasia. A fome muitas vezes lhe

tocou fundo na carne e ele nunca se queixou. Deixava a comida para as irmãs que

eram a sua maior fortuna. Gostava de as ver felizes e contentes, como se fossem

princesas e ele, um mero súbdito.

Foi nessa fome, inconfessada, que muitas vezes roubou frutas, galinhas, pão e

raramente foi apanhado. Roubava só a quem tinha e podia viver sem o que tirava.

Muitas foram as vezes que, já com rendimento decente e trabalho honrado,

devolveu em dinheiro o correspondente ao saque, quando se lembrava da vítima ou

a via numa feira ou praça.

Foi Sebastião que ajudou o Zé da Teresa. Não lhe deu muito, mas ensinou-o a

pescar. Ensinou-o a querer ser mais, de forma honesta, naturalmente. Coisa que é

difícil, mas que é possível. Depois de muito tempo a roubar ou perdido em

pequenos fretes, Sebastião achava que não era vida para o moço e teve umas

conversas com os Calheiros. A fama destes no campo do dinheiro não era boa, mas

era gente que amava a família, mesmo que Maria não quisesse nada com a irmã

Teresa.

Dizia a gente da Serra que a inveja e o ciúme distanciam águas de ribeiras com

mais força que a vara de Moisés, mas Maria não sofria apenas disso. Talvez Maria

não sofresse mesmo disso.

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Maria sofria de uma imensurável ira contra Deus e o pai do futuro 1ºConde do

Refúgio e 1º Conde da Covilhã, seu filho José Maria, colocado em lugares de

destaque na banca, não queria ser conhecido por ter um primo direito que roubara

para sobreviver.

Assim, José Maria, filho de Maria e de Vicente Calheiros, através do mesmo

Sebastião, cuidou de ajudar anonimamente o primo, mesmo querendo o contacto

mínimo com ele. Sorte diferente teve o marido de uma irmã do Zé da Teresa, que

tratou de todos os trabalhos de marcenaria no solar dos Calheiros, em Valezim,

que hoje jaz arruinado aos pedaços no meio da natureza. Agora, que os lugares

estão a ficar vazios de gente.

O Zé da Teresa começou por acompanhar Sebastião, mas era dado em demasia à

conversa, às raparigas e dispersava-se muito em tudo o que fazia. Diletante nas

obrigações, tinha talento para as contas e por isso, Sebastião arranjou forma de

que o Zé ajudasse um guarda-livros famoso da Covilhã e por lá ficou.

Com o tempo, o Zé foi-se aproximando de Loriga até que, quando a fábrica da

Fândega nasceu do granito bem talhado e ele já na meia-idade, tornou-se o seu

primeiro guarda-livros e foi nela que morreu a trabalhar.

A doença que ensombrava o seu sangue não lhe tocou, mas ao seu primo Calheiros

acudiram com alguidares de latão para limparem um mar de sangue. Mal do qual

ele pedia segredo.

Maria colhia a força da ira que sentia por Deus, quando Ele colocou no seu sangue

o que só colocara em parte do sangue de Teresa. Depois de ter o filho, fez da

arruda sua companhia. O padre dizia-lhe para suportar a cruz e Maria mordia a

língua, porque vontade tinha ela de O colocar várias vezes na cruz. Com o tempo,

Vicente perdeu-lhe o gosto e procurou outras mulheres.

Ao morrer, Maria não quis a extrema-unção e o padre não lha deu. Apenas se sabe

que nenhum dos seus sobrinhos de sangue foi ao velório. A morte foi pouco falada

em Loriga, mas nas terras-vizinhas todos estranharam, excepto em Valezim, onde

nunca ninguém ouvira falar a Maria, dos sobrinhos ou da irmã.

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O Zé da Teresa já berrava, quando os homens que foram a Madrid já tinham

passado o cemitério de Loriga, poucos metros acima do largo do Terreiro da Lição

e junto à capela de Santo António.

Nesse dia e continuando o início destas páginas, seis léguas abaixo da Guarda, do

outro lado da Serra, a vila da Covilhã foi avisada do levantamento egitaniense do

dia dois, ao mesmo tempo pelos mercadores de Loriga, da Erada e por emissários

do governador de Coimbra.

Quando os invasores saíram de Almeida a caminho da Guarda, na vila da Covilhã,

às nove horas da manhã, o juiz de fora Caetano de Mello da Gama Araújo e

Azevedo colocou as cinco quinas nas janelas de casa e gritou vivas ao Príncipe

Regente.

A tristeza da gente depressa morreu pelo contágio da alegria do Juiz e nessa tarde

do dia três, toda a gente fez uma enorme festa e cortejo louvando o Príncipe

Regente, chegando o estandarte real a correr as ruas nas mãos do tenente-coronel

Gregório Tavares.

A alegria era muita e chegou a marcar-se um ‘Te Deum’ para o dia quatro. A coisa

acabou quando de noite, dois homens de Unhais da Serra espalharam as notícias

dos trágicos acontecimentos da Guarda, depois de o saberem por homens de

Alvoco da Serra e de Loriga. Mesmo assim, a chama do patriotismo não acalmou e

o levantamento manteve-se bem vivo na Covilhã.

Gregório Tavares, chefe do 1ºRegimento de milícias da comarca, conseguiu juntar

facilmente duzentos voluntários para defenderem a vila e achou-se pólvora

suficiente; mas, não havia balas, pois demoravam tempo a fazer.

O povo da Covilhã estava disposto a tudo e fervia num anti estrangeirismo

patriótico, nunca antes visto. Conta-se até que com falta de balas, os homens de

Tavares andavam porta-a-porta a ver quem tinha armas e que ao chegarem a casa

de um irlandês, Reynolds de seu nome, o mesmo se negou a dar as suas armas em

prole da vila. A coisa espalhou-se e o povo todo juntou-se na porta da casa dele.

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Na casa estava outro estrangeiro que servia de tradutor, pois Reynolds andava a

vender teares de pau aos mais endinheirados da terra e este saiu nervoso à rua de

espada na mão. O povo caiu-lhe em cima e matou de tanta pancada e quase

aconteceu o mesmo a Reynolds que depois de tanto levar e até julgarem que estava

morto fugiu para o Porto e nunca mais voltou.

O povo gritava em uníssono, ‘TRAIDORES’. Só muito mais tarde e com os

ingleses é que os estrangeiros deixaram de ser vistos com enorme desconfiança na

Covilhã.

No dia quatro, o “Pata-Mole”, homem da Erada e alcunhado assim em Loriga por

ter pouca sorte com as raparigas, avisou a Covilhã de que Loison passava ao lado,

para lá do Zêzere, a duas léguas da vila e perto de Belmonte.

Loison estava farto das povoações e procurava não perder tempo no seu caminho

para o Sul. Gregório Tavares pegou então num macho e com o ‘Arranca-Muros’,

seu amigo e mercador de Loriga, conseguiu descobrir onde os franceses passaram

a noite, perto de Caria.

O alvoroço era enorme na vila da Covilhã.

Pela noite, o “Arranca-Muros” surpreendeu um dos portugueses que havia fugido

da guarnição francesa.

Ao chegarem à Covilhã, esse homem confessou que os franceses eram, cerca ou

mais, de 4400 homens. Foi então que um frade franciscano de nome José da Madre

de Deus saiu e disse que ia fazer prisioneiros, mas Tavares não deixou que fosse

sozinho e mandou com ele o moço corpulento das mulas do “Arranca-Muros”, o

“Bichinho” do Outeiro da Vinha.

Os dois homens, ao passarem o Zêzere, foram surpreendidos por outros quatros

homens armados - um padre, dois mercadores e um barbeiro -, que se juntaram a

eles. O frade e os cinco companheiros, pouco tempo depois encontraram, no lugar

da Capinha, sete franceses que resistiram, até que um deles foi morto a tiro pelo

barbeiro e os outros foram imobilizados a soco e pontapé. Todos acabaram a noite

na Covilhã e esse foi o início de um sopro de resistência lusa só anteriormente vista

no tempo das Descobertas.

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O frade franciscano José da Madre de Deus ainda deu provas da sua enorme

valentia no bloqueio de Almeida. O povo português levantou-se como nunca e foi o

povo que expulsou verdadeiramente os franceses, começando a Norte do Douro e

contagiando tudo e todos. O “Bichinho” acabou a vida em Manaus e o “Arranca-

Muros” foi morto à facada por uma cigana com quem casou.

Depois destes acontecimentos, os homens do Senhor Manuel Luís chegaram a

Madrid passado uma semana para buscarem a menina Francisca. Estavam

exaustos e cansados de tanto fugirem ao frio e à gente, pois queriam ir e voltar sem

problemas.

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IX – Nem tramoucos, nem atramoucados

Entre os dias 15 e 28 de Agosto de 1810, a alma de Portugal palpitou pelo Cerco à

Praça-Forte de Almeida, comandada por outro sobrinho de D. Mendonça

Arrais, segura pelo Coronel Cox e atacada pelo VI Corpo de Exército, chefiado

pelo Marechal Ney.

O povo português quebrava o Bloqueio Continental a Inglaterra, decretado por

Napoleão, em todas as praias para cima da Ericeira, de noite ou de dia.

De Matosinhos até à fronteira com Espanha, mandavam os portugueses e nem os

ingleses se atreviam a pedir algo que não fosse vontade da nossa gente. Tal gozo e

humilhação dos franceses, irritou sobremaneira Napoleão. Tinham falhado duas

invasões de exércitos disciplinados e admiráveis face a um povo que não se rendia,

nem nas esquinas. Sejam grandes a fome e a guerra, os portugueses trazem a

liberdade no sangue e os piores momentos da nossa história, estão ligados ao

abandono dessa liberdade.

Almeida significava muito mais do que a muralha erguida nas Guerras da

Restauração. Era importante, para que Massena avançasse até Lisboa, não deixar

nenhum foco de resistência militar para trás e que posteriormente cortasse todo o

tipo de comunicações, aniquilando os franceses pelo isolamento.

Para a história, ficaram 4700 guerreiros frente a 14000 atacantes que apenas

ganharam uma batalha por erro de distribuição de manuseamento de explosivos e

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da sua devida segurança. Mais uma vez, não houve honra ou valentia na vitória

dos franceses.

Se o Mundo não era a melhor das coisas para os portugueses, em 1810, por

Espanha sagrava o mesmo ou pior. Mas os espanhóis faziam tudo com mais

barulho e sangue…

Nos finais de Setembro, os espanhóis reuniram as Cortes pela primeira vez em

Cádiz para estabelecerem uma constituição que só seria aprovada dois anos

depois. Mas, até mesmo essa constituição durou apenas dois anos e por isso seria

apelidada de ‘La Pepa’, a cova…

Eram tempos do catano. Em que ter uma candeia ou ter o que calçar, eram sinais

exteriores de riqueza.

O Natal de 1810, em Loriga e noutras terras da Serra da Estrela foi muito

diferente do resto de Portugal. Pela sua importância estratégica, desde o Viriato,

passando pelo ‘Mil Diabos de Loriga’, Loriga é excelente local de protecção e de

refúgio para quem fuja de qualquer mal maior.

No coração da Serra da Estrela, Loriga está protegida pelas ribeiras do Cortiçor,

da Nave e de São Bento e pelas Portelas do Cabrum e do Aarão. Por baixo, a vila

de Loriga é protegida pela boa gente de Casal do Rei, que sempre protegeu Loriga,

até com a própria vida, quando os franceses saquearam Arganil e alguns

decidiram subir o Alva. E o mesmo aconteceu no tempo em que os Poetas, os Caca

e os Brandões tomaram sua a nossa Serra.

O Natal em Loriga é sempre especial, porque é costume beirão reunir à volta da

fogueira, depois da celebração da Missa do Galo. Na Beira, dão-lhe vários nomes,

mas em Loriga sempre se chamou ‘a fogueira’.

Em 1810, foram muitas as famílias dos distritos da Guarda, de Viseu e de Coimbra

que se esconderam nas Serras da Estrela e do Açor, durante as invasões francesas

e algumas por lá ganharam raízes, como por exemplo, um ramo aparentado dos

Paes do Amaral de Mangualde, os Mendes, dos quais a figura mais notável seria,

um século depois, o industrial Augusto Luís Mendes, o Senhor da Redondinha.

Para além de várias famílias, umas mais endinheiradas do que outras, apareceram

indivíduos solitários, uns mais honestos do que outros e que ali constituíram

família com moças da terra ou que, após o reboliço das invasões, partiram sem

deixar rasto. Já o mesmo tinha acontecido no tempo do ‘Mil Diabos de Loriga’.

Um desses homens foi o “Bispo” que rapidamente foi ‘adoptado’ por todos, como

mais um loriguense, pela sua honestidade, solidariedade e estima a todos. Pouco

tempo depois, levou para a Serra, a esposa, Matilde.

60

Não há certezas na vida. A única certeza é a incerteza e, foi com os habituais

receios dessa, que o “Bispo” foi o primeiro a chegar a Madrid, quando o Senhor

Manuel Luís decidiu ir buscar a afilhada a Madrid.

