zana muhsen promessa a nadia

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Promessa a Nadia D o c u m E N T o 5 O6ra publicada no ano do cinquentenário 5 O A N O 5 D E 1 1 V R O 5 Q U E A J U D A R A M A T R A N S F O R M A R P  T U G A L 1ZANA MUMEN ANDREW CROFTS  TRADUÇÃO TÂNIA GANHO ASA 1 E R A T U R A  TiTULO ORIGINAL A PROMISE TO NADIA O2OOO, Zana Muhsen l edição: Maio de 2OO1 3 edição: Setembro de 2OO1 1)’pó.itO iegal ’1 168985/O1 ISBN 972-41-2571-8 Reservados todos os direitos ASA Editores 11 S.A. Av. da Boavista, 3265 - Sala 4.1 Telef.: 22 6166O3O - Fax: 22 6155346 Apartado 1O35 / 41O1-OO1 PORTO PORTUGAL E-mail: edicoes6&asa.pt Internet: ww.asa.pt DELEGAÇÃO EM LISBOA Av. Dr. Augusto de Castro, Lote 11O Telef.: 21 8596118 - Fax: 21 8597247 19OO-663 LISBOA - PORTUGAL

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Promessa a NadiaD o c u m E N T o 5

O6ra publicada no ano do cinquentenário

5 O A N O 5 D E 1 1 V R O 5 Q U E A J U D A R A M A T R A N S F O R M A R P  T U G A L

1ZANA MUMEN

ANDREW CROFTS

 TRADUÇÃO TÂNIA GANHO

ASA

1 E R A T U R A

 TiTULO ORIGINAL A PROMISE TO NADIA

O2OOO, Zana Muhsen

l edição: Maio de 2OO1

3 edição: Setembro de 2OO1

1)’pó.itO iegal ’1 168985/O1

ISBN 972-41-2571-8

Reservados todos os direitos

ASA Editores 11 S.A.

Av. da Boavista, 3265 - Sala 4.1 Telef.: 22 6166O3O - Fax: 22 6155346

Apartado 1O35 / 41O1-OO1 PORTO PORTUGAL

E-mail: edicoes6&asa.pt Internet: ww.asa.pt

DELEGAÇÃO EM LISBOA

Av. Dr. Augusto de Castro, Lote 11O Telef.: 21 8596118 - Fax: 21 859724719OO-663 LISBOA - PORTUGAL

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INDICE

Introdução ...................................................................................................................71 Vendid........................................................................................................................ 1O2 «Zana, diga olá à sua irmã ............................................................................................... 22

3 «Por que é que não posso ter uma vida como as minhas irmã.............................................. 4O4 Dois passos a......................................................................................................... 575 O Ministério dos Negócios Estrangeiros ............................................................................. 676 Operação de resga............................................................................................................. 767 O contabilista e o inspector das Finan................................................................................. 968 «Que história dos diabo

..................................................................................................... 1O59

......................................................................................................................................... 11O «Bom, ela disse-o, não disse?» ....................................................................................... 12511 Amigos influen................................................................................................................ 13612 «Não se preocupe, M..................................................................................................... 143Epílogo .............................................................................................................................. 153

INTRODUÇÃO

A meu ver, duas das mais importantes causas da civilização moderna são a luta contrsubjugação das mulheres e a luta contra a exploração das crianças.Nos países ocidentais têm sido dados grandes passos para resolver ambos os problemHoje as mulheres dispõem legalmente do direito à igualdade de oportunidades em qutodas as vertentes da vida. Hoje as crianças encontram-se legalmente protegidasexploração por uma série de leis e organizações voluntárias.Claro que isso nem sempre acontece no seio das suas famílias, à porta fechada. Aiexistem homens dispostos a servirem-se da sua força fisica para dominarem as s

companheiras e maltratarem os filhos.A exploração sexual das crianças e o unico crime que deixa toda a gente moralmehorrorizada. Continuam a vir à tona histórias que mostram a que ponto essa exploraçãencontra disseminada pelos quatro cantos do globo.Enquanto os países do Primeiro Mundo se empenham na luta por estas causas, munações do Terceiro Mundo praticam abertamente costumes que impoem a escravatumilhões de mulheres e crianças. As pessoas mais pobres à face da terra são facilmesubornadas, com quantias assustadoramente irrisórias, para venderem os seus filhosmercado da prostituição ou do casamento, em especial se forem raparigas.Continua a ser comum, em alguns países, casar crianças de onze ou doze anos, e entrelas aos seus maridos de direito aos olhos da sociedade. Estas crianças não têm o pode

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escolha ou de decisão. Passam simplesmente das mãos dos seus pais para as mãos pais dos seus futuros maridos.A maior parte dessas meninas-crianças iniciam, então, uma vida de escravatura. Fornecserviços sexuais que põem em risco a sua saúde, e dão à luz filhos muito antes de os scorpos estarem preparados para a gravidez e para o parto. Trabalham de sol a sol, servios seus maridos e os anciãos da comunidade em que vivem, e envelhecem antes da hora.Não têm qualquer poder económico, nem meio de fugirem ao seu destino. Claro

legalmente podem ser livres de abandonar o lar quando desejarem. Mas para onde iriaComo comeriam? O que seria feito dos seus filhos?A maior parte dessas mulheres opta por ficar com os filhos até que, por sua vez, estes vendidos para casarem. Por essa altura elas próprias estão demasiado velhas,demasiado cansadas para lutar contra a exploração de mais uma geração de jove(Quando se trabalha como escrava durante vinte ou trinta anos e, consequentementecarece de saúde e de forças, o mais natural é sentir alívio por um filho ir casar com urapariga forte e robusta, que poderá encarregar-se de grande parte das tarefas e penalgum descanso na velhice.)As verdadeiras dimensões do pesadelo que são as vidas destas pessoas vêm a públicoOcidente, apenas quando uma rapariga de um país do Primeiro Mundo é escravizada nu

nação do Terceiro Mundo e consegue fugir para contar a sua história.Em 198O, Zana e Nadia Mulisen, duas adolescentes de Birmingliam, em Inglaterra, foludibriadas pelo próprio pai e instigadas a viajar até ao lémen, onde foram vendidas a damigos da família patema.Zana conseguiu regressar a Inglaterra oito anos depois, deixando para trás o seu fiainda bebé. Antes de partir fez uma promessa à sua irmã Nadia, em como, assim chegasse a Inglaterra, faria tudo para tirar Nadia e os filhos do lémen.Zana pediu-me para ajudá-la a escrever um livro chamado Vendidas!, no qual narravque sofrera durante esses oito anos. O livro tomou-se um best-seller internacional evendas ultrapassaram os dois milhões de exemplares. Dezenas de milhões de pessoasEuropa viram programas na televisão e leram artigos nos jornais sobre as duas innã

indignação pública foi enorme. Zana tinha esperança que a publicidade obtida pelo livrtraduzisse no regresso imediato de Nadia e das crianças a Inglaterra. Mas Nadia regressou a casa.Nadia encontrava-se tão desesperadamente encurralada como qualquer outra rapariga Terceiro Mundo, vendida em criança a um marido que não escolhera.Neste livro, , Zana descreve todos os esforços que ela e a sua mãe, Miriam, continuarafazer nos últimos dez anos para libertarem Nadia. Trata-se de uma história que põe a nverdade sobre as vidas de uma grande percentagem das mulheres e crianças mais pobdo mundo.Zana conta a história da sua luta com os govemos iemenita e britânico. Descreve usucessão de pessoas que a atraiçoaram, para deitarem as mãos à fortuna que o seu l

lhe trouxe, cobrindo-a de falsas promessas de ajuda.Enquanto os políticos, ao nível das mais altas instâncias, continuam a descartar-seresponsabilidade que lhes compete e a comunidade internacional discute quem devocupar-se do caso de Nadia, a sua vida esvai-se. Zana e Miriam continuam a procurar umaneira de resgatarem Nadia antes que a saúde lhe falte. As duas mulheres espertambém, cumprir o desejo de Zana de ver o seu filho antes que este se tome um homemPromessa a Nadia é um relato dilacerante de inépcia e corrupção, investigações logradtraições e roubos, tão sórdido que custa a crer. É uma história de enorme coragetenacidade da parte de Zana, da sua mãe e família, que lutam para cumprir a promeque Zana fez a Nadia. Por fim, é um texto que revela a maneira como mulheres e criancontinuam, ainda hoje, a ser escravizadas a cada dia que passa.

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É uma história de esperança e desespero. Esperança num mundo melhor, se houver mpessoas como Zana Muhsen, que pugnam pela justiça; desespero por Nadia, que se nãoresgatada em breve, jamais sairá do ciclo infernal que é a sua vida.Ao longo desta narrativa, Zana tenta ainda responder às perguntas levantadas pmuitos milhares de pessoas que lhe escreveram após a publicação de Vendidas!, pessque querem saber como Zana Muhsen conseguiu reconstruir a sua vida em Inglaterra.ANDREW CROFTS - Janeiro, 2OOO

1 VENDIDAS!Ainda acordo a meio da noite, banhada em suor, a tremer de medo por ter sonhado regressei ao lémen para ver a Nadia, dez anos passados, e que uma vez mais encarcerada.É tudo tão vívido que parece real. Sinto a pequenez do quarto onde estamos sentadas eolhos acutilantes dos aldeões que nos vigiam. Alguns guardam um silêncio desconfiadhostil. Outros gritam-me impropérios por todos os incómodos que lhes causei, por todvergonha que fiz recair sobre eles perante o mundo.Nos meus sonhos, eles sabem o quanto os odiamos e que faremos tudo para fugir. Sabque os vemos como inimigos e receiam-nos, ainda que o poder esteja nas suas mãos e

nas nossas; o poder de decidir o que será feito das nossas vidas, enquanto nós parecemtrazer-lhes apenas aborrecimentos e incómodos.Mas já não me sinto tão impotente como nos oito anos em que lá vivi, quer nos mpesadelos, quer na minha vida actual. Agora sei que posso lutar e vencer algubatalhas. No entanto, por mais que faça, os homens iemenitas continuam a ter o contda situação. Continuam a ter a capacidade de nos ameaçar, de nos maltratar e de fazer temer pelas nossas vidas e pelas dos nossos filhos. Continuam a poder fazer o quiserem à Nadia e não há nada que os impeça. Podem vender os nossos filhos, obrigáa trabalhar ou mandá-los para longe.Por vezes, nos meus sonhos, entro no lémen de carro - esse precioso símbolo da liberdque tanto acarinho - e consigo trazer a Nadia e as crianças comigo, juntamente com alg

dos meus amigos e parentes de Inglaterra. O automóvel é pequeno e sentimoapertados como sardinhas enlatadas. Estamos tão próximo uns dos outros que os noscorações tumultuados batem em uníssono, enquanto tentamos ligar o motor e pôveículo em andamento. Os homens estão cada vez mais perto e sei que o carro não podproteger-nos, a menos que eu consiga arrancar rapidamente. Vão tomar-nos de assavirar o carro e puxar-nos aos safanões, como quem abana um mealheiro para fazer saimoedas. Temos de fugir, mas somos muitos e o pequeno automóvel cede sob o nosso peA verdade é que a suspensão do meu pobre Renault Clio jamais sobreviveria aos trilhosmontanha que conduzem às aldeias de Maqbana. Uma só rocha afiada a rolar contrapneus teria sido suficiente para nos pôr fora de combate. Ficaríamos, então, presosdeserto, uma vez mais à mercê dos homens iemenitas. Mas não passam de sonhos e, co

tal, posso dar-me ao luxo de me agarrar a um fiapo de esperança em como serei capazresgatar a minha irmã.Falamos todos em árabe, pois sabemos que os filhos da Nadia pouco entendem de ingAs nossas vozes erguem-se, estridentes de pânico, enquanto cada um tenta fazer-se opor cima dos gritos irados dos homens. Na realidade, o inglês dos miúdos não é assimmau, se pensarmos que nunca saíram da aldeia, para lá de uma ou outra visita esporáda Taez, mas de qualquer forma falamos em árabe. Todos os homens andam armados, tal e qual como os recordo quandos dois jornalistas  jornal britânico Observer vieram tentar salvar-nos, em 1987. Mantêm o dedo no gatbrandindo as armas ameaçadoramente. Sei que não hesitarão em disparar. Jamais serlevados à justiça por isso. Quem tomaria conhecimento da morte de um punhado

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mulheres e crianças nas montanhas de Maqbana? Desde o início dos tempos desaparecem pessoas no lémen e nunca ninguém, no exterior, chega a saber o que aconteceu. Só não nos liquidam porque depois ficariam sem quem lhes tomasse conta filhos e da casa, transportasse os bidões de água para a cisterna, pusesse as mãos no foquente para fazer os chapatis, carregasse lenha e tratasse das colheitas.Avistamos o aeroporto - como se algum dia pudéssemos chegar assim tão perto! mparece que nunca conseguiremos alcançá-lo. Ergue-se sobranceiro a nós, corno uma popara o mundo exterior e para pessoas amáveis e compreensivas que nos ajudarã

permanece terrivelmente fora do nosso alcance. Sabemos que, se puséssemos péaeroporto e subíssemos para um avião, o nosso tormento acabaria.Mas nunca lá chegamos. Acordo sobressaltada, com a respiração ofegante. De oabertos, analisando racionalmente a situação, sei que é apenas um sonho impossívcobre-me um suor frio e pegajoso, sinto um desespero atroz.No pesadelo real que é o nosso dia-a-dia, a Nadia desaparece durante anos a fio. Nesespaços de tempo, não temos meio de saber se está viva ou morta. Se nos disserem morreu de parto ou de malária, jamais poderemos provar o contrário. Mas nos meus sonestamos dispostas a correr o risco de enfrentar os homens iemenitas, porque se o fizermos nada mais nos resta. A morte seria preferível a passar o resto dos nossos dcomo suas escravas.

Por vezes sonho que estou em casa da Nadia, na aldeia, e que andamos a tratar do regresso a Inglaterra. Consigo sentir todos os cheiros do lémen, as moscas a zumbir à vdos nossos olhos, como se quisessem enlouquecer-nos. A Nadia não possui nada queira levar na bagagem, mas os miúdos precisam de umas quantas coisas. O processorecolher tudo o que é necessário para a viagem parece nunca mais acabar. Sou assolpor uma onda de pânico, porque podemos perder esta oportunidade preciosa e vir algudizer-nos que não nos deixam partir. Digo-lhe para se apressar, mas é como se nãoouvisse, continua a arrumar a mala no seu passo lento e vagaroso.Por vezes, o marido da Nadia, o Mohammed, entra no quarto para pedir desculpa por to que lhe fez. Ignoramo-lo, com medo de não sermos capazes de controlar as palavra

acabarmos por dizer algo que possa aborrecê-lo e fazê-lo começar a gritar ordens para não nos deixem partir. Seja como for, não conseguimos responder-lhe que o perdoamseria um esforço demasiado grande. O momento de pedir perdão passou há muito. A prolongou-se por tantos e tantos anos que e impossivel perdoar. Tudo o que desejamoque nos permitam esquecer pelo menos uma parte do pesadelo a que fomos submetidaAo despertar destas viagens nocturnas, sinto um sopro de alívio por me encontrar a saem Inglaterra, livre e junto da minha família. De repente lembro-me que um pedaçopesadelo ainda é real. A minha irmã continua lá, a envelhecer, e a sua saúde a deteriorse a um ritmo inimaginável para quem não o tenha testemunhado. A dor reapodera-semim. Inunda-me o peito e dá um nó no meu estômago, enche-me os olhos de lágrimasque, ao mesmo tempo que estou deitada na minha cama em Birmingliam com o Pau

meu companheiro, a dormir tranquilamente ao meu lado, uma das pessoas que mais ano mundo está a ser lentamente torturada até à morte. Contra isso nada posso fazer. Sime impotente e desesperadamente triste, mas a minha vida não pode parar. Tenho de acordar pelos meus filhos e a rotina das nossas vidas para me distrair. Vivo npaís livre. Posso fazer o que bem me apetecer, excepto uma coisa: não posso ver a miirmã, nem falar com ela, nem sequer saber o que se passa na sua vida, além dos horroque assombram as minhas lembranças e me atormentam a imaginação. Apesar de tudque tentei fazer, continuo a sentir que falhei, porque prometi tirá-la de lá e ela aindestá.A minha imaginação tem bases suficientes para tanto tormento porque um dia eu próvivi essa vida. Sofri as mesmas provações, os mesmos maus tratos, a mesma monotoni

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mesmo trabalho esgotante, os mesmos problemas de saúde, a mesma falta de cuidadas mesmas violações, espancamentos e humilhações. Sempre que acordo de manhã,que passou mais um dia na vida da Nadia, mais um dia desperdiçado em que ela devter sido livre e feliz, e não foi..Sei que, por mais um dia, me privaram do meu filho Marcus e que nunca poderemrecuperar o que perdemos ambos, à conta dessa separação. Passou mais um dia da vida sem que eu saiba o que quer que seja. Não sei o que fez ou o que conquistou. Nassisti às mudanças que sofreu, não pude abraçá-lo quando esteve doente ou se mago

Não faço a menor ideia se alguém ocupou o meu lugar na sua vida, desde o dia em que disseram que eu podia sair do país mas que ele teria obrigatoriamente de ficar. Ningume contou como é que ele encarou o choque de perder a mãe, a mulher a quemagarrava com tanta força durante os seus primeiros dois enfermiços meses de vida. Nãocomo é, hoje, a sua personalidade ou o seu estado de saúde. Não sei como soa a sua vnem se é um rapazinho alegre ou tristonho.Quem o acorda todas as manhãs? Quem garante que ele se alimenta devidamente e vai para a escola com roupas limpas? Quem se assegura de que ele estuda com afinco ppoder obter um emprego decente e fugir à vida mesquinha da aldeia? Não tenho meiosaber a verdade, tenho o coração destroçado. Se o seu avô ou o seu pai quiserem obriga trabalhar como um escravo, ou a alistar-se no Exército, ou a casar com uma rapa

qualquer em troca de dinheiro, não há ninguém junto dele para lhe dizer que não temobedecer, para lhe explicar que existe um mundo livre para lá da aldeia e que só tem encontrar uma maneira de o alcançar. É uma criança do sexo masculino e portanto podconseguir escapar, um dia. Mas quanto sofrimento mais terá ele de suportar antes esse dia chegue? Tornar-se-á um deles? Será cruel e egoísta como o seu pai e o seu avtodos os outros homens que encontra em Maqbana?Nos últimos dez anos não há dia que passe sem que eu chore. Penso no Marcus e na Nae tenho necessidade de me isolar a um canto que seja só meu, para que os meus filhos me vejam perturbada. Por eles, quero levar a minha vida para a frente. Não há motivo pque alguma vez tenham de saber tudo aquilo que sei. Não quero que olhem para trás, pa sua infância, e se lembrem que a mãe andava sempre a chorar. Por vezes, no enta

apanham--me desprevenida e vêem-me lavada em lágrimas.A Cyan tem apenas quatro anos. Viu-me uma ou outra vez a chorar. Ouviu conversuficientes, compreendeu suficientes trechos de programas televisivos para perceber se passa algo profundamente errado.- Sei por que estás a chorar, mamã - diz ela. - É por causa do Avô, não é? Porque ele deixa a Tia Nadia voltar para casa.Nunca conheceu o meu pai, mas viu-o na televisão e tem pavor dele. Foge e escondeassim que o seu rosto surge no ecrã. Na sua mente, ele assumiu a forma de um míbicho-papão que arranca meninas pequenas às suas mães, como o ogre de um qualqconto de fadas. Não posso dizer nada para alterar a maneira como ela o vê. Jamais podpermitir que ele chegasse perto dela, com medo que lhe fizesse o mesmo que fez aos s

próprios filhos. Assim nunca terá oportunidade de a conquistar e de apaziguar os sreceios. Na verdade, ele é tão perigoso e pérfido como ela o imagina na sua mente infanA única coisa que contei aos meus filhos é que têm uma tia chamada Nadia e vários prino lémen. Expliquei resumidamente o que me aconteceu ao Liam, o primeiro filho que quando regressei a Inglaterra, e que tem um irmão mais velho no lémen, mas ele não qsaber mais pormenores.Expliquei ao Liam que o meu pai me vendeu como escrava, pois quero que compreendconceito de escravatura. Quero que todos eles compreendam o fulcro da história assim tiverem capacidade de entender, mas tenho a preocupação de não os assustar. Umsaberão que têm um avô que diz coisas horríveis sobre os negros como o Paul e o Jimin

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pai do Liam), e que uma vez foi chamado a depor perante a Comissão de Relações Racmas ainda não chegou a hora de lhes contar.Para os leitores que estão a tomar conhecimento da minha história pela primeira vdeixem-me explicar como tudo começou. Eu tinha quinze anos e a Nadia, a minha ircatorze. Éramos como unha e carne. Eu amava-a mais que tudo. Entendíamo-nosperfeição e sempre me senti responsável por ela. Vivíamos em Birmingliam com os nospais, as nossas duas irmãs, a Tina e a Ashia, e o nosso irmãozinho mais pequeno, o Mo.O Pai era iemenita e, quando entrámos na adolescência, ele começou a educar-nos

estilo rígido dos Muçulmanos. Achava, por exemplo, que não devíamos sair com rapazeslevar o mesmo tipo de vida de todas as nossas amigas. Eu estava prestes a deixar o licea iniciar os estudos para ser educadora de infância, e o seu comportamento sevincomodava-me. Mas a verdade é que nessa idade a maior parte das adolescentes senmesmo em relação aos pais. Não me parecia algo fora do vulgar.Quando a Nadia foi injustamente acusada de roubar um anel numa das tendas do mercda zona, o Pai viu nisso a confinnação das suas previsões de que acabaríamos descarrilar. Começou então a engendrar um plano para nos «salvar» da influência malédo Ocidente. Perguntou-nos se gostaríamos de ir passar umas férias ao lémen e pintou-o quadro de tal modo que nos pareceu uma proposta maravilhosa. No lémen poderíamcavalgar sem sela pelo deserto e andar de camelo, construir castelos na areia e tud

mais. Ficámos ambas entusiasmadas com a ideia.Eu parti primeiro, com Abdul Khada, um amigo do meu pai. A Nadia iria passado umsemanas, na companhia de Gowad, outro amigo. Conhecíamos esses dois indivíduosmuitos anos, e a Mãe confiava neles para tomarem conta de nós.Começou como uma grandiosa aventura, ainda que um pouco assustadora. Era a primvez que eu andava de avião e que ia visitar um país estrangeiro. A estranheza da cultuestilo de vida árabes foram um choque para mim: desde as casas de banho à comidacalor aos insectos. Tudo era novo para mim e eu tencionava aproveitar a experiênciamáximo. Só depois de já lá estar há uns dias é que descobri o que realmente acontecermeu pai vendera-me a Abdul Khada como noiva para o seu filho Abdullah, um rapazúeze anos tão enfermiço que jamais poderia ter arranjado mulher de outra maneira.

 Tendo passado toda a minha vida em Birmingliam como uma adolescente inglesa,comigo, de repente, transformada em camponesa iemenita. Os meus deveres eram seos homens da família com total e absoluta obediência; carregar água à cabeça, todosdias, ao longo de vários quilómetros; cozinhar, limpar e satisfazer sexualmente o m«marido».Levaram-me para a aldeia da minha nova família, Hockail, um lugarejo remoto no meio montanhas da região de Maqbana, território de bandidos, onde eu não tinha qualqpossibilidade de comunicar com o mundo exterior, onde todos os homens andavarmados e a vida das mulheres não evoluía há séculos.No início, o mais dificil para mim era saber que o mesmo destino esperava a minha queirmã Nadia, que ainda nem fizera quinze anos. A família do «marido» dela vivia em Ashu

uma aldeia vizinha a cerca de meia hora de distância a pé. O nome do rapaz Mohammed e tinha apenas treze anos.Para começar, eu tivera a certeza de que a Mãe, assim que percebesse que nós não íamvoltar das nossas férias de duas semanas, alertaria as autoridades e viria buscar-nos, não havia maneira de sabermos o que se passava no mundo exterior. O que realmeestava a acontecer é que a Mãe não conseguia descobrir onde nos encontrávamos e orecusava-se a dizer-lhe. As autoridades informaram-na de que nada podiam fazer, poNadia e eu tinhamos dupla nacionalidade e, de qualquer forma, estávamos casadas.A minha mãe não é propriamente uma pessoa forte, quer fisica, quer emocionalmente, tem uma força de vontade extraordinária. Apesar de ter sofrido duas depressões à contamodo como o meu pai a tratara no passado, negou-se terminantemente a fazer o que

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queria. Ele queria que ela se calasse e aceitasse o inevitável, mas a Mãe continuou a bde porta em porta para saber o que fora feito das suas filhas. Escreveu cartas,telefonemas, falou com toda a gente possível e imaginária, mas ninguém podia ajudá-laPassados seis anos, consegui enviar-lhe uma carta à socapa e, finalmente, ela ficou a saonde procurar-nos. Uns tempos antes fora atropelada por um condutor que se puserafuga e recebera uma indemnização, que utilizou para pagar os custos da viagem ao lémFoi necessária uma enorme coragem para partir rumo a um território tão hostil, no qpoderia facilmente ter desaparecido sem deixar rasto e sem que ninguém em Inglat

soubesse.A Nadia e eu pensávamos que quando ela chegasse ao lémen poderia levar-nos de vconsigo, mas não foi assim tão simples. Primeiro teve de avisar os orgãos de comunicasocial britânicos do que se estava a passar e o Observer enviou uma jornalista e fotógrafo para confirmarem a história. Julgámos que íamos partir com eles, contudocomo a Mãe, também eles tiveram de nos deixar para trás. Prometeram resgatar-nomais depressa possível. Sabíamos que tinham corrido um grande risco para encontrarem, não obstante, sentimo-nos frustradas por os ver ir embora.Foram precisos dois anos de luta com o governo iemenita até que me dessem autorizapara sair do país. Por fim, disseram-me que só poderia partir se estivesse dispostabandonar o meu filho, o Marcus, ainda bebé.

Hoje o Marcus já é um adolescente, mas nunca mais o vi desde o dia em que saí da vida, prometendo à Nadia que tudo faria para a libertar, juntamente com as criançasépoca ela tinha dois filhos, um deles uma menina chamada Tina, e era incapaz de supoa ideia de se separar dela. Ambas sabíamos o fim que, naquela sociedade, está reservpara todas as garotas. A Nadia não conseguia abandonar a Tina e deixá-la enfrensozinha o seu terrível destino.Devo ter herdado grande parte da determinação da Mãe. Sempre me senti directameresponsável pela Nadia e por tudo o que lhe acontece. Estava profundamente decididtirá-Ia do lémen, nem que passassem anos. Não fazia ideia de que iria ser tão dificil. Nfazia ideia de quantas pessoas se atravessariam no nosso caminho, nem dos estratageque estariam dispostas a utilizar para nos enganar e roubar. Pensava que, assim

chegasse ao Ocidente e explicasse o que nos acontecera, o governo britânico insistiria pque a Nadia e os miúdos viessem em seguida. Talvez demorasse umas semanaorganizar a viagem, ou inclusive meses, dada a lentidão com que tudo se processalémen, mas por fim aconteceria.No início conseguimos manter-nos em contacto com a Nadia porque ela ainda estavacidade de Taez, mas depois foi levada para as montanhas e tomou-se impossível comuncom ela. Era como se tivesse desaparecido da face da terra. A minha irma escapara-seentre os nossos dedos como um grão de areia. Senti-me esmagada pela culpa de encontrar em liberdade, enquanto ela permanecia em cativeiro, e comecei a perdeesperanças de algum dia conseguir localizá-la.Passei um ano a readaptar-me à vida no Ocidente e a tentar todas as vias oficiais possí

para tentar resgatar a Nadia e os miúdos, e foi então que decidi escrever um livro. Enem contacto com Andrew Crofts e, juntos, redigimos Vendidas!. Reviver os horrodaqueles tempos foi uma experiência quase insuportável, à qual me submrepetidamente nos anos que se seguiram. Estava disposta a contar a minha históriavezes que fossem necessárias, na esperança de que um dia alguém que a ouvisse pudefinalmente ajudar-me.O agente literário incumbido de vender os direitos do livro teve dificuldade em enconum editor britânico disposto a publicar a história. Toda a gente se lembrava do artigo sonós que saíra no Observer, mas ninguem parecia pensar que o caso em si justificasspublicação de um livro de duzentas e tal páginas. A jornalista do Observer que nos ajud

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também escreveu um relato acerca de mim e da Nadia, e os editores eram da opiniãoque o público já não queria ouvir falar mais no assunto.Finalmente, o nosso agente conseguiu vender a obra por uma quantia razoável de dinhemas tudo indicava que o editor não iria poder fazer grande coisa em termos da promodo livro. Eu e a Mãe vimo-nos obrigadas a limitar o número de entrevistas que dávampor termos posto em marcha um processo judicial contra o Pai, Gowad e Abdul Kha Temíamos prejudicar o caso e o projecto esteve à beira de se tomar um fiasco. Comoisso não bastasse, a editora era propriedade de Robert Maxwell e, aquando da sua mort

empresa foi posta à venda. Ninguém tinha tempo para pensar num livrinho intitulVendidas!.Então o agente literário passou o manuscrito a editoras de outros países e tudo começomudar. Primeiro, um editor alemão deslocou-se a Londres de propósito para nos conhecfez-nos uma proposta generosa. Em seguida vieram os franceses com uma ofsemelhante. Assim que a máquina entrou em movimento, não pararam de chopropostas. No espaço de poucos meses assinámos acordo com editores de países distantes como a Suécia, a Dinamarca, Israel e a Turquia. Produtores de cinema compraos direitos para fazer um filme a partir de Vendidas! e, uns anos depois, a BBC adaptolivro para a rádio e emitiu-o na Radio Four. Todos os editores estrangeiros queriam que eu visitasse os seus países para promov

livro, dar entrevistas e aparecer na televisão. Fizeram, todos eles, um trabalho excepcioNa verdade, saíram-se tão bem que os novos proprietários da editora britânica - que agestavam libertos de restrições legais, pois tínhamos desistido do caso contra o Pai eoutros dois indivíduos - decidiram tomar a publicar o livro, desta vez em edição de luxcom uma nova capa, mostrando uma fotografia pungente dos olhos da Nadia espreitapor entre o véu.Os Franceses, porém, foram quem realmente levou a história a peito, fazendo do nolivro o mais vendido do ano em França, em 1992. A opinião pública estava indignada coque nos acontecera. Ninguém queria acreditar que uma história tão aterradora pudeexistir no mundo moderno.Desde então temos passado muitos anos sentadas ao lado de telefones mudos, à esp

de chamadas que nunca chegam. Não queremos pressionar quem cremos estar a fazseu melhor para nos ajudar.Não é que as pessoas não se interessem ou não se comovam com a nossa causa. homem chamado Pierre, que vive no Canadá, criou uma página na Internet em proNadia. Pediu para que toda a gente que visse o site deixasse o seu nome e morada. cada um, colocou uma vela no ecrã. Responderam milhares de pessoas. Agora Pierre esservir-se dessa longa lista para exercer pressão sobre os governos britânico e iemenita. Todas as pessoas com que nos cruzamos mostram-se sempre, à partida, desejosas de ajudar - ou pelo menos, assim o dizem -, mas depois algo corre mal. Os departamengovernamentais, os jornalistas, os voluntários de instituições de caridade, os editoresprodutores de cinema e as equipas especializadas em resgates, todos sem excep

acham a nossa história incrível, quando a ouvem pela primeira vez. Frequentemechoram. Conseguem com certeza imaginar uma tamanha tragédia a recair sobre elessobre os seus filhos, e podem ter uma ideia do sofrimento por que nós passámos.Ficam chocados com o facto de coisas destas ainda acontecerem nos dias que corregarantem-nos que arranjarão maneira de nos ajudar. Expressam a sua indignação e raPor vezes, dizem-nos que têm vontade de ir ao lémen buscar Nadia e os miúdos, matacom as próprias mãos todo aquele que se atravessar no seu caminho.Saímos desses primeiros encontros com a esperança ao rubro. Acreditamos que desta encontrámos realmente alguém que conseguirá fazer algo por nós. Voltamos para casficamos à espera que nos contactem.

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Por fim, não suportamos a tensão por mais tempo e telefonamos para saber o que estacontecer. Lentamente, apercebemo-nos de que todas as suas boas intenções foderrubadas por forças superiores. A maior parte das pessoas desiste perante tamentiras e burocracia. Algumas fizeram-nos falsas promessas e depois ficaram conosso dinheiro. Outras parecem deixar-se convencer de que somos um caso perdido, estamos obcecadas com a libertação da Nadia quando na verdade devíamos desistilutar e deixá-la em paz.É-nos impossível compreender como é que o caso pôde chegar a este impasse. Som

cidadãs cumpridoras dos nossos deveres, mas não conseguimos encontrar urna só pesque nos ajude a corrigir uma situação que está errada e que, além do mais, nos paróbvia, a nós e aos olhos da opinião pública que lê a nossa história nos livros e nos j ornaOutras pessoas, que inicialmente ficaram chocadas quando ouviram o caso, aceigradualmente a situação da Nadia e por fim esquecem-na, quando percebemdificuldades que terão de superar para nos ajudarem. Têm as suas proprias vidas com se preocupar, os seus próprios problemas para resolver. Têm em mãos outros caimportantes e que se lhes afiguram mais fáceis de solucionar. Mas por muito que eu teesquecer o assunto, não consigo deixar de pensar na vida da Nadia em Maqbana.Ouvimos dizer que ela já vai no sexto filho. Poderá ter tido outros, quando lerem espáginas. Sabemos que coxeia, porque o constatámos nos breves encontros que tivemo

nos bocadinhos de filme que puderam chegar até nós. Não sabemos é porquê. sabemos o que lhe fizeram. Imaginamos o pior.Reparei pela primeira vez que ela coxeava quando fomos ao lémen com uma equipatelevisão francesa, mas tentei tirar essa imagem da cabeça. Mais tarde a Mãe mencioisso em conversa. Quem me dera que ela nunca se tivesse apercebido, porque é incade o esquecer, por mais que os anos passem.A Nadia tem manchas de despigmentação na pele, que está seca e flácida nos seus brae mãos esqueléticos, no seu rosto encovado. Tem um ar cansado e fraco, tão diferentebonita adolescente de olhos vivos que partiu para o lémen em 198O, diferente, inclusda jovem mulher de olhos tristes cujas fotografias comoveram milhões de pessoas quaa nossa história foi publicada no Observer, em 1987. Mas sei que, por muitas alteraç

que a Nadia tenha sofrido por fora, continua a ser a minha irmãzinha por dentro, a marapaz cheia de entusiasmo que estava sempre disposta a tudo e que não parava de rir. detrás do olhar vazio encontram-se os pedacinhos da sua alma, que enterrou sodesespero e que esqueceu ao longo de anos e anos de sofrimento, maus tratoinfelicidade.Olhando simplesmente para as fotografias do seu corpo frágil e rosto sombrio, consadivinhar o que ela estará a pensar. Lembro-me de o pensar eu própria: que morrerialémen, envolta num lençol branco e enterrada na terra suja, sem que nenhum dos mentes queridos soubesse o que me acontecera. Os homens da aldeia reunir-se-iam redor da cova, enquanto as mulheres observariam o ritual à distância, abanando a cabcom resignada tristeza. Os homens distribuiriam as crianças pelas outras mulheres

família e voltariam para os seus afazeres. A Mãe poderia nunca vir a saber, embora o mprovável fosse que o meu pai ou algum dos seus amigos não conseguisse resisttentação de a atormentar com a notícia de que uma das suas filhas morrera. A Nadia dter o mesmo terror de que tal aconteça. Se bem que, possivelmente, a ideia da mortelhe afigure como uma libertaçâo dos horrores da sua vida diária. Todas as conversas que tenho com a Mãe sobre a Nadia desembocam sempre nas spreocupações com a saúde da minha irmã. Qualquer pessoa que tenha tido filhos sabe qpor mais que cresçam, é impossível para um pai deixar de se inquietar. Se estiverem jude nós, podemos sempre dizer-lhes para irem ao médico, podemos insistir até finalmente o façam e nos deixem mais sossegados. Se o seu casamento não corre bpodemos pelo menos aconselhá-los e dar-lhes apoio, mostrar-lhes que ficaremos do

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lado, mesmo que decidam divorciar-se. Se sabemos que a nossa filha é espancada pcompanheiro, podemos abrir-lhe as portas de nossa casa para que ela tenha um portoabrigo, mas a minha mãe não tem essa opção. É obrigada a passar anos sem falar coNadia. A sua imaginação põe-se a funcionar e vêm-lhe à mente as piores imagpossíveis.Sabemos que a Nadia não tem qualquer tipo de acesso a cuidados médicos. Não fazemideia se padece de algum mal fisico. Suponho que terá ficado imune à dor, pois é isso acontece quando se tem de viver com a dor a tempo inteiro, sem esperança de que aca

A mente bloqueia-a, para que a vida possa continuar.Lembro-me da dor que sofri enquanto estive no lémen, e da maneira como a afastemente para não morrer. Estava decidida a não permitir que a dor me derrotasse. Comecsentir que fazia parte da vida normal do dia-a-dia - e assim é, de facto, para as mulhedaquelas aldeias remotas -, o que me parece uma espécie de lavagem cerebral. Enquaa Nadía permanecer muda e nada disser sobre os seus problemas, enquanto continuservir em silêncio os restantes membros da família, ninguém se lembrará de levá-la amédico e pedir ajuda.Lembro-me de como fiquei chocada com o estilo de vida primitivo das mulheres nas aldedo lémen. Sei que os milhões de pessoas que leram o meu livro, Vendidas!, se sentiigualmente perturbadas. Sei-o porque me escrevem. As cartas chegam-me em todas

línguas possíveis e imaginárias, de pessoas que querem saber o que me aconteceu a me à Nadia depois do final do livro. Algumas das cartas são longas, perpassadas de raivindignação. Cada uma delas faz-me chorar.Uma das primeiras que recebi vinha da Sicília, de um homem que dizia fazer parteMafia. Contava-me que ficara chocado com a história e que tencionava arranjar helicóptero para ir ao lémen resgatar a Nadia e os miúdos. A maior parte das cartas mais realistas, pessoas comuns que exprimem a sua compaixão, perguntando o quefeito de nós, oferecendo a sua ajuda, narrando-me as suas próprias vidas.Um senhor de idade escreveu-me da África do Sul. Disse-me que estava confinado a ucama e contou-me a sua história de uma ponta à outra. Era uma carta tão emotiva cada frase me trouxe lágrimas aos olhos. Falava-me como se fôssemos velhos amigos. L

o livro e sentia que me conhecia o suficiente para partilhar todos os seus segredos comEra um belo texto, que me comoveu muitíssimo.Cerca de sessenta por cento das cartas são escritas por mulheres. Suponho que devcompreender mais facilmente o que significa ser-se privado de liberdade. Compreendcomo é possível assumir um ar forte perante o mundo, quando, por dentro, toda a noalma grita de desespero.Gostaria de poder responder a todas as cartas e dizer: «Sim, por favor, façam tudo o estiver ao vosso alcance», mas não tenho meios, nem sequer tempo para o fazer. Todraiva e bondade genuínas que esses textos traduzem são desperdiçadas, porque dispomos de recursos para as coordenar devidamente. Todos estão dispostos a vir nossa defesa, mas não podemos unir as suas vozes e fazê-las gritar em uníssono, c

força suficiente para que sejam ouvidas pelos governos que têm o poder de todecisões. Se conseguíssemos encontrar uma maneira de pegar em toda essa boa vontque nos tem sido expressa e utilizá-la para obter algo de concreto, a Nadia e as criançaestariam em casa há muito, muito tempo.Sei, pelo tom dessas cartas que chegam até mim, que todas as pessoas julgam que o cse resolveu. Julgam que a Nadia e os miúdos estão de regresso a Inglaterra e que encontramos juntos, e que o pesadelo terminou. Ninguém imagina que o nosso tormetenha assumido proporções ainda maiores do que quando eu estava prisioneira montanhas de Maqbana.Como é possível que depois de tanta publicidade e indignação pública nada tenha sfeito? Como é que uma criança, que foi raptada aos catorze anos, continua cativa volv

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duas décadas, quando o mundo inteiro teve conhecimento da sua história? Como é que pesadelo destes pôde acontecer nesta era «iluminada»?Em 1992, tudo estava a mudar tão rapidamente que eu tinha a certeza de que a Nadia emiúdos iriam regressar a Inglaterra dentro em breve. Acreditava que, apesar de estademorar mais tempo do que eu previra, seria capaz de manter a minha palavra e trazeNadia para casa.

«ZANA, DIGA OLÁ À SUA IRMû

ixot, o editor francês de Vendidas!, prometera organizar uma grande campanha pprornover o livro, que em França se intitulava Vendues!. Os seus esforços ultrapassatoda e qualquer expectativa. O grande momento de viragem foi quando me convidapara aparecer num talk show ao vivo, chamado Sacrée Soirée. Trata-se de um programas mais famosos no país, apresentado por um indivíduo de nome Jean-PiFoucault e visto por milhões de telespectadores.Fiquei extremamente nervosa quando me fizeram o convite. Aparecer em directo dianteuma plateia de milhões de pessoas, tentar falar através de intérpretes e compreendeque se passava à minha volta parecia-me um desafio demasiado assustador. Mas todotécnicos da produção foram muito simpáticos e encorajadores, e senti-me bastante

vontade à medida que se aproximava a hora de entrarmos no ar. Tive sempre um membro da editora por perto, para me ajudar, e a Mãe também vcomigo. Por breves instantes, quando a tensão começou a aumentar, desejei sair estúdios a correr e regressar a Inglaterra, esconder-me no meu quarto, mas sabia que tide fazer aquilo pela Nadia. Era a nossa grande oportunidade. Se conseguisse que uplateia daquele tamanho compreendesse o que se passava, estava segura de conseguiríamos levar o caso por diante. A minha principal preocupação consistia em sase conseguiria explicar a história de maneira convincente, no espaço de tempo de dispunha. Era tão longa e imbricada! Todos perceberam que eu estava nervosa e esforçaram-se por me tranquilizar. Deramum camarim com o meu nome na porta. Lá dentro havia garrafas de champanh

aperitivos, e um espelho emoldurado com focos de luz, tal e qual como nos filmes. contava que me tratassem como uma estrela e de certo modo senti-me desconfortávculpada. Não queria que as pessoas pensassem que eu estava a alimentar o meu enquanto a Nadia continuava presa no lémen, impossibilitada de contar a história comMas compreendi que isso significava que levavam o livro a sério, o que era óptimo.O meu nervosismo intensificou-se enquanto esperava, nos bastidores, que me chamassAs câmaras estavam a filmar, ouvia-se música, o público aplaudia e Jean-Pierre fazia o preâmbulo em francês, com voz segura. Escutei o meu nome, mas não fazia a menor iddo que o apresentador estava a dizer. De repente fui levada para o meio do estúdio.O calor das luzes era intenso e senti as pernas bambas ao pensar que vários milhõespessoas estavam, naquele preciso momento, a ver-me em suas casas, bem como o púb

convidado que me aplaudia com entusiasmo. As câmaras voltaram-se para mim e dificuldade em ver os rostos na plateia, o que foi um alívio. Concentrei-me em Jeari-Pieque me deu as boas-vindas como um bom anfitrião e me convidou a sentar no sofá. Facomigo durante uns instantes e eu comecei a descontrair-me. Percebi que o público estinteressado no que eu tinha para dizer e parecia compreensivo.O que não percebera é que os produtores também tinham convidado o adido de impreda Embaixada do lémen em Paris, Abdul Amir Chawki. Depois de Jean-Pierre meinstalado confortavelmente, pediu-me para confiar nele e foi então que anunciou Chawki estava a caminho, para apresentar a versão iemenita da história.Por uma fracção de segundo voltei a ser inundada pela sensação de pânico, mas assim vi Chawki esse pânico transformou-se em fúria. Tive vontade de lhe bater no instante

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que entrou no estúdio. A Mãe estava sentada atrás de mim, lançando a Chawki um ofulminante. O público parecia irritado, o que me sossegou. Compreendi que estavanosso lado e senti-me pronta para enfrentar a fera.Chawki exibia o mesmo ar confiante e presunçoso de todos os homens com que eu tivde lidar no lémen, só que agora não estávamos no lémen. Encontrávamo-nos num estúde televisão em França e ele não podia falar comigo como se eu fosse uma idiosimplesmente por ser mulher. Enchi-me de coragem, sentindo a raiva ferver dentromim.

- Sr. Abdul Amir Chawki - disse Jean-Pierre -, gostaria que me respondesse a uma perguo filho de Zana, a irmã dela e os respectivos filhos podem ou não regressar livrementInglaterra? Qual é a sua posição e qual é a posição do seu país?Chawki desfez-se em sorrisos amenizadores e de falsa boa vontade. Estava, obviamehabituado a lidar com a imprensa, mas não contava com o mau humor desta platComparecera no estúdio, pensando que conseguiria provar facilmente que o nosso calvnão passava de uma história absurda. O público viuna sua atitude confiante uma hedioarrogância.- E uma situação terrível e a minha simpatia vai toda para Zana - disse ele, comcondescendente. - Trata-se de um verdadeiro drama e a culpa recai toda sobre o pai dPerdeu-se muito tempo, enquanto Zana e Nadia estiveram escondidas naquela al

isolada, no lémen. Jean-Pierre interrompeu-o, visivelmente irritado com as evasivas de Chawki.- O que é que pode fazer para ajudar Zana e a irmã, já que considera a situamaceitável?- Fiquei muito perturbado com toda esta história. - Chawki levou a mão ao peito, comotivesse o coração destroçado. - Sou um ser humano como outro qualquer. A embaixadagoverno iemenita já tomaram uma série de medidas para resolver o assunto.Aquilo era demasiado para aguentar calada. Não podia ficar ali quieta a ouvir tadisparate.- Deviam ter resolvido o assunto há doze anos! - intervim, bruscamente. - Sabperfeitamente o que se passava.

- O governo só tomou conhecimento do caso quando este se tomou público - prossegChawki com a mesma suavidade, como se eu não tivesse falado. - Tentámos solucionproblema e, de imediato, colocámos Zana e a irmã sob protecção, para as afastarmos pressões da família.É verdade que nos puseram sob «protecção» enquanto lhes pareceu conveniente, mquem estava agora a proteger a Nadia? E não seria protecção apenas mais um sinónimocativeiro? Podem ter-nos poupado, durante umas semanas, ao trabalho árduo da vidaaldeia, enquanto tentavam resolver o assunto e decidir o que fazer de nós, masrealidade limitaram-se a fazer-nos reféns do governo em vez de reféns das famílias às quo Pai nos vendera. Não passavam de meros estratagemas políticos, que me davam vontde gritar de frustração.

Chawki, porém, sentia-se mais à-vontade do que nunca. Esticou o braço por cima costas do sofá onde estávamos ambos sentados, como quem se descontrai depois de serão de amena cavaqueira com os amigos. Afastei-me dele. Lembrava-me bem de toas atitudes patemalistas de que fora alvo às mãos de Abdul Khada e dos outros home Jean-Pierre lançou-me um olhar preocupado. Deve ter pensado que eu estava presteabandonar o estúdio de rompante, incapaz de suportar aquela farsa. Na altura não meconta de que ele tinha outra dramática surpresa reservada para mim, e que não poderialevado adiante se eu tivesse saído de cena intempestivamente.

- Seria possível a Zana voltar livremente ao lémen e ver a irmã? - perguntou a Chawki, smais rodeios.

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Chawki não se desmanchou. Era um profissional.- A Zana sempre foi livre, dado que é cidadã britânica. A mãe foi ao lémen duas vezes vefilha e a Zana poderia ter ido com ela.Como se eu tivesse coragem de regressar ao lémen após um pesadelo de oito anos, coameaça sempre presente de ser raptada e levada de volta para a aldeia. Bem poimaginar a vingança de Abdul Khada contra mim, por todas as coisas que escrevi sobreno meu livro. Ir ao lémen sem protecção teria sido um suicídio.Parecia que Jean-Pierre, com as suas palavras ponderadas, estava a preparar-se para fa

Chawki cair numa armadilha.- Se amanhã, ou depois de amanhã, ou mesmo sexta-feira, eu fosse com a Zana, e cestá, com uma equipa do Sacrée Soirée, ao lémen, o senhor garante-me que seríamautorizados a ver a Nadia e os filhos, de modo que, humanamente falando, tudoresolvesse mais depressa? - perguntou.- Oficialmente falando, não vejo qualquer problema da nossa parte - respondeu Chapermanecendo calmo. O seu rosto cobriu-se de uma fina camada de suor, mas o sorpresunçoso não se desvaneceu.Eu tinha a cabeça a andar às voltas. Era a primeira vez que ouvia falar num plano paralevarem ao lémen. A ideia de ver a Nadia e o Marcus era maravilhosa, mas ao mestempo aterrorizava-me voltar a um país que me assombrava em pesadelos. E se

prendessem enquanto lá estava?’E se pusessem o Jean-Pierre na cadeia e me arrastasspara Maqbana? E se provocassem um acidente de automóvel, ou de avião, ou abatessem em plena rua?  Jean-Pierre falava directamente para a câmara. Eu ouvia as suas palavras, mas conseguia absorvê-las. Estava demasiado ocupada a digerir a novidade e a decidir resposta lhe dar.- A Nadia encontra-se no lémen e não fala com a irmã há quatro anos - anunciou JePierre.- Há quatro anos - disse eu, incapaz de conter as lágrimas -, ela pediu-me para a tirar do mais depressa possível. - Esforcei-me por acalmar as ideias. Não podia esquecer qualo objectivo principal da minha presença em estúdio. A minha prioridade tinha de se

promessa que fizera a Nadia. Mas depois disso nascera o Liam. Também tinha de pennele. Não queria que ele ficasse sem mãe quando mais necessitava dela, como acontecao Marcus.- Em Taez - disse Jean-Pierre -, Nadia está ao telefone à espera de falar consigo, Zana. Dolá à sua irmã...O estúdio ficou silencioso como uma catedral. Senti-me atordoada, confusa. Depois deestado a tentar ordenar os meus pensamentos, eles diziam-me agora que tinham a Naao telefone? Não queria acreditar que fosse verdade.Ouvi apenas os zumbidos e estalidos da electricidade estática, quando puseram a ligapara Taez através dos altifalantes. Consegui escutar a voz da Nadia, mas era impossdescortinar o que dizia. As lágrimas escorreram-me pela cara abaixo ao imaginá-la do o

lado do fio, tentando perceber o que se passava.Sabia que ela devia estar rodeada pelos homens, todos eles dando-lhe indicações sobque podia ou não dizer. Devia sentir-se tão confusa como eu, tendo sido chamaprovavelmente sem qualquer explicação, e levada para junto do telefone. Desconhecia,certo, a existência do livro e do programa de televisão, e por que motivo lhe permitiamrepente, falar comigo depois de tanto tempo votada ao silêncio. Teria a mesma dificuldem ouvir-me que eu a ela.Então Jean-Pierre anunciou que íamos fazer um curto intervalo, enquanto eu converscom a Nadia num gabinete dos bastidores. Eu continuava em estado de choque, mas um alívio pensar que, por uns instantes, poderia sair do estúdio, do calor e do barulh

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Mãe veio comigo. Percebi que estava tão atordoada como eu, e que ambas tentávamos um sentido aos acontecimentos.Confusas, abandonámos o cenário na companhia de Jean-Pierre, enquanto a música sude intensidade à nossa volta. Uma banda ocupou o estúdio na nossa ausência. estranho ouvir música alegre quando estávamos a passar por uma situação traumatizante. Não conseguíamos absorver tanta informação e deixamo-nos conduzir pequipa até ao gabinete.Estava ansiosa por pegar no telefone antes que cortassem a ligação. Podia imaginar q

nervosos os homens deviam estar em Taez. Provavelmente encontravam-se em casaNasser Saleh, o indivíduo que servira de intermediário do Pai, de Gowad e de Abdul KhadO marido da Nadia, o Mohammed, também lá estaria, juntamente com outros, a discutirracionalidade daquele acto, e era possível que decidissem pôr fim ao telefonema squalquer aviso, para se pouparem a mais incómodos. Podiam sempre alegar queligações eram más.Estava aterrorizada pela ideia de chegar ao telefone e ouvir apenas o ruído da lidesligada. Era um elo tão frágil, tão ténue, como se a Nadia estivesse à beira de precipicio, agarrada apenas por um fio. Se o fio se partisse, ela desapareceria para sempQuando chegámos ao gabinete, onde o telefone estava à minha espera, as lágrimas etantas que eu não conseguia falar e a Mãe pegou no auscultador que Jean-Pierre

estendia. Agora também a Mãe chorava, a sua voz entrecortada quando tentou dalguma coisa. Acalmei-me, inspirei fundo e recuperei fôlego. Só me vinham à mentepalavras banais que poderia trocar com a Nadía se falássemos todos os dias.- Estás bem, Nard? - perguntei.- Tive outro filho, Zana. Voltei para a aldeia. - O seu sotaque de Birmingliam continuavmesmo, como se ainda estivéssemos na nossa cidade-natal e fôssemos duas adolescende catorze e quinze anos a conversar sobre as nossas vidas.- O quê? - Não queria acreditar. Na minha mente, tinha esperança de que elaencontrasse em Taez, à espera de apanhar um voo para Inglaterra, assim que tudoresolvesse. Pensara que a «protecção» das autoridades, de que Chawki falara com taorgulho, se tivesse mantido depois da minha partida. Percebia agora que a tinham lev

de volta para a mesma vida que, antes, ambas suportáramos. Eu fugira e ela não. A notde que tivera mais um filho despedaçou-me o coração.Significava que o Mohammed continuava a poder cobrar os seus direitos conjugais semque lhe apetecia, e a ideia de a minha irmã ser constantemente violada deu-me um nóestômago. Ainda pior era saber que, depois de ter dado à luz a Tina, o seu segundo beos médicos lhe tinham dito que não devia ter mais crianças. Em vez disso, gerara ouduas, uma a seguir à outra.A maneira de deterem o controlo sobre ela era mantendo-a grávida. Os filhos agrilhoavna, não lhe deixavam tempo para si própria, nem para pensar, discutir, muito menos pse revoltar. Gowad comprara-a ao nosso pai única e exclusivamente para produzir netoela teria de cumprir essa obrigação até ao dia em que conseguisse voltar para Inglate

ou até morrer, ou até ser demasiado velha para engravidar.Uma vez mais, senti a raiva e a frustração crescerem dentro de mim. Tinhamos de tirdo lémen agora, antes que a matassem com as aquelas exigências insaciáveis sobre o corpo já enfraquecido.Fiz-lhe mais umas perguntas e tentei descobrir o que fora feito do Marcus. Ela queria sao que se passava na Europa. Tentei explicar-lhe tudo o que acontecera nos últimos quaanos, mas as palavras faltavam-me e, de repente, o telefone ficou mudo. A ligação cortada.Sabia que a Nadia devia sentir-se ainda pior do que eu. Ela continuava numa sala cheiahomens de Taez, depois de uns escassos minutos em contacto com a família e a sua tenatal, ouvindo as vozes queridas do seu passado. Ali de pé, com o auscultador sem vida

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mão, imaginei os homens todos aos gritos com ela, a dizer-lhe o que ela deviarespondido e a discutirem entre si o que fazer em seguida, enquanto ela permanesentada no meio deles, provavelmente sem sequer ser capaz de verter lágrimas dos solhos vazios.Enquanto me esforçava por ordenar as ideias, um dos membros da equipa de realizamandou-nos voltar para o estúdio. Os músicos estavam prestes a terminar a sua actuaO telefonema deve ter demorado apenas uns minutos, mas eu perdera toda e qualqnoção do tempo.