O “Bispo” esteve uma dezena de anos com o Senhor Manuel Luís. Nasceu em Seia

e logo em criança começou a acompanhar D. Mendonça Arrais. Era criado para

tudo e muitas vezes, tanto era o carinho do Senhor Bispo da Guarda e de Pinhel e o

facto de o “Bispo” ser igualzinho ao próprio pai, que as más-línguas,

desconhecendo o progenitor e as semelhanças, por vezes afirmavam ser a criança

filho de D. Mendonça Arrais. Mas, todos sabiam a força da palavra dada do Bispo

da Guarda e de Pinhel e a sua infinita frontalidade e honestidade. Foi casto desde

que abraçou a Igreja e se tivesse tido filhos ou envolvido com alguma mulher, seria

o primeiro a dizê-lo a todos e a abandonar o ofício.

Mas, como eu escrevia, de criança a homem, o tempo passou num instante, e entre

tantas missas celebradas e orações rezadas, a fé acabou por entrar e o criado de D.

Mendonça Arrais foi ordenado padre. E dele se falou sempre que seria sucessor do

bispo da Guarda e de Pinhel. As coisas encaminhavam-se muito bem para isso, até

que numa ida a Trancoso, o jovem padre sentiu uma enorme atração por uma

viúva pouco mais velha do que ele. Penitenciou-se e rezou dias a fio, mas a

rapariga não lhe saiu do sentido e ele muitas vezes a procurou ver, sem lhe

confessar ou deixar escapar algum sentimento. Um dia, depois de tanto sofrimento

interior, confessou o que lhe ia na alma a D. Mendonça Arrais que, quase segundo

pai, lhe pediu para tentar ter certezas, mas que o apoiaria qualquer que fosse a sua

vontade.

Resumindo: o rapaz ficou com a jovem viúva, mas o clero, com excepção de D.

Mendonça Arrais, não lhe perdoou e o mesmo aconteceu à moça que até teve de

abandonar Trancoso, devido aos insultos e ofensas de que era alvo. A Igreja

perdoa mais depressa as ovelhas que na fraqueza criam cabritos fora do rebanho

do que as ovelhas que deixam o rebanho para se misturarem no Mundo. O casal

viveu durante essa dezena de anos em Loriga, refugiados de tudo pelo simples

facto de serem sinceros e francos com todos. Mas, continuemos.

Um quarto de hora mais tarde, entraram em Madrid, o Manel da “Dos Anjos” e o

António “do Adro”, mais caídos que o Senhor em dias de Semana Santa. Barbas de

oito dias e bolhas nos pés.

Meia hora depois, entrou então em Madrid, o resto da comitiva. Não foi fácil dar

de caras com o colégio onde crescera a menina Francisca, mas lá chegaram e

foram bem recebidos.

A directora do colégio, uma freira francesa, manteve-se renitente em mostrar a

menina e a entregá-la ao Senhor Manuel Luís, até que viu nos olhos da menina e

do padrinho uma ligação tão forte como a que une o musgo ao granito, em dias de

chuva grossa com ribeiras a espirrar courelas.

61

O ar abafado e a terra cor de tijolo das ruas madrilenas não ajudaram à boa

disposição e ao ânimo dos serranos. A comitiva ainda esteve dois dias alojada

numa pensão, mas depressa quis voltar para não serem descobertos por franceses

ou apanhados e vendidos a estes, pelos espanhóis.

Todos regressaram pelo mesmo caminho, que foram marcando com fio de lã atado

em pinheiros e outras árvores. Procurando não se afastarem muito dos cursos de

água e espaçando-se por grupos de três homens que se contactavam por um

assobio curto, imitando o melro, de meia em meia hora. Se algum perigo surgisse,

dois dos três homens procurariam proteger o terceiro que fugindo imitaria na

fuga, o uivo de um lobo.

Os alforges normalmente tinham uma sertã ou frigideira, duas ou três chouriças

de carne, chá de cidreira, verbasco para deitar em qualquer ribeiro e colher trutas

ou outro peixe, biscoitos e flocos de milho ou aveia que eram cozinhados com água

do chá num caldeiro de cobre, pertença de cada grupo de homens, sendo que

servia de primeira refeição do dia.

Em terras mais conhecidas e sossegadas, os mercadores conseguiam ovos e faziam

uma bola de chouriça com um pouco de salsa ou de alecrim que colhiam do chão.

Procuravam o mínimo contacto possível, pois não eram bem vistos desde o tempo

da ‘Peste Negra’. É mais fácil simpatizar com um salteador e um bandoleiro, que

roubam a quem passa e gastam os tostões na terra, do que aturar um mercador

que vai de viagem e ainda leva algum dinheiro pelas mantas e os tecidos que

vendeu às mulheres da vila.

Entre os mercadores muito sangue se misturava. Havia sangue directo de

lusitanos, fenícios, do norte de África, judeu, árabe, galego, espanhol e até francês.

Foram ficando palavras como ‘planquim’ e ‘São Ginez’, entre outras.

Gente que largou um pouco a sua cultura e raízes e que começaram a ter uma

cultura própria e um pouco errante, mas não errada. Eram vistos como ambiciosos

e invejados por terem algum dinheiro, cavalos, mulas e viverem calçados. Se

alguns mercadores judeus existiam em Loriga, eles depressa disfarçaram os

costumes e se misturaram com a cultura dominante e católica.

No comer, depois da pobre desgraçada da Branca Pereira, moradora do Fundão,

filha do mercador de Portalegre Pereira Bravo, viúva e mãe de onze, tão católica

como Santa Ana, ter sido condenada pela Inquisição, em meados do século XVIII e

enviada para Angola, por três anos e lá ter morrido de saudade, os mercadores de

Loriga e de Alvoco da Serra passaram a carregar com eles chouriças que eram

feitas na Cabeça e bem apregoadas e vendidas por toda a Serra e que faziam do

mais fiel dos judeus, um católico beato. O presunto da Cabeça também era famoso,

mas esse nunca o levaram para lado nenhum. Depois, em Loriga e em Alvoco da

Serra, começaram a fazer as chouriças ao gosto das suas gentes, sendo que na

chouriça de Loriga abunda mais a carne do que a gordura.

62

Os homens cuidaram voltar depressa. As roupas finas da menina atraíam a

atenção e quanto mais depressa sentissem o barulho das águas corridas da Serra,

melhor. Não havia medo, mas a insegurança não agradava a ninguém. Ninguém

ainda tinha esquecido os dias negros quando, um ano antes, uma comitiva de

mercadores de Loriga tinha sido surpreendida por uma alcateia esfomeada, depois

dos colossais Penedos de Góis. Os homens e os animais foram violentamente

atacados. O sangue foi marcando o xisto até que conseguiram abrigo na aldeia de

Aigra Velha e lá, com a ajuda dos habitantes, sarar as feridas e enterrar os que

não resistiram aos lobos. Parecia que o Diabo tinha andado à solta, mesmo estando

longe o dia de São Bartolomeu.

A menina Francisca, de pele quase tão branca como o algodão que vestia, era uma

princesa nos modos e no trajar. Cresceu sem mãe e afastada do pai, um mercador

que gastou o que podia, tentando dar às filhas o Mundo que nunca teve.

Assim sendo, depressa foi colocada num rico e católico colégio de Madrid,

esperando o pai assegurar um futuro diferente, mas como certezas ninguém as

tem, o mesmo Mundo mudou e a menina voltou a Alvoco da Serra.

As diferenças culturais e económicas com o resto da população eram enormes e só

a inteligência e a humildade, transformaram rapidamente a jocosamente apelidada

de “Menina do Mimo” em “Cepa Rija”. Depressa deixou as finas meias e passou,

ela mesmo, a tricotar as suas meias de lã. Na missa e nas ruas era um burburinho

sobre a menina. Que seria assim ou assado, mas que seria uma menina mimada

que não daria em nada. A conversa era tanta sobre a menina Francisca que

rapidamente até o padre teve que mandar calar a conversa na missa de Sábado à

noite. Em Loriga, dizia-se o mesmo e Sebastião, com apenas dez anos e uma

curiosidade típica da idade, sonhava conhecer a menina de quem tanto falavam.

Sobre Sebastião, diziam que ia partir cedo e que não tinha corpo para ser alguém,

mesmo sendo alto. Diziam que se ficasse, só se fosse guardar gado para a Serra ou

que só serviria para fazer recados.

Era um miúdo endiabrado, que só guardava sossego quando ajudava na

celebração da missa, mas nem o padre o haveria de querer para sacristão.

Assustava com tanta fé, pois, sempre que passava no adro, entrava na igreja e não

saía sem umas tantas Avé-Marias e outros tantos Padre-Nossos.

Tinha apenas dez anos na IIIª Invasão e acordava todos os dias cheio de vontade de

tudo. Andava descalço todo o ano, como a maioria, mas ao contrário de todos, não

estimava o corpo. Pisava, de propósito, vides, silvas e urtigas. No Inverno, tomava

banho ‘de inqueiro’, nu, nos poços das ribeiras. E no Verão, andava bem

agasalhado.

Prestava-se a tudo, mesmo que não lhe dessem meio-tostão ou uma côdea de pão.

Não levava nada a mal e mesmo quando se zangava, esquecia rapidamente tudo.

63

Irritava a sua boa disposição. Os outros miúdos da mesma idade - os que não

haviam partido já -, falavam em ir para o Brasil e das maravilhas que os

esperavam, apesar dos bichos, monstros e dragões que lá moravam e do tio ou do

primo rico de Manaus.

Sebastião queria ser mercador, mas nenhum mercador o queria para moço de

mulas. Parecia demasiado travesso e ganhara a alcunha de “atramoucado”. As

mães dos outros miúdos não o queriam como companhia dos seus, mas gostavam

de ter tido filhos assim, pois tudo o que juntava dava à mãe. O padrasto pouco lhe

ligara e a mãe era agora mãe de outro bebé, que ele amava com devoção.

Ia muitas vezes esperar a gente que vinha de Alvoco da Serra, poucos metros

acima da agora chamada fonte dos azeiteiros. Queria saber tudo sobre a lã e todos

os pormenores dessa vida. Muitas vezes, fugia de manhã e voltava bem de noite.

Nesses dias, esforçava-se por ir às praças de São Romão e até chegou a ir a

Gouveia. Queria saber tudo sobre a lã, as mantas, os cobertores, o surrobeco e o

burel.

Queria saber fazer teares de pau, mas não queria ser tecelão. Urdir, sem ser

urdideiro. Azeitar, sem ser azeiteiro. Pisoar, sem ser pisoeiro. Queria, apenas,

saber tudo. Como queria ser mercador, tentou saber tudo sobre eles.

Enquanto os outros miúdos iam para a praça rir e brincar, Sebastião ir ver, ao

pormenor, tudo o que lá se passava. A forma como era colocada a sela nos machos

e os alforges nos bichos e nas mulas. O tipo de alimentação dos mercadores e das

bestas. Os modos como falavam, os patrões e os empregados. Que papéis trocavam

e os preços nas lãs, nas varas, em fardos ou já trabalhadas.

Queria saber tudo e por isso, subiu várias vezes à Serra para saber até da boca dos

pastores, que ovelhas seriam as melhores e como as distinguir pelo cheiro e pelo

leite.

Obrigara o próprio padre a ensinar-lhe a escrever, fazer contas e latim, com a

desculpa de querer perceber o que se dizia na celebração das missas. O padre era

renitente e só com a sua substituição pelo padre Costa, em 1813, é que este ensinou

tudo o que sabia a Sebastião. Essa lição foi interrompida por algum tempo, porque

o padre Costa integrou uma das milícias populares para expulsar os franceses de

Portugal e que depois ficou conhecido pelo ‘Liberal’, numa terra de Miguelistas,

causando-lhe algumas discussões violentas e muitas missas abandonadas

barulhentamente a meio.

Foram fundamentalmente três os padres que marcaram o século XIX na Igreja de

Santa Maria Maior de Loriga. Ao padre Costa que era valente, ausente e mais de

obras do que de pregações, seguiu-se o padre Sebastião Brito, filho da terra, muito

amado e que morreu na noite de Natal. Com amor e a pedido, a gente de Loriga

enterrou-o na igreja, onde agora estão os degraus a seguir ao altar. Depois dos

64

anos sessenta, do século XIX, o padre Matias, natural da Vide, marcaria a

população pela enorme paciência, coragem e determinação nas histórias da Nossa

Senhora da Guia e na reconstrução da igreja de Santa Maria Maior de Loriga,

após o sismo de Novembro de 1882.

Um dia, depois de pensar que já sabia muito de teoria, tentou a prática.

Das cem moedas que juntou, em vários anos, escondeu cinquenta por de trás de

uma pedra e a outra metade, enfiou-a num saco de tecido. Arranjou sacos de ráfia

e galgou a São Romão. Comprou lã sem mulas. Carregou e arrastou o máximo que

aguentava e parou mais de cinquenta vezes pelo caminho, até vender a lã em

Alvoco da Serra e por lá espalhar que já tinha vendido o triplo, a melhor preço, no

Paúl.

Nesse dia, do ano de 1812, o lucro rendeu bem e do lucro deu parte à mãe e

guardou parte para o mano. Nos dias seguintes, procurou treinar a corrida e o

andar. Pisava silvas para tornar o peito do pé mais rijo do que solas e com as

urtigas curava as feridas. Nesse treino, foram várias as vezes que, por sorte, não

ficou de vez a boiar no Poço Forte.