Antes que pudesse pensar em mais alguma coisa, tinhamos novamente os holofquentes sobre nós e Jean-Pierre retomava o programa. Perguntou-nos o que se passaranão estava certa de conseguir falar. Para meu grande alívio, as palavras vieram-me à bo- A Nadia voltou para a aldeia - disse, sentindo que me ia engasgar com aquela frase. - Tlá estado desde que eu saí do lémen. Teve mais um filho. - Ouvi a minha própria vofiquei tão chocada como quando a Nadia me dera a notícia, há instantes.- E que foi feito do Marcus? - perguntou Jeari-Pierre.- Levaram-no assim que eu me vim embora do lémen. A Nadia nunca mais o viu. Ele sumDesapareceu! - Senti que me ia descontrolar perante a imagem do meu bebé tristmagrinho, que deixei a chorar no lémen no dia em que finalmente consegui esca

Contive-me o máximo possível, tremendo de raiva e tristeza, desejando pôr fim àqutormento para que eu e a Mãe pudéssemos conversar sozinhas.- O que vai fazer agora, Zana? - perguntou Jean-Pierre. - Tenciona desistir?- Não! - A voz saiu-me com toda a força da minha alma. - Nunca! Nunca hei-de desisQuero que a Nadia e os miúdos voltem para Inglaterra e sejam livres. Jamais desistireique ela regresse a casa.- Obrigado, Zana - agradeceu Jean-Pierre. - Desejo-lhe o maior sucesso do mundo coseu livro e espero que a Nadia seja libertada em breve.O programa estava a terminar e eu via o meu rosto nos monitores espalhados pelo estúos meus olhos vermelhos e as faces lavadas em lágrimas. O público batia palmas ao rida música. A emissão acabou e eu fiquei sentada no sofá, sentindo-me como se tive

diso atropelada por um camião TIR.Mantive-me de cabeça erguida, decidida a não mostrar qualquer sinal de fraquezChawki. A Mãe escondeu a cara nas mãos e a câmara virou-se imediatamente para Debrucei-me e puxei-lhe pelos braços.- Não os deixes verem-te a chorar, Mãe - disse eu. - Não os deixes verem-te a chorar.Enquanto a Mãe tentava recompor-se, Chawki fez-lhe um sorriso irónico e a magoa dtransformou-se em ira. Atirou-se a ele, agarrando-o pelo pescoço, aos berros:- Seu filho da mãe! Seu árabe nojento e mentiroso!As câmaras estavam desligadas, mas o público continuava a aplaudir. Tinham assistidconversa toda e sabiam quem estava a mentir e quem dizia a verdade. Viam a mesexpressão vitoriosa no rosto dele que nós víamos. Chawki representava todos aqueles

insistiam em manter a Nadia e os miúdos prisioneiros. Provalvemente não passavamosum pequeno incómodo para ele, uma oportunidade para subir na carreira diplomática.Bemard Fixot, o meu editor francês, puxou pela Mãe e tentou acalmá-la. Chawkiconduzido para fora do estúdio, visivelmente abalado, enquanto o público o vaiava. Entãplateia começou a animar-nos, entoando: «Nadia libre, Nadia libre», enquanto saíamfinalmente de cena.Sabíamos que acabávamos de dar um passo de gigante. Agora a nossa história era notde destaque, enfatizada pela abordagem mediática do Sacrée Soirée, e estávaprofundamente agradecidas a Jean-Pierre, ainda que um pouco atordoadas. Se tudo istonecessário para resgatar a Nadia, estávamos mais do que dispostas a fazê-lo.

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Os milhões de pessoas que tinham assistido ao nosso drama nos ecrãs de televisão, tinhficado tão comovidos e irados como o público presente no estúdio. Nas semanas queseguiram, a Embaixada do lémen recebeu uma avalancha de cartas. Os jornais tambderam cobertura à história, exigindo que algo fosse feito. As tristes irmãs de Maqbhaviam-se tomado num escândalo nacional. O público queria saber mais e ver o csolucionado.Quando se aperceberam do tumulto que tinham gerado, os produtores do Sacrée Soquiseram continuar a explorar aquela onda de interesse. Jean-Pierre perguntou-me

estaria disposta a participar novamente no programa e se aceitaria viajar no dia seguaté Taez, com ele e com uma equipa de filmagens, se durante o programa Chaconcordasse em deixar-nos partir.Pensei muitas vezes em voltar ao lémen, depois daquele primeiro programa. Eu e a Mpraticamente não falávamos de outra coisa. Embora dissesse para mim mesma que estprotegida pela equipa de televisão e pelos editores, que saberiam das minhas andanestava ciente de que era um risco muito grande. A minha intuição dizia-me para numais me aproximar daquele país.Mas percebia, também, que estávamos na crista da onda. Se conseguíssemos maaquele nível de pressão internacional, talvez conseguíssemos obrigar os iemenitas a ce Talvez o caso se tomasse tão embaraçoso para eles, que decidissem ser preferível des

e entregar a Nadia e os miúdos, a prolongar aquela agonia de se verem expostostelevisão francesa.Disse a Jeari-Pierre que teria todo o gosto em participar novamente no programa, mas necessitava de reflectir sobre se seria capaz de regressar ao lémen.O programa foi organizado e Chawki tomou a aparecer em estúdio. Agora parecia bem mnervoso do que nós. Tinham-nos dito que o embaixador iemenita em Paris estava dispoa deixar a Nadia e os miúdos sairem imediatamente do país para evitar mais polémica, que Chawki convencera-o a não o fazer. Chawki concordara em expor a sua posição público. Estava determinado em subir na carreira, a conta de conseguir resolver o assude alguma forma. Nós estávamos determinadas em derrotá-lo.Chawki trazia mais um carregamento de comentários condescendentes e falsas garan

em como eu era livre de regressar ao lémen sempre que quisesse. «É claro» que povisitar a minha família. Suponho que ele devia sentir-se seguro, pensando que eu jamteria coragem de voltar. Podia continuar a fazer convites vazios, dando a impressão de os iemenitas queriam resolver o assunto e era eu quem levantava problemas e criobstáculos.Não parava de repetir frases como: «A Nadia é uma cidadã iemenita» e «Ela está feliz, quer sair do país».- Então, Zana - diz Jean-Pierre, virando-se para mim -, aceita vir connosco ao lémAmanhã? Para resolver esta questão?Ouvi as suas palavras e inspirei fundo. O público também parecia estar a conterespiração, à espera da minha resposta. Olhei para o rosto presunçoso de Chawki. Estav

contar com a minha recusa para dizer que eu é que não queria colaborar. Era como arracoragem para mergulhar numa piscina gelada. Atirei-me de cabeça.- Está bem - respondi. - Aceito. - A plateia aplaudiu e durante uns instantes Chawki fcom um ar chocado, a repensar a sua posição.- Se estivesse na situação de Zana - interpelou-o Jean-Pierre -, teria feito todos os possívpor tomar pública esta história, diante de todo o mundo?Chawki parecia extremamente incomodado. Começou a transpirar e a tentar mudarassunto.- O problema do seu pai é dramático - disse ele, dirigindo-se a mim. - O governo iemeconfiscou-lhe o passaporte.- Isso não é verdade - ripostei. - O meu pai tem passaporte britânico.

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- Mas nunca deixou de ter um passaporte iemenita - murmurou Chawki, tentando gantempo enquanto pensava em alguma coisa mais convincente para dizer. O púbassobiou, censurando as suas palavras mesquinhas. Jean-Pierre abanou a cabeça, exasperado.- Se não dermos cobertura suficiente a este caso, o problema nunca mais se resolve dissZana, a autora de Vendidas!, irá ao lémen com a equipa do Sacrée Soirée. Tomada a decisão, fiquei aterrorizada.- Não quero ir - confessei à Mãe assim que regressámos sãs e salvas ao hotel.

- Temos de tentar, Zana. Temos de contar à Nadia o que se está a passar, que ela tenosso apoio, que continuamos a lutar para a tirar de lá.Agora era impossível deter a bola de neve. Quer os editores, quer os produtorestelevisão acreditavam que era o único caminho a seguir e começaram todos a discutir qa melhor maneira de organizar a viagem. A Mãe e eu pouco mais éramos do que mepeões manipulados neste grande jogo de xadrez. Passámos grande parte do tempo quartos de hotel, a fumar compulsivamente.De quando em quando recebíamos informações sobre o andamento das coisas. Dissernos que os iemenitas tinham concordado em nos deixarem ver a Nadia e os miúdurante o tempo que quiséssemos, e que eu poderia ver o Marcus.- E se quiser tirar o Marcus do país - disse Chawki -, poderá entrar com um pedido

custódia na justiça.Sabia que não devia acreditar numa só palavra, mas quando uma pessoa está a afogaragarra-se ao que tiver à mão, e esta ténue promessa fez-me sentir optimista. Estavtodos tão entusiasmados com a história que eu não pude deixar de ser arrastada pela ode excitação, embora as dúvidas continuassem a massacrar-me e o medo a dar-me a vao estômago. Jean-Pierre percebeu que eu estava assustada.- Não se preocupe - sossegou-me ele. - Se tentarem raptá-la, eu apresentar-me-ei como resgate.Compreendi que estava a tentar tranquilizar-me e que as suas palavras eram sinceCompreendi, também, que gestos desses seriam inúteis assim que chegássemos ao lém

Se decidissem manter-me prisioneira, ninguém, nem Jean-Pierre, nem Bemard Fpoderia fazer fosse o que fosse. Podiam protestar o quanto quisessem. Podiam escrecartas aos chefes de estado e organizar programas de televisão todos os dias da semaque nada adiantaria.Mas se eu queria salvar a Nadia e os miúdos, era um risco que teria forçosamentecorrer.A partir do momento em que aceitei ir a Taez, começou uma correria desenfreadapassaporte da Mãe tinha caducado e ela não reparara nisso. Não podíamos correr o riscoir ao lémen com um passaporte sem validade - não queriamos dar-lhes a mais pequdesculpa para nos dificultarem a entrada ou saída do país -, pelo que tivemos de renovà pressa. Faltava ainda pedir a Chawki os nossos vistos iemenitas.

Uma vez mais, ele detinha o poder sobre nós e não hesitou em tirar partido disso. Fez-prometer que não tentaríamos raptar a Nadia ou os miúdos, enquanto estivéssemospaís. Como é que ele achava que o poderíamos fazer, estando os olhos todos postos nós e rodeados por uma equipa de câmaras, não faço a menor ideia! Suponho que quapenas deixar claro que não confiava em nós, na mesma medida em que nós confiávamos nele. E é claro que estava certo em não confiar em nós. Se eu fosse capazelaborar um plano para raptar a Nadia e os miúdos, tê-lo-ia posto em práindependentemente de quaisquer promessas que pudesse ter feito a Chawki.Bernard Fixot, o meu editor francês, é um homem grande e bonacheirão, que conhecminha primeira visita a Paris e que chorara abertamente ao ouvir a minha história. Pe

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que foi devido ao seu interesse pessoal pelo caso que o livro foi alvo de uma campanhapromoção tão grande e obteve tanto sucesso.A sua mulher, Valérie-Anne, é também uma figura de peso em Paris, sendo filha de VaGiscard d’Estaing, o antigo Presidente da França. Estavam ambos convencidos de tínhamos dado um enorme passo em frente. Viriam cormosco ao lémen. Valérie-Aoferecera-se como garantia de que não haveria qualquer tentativa de rapto, se permitissem passar algum tempo a sós com a Nadia. Dada a importância do seu papresença de Valérie-Anne pesaria, provavelmente, mais do que a de Jean-Pierre. Ass

Chawki poderia mostrar aos seus chefes que estava a ser cauteloso e a exigir um prbastante elevado em troca da cooperação deles.Alguém alugou um avião privado de dez lugares e fomos todos para Taez. Chaaproveitou o voo de borla para ir visitar a família e amigos.No avião, Jean-Pierre percebeu que eu estava cada vez mais nervosa, ao imaginar tudque poderia correr mal assim que aterrássemos. Perguntou se me sentia bem.- Está tudo bem - respondi, embora os meus nervos estivessem prestes a ceder sob tapressão. - Mas deixe-me avisá-lo de uma coisa. Eu conheço esta gente. Nada vai cocomo planeado. É impossível fazer planos no lémen. Vão ter a cidade cheia de funcionádo governo, militares e polícia. Não nos vão deixar estar com os miúdos. Verá que terazão. Espere só e verá.

Detestava ser tão pessimista quando todos os outros estavam entusiasmados e cheiosexpectativas, mas não podia ficar calada e não exprimir as minhas dúvidas e receios. Saque estava a ser realista. Era a única pessoa do grupo que vivera no lémen - à excepçãoChawki - e sabia como as coisas funcionavam. Fumei cigarro atrás de cigarro,furiosamente as unhas e imaginei como estaria a Nadia a passar o dia.Partindo do princípio de que a tinham levado de volta para a aldeia, depois do telefonefeito a partir do estúdio de televisão, teriam de a levar novamente para Taez, num LRover. Provavelmente ninguém lhe explicou o que se passava, limitaram-se a mandpreparar-se para viajar. Assim que chegasse a Taez, começariam a gritar-lhe o que podianão dizer à frente das câmaras. Gostavam que a ouvíssemos dizer que estava feliz e não queria regressar a Inglaterra. Rezei para que ela compreendesse como era importa

não fazer o que eles ordenassem, mas sabia que eles deviam estar a massacrá-la. Saque lhe bateriam se mostrasse qualquer sinal de revolta. Tentei pensar noutras coisas que não os maus tratos. Tentei imaginar os miúdos junto dNão era capaz de adivinhar qual seria o aspecto do Marcus passados quatro anos. Saque não me reconheceria - e se o fizesse, provavelmente odiar-me-ia por o ter deixquando ainda era tão pequenino -, mas continuava ansiosa por poder contemplongamente e, com sorte, abraçá-lo. Queria poder dizer-lhe que não o abandonara, estava a fazer de tudo para o libertar, de maneira a ficarmos juntos novamente.Quando me vim embora do lémen, ele era demasiado pequeno para compreender o estava a acontecer à sua volta. Agora poderia pelo menos ouvir a minha explicação. Fica saber que teve mãe e que a sua mãe o adorava, apesar de não ter podido vê-lo cres

Fechei os olhos para conter as lágrimas e fixei o vazio para lá da janela, na esperançaque ninguém tentasse falar comigo. Perceberam a minha expressão e deixaram-me em com os meus pensamentos.Assim que chegámos ao aeroporto de Sanaa, os meus piores receios concretizaramHavia pelo menos trinta homens com ar de funcionários do governo à nossa espera, algdos quais armados e desejosos de nos mostrar as suas armas. Vimos ainda uma equipatelevisão local, sem dúvida contratada para mostrar aos estrangeiros que os órgãoscomunicação social iemenitas também tinha liberdade de fazer a cobertura da históNem me atrevi a pensar na versão que dariam ao público iemenita.

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Os funcionários analisaram os nossos passaportes e Chawki desapareceu com os amig Tinha, agora, um ar bastante mais à vontade, já que estava em território seu. Aqui era upessoa influente e o seu poder era real.Ao olhar em volta, percebi que estavam todos entretidos a cochichar e a discutir, deixannos sozinhas, a mim e à Mãe. Fui assolada por todas as minhas recordações de voárabes e dos cheiros do lémen, que me fizeram estremecer. A presença de Bemard, ValéAnne e Jean-Pierre, que eram pessoas tão confiantes e poderosas em Paris, pareceu-merepente, tudo menos reconfortante. Era óbvio que não percebiam nada do que estav

acontecer, exactamente como nós. Esperámos todos que nos dissessem qual serpróximo passo.Finalmente, levaram-nos de avião para Taez. Chegámos ao cair da noite e instalámo-nosHotel Sheraton. Informaram-nos de que o encontro teria lugar no dia seguinte.Eu e a Mãe partilhámos um quarto e passámos a noite acordadas, a fumar e a beber calternando entre longos silêncios e ainda mais longas conversas, repetidas pela milésvez, de olhos postos nas luzes brilhantes da cidade. As horas arrastaram-se, eternas, que ouvimos os gritos de despertar das mesquitas, quando os ímãs convocam osis para as orações, enquanto o Sol se ergue lentamente por cima dos telhados. As luapagaram-se e o calor do dia começou a aumentar.Estávamos tensas e exaustas, impacientes por ver a Nadia e os miúdos. Os preparat

demoraram horas. Por fim, fomos conduzidos ao centro da cidade.No caminho, fomos informados pelos funcionários do governo que íamos poder encontnos com a Nadia, num gabinete fechado, e falar com ela o tempo que quiséssemos. Seo coração a martelar nos ouvidos e tive dificuldade em respirar à medida queaproximava o grande momento. Sempre que o carro abrandava junto de um cruzameesperava que alguém nos mandasse parar e viesse dizer que o encontro fora canceladoque a Nadia não estava em Taez e que teríamos de voltar no dia seguinte, ou daí a usemana, ou daí a um mês. Não me atrevia a acreditar que iam realmente manter a palavra e deixarnos vê-Ia de imediato.Chegámos a um edificio governamental não-identificado e fomos conduzidos a um j arnas traseiras, onde nos fizeram esperar mais uma vez. Havia um pátio interior, com

cadeiras e uma mesa pequena, rodeado, em três lados, por um muro alto caiado. A equdo Sacrée Soirée começou a montar silenciosamente as suas câmaras e luzes.continuava a não conseguir acreditar que o encontro fosse realmente realizar-se, qupoder falar com a Nadia frente a frente, passados quatro anos.À volta do jardim, a uma distância decente, encontravam-se trinta ou quarenta homiemenitas, provavelmente os mesmos que tinham estado à nossa espera no aeropoAlguns tinham câmaras de vídeo. Chegavam cada vez mais Land Rovers e, de cada vesperávamos ver a Nadia sair de um deles, mas eram sempre homens que emergiamdar ordens com ar importante.Ficámos sentados no jardim durante duas horas, vendo esses homens caminhar de aem punho, murmurando entre si e lançando olhares na nossa dir ecção. Parecia

estavam deliberadamente a tentar pôr-nos nervosos e a minar a nossa confiançaestratagema estava a resultar. Ainda assim, estávamos dispostos a perseverar. Era coum grotesco jogo de b 1 uff.Ao ver crescer o número de funcionários do governo, eu e a Mãe apercebemo-nos de tínhamos cometido um erro. Tinhamos caído na ratoeira. Todas as promessas que Chafizera em directo na televisão francesa desfaziam-se lentamente na realidade dura daqu jardim no lémen. Bernard e Jean-Pierre pareciam não ter a certeza de como controlsituação. Iam poder apenas gravar o «espectáculo» - fosse ele qual fosse - queiemenitas se preparavam para lhes oferecer. Não podiam fazer nada para aceleracoisas ou influenciar o desenrolar dos acontecimentos.

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De repente, a Nadia apareceu na entrada do jardim, coberta dos pés à cabeça por manto preto. Eu e a Mãe percebemos de imediato que era ela. As câmaras começaradisparar e a rolar por todos os lados, à medida que se encaminhava para nós. O marido, o Mohammed, vinha com ela e trazia uma criança. Apertei o braço da Mãe.- Marcus? - disse eu, mal ousando pensar que sempre me tinham trazido o meu filho. assim que pronunciei o seu nome, soube que não era ele. Era um bebé pequenino, o últfilho da Nadia. Não havia sinais de uma criança de seis anos. O coração afundou-se-mepeito. Não iam cumprir o prometido.

Chawki falou com a Nadia enquanto se aproximavam, murmurando junto da sua oretapada pelo manto, indicando-lhe o que dizer. Os olhos dela voavam de um lado paroutro, por entre a abertura do véu, confusos e assustados. A multidão manteve-sdistância, observando em silêncio. As câmaras continuaram a disparar e a zumgravando o encontro para os órgãos de comunicação social e para os ficheiros do govesobre o nosso caso que ainda hoje devem existir. Algumas das fotografias seriam mtarde publicadas nas páginas da revista Hello!.A Nadia deteve-se a um metro de nós e levantou as mãos, com as palmas viradas pcima.- Que se passa? - perguntou, a sua voz tremendo de medo.- Como, que se passa? - disse a Mãe.

- Que confusão é esta? - Apontou para a turba de homens e câmaras. - Que faz esta getoda aqui?- Não fomos nós, Nard - respondeu a Mãe. - Foram eles. Prometeram-nos que nos deixarfalar contigo, com as crianças e com o Mareus. Onde estão os miúdos?A Nadia lançou um olhar irritado ao Mohammed.- Estão na escola - cuspiu.Os funcionários do governo, incluindo Chawki, estavam reunidos à beira do porimpossibilitando-nos a fuga. Sabe Deus onde pensavam que iriamos.Forcei-me a caminhar até junto do Mohammed e a cumprimentá-lo educadamente. Eloa criança. Tentei imaginar como é que uma irmã há muito perdida devia agir numa situacomo aquela. Todos os meus instintos me diziam para abraçar a Nadia, para gritar e cho

Um câmara iemenita aproximou-se demasiado e eu repreendi-o em árabe, dizendo-lhe p«voltar para casa da mãe». A Nadia riu-se e, por um instante, foi como se voltássemos velhos tempos, em que eu costumava protegê-la e nos metíamos juntas em alhadas.repente ela regressou ao seu estilo zumbi de Maqbana, submetida a uma lavagem cereba mulher que aprendera a desligar-se de toda e qualquer dor e infelicidade.Sentámo-nos num semicírculo de cadeiras duras. A Nadia destapou o rosto e eu comecfalar com ela. Deixei as palavras sair em torrente. Eu e a Mãe estávamos ambas chocacom o seu aspecto magro e esvaído. Estivemos no jardim durante meia hora, a tecontar-lhe o máximo possível sobre o que se passava. Percebi que ela estava confusa. tudo demasiado complicado para explicar em tão curto espaço de tempo, especialme

numa situação tensa como a nossa. O Mohammed andava nervosamente à nossa volançando olhares de ansiedade aos homens que nos observavam a todos.A Mãe seguiu o meu exemplo e pediu-me para informar o Mohammed que o aceitava cogenro. Transmiti-lhe a mensagem, mas ele parecia não ter interesse em nada do pudéssemos dizer, inclusive mostrou despeito por nós. Jean-Pierre deu um passo em frepara fazer a entrevista. Com as câmaras apontadas a ela, a Nadia tomou a cobrir o roos seus olhos muito abertos de ansiedade, e começou a proferir as deixas que lhe tinhensinado com tanto zelo.- Sou muçulmana - disse ela. - Sou feliz aqui. Gostava de visitar a Inglaterra com o mmarido e os nossos filhos, mas sem confusões. Se os órgãos de comunicação sopararem de falar no caso, nós poderemos viajar.

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- A comunicação social não se interessou durante quatro anos - interrompeu a Mãe, incade se controlar. - Se cortarmos com a imprensa agora, volta tudo à estaca zero e nacontecerá.- Jamais vamos desistir de te tirar daqui - repeti eu, mas era como falar com urna pesem transe. Tive vontade de a abanar e de lhe fazer ver a razão. Ela tomou a repetir as sdeixas, como uma criança a recitar o seu papel numa peça escolar. Jean-Piinterrompeu-a com uma pergunta que, obviamente, não estava no argumento que deram para ela decorar.