Entretanto, a menina Francisca ia tomando conta da casa e do pai, em Alvoco da

Serra. O dinheiro ia sendo cada vez menos. O pai não sentia nada do pescoço para

baixo e várias vezes pediu ao Senhor Manuel Luís que lhe pusesse a almofada por

cima e lhe acabasse com a vida. O compadre ignorou-o sempre e, sempre que o

ouvia, apontava os olhos ao Céu e persignava-se.

Na primeira semana de 1811, já Pina de Aragão estava refugiado na agora

denominada “Casa dos Ingleses”. Os dias eram gelados e ele raramente ia a Loriga

ou a Alvoco da Serra. Quando lhe perguntavam o nome, respondia apenas com o

nome próprio. Evitava ao máximo o contacto e depressa ganhou fama como sendo

um homem capaz de ter feito tudo e coisa nenhuma.

Um dia, por altura do almoço, a menina Francisca bateu-lhe à porta. A reacção foi

de espanto e de surpresa. Pina de Aragão estranhou tamanha educação e firmeza

num corpo tão frágil.

A menina tinha contactos, machos, mulas e precisava de pôr de pé o negócio do

pai. Morreria de fome se não o fizesse. Pina de Aragão não aceitou. Temia ser

descoberto em qualquer estrada e de morrer sem culpa e sem honra. Nunca fizera

mal a ninguém, mas era procurado pelo apelido que tinha. Todos os seus tinham

resistido aos franceses e essa valentia era invejada por nobres cobardes e súbditos

miseráveis. À menina prometeu treinar alguém, mas nunca substituir o pai nas

andanças pelo país. Tinha filhos e ainda queria conhecer os netos. Nunca fora

mercador, mas sim militar ao serviço de uma rainha beata e demente que

abandonou o país, quando nunca nenhum outro monarca tinha fugido.

65

Os dias foram passando e as noites foram ficando mais escuras, até que um dia, à

porta da menina, Sebastião bateu. Tinha o físico e o discurso correcto para ser

mandado embora e assim o fez a menina Francisca. Três horas depois, batia à

porta da casa da menina, Pina de Aragão. Sebastião tinha-o convencido a falar

com a menina. As palavras prolongaram-se e, ao ver o dinheiro a minguar e nada a

melhorar, Francisca arriscou, depois de Pina Aragão ter prometido treinar o

miúdo. E assim o fez no dia seguinte.

66

X – Fosse o que fosse, calou-se.

Ainda hoje, em Loriga, quem suba a estrada da Redondinha às Tapadas, agora, as

avenidas Augusto Luís Mendes e do Brasil, conhece um vento frio que lhe bate na

cara e obriga a andar mais depressa. Mas não é um vento que se entranha nos

ossos, como o do Atlântico. É um vento forte, como a Serra da Estrela, que dá vida

e energia, perfumado pelo alecrim, o rosmaninho, as giestas e os pinheiros em que

foi tocando pelo caminho e que nos puxa para a frente, com a mesma força que

uma mãe agarra a mão de um filho, num atraso sem intensão, numa procissão

sagrada.

Em 1810, ainda eram poucos os pinheiros da Serra.

A transumância marcava a cor da paisagem. A reflorestação surgiu no Século XX,

mas já as courelas estavam assim, como as vêem hoje.

A ideia de espalhar a cultura do milho, capaz de uma grande produtividade e

aliada à ausência da necessidade de pousio surgiu no Século XVI, mas de forma

muito vagarosa, ao sabor de vontades, políticas e compadrios. Tal incentivo só

seria dado com mão rija e punho seguro.

67

Foi ideia do Gabinete do Marquês de Pombal e Conde de Oeiras, Sebastião José de

Carvalho e Melo, para lá da construção do Aqueduto das Águas Livres ou durante

a mesma, de aproveitar de modo eficaz a força e as águas de Portugal de forma a

melhorar a agricultura e a introduzir estas culturas menosprezadas. Tal plano,

sofreu os habituais atrasos lusos, fruto de vicissitudes politicas e económicas, a que

não era alheia a reconstrução de Lisboa e de outras localidades atingidas pelo

terramoto da manhã de 1 de Novembro de 1755.

Assim, sendo a Serra da Estrela a mãe de três rios e tantas ribeiras de Portugal,

por volta de 1760, vindo de baixo, pelos lados de Coimbra, foram-se erguendo

levadas e regos de água que possibilitaram de forma mais regrada dar de beber

aos campos secos.

O milho, o centeio e aveia, entre outras culturas, ganharam uma nova vida e

deram uma nova cor à paisagem. O xisto e o granito foram energeticamente

talhados e ordenados e ainda hoje podem ser admirados nas povoações. Hoje,

ninguém é capaz de imaginar a Erada ou Loriga sem socalcos, olhar o Outeiro da

Vinha sem degraus e assim, por tantas e tantas outras terras beirãs.

Depois, de tudo ter começado, o país agrícola sentiu um impulso em profissões que

iam de pedreiro a moleiro, passando pelo zelador de águas. A própria alimentação

se transformou e as papas de carolo, o formigo e a broa cozida em fornos

comunitários, depois de talhada e benzida, matou a fome a muita gente. Essa

mesma gente uniu-se como nunca visto e ajudava a erguer os muros, em Loriga

chamados de “cômbaros” e a segurarem tapadas e courelas, estas, que em Alvoco

da Serra, chamam de ‘belgas’.

Só Loriga tem trinta mil metros de “cômbaros” em granito, erguidos pela gente, e

com alturas entre os dois e os seis metros, para além de regos, levadas, valas,

açudes e aceiros que permitem a sua irrigação, alimento e segurança. Foi

certamente essa força de alma serrana que muitos herdaram de seus pais e avós

que fez reerguer a ponte romana de Loriga, após uns dias de chuva e trovoada

valentes, nos anos vinte do Século XIX, agora chamada de “ponte nova” e que deu

garra e ganas aos habitantes de todas as localidades, que têm um poço da Broca, a

desviarem o troço natural das ribeiras de Loriga e de Alvoco, nos meados do

mesmo Século.

A população vivia sobretudo dos animais, da lã, do azeite e da castanha.

Foi seguramente esse amor único à Serra, que um século depois, fez com que um

punhado de homens fracos, feitos fortes por uma união de aço, emigrados em

Manaus, juntasse e prescindisse pelos conterrâneos de Loriga, um montante

suficiente de dinheiro para erguer as três principais fontes de Loriga, desenhadas

em 1895 na Figueira da Foz por Sebastião de Almeida Soriano e acabadas de

talhar em 1905 pelo pedreiro ‘Ruas’.

68

As fontes, do Adro, das Almas e do Porto, são a prova monumental de que a

vontade e o amor não se atrapalham com a agrura da distância e a dor da saudade.

O milho e o centeio alteraram definitivamente a vida quotidiana da Serra da

Estrela, bem como, a sua paisagem. Um avanço de um século ou mais, nas

condições de vida das populações habituadas aos rigores da natureza e à inclinação

abrupta da Serra, em que a rega era quase só a que vinha do Céu e a estrumação

feita com recurso a escadas, aos ombros e à própria cabeça. Tudo sofreu uma

reviravolta com a fuga da família real portuguesa.

Com as Invasões Francesas, um povo abandonado por D. Maria I e roubado por

estrangeiros, viu aumentar imenso o seu número de pobres, mendigos, doentes sem

recursos, artesãos sem trabalho e rendimento. A fuga para o Brasil dos mais

capazes e até as tecedeiras e cardadeiras se viram obrigadas a amamentar crianças

estranhas e com o seu leite ganharem sustento e sobreviverem.

A IIIª Invasão Francesa deixou um severo rasto de destruição, pilhagem e morte

muito superior às anteriores e sobretudo na retirada.

A estratégia de Wesllesley, futuro Duque de Wellington, não era proteger os

portugueses ou expulsar os franceses. Aos ingleses era-lhes indiferente a

salvaguarda de uns e os crimes de outros. O principal era o desgaste do exército

gaulês. Assim, Coimbra, à qual pertenciam várias paróquias da Serra da Estrela,

com as de Alvoco da Serra e de Loriga, foi saqueada nos três primeiros dias de

Outubro de 1810. Apenas se salvou o espólio da Universidade, graças à forte

presença de oficiais lusos na tropa invasora que tomou o mais velho e ilustre ninho

da sabedoria portuguesa. Quando as milícias populares, das quais fazia parte o

pároco de Loriga, entraram em Coimbra, comandadas pelo Coronel Trant, a

cidade estava vazia e destruída.

Só Torres Vedras, entre linhas, o exército francês foi massacrado como sonhara

Wellesley.

Durante meses cercados, os franceses conheceram a fome, o frio, a doença e a

humilhação. Portugal estava devastado. Os franceses violavam as mulheres,

matavam os homens. Roubavam o que podiam. De seguida, os ingleses em alvas

camisas de algodão, casacas vermelhas impecáveis e cavalos puros e lavados,

passavam pelos mesmos lugares e adoptando uma política de “Terra-Queimada”,

destruíam searas, moinhos, pontes, teares, gado, aves e tudo o que tivesse sobrado.

Assim, o povo vendo o que fazia o inimigo francês e o amigo britânico, partindo de

Norte para Sul, faminto e abandonado, foi-se levantando e organizando em volta

de personagens que com carácter, valentia e inteligência tinham dado provas

suficientes de amor à pátria.

Com a maior parte da nobreza no Brasil, o povo procurou amparo no clero.

69

No clero, sobressaíam sobretudo três bispos. A destreza do bispo brasileiro de

Évora, a organização do bispo de Lamego e a determinação do bispo da Guarda e

de Pinhel, D. Mendonça Arrais, que conforme confirma o brasão do paço de Melo,

fora coronel do exército.

D. Mendonça Arrais cresceu entre a casa dos avós em Avô, as ribeiras de Alvoco e

Loriga e a Casa das Obras, em Seia. Por amor à Casa das Obras ficou inimigo dos

ingleses, quando Wesllesley a ocupou. Depois, não fosse já a inimizade devida aos

actos praticados na Guarda, quase morreu de tristeza quando viu a mesma casa

ser incendiada por Massena na retirada para França.

Para quem não saiba, a Casa das Obras é o mais monumental edifício de Seia e que

desde 1919 é morada dos Paços do Concelho. Berço de uma família, mas força de

uma terra.

O Bispo da Guarda e de Pinhel era filho do Senhor da Casa das Obras, Francisco

Pinto de Mendonça Arrais, amigo pessoal do Marquês de Pombal, Intendente-

Geral dos Diamantes do Brasil, onde faleceu. A Excelência Reverendíssima foi

igualmente irmão de Luís Bernardo Pinto de Mendonça Arrais, que concluiu as

obras da Casa, Cavaleiro da Ordem de Cristo, desembargador da Relação do

Porto, tão amado como o pai e o irmão em toda a Serra. E, igualmente, tio de Luís

que como afirmei nesta história, partiu para o Brasil e seria depois 1ºBarão e

1ºVisconde de Valongo, bem como de Francisco que era comandante da fortaleza

de Almeida, nos momentos mais trágicos da IIIª Invasão Francesa.

Propriamente e contudo, a resistência lusa nasceu por cima e por baixo do rio

Douro.

Por cima, espontaneamente do povo, em levantamentos populares; e, por baixo, da

ideia dos vereadores de Viseu, pouco depois de os franceses, em Julho, terem

entrado em território português.

Foi ideia de quem mandava na cidade de Viseu criar um grupo grande de

“observadores”, leia-se “espiões”. Tais “observadores” foram recrutados de entre

mercadores cuja actividade comercial tinha sido interrompida pelos franceses, pois

ninguém conhecia melhor o terreno que os mercadores, habituados a percorrerem,

durante todo o ano, várias rotas e muitos caminhos.

Dos mercadores serranos que se fizeram notar por essa altura, sobressaiam o

‘Palminhas’ de Folgosinho, o ‘Marreco’ de Manteigas, o ‘Meloso’ de Seia, o

‘Riscado’ da Erada, o ‘Pisco-Ruivo’ de Alvoco da Serra, o ‘Biscoito’ do Valezim, o

‘Achadiço’ do Fontão e o ‘Lisboa’ de Loriga.

Eram eles que seguiam o caminho dos franceses e dos ingleses. Eram eles que iam

avisando as populações para que fugissem ou se escondessem a tempo. Homens que

depois passaram a velhice nas lutas entre Liberais e Absolutistas.

70

Depois de tomada a praça de Almeida, Massena iniciou a marcha para Lisboa pela

margem direita do Mondego para entroncar com a estrada real que ligava

Coimbra a Lisboa. Pelo caminho, os diários dos generais Koch e Marbot assinalam

uma paisagem vazia de gente e queimada pelo exército aliado britânico. O cheiro a

borralha nunca os irá abandonar.

Depois, nas linhas de Torres, travados, desesperados e sem qualquer

abastecimento, organizaram em grande escala um plano de pilhagem, empurrando

à sua frente centenas de burros. Misturando-se entre os animais, regressavam com

os ditos carregados com bens de toda a espécie. Chegaram mesmo a pilhar

Abrantes, Coimbra e a passar várias vezes o Tejo.

Em Março de 1811, sem solução à vista, que não fosse a morte em combate ou a

morte por isolamento, desistiram e começaram a iniciar a retirada. Com o orgulho

ferido dos franceses começou o maior Inferno dos portugueses.

Coimbra foi poupada, pois Massena não conseguiu entrar, face à valentia das

milícias e então conduziu as tropas subindo o Mondego, pelo lado Sul e praticando

uma atroz carnificina. Por onde passaram, os franceses torturaram e mataram

todos e tudo o que encontraram. A população fugia para os matos, os ribeiros, as

serras, as florestas e para onde pudesse. Em Mangualde, a gente chamou-lhe ‘o

3ºDesterro’, porque já todos tinham fugido em Setembro de 1810 e entre

Dezembro desse ano e Janeiro de 1811.

Os piores dias, foram 19 e 20 de Março de 1811, nas localidades de Pinhanços,

Sandomil, Moimenta da Beira, Celorico da Beira e arredores. Todas elas foram

destruídas, com uma atrocidade de envergonhar o próprio Diabo.

A diocese de Coimbra era uma das maiores de Portugal, abrangendo parte dos

actuais distritos de Lisboa, Santarém, Leiria, Aveiro, Viseu e Guarda. A meio do

regresso a França, as tropas passaram para o lado Norte do Mondego. Segundo

escritos de Molelos, de Campo de Besteiros e da freguesia de Tondela, entre o

Mondego e o Vouga, o inimigo consumiu todo o pão de pragana e tudo o que

houvesse de comer, incluindo cães e gatos.

Das duzentas e noventa paróquias do bispado de Coimbra, apenas vinte e seis não

foram destruídas pelos franceses. Dessas vinte seis paróquias apenas de numa

entraram os franceses e dela não saíram com vida.

O provisor da diocese de Coimbra, escreveu o seguinte na primeira página do

relatório de Dezembro de 1811,”Na diocese contamos, por estes dias, mais de trinta

e oito mil falecidos de forma vil às mãos do inimigo ou na sequência de várias

epidemias de cólera e tifo, resultantes das exalações dos esqueletos dos mortos

abandonados e não enterrados, justo nos locais dos crimes, formando um cenário

pavoroso e mortificante”.

71

Nunca a população viveu um período tão trágico, morrendo os sobreviventes à

fome ou à doença. Foram muitos os soldados britânicos que sofreram castigo, pelos

superiores hierárquicos, por dividirem as poucas roupas e as escassas rações com

os portugueses. Todos os estudos apontam que entre 1810 e 1812, desapareceram

na Beira Alta, sobretudo nas terras de Riba Côa, cinco mil famílias e cinco vezes

mais do que nas outras regiões do país.

Mostrando pela burocracia o que estava incapaz de fazer pela acção, a Junta que

(des)governava Portugal lançou a 25 de Março de 1811, um Aviso Real para que se

apurassem todos os estragos, incêndios e mortos no país. Nesse dia, ainda Massena

destruía parte do que sobrava do distrito da Guarda. A criatura só saiu de

Portugal no dia 4 de Abril, mas deixou em Almeida parte de uma corja que só

partiu a 11 de Maio.

Segundo os párocos relataram e depois de tudo contado, por baixo, pois não

contaram crianças, mais de três quartos da população foi assassinada ou morreu

das epidemias. As terras de Almoster, Vilarinho da Lousã, São Martinho da

Cortiça e São Paio de Gouveia perderam quase a totalidade da população. Lá,

nove em cada dez almas, morreram. O arcipreste de Sinde, perto de Tábua,

classifica os assassinos com “diabos comandados por chefes incapazes de pelejar

com honra e capazes de fazer guerra só à fraqueza”.

As mortes eram cruéis para quem resistisse. Por exemplo, ao padre de Pelmá,

Miguel Lopes Alumbre, os franceses arrancaram-lhe as barbas com as mãos,

cegaram-no com os dedos e só lhe deram dois tiros depois de já muito terem

cortado pela baioneta. Mesmo assim, o povo resistia com um ódio que aumentava a

cada segundo. Outro padre em Arganil, de 76 anos, ao pegar numa faca para se

defender, foi arrastado por uma corda. Depois pendurado e castrado. O vigário de

Sub-Avô, a actual Vila Cova de Alva, escreveu sobre a morte de outro padre que

foi perseguido pelo mato e depois cortaram-lhe os braços e as pernas, antes de o

matarem a tiro. E foi por ali que alguns subiram mais alto. Em Nogueira do

Cravo, foram três as mulheres a quem arrancaram os olhos e as línguas, por não se

prestarem a actos que punham em causa a sua honra.

Numa manhã de calor, de ‘chisneira’, como se diz em Loriga e embora não fosse

data para tal, tinham dado as seis badaladas na igreja de Santa Maria Maior de

Loriga.

Nesse dia, o Alfredo da Guilhermina ia no carrego do segundo ou terceiro balde de

terra de uma mina que tentava abrir na, agora conhecida, rua do Porto. Aquele

lado da vila de Loriga é seco e raramente se encontra água, mas ele tentava. Às seis

e pouco, como eu escrevi, começaram-se a ouvir uivos que vinham do Casal do Rei,

que se repetiam no Domingo Diz e que ecoavam no Pero Negro.

A Almerinda ‘do Cassiano’ cardava lã, numa casinha que ainda existe na rua do

Viriato, quando largou tudo sobre o avental e começou a contar pelos dedos, os

segundos entre os uivos.

72

Era combinação velha, um trato antigo, entre a gente de Casal do Rei e a gente de

Loriga, de que sempre que alguma ameaça surgisse, um uivo de lobo avisaria os

vizinhos e o espaço entre uivos ditaria o grau de proximidade. Assim se combinou e

assim se passou. Se fossem cinco, os segundos entre os uivos, o mau seria terrível. E

se fossem dez, os segundos entre uivos, o perigo seria suportável ou vencível. Mas,

se o tempo entre uivos fosse inferior a cinco segundo, a população deveria fugir.

Nesse dia, a Almerinda contou cinco dedos até às sete da manhã e depois três, após

essa hora. Fechou em seguida a porta de casa e cortou com uma faca o baraço do

trinco da fechadura. Escondeu a faca no bolso interior da saia. Subiu ao adro e dali

à praça, enrolada na manta-xaile.

Os homens capazes viviam de cuidar de animais na Serra, outros eram mercadores

e muitos tinham emigrado, fazendo com que Loriga fosse uma terra

maioritariamente constituída por idosos, crianças e muitas mulheres. As mulheres

de Loriga sempre foram justamente gabadas por serem formosas e com as

medidas certas, pelas gentes vizinhas.

Na praça, o mulherio juntou-se à volta do tabelião notarial José de Sousa Sobral

que organizou a fuga para a montanha, dividindo as gentes em quatro grupos. Um

grupo subiu pelas Tapadas. Outro, subiu até ao Chão da Ribeira e daí para a

Penha do Gato. Finalmente, outro grupo com crianças e idosos, foi para os lados

da Penha d’Águia. Mesmo assim, ainda ficaram em Loriga cerca de vinte teimosos,

que insistiram que o perigo não existia porque, ao soarem as sete horas e meia, os

uivos calaram-se.

Depois, passaram mais duas horas até que o João da “Burrega”, que tinha ficado

junto ao Piomal, avisou o grupo das Tapadas de que se ouviam gritos na vila. Aí,

dois sentimentos se instalaram. Um grupo que queria descer com podão, gadanha e

calhau na mão e outro grupo, que queria ficar sossegado ou subir mais um pouco a

Serra. Aguardaram mais uns minutos e acabaram por uns descer e outros ficar.

Quando o grupo passou o Terreiro da Lição, começaram a ver sangue e pedaços de

carne humana esquartejada. O ódio e o medo tomaram-nos. Depois do adro e antes

do Terreiro do Fundo, onde hoje é a Associação de Apoio à Terceira Idade e onde

nessa altura trabalhavam em conjunto umas escarameadeiras, que esfarripavam a

lã e a limpavam da impureza, as mulheres encontraram parte do grupo que tinha

subido ao Chão da Ribeira. Este grupo que chegara antes, encontrou, para lá do

cenário macabro de corpos massacrados, um grupo de franceses nessa casa. Em

silêncio, buscou forma de lhes tapar a saída e depois acenderam tochas, carqueja e

pinhas que atiraram para o telhado de barro, palha e xisto. Depois, enquanto

ouviam gritos de dentro da casa, a gente gritava várias vezes “Vá de retro,

Satanás!”

Todos ficaram ali horas, até só sobrar brasa no meio do granito.

73

No dia seguinte, enterraram os corpos dos seus no cemitério e mesmo sem padre,

que partira com as milícias, as almas não ficaram sem missa ou rezas. Quanto aos

ossos que se descobriram na casa, eles foram atirados para a ribeira e nada mais se

disse sobre o assunto. Só mesmo o tabelião é que soltou um “Fosse o que fosse,

calou-se!”

Nos dias seguintes e com tristeza, a gente Loriga verificou que, aqueles que os

avisaram uivando, morreram às mãos dos franceses, enquanto uns espalhavam

penas e sangue de galinhas pelos terrenos, outros iam dizendo que por Loriga

tinham passado bruxas. Havia que fazer pensar os franceses de que algo bem ruim

e de oculto há via por ali.

O boato foi bem espalhado, mas alguém, com língua maior do que o juízo,

confessou o que se passara a ingleses que ocupavam a Casa das Obras. E em menos

de uma semana, sem qualquer resistência, homens a cavalo e com casacas

vermelhas e camisas de algodão alvo destruíram tudo o que havia de valor e tudo o

que puderam em Loriga, não tendo sobrado um único tear. A população que não

era remediada, ficou miserável.

Mas a notícia de franceses e ingleses por Loriga espalhou-se. A gente de Loriga

passou a ter cuidado com todas as situações estranhas e no dia em que a “Tia

Taleiga” viu três homens a cavalo, virem do lado do Caixão da Moura, todos se

muniram de foices, podões e calhaus para irem a seu encontro. Era muita a

vontade e a força daquela gente, mas depois de verem a Matilde do “Bispo”

ajoelhar, todos fizeram o mesmo.

Os homens montados eram três, como os Reis Magos. O primeiro tinha uma capa-

de-honras. O do meio tinha uma capa preta e um chapéu eclesiástico da dignidade

de Bispo. O último tinha uma capa portuguesa preta. Todos montavam cavalos

lusitanos escuros, mas bem tratados.

Com o afastamento do “Bispo” da alçada de D. Mendonça Arrais, dois clérigos

tomaram o lugar de braços-direitos do Bispo da Guarda e de Pinhel, D. Carlos da

Cunha e Menezes e Frei Carlos de São José de Azevedo e Sousa. Ambos, eram

seguros no porte e determinados na vontade.

D. Carlos da Cunha Menezes, filho de D. Pedro José da Cunha de Mendonça e

Menezes, 4º Senhor de Valdigem, foi depois das Invasões, indicado pelo D.

Mendonça Arrais para ter um papel importante como conselheiro de Estado na

regência de Portugal, na ausência de D. João VI. Depois, o Papa Pio VII tornou-o

Cardeal Patriarca de Lisboa em 1819. Quanto a Frei Carlos, este tomou o lugar de

D. Mendonça Arrais como Bispo da Guarda e de Pinhel, dois anos após o seu

falecimento, no Paço de Melo. Foram estes os únicos estranhos que entraram em

Loriga, logo a seguir à visita dos ingleses. Dia em que a devastação era tanta que

nem papas de carolo de milho branco havia para receber as visitas.

74

XI – Um tempo novo lembrando o velho

Com a IIIª Invasão Napoleónica, muitas famílias de lugares mais distantes esconderam-se

em Loriga e onde, pagando algum dinheiro, encontraram abrigo. Apesar de tornarem as

casas mais pequenas do que já eram, possibilitaram algum rendimento a quem se viu sem

trabalho, devido à guerra.

Quando o D. Mendonça Arrais chegou a Loriga, tudo estava destruído e quase só se

salvaram os santos dos altares, que não estavam na igreja de Santa Maria Maior, desde o

tempo do terramoto de 1755, que quase deitou abaixo a igreja e da qual só sobraram as

paredes laterais.

Há muito que a reconstrução da igreja de Santa Maria Maior caminhava devagar e ao

sabor das circunstâncias. Com uma vila cheia de gente estranha e sem abrigo, os três

sacerdotes ficaram na sacristia da igreja, cerca de duas semanas.

75

Com muitos inimigos, a visita da Excelência Reverendíssima foi mantida em segredo.

Se politicamente, parte da Serra estava ligada à Guarda, a mesma parte estava

ligada a Coimbra, pela religião. Era sonho de muitos ficarem politicamente ligados

a Viseu, pela proximidade e à Guarda, pela religião.

D. Mendonça Arrais e toda a família, eram filhos da Serra da Estrela e a

conheciam melhor que as próprias mãos. Era gente de uma nobreza antiga e

humilde que tratava por tu todos os da mesma idade e que agradecia que os

mesmos assim os tratassem. Muitas foram as vezes em que D. Mendonça mandava

perguntar pela gente desta ou daquela terra e todos correspondiam com o mesmo

afecto, enviando produtos da terra, fosse ou não o sacrifício de dar o pouco ou

nada que se tinha.

Mais do que a força do corpo, que só a comida permite, o Bispo e os seus dois

braços-direitos levantaram pelas palavras e actos o que franceses e ingleses

deitaram a baixo, em Loriga.

Estiveram no erguer dos ‘cômbaros’ e levadas, nos fornos, courelas e malhadas,

ombro a ombro com o povo. Deve-se a Frei Carlos de São José de Azevedo e Sousa

o carrego de muitas das pedras da levada que vai de Loriga à Cabeça e que para lá

da beleza da paisagem e das frutas que acompanham o trajecto, são hoje cenário

de uma bela rota turística praticada por muitos e procurada por outros tantos.