- Gostaria de voltar para Birmingliam, Nadia?Ela parou de falar e os seus olhos encheram-se de pânico. Uma máquina captou einstante e a imagem dos seus olhos, nessa fracção de segundo, acabaria por aparececapa de todas as novas edições do livro e dar a volta ao mundo, uma imagem assustadde tristeza.- Não é possível - respondeu.- Porquê? - insistiu Jean-Pierre.- Não é possível por causa de tudo isto. - Fez um gesto na direcção daquela gente todnossa volta.aos velhos tempos, em que eu costumava protegê-la e nos metíamos juntas em alhaDe repente ela regressou ao seu estilo zumbi de Maqbana, submetida a uma lavag

cerebral, a mulher que aprendera a desligar-se de toda e qualquer dor e infelicidade.Sentámo-nos num semicírculo de cadeiras duras. A Nadia destapou o rosto e eu comecfalar com ela. Deixei as palavras sair em torrente. Eu e a Mãe estávamos ambas chocacom o seu aspecto magro e esvaído. Estivemos no jardim durante meia hora, a tecontar-lhe o máximo possível sobre o que se passava. Percebi que ela estava confusa. tudo demasiado complicado para explicar em tão curto espaço de tempo, especialmenuma situação tensa como a nossa. O Mohammed andava nervosamente à nossa volançando olhares de ansiedade aos homens que nos observavam a todos.A Mãe seguiu o meu exemplo e pediu-me para informar o Mohammed que o aceitava cogenro. Transmiti-lhe a mensagem, mas ele parecia não ter interesse em nada do pudéssemos dizer, inclusive mostrou despeito por nós. Jean-Pierre deu um passo em fre

para fazer a entrevista. Com as câmaras apontadas a ela, a Nadia tomou a cobrir o roos seus olhos muito abertos de ansiedade, e começou a proferir as deixas que lhe tinhensinado com tanto zelo.- Sou muçulmana - disse ela. - Sou feliz aqui. Gostava de visitar a Inglaterra com o mmarido e os nossos filhos, mas sem confusões. Se os órgãos de comunicação sopararem de falar no caso, nós poderemos viajar.- A comunicação social não se interessou durante quatro anos - interrompeu a Mãe, incade se controlar. - Se cortarmos com a imprensa agora, volta tudo à estaca zero e nacontecerá.- Jamais vamos desistir de te tirar daqui - repeti eu, mas era como falar com uma pesem transe. Tive vontade de a abanar e de lhe fazer ver a razão. Ela tomou a repetir as s

deixas, como uma criança a recitar o seu papel numa peça escolar. Jean-Piinterrompeu-a com uma pergunta que, obviamente, não estava no argumento que deram para ela decorar.- Gostaria de voltar para Binningham, Nadia?Ela parou de falar e os seus olhos encheram-se de pânico. Uma máquina captou einstante e a imagem dos seus olhos, nessa fracção de segundo, acabaria por aparececapa de todas as novas edições do livro e dar a volta ao mundo, uma imagem assustadde tristeza.- Não é possível - respondeu.- Porquê? - insistiu Jean-Pierre.

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- Não é possível por causa de tudo isto. - Fez um gesto na direcção daquela gente todnossa volta.- O que é que recorda de Inglaterra? - perguntou Jean-Pierre.- Era muito pequena - hesitou ela. - Era muito pequena. Tinha apenas onze, doze, tranos...O Mohammed estava a ficar frenético, com os nervos, dizendo que tinham de voltar p junto dos filhos que estavam na aldeia, e que era preciso despacharmo-nos e acabar coentrevista de uma vez por todas. Sem dúvida que estava a ser muito pressionado pelo

e pelas autoridades. O coitado deve ter amaldiçoado o dia em que o pai regressoulémen com uma noiva estrangeira para ele. Deve ter desejado muitas vezes ter cascom unia prima sua da aldeia, uma rapariga cuja família aprovasse o casamento e nãocriasse problemas. Mas o seu destino fora selado pelo seu pai e ele tinha de fazer o estava ao seu alcance para controlar a situação.Mesmo que tivesse querido ir para Inglaterra com a família, duvido que o pai o permitiNaquele instante, porém, não senti pena nenhuma dele. No que me dizia respeito, ele emarido da Nadia e era precisamente a pessoa que a impedia de ser livre.- Onde está o Marcus? - perguntei.- O avô não o deixou vir - respondeu um funcionário do governo, e lembrei-me do ódio etirania com que Abdul Khada e Gowad dominavam as suas famílias. Senti-me doente

tristeza pelo meu filho perdido.- Disseram que ia poder vê-lo! - Estava tão irritada que nem conseguia chorar. Disseque, se quisesse ficar com ele, podia pedir a custódia em tribunal.Os funcionários encolheram os ombros, trocaram olhares entre si e foi a custo esconderam os seus sorrisos divertidos.- É impossível fazer isso - disseram-me.Senti a raiva crescer dentro de mim. De certo modo, estava irritada comigo mesma poter deixado alimentar as minhas esperanças, por mais pequenas que fossem. Já desaber, por aquela altura, que os funcionários do governo dizem sempre, e apenas, o lhes convém em determinado momento, independentemente do país de onde venham.Pediram-me para esperar, juntamente com a Mãe, num quarto ali próximo, enquanto Je

Pierre terminava a entrevista. Havia uma fila de cadeiras, e quatro mulheres losentaram-se exactamente à nossa frente. Vinham cobertas com um véu, como a Nadisempre que eu ou a Mãe murmurávamos alguma coisa, elas esticavam-se para ouvir o dizíamos. Estas mulheres acompanharam-nos durante o resto da nossa estadia. podíamos ir sequer à casa de banho sem que uma delas nos escoltasse. O governo estava disposto a correr o menor risco. Faziam questão de nos mostrar que eram equem tinha as rédeas da situação.Finda a entrevista, o Mohammed aceitou, por entre resmungos, deixar a Nadia vir comigcom a Mãe no jipe, na viagem de dez minutos até ao hotel onde ficaríamos a descansarsair do lémen.Na privacidade do carro, enquanto percorríamos as ruas sujas e buliçosas, ela abriu-se

pouco e perguntou por alguns amigos de Inglaterra. Mostrámos-lhe fotografias tínhamos trazido connosco. Ela começou a chorar baixinho.- Gostava de voltar - sussurrou - e eles disseram-me que eu podia ir convosco, agora, mque teria de deixar os meus filhos. Não posso deixá-los. Não posso pôr as suas vidas perigo. Os homens não param de me ameaçar e de dar ordens sobre o que devo dizerquero que me deixem em paz.Chegámos ao hotel e deixaram-nos conversar durante uns minutos, mas o tempo que fora prometido a sós com a Nadia nunca chegou a acontecer. Ficaram todos junto de nquando o Mohammed se levantou e anunciou que estava na hora, ela ergueu-se e seguobedientemente, mantendo-se dois passos atrás dele.- Nadia! - chamou a Mãe. - Nadia, por favor!

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- Tenho de ir, Mãe - disse ela, e pude ver-lhe lágrimas nos olhos quando se afastou. Chaapareceu, de braços cruzados e com um sorriso irónico. A Mãe atirou-se a ele, enraivecid- Prometeu que ia deixar-me ver os meus netos - gritou ela.- Por que é que não vai à aldeia, Zana? - sugeriu ele, casualmente,- Não. - Fiquei petrificada de medo ao pensar em voltar àquele lugar, sabendo que nude lá sairíamos com vida. - Nunca!- Mas podia ir. - Chawki estava a fazer troça de nós. - Com a sua mãe. Tem algurn probleem relação a isso, Zana?

Fiquei louca de raiva e bombardeei-o com todos os insultos em árabe que me vieracabeça. Ele foi-se embora com o rabo entre as pernas, mudo. Vi a Nadia lá fora, a enpara o Land Rover. Corri para ela, incapaz de suportar a ideia de a deixar partir sem muma palavra.- Adoro-te, Nard! - gritei.Ela inclinou-se para me dar um beijo.- Adoro-vos a todos - disse, no seu. sotaque de Birmingliam. Apertei-a contra mim e sussurrou-me ao ouvido:- Zane, esqueceste-te de mim? Por favor, não te esqueças de mim. Prometeste que nuncfarias. Não me deixes aqui. Não por muito mais tempo, por favor! - Agarrou-me nos brae inspirou fundo para conter as lágrimas.

Nunca me hei-de esquecer de ti, Nard. Em breve vais estar em casa. Não fazes ideia do está a passar-se na Europa, mas eu vou conseguir tirar-te daqui. Não importa como, mvais sair do lémen.- Eu sei - respondeu ela. - Eu entendo.Conhece-me melhor que ninguém e sabe que não vou desistir até a ter de volta Inglaterra. E percebeu, nesse instante, que eu não a esquecera. Tudo o que ela dissantes fora com raiva e com as ideias confusas. Agora sabia que eu jamais a esqueceria.A equipa francesa estava profundamente chocada e desiludida com a maneira comencontro decorrera. Creio que todos tinham pensado que, mesmo que não conseguísselevar a Nadia connosco no avião, pelo menos nos dariam a garantia de que ela viria dende alguns dias ou semanas. Eu quisera acreditar no mesmo, mas no fundo do coração sa

que não iria ser assim tão fácil.No instante em que voltei ao lémen, no instante em que vi todos aqueles homens armaquando tive de ouvir o seu discurso falso, soube que não tencionavam entregar-noNadia. Talvez pudéssemos conversar com ela diante das câmaras, durante alguns minumas eles tinham-na em seu poder há anos. Podiam obrigá-la a dizer ou a fazer o quisessem. Podiam ameaçá-la com a perda dos filhos ou com espancamentos. Percebifundo do meu coração, que íamos precisar de muito mais tempo para tirar a Nadialémen.Não consegui conter-me e tive de lembrar ao resto do grupo que fora exactamente aqque eu previra. Chawki convidou-nos a todos para um «banquete» organizado em nohonra. A Mãe e eu dissemos-lhe para enfiar o banquete onde bem lhe apetecess

voltámos para o nosso quarto de hotel, para chorar em privado. Naquele instante, pareque não restava qualquer esperança.

«P OR Q UE E Q UE NA O P OSSO TER UMA VIDA COMO A S MINHAS IRMÃS?»

cria impossível viver sem esperança. Mesmo quando todos os meus sonhos destroçados por um qualquer percalço ou desilusão, uma pequenina semente de esperagermina de novo no fundo de mim, deitando raizes, regada pelas minhas lágrimas, e cre

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lentamente em substituição do que perdi. Cada nova esperança dá-me uma razão pcontinuar a lutar.Rodeada pelo entusiasmo de tanta publicidade, em Paris, eu deixara que as minexpectativas disparassem em flecha. Apesar de todas as suspeitas e reservas, uma pde mim começara a acreditar na possibilidade de existirem milagres. Perante isto, óbvio que mais cedo ou mais tarde voltaria à terra com um estrondoso baque. Permitirapensar que a ampla cobertura dos órgãos de comunicação social ia, de facto, marediferença. Afinal, tinham sido precisamente os media que, sob a forma do Observer, tinh

conseguido tirarme do lémen e chamar a atenção do público e das autoridades panossa causa.Sentia que, se conseguíssemos recrutar jornalistas suficientes para as nossas fileacabaríamos por vencer a batalha. Toda a gente fala do poder dos media e das pressque podem exercer sobre governos e instituições. Como poderíamos falhar, pensei, quadezenas de milhões de pessoas em toda a Europa estavam do meu lado? Como poderos governos britânico e iemenita não responder a tamanha força?Em Taez, longe da adrenalina e do entusiasmo de estúdios televisivos, aeroportoconferências de imprensa em hotéis de cinco estrelas, os nossos esforços tinham servde pouco, para além de irritar e envergonhar os iemenitas.Os homens que nos cercaram naquele triste jardim muralhado nunca tinham ouvido f

do Observer ou do Sacrée Soirée. Nada significava para eles que dezenas de milhõesde europeus tivessem lido ou ouvido a nossa história, e acreditado que estávamos atratadas injustamente. Sabiam apenas o que os seus próprios órgãos de comunicainformavam e o que o governo lhes contava. Tinham-lhes dito que a minha mãe etínhamos desrespeitado e feito troça das suas tradições. Viam em nós apenas dmulheres que só criavam problemas e que tentavam dificultar-lhes a vida, pondo em caa maneira como viviam desde sempre e desafiando o seu direito a disporem como bquisessem das mulheres das suas famílias. Embora tivéssemos conseguido mostrar-que não éramos tão destituídas de poder como julgavam, e que estávamos decididacontinuar a lutar, ainda tínhamos uma longa batalha pela frente.De regresso ao estúdios do Sacrée Soirée, em Paris, Chawki ostentava um ar de venced

A Nadia repetira, diante das câmaras, todas as frases que eles queriam que fossouvidas.- Como podem ver, tínhamos razão - gabou-se ele. - Basta ouvir o que ela disse.- Mas o público vira a dor nos olhos da Nadia exposta nos ecrãs e tomaram a vaiá-lo.O público sabia que a Nadia falara sob uma grande pressão. Se uma mulher é espancpelo marido, é provável que negue esse facto, mas os seus olhos não conseguem escona verdade. Ninguém que tenha visto os olhos da Nadia poderia acreditar que ela estivea ser sincera ao dizer que era feliz e que queria que a deixassem em paz com o seu «bomarido. E nunca, durante toda a entrevista, ela dissera que não queria voltar pInglaterra, limitara-se a afirmar que era «impossível», por causa «deles». O público frannão se deixou enganar. Compreendeu o que a Nadia queria dizer.

Mas Chawki, como um advogado tortuoso em tribunal, tinha um contra-argumento ptodas as questões que Jean-Pierre levantava. Desmentiu terem prometido levar as criana Taez para o nosso encontro. Declarou que elas estavam à nossa espera na aldeia e eu me recusara a ir até lá para as ver. Negou haver alguma coisa de estranho no factocrianças tão pequenas terem de ir à escola.Quando Jean-Pierre lhe perguntou se não lhe parecia mais importante para as crianverem a avó e a tia, depois de quatro anos de ausência, Chawki afirmou que nós tínhampassado o tempo todo a discutir umas com as outras e que a Nadia culpara a nossa mpor todos os problemas causados. Via nisto uma prova em como não éramos uma famunida e que, pelo contrário, a Nadia e o Mohammed é que eram verdadeiramente unidNós éramos duas arruaceiras, a tentar meter a colher entre marido e mulher.

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A discussão não passou daí. Chawki era uma serpente traiçoeira e o público começoficar irritado e agressivo em relação a ele, cada vez que ele abria a boca e sibilava uresposta evasiva ou uma meia-verdade.Ele não parou de dizer que a Nadia era uma mulher adulta e que tinha o direito de tomasuas próprias decisões, e que nós é que estávamos a obrigá-la a fazer algo que ela queria, como se fosse nossa intenção arrastá-la para Inglaterra pelos cabelos, contra a vontade.Os órgãos da imprensa francesa também não se deixaram levar pela conversa de Chaw

no dia seguinte mostravam a sua tristeza pelo que tinham visto através das câmaras. seus olhos, a Nadia continuava a ser uma garota retida à força, enquanto a sua vidaescapava por entre os dedos, numa roda imparável de trabalho e repressão. Todos tinhvisto os olhos escuros e trágicos a espreitarem por entre o véu, como se este fosse ugaiola que se transformara num porto de abrigo para o seu tímido ocupante, queescondia do mundo assustador que existia à sua volta.Uns meses depois, a minha irmã mais nova, a Ashia, viu o Pai por acaso, numa ruaBirmingliam. Suponho que ele fica satisfeito sempre que tem oportunidade de falar coutra pessoa da família, pois isso permite-lhe fazer-nos saber coisas quando nós própnão falamos com ele.Disse à Ashia que a Nadia era feliz, que estava novamente grávida e que recebera dez

libras do governo iemenita, como uma espécie de compensação por tudo o que estavacontecer. No lémen, essa quantia é exorbitante. Se realmente isto for verdade, mostra as consciências dos iemenitas devem tê-los atonnentado bastante.Mesmo que esse pagamento tenha sido efectuado, é claro que a Nadia nunca chegou aum tostão. Além disso, que podia ela fazer com dinheiro em Ashube? Não existem banonde o possa depositar. Não tem maneira de gerir ou gastar dinheiro. Os homens devter ficado com o tesouro e ponto final, ela nunca mais lhe pôs a vista em cima. Terá sesbanjado em longos jogos de cartas pela noite dentro. Terá servido para adquirir quadroga que eles mastigam o dia todo, ou eventualmente para comprar as filhas de maishomem qualquer.Quando Bemard Fixot telefonou à Mãe para saber como estávamos, ela disse-lhe o qu

Ashia descobrira. Bemard ficou espantado com as notícias e tratou de tudo para que euAshia fôssemos de novo convidadas para participar no Sacrée Soirée. Aceitei o conentusiasmada. Era como ir visitar velhos amigos. A ideia de tomar a aparecer em directotelevisão já não me incomodava. Jean-Pierre quis saber o que acontecera desde o último programa, Não queria acreditar não tínhamos avançado nem mais um passo em direcção à nossa meta.Desta vez, Chawki não foi convidado para participar, mas assim que começotransmissão em directo ele ligou para a estação, furibundo. Devia estar em casa a assao programa e certamente correu para o telefone, para se defender a si e ao seu quepaís.Suponho que terá pensado que íamos desistir e resignar-nos, depois da desilusão da v

a Taez. Deve ter ficado horrorizado ao ver que ainda continuávamos a lutar. De certeza foi a correr dizer aos superiores que conseguira resolver o assunto e agora ali estávamnós, kem plena televisão nacional, a mostrar que ele não passava de um mentiroso.A meio do programa apareceu nos estúdios, ofegando e resfolegando da correria, prefutar as nossas afirmações. Embrenhámo-nos de novo na mesma disputa infindável.vinha a transbordar de indignação, dizendo que devíamos agradecer ao governo iemepor me ter tirado a mim e à Nadia das aldeias, assim que soubera do caso, e por metrazido para Inglaterra quando pedi para partir.Disse que fora o responsável pelo nosso encontro no jardim de Taez e que estávamos aumas ingratas. Eram as mesmíssimas palavras hediondas e mesquinhas que já ouvíram

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antes, mas desta vez ele tivera menos tempo para preparar o seu discurso e tomouainda mais óbvio, para o público, que ele era o mau da fita.Chawki não mudara absolutamente nada de atitude. Declarou que devíamos pararvender o livro, pois andávamos a envenenar as mentes das pessoas, e o governo iemetinha coisas mais importantes para fazer do que preocupar-se cormosco. Deu a impresde que éramos umas arruaceiras e que estávamos única e exclusivamente a tentar fadinheiro às custas do infortúnio da Nadia. O público mostrou-se mais antagónico nunca, mas eu sabia que não isso não faria diferença nenhuma e não me permiti

demasiadas expectativas. Estava pronta para enfrentar uma longa caminhada e decididmanter um ritmo mais calmo.Se algo de bom adveio da nossa luta e de tanta publicidade, foi que o Pai e os seus amnão puderam levar a Ashia, a Tina e o Mo para o lémen, apesar de no início ameaçarraptá-los e mandá-los para lá à força. Tanto a Ashia como a Tina tinham constituído família em Birmingham. A Tina tinha dfilhos e a Ashia estava grávida do segundo. As suas vidas eram exactamente como edesejavam, livres e tranquilas. Os seus companheiros eram homens de bom coração, tratavam delas e as respeitavam. Se a Nadia estivesse junto de nós, teria sido a épmais feliz da nossa família, com a Mãe a ser presenteada com netos e mais netos.Eu vivia confortavelmente no meu apartamento, podendo dar ao Liam tudo o que

própria nunca tivera em criança. Sentia-me satisfeita com o que tinha. Éramos uma fampequenina e unida, eu e o Liam.Eu e o pai do Liam, o Jimmy, seguimos caminhos diferentes. Continuávamos a ser granamigos e eu e o meu filho víamo-lo e à sua família com bastante frequencia, mas o Jinchegara à conclusão de que era demasiado penoso viver comigo. Confesso que eu muito instável e dificil. Quando voltei do lémen, estava psicologicamente tão perturbque me era praticamente impossível sustentar uma relação fosse com quem fosse. Amtínhamos mudado muito durante os oito anos em que estivéramos longe um do outro.Eu estava tão embrenhada na minha própria dor e caos emocional, que me sedemasiado vazia para conseguir dar amor a outra pessoa, a um companheiro. Era incade imaginar o que ele estaria a sofrer. Precisávamos ambos de atenção, mas nenhum

dois se sentia suficientemente forte para cuidar do outro.O Jimmy fora sempre um grande amigo meu e, durante os anos que passei no lémen coNadia, andou sempre com uma fotografia minha na carteira. Mas, a cada dia passávamos juntos em Inglaterra, percebíamos que estávamos a afastar-nos lentameQueríamos continuar amigos, e eu queria que ele fizesse parte da vida do Liam, por decidimos separar-nos, mas manter a nossa relação de amizade.Quando o Liam fez dois anos, o Jimmy quis que fôssemos todos a St. Kitts, no ano seguipassar umas férias prolongadas com a família dele. Assim, o Liam ficaria a conhecer mamigos do pai e ao mesmo tempo desfrutaríamos de umas férias maravilhosas. Pareceuuma excelente ideia e como tal comprámos as passagens. Comecei a ter vontade de goumas semanas nas Caraffias com o meu filho e a família do Jimmy.

Nessa época eu andava a sair muito com o Paul, que fazia parte do nosso círculoamizades. A família dele também era de St. Kitts. Nove meses antes da partida prevpara férias, fiquei grávida da Cyan. Quando soube e percebi que as datas iam sobrepodecidi não ir.Estava a ter problemas com as minhas gravidezes. Quer antes, quer depois do Liam nassofri vários abortos espontâneos, nove, ao todo. Os médicos disseram-me que se deviafacto de ter as paredes do útero fragilizadas, mas continuo a achar que foi por causacorte que me fizeram no lémen, sem qualquer tipo de anestesia. Por vezes, penso por será que andei a torturar o meu corpo durante tanto tempo para conseguir engravidaúnica explicação que me vem à mente é que eu estava destinada a dar à luz os filhos hoje tenho.

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Dois anos após o nascimento da Cyan, fui ao médico fazer uma esterilização. Pareciauma atitude sensata, pois tinha então um filho no lémen e dois em Birmingham. Mas adentro de mim dizia-me que era errado. Senti-me dividida ao meio.Anunciei ao médico que mudara de ideias. Não conseguia explicar porquê, mas não parecia uma decisão sensata. Ele ficou furioso. Disse-me que o tinha feito perder temproubado uma consulta a outra pessoa que necessitava dela bem mais do que eu. Limme a virar costas e a ir embora. Sabia que era a atitude certa a tomar. Em breve descque estava novamente grávida, desta vez do Mark. Já estava grávida no dia em que fo

consulta, embora não o soubesse. Creio que era por isso que o meu corpo me estavdizer para não fazer a operação. Graças a Deus que a não fiz, porque o Mark é uma alepara mim... <, apesar de ser o filho mais maroto que já tive até agora!Quando descobri que estava grávida da Cyan, já perdera dois pares de gémeos, e entinformaram-me que ia dar à luz um terceiro casal. Uma vez mais, comecei a dar sinaisaborto espontâneo, mas perdi apenas um dos bebés. O outro continuou a desenvolveno ” meu ventre até ao final da gravidez.O nascimento da Cyan, a minha bebé-milagre, estava previsto para Novembro, a data pque estavam marcadas as nossas férias, mas eu queria que o Liam desfrutasse dessaexperiência, apesar de eu não poder ir. Seria óptimo para ele passar uns tempos com oe ver o país dele.

Nos recessos mais recônditos da minha alma, escutei gritos de alarme. E se o Jimdecidisse manter Liam em St. Kitts? E se a história se repetisse? Estaria eu a ser insensao , concordar com a viagem?Decidi calar essas vozes interiores. Conhecia o Jiminy e a sua família há vinte anoconfiava inteiramente neles. Eram-me quase tão chegados como a minha própria famíli Jiminy não era como o meu pai e os seus amiguinhos. E de qualquer forma eles iam paraCaraibas, não para o Médio Oriente.Quando o Liam e o Jimmy partiram de férias, eu estava prestes a entrar em trabalhoparto, o que me poupou a quaisquer preocupações que me pudessem assaltar. Dias depdei à luz a Cyan.O parto foi fácil. Tal como no do Liam, recusei-me a levar a cpidural, porque achava que

a Nadia não tinha direito a isso, eu também não. Chegara igualmente à conclusão de os partos naturais são a melhor maneira de pôr filhos no mundo, sempre que possível epresença de médicos qualificados e munidos de equipamento moderno, para o casosurgirem complicações.O Liam ia ficar em St. Kitts durante seis semanas, o que constituiu para mimoportunidade perfeita (mais ou menos quarenta dias, como manda a tradição no lémenpassar uns momentos tranquilos com o meu novo bebé. Foi um período maravilhoso. Fcom o Liam ao telefone quase todos os dias, o que me custou uma conta de quatrocenlibras. Percebia, pelo seu tom de voz, que ele estava a divertir-se imenso.Valeu a pena pagar uma conta de telefone tão exorbitante só para conseguir aliviaminhas preocupações em relação ao Liam e poder desfrutar da Cyan ao máximo. Ass

quando o meu filho voltou para casa com um bronzeado intenso, eu sentia-me frescrenascida. Nessa altura já a Cyan esboçava uns sorrisos e eu era capaz de me mexer sdores. Tinha consciência da sorte que era ter o meu bebé numa sociedade livre, especialmelembrando-me das condições em que o Marcus nascera e em que continuavam a nastodos os filhos da Nadia. Por vezes dava comigo a transbordar de felicidade por podesfrutar dos confortos do meu pequenino apartamento T2 e dos meus filhos, por dispodinheiro suficiente para lhes comprar aquilo de que necessitavam e por estar rodeadatodos os meus amigos e família.Mas de repente, sempre que começava a descontrair-me um pouco, era assolada por uonda de culpa por causa da Nadia e do Marcus, que ficara sem a mãe quando

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pequenino. Como é que eu podia ser tão feliz com o Liam e a Cyan, quando o Marcus deter sofrido tanto depois de eu o ter deixado?Agora ele era quase um homem, aos olhos dos lemenitas, e eu sabia que não o tereconhecido se o visse entrar na sala. Não via fotografias dele desde que saíra do paíúnica recordação que tinha dele era de uma criança de dois anos, com um ar desampare triste.Continuei a sentir profundas mudanças de humor, mas tive sempre o cuidado de chorar à frente dos miúdos. Não queria que crescessem a pensar que a mãe passa

infância deles lavada em lágrimas. A minha própria mãe dera-me um bom exempseguir. Embora tenha perfeita consciência de que o Pai a enfernizara a vida toda, quaéramos pequenos ela nunca nos deu a entender que se passava alguma coisa de erraAssumia sempre um ar forte e, como tal, conseguiu criar um grupo de pessoas com ugrande autoconfiança. O facto de a nossa família ser tão infeliz no seu âmago deve-sforças externas, nada tem a ver com o comportamento da Mãe. Gostaria que um diameus filhos pudessem dizer o mesmo de mim.Dadas as circunstâncias, a Mãe andava demasiado distraída, preocupada e irritada pdesfrutar dos netos como teria feito noutra situação. Era-lhe impossível sentir-se benquanto um dos seus filhos lhe fora arrancado dos braços e necessitava de ajuda. Tonós nos apercebíamos de como isso estava a afectar-lhe a saúde, que nunca

particularmente forte. Começou a sofrer de agorafobia e raramente saía de casa, mas nassim desistia da sua luta aguerrida para trazer a Nadia para Inglaterra.Estava constantemente a procurar novos caminhos, a telefonar e a fazer contactos, a retudo o que acontecera desde 198O com quem estivesse disposto a escutá-la, em buscauma explicação que justificasse por que é que as coisas tinham corrido tão mal, rezapor descobrir uma aberta no céu nublado.Durante as suas investigações conhecera uma mulher chamada Jana Wain, através de uorganização, a Reunite, que dava apoio a mães que tivessem perdido os filhos.A Mãe e a Jana estabeleceram entre si um profundo laço de amizade. A minha mcomeçou a sair e a passear com a amiga, superando a sua fobia, algo que pensávamos não teria forças para fazer. A Jana dizia que essas saídas tinham como objec

«estabelecer redes» e era óptimo para a Mãe saber que havia tantas outras pessoasmesma situação. Sentia-se segura na companhia da Jana. Sabia que ela estaria ao lado, acontecesse o que acontecesse, e que estava tão empenhada como nós em salvNadia.Uns meses depois da viagem a Taez com a equipa de filmagens francesa, a Mãe deixou-chocados com a notícia de que tencionava voltar ao lémeri para visitar a Nadia com mcalma. Desta vez não queria ir com os órgãos de comunicação social. Não queria faondas. Pretendia única e exclusivamente apresentar-se como uma mãe de visita à filhaos netos.Ficara horrorizada ao saber que a Nadia estava novamente grávida e queria estar lá paajudar quando o bebé nascesse. Sabia que não podia ir sozinha e queria arranjar

homem que a acompanhasse. Um homem imporia respeito, quer perante os iemeniquer junto dos funcionários da Embaixada Britânica. E também ofereceria uma cprotecção fisica à Mãe, caso fosse necessário.Abordou vários amigos do sexo masculino e alguns disseram que teriam todo o gosto acompanhá-la, mas tinham empregos que os prendiam e não podiam partir sem avisapatrões com a devida antecedência. A Mãe sentia que não podia esperar. Estpreocupadíssima com a Nadia e não sabia para quando era o nascimento do bebé. Ntelefonema desesperado, desabafou as suas inquietações com a Jana, que se ofereceu pir com ela ao lémen. Embora a Mãe detestasse a ideia de tirar partido de uma amizadeboa, não viu alternativa para o seu problema e aceitou a proposta.