Quanto a D. Carlos da Cunha e Menezes, mais conservador que o Bispo e Frei

Carlos, mas não menos apaixonado, valente e trabalhador, deve-se parte da forma

como Loriga começou a estrumar as terras, a criação de algumas “râmbulas”, que

na histórica calçada de Santa Cruz da Covilhã chamam de râmolas, a organização

clara e sem bulha do giro das águas, que tantas vezes tinha acabado em

pancadaria, e as ideias de apego forte e isolado aos absolutistas, contra a política

do futuro pároco da vila, o padre Costa, liberal, quase vinte anos depois da

marcante e secreta visita do Bispo da Guarda e de Pinhel.

Era também com eles que a gente de Loriga terminava o dia a cantar ou a contar

histórias antigas como aquela, que ainda hoje se conta, de um magusto de amigos

junto ao cemitério, cujos risos desrespeitosos fizeram erguer as alminhas do outro

mundo.

76

Estiveram os visitantes unidos no cuidado dos mais necessitados e todos juntos

como uma família. Pelo meio, D. Mendonça Arrais reencontrou o afilhado Pina de

Aragão e contou no último dia, algo que marcaria o futuro daquela gente.

Disse o Bispo, à despedida, que num tempo em que os celtiberos que viviam em

castros e foram obrigados a descer a Serra e fixar-se junto da via romana e das

ribeiras, para melhor serem vigiados pelo invasor romano, um grupo grande de

escravos estrangeiros foi fixado na Lomba do Canho. Eram homens que

descendiam de navegadores fenícios, que foram comerciantes cartagineses e que

depois da famosa batalha de Zama, tudo teriam perdido.

Segundo o bispo, parte desses homens explorou o ouro, a cassiterite e o volfrâmio,

nas ribeiras de Loriga, de Alvoco, das Forjas, no rio Alva, no alto do Cabrum,

entre a Lapa da Lias e o Soito de Valcova. E, um dia, depois de os Lusitanos terem

sido derrotados pelos romanos na ilha de Peniche, todos conseguiram fugir pela

Serra acima. Aí, tomando como suas algumas mulheres dos Lusitanos, foram

constituindo família e dedicando-se ao comércio, pois pouco mais sabiam do que

vender ou guerrear. O próprio Bispo disse descender de tal gente e mostrou um

escaravelho egípcio enfiado num fio de ouro e ao lado da cruz, como prova

suficiente de tal. As pessoas nem disseram que sim, nem que não.

A história teria ficado por aí se Sebastião no meio de várias pessoas, não tivesse

assegurado, de forma bem sonora e audível, que o Jaime da “Alfredina” e o

Joaquim da Maria do Carmo “Calhandrona” tinham uns “bichos” iguais ao

pescoço. A gente riu, até que Sebastião abriu a camisa e mostrou o peito. Também

ele tinha um fio de ouro amarelo que fora do falecido pai, onde uma cruz de Cristo

e um escaravelho egípcio, em pedra sabão, se seguravam.

O povo calou-se e sossegou, mas ninguém dormiu bem naquela noite. No dia

seguinte, já o Bispo estava em Melo, mas ainda a conversa não saíra do adro e da

praça de Loriga. Sebastião começou a ser tratado com mais respeito e também ele,

tentou saber mais sobre os mercadores da Serra da Estrela. Explorou sozinho e

para o resto da vida, locais como as penhas do Gato e dos Abutres, a Canada, a

Cama da Moura, o Talegre, a Lapa das Naves, o ribeiro do Fuso, a vinha do Negas,

o Covão da Areia e tantos outros locais. Buscava achar algo sobre umas origens

fabulosas e místicas ou achar algo do pai que nunca conhecera nem lembrava.

77

Quando via um mercador, pedia-lhe para ver o pescoço e em muitos encontrou ao

pescoço um escaravelho igual ao seu, preso em cordão de oiro, num baraço ou fio

de couro. Nenhum sabia explicar o porquê, mas todos tinham recebido o mesmo de

seus pais e avós. Aquele mistério permaneceu toda a vida, mas deu-lhe força até à

morte.

A destruição de Coimbra não foi culpa inteira dos franceses. O exército aliado

vencera a batalha do Buçaco no dia 27 de Setembro de 1810, e até em Coimbra

comemorou-se efusivamente, no entanto e como escreveu Maria Antónia Lopes,

“Mas Wellington decidiu rumar a Lisboa, abandonando aquela cidade, onde só na

madrugada do dia 29 de Setembro se percebeu que o exército inimigo se

encontrava às suas portas. Foi ordenada a total evacuação da urbe e a destruição

de tudo o que não pudesse ser transportado. Em pânico, pobres e ricos, padres e

freiras, velhos e novos, fugiram em direcção a Lisboa e ao porto da Figueira da Foz

ou embrenharam-se por matos e pinhais, mas muitos foram capturados e

violentados na estrada real. Outros, impossibilitados de caminhar por doença ou

velhice ou esperançados na clemência do invasor, permaneceram e sofreram as

consequências. Igrejas, conventos, colégios, recolhimentos, câmara municipal,

seminário, misericórdia, lojas, casas particulares... tudo foi saqueado.” E

acrescenta, “Só a Universidade escapou parcialmente, protegida pelos cuidados

dos oficiais portugueses que integravam as tropas invasoras. As residências das

populações humildes também não foram poupadas. Quando regressaram não

possuíam uma peça de mobiliário ou um fato com que se cobrissem.”

Também por aqueles dias, José Benedito fugira da casa de família no Ribatejo.

Entrou depois em Coimbra a pé, deixando os dois cavalos escondidos, nos

arredores da cidade. Procurando ali e acolá, encontrou a Conservatória do Registo

Civil, que funcionava na Universidade. Lá, queixou-se de que os ingleses lhe

pediam a identificação, a torto e a direito; não a tendo, pois nunca fora registado,

afirmava. No local, trataram então do Assento e o mesmo adoptou pela primeira

vez o único apelido que sabia do pai e inventou um apelido para a mãe, tendo

apagado para sempre “Benedito” e “Veiga”.

78

Tinha agora uma segunda vida e esperava de vez apagar a primeira, que tanta dor

lhe ocupava o pensamento. Dos Veiga, restava apenas o ferro de marcar o gado

com que queimara o peito quando abandonou tudo.

Muitos dos franceses vestiam agora a roupa de muitas das suas vítimas, pois as

suas fardas ficaram a cobrir espantalhos, com que enganaram o exército aliado, na

fuga da linha de Torres Vedras.

Ao sair de Coimbra, José seguiu pelo caminho de retirada dos franceses e depois

de Arganil, tentou encontrar a aldeia de Cabeça, pois apenas sabia a origem do pai

e nada mais. No caminho, parou por momentos, junto a Coja e lá foi surpreendido

por outro miúdo que lhe roubou um dos dois cavalos que levava. Galopou e

persegui-o, mas o larápio, pouco habituado ao animal, malhou e acabou por fugir a

pé e tombar na Cascata da Fraga da Pena, no caminho do Piodão, em terras de

Benfeita.

José não desistiu e atirou-se também à água. Estava pronto a dar uns muros no

atrevido. Deu, no entretanto, com o miúdo, da mesma idade que a sua, desmaiado e

cheio de sangue. Galgou a margem com o ferido nos braços e procurou ajuda.

Depois de muito procurar e de gritar, lá apareceu um agricultor que o levou a um

curandeiro, dos muitos que sempre existiram pelo Alva. Foi aliás, a um desses

muitos curandeiros a quem um dia, mais de cem anos depois, já depois da segunda

metade do Século XX, o lendário e sorridente Dr. Fernando Vale levou o seu amigo

e escritor Miguel Torga, quando no pescoço deste apareceu uma coisa ruim. E lá se

safou o médico e escritor transmontano, tendo durado muitos mais anos, depois da

maleita.

O curandeiro deu pouca esperança, mas José só abandonou o local após cinco dias,

quando o bandido parecia quase recuperado. Com o atrevimento ou percalço,

ficou sem um dos cavalos e o outro manifestava muito cansaço. O malandro era

orgulhoso, teimoso e avesso aos tratamentos do curandeiro mas, no final,

agradeceu ao José o facto de ele o ter socorrido. Disse-lhe mesmo que se algum dia

precisasse de ajuda que afirmasse ser amigo de “Vaz Patto”. José sorriu e não

ligou, mas alegrou-se por terem reconhecido o bem que tinha feito. Era tão raro o

seu sorriso, desde a morte do avô, que até achou estranho sorrir.

79

Quando chegou à aldeia de Cabeça, José tentou saber mais sobre o pai e quando se

atreveu a dizer de quem era filho, os olhos das pessoas ou se tornaram

reprovadores ou miravam-no como mais um infeliz.

Constava na terra, que o homem que procurava como pai e que violara a mãe,

tinha fugido de várias terras, de onde roubara pertences ou tirara a virtude a

muitas raparigas.

O resto da família abandonara a terra com vergonha e apenas havia uma casa

abandonada, que José fez sua e que a ninguém preocupou em reclamar. Depois,

quando pela primeira vez visitou Loriga, o cavalo e a forma como bem montava fê-

lo notar e logo o Senhor Manuel Luís o quis contratar como moço de mulas. Sem

quase nada para comer, José aceitou e nesse dia passou a ser o “Zé da Cabeça”.

Dias depois, pela noite, o segundo cavalo foi roubado. O barulho acordou-o e

quando foi ver, apenas sentiu uma dor valente na testa. Como acordou todo

dolorido e sem cavalo, teve que passar a andar a pé. Por isso, também foi gozado

por uns tantos fulanos da aldeia, que lhe invejavam os modos finos. Viu-se mesmo

aflito com falta de dinheiro e valeram-lhe a fruta gamada que ladeia a levada, a

bondade do Senhor Manuel Luís que lhe adiantou uns trocos e o dono do lagar da

Cabeça, que lhe deu algum azeite para molhar a broa de milho de Loriga. Longe ia

o tempo do carinho do avô e dos lençóis de cetim. Agora, até a broa de milho era

amarela, pois a branca estava limitada a quem tivesse mais dinheiro. Logo ele, que

nunca comera pão que não fosse trigo bem moído e clarinho.

Por outro lado, se os franceses matavam e os ingleses destruíam o que restava, não

se devem confundir os exércitos ou o poder do Estado com o povo.

Na Grã-Bretanha, nessa altura, arrecadaram-se grandes somas de dinheiro para

as vítimas portuguesas da Guerra Peninsular. Mesmo os mais pobres de Inglaterra

juntavam dinheiro para ajudar Portugal, de onde vinham relatos de horrores e

atrocidades praticadas por franceses.

Se o poder e o exército britânico sonhavam converter Portugal a uma colónia, o

povo da Grã-Bretanha via Portugal como o mais fiel e amigo dos aliados. Foi, aliás

constituída uma comissão central em Lisboa, a “Junta dos Socorros da Subscrição

Britânica”, que encarregou os bispos da distribuição dos donativos que configurou

um caso absolutamente único, exemplar e histórico na política assistencial

80

portuguesa, servindo de exemplo para a criação futura e helvética da Cruz

Vermelha Internacional, mais de cem anos depois.

Ainda hoje, o Arquivo da Universidade de Coimbra guarda algumas centenas de

petições de vítimas suplicando o auxílio. Eram dadas roupas, distribuído dinheiro e

alguns alimentos.

Em 1814, segundo Maria Antónia Lopes e citando o Arquivo da Misericórdia de

Coimbra, as saias de baeta custavam cerca de 2.200 réis, um cobertor 2.400, um

capote 3.150, o enxoval necessário para uma rapariga entrar como criada para o

mosteiro do Lorvão, 18.685 réis. Como o ordenado de uma criada de servir não ia

além dos 3.000 réis por ano, já contando com o que não pagavam no alojamento e

na alimentação em casa dos patrões, os donativos provenientes do subsídio

britânico, embora muito longe de colmatar as carências dos peticionários, foram

uma ajuda não desprezível e preciosa. Foi essa ajuda que contribuiu para que as

pessoas voltassem a olhar com bons olhos os ingleses e eles fossem bem recebidos

em Loriga, quando uma pequena colónia lá se instalou, nos meados do Século XIX.

Inicialmente, este pequeno grupo chegou para vender teares e depois dedicou-se a

explorar volfrâmio, no Sorgaçal e no alto do Cabrum, talvez por culpa das muitas

lendas contam na região, como a do sino de ouro, o bezerro de ouro, o pote de

ouro, os figos de ouro e do moinho que moía ouro, entre outras histórias.

O alto do Cabrum e a Selada, estão para Loriga e Alvoco da Serra, como Olivença

está para Espanha e Portugal, desde a Guerra das Laranjas. Se Olivença parece

um caso perdido, julgo que o Cabrum e a Selada nunca deixarão de ser questões

controvertidas e desavindas entre Loriga e Alvoco da Serra.

Mas verdade se diga, que tanto uma como a outra localidade, como em tudo na

vida, só ganharam e cresceram enquanto se deram bem. Loriga não deve esquecer

o papel do 1º Barão de Alvoco na sua luta constante por uma estrada que só

surgiria nos anos vinte do século XX e a carreira da Rodoviária Nacional, luta e

vitória do reverendíssimo padre Jaime, nos finais do mesmo século.

Hoje, tempo em que as novidades tecnológicas tornam-se obsoletas em menos de

meia dúzia de anos, parece inacreditável que a ligação por alcatrão entre Loriga e

Alvoco da Serra tenha demorado tantos anos, porque a mesma estrada que chegou

a Loriga em 1918 só chegaria a Alvoco da Serra em 1937. Uma légua e meia de

alcatrão demorou quase vinte anos a ser espalhada pelo chão. É obra!

81

No entanto e como eu escrevi, para não fugir ao assunto, a ajuda britânica após a

IIIª Invasão Francesa foi sem dúvida uma ajuda superior, marcante e mais

impressionante do que a que existiu após a IIª Grande Guerra, do Século XX e que

ainda hoje perdura na memória de muitos portugueses.

Também por essa altura, os gémeos e o sobrinho de D. Mendonça Arrais, Luís, já

se tinham transformado em espiões sobre a orientação do amigo Francisco Gomes

da Silva, o “Chalaça”, agora protegido de D. João e amigo de D. Pedro de

Alcântara e várias vezes desembarcaram no Porto, onde o pai de Luís, cavaleiro da

Ordem de Cristo, era também Juiz Desembargador da Relação. Os três amigos,

sempre que chegavam à cidade Invicta tinham por hábito rezar um Padre-Nosso e

três Avé-Marias na antiga capela da Nossa Senhora da Piedade ou do Cais, que

depois de 1821, passou a ser conhecida por capela da Nossa Senhora do Ó, por ter

sido transferida para lá a imagem da Santíssima.

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XII - Nunca nos inqueiçamos, mas já nos atrapalhámos.

Com a fuga dos franceses, Wellington começou o caminho para Espanha. Entre os

dias 8 e 19 de Janeiro de 1812, os ingleses cercaram e tomaram Ciudad Rodrigo,

onde o exército francês resistia sob o comando do general Berrié. Mas nada era

fácil para os ingleses, com vários “observadores” da Serra da Estrela no seu

exército, pois, no dia 9 de Janeiro, o general francês Suchet conquistou Valência e

no dia 26 do mesmo mês, a Catalunha seria anexada e dividida em quatro

pequenas províncias pelos franceses.

Napoleão não temia ninguém. E tanto era assim, que no dia 23 de Janeiro rasga a

Concordata com o Papa. Não satisfeito, prende o Santo Padre em Savona e

transfere-o para a prisão de Fointainebleau, em 21 de Maio. Já antes, tinha

assinado um tratado com a Prússia e outro com a Áustria, para ocupar a Rússia.

A 16 de Março de 1812, enquanto o Senhor Manuel Luís estava em Bordéus a

entregar aguardente, Wellington começava o terceiro cerco a Badajoz, que era

defendida pelo general Philippon.

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Três dias depois, em Cadiz, os espanhóis tentavam salvar o país, aprovando a

Constituição que pouco serviria. A 30 de Março, os franceses voltavam a Ciudad

Rodrigo, chefiados pelo marechal Marmont, que no dia 4 de Abril invade Portugal.

A IVª Invasão Francesa é pouco conhecida, por ter sido curta e porque ao mesmo

tempo em que os franceses entravam em Portugal, as tropas anglo-portuguesas

avançavam e tomavam Badajoz.

No dia 6 de Abril, o general Clausel tenta tomar Almeida, mas não consegue, pois

horas antes, os homens do mercador “Paixão”, da Erada, viram os franceses e

avisaram todos pelo caminho.

Pior sorte, teve a comitiva que vinha do Douro. O “Malha-Pão” de Loriga e seis

dos seus moços de mulas foram feridos, quando se viram no meio da luta entre os

franceses e a milícia portuguesa, na Guarda, a 14 de Abril.

Antes, já Alvoco da Serra chorara a morte do moço “Pisco-Ruivo”, no dia 8,

quando o exército francês rodeou o Sabugal, e investiu contra Castelo Branco. No

dia de Santo António, o exército anglo-português atravessou o rio Águeda, mas só

no dia 17 é que entrou em Salamanca, com Wellington.

Diplomaticamente, Portugal prorroga o Tratado de Amizade com a Rússia, que

assinara depois do dia de Natal de 1798. Ao mesmo tempo, celebra um Tratado de

Paz com Argel.

No dia 18 de Junho de 1812, os Estados Unidos da América declaram a guerra à

Grã-Bretanha e muitos portugueses, pensam que talvez assim, os ingleses deixem

Portugal e se virem para o outro lado do Atlântico.

Um mês depois, Wellington e Mormont combatem em Tordesilhas. A 21 de Julho

dá-se a batalha de Castalla, perto de Valência, vencendo Dellort os espanhóis e

ingleses comandados por O’Donnell. Mas, no dia seguinte, em Salamanca,

Mormont sofreria a derrota e mais um dia bastou para ser esmagado em Garcia

Hernandez, pela cavalaria britânica montada em cavalos puros lusitanos, criados

em Queluz e em Mafra.

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Agosto será o mês marcante. Os aliados tomam Madrid e avançam com menos

custo pela Espanha, pois Napoleão e as suas tropas querem tomar conta da Rússia,

entrando em Moscovo a 14 de Setembro.

Só que os russos não se renderam a Napoleão, que sai de Moscovo no dia 19 de

Outubro.

À Península Ibérica, os franceses regressam a Madrid com o seu ‘rei’ José

Bonaparte, a 2 de Novembro, mas já nada é como antes. Dentro das tropas

imperiais crescia um enorme descontentamento, tendo havido uma tentativa de

Golpe de Estado, pelo general Malet, fuzilado uma semana depois.

Depois da visita de D. Mendonça Arrais a Loriga, os olhos voltaram-se para o

afilhado Pina de Aragão. Todos os dias, o ex-militar ensinou Sebastião a montar e

a lutar, para que melhor pudesse servir as intenções da menina Francisca

Monteiro.

As estradas e caminhos de Portugal, tornam-se mais perigosos. Já antes, o Senhor

Manuel Luís criara uma farda semelhante à do exército para que os seus homens

iludissem qualquer estranho que os abordasse. Mesmo assim ou foi mesmo isso que

não evitou que ele e os seus moços fossem feridos, no primeiro Domingo de Agosto

de 1813, ao entrarem em Portugal, por homens da milícia lusa e por engano.

A notícia espalhou-se depressa e se um dos melhores mercadores da Serra era

ferido, então o resto do povo ficara apreensivo e inseguro. Mas, se há coisas ruins

que nos deitam abaixo, também há coisas ruins que nos levantam; como foi o caso.

O incidente serviu para que o filho miúdo do Senhor Manuel Luís, Manuel Luís

Fernandes Jr., crescesse em maturidade e se tornasse mais chegado ao pai. Esse

miúdo de Alvoco da Serra, casará anos depois com a mana da menina Francisca e

será avô de parte da família Camelo, da vila de São Romão.

O Zé da Cabeça não se feriu e foi ele que trouxe todos de volta a Loriga, a Alvoco

da Serra, a Vasco Esteves, ao Outeiro da Vinha.

Os homens pediram ajuda a Pina de Aragão, que na Praça de Loriga estabeleceu

um plano. Sebastião levantava o ânimo, falando nos Cartagineses e como todos

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descendiam destes. Nessa noite, um e outro, entraram nas lojas de sapateiros e

falaram com mulheres sabidas e vividas.

O plano era vestir os mercadores de Loriga com roupa preta, causando a ilusão de

que eram ciganos. A roupa teria bolsos falsos que serviriam para esconder

dinheiro e punhais. O mesmo aconteceria com as botas. A sola teria de ter algo

vago que escondesse uma arma.

As mudanças foram-se dando devagar, ao sabor do evoluir da guerra e dos perigos

que iam surgindo. Depois o Senhor Manuel Luís foi melhorando e juntou-se a Pina

de Aragão, a Sebastião, a Francisca Monteiro e a mais um ou dois que iam

tentando arranjar formas de proteger os mercadores e as povoações da Serra da

Estrela.

Se as roupas e as armas eram fáceis de arranjar, já os animais escasseavam e

muitos eram roubados quando deixados numa localidade por minutos. Um dia, o

Senhor Manuel Luís apareceu com uma ideia que não era dele, mas do Zé da

Cabeça.

Comprariam cavalos bons, fortes e robustos. Apenas teriam de resolver dois

problemas, ter dinheiro para os comprar e saber onde os comprar.

O facto de Maria ser casada com Vicente Calheiros talvez ajudasse, mas a Maria

detestava qualquer ligação a Loriga e o juro do avô do futuro conde da Covilhã era

mais famoso que o pior juro dos judeus de Belmonte. Por outro lado, de Belmonte,

os Judeus que restavam, fugiram nessa altura. Restava, assim e a contragosto, o

Calheiros.

O negócio ia cada vez pior, mas todos sabiam que a guerra não haveria de durar

muito e que depois vem sempre a bonança.

Toda a gente convenceu Teresa a falar com a irmã sobre o assunto. E Teresa não

se negou. Pegou num xaile e foi a Valezim, a pé, pedir ajuda à irmã para os

mercadores da Serra, mas a irmã não abriu a porta.

Teresa ainda ouviu a irmã a dizer a uma criada para que dissesse que não estava.

Disse-o bem alto para que ferisse Teresa, mas Teresa tinha o coração puro e

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perdoava tudo, pois achava que não deveria ser mais do que o Senhor que na

Santa Cruz perdoara tudo e nela, por nós, morreu.

Voltou a Loriga com a nega, mas ficou para sempre como uma heroína para os

mercadores, que da Teresa se lembravam sempre no regresso.

As coisas foram andando devagar, até que um dia, o Senhor Manuel Luís e Pina de

Aragão encontraram Vicente Calheiros, no caminho de São Romão.

Conversa puxa conversa e Vicente concordou emprestar dinheiro em troca de

lucros das mercadorias e de que fosse a ele que todos comprariam os cavalos. Sem

outra escolha, os homens concordaram. Mas dias depois, quando o Zé da Cabeça

viu os animais e trocou palavras sobre o assunto com o Sebastião, todos ficaram

com a sensação que tinham sido enganados.

Os animais que não estavam doentes eram velhos e fracos para percorrerem as

estradas de Portugal e muito menos irem a Espanha ou a Bordéus, entregar

mercadoria. Mas ninguém desistiu. Venderam-se os cavalos e com eles

compraram-se um quarto desse número de animais, mas em bom estado. Depois

marcaram-se com um ferro em forma de uma espécie de flor. E depois entraram

ao serviço.

Em Janeiro de 1814, já o Senhor Manuel Luís estava bem recuperado. Alvoco da

Serra produzia mais do que nos anos anteriores e dava o acabamento do seu

trabalho a Loriga, que trabalhava melhor do que nunca. Os mercadores de Loriga

vestiam agora de preto e todos tinham deixado crescer o bigode ou as barbas. Para

lhes aumentar o ânimo, Pina de Aragão deixou de lhes chamar mercadores e

passou a chamá-los de “Cartagenos”.

Sebastião montava agora mal o cavalo e tentava ganhar pelo nas fuças, mas era

novo para ter bigode ou barba. O mesmo acontecia com o Zé da Cabeça, mas este

tratava por irmão qualquer cavalo e ninguém montava melhor do que ele. Estava-

lhe no sangue que escondia.

A dívida a Vicente Calheiros apertava todos e por mais que lhe dessem, estavam

sempre a dever muito. Sentiam-se empregados do usurário. Só ele sabia o quanto

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deviam e estava sempre a controlar tudo. Quando partiam. Quando chegavam. O

que traziam e o que levam.

A 4 de Abril de 1814, Napoleão abdica, mas só a 23 do mesmo mês, com a

assinatura da Convenção de Paris, entre a França e as quatro potências aliadas, é

que a França regressa às fronteiras de 1 de Janeiro de 1792. A Europa não será a

mesma. Napoleão foi militarmente afastado, mas o seu ‘Code Civil’ ficará até aos

nossos dias a marcar o Direito e a Justiça.

No primeiro fim-de-semana de Agosto, o padre Costa e todos os que fizeram parte

das milícias, voltam a casa, a Loriga e a todas as localidades vizinhas. Apesar de

não haver quase que comer, uma festa é feita e repetida por vários anos, sempre

nesse fim-de-semana, quase até surgir uma festa maior… O fim da guerra é

anunciado a 6 de Agosto, mesmo que os ingleses quisessem continuar a mandar,

com o regresso de Beresford a Portugal, no dia 26.

O Setembro desse ano, começou mal; cheio de chuva, de trovoadas e uma gripe

que tardava em passar. Mas sentia-se o alívio das gentes. Os ‘hóspedes’ das terras

mais baixas, começavam a regressar a suas casas. O Natal, embora tenha sido mais

fraco, não foi menos sentido e vivido pelas gentes da Serra.

Em Janeiro de 1815, em Loriga, todos se esforçaram para que o Cambeiro fosse

bem carregado e assim foi. O Cambeiro é uma tradição loriguense que só encontra

parecido em Portugal, nalguns raros sítios, no mastro dos Santos Populares, por

altura das festas dos três santos. Algo parecido vê em certos locais do Brasil, com a

tradição do mastro de São João e na Suécia, pelo meio de Maio, com o

"majstången", que simboliza o início das festas estivais de junho,

"Midsommarafton". Segundo os entendidos trata-se de uma celebração pagã,

anunciando o começo do tempo bom.