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Quando soube o que tencionavam fazer, tremi de medo por elas e, no fim, os meus recmostraram-se fundados. A Mãe disse-me que queria falar com a Nadia sem a pressão órgãos de comunicação social, passar uns tempos com ela e tentar descobrir o que a miirmã realmente queria, para poder arranjar maneira de o concretizar. Acima de tudo, a Mqueria ajudar a Nadia, tomando conta dos miúdos enquanto ela se preparava para dluz.- A Jana disse que vai viajar comigo - contou-me a Mãe. - Fomos à embaixada e tratámdos vistos e de tudo o mais. Nem imaginas o que disseram à Jana, quando ela lhes ligou

primeira vez. Falou com um funcionario superior do Ministério dos Negócios Estrangeiroele disse que a opinião do ministério era que devíamos deixar a Nadia em paz, que injusto continuar a incomodá-la, a ela e aos filhos, só para me agradar a mim! Ele dis«Trata-se de um assunto entre marido e mulher. A nossa posição neste caso foi semmuito clara: é um problema de família».A Jana ficou chocada ao saber que os funcionários britânicos encaravam o caso da mesmaneira que Chawki e os seus colegas iemenitas, embora lhe tivéssemos dito que precisamente esse tipo de atitude que se nos havia deparado desde o início. No entantoisso serviu para alguma coisa foi para fazer a Jana sentir-se ainda mais determinada ajudar a Mãe. Nenhuma das duas ia permitir que alguém as afastasse do seu caminho.a Mãe tivesse desistido cada vez que lhe diziam que era uma perda de tempo, eu ai

estaria a viver no lémen, e nem eu nem a Nadia teríamos recebido notícias dela de1980.)O Ministério dos Negócios Estrangeiros tomara, à partida, a decisão de não interferircaso, enquanto ainda éramos apenas duas crianças britânicas, uma das quais deveria, lei, estar a frequentar a escola em Inglaterra. À medida que os anos foram passando problema se tomou mais complicado, o ministério assumiu uma posição cada vez mdura contra nós. Ao que parecia, não passávamos de um incómodo para eles.Assim que obtiveram os vistos, a Mãe pegou numa mala e ajudámo-la a enchê-la cprendas para a Nadia: o seu queijo preferido, pacotes de batatas fritas com sabor a cebembalagens de Toffos, latas de sopa de tomate, tudo coisas que sabíamos que ela adorquando vivia em Inglaterra e que não provava há anos. Incluímos também alguns livros

inglês, para manter a língua viva na sua memória, embora já tivesse poucas oportunidade a praticar. Reunimos um conjunto de fotografias dos amigos e família, para lhe mosque ninguem a esquecera e que jamais a abandonaríamos, apesar de os mecontinuarem a passar lentamente sem que nada acontecesse. Comprámos brinquedos pos miúdos e para o Mareus.Antes de a Mãe partir, sentei-me, de gravador em punho, e gravei uma cassete paNadia. Expliquei ao pormenor tudo o que se estava a passar. É difícil falar para umáquina quando a pessoa a quem nos dirigimos está longe e não podemos adivinhar qserá a sua reacção ao ouvir o que temos para lhe dizer. Tentei adiantar-me a todqualquer pergunta que ela quisesse fazer-me se estivéssemos cara a cara, mas de certque deixei muitas lacunas por preencher e falei demasiado sobre assuntos que não

interessavam.À medida que se aproximava o dia da partida, avolumavam-se os meus receios psegurança da Mãe. Sabia que ela correria perigo de vida desde o instante em que saísseaeroporto, mas depositava uma grande fé na Jana. Era uma mulher forte e inteligeConseguia sempre acalmar a Mãe e evitava, muitas vezes, que ela agisse de manimpulsiva e precipitada. Se havia alguma mulher no mUndo capaz de proteger a mimãe, essa mulher era a Jana. No fim, viemos a saber que nem a Jana poderia ter protega Mãe do que estava para acontecer...A Mãe sabia no que se ia meter, pois já fora ao lémen varias vezes quando andava a tentirar-nos de lá. Mas a Jana não fazia ideia do que esperar. Estava convencida de que poder visitar a Nadia e passar uns momentos agradáveis na companhia dela.

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compreendia que iriam estar sempre rodeadas de homens armados, ou que iriam esbaem ` mentiras a cada virar de esquina, vindas de todas as pessoas com quem falassNão imaginava que ouviriam promessas sem fim e que, umas horas mais tarde, estasdesvaneceriam no ar; que as reuniões marcadas seriam adiadas ad infinitum; quehomens as receberiam com um sorriso enquanto planeavam humilhá-las e derrubá-las.Apesar de a Jana ter ouvido a opinião de um funcionário do Ministério dos NegóEstrangeiros na Grã-Bretanha, continuava a pensar que, assim que ela e a Mãe chegasao lémen, a Embaixada Britânica as ajudaria. Tentei abrir-lhe os olhos o melhor que pu

segura de que a corrupção se encontra presente em todos os caminhos da vida. Teprepará-la para os dias e semanas que de certeza iria passar junto de um telefoneespera de receber chamadas que jamais seriam feitas, e para as garantias que todgente lhes daria e que, tempos depois, não se concretizariam. Tentei explicar que, seuma mulher ocidental, não poderia passear livremente pelas ruas de Taez, que se senameaçada e desprezada aonde quer que fosse, e que acabaria por preferir ficar no quade hotel a ter de enfrentar mais comentários de despeito ou gritos insultuosos em lugapúblicos.Desconfio de que se cansou do meu pessimismo, e a minha esperança era que ela pudeprovar-me, no regresso, que os meus receios não tinham fundamento. Toda a nossa família se sentia grata à Jana pelo apoio que estava a dar à Mãe. Mais ninguém

empenhara tanto, e com motivos tão altruístas, na nossa causa.Finalmente, chegou o dia da partida. Dei um grande abraço à minha mãe quando despedimos, com medo de nunca mais tomar a vê-Ia. Eu oscilava entre a vontade de da mim mesma para parar de ser tão melodramática e a certeza de que as pessdesaparecem constantemente no lémen, sem que nunca mais se ouça falar delas.Depois de partirem, tentei manter-me em contacto regular com elas através do telefoEra extremamente difícil estabelecer ligação e a minha conta telefónica tomoassustadora. As linhas eram más, mas, como se isso não bastasse, a Jana e a Mãe tivede mudar de hotel várias vezes porque andavam a ser seguidas e ameaçadas. Aonde qque estivessem, as minhas mensagens pareciam nunca conseguir chegar até elas.Sempre que tinha dificuldade em falar com uma delas, o pânico apoderava-se de mim.

Convencia-me de que tinham sido assassinadas, ou raptadas e levadas para as montanQuando, por fim, as encontrava, a Mãe mostrava-se pouco comunicativa. Dizia quetelefones estavam sob escuta e provavelmente tinha toda a razão. Muitas vezes ouviamvozes masculinas a falar em árabe, ao fundo, e os estalidos na linha eram constantesqueria saber o que se estava a passar, mas percebia que não era conveniente interrogMãe ao telefone. Bastava-me a certeza de que tinham sobrevivido a mais um dia.Só muito mais tarde descobri o que realmente acontecera. A partir do instante em aterraram em Sanaa, as coisas começaram a correr mal. Parecia que toda a gente sademasiado sobre o nosso caso, como se lhes tivessem pedido para manter a Jana e a Mdebaixo de olho.Eu podia imaginar o impacto que a Jana estaria a causar nos homens. É uma mulher m

alta, de cabelos arruivados. Daria nas vistas onde quer que fosse, por entre a multidãomulheres cobertas de negro. Atraía precisamente o tipo de atenções masculinas contraquais eu a alertara. Uns dias depois, a Mãe confessou-me que tinham decidido usar véuvestidos compridos, para se fundirem na turba. Ri-me ao imaginá-las a envergarem esvestimentas. Sabia que, independentemente do que usasse, a Jana continuaria a ser malta do que a maior parte das outras mulheres, e por isso seria muito fácil descobrironde andavam.Quando liguei, uns dias mais tarde, percebi que algo de terrível acontecera. A Mãe falde uma maneira estranha, como se estivesse profundamente assustada. Insisti para me desse uma ideia do que se passara.

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- Eu disse ao Jimmy [um motorista de táxi que se colara a elas como uma lapa] que quir a Ashube - explicou-me ela. - Ele avisou que iamos precisar de um mapa e parou nuloja. Entrou durante uns instantes, deixando-nos no táxi. Depois veio cá fora e chamou-nDisse que não conseguia encontrar Ashube no mapa. A loja estava cheia de homarmados, Zana. De repente o Jimmy gritou o meu nome e apareceram mais tipos do lde fora.O meu coração batia desenfreado, enquanto escutava a história. No fim, estavam cercacinquenta homens no local e começaram a tomar-se extremamente agressivos. Todos

conheciam a história das «tristes irmãs de Maqbana» e pareciam julgar que a Mãe foralémen para raptar a Nadia. Disseram-lhe que ela era má e que estavam prontos a atacáPrecipitaram-se para a frente, encurralando-a, dando-lhe empurrões e gritando ameaçasA Mãe e a Jana perceberam que as suas vidas estavam em perigo e abriram caminho entre a multidão, fugindo da loja em direcção ao carro de Jimmy, que estava estacionadporta. Jimmy seguiu-as, subindo rapidamente para o lugar do condutor. Talvez tambémtenha ficado surpreendido com a agressividade da turba e não quisesse realmente quMãe ou a Jana se magoassem enquanto estivessem ao seu cuidado.O cheiro do medo despertou os instintos predadores da multidão, que se tomou cada mais enraivecida. Gritaram e berraram insultos, movendo-se em círculos à voltaautomóvel, impedindo-o de avançar.

Assim que a Mãe e a Jana trancaram as portas de trás, os homens começaram a abanaMercedes, proferindo ameaças de morte iradas, com os rostos colados às janelas, passafacas pelo pescoço para mostrar o que aconteceria à Mãe se ela insistisse em ver a Narosnando e uivando, as bocas horrendas cheias de dentes manchados de quat.Agora, Jinuny estava a entrar em pânico. Os atacantes treparam para o tejadilho, pamala e para o capô do carro. Quando pôde finalmente ligar o motor e tentou arrancar,deles abriu de rompante a porta do lugar do passageiro e entrou para o automóvel. Jimlutou com ele, enquanto o carro ganhava velocidade, segurando o volante com a mão tinha livre. Por fim lá conseguiu empurrar o homem para a estrada e pôr-se em fuga, anque mais alguém tivesse tempo de os apanhar.Eu estava a ouvir recontar os meus piores pesadelos.

- Querem que saibas que não és bem-vinda no lémen - disse eu à Mãe,- Eu sei disso perfeitamente, Zana. - Percebi que ela chorava. - Achas que já não sei?- Não vás a Maqbana, Mãe - supliquei. - Eles matam-te, se tentares ir. Assim que saírecidade, podem fazer de ti o que quiserem. Deve haver milhares de homens dispostoeliminar-te de bom grado.Roguei-lhe que voltasse para casa, mas era impossível convencê-la. Fora ao lémen veNadia e não tencionava mudar de planos só porque os outros assim o queriam, por massustada que pudesse sentir-se. Todos sabíamos que a Nadia estava prestes a dar à luz e eu conseguia compreenddeterminação da Mãe em ir ter com ela para a ajudar. Eu sentia o mesmo impudesesperado de correr para lá, para proteger a minha irmãzinha do perigo, mas sabia

nada podia fazer. Enquanto houvesse uma possibilidade de a Mãe conseguir fazer algo pajudar a Nadia, eu teria de a apoiar. Sabia que, com ou sem o meu apoio, ela tencionava mudar de ideias por essa altura dos acontecimentos.Sabíamos ambas, graças à minha própria experiência, como nas aldeias os partos eprimitivos, arriscados e dolorosos. Sabíamos, também, que a Nadia fora aconselhada pmédicos a não ter mais filhos. Só de pensar nos riscos inerentes a esse parto queaproximava a passos largos, sentia calafrios.Os problemas começaram quando a Nadia deu à luz a Tina. Era um bebé enorme, com ucabeça grande coberta por uma cabeleira escura. As mulheres da aldeia tinham tenttirar a criança através de métodos naturais, mas acabaram por perceber que a Tina estentalada. Havia uma navalha que as mulheres guardavam para fazer as circuncisões, q

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a rapazes, quer a raparigas. Nunca a esterilizavam; limitavam-se a colocá-la num fraentre cada utilização. Quando compreenderam que tanto a Nadia como a Tina podmorrer no parto se não agissem rapidamente, pegaram na lâmina por esterilizar e fizeum longo corte, que permitiu a passagem do bebé. Não tinham meios de desinfectaferida, pelo que esta nunca cicatrizou devidamente. O marido da Nadia, porém, continuocobrar os seus direitos conjugais e a engravidá-la. O seu fardo de trabalho diário tomavacada vez mais pesado, à medida que a família ia aumentando.Para mim e para a Mãe era insuportável pensar que a coitada da Nadia estava a pas

novamente por tamanha provação, correndo o risco de perder a vida, sem nenhum seus entes queridos por perto para a ajudar. Pelo menos a Mãe encontrava-se no lémEstava a fazer alguma coisa, enquanto eu me sentia impotente, tomada pelo medonunca mais as ver. Contraí alopecia. O meu cabelo começou a cair às mãos cheias, maltocava. Pensava nelas as duas a cada minuto que passava. Se por acaso conseguia dorà noite, tinha pesadelos horríveis, sem nunca saber ao certo se estava acordada ou nãoSabia que nenhum homem seria capaz de impedir a Mãe de tentar ver a filha. Qualqpessoa que já tenha visto uma leoa a proteger as suas crias sabe que uma mãe, nescircunstâncias, é uma força poderosíssima. Agora eu tinha de pensar no Liam e o mdever era protegê-lo. Isso significava que não podia ir ao lémen e arriscar a minha vmesmo que conseguisse arranjar coragem para o fazer. Não via uma solução diante

mim.O pessoal da Embaixada Britânica e o Governador de Taez acrescentaram os seus avaos que a Mãe ouvira de mim, mas por essa altura já eles a conheciam suficientemebem para saberem que não faria caso das suas palavras de alerta.Nos bastidores, os diplomatas britânicos deviam andar em conversaçoes com os iemendizendo-lhes que a Mãe estava decidida a ver a Nadia e que provavelmente só iria embquando o tivesse feito. Os iemenitas devem ter percebido que ela jamais aceitaria um e que, se organizassem um encontro para a apaziguar, tinham mais hipóteses de consemetê-la num avião de regresso a Inglaterra. Disseram à Mãe que levariam a Nadia a Ta juntamente com o Mohammed e os miúdos, para uma reunião de família.Quando a Nadia chegou, trazia a Tina e o Haney, mas não os dois filhos mais pequen

 Tentei ligar à Mãe umas quantas vezes, para saber o que se passava. Não suportava etão longe delas, sabendo que se encontravam juntas. Finalmente, lá consegui falar coMãe e pude dizer-lhe que as coisas não tinham corrido bem. A sua voz era tristdesanimada. Parecia exausta. Disse-me que o ambiente estivera envenenado desdinício. A Nadia, que estava obviamente cansada, doente e a ser pressionada por todgente à sua volta, ficara desconfiada perante a presença da Jana, pensando que se tratde mais uma jornalista disposta a levantar ainda mais problemas.Do ponto de vista da Nadia, sempre que a Mãe ou eu conseguíamos obter algupublicidade fora do lémen, ela era atormentada pelos homens que faziam parte da vida. Embora soubesse que tudo o que fazíamos era para o seu próprio bem, devetemido as consequências de cada vez que conseguíamos atrair a atenção dos órgãos

comunicação social para a sua história. Quanto mais pressionávamos os iemenitas, meles a pressionavam a ela. Como nunca vira a Jana antes, imaginara imediatamente o pi- Quando a Nard apareceu - explicou a Mãe -, Faisal vinha a reboque. - Faisal ” Abdul Aera o assistente todo falinhas mansas do Governador de Taez. A sua tarefa eraclaramente, resolver o assunto o mais depressa possível. - Trouxe um grupo de homeannados - prosseguiu. - Uns porcos nojentos. Comeram os doces todos que tínhamlevado para os miúdos e que estavam em cima da cama.Consegui imaginar perfeitamente a cena. Eu própria tivera de lidar com homens coesses, na época em que lá estivera. Faisal devia ter o mesmo comportamento arrogaque Chawki mostrara em Paris. Não estava limitado, porém, pelos mesmos factores quimpunham sobre Chawki, rodeado de câmaras de televisão e de jornalistas. Faisal sentir

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ia « livre de mandar, humilhar e troçar à vontade. No fim de contas, estava simplesmenlidar , com mulheres e, ainda por cima, mulheres estrangeiras. Senti-me furiosimpotente ao ,’ mesmo tempo. Nem sequer podia chegar perto do fulano para lhe dizeque pensava dele.- Não podíamos falar de coisas pessoais com a Nadia, com tanta gente no quarto explicoMãe. - Por isso a Jana disse aos homens que queria trocar de roupa e mandouf -os sair.Ri-me. Sabia que os homens árabes teriam dificuldade em lidar com uma mulhercabelos cor de fogo, que era mais alta do que a maior parte deles e que não se mostr

intimidada.- E eles saíram? - perguntei. Sim.- E depois que aconteceu?- A Nard tirou o véu e pudemos descontrair-nos durante uns minutos. Pude observá-la cmuito mais atenção do que quando viemos com os franceses. Está tão velha, Zana.Ouvi a voz da Mãe a falhar, quando falou da filha. - Tem a pele completamente curtida psol e marcada de bexigas. Parece couro.Se uma pessoa trabalhar todos os dias sob um sol escaldante, ou junto do calor intensoum fomo a lenha, o seu corpo acabará forçosamente por mudar. Se a dieta for estémonótona, e o sono nunca for suficiente, a pele envelhecerá duas vezes mais depressaique a de alguém que não tenha de passar por essas provações.

Eram os olhos da Nadia, porém, que contavam como a sua vida tinha sido durafotografias tiradas no jardim muralhado de Taez tinham percorrido o mundo inteiro e essa f.imagem dos olhos tristes da Nadia, a espreitarem por entre o véu, que causavimpacto mais profundo em quem a via. Em muitos países, incluindo a Grã-Bretanhaeditores de Vendidas! deitaram fora as capas das tiragens existentes e fizeram uma ncom essa foto devastadora.A Mãe mostrou à Nadia fotografias de todos nós, que tínhamos posto na mala para ela Mais tarde, a Jana contou-me que os olhos da Nadia estavam rasos de água, enquantoas fotos uma a uma, observando os rostos felizes e sorridentes das pessoas captadas pobjectiva.- Por que é que não posso ter uma vida como as minhas irmãs? - perguntou. Nem a J

nem a Mãe souberam o que responder-lhe.Os rostos dos seus irmãos e irmãs devem ter-lhe parecido estranhos, adultos que elapela primeira vez e que apresentavam vagas semelhanças com as crianças que ela deixpara trás, em 198O. Além do Mo, que ela vira quando ele fora ao lémen com a Mãe, dede termos estado ausentes durantes seis anos, nunca mais vira nenhum deles desde partira para o que julgava serem duas semanas de férias no Iérnen. Já lá vão quase vinte anos desde que as minhas três irmãs mais novas se viram. Todas se esforçam por preservar lembranças umas das outras, que devem estar a desvanecee a alterar-se com o passar do tempo. A Nadia tem, certamente, dificuldade em imagcomo são as vidas da Ashia e da Tina em Inglaterra, tal como elas não conseguconceber os árduos e monótonos dias da Nadia no lémen.

Eu e a Mãe nunca pusemos a Ashia ou a Tina à margem do que se estava a passar, masmesmo tempo tentámos poupá-las ao sofrimento o máximo possível. Para quê deixáinfelizes como nós, se não há qualquer beneficio nisso? Sofreram, porque nós sofremmas conseguiram levar vidas normais, ao estilo ocidental, tiveram filhos de homens elas próprias escolheram e vivem onde querem.Vivemos perto umas das outras, em Birmingliam, e encontramo-nos frequentementenossos filhos dão-se muito bem com todos os seus primos ingleses, mas nenhum conseimaginar como são os seus primos iemenitas da aldeia de Asímbe. São dois mundoparte, ligados apenas por um punhado de fotografias que circulam de um lado para o ouentre nós, nas nossas viagens repletas de dor.

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- Por que é que não vens agora cormosco para a embaixada? - perguntou a Mãe à Nano dia em que estiveram juntas no quarto de hotel. - Tratamos-te do passaporte e podevoltar para Inglaterra conosco.- O problema não sou eu, Mãe - disse a Nadia. - São eles. - Apontou para a porta e parahomens que esperavam do lado de fora, para a levar.Ao fim de meia hora, quando lhes parecia que a conversa só então estava a começaMohammed pôs a cabeça no umbral e disse em árabe:- Vamos, cabra!

A Nadia pegou silenciosamente nos miúdos e saiu do quarto com ele.Quando a Mãe me disse aquela palavra, percebi como devia ser a relação entre a NadiaMohammed. Era fácil imaginá-la ansiosa, à espera que ele partisse em longas viagens estrangeiro, em busca de emprego, e como devia recear o seu regresso a casa. Viainsultá-la e rebaixá-la diante das crianças e sabia que ela devia ter aprendido a calar toos seus sentimentos para impedir que os insultos dele atingissem a sua alma dorida.Apesar de a Nadia ter sido levada antes da hora combinada, a Mãe e a Jana sentiam-sepouco mais optimistas depois de saberem que ela ia ficar na cidade. Embora só tivesspassado meia hora com ela naquele dia, talvez pudessem vê-Ia em breve por mais temassim que os homens estivessem menos nervosos e baixassem as defesas. Quativessem a certeza de que a Jana era apenas uma amiga, e não jornalista, qua

aceitassem que a Nadia queria simplesmente desfrutar da companhia da mãe, tapermitissem que elas passassem umas horas juntas. Talvez o Mohammed até visse numa maneira de manter a Nadia e os miúdos entretidos, enquanto ele aproveitava a vsocial da cidade. Nas semanas seguintes, talvez conseguissem estabelecer um suficientemente forte com a Nadia para ela se sentir menos amedrontada e mais disposconsiderar a hipótese de partir.Pensaram que talvez conseguissem, também, mantê-la em Taez até ao nascimentobebé, o que significava que poderiam utilizar as instalações do hospital. Se assim fosmédicos experientes e parteiras poderiam ver o ferimento provocado pelo parto da Tinajudá-la a aliviar a dor. Embora tenham ficado irritadas por o encontro ter sido brutalmeinterrompido, e pela constante interferência de Faisal e Mohammed, sentiam que tinh

dado um passo em frente. Ao telefone a Mãe não me disse ao certo quais eram os splanos. Sabia que a nossa conversa estava sob escuta. Mas, pelas coisas que me disadivinhei o que tencionava fazer e rezei para que tudo acontecesse como ela queria.Pouco depois as nossas esperanças caíram por terra. No dia seguinte, depois de teesperado, em vão, que a Nadia fosse novamente levada ao hotel, disseram-lhes quevoltara para aldeia.Sempre que telefonava à minha mãe, ouvia mais histórias de encontros marcadoadiados, promessas feitas e quebradas. Comecei a entrar em desespero. Toconhecimento de tudo isso, em telefonemas de longa distância, fazia-me ver que nmudara no lémen. Fui assolada pela certeza de que, no fim, a viagem seria absolutameinútil. A Mãe e a Jana agarravam-se a qualquer esperança que lhes fosse dada, apesa

estarem constantemente a ser desiludidas pelo desenrolar dos acontecimentos. E duratodo esse tempo não conseguíamos esquecer que os dias estavam a painexoravelmente, aproximando-se a data do nascimento do novo bebé da Nadia.Por fim, a Mãe foi informada de que a Nadia não podia sair da aldeia e voltar para Taez, causa de problemas de saúde. A Mãe deixou bem claro que só regressaria a Inglatedepois de ver a filha. Se isso implicava esperar até depois do parto, pois bem, assim serA sua queixa contra Faisal fora levada a sério pelo Governador, que repreendeu Faisapresença da Mãe e da Jana, pela maneira insensível como ele conduzira o encontro coNadia.-- Ele ficou de rastos - disse-me a Mãe.