Em Loriga, o Cambeiro sai à rua em Janeiro e visa angariar dinheiro para as

celebrações da festa em honra de São Sebastião. Nesse dia, um mastro em madeira

é transportado pelas ruas ao som de um chocalho e os habitantes, fregueses da vila,

vão doando bens que vão sendo pendorados no mastro. Esses bens, enchidos,

comidas e sacos de cereais são depois leiloados no adro da igreja de Santa Maria

Maior de Loriga. Com o resultado da venda, a gente da vila faz a festa a São

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Sebastião no final do mês de Julho de cada ano. Hoje, o mastro já não é de madeira

e o chocalho foi substituído por uma sineta, mas a tradição ainda está bem viva.

Tendo terminado a guerra em 1814, não havia um português que não estranhasse

o porquê da permanência dos ingleses nos mais altos cargos do exército e no

controlo de tudo o que fosse nacional.

Os ingleses controlavam os portos do Brasil e tentavam impor Beresford, que foi

posteriormente corrido pelos portugueses da metrópole. O povo estava farto de ser

mandado por estrangeiros, pois tinha sido o povo e não a nobreza, a correr com o

invasor.

A nobreza vivia bem no Brasil ou servira Napoleão, como o fizera Alorna e Gomes

Freire de Andrade e Castro. O avanço da Revolução Industrial trazia um amargo

de boca a Inglaterra, pois Portugal tinha mão-de-obra de graça, - os escravos.

Assim, em Viena, em 22 de Janeiro de 1815, a Grã-Bretanha conseguiu de Portugal

a abolição do tráfico de escravos na costa de África ao norte do Equador.

Por essa altura, os gémeos e Luís de Mendonça Arrais voltam novamente a

Portugal. É intensão do “Chalaça” que Portugal e o Brasil ganhem autonomia em

relação aos ingleses e com essa intensão é que Luís de Mendonça Arrais se torna

próximo de Gomes Freire, regressado a Portugal, em 25 de Maio.

Luís impressiona com os relatos de combates no Brasil e Gomes Freire conta as

façanhas de Napoleão e de Catarina II da Rússia. É Gomes Freire que inicia Luís

na Maçonaria, pois já em 1801, a loja maçónica do Grande Oriente Lusitano,

havia nascido em sua casa, mesmo que ainda, como tal, não se chamasse. Por outro

lado, “Chalaça” quis um dos gémeos junto a Beresford e à Viscondessa de

Juromenha, enquanto o outro, padrinho de Sebastião, rumou ao Porto. Era

essencial conhecer bem o país.

D. Pedro de Alcântara, segundo filho varão de D. João VI, tornou-se maçon,

adoptando o nome de Guatimozim, sendo depois um dos Grão Mestres da

Maçonaria brasileira, tendo sido instalado a 4 de Outubro de 1822.

O exército português era agora todo controlado pelos oficiais superiores britânicos

e Gomes Freire surgia como uma esperança para todos os militares portugueses.

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Distinguira-se fora do país. Pelo lado materno tinha sangue de uma das potências

mais modernas e evoluídas, a Áustria e era tido por todos como um patriota, pois

correndo todos os riscos de ser visto como um traidor, voltara a Portugal.

Gomes Freire era exaltado e irritava-se facilmente, pelo facto de ser português e

apesar do final da guerra, continuar a receber ordens de estrangeiros. Dizia

publicamente o que muitos pensavam, mas muitos mais calavam.

Foi soando aos poucos, que Gomes Freire preparava uma revolução para correr

com os ingleses e sobretudo com os Bragança. D. Maria da Luz, a Viscondessa de

Juromenha, apoiada pelo marechal Beresford, conseguiu rodear Gomes Freire de

alguns “falsos” conjurados. Do outro lado do Atlântico, D. João VI era rei há

pouco tempo e nunca fora homem seguro de si, em que nada ajudou a testa bem

pesada, graças à princesa de la Plata e agora rainha Carlota Joaquina.

Talvez as ideias de revolução tivessem sido exaltadas, para causar medo a

Beresford, que por sua vez, ao visitar o rei no Brasil, espalhou o pânico no

monarca. Talvez só “Chalaça” soubesse mesmo a verdade, com os seus espiões em

Portugal. Talvez… tanta coisa e coisa nenhuma.

Os franceses tinham partido, mas em 1817, as suas ideias de justiça, de liberdade,

de igualdade e de fraternidade estavam mais vivas do que nunca em Portugal. Se

aquilo que diziam fosse igual ao que faziam, talvez tivessem sido bem recebidos e

de cá nunca sairiam.

Se D. Maria I era recordada como louca, D. João era tido como inseguro e marido

traído, incapaz de governar uma família e muito menos um reino. D. Pedro de

Alcântara era visto como alguém amigo do povo, convivendo com o povo em tascas

e botequins; mas se tal dava confiança no futuro, retirava dos Bragança a auréola

de ‘escolhidos de Deus’, recolocando-os ao nível do mais comum dos mortais.

Quando partiu para o Brasil, o marechal Beresford deixou vários espiões com a

tarefa de recolherem o nome de todos os certos ou putativos traidores.

Caminharam com cautela e tentaram saber tudo ao pormenor, confrontados os

militares portugueses mais antigos e mais poderosos. Certificaram-se de que nada

escapasse. A revolução organizava-se ingenuamente, pois os militares contavam ter

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no povo um igual entusiasmo, mas o povo só queria paz e esquecer a guerra. Para

além disso, começava-se a notar uma ligeira melhoria das condições de vida.

Os ingleses do vinho do Porto trocavam agora vinho por dinheiro e lã, que os

mercadores da Serra da Estrela trabalhavam ou vendiam à Covilhã, a Portalegre e

a Espanha. Assim, qualquer revolução em tal clima, só seria mal sucedida.

A revolução, mal combinada, demasiado romântica ou apaixonada e exposta, fez

com que muitos dos conjurados se tornassem delatores e que todas as denúncias

terminassem num nome, Gomes Freire, tido por um estrangeirado, que já antes

tinha sido Judas e servido Napoleão.

Beresford confrontou figuras tidas como fiéis, seguras, leais ao rei e os

testemunhos dos seus espiões. Homens como o Visconde de Santarém,

personalidade de confiança, pessoa influente e honrada que jamais admitiria uma

conspiração, são ideais para que levem a denúncia e os documentos probatórios à

Junta de Regência composta D. Miguel Pereira Forjaz, Principal Sousa e por

Beresford, que imediatamente se assegurou da posição do exército e do apoio do

general Paula Leite, encarregue do governo das armas da corte e da província da

Estremadura, emitindo ordens de prisão contra Gomes Freire, diversos oficiais e

civis. Entre eles, estavam os nomes dos gémeos e de Luís de Mendonça Arrais. Pelo

lado dos delatores, encontramos nomes como Andrade Corvo e Morais Sarmento.

O general Gomes Freire de Andrade e Castro tinha sessenta anos e vestiu a farda

de militar antes de ser preso. Agarrou um pequeno alfinete com as Quinas de

Portugal, que recebera do pai, antigo embaixador de Portugal em Viena de

Áustria, depois foi levado para o Forte de S. Julião da Barra. Pediu para ser

fuzilado, pois era o que lhe estava destinado como membro da alta nobreza, mas

no entanto e por humilhação, enforcaram-no, como se fazia a qualquer e reles

criminoso do povo. De seguida, o corpo foi queimado e atirado ao mar, que o

devolveu à praia e onde cães famintos devoraram a carne e enterraram os ossos na

areia. Mesmo em pedaços, a sua mão direita continuava fechada a segurar as

Quinas de Portugal.

Onze companheiros de armas não tiveram sorte muito diferente. Arrastaram-nos

para o sítio das touradas, o Campo de Sant’Ana, onde foram supliciados como

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talvez nunca uma vítima do Santo Ofício o fora antes num Auto de Fé. Seriam

esses, a 18 de Outubro de 1817, os Mártires da Pátria em Lisboa.

A lentidão do suplicio, e o ter-se prolongado pela noite, deu origem à frase,

“Felizmente há luar”, de D. Miguel Pereira Forjaz, primo ainda de Gomes Freire.

Mais tarde, também o Porto teria os seus Mártires da Pátria, a 7 de Maio de 1829.

Sobre Gomes Freire, Raúl Brandão escreveu duas obras e Sttau Monteiro uma

peça, “Felizmente há luar”, em 1961 e que proibida pelo regime, pelas

comparações com o Século XX.

Durante a Primeira República, o dia 18 de Outubro era feriado. Fizeram dele

quase um Santo, mas apagaram as suas ideias de Liberdade. Nada como a morte

para sermos bons.

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XIII – Nossos para sempre

O “Requeijão” era de Folgosinho. Casou cedo com a Perpétua, que era de São

Romão. O pai dela era um dos maiores vendedores das duas praças que existiam

em São Romão.

No início, a família dela não queria o casamento. Depois, era a família dele que não

a queria. A moça tinha fama de judia e dizia-se na Serra que aos judeus nem os

cemitérios os queriam. Por isso, um dia fugiram e foram casar a Loriga. O pai dela

soube e eles fugiram para Vila Cova à Coelheira. Andaram assim uns tempos, a

fugir de terra em terra. A história daquele amor animava a Serra e as povoações

foram-lhes ganhando estima. Por fim, todos fizeram as pazes.

O “Requeijão” só no fim da vida voltou a Folgosinho, mas a Perpétua nunca mais

tornou a São Romão, simplesmente, porque não calhou.

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A alcunha de “Requeijão” ganhou-a em Loriga, mas nunca ficou bem explicada.

Uns, diziam que era por causa de ter ficado com os cabelos todos brancos antes dos

trinta anos de idade. Outros, contavam que um dia ele tinha estado para morrer

junto de um Cântaro, debaixo de um valente nevão. Ao certo, nunca se soube e ele

também não explicava.

Não gostava nada da alcunha, mas o povo não fixou bem o nome de Arménio e lá

lhe ia chamando outros nomes. Como as variações do nome eram piores que o

nome próprio, acabou devagar por aceitar ser chamado de “Requeijão”.

Os avós do “Requeijão” foram caseiros dos Marqueses de Gouveia, os Silva,

família dos Távora e que sofreram o mesmo destino destes após o famoso atentado

a D. José I.

Em Abril de 1807, já o “Requeijão” trabalhava para D. Cândida, matriarca dos

Leitões, viúva de mercador e mãe de treze filhos.

O “Requeijão” cuidava de levar para Loriga algumas das rendas de propriedades

vizinhas que pertenciam a D. Cândida e também geria o moinho da Barriosa, bem

da mesma família e que agora é um magnífico restaurante chamado “Guarda-

Rios”.

A vida corria bem e alegre, mas teve o azar de querer ir guardar o filho mais novo

da patroa, o Eugénio, num malfadado dia de Janeiro de 1809, quando o rapaz

começou a acompanhar os homens do “Arranca-Muros”.

O “Requeijão” achava que o Eugénio era muito miúdo para seguir as pisadas do

pai, que morrera de coisa ruim. E, por isso, seguiu o rapaz, às escondidas pelas

serras e vales, com o conhecimento dos restantes da comitiva, para que ninguém

reagisse ou se assustasse.

O miúdo antes de partir, tinha colocado nos alforges, à socapa da mãe, umas

chouriças que pouco tempo tinham de secura no fumeiro. A coisa só se notou com

o tempo quente, quando a comitiva saiu de Coimbra e o cheiro a podre se

intensificou.

O “Hóstia” pegou no alforge do miúdo e aventou com o conteúdo, mas como não

passou o material por ervas e água, o cheiro manteve-se, ainda que menos forte.

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Como antes escrevi, essa comitiva de mercadores de Loriga foi surpreendida por

uma alcateia esfomeada, que foi seguindo o cheiro das chouriças, depois dos

colossais Penedos de Góis.

Os homens e os animais foram violentamente atacados. O sangue foi marcando o

xisto até que conseguiram abrigo na aldeia de Aigra Velha. Lá, com a ajuda dos

habitantes, conseguiram sarar as feridas e enterrar os que não resistiram aos

lobos. Parecia que o Diabo tinha andado à solta, mesmo estando longe o dia de São

Bartolomeu.

Desses homens, sobraram apenas dois, o “Patas-de-Lacrau”, de Casal do Rei e o

“Requeijão”, de Folgosinho.

O grupo de mercadores era ainda constituído por mais dezoito homens, dos quais,

quinze eram de Loriga, dois eram de Alvoco da Serra e um de Sandomil.

O “Patas-de-Lacrau” ficou sem dois dedos da mão esquerda, com uma cicatriz do

canto da boca à orelha direita. O “Requeijão” nunca mais usou o braço direito, de

onde os lobos levaram carne e não voltou a ver do olho direito, que cegou.

Não fosse a boa gente de Aigra Velha, a mesma gente que estima e adora gatos e

lhes constrói canais por dentro das habitações de xisto e nem um homem sobrava.

Depois o “Patas-de-Lacrau” endireitou-se e foi guardar o vinho do Porto. O

mesmo não sucedeu ao “Requeijão”.

Os ingleses do Douro não podiam exportar, por isso, descobriram uma forma

original e sub-reptícia de o fazer.