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Percebi que ela se regozijara ao ver Faisal ser repreendido pelos superiores, mas tambtive consciência de que a Mãe arranjara um inimigo para o resto da vida. Ser humilhadouma mulher deve ter atingido profundamente Faisal no seu orgulho de macho.A repreensão de Faisal parece ter piorado a situação. A Mãe e a Jana passaram o temtodo a tentar contactar alguém que pudesse ter alguma influência no caso. Toda a getinha uma versão diferente para lhes contar e tomou-se impossível destrinçar as verdadas mentiras. A única coisa que a Mãe podia fazer era recusar-se obstinadamente a pasem tomar a ver a Nadia.

Umas semanas depois, de noite, quando a Mãe e a Jana se dirigiam para o hotel apó  jantar, Faisal saltou de um beco escuro, onde devia ter estado à espera. Parinvulgarmente simpático e disse-lhes que às cinco da manhã um automóvel iria buscMãe para a levar até à aldeia, para que ela visse a Nadia. Explicou que a gravidez da miirmã estava demasiado avançada para viajar novamente para a cidade, mas que trataratudo para a Mãe ir ter com ela.Felizmente, a Mãe conseguiu telefonar-me nessa noite e contou-me o que acontecera. So coração aos pulos dentro do peito, ao pensar no que poderia acontecer se ela aceitassproposta.- Não vás - disse eu. - O que é que o assistente do Governador anda a fazer à noite nbeco escuro? Ele está a tramar alguma. Se aceitares a boleia, desaparecerás do ma

Mãe.Aquilo cheirava-me a esturro. Se ela fosse com alguém da Embaixada Britanica, as coseriam diferentes. Se fosse com Faisal e não voltasse mais, bastava-lhe, a ele, negarqualquer conhecimento dessa viagem. E quem poderia provar o contrário? Quadesliguei o telefone, tive o pressentimento terrível de que eles queriam livrar-se da mimãe.

DOISPASSOSATRÁS

os últimos meses, os orgãos de comunicaçao social têm contado histórias horríveis raptoassassinatos de estrangeiros no lémen. Alguns turistas desapareceram simplesmente s

deixar rasto, outros foram mortos quando tropas governamentais e os captores abrifogo uns contra os outros. Os media ficaram chocados, mas este tipo de banditismo nãnovidade no lémen. Sempre houve bandos de homens armados no interior, dispostoroubar e matar. Sempre desapareceram pessoas nas montanhas, sem que jamais se sao que lhes aconteceu, mas de repente tomou-se notícia de primeira página. Semdesconfiei que se voltasse à região de Maqbana podia ser assassinada. Felizmente, a Mãa Jana compreenderam, por fim, que eu não estava a exagerar quando disse que corriam perigo de vida.

Ficámos horrorizadas ao saber que a Nadia ia ter o bebé na aldeia. A Mãe suplicava a toas pessoas que conheceu que autorizassem a Nadia a ir para o hospital de Taez. Mas to

os caminhos iam dar a Faisal, ao gabinete do Governador. Ele ria-se diante preocupações dela, descartando-as como mera histeria, típica de mãe. Da maneira mcondescendente possível, disse-lhe para não se inquietar, pois as mulheres da alsabiam do oficio e a Nadia já dera à luz várias vezes.Era precisamente por causa dos anteriores partos da Nadia que estávamos tão preocudas. Continuámos a dizer a quem nos quisesse ouvir que ela fora aconselhada pemédicos a não ter mais filhos. Encolhiam os ombros e diziam-nos que agora era demasitarde para se preocuparem com isso e que fora culpa da Nadia ter-se deixado engravoutra vez, contrariando os conselhos dos médicos. Como se ela tivesse voz na matéComo se ela pudesse dizer não ao marido. Como se ela pudesse ir a uma loja compcontraceptivos, ou ao médico pedir a pílula do dia seguinte.

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Dado que a Nadia não tinha voz activa em nenhuma destas matérias, parecia-me juque, se tinha de passar novamente pela experiência de um parto, ao nienos pudesse falo na cidade. Em Taez havia possibilidade de recorrer a cuidados médicos caso acorresse mal, enquanto na aldeia a Nadia tinha que confiar nas capacidades das oumulheres.Não há dúvida de que as mulheres da aldeia têm experiência em partos. A necessidobriga-as a encarregar-se dos partos umas das outras durante toda a vida, mas tal significa que saibam o que fazer se surgirem complicações. Nenhuma dispõe de mate

médico, nem sequer dos produtos básicos de anti-sepcia ou esterilização.Sabíamos que, conquanto não houvesse problemas, as mulheres fariam o melhor possMas, e se algo corresse mal? Que esperança poderíamos ter na salvação da NaSabíamos que se a Nadia morresse de parto, os homens limitar-se-iam a encolherombros e a atribuir a sua morte ao azar, mas a Mãe teria perdido a sua filha, eu teperdido a minha irmã e os filhos dela ficariam sem mãe. As autoridades, porém, termenos uma dor de cabeça administrativa. Estariam livres de nós. Enquanto ruminava epensamentos, em Inglaterra, parecia que tudo estava contra a Nadia. Na verdacomeçava a afigurar-se-me um milagre que ela tivesse sobrevivido a tantos partos.De madrugada, ao dar voltas e voltas na cama no meio da escuridão, lembrava-mecomo fora aterrorizador dar à luz o Marcus, na aldeia. Não havia ninguém para me aju

apenas Ward, a mulher ranzinza de Abdul Khada, com os seus modos rudes e severos.Ward recusara-se a acreditar em mim, no início, quando eu lhe dissera que o bebnascer a meio da noite. Por fim, quando tirei as calças e comecei a preparar-me parparto, ela pegou numa tocha e pôs-se a examinar-me entre as pernas, enquanto eu gritde dor e de medo.Então houvera aquele terrível momento de silêncio, em que ela não dizia nada e eu sabia o que ela estava a fazer. O cordão umbilical enrolara-se no pescoço do Marcus.tivera de o libertar à luz da tocha, enquanto Abdul Khada gritava, ao fundo, exigindo sao que se passava com o seu neto. Era horrível pensar que a Nadia teria de se submenovamente a essa provação, com todas as complicações inerentes ao seu débil estadosaúde. Imaginei-a a morrer do esforço e as mulheres entreolhando-se, cientes dos peri

que toda a mulher corre nesses momentos, mas incapazes de fazer fosse o que fosse pa salvar.Estar tão longe da Nadia significa que a minha imaginação pinta as imagens mais negreu não consigo ter paz de espírito. Estou certa de que coxeia por causa daquele terrgolpe de navalha e apenas posso especular sobre o que isso realmente implica. Quamais especulo, pior é.Saber que a Nadia tem um grave problema de saúde, e que necessita de tratamentoutro motivo pelo qual aqueles que a amam estão tão desesperados para a tiraremlémen e a trazerem de volta para Inglaterra. Ela precisa de ser devidamente examinareceber tratamento médico e dispor da possibilidade de contracepção. Talvez os médnão possam fazer nada por ela, mas a Nadia merece que lhe dêem uma oportunida

 Talvez a sua aparência desgastada seja simplesmente consequência de tanto trabalhosol e da vida árdua que a deitou abaixo e lhe deu um ar prematuramente envelhecidopudéssemos confirmar isso, ficaríamos mais descansadas.

Se ela viesse passar umas férias a Inglaterra, cobri-la-íamos de mimos, nem que foapenas por umas semanas. Trataríamos dela, cozinharíamos os seus pratos preferidos ela-íamos recuperar as forças. Nos últimos vinte anos não teve um minuto de descansoemprego de esposa e mãe não tem dias de folga, e ela não conta com o apoio de companheiro para partilhar o peso do fardo, nem com pais ou sogros para ajudar a alias responsabilidades.

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Gowad e a mulher vieram para Inglaterra há anos, deixando a Nadia a tomar conta seus filhos pequenos, além dos que ela própria pusera no mundo. Disseram-lhe que a soia apenas passar umas férias e que regressaria em breve, mas nunca o fez. (Por haveria qualquer mulher de querer voltar para aquele tipo de vida, depois de experimentado viver em Inglaterra, numa sociedade onde as mulheres são livres, ondajuda médica se encontra disponível e onde existem tantos aparelhos modernos pajudar a preparar a comida e a lavar a roupa?)A Mãe seguiu o meu conselho, naquela noite, sabendo que eu tinha razão. Não fo

encontro de Faisal,, às cinco da manhã. Deve ter sido uma decisão dificil de tomar. Poimaginar o que terá sentido, pois eu tive de fazer uma escolha semelhante em relaçãviagem com a equipa de televisão francesa. Uma parte de mim queria ir à aldindependentemente dos perigos. Parecia-me a única maneira de poder ver o Marcuoutra parte dizia que seria um risco inútil e que não havia garantias. Quando lá chegastalvez me deixassem vê-lo durante cinco minutos... se tanto.Por vezes, ser mãe é dilacerante. Por um lado, estamos dispostas a tudo pelos nosfilhos, inclusive a morrer. Por outro, sabemos que, mortas, nada podemos fazer paraproteger. Nem quero pensar no que a Mãe terá sentido na noite em que ficou presa Taez, a apenas umas horas de distância da Nadia. A Mãe sabia que a Nadia ia passar ptrauma de dar à luz a qualquer momento. Sabia também que, se tentasse chegar até

seria certamente liquidada. Deve ter conseguido visualizar o automóvel à sua esperporta do hotel, e deve ter sentido a tentação de correr para ele mais do que uma vez. Cque podia ter descido e não ter encontrado, nem o carro, nem Faisal. Jamais saberemporque a Mãe manteve-se sã e salva no quarto de hotel, na companhia da Jana.Depois de ter recusade- a boleia de Faisal até Ashube, tomou-se ainda mais dificil contaalguém com poder. Não havia dúvida de que Faisal falara com o Governador e contarque fizera para aplacar a Mãe, mas que ela recusara a sua «ajuda» à última hora. A fada minha mãe, de ser uma mulher problemática e casmurra, fora mais uma confirmada. As autoridades podiam remeter o caso para o fundo da pilha, esperando desta vez nós nos calássemos. Foi uma esperança vã.- Tivemos notícias da aldeia - disse-me a Mãe, umas semanas depois.

- Que notícias? - O meu coração parou por uma fracção de segundo, enquantoimaginava as notícias terríveis que ouviria do outro lado do fio.- A Nard teve um bebé. Um rapaz.- Ela está bem?- Dizem que sim. Mas não me diriam se não estivesse, pois não?Pelo menos sabíamos que a Nadia e o bebé tinham sobrevivido ao parto. Tínhamocerteza de que nos teriam dito se um deles tivesse morrido. Embora fosse um alíviocontinuava a não conseguir conceber como é que a Nadia teria forças para tomar contaum recém-nascido e ocupar-se de todas as suas tarefas domésticas. Se estava viva, haesperança de que a Mãe e a Jana pudessem vê-Ia de novo. Também me sentia aliviadaser um rapaz. Queria dizer que o novo neto da Mãe teria mais hipóteses de ser feliz, n

mundo onde os homens têm todos os direitos e as mulheres nenhuns.Quando a Mãe pediu para se encontrar com a Nadia, disseram-lhe que a minha irmã poderia viajar durante quarenta dias após o parto, como mandava a tradição muçulmanverdade é que a tradição diz que toda a mulher que acaba de ter um filho deve voltarpara casa da sua mãe durante quarenta dias, antes de regressar para junto do marido co bebé. O objectivo é deixar a mulher descansar e permitir à avó ajudar a tratar da crianos primeiros dias, até a mãe recuperar as forças e estar novamente pronta para cumos seus deveres conjugais.

Mas isto ia contra as informações que eles davam à Mãe. Se realmente desejassrespeitar a tradição, teriam trazido a Nadia e o bebé para Taez, durante quarenta dias, p

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que a Nadia descansasse e a Mãe tomasse conta dos dois, em vez de impedirem a mimãe de a ver.Na verdade, jamais uma mulher de uma aldeia como Ashube teria recebido a benessequarenta dias de descanso. Regra geral, uma mulher que tenha dado à luz recomeça, ou três dias depois, a transportar água, a cozinhar, limpar e, inclusive, a trabalhar campos. Lembro-me muito bem de como toda a gente esperava que eu voltasstrabalhar rapidamente, após o parto do Marcus. E os homens exigiam imediatamenteseus direitos conjugais, não se importando com as dores que a mulher pudesse est

sofrer. Talvez a tradição ainda se niantenha entre os muçulmanos abastados, mas eu saque a Nadia não teria direito a ela.Embora tivesse a certeza de que os funcionários estavam a mentir, a Mãe não podiscutir com eles. Limitavam-se a ignorar os protestos dela, rotulando-a como uma muestrangeira desmiolada, que não compreendia as tradições muçulmanas. Se era essresposta das autoridades, a única coisa que ela podia fazer era pedir uma prorrogaçãovisto, o que acabou por ser terrivelmente complicado.Faisal não acreditava que ela conseguisse obter o carimbo necessário. Pensava qfazendo-a esperar mais quarenta dias, ela se daria por derrotada e seria obrigada a vopara casa sem ver a Nadia de novo. Mas, por pura sorte, a Mãe conheceu um taxista sabia exactamente aonde levá-la para que ela carimbasse o passaporte e prolongass

visto. Ainda estaria no lémen quando terminassem os quarenta dias. Faisal ficou furiomas nada pôde fazer. Deve ter-se perguntado se algum dia conseguiria ver-se livreminha mãe.Durante os quarenta tediosos dias que ela teve de esperar no meio do pó, calor e barude Taez, a Mãe conheceu um jovem sírio chamado Abdul. Era cozinheiro num restauraque ela e a Jana descobriram quando estavam instaladas num hotel onde a comida ou vinha para a mesa, ou era incomestível quando aparecia.Abdul era atencioso com a Mãe, apesar do facto de saber que qualquer homem que fovisto em público na companhia de uma mulher estrangeira arranjaria sarilhos comautoridades, especialmente se essa mulher tivesse fama de ser uma agitadora. No inícMãe pensava que ele estava apenas a ser simpático, até ele a beijar em pleno restaura

Foi um gesto extremamente corajoso para um homem árabe naquela parte do mundem breve, ambos estavam apaixonados.Um dia, quando falava com ela ao telefone, apercebi-me de que se passava alguma coPenso que ninguém concebe que os pais tenham uma vida amorosa, por isso demorei certo tempo a compreender a situação. Quando finalmente me dei conta do que estavacontecer, senti de imediato uma terrível sensação de pânico nas entranhas. Nada sasobre a vida de Abdul, mas conhecia os homens árabes o suficiente para saber cotratam as mulheres. Perdi a cabeça por completo. Gritei com ela para pôr fim àquilo, pnão se envolver com o fulano. Disse-lhe que estava a ser estúpida, que podia ser uratoeira, ou que ele talvez fosse um espião enviado por Faisal. A ideia de permitir que ouhomem árabe se aproximasse da nossa família horrorizava-me. Depois de tudo o que

sofrera, era incapaz de ver nele um amigo sincero. Pensava que devia ter segunintenções. Tinha de haver uma explicação por detrás do seu comportamento.Devia ter percebido de antemão que de nada valia intrometer-me no assunto. A Mãe nãpessoa para se deixar levar por conselhos alheios quando mete uma coisa na cabeça efundo, o caso não me dizia respeito. Certo e sabido, ela ignorou os meus avisos. A Mã Jana e o Abdul foram para Áden, para descansarem de Taez, enquanto esperavam pelodos quarenta dias.Segundo consta, a princípio a Jana hesitou em ir. Não queria servir de pau-de-cabelemas a Mãe insistiu para que os acompanhasse. Nessas pequenas férias, a Jana pasgrande parte do tempo sozinha, a nadar no mar ou sentada na praia a ler. Penso que ea Mãe necessitavam de se afastar uma da outra durante uns tempos. Há dois meses

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passavam vinte e quatro horas por dia juntas, num quarto de hotel, e suportar econvivência forçada é um verdadeiro teste à amizade entre duas pessoas.Assim que me acalmei e ponderei sobre o assunto, decidi que, conquanto Abdul fosse homem bom, a relação era uma boa notícia. Senti que a Mãe merecia uma oportunidadeser feliz. Por muito amor e apoio que recebesse dos filhos e de amigos como a Jana, jamseria o mesmo que ter um companheiro ao seu lado, alguém que cuidasse dela quatodos nós voltássemos para casa ao fim do dia. Eu sabia como era importante a presedo Paul, que me ajudava a manter a minha sanidade mental quando o mundo inte

parecia estar contra mim. Não podia impedir a Mãe de encontrar esse mesmo confoemocional. Desde que aos dezassete anos conhecera o Pai e começara a dar-lhe filhnunca mais tivera vida própria.Sempre que falava de Abdul, era óbvio que estava caidinha por ele. Deve ter-se senlisonjeada por alguém se ter interessado novamente por ela. Mais tarde contou-me fora a primeira vez que realmente se apaixonara, o que a deixara ainda mais tristepensar na Nadia, presa num casamento sem amor, agrilhoada pelos filhos e pela sua saprecária, e sem qualquer esperança de escapar antes de chegar a velha. Nem eu nemMãe conseguimos desfrutar de muitos dos prazeres da vida sem sentirmos pontadolorosas de culpa, ao lembrar onde a Nadia se encontra e o quanto está a sofrer.A Mãe e Abdul casaram-se em Taez, tendo como testemunhas a Jana, um motorista de

e um amigo de Abdul. Sabia que o facto de estar casada com um homem árabe ajudarMãe a lidar com Faisal, Mohammed e outros homens muçulmanos. Todos lhe teriam mrespeito daí por diante.Durante os quarenta dias de espera pela Nadia, a Mãe e a Jana descobriram que tinhestado sob vigilância desde o instante em que pisaram solo iemenita. Vários membroscomunidade de expatriados tinham conseguido arranjar cópias clandestinas de VendidaEstavam a par da situação da Nadia, mas todos tinham sido avisados para nãoenvolverem no caso. No entanto, alguns deles alertaram. a Mãe e a Jana para o perigo corriam. Aqueles que sabiam como funcionavam o governo e a polícia iemenitas avisaaMãe e a Jana de que podiam ser alvejadas, se não tivessem cuidado por onde andava

com quem travavam conhecimento. Só os mais corajosos se dispuseram a conversar celas. Uma grande percentagem da população fora informada de que duas mulhemaléficas estavam a tentar raptar uma esposa iemenita inocente, para afastá-la do maadorado. A Mãe e a Jana encontravam-se praticamente isoladas do mundo. Todas as cassetes que nos obrigaram a gravar, a mim e à Nadia - dizendo que estávambem e que amávamos os nossos maridos -, foram emitidas na rádio ou transcritas   jornais da região. Em todas as notícias, a Mãe era descrita como sendo uma sintrometida, disposta a infernizar a vida do genro.Consequentemente, todos os homens casados do lémen odiavam-na, a ela e a tudo o ela representava. Se um deles se tivesse cruzado com a minha mãe numa rua sossegada tivesse atacado com um punhal, provavelmente não teria de prestar contas perant

  justiça. Na verdade seria considerado uma espécie de herói que salvara os companheiros muçulmanos do terrível destino da dominação feminina.Muitos desses homens gostavam de visitar o Ocidente e, inclusive, gostavam de lá vsempre que possível, mas nenhum queria que as suas mulheres fossem infectadas coideia de que possuíam direitos. Não queriam que elas descobrissem que podiam disccom os homens e até mesmo ficar com a guarda dos seus queridos filhos; que podescolher as suas roupas e administrar os seus dinheiros; que podiam tomar decisões socomo educar os filhos e que empregos ter. Todos eles queriam silenciar a minha mãe. Aos seus olhos, ela era a portadora da doeda liberdade.

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Antes de a Mãe e a Jana saírem de Inglaterra, eu estava ciente de todos os perigos, misso não me ajudava a suportar a tensão de não saber o que se estava a passar. Enquaesperava em casa que elas regressassem, a minha mente invocava imagens terrívConseguia conceber mil e uma maneiras diferentes de a Mãe desaparecer sem derasto. Podia ocorrer um trágico desastre de automóvel, ou um acidente na vertente de umontanha. Podia ser vítima de um assalto inexplicável, ou de uma misteriosa intoxicaalimentar. Ou podia, simplesmente, evaporar-se um dia, sem explicação e sem pistas soo que teria sido feito dela.

Se alguma dessas coisas acontecesse, imaginava os funcionários da Embaixada Britânicdo Ministério dos Negócios Estrangeiros a fazerem o barulho que se esperava deleapresentar as devidas queixas, a expressar o seu pesar e condolências e a promeaveriguar a verdade. Imaginava também quão depressa se cansariam de puxar pepontas soltas que, inevitavelmente, não levariam a lado nenhum. Imaginava-os a firritados se a nossa família continuasse a exigir a verdade. Imaginava como se torncada vez mais dificil obter respostas e como, no fim, acabaríamos por ser tratados cdespeito. Então o caso seria arquivado com suspiros de alívio.Poderiam dizer que tinham alertado a Mãe, vezes sem conta, para os perigos do camique insistia em seguir. Poderiam dizer a si mesmos que as suas consciências estavlimpas. Tinham feito tudo o que estava ao seu alcance, mas a situação escapara ao

controlo. Se a Mãe e eu tivéssemos aceitado o inevitável, diriam eles, ter-se-ia impedesta tragédia. Mas se aceitássemos o que acontecera como inevitável, como poderiamcoisas mudar um dia? O que impediria os homens de continuarem a vender as suas ficomo escravas? 1As minhas deambulações assombravam-me dia e noite. Tinha dificuldade em concentrar fosse no que fosse e a minha mente continuava às voltas sempre que deitava transformando as preocupações diurnas em terríveis pesadelos nocturnos. Quque a Mãe estivesse a salvo em Inglaterra. Não queria perdê-la como perdera a NadiaMarcus, e ter de continuar a nossa luta sozinha.Findos os quarenta dias, o encontro com a Nadia ainda não tinha acontecido. Foquebradas mais promessas e contadas inúmeras mentiras. Faisal devia estar a ter algu

dificuldade em explicar ao Governador por que é que ainda não fora capaz de resolvassunto, e por que é que a Mãe e a Jana permaneciam na cidade a criar problemas. Facontinuou a fazer bluff e a tentar manter-se bem longe de sarilhos.Não parecia que as autoridades fossem alguma vez cumprir as suas promessas, enquanMãe e a Jana estavam no hotel à espera que fosse organizado o encontro com a Nadia.fim, elas decidiram jogar com as mesmas armas das autoridades e engendraram um plaA Jana sairia de Sanaa, dizendo que ia ter comigo a Paris para aparecermos juntas em muma emissão do Sacrée Soirée, com o objectivo de contar ao mundo o que estavacontecer em Taez.A Mãe também fingiria que estava a preparar o regresso a casa. O mais provável era Faisal levasse a Nadia de imediato para Taez e alegasse que a Mãe não a vira por m

acaso. A Mãe poderia, então, vir a correr de Sanaa para se encontrar com a Nadia.Certo e sabido, assim que Faisal pensou que a Mãe ia sair do país, trouxe a Nadia de vpara a cidade, juntamente com o bebé recém-nascido. Faisal disse que era uma pena a Mnão ter esperado mais um pouco. A Mãe regressou imediatamente a Taez e Faisal não pdizer que a Nadia não se encontrava lá.A Mãe e Abdul foram visitar a Nadia ao gabinete de Faisal, no Consulado BritânicPuderam passar meia hora juntos, numa sala de reuniões. Nos três meses que passara país, a Mãe conseguira estar apenas uma hora em privado com a Nadia.Assim que chegou ao gabinete de Faisal, soube que não havia tempo a perder. Quaficaram sozinhas, começou a rogar à Nadia que voltasse para Inglaterra. A Nadia disse

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que não podia, que o Mohammed ameaçara pô-la na rua e tirar-lhe os miúdos, se falasse sequer em voltar para casa.Eu conseguia imaginar perfeitamente como deviam ser aterrorizadoras essas discussentre eles. Um homem como o Mohammed poderia fazer o que quisesse à sua mulherprivacidade do lar, e ninguém teria o direito de intervir em favor dela. Uma parte de mqueria acabar com o bluff dele e fazê-lo expulsar a Nadiá para que nós pudéssemos tde volta, mesmo que não ficássemos com as crianças. Mas sabia que ela jamais seria fse isso acontecesse. Tínhamos de arranjar uma maneira de libertar também os filhos

Nadia. Quando a minha irmã tirou o véu, a Mãe ficou chocada com o seu ar doente.- Queres voltar para casa? - insistia.- Quero, Mãe. Eu quero ir, mas ele recusa-se. Recusa-se!Quando os homens regressaram à sala, a Mãe perguntou a Abdul se se importava de fcom o Mohammed, de homem para homem. Ele era agora padrasto da Nadia e isso dar-ia algum poder de negociação. Mas depois de terem conversado durante uns instanAbdul contou que o Mohammed dissera que a Nadia nunca teria autorização para Inglaterra.A Mãe perguntou ao Mohammed se ele queria dinheiro ou uma casa. Disse que lhe dtudo o que pedisse. Nessa altura, tínhamos começado a ganhar um bom dinheiro comvendas do livro: com ele, pagáramos a viagem da Mãe ao lémen e, se eu pudesse, t

usado o resto para comprar a liberdade da Nadia. A Mãe sabia disso, quando fepergunta.O Mohammed ficou furioso com essa proposta, como se a Mãe tivesse cometido uafronta ao seu orgulho. Disse que tinha casa e que não queria o nosso dinheiro. MandoNadia dizer ao Cônsul Britânico que não queria voltar para Inglaterra.A Nadia estava aterrorizada. A Mãe tinha a certeza de que ela ia obedecer ao Moliammepor instantes pensou que fosse desmaiar por causa da tensão emocional daquele criconDepois de ter esperado tanto tempo, o stress de se encontrar junto da Nadia, sabendo ela poderia ser levada a qualquer momento se o marido assim o decidisse, estava a deilhe os nervos em franja.- Não quero vir cá mais - disse a Nadia, no fundo recusando-se a dizer que não queria vo

para Inglaterra. O Mohammed, furioso por ela lhe desobedecer, mandou-a levantar-ssegui-lo. A Mãe viu a Nadia ir embora, arrastando a perna e caminhando dois passos ado marido, como um cão escorraçado. Percebeu que já não poderia marear outro encontIncapaz de a deixar ir sem sequer dizer adeus, a Mãe foi atrás deles. A Nadia dirigia-se po jipe e o Mohammed berrava com ela, furibundo. Quando a Mãe se aproximou, a Nafechou os olhos e suspirou.- Se apareceres na televisão francesa, Mãe - disse ela baixinho -, vou ter de ligar paprograma e dizer que não quero voltar para casa. - Fitou a Mãe directamente nos olhoNão sou eu, Mãe. É o Islão. Sou muçulmana. Não posso ir para casa contigo. Ele disse me leva, mas não me cabe a mim decidir se posso ou não partir. É com ele. Quero vopara casa, mas...