Mandaram discretamente fazer bandeiras de Kniphausen, numa casinha

escondida do Pinhão, perto da bela e actual estação dos caminhos de ferro, através

de mercadores pagos com lã de Inglaterra, chegava nos mesmos barcos que

levavam o vinho.

kniphausen era um pequeno porto desértico da foz do Elba, que ninguém sabia

onde ficava. Assim saíram trinta mil barris de vinho do Porto disfarçados.

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Por cada barril embarcado, Junot recebia seis mil e quatrocentos réis, por baixo

da mesa, apesar do vinho ter sido desviado de Vila Nova de Gaia, durante a

ocupação do Porto pelo Marechal Soult, em 1809.

A lã vinha e chegava a Vila do Conde e a Póvoa de Varzim, de onde era

despachado o vinho, pela madrugada. Depois faziam caravanas compostas de

trinta homens em grupos de três separados por meia légua, que alcançavam

primeiro Macedo de Cavaleiros, onde eram recebidos pela família Venceslau.

Horas depois, os homens seguiam caminho e a lã era escondida em Lamego pela

família Nogueira ou em Mêda pelos Ranhados.

Apanhavam sempre vias romanas, Longroiva, Marialva, Linhares, Folgosinho e

apenas se desviavam delas para escaparem a algum bandido que as rondasse. E, o

mesmo trajecto seguiam, de Loriga a Alvoco da Serra, de Alvoco da Serra ao

Fundão, do Fundão a Unhais da Serra, de Unhais da Serra à Covilhã, da Covilhã a

Ferro, de Ferro a Tajo Salor Almote, em Cáceres ou das Idanhas a Belver e por aí

a fora.

Por vezes, os mercadores e os seus moços de mulas também encontravam os

rebanhos.

Alguns rebanhos já vinham da Serra de Montemuro com os maiorais, que

recebiam por cabeça de rês que conduziam e que iam para os campos de Idanha-a-

Velha e de Ourique. Protegiam estes nas rotas da transumância, dormindo ao

relento na sua companhia, mas durante as invasões, só mesmo a lã de Inglaterra é

que os safava. Os rebanhos, nesses anos, quando não eram roubados, eram

comidos.

Sebastião serviu a menina Francisca durante cinco anos, como mercador, mas

depois o Zé da Cabeça e o Senhor Manuel Luís levaram o Monteiro ao curandeiro

que salvara a vida a Vaz Patto. O homem chamava-se Henriques e tinha casado

com a caseira da quinta Leão de Oiro, na Carvalha, onde havia o maior pinheiro

manso da região e um dos mais velhos de Portugal. A quinta era de uma família de

Loriga, desde 1640, com uma ligeira interrupção no Século XVIII e que para lá

fugiram quase todos os membros dessa família durante o surto de Tifo que atacou

a vila, na primeira metade do Século XX. O lugar ainda lá está e fica perto da

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estrada para Alvoco das Várzeas, onde dizem que as bruxas muitas vezes se

reúnem.

Dessa ida ao curandeiro, o Monteiro ganhou anos de vida e a saúde por completo,

mas isso fez com que Sebastião fosse criticado pelo que tinha feito ou não feito e

fosse mandado embora, sem grande estima ou agradecimento. Os outros

mercadores passaram-no a gozar e quem o podia ajudar já tinha o grupo feito.

Quando somos importantes, todos nos respeitam e quando caímos em desgraça é

que vemos a qualidade dos amigos.

Em 1816, o dinheiro era pouco e apenas lhe restava o cavalo que devia e três mulas

que eram mesmo suas, mas que velhas já pouco podiam. Loriga, tinha as mulheres

nas lojas a tecer e a cardar quando não iam às fábricas de Alvoco buscar a

mercadoria para dar o acabamento.

Apareciam agora algumas cerzideiras, tendo à cabeça a avó da Senhora Maria

Emília “do Zé do Lopes”, que viria a ser reconhecida por santa pela gente de

Loriga.

Nessa altura, os homens de Loriga que não tinham emigrado para Manaus ou

Belém do Pará, cuidavam dos animais na Serra. Amalhavam uma ou outra

courela. Viviam, outros, o tempo quase sempre fora, como mercadores.

Restavam, os que andavam a tentar arranjar algum dinheiro para conseguirem ir

para o Brasil ou a Argentina.

Foi nesses últimos, que procuravam maneira de sair da terra, que o povo chamava

de “barromões”, por não se verem a trabalhar ou a fazer algo com jeito e paria,

que Sebastião arranjou moços de mulas, ficando o macho para ele.

Assim, passaram a ser moços de mulas, o Quim “da Alfredina”, o Manel “do

Fundo” e o Carlos “do Reboleiro”. Como os mercadores pagavam à semana, nas

primeiras semanas Sebastião esfolou-se e gastou as solas para conseguir ter lã e

peças para vender. Precisava de obter dinheiro para pagar aos moços. Para além

disso, havia que ter dinheiro para pagar parte do cavalo ao Calheiros e lhe dar

comissão nas vendas, que este vigiava e estava sempre a colocar em dúvida.

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Depois da guerra, os ingleses deixaram de receber lã e preferiram dinheiro vivo.

Tirando o perigo ultrapassável do Caixão da Valeira e apesar da demolição das

suas enormes lajes e limpeza do estreito canal entre 1780 e 1791, Os rabelos

sentiram-se mais seguros no Douro, deixando de ser vigiados nas margens pelos

homens da Serra da Estrela.

O vinho do Porto ganhava uma nova vida, com o incremento da fortificação, ou

seja, a prática de adição de aguardente ao vinho antes que este tivesse acabado de

fermentar. Hoje, o processo da fortificação é uma parte inseparável da produção

do vinho do Porto. Raramente era seguido no início do século XVIII, mas tornou

regra depois de 1820, tendo como feroz opositor o Barão de Forrester que

morreria no desfiladeiro do Caixão da Valeira, após ter salvo D. Antónia Adelaide

Ferreira.

A lendária personagem escocesa ficaria como um herói da história do vinho do

Porto, que o Douro levou para sempre juntamente com um cinto de libras de ouro

à cintura, depois de um simpático almoço na Quinta das Vargellas, na companhia

da Ferreirinha, da Baronesa da Roêda e de outros ilustres, em 1862.

O vinho está muito diferente do que era em 1800 ou quando dois mercadores

ingleses do Vinho Verde, pela primeira vez o provaram, em Lamego.

O ano de 1820 foi bom para o Vinho do Porto, assim como foi bom o ano de 1811.

Aliás, corria o ano de 1811, quando, a 25 de Março, o astrónomo francês Honoré

Flaugergues descobriu um cometa brilhante visível a olho nu.

Geralmente os cometas recebem o nome do descobridor. Designado por cometa

Flaugergues, o dito foi visível durante 18 meses, tornando-se num dos cometas de

maior período de visibilidade de sempre. Napoleão considerou o cometa um bom

presságio, aquando da sua campanha na Rússia, vindo posteriormente a mudar de

opinião. Entretanto, em Portugal era produzido um Porto que se revelaria de

excelente qualidade, classificado como um vintage de cinco estrelas, que é a

classificação máxima.

A associação do vintage de vinho do Porto de 1811 ao grande cometa do mesmo

ano, parecia assim perfeita.

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Entre a fraternidade dos apreciadores do vinho do Porto foi-se instalando o

costume de atribuir nomes aos vintage. Ao vinho do Porto de 1815 chamou-se

Waterloo e ao vinho do Porto de 1811, Cometa.

O vinho do cometa permitiu aos produtores capitalizar a sua fama até 1880, muito

embora e ironicamente o ano de 1811 tenha marcado uma viragem nas

exportações de vinho do Porto, no sentido de um decréscimo.

A fama daquela colheita ficaria de tal modo associada ao cometa que Ferdinand

Hoefer lhe faz referência na sua ‘Histoire de l'Astronomie’, publicada em Paris,

em 1873. Leão Tolstoi não quis deixar de assinalar a visão do cometa e escreveu

sobre o mesmo, no seu livro Guerra e Paz.

O vinho do Porto de 1811, foi um dos muitos vinhos do Porto, que deveu a sua

existência à protecção dos mercadores da Serra da Estrela que guardaram as

margens e as quintas do Douro, durante as Invasões Francesas. Mas, voltemos ao

“Requeijão”.

Com o tempo, D. Cândida nunca mais perdoou o “Requeijão”, que não lhe

protegera o filho. Despediu-o e aos caídos também ficou sem a mulher, quando se

meteu na pinga. Arrastava-se pelas ruas e quelhas de Loriga, sendo alvo de

anedotas e de alguma zombaria, por quem valia menos do que ele, pois só fala mal

dos outros quem nada tem que fazer.

Depois a vida compôs-se e mais desafogado, enquanto a Junta que governava

Portugal e se preparava para assassinar de forma vil e canalha Gomes Freire,

Sebastião organizou um regresso a Aigra Velha.

Primeiro, cuidou de tratar do “Requeijão”. De lhe dar respeito, ânimo, estima e

amor-próprio, para além de sopa de feijão com couve migada, café com broa e

comida decente.

O assunto tocava muito os restantes mercadores da praça de Loriga e também as

famílias dos falecidos, mesmo a Júlia “Unheira” que vivia em Vila do Conde.

Júlia “Unheira” que era viúva do António “Raimundo”, de Loriga, queria o

marido enterrado em Loriga.

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Júlia nasceu em Vila do Conde, filha de um mercador de Unhais da Serra, o

Barata. O casamento nunca foi querido, pois diziam as mulheres mais velhas de

Loriga, que de Unhais, de Vila do Conde e da Póvoa de Varzim, vinha o ‘sangue

ruim’. Um sangue que nada tinha a ver com a maleita do sangue de Teresa, da

Maria e do seu neto, o Conde da Covilhã. Aquele sangue seria depois estudo do

Professor Mário Corino da Costa Andrade. Chamar-lhe-ia de “Polineuropatia

Amiloidótica Familiar”, vulgarmente tratada por “paramiloidose”, doença de

“Corino de Andrade” ou doença dos pezinhos, por inicialmente se revelar nos

membros inferiores.

Júlia não sofria da doença e não tinha tido tempo de ter filhos de António

“Raimundo”. A pressão do estigma das velhas foi muito. Por isso, depois de ter

ficado viúva, partiu para Vila do Conde e lá voltou a casar com um pescador,

trinta e tal anos após a viuvez.

O tempo passava, e aquilo roía por dentro quase todos.

Sebastião não gostava de ver os olhos tristes da Lourdes “do Tomé”, na quelha da

Oliveira. Arrependia-se de ter que enfrentar a dor da “tia Taleiga”, no adro ou os

lábios serrados das filhas do “Aleluia”, ‘piacima’ e ‘piabaixo’.

Era tudo gente que tinha maridos, filhos ou pais enterrados em Aigra Velha e que

por muito Pai-Nosso e Avé-Maria rezados, não podia velar nenhum corpo.

Ao contrário da gente que morre no mar, aqueles tinhas campa certa, mas estavam

longe e enterrados em terra que não era sua, na Serra do Açor, que também não

era a sua.

Sebastião organizou um regresso a Aigra Velha, que só integrou homens e de

Loriga, mesmo que outros da vizinhança quisessem ir. Mas, ninguém os quis e

muito menos os deixou. Agradeceram, mas era um assunto da terra e pelos da

terra devia ser tratado.

A coisa tinha sido pensada por altura da Páscoa e alinhavada em dia de Domingo

de Ramos.

O Sebastião falou a dois moços, enquanto o Jaime do “Ai-Jesus” enrolava tabaco,

num balcão da rua. Balcões são degraus da soleira das casas, em Loriga.

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Foi o Jaime do “Ai-Jesus” que espalhou, aqui e acolá, a conversa. Depois, os

homens foram, um a um, falar em segredo com o Sebastião, sobre o assunto.

Em dia certo, vestiram o preto, como ensinara Pina de Aragão e a que se tinham

habituado. Arranjaram sacos da apanha da azeitona, pás, cães com coleiras de

picos, armas e partiram em silêncio em cima de cavalos e mulas, como família.

A conversa já se tinha espalhado pelas terras vizinhas e todos diziam que os

cartagenos iam buscar os seus.

Chegados a Aigra Velha, o “Requeijão” e gente de lá vivia, mostraram onde

estavam enterrados os homens de Loriga, que tinham morrido atacados pelos

lobos.

Eram montes que só cruzes de pau assinalavam, sem nomes nem mais nada.

Depois, cavaram. Colocaram os ossos juntos nos sacos que levavam e voltaram

pelo mesmo caminho, em silêncio, sem conversas, nem risos.

Por fim, no cemitério de Loriga, perto da subida para a eira do Chão do Velho e

não muito longe da fonte e do actual monumento aos soldados do Ultramar,

abriram uma cova funda e larga, onde depositaram os ossos.

Não houve missa. Não houve nada, apenas silêncio.

Como em todas as terras, há gente de todo o tipo em Loriga, mas raros são os que

nascem em Loriga e não queiram voltar para serem enterrados no cemitério. O

cemitério já não é no mesmo sítio e do original não resta nada.

Três dias depois, chegou a Loriga a notícia do que tinha sucedido ao Gomes Freire.

E entre persignarem-se e dizerem uma oração pelo defunto, também se

acrescentava que gente que fizera aquilo haveria de ter mau fim.

Quanto ao “Requeijão”, disseram-me que se cuidou melhor e que acabou por ir

morrer em paz e já velho, à terra dele.