- Adoro-te, Nard - disse a Mãe, querendo poupá-la a mais sofrimento, e abraçaram-sMãe apertou-a contra o peito, cobrindo-a de beijos, sentindo o corpo frágil da Nadestremecer com soluços silenciosos. Qualquer mulher que tenha filhos poderá imaginque a Mãe deve ter sentido: uma sensação de impotência, à beira do mais absodesespero.

O MINISTÉRIO DOS NEGóCIOS ESTRANGEIROS

As nossas relações com o Ministério dos Negócios Estrangeiros, já tensas, não melhoracom a visita da Mãe ao lémen. Uma vez que não contava permanecer no país durante tatempo, a Mãe ficou sem dinheiro ao cabo das duas primeiras semanas. Contactou-

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pedindo-me para lhe enviar mais, o que fiz com o maior prazer. O livro começava entãtrazer-me boas receitas em direitos de autor e eu encarava esse dinheiro como uma pcrucial da nossa luta pela Nadia. O facto de a Mãe estar no lémen parecia a melhor medque poderíamos tomar para nos aproximarmos da Nadia. Teria pago o que quer que fopara aumentar as probabilidades de salvarmos a minha irmã.Eu não sabia nada sobre transferências de dinheiro entre países e, como tal, tinhaencontrar alguém para me ajudar.Quando a Mãe me pedira dinheiro antes, eu enviara-lho através de um funcionário

Ministério dos Negócios Estrangeiros em Londres. Limitara-me a telefonar e o ministtratara de enviar o dinheiro para a embaixada em Sanaa.Assim que a Mãe me disse que ia ter de ficar no lémen durante mais quarenta dias, fiztelefonema. Mal proferi o meu nome, fui tratada num tom de voz hostil. Expliquei qualo problema e perguntei se me poderiam ajudar como tinham feito noutra ocasião.- Que diabos se passa com a vossa família? Que gentinha! - disseram-me. - A Nadia ebem onde está. Não vamos enviar mais dinheiro nenhum. Já vos ajudámos uma vez e tencionamos tornar a fazê-lo. - O funcionário desligou o telefone intempestivamedeixando-me com um sentimento de raiva e impotência. Aquelas palavras de agressividmarcaram-me a fogo. Atirei o telefone contra a parede, partindo-o aos bocados. E a fque vinha a acumular-se dentro de mim, ao longo de anos e anos, finalmente explodiu.

Foi como se uma luz se tivesse acendido no meu cérebro. «Que gentinha!». Senti que uma referência à cor da minha pele. Naquele instante fiquei convencida de que ugrande parte do nosso problema era racial. Se eu e a Nadia tivéssemos pais brancos, nuse teria levantado a questão de termos «dupla nacionalidade». Ninguém teria postocausa, por um instante sequer, que era errado sermos vendidas como noivas, encarceraem Maqbana contra a nossa vontade e violadas. Aos olhos da lei britânica, a Nadia menor de idade quando foi arrastada à força para o leito conjugal. Se o nosso nome foSmith e os nossos olhos azuis e os cabelos louros, teríamos saído daquelas montannuma questão de meses ou, inclusive, semanas.Outros acontecimentos vieram confirmar esta minha convicção. Quando duas raparinglesas foram acusadas de traficar drogas em Banguecoque, John Major ocupo

imediatamente do caso exigindo a sua libertação e a extradição para Inglaterra.verdade elas tinham cometido um crime, mas o Primeiro Ministro estava dispostinterferir e a fazer acordos em seu favor. Quando soubemos que as raparigas tinhregressado a casa, a Mãe enviou uma carta a John Major, dizendo que estava desgostpor as suas filhas nunca terem recebido esse tipo de apoio, mas nunca houve resposta.Quando duas enfermeiras britânicas foram condenadas e presas por assassínio na AráSaudita, os políticos entraram de novo em acção e estas mulheres regressaram em tempos ao Reino Unido. Nós estávamos encarceradas num País muçulmano exactamecomo elas, mas não tínhamos cometido qualquer crime. Éramos vítimas dos crimesoutras pessoas, mas nenhum ministro veio em nosso auxílio. Ninguém com autoridexigiu que se fizesse justiça.

Quando membros de uma tribo iemenita raptaram um grupo de turistas europeus, o gde revolta internacional foi imediato.A única diferença que encontro entre nós e essas outras pessoas é a cor da nossa pConversas como a que tive com o funcionário do Ministério dos Negócios Estrangedeixaram-me tão enraivecida que fiquei sem palavras.O governo britânico também fora perfeitamente incoerente na sua política em relaçãvenda de raparigas Do lémen. Quando uma garota de quinze anos chamada Aisliarecentemente levada do País de Gales, da mesma maneira que eu e a Nadia, o deputda região, com assento parlamentar, ligou à Mãe a pedir conselho. Disse que a mãeAislia estava em estado de choque.

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- Diga-lhe para não desistir - aconselhou a Mãe. - Diga-lhe para escrever ao Ministério Negócios Estrangeiros a contar o que se passou. Mas avise-a de que vai ouvir que podem fazer nada,’ pois a garota tem dupla nacionalidade.- Ela já fez isso e foi precisamente essa a resposta que lhe deram no ministério dissdeputado. - Mas continuam dispostos a tirá-la de lá.- Deseje-lhes boa sorte - rematou a Mãe. - Nós conseguimos resgatar a Zana, mas só aode oito anos.Seguiu-se uma grande cobertura mediática do caso e pouco depois ouvimos a notícia

que o corpo diplomático britânico no lémen conseguira resgatar Aislia e mantê-laembaixada até ela poder ser enviada de volta para o País de Gales. O governo britânfizera por ela exactamente o que deveria ter feito por nós, em 1980.Ficámos felizes por Aislia, claro está, e enchemo-nos de esperança de que talvez significasse que houvera uma mudança de atitude da parte do governo e que, assteríamos mais hipóteses de conseguir salvar a Nadia, mas tal não aconteceu. Parecia qufamília de Aislia tivera sorte na escolha da pessoa a quem pedira ajuda. O deputconseguira fazer um milagre que toda a gente nos dissera ser impossivel.Embora nos sentíssemos irritadas por não termos recebido o mesmo tratamento, o casoAislia dá-nos, pelo menos, a esperança de que, encontrando a pessoa certa para lutar pnossa causa, conseguiremos obter aquilo que desejamos. Mas como encontrar e

pessoa?Quando eclodiu a guerra civil entre o Norte e o Sul do lémen, e Áden estava a bombardeada, o Ministério dos Negócios Estrangeiros começou a evacuar todoscidadãos britânicos da região, independentemente de terem ou não a documentação lenecessária. Ficámos desesperadas. Agora, como se não bastasse tudo o resto, a Nadiestar em pleno palco de guerra! Esperávamos poder aplicar aqui o ditado «Deus escrdireito por linhas tortas» e que isto fosse uma maneira de conseguirmos libertar a miirmã. A Mãe ligou para o ministério, para perguntar se podiam evacuar a Nadia e os fil juntamente com os restantes cidadãos britânicos.- Não fazemos tenções de tirar a Nadia do lémen - disseram-lhe. Parecia que tinhtomado uma decisão e que nada os demoveria dela. Por não terem actu

atempadamente no início do nosso encarceramento, a Nadia ficara prisioneira. Aos odo ministério, ela já se encontrava há tantos anos no lémen que agora não podiam fanada por ela. Lavaram as mãos...No que tocava ao Ministério dos Negócios Estrangeiros, a Nadia bem podia estar doeque eles não se dispunham a ajudar a curá-la. Podia correr perigo de morte que eles pretendiam ajudá-la a fugir. Podia ser forçada a ter filho atrás de filho para o marido, que o seu corpo finalmente se fosse abaixo, que o ministério não tinha nada a ver coassunto.Ao longo dos anos, o governo britânico mudou de versão tantas vezes que é dificil lemo que diziam no princípio. Hoje, alegam que eu assinei uma carta destinada à EmbaixBritânica, em 198O, pedindo um visto para o meu marido poder visitar Inglaterra.

Não me recordo de tal carta, mas a verdade é que, aos quinze anos, estava traumatizada’,, que era capaz de ter assinado qualquer coisa que Abdul Khada, o msuposto sogro, níe1, mandasse.Nunca vi essa carta mas, se de facto existe, as autoridades dizem que prova que os noscasamentos não passaram de casamentos de conveniência, organizados para que os razes pudessem obter passaportes britânicos.Se é verdade, foi tudo menos ideia minha, ou da Nadia. Não estávamos em condiçôesengendrar tal plano e de qualquer modo jamais o teríamos feito. Não conhecíamosrapazes ou as suas famílias antes de irmos para o lémen. Por que carga de áhaveríamos nós de querer casar com eles, para os trazer para Inglaterra? Se foi «casamento de conveniência», nós não tirámos proveito algum deles. Fomos apenas pe

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nos jogos de outras pessoas. No entanto, o Pai, Gowad e Abdul Khada, todas as pessque nos armaram esta ratoeira, viviam alegremente em Inglaterra, enquanto a Napermanecia no exílio.Sempre que conseguimos falar cara a cara com um funcionário do governo, a nohistória é sempre compreendida. Todos concordam que se trata de uma situaescandalosa que deve ser emendada. Mas acaba sempre da mesma maneira, com longo silêncio ou uma carta oficial a negar qualquer tipo de responsabilidade no assunto Tomava-se cada vez mais claro que estávamos por nossa conta e risco. Não podíam

confiar no nosso país para nos ajudar.Durante os três meses que esteve no lémen, a Mãe apercebeu-se de que Gerald RyaCônsul Britânico, andava nervoso. Sabíamos que éramos um espinho encravado na carrdele e que o facto de a Mãe se encontrar no lémen lhe dificultava a vida, mas havia amais para além disso. Passava-se alguma coisa na embaixada e ele estava metidoassunto.A Mãe e a Jana ouviram boatos, na comunidade de expatriados, sobre corrupçãoembaixada, mas não ligaram. Sinceramente, a ideia de que poderia haver corrupçãosistema não era surpresa nenhuma para nós. Sabíamos, pela maneira como fôratratadas no passado, que na época devia haver gente a influenciar os funcionários conós. As coincidências eram demasiadas e a informação parecia transpirar sempre para

ouvidos de alguém que não convinha.

Não sabíamos se isso queria dizer que os funcionários estavam a ser ameaçadossubornados, ou se pura e simplesmente andavam a proteger os seus interesses pessoSabíamos apenas que nunca recebíamos uma resposta directa e honesta de quem qque fosse. O lémen é uma cultura que assenta na troca implícita de favores entrehomens. Talvez as pessoas que trabalhavam na embaixada não fossem diferentes daquelas entrequais se moviam.Em algumas das ocasiões em que foram tentar falar com alguém da embaixada, a Mãe Jana viram inspectores das Finanças no edificio, a analisar a contabilidade, e era óbvio

Ryan andava nervoso com o que poderiam averiguar. Como a Mãe estava interessapenas numa coisa - ver a Nadia -, não prestou atenção ao que se passava à sua voltaanos depois viemos a saber o que estava a acontecer nos gabinetes internosembaixada, enquanto os funcionários exibiam um ar confiante perante o mundo exterioUma vez, quando se encontrava na sala de Ryan, os seguranças da embaixada bateraporta para dizer que estava um homem à entrada a pedir para falar com o Cônsul e querecusava a ser revistado. Ryan perguntou quem era e eles disseram um nome árabe.- Ah, não há problema - respondeu Ryan, tranquilizando-os. - Deixem-no passar.- A que propósito? - perguntaram a Mãe e a Jana, surpreendidas com aquela atitude relaxada, num país onde os homens andam armados dia e noite.- Não há problema - repetiu ele. - Nós fazemos-lhes favores e eles retribuem-nos da mes

maneira. É assim que as coisas se fazem aqui.A Mãe e a Jana começaram a sentir-se pouco seguras nas mãos de Ryan.As informações que a Mãe recebia eram completamente contraditórias. Durante uma suas visitas a Ryan, ele disse-lhe que houvera um julgamento em Taez, de acordo coqual o meu casamento e o da Nadia tinham sido declarados ilegais. Era a primeira vez ouvíamos tal coisa e, a nosso ver, não fazia qualquer sentido. A Mãe perguntou-lhe sepodia arranjar documentação sobre o caso e ele respondeu que sim. Escusado será dque nunca o fez, mas obteve, sim, um papel que declarava que Abdullah tomara a casacomigo depois de eu ter partido para Inglaterra. Também não sabíamos nada sobre issoSe eu tivesse ido à aldeia como Chawki me tentara convencer a fazer, quando fui veNadia com a equipa de televisão francesa, os homens podiam ter-me mantido co

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prisioneira. Podiam ter-se servido desse papel para justificar o seu acto, dizendo queainda era casada com Abdullah e, como tal, cidadã iemenita, e tudo teria voltado à estzero. O sangue gela-se-me nas veias quando penso no que poderia ter-me acontecnessa viagem.Embora fôssemos constantemente encorajadas a desistir de lutar pela Nadia, nubaixámos os braços nem cedemos às pressões. Manter o contacto com a embaixadaSanaa era uma das nossas melhores maneiras de descobrir se algo mudara em MaqbaMas podíamos perceber que as coisas por lá iam de mal a pior. Sempre que telefonávam

mandavam-nos falar com outra pessoa diferente, que então nos dizia que «não estavpar do caso» e que teríamos de explicar a história toda outra vez.Cada nova voz que vinha ao telefone mostrava-se sempre chocada com o nosso reladizia que algo teria de ser feito. Depois anunciava que tinha de ir «analisar os arquivos»«falar com um colega». Deixavam-nos, assim, num misto de esperança e desespero. Toda a gente prometia tomar a «entrar em contacto» connosco, mas nunca o faziam. Usemanas ou meses mais tarde, quando tínhamos de aceitar o facto de que o telefoneprometido jamais se iria concretizar, ligávamos de novo e o processo repetia-se de uponta à outra. Era deprimente.  Já tínhamos percebido, pelos nossos contactos com Sanaa, que a embaixada jafuncionara como era devido. Havia sempre no ar um ambiente de desconforto e

mentiras sucediam-se umas às outras. Suspeitávamos da existência de alianças e acornunca mencionados, que mudavam constantemente o rumo da situação nos bastidoGerald Ryan, o Cônsul, saiu apressadamente de Sanaa, em Junho de 1993. Já estávamhabituadas a que as pessoas procedessem dessa maneira.Depois soubemos que os inspectores que tinham estado em Sanaa durante a visita da Mencontraram «irregularidades» na contabilidade da embaixada. Quando eirregularidades foram finalmente divulgadas, ouvimos a notícia, em Fevereiro de 1994que Ryan fora preso. Em Dezembro do mesmo ano, enforcou-se.Foi então que o governo britânico decidiu que estava na hora de investigar a fundo es«irregularidades». Se uma pessoa tão eminente como um cônsul britânico preferia mataa enfrentar as consequências das negociatas em que andava metido, convinha saber o

se passava. Seguimos essas investigações o mais de perto que nos foi possível. Semque falávamos com alguém, fazíamos perguntas sobre a situação e deitávamos a mãtodos os relatórios que eram emitidos. O caso começou a ganhar forma, como as peçasum puzzle, mas continuavam a faltar dados cruciais.Em 1995, a Comissão das Contas Públicas redigiu um relatório que explicava, em partque acontecera. Tratava-se de um documento extremamente formal, que dizia em dparágrafos o que poderia ser dito numa só frase, adornando o texto todo com ulinguagem legal concebida para abranger todas as eventualidades. Mas nem mesmo tessa verve foi capaz de mascarar o facto de que os investigadores estavam chocados co que tinham descoberto.Admitiram que a gestão dos dinheiros da embaixada fora inadequada. A Comissão fic

espantada ao averiguar que os funcionários da embaixada tinham utilizado verbas públpara especular na bolsa, angariando receitas pessoais no valor de 67O OOO libras, nespaço de tempo relativamente curto.O relatório citava exemplos de contratos com preços inflaccionados que Ryan assinara cempreiteiros, dos quais recebia subornos chorudos.Era fácil imaginar como funcionava o sistema. Se um edíficio propriedade da embaixnecessitava de obras, o empreiteiro que oferecesse a Ryan, ou a outro funcionário, o nisuborno, ficaria com o contrato, independentemente de ter apresentado a proposta piode não dispor de meios adequados para efectuar a empreitada. Este tipo de negócio poser prática corrente no lémen, mas não era o tipo de política que os funcionários britândeveriam abraçar.

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Os investigadores também descobriram que Ryan negociara o aluguer, por cinco anosresidência do embaixador, obtendo um lucro pessoal de 5O OOO dólares norte-americasob a forma de um suborno que guardara para si.Para cúmulo, o relatório dizia que o Ministério dos Negócios Estrangeiros omitira investigadores que um outro departamento do estado, o Ministério do Ultramar, andavaveriguar eventuais irregularidades na embaixada. Também eles investigaram a má gesde fundos públicos, precisamente na mesma época. (Não admira que Ryan não teaguentado tanta pressão...) Estavam em curso duas investigações e Ryan esforçara-se p

que nenhum dos departamentos soubesse das buscas do outro. ’Ryan nunca poderia ter agido sozinho, tivera de recrutar outras pessoas. Pôde fazporque não eram necessários requisitos específicos para contratar pessoal parembaixada da região. Ryan recrutou amigos para lugares de chefia, em vez de procuramelhores candidatos para o cargo. Consequentemente, grande parte dos funcionáestava em dívida para com ele e podia facilmente ser pressionado, sempre que necessitasse de efectuar determinadas transacções, sem que os números reais fossregistados nos livros de contas.O relatório explicava que os funcionários tinham construido grandes fortunas com dinheda embaixada. Segundo consta, eram feitos levantamentos, em moeda local, da contalibras da embaixada, de acordo com as taxas de câmbio em vigor, para pagar uma d

factura. Parte do dinheiro era então trocado à taxa do mercado negro, que era quatro vesuperior, para pagar qualquer factura que estivesse pendente. A diferença ia parar ao bode Ryan e do seu cúmplice. Era fácil fazer este tipo de negócio porque as taxas de câmvariavam muito.Os investigadores também estavam preocupados com a má gestão dos pedidos de viPor vezes, os candidatos não eram entrevistados ou não chegavam a preencherformulários. Algumas pessoas que nunca deveriam ter tido direito a entrar na Grã-Bretaobtiveram, assim, os almejados vistos. E foram muitas. Este dado deixou-nos ainda mamarguradas. Os funcionários, que não tinham feito qualquer esforço para tirar a Nados filhos do país, andavam a ajudar quem estivesse disposto a subomá-los. Se, na éposoubéssemos como funcionava o sistema, talvez também lhes tivéssemos ofere

dinheiro.O embaixador no lémen, que se encontrava em funções na mesma altura em que Rocupara o cargo de cônsul, foi acusado, no relatório, de ter gerido a presença britânicapaís de uma forma escandalosa. Os investigadores punham em causa se ele deveriarecebido a pensão que o governo lhe deu, ou a indemnização de 23 OOO libras pordeixado o seu posto.Ano e meio depois, após a chegada de um novo embaixador, uma auditoria inteconcluiu que era necessário corrigir cento e cinquenta questões administrativasembaixada. O lémen estava em guerra civil e, dado o caos que reinava em Sanaainvestigadores eram da opinião que o Ministério dos Negócios Estrangeiros não escolhum indivíduo coni garra suficiente para ocupar o cargo, nem lhe dera o devido apoio p

que resolvesse todos os problemas pendentes. Pelo contrário, o relatório acusavministério de permitir que a situação se deteriorasse a tal ponto que se tomara necessoferecer a reforma antecipada ao embaixador substituto.Os investigadores estavam atónitos por o Ministério dos Negócios Estrangeiros não ter fnada, apesar de saber da má gestão que se passava no lémen. Tendo lidado tantas vezes com o pessoal da embaixada, nenhuma destas descobertas pareceu particularmente surpreendente. Por um lado, ficámos aliviadas por saber que éramos nós que andávamos a inventar coisas e que uma investigação oficial vcoinprovar a existência de uma série de problemas que tínhamos notado. O Ministério Negócios Estrangeiros dera-nos constantemente a impressão de que preferia não actPermitiu que a situação se deteriorasse em vez de fazer um esforço para resolver o c

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rapidamente. Foi à conta dessa indiferença que pouco ou nada foi feito para tirar a Nadeu própria, do lémen quando ainda éramos crianças, antes de termos nós próprias criannos braços. Muito pelo contrário, o ministério deixou a situação degradar-se de tal forque agora, em vez de duas crianças reféns, tem de resolver o problema de uma mulhetrinta e poucos anos, com seis filhos, que pede para abandonar o país.Ryan era casado com uma francesa que vivia com ele no lémen, mas também tinha uamante, a quem oferecera emprego na embaixada durante um mês, e a quem mandaentrevistar a Nadia.

A amante informara Ryan de que a Nadia dissera que queria ficar no lémen. Ele própriofalar com a Nadia e redigiu um relatório sobre o encontro. Nele, explicava que a Napedira para encerrar o caso, pois estava farta de tanta publicidade. Mas Ryan admitia tanto o Mohammed como Faisal Abdul Aziz tinham estado presentes durante a entrevipelo que a Nadia não pudera dizer o que realmente sentia. Disse que ela par«assustada» e «visivelmente intimidada». Apesar desta descrição do estado de espíritoNadia, o Ministério dos Negócios Estrangeiros achou por bem servir-se do relatório pcitar as palavras da minha irmã, como se ela as tivesse proferido de livre e espontâvontade. Dava a entender que o discurso da Nadia encerrava o assunto de uma vez todas.Eu conhecia Faisal Abdul Aziz da época em que estive prisioneira no lémen e ouvi mu

informações, da boca da Mãe e da Jana, sobre os seus métodos de intimidação. Quandodeixaram sair do país, ele disse-me que me autorizavam a partir porque eu só «criproblemas» e que a Nadia tinha de ficar como «garantia». Assegurou-se sempre de quNadia nunca ficava a sós com representantes da Embaixada Britanica, ou comigo ou coMãe. Posso imaginar o que ele terá dito à Nadia naquele dia, antes do encontro com RyIsso, a par com as ameaças do Mohammed, terá sido mais do que suficiente ptransformar a Nadia num robot, como já a vimos antes, a papaguear as suas deimemorizadas.Embora as pessoas com quem falávamos no Ministério dos Negócios Estrangeirosmostrassem muitas vezes compadecidas de nós a nível pessoal, assim que começavaagir a título oficial, deixavam imediatamente de ter qualquer desejo de se envolver

caso. O discurso oficial pregava que ninguém deveria ajudar-nos. Um embaixador funções disse, inclusive, à Mãe que recebera instruções do ministério para não nos qualquer apoio.Parece-me que todas as pessoas que ouvem a nossa história pela primeira vez reagcomo seres humanos e querem ajudar. Vão procurar aos ficheiros e vêem há quanto temo caso se arrasta e a confusão que os seus predecessores criaram. Mas depois começapreocupar-se com a quantidade de trabalho que terão de fazer caso se envolvamassunto, e a ver que as hipóteses de encontrarem uma solução são escassas e que influenciará negativamente a sua progressão na carreira. Falam com um supehierárquico, que lhes diz para desistir do caso. De imediato, tentam passar a batata quea alguém com menos experiência ou esforçam-se por nos convencer a desistir.

Conseguimos averiguar todas estas coisas única e exclusivamente porque a Mãe se reca baixar os braços. Continua a fazer perguntas aqui e ali, insistindo que não está a ser f justiça e tentando saber a verdade. Lentamente, mas com passos firmes, um de cada vela está cada vez mais perto de descobrir por que motivo o nosso caso se tem arrastdurante tantos anos. É óbvio que o Ministério dos Negócios Estrangeiros e a embaixadaSanaa tiveram ambos uma quota parte de responsabilidade em todo este enigma e responsáveis pelo sofrimento da Nadia.

OPERAÇÃO DE RESGATE?

Hà vinte anos éramos profundamente ingénuas, com uma fé cega no nosso país.

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Pensávamos que, assim que o Ministério dos Negócios Estrangeiros soubesse o que acontecera, viria salvar-nos. Durante muito tempo escutámos as suas desculpaexplicações, e aceitámo-las. Gradualmente fomo-nos tornando mais cépticas. Hoje creque existem tantos tipos de fraude, tantas pessoas com motivos obscuros, porventura ccarreiras e pensões a defender, e tanta indolência, que cuidar dos interesses de cidadbritânicos era a menor das preocupações do ministério. Era-nos impossivel saber ao cquem poderia ajudar-nos, quem estava a usar-nos para daí tirar proveito económicopolítico, e quem tentava simplesmente livrar-se de nós, na esperança de que desistíssem

e desaparecêssemos do mapa.A Mãe compilou dossiers e dossiers de cartas e documentos, que mostram a emaranhada que ao longo dos anos foi tecida à nossa volta. Não somos, de todo, a úfamília nestas circunstâncias, mas a grande maioria de mães desistiu de lutar, por conseguir transpor as infindáveis barreiras de burocratas, advogados e políticos. Pouteriam forças para lutar tanto como a minha mãe. Para ela, o pesadelo começou há maistrinta anos.Eu e a Nadia temos um irmão e uma irmã mais velhos, o Alimed e a Laila. O Pai levou-oslémen, quando eram pequeninos, para visitarem a sua família em Áden. A Mãe acabaradar à luz a Nadia e passara um mau bocado. O Pai disse-lhe que tencionava concederumas semanas de descanso, indo uns tempos para o lémen com os dois filhos mais velh

Estávamos no Natal e o Pai vendera a nossa casa para pagar os custos da viagedeixando-nos a viver num quarto alugado. A Mãe não tinha dinheiro nenhum no diaNatal e teve de nos dar sanduíches de fiambre. Claro que eu e a Nadia éramos demasipequenas para notar a diferença, mas deve ter sido um período sombrio para a Mãe.adorava-nos, ` mas começava a pensar que talvez tivesse sido um erro constituir famcom o nosso pai. Não obstante, ansiava pelo seu regresso e por poder abraçar de novoseus dois filhos mais velhos.Mas quando o Pai regressou de viagem, tudo mudou. A Mãe descobriu que ele deixarLaila e o Alimed com os avós. No início disse que eles iam lá ficar por algum tempo, pestavam a divertir-se imenso. Por fim acabou por confessar que eles não iam voltar. Dissque queria que eles fossem criados como bons muçulmanos. Não queria que cedessem

tentações do Ocidente. Quando eu e a Nadia fomos para o lémen, em 198O, vimo-los pprimeira vez. A Laila tinha dezoito anos ejá estava casada. O Alimed, com dezassestava no Exército.O que mais me espanta na maneira como o Pai nos tratou a todos é que ele próprio tevmesma sina, quando era miúdo. Sabia perfeitamente que os casamentos combinados ehorríveis e, no entanto, quis submeter os seus filhos a essa provação. Quando emigrou pInglaterra e conheceu a Mãe, vinha fugido de um casamento combinado em Áden. Tiquinze anos e a sua mulher era ainda mais nova. Contou à Mãe que o casamento nuche gara a ser consumado e que viera para Inglaterra com o intuito de arranjar empreDisse também que, depois de a conhecer, decidira pedir o divórcio da sua esposa iemenNão sabemos se é verdade. Seja como for, a sua mulher morreu há muitos anos e -

incrível que pareça, se pensarmos em tudo o que ele fez impunemente - ele nunca cacom a Mãe.Agora que tenho filhos, posso imaginar o que a Mãe terá sentido no dia em que abrporta para dar as boas-vindas ao Pai. Esperava poder abraçar os filhos e ouvir as slongas histórias entusiasmadas sobre as férias de sonho no lémen, mas em vez ddescobriu que eles tinham desaparecido e que o homem que amava a traíra da pior forpossível. Algo deve ter morrido dentro dela, naquele dia.Pergunto-me, por vezes, porque é que ela não lutou pela Laila e pelo Alimed, como fez mim e pela Nadia, mas suponho que era demasiado jovem e inexperiente. Tinha tambdois bebés para criar e, pouco depois, engravidou de novo. Mais tarde, o Pai disse-lhcair de bêbado, que a mantivera grávida durante todos aqueles anos para a subju

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Depreendo que estava a falar a verdade. Parece-me exactamente o mesmo que estacontecer à Nadia.Desde que fugi do lémen, tanto a Laila como o Alimed regressaram a Inglaterra e ficarpor cá. Agora os filhos da Laila são ingleses dos pés à cabeça, como se ela nunca se tiveausentado do país.De certa forma, o facto de a Laila ter conseguido voltar para casa, depois de tantos andá-me esperança de que um dia a Nadia possa fazer o mesmo. Mas lá no fundinho, sum enorme rancor. Por que é que eles podem viajar livremente e ela não? Por que é que

é a única de nós que vive no lémen, quando todos os seus irmãos e irmãs são livres e esem Inglaterra? Não consigo ver nisto qualquer espécie de lógica ou justiça. Tudo me pardemasiado arbitrário e cruel.Não me sinto próxima da Laila ou do Ahmed. Mantemos os nossos laços fai-niliares, masque tudo o que lhes disser poderá ir parar aos ouvidos do Pai. Evito tocar em assunpessoais. Nenhum deles se esforça por visitar a Mãe. Eram muito novos quando o Palevou para o lémen e nunca chegaram a criar uma relação afectiva com ela.Suponho que o mesmo poderá acontecer se o Marcus vier a Inglaterra quando for aduSerá que vai culpar-me por o ter deixado? Compreenderá um dia porque motivo me embora do lémen? Irá a família do seu pai envenená-lo contra mim? Que histórias touvido sobre a sua horrível mãe inglesa? Sentirá pelas mulheres o mesmo que o seu pai

seu avô? Depreendo que é inevitável que ele venha a ter as mesmas atitudes dos homno seio dos quais foi criado. Um facto que me entristece profundamente.Pergunto-me muitas vezes quem terá desempenhado o papel de mãe do Marcus, quaparti. Talvez Ward, a avó, o tenha colocado debaixo da sua asa. Sei que ela me odiava, espero que não tenha virado o seu ódio contra ele, quando era tão pequenino e estavaassustado e confuso com tudo o que se passava à sua volta. Era uma criatura pequenina e indefesa quando o deixei. Mas talvez Ward tenha sentido compaixão pela fragilidade. No fim de contas, o pai do Marcus fora exactamente assim em criança ecuidara dele. A única coisa que posso fazer é acreditar que, quando me vim embora,teve pena do seu netinho.Quando a Mãe, a Jana e o novo marido da Mãe, Abdul, voltaram para Inglaterra, senti

enorme peso sair-me dos ombros. Embora tenha ficado terrivelmente desapontada pMãe não ter conseguido libertar a Nadia, pelo menos ela própria sobrevivera à viagemtantas provações. Eu começara a temer verdadeiramente nunca mais tomar a vê-Ia.A ideia de conhecer Abdul, o nosso novo padrasto, deixava~me muito nervosa. Era incade me imaginar, naquele estado de espírito, a aceitar um homem árabe na famespecialmente um que conseguira imiscuir-se tão rapidamente nos nossos problemas. Pmeu grande alívio, todos nós gostámos dele. Olhando para trás, suponho que ele devestar ainda mais nervoso do que nós, encontrando-se num país que lhe era estranhtendo de conhecer uma nova família, ainda por cima adulta. Desconfio que a Mãe develo avisado sobre o meu feitio arisco e difícil. Mais tarde vim a descobrir que ele tibastante medo de mim. Se sabia que eu ia aparecer lá em casa, dizia à Mãe que prefe

ficar no andar de cima e só tomava a descer depois de eu ter ido embora. Devia sentipouco à vontade, sabendo o que eu sentia em relação aos homens árabes em geral, dadmaneira como fora tratada. Deve ter tido dificuldade em assumir o seu estatuto de mada Mãe, quando nós andávamos sempre por perto.Abdul é um homem discreto, trabalhador, muito diferente do Pai e dos homens pertenciam à família de Gowad e de Abdirl Khada. Nunca tentou fazer o papel de pai seve mostrou-nos que tencionava trabalhar arduamente para ganhar a vida. Passou o testecondução e entrou para a Universidade, onde estudou inglês e obteve alguns diplomArranjou emprego como cozinheiro. Ficámos todos muito felizes pela Mãe. Era óbvio quena companhia e apoio de Abdul uma grande ajuda.

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Embora estivéssemos todos a levar as nossas vidas o melhor que podíamos, a verdadque o fantasma do encarceramento da Nadia insistia em assombrar-nos. A Mãe continuocontactar todos os funcionários que podia, incomodando cada um que se cruzava no caminho. Mas, no fundo do coração, sabíamos que se quiséssemos resgatar a Nateríamos de o fazer nós próprios. Concentrei-me na promoção de Vendidas!, na esperade que, se conseguisse falar com o maior número de j omalistas possível, talvez a nohistória acabasse por chegar aos ouvidos das pessoas certas.Nadávamos como inocentes numa piscina de tubarões, esperando que cada nova pes

que conhecíamos fosse aquela que nos iria dar a ajuda de que tanto necessitávamQueríamos desesperadamente salvar a Nadia. Estávamos dispostos a acreditar em todapromessas que nos fizessem e a pagar qualquer quantia para conseguir um resgate.Foi em 1992 que tomei conhecimento de uma organização de estilo militar, que alegser especialista no resgate de crianças. Encontrava-me na Suécia a almoçar com o meditor, durante uma viagem promocional.No espaço de aproximadamente dezoito meses, habituara-me a viajar pela Europa toPara mim, ir a Roma, Estocolmo ou Amesterdão era o mesmo que ir a Londres. Sentiatão à-vontade em aeroportos como em estações de comboio. Parecia que tinham passmilhares de anos desde que partira do aeroporto de Heathrow, em 198O, rumo a uterrível aventura, mas isso acontecera há apenas doze anos. Na época não fazia a me

ideia de corno era entrar num avião; agora via-os como magníficos autocarros que levavam de um compromisso a outro.A maior parte das vezes viajava até Paris, onde o livro vendera mais de um milhãoexemplares e os editores estavam sempre a pedir-me para dar entrevistas e aparecerprogramas de televisão. Toda a publicidade que rodeou as emissões do Sacrée Sotinham tornado o meu rosto e a minha história famosos em França, e nas ruas os francefaziam-me sentir um deles. Mostravam-se sempre preocupados e interessados em sabque estava a acontecer nas nossas vidas.Nas primeiras viagens sentia-me aterrorizada perante a ideia de estar numa cidestranha, onde ninguém compreendia uma palavra do que eu dizia e eu era incapazpedir um café ou perguntar onde era a casa de banho. No início ficava sempre nos qua

de hotel com a Mãe, ou com o parente ou amigo que me acompanhava. Se por acasoeditores não me arranjavam um guia e alguém para se ocupar de todos os aspecpráticos, não tinha coragem sequer de sair para o corredor do hotel.No entanto, ao cabo de uns dias lá arranjava forças para sair sozinha, caso contrário, dem doida. Não conseguia ficar metida no quarto durante horas a fio, sabendo que uma maiores cidades do mundo me esperava lá fora.Pôr o pé na rua, sem escolta, foi um grande passo em frente para mim. De repedescobri que era capaz de o fazer, que era livre de agir como bem me apetecesse. Tana minha mente tivesse ainda a sensação de que devia estar entre quatro paredescoberta de véus. Passara oito anos a lutar contra a ideia de que devia ser invisível e   jamais poderia actuar por iniciativa própria. Parte dessa lavagem cerebral deve

funcionado.Antes de deixar Birmingliam era uma pessoa cheia de autoconflança, feliz por andar de lado para o outro na cidade, a visitar amigos, a ir à escola e à associação juvenil. Maqbana, toda essa confiança fora-me arrancada, e agora tinha de reencontrá-la e permque amadurecesse dentro de mim.Assim que derrubei essa muralha, descobri que adorava Paris. Aprendi rapidamentorientar-me nas ruas da capital romântica do mundo com tanto à-vontade comoestivesse na minha cidade-natal. Por vezes viajava até Paris duas ou três vezes semana, para ir dar uma entrevista durante a qual me esquecia de dizer uma ou oucoisa, o que me obrigava a regressar uns dias depois.

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Com frequência levava o Liam comigo, detestando a ideia de o deixar sozinho e quereque ele partilhasse parte da excitação de viajar e andar de avião. Os editores habituarse a tê-lo a brincar nos seus gabinetes, a mexer em tudo e a distrair os adultos das socupações.No controle de imigração do aeroporto Charles de Gaulle, os funcionários já nem se davao trabalho de me mandar parar e de me pedir o passaporte.- Olá, Zana - díziam-me, com um aceno de mão. - Boa viagem.Perceber que tanta gente nos conhecia e se preocupava connosco, era uma sensa

agradável, mas também um fardo. As viagens não se resumiam a passear pelas ruasapreciar as vistas. Em algumas delas não tinha quaisquer momentos livres. Ficava fechno quarto de hotel, a conversar com os órgãos de comunicação social, desde o instante que saía do avião até tornar a embarcar. Tudo obedecia a um horário rígido. Os jornalisvinham ao quarto de meia em meia hora, ou de hora a hora se fossem mais importanteeu tinha de responder às mesmas perguntas vezes sem conta, revivendo os horrores que passara tantas vezes.Fazia-o de bom grado, por mais cansativo e penoso que fosse, porque sabia que, semque contava a minha história, aumentavam as hipóteses de alguém influente ouvir o cda Nadia e vir em nosso auxílio. Cada editorial que saía nos jornais (e embaraçavgoverno iemenita) aumentava as nossas hipóteses de que algo fosse feito, ou pelo me

eu assim pensava.Gostava, também, da aventura de viajar. Adorava ver lugares novos e conhecer noculturas. Adorava provar novos pratos e saber como viviam outras pessoas. Estava famde informação e vivências. Era como se estivesse a tentar compensar todos os anos perdera.Cada nova experiência dava-me forças para continuar a lutar. E cada uma delas fez de ma pessoa que sou hoje. Ao mesmo tempo, sentia-me culpada. Ali estava eu, livre de ene sair de aviões, de passear por cidades magníficas, tratada como um VIP, enquantNadia estava presa em Maqbana. Saber que ela devia estar junto de mim, ao meu laretirava-me grande parte do prazer de ter escrito um bestseller.Mais tarde descobri que as autoridades iemenitas tinham dito à Nadia e ao Mohammed

eu fizera tudo aquilo por dinheiro. É mentira. Nunca pensei duas vezes no dinheiro. Nquero pensar no que a Nadia terá sentido quando ouviu essa história. Certamentetudo o que lhe disseram foi exacerbado, com o intuito de a fazer crer que eu a abandone que andava, cinicamente, a fazer fortuna às custas do sofrimento dela. Espero quefundo do coração, ela compreenda. Sabe que, durante os primeiros vinte e dois anossua vida, fiz tudo para a proteger. Desejo sinceramente que não tenha acreditado nquando lhe contaram que a abandonei. Sei que, nos momentos mais dificeis, ela pensa a esquecemos. É natural, quando os meses se arrastam sem notícias, mas espero  jamais acredite que desistimos de lutar por ela.Quando a deixei, em 1988, prometi que a tiraria imediatamente do lémen. Espero que,dia, saiba o quanto tenho lutado para cumprir essa promessa.

Ainda hoje me sinto culpada. Sempre que vivo uma nova experiência, sinto-me mal por poder partilhá-la com ela. A minha reacção instintiva é recusar tudo o que me queiroferecer. Mas depois digo a mim mesma que o que estou a fazer é por ela. Quanto maprendo e mais pessoas conheço, mais hipóteses tenho de a libertar.Sei que, se tivesse sido a Nadia a sair do lémen e eu a ficar para trás, ela estaria agofazer exactamente o mesmo por mim. Mas sei também que, se tivesse sido eu a ficar ptrás, provavelmente já lá não estaria, porque os iemenitas teriam querido livrar-se de mhá muitos anos. Jamais teria sido tão dócil e obediente como a Nadia. Tê-los-ia enfrenttodos os dias, cuspindo-lhes na cara, arranhando-os corno um gato enfurecido, e escerta de que já se teriam cansado da guerra e ter-me-iam recambiado para casa.

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  Tudo o que faço, faço-o pela Nadia e por mim própria. É como se fôssemos gemsiamesas de espírito: sinto-me incompleta por não a ter comigo, em carne e osso. Por lado é uma espécie de sofrimento permanente, mas por outro é reconfortante sentir ela ainda faz parte de mim, mesmo estando tão longe.Sempre que posso escolher, opto por ficar em hotéis modestos. Não necessito de luxIncomodam-me. Na minha primeira viagem a Paris, instalaram-me num hotel que deveum dos melhores da cidade. Senti-me lisonjeada, mas extremamente desconfortável. Seme deslocada e estranha. No dia seguinte pedi para mudar para um local onde estive

mais à vontade. Arranjaram-me um hotel mais simples, que se tornou a minha basequase todas as viagens que se seguiram.Embora as viagens promocionais fossem excitantes e divertidas, a pressão era enorme.o Liam junto de mim era, por vezes, uma pressão acrescida, mas se não o levasse ficcheia de saudades e com vontade de voltar para casa, o que me impedia de me concenno objectivo da visita.Sempre que falava do livro, lembrava-me da Nadia. Senti que estávamos todos a desilude só me apetecia esconder-me a um canto e chorar. Mas por pior que me sentisseperguntas intermináveis e repetitivas não paravam de me bombardear. Era obrigadrever vezes sem conta os pormenores das nossas vidas nas aldeias e das nossas batalcom as autoridades, até que as palavras já me saíam da boca automaticamente, o m

cérebro demasiado cansado para as seguir.- Como se sente por ter perdido a sua irmã?- Como se sente por ter deixado um filho bebé e nunca mais tornar a vê-lo?- Por que é que escreveu o livro?- Acha que um dia tornará a vê-los?- O que sente em relação ao seu pai?Quanto mais rápidas e densas eram as perguntas, mais difícil se tornava para mencontrar respostas claras que explicassem às pessoas como tudo acontecera, e por tínhamos de pôr um fim àquela situação. Por vezes dava comigo a dizer coisas que queria ou a contradizer-me, porque as perguntas não paravam e eu falava, falava, falavaQuando estávamos só eu, a Mãe e alguns amigos ou familiares sentados à volta de u

mesa, analisávamos o problema de todos os ângulos possíveis. Se um de nós perdcabeça ou fazia um comentário estúpido, não importava. Eram sessões em que trocávamideias.Mas os jornalistas querem pegar nas nossas palavras e passá-las directamente parpapel ou para o ecrã. Querem moldar todo o material que lhes damos sob a forma de uhistória que seja deles. Sempre que se discutem assuntos emotivos, as coisas acabamser distorcidas, mas quando os discutimos com os órgãos de comunicação social, esdistorções tornam-se factos e a verdade perde os seus contornos, adquire um aspeindefinido e turvo de cada vez que se toma notícia.Em Estocolmo, naquele dia, estávamos a fazer uma pausa na ronda de entrevistas. Medurante as refeições, em viagens daquele tipo, a conversa raramente se desviava do liv

da história que andávamos a contar ao mundo. Não era a minha primeira visitEstocolmo e eu já conhecia os editores. A minha amiga Jackie estava comigo dessa vez,Liam também, exigindo quase toda a minha atenção. Os editores eram muito generosodeixavam-me sempre viajar com uma pessoa amiga ou com uma das minhas irmãs, sMãe não pudesse ir.- Conhece? - perguntou-me a secretária do meu editor, estendendo-me um livro parecia ser sobre militares. Na capa, via-se a fotografia de um homem de camuflado curna criança nos braços, como se acabasse de a salvar.- Não - respondi, lançando um olhar distraído ao livro, ao ver o Liam desaparecer de ndebaixo da mesa. Não parecia o tipo de leitura que me interessasse. - Porquê?

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- É sobre uma organização... eles não gostam que lhes chamem mercenários, mas supoque seria essa a melhor maneira de os descrever. São especialistas em operaçõesresgate de crianças que foram tiradas aos pais, coisas desse gênero.- Que tipo de operações de resgate? - perguntei. Agora estava totalmente concentradaassunto.- Bom, se um pai divorciado resolver raptar os filhos e levá-los para o seu país-natalmãe não conseguir a custódia através de meios legais, estes tipos vão até lá e trazem-de volta. O livro conta quatro casos diferentes de resgates que eles fizeram.

americanos.Peguei no livro de capa reluzente e folheei-o. Duvidei que fosse capaz de o ler, pois paque perdi a minha capacidade de concentração, mas queria saber mais. Antes de ir palémen, costumava ler muito, mas agora, sempre que abro um livro, o Liam puxa-me pmanga ou trepa-me para o colo, e os meus pensamentos distraem-se com mil e ucoisas.Empresta-mo? - perguntei. - Para a minha mãe dar uma vista de olhos.- Com certeza - disse ela. - É para si.Decidi dá-lo à Mãe; afinal, ela sempre fora melhor do que eu a fazer investigações.Sabia que ela continuava a lutar com as autoridades, embora ultimamente me poupaaos detalhes. Sabia que eu estava assoberbada de trabalho, por causa do livro e do Liam

por isso tentava não me preocupar desnecessariamente. Senti-me grata por essa atençãparei de lhe fazer perguntas sobre o que andava a fazer. Sabia que, se ela conseguisse uni passo em frente, eu seria a primeira a receber a notícia e, pura e simplesmente, me sentia capaz de lidar com todos os desapontamentos e obstáculos que todos os ddeviam deparar-se-lhe.Embora desconhecesse os pormenores do que ela andava a engendrar, sabia que a Mtambém não estava a conseguir lidar com o stress. Parecia sobreviver à custa de nicotinadrenalina.No voo de regresso a Inglaterra, folheei distraidamente o livro, enquanto a Jackie brinccom o Liam. Trazia fotografias de militares com ar eficaz e satisfeito e crianças sorridene eu pensei em como seria maravilhoso acolher a Nadia e os filhos em Birmingliam, p

pormos fim ao circo dos media e levar por diante o resto das nossas vidas. O indivíduofoto inspirava confiança. Parecia uma pessoa capaz de conquistar tudo aquilo quepropusesse fazer.Comecei a sonhar, pensando como teria sido bom escrever Vendidas! a par com a NaPoderíamos viajar juntas para promover o livro e ter prazer em gastar o dinheiro receitas. Mas, se estivéssemos ambas sãs e salvas em casa, talvez tivéssemos prefedeitar o passado para trás das costas e prosseguir com as nossas vidas em privadonossa história teria terminado assim que aterrássemos em Gatwick.Estive com a Mãe no dia seguinte e entreguei-lhe o livro.- Parece interessante - disse ela, pondo-o de parte para o ler mais tarde. Acabávamosplantar as sementes do nosso próximo desastre.

 Tomámos um chá e conversámos, e eu não tomei a pensar no assunto. Era impossmanter-me a par de tudo o que estava a acontecer na família. As nossas vidas já davam trabalho suficiente. É o que acontece quando se tem filhos. O tempo parece queevapora. Os meus dias passavam numa espécie de névoa, como se andaconstantemente à procura de maneiras para resolver a minha vida.Mudara-me para um apartamento da Câmara, pequenino e agradável e a maior partemeu tempo era ocupado a tratar do Liam. O dinheiro que começava a receber do livro me muito útil para comprar coisas para ele, mas a minha vida consistia em avançar umde cada vez. Consegui comprar um carro, o que me deixou entusiasmada. Dava-mliberdade que eu tanto queria, para me poder deslocar em Birmingliam. e visitar vapesso4s.

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Umas semanas depois, a Mãe trouxe novaniente o assunto à baila.- Li o livro que me deste - disse ela. - Temos de entrar em contacto com esta organizaçã- Bom, o que tem de ser tem muita força - respondi, com indiferença.Não tomei a pensar no assunto. Começava a encarar a nossa situação de uma manmuito racional. Quando voltei do lémen, ficava entusiasmada com todas as pequenicoisas que aconteciam, sentia-me disposta a fazer com que tudo andasse para a freimpaciente por trazer a Nadia e os miúdos para Inglaterra o mais depressa possívetempo ensinara-me que não valia a pena pôr-me aos pulos a cada nova promessa que

faziam ou a cada raio de esperança que nos davam. Tivera tantas desilusões que já esperava mais nada. Se a Mãe quisesse abordar aquela gente, eu teria todo o interesse ouvi-los, mas não ficaria com grandes expectativas.Semanas depois, estava em casa da Mãe com o Liam, provavelmente a beber um ccomo é hábito, quando ela disse:- Temos encontro marcado com um daqueles fulanos.- Que fulanos? - A minha cabeça estava a quilómetros de distância, concentrada em evque o Liam enfiasse uma coisa qualquer na boca.- Os do livro que me deste - respondeu a Mãe, como se fosse óbvio.- A sério? - Fui apanhada de surpresa.- A sério. Conseguimos contactá-los e eles querem encontrar-se connosco. Um deles v

de propósito da América para falar connosco.- Queres que eu faça alguma coisa? - perguntei.- Vou encontrar-me com ele, primeiro - explicou ela. - Não quero que andes por aí a petempo com encontros que podem não dar em nada. Já tens trabalho de sobra com o LiDepois conto-te como correu.Contrariando todo e qualquer juízo sensato, senti uma vez mais que uma chamaesperança se acendia dentro de mim.A Mãe foi informada de que iria encontrar-se com uma mulher chamada Judy, que vipropositadamente da América. A reunião foi marcada para uma estação de serviço de uauto-estrada, algures entre Londres e Birmingham. Parecia um local devidamente obscuanónimo. O tipo de lugar onde se poderiam trocar segredos, sem medo de ser ouvido

um jornalista ou reconhecido por um vizinho fala-barato.O encontro estava envolto numa atmosfera de secretismo, que me parecia apropriadagénero de operações que constituíam a especialidade dessa organização. Assim que soque a Mãe ia realmente reunir-se com eles, a pequenina centelha de esperança começocrescer e a reluzir dentro de mim. Deixei-me levar pelo entusiasmo de pensar que tínhaencontrado um novo caminho a seguir.Muitas noites houve em que sonhava alugar um helicóptero e sobrevoar as montanhasMaqbana para resgatar os membros desaparecidos da minha família. À fria luz do lembrava-me de como fora difícil para todos desafiar os homens das aldeias e percebia o meu sonho não passava de uma fantasia, ao estilo dos filmes do James Bond. Isso nãoimpedia, contudo, de sonhar que uma força de elite constituída por homens forte

corajosos, provavelmente o Bruce Willis, o Sylvester Stallone e o Amold Schwarzeneggme diria para não me preocupar mais e para deixar tudo a seu cargo.Foi então que este grupo de pessoas tão misteriosas e secretas apareceu. O seu curricude operações de resgate era tal e qual um argumento cinematográfico. Talvez, no fimcontas, o meu sonho não fosse fantasia. Talvez este fosse realmente o caminho em fre Talvez, disse para os meus botões, o nosso erro até à data tivesse sido confiar demasiem diplomatas, que tinham carreiras a proteger e cujas vidas eram pautadas prudência, soluções de compromisso e longas negociações.Sabíamos, agora, que a diplomacia jamais daria frutos. Isso tornava-se cada vez móbvio. Necessitávamos de pessoas que não tivessem receio de agir, pessoas estivessem habituadas a recorrer à força, se necessário, para dominar os homens

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mantinham a minha irmã prisioneira. Necessitávamos de pessoas dispostas a correr rise que acreditassem que os fins justificam os meios. Pessoas, por outras palavras, estivessem dispostas a tudo.A Mãe foi levada ao local do encontro por uma amiga, e durante toda a tarde não consdescontrair-me, a minha cabeça não parava de andar à roda com as novas possibilidaque se abriam diante de nós. Tentei brincar com o Liam, mas era incapaz de pensaroutra coisa para além do que se estaria a passar naquela estação de serviço e do quetais americanos poderiam fazer por nós.

De certo modo, o facto de serem americanos fez-me sentir ainda mais optimista. Nãoporque lhes conferia um ar ainda mais de heróis de um filme de acção, mas tambporque vira a maneira como os Americanos tinham tirado o Saddam Hussein do Kuwaresgatado os reféns do Irão. Pensei que se preocupariam menos com o facto de poderprejudicar as relações diplomáticas com um país do Médio Oriente. Estava a ser irracioclaro, porque estas pessoas não eram o governo norte-americano, mas a verdade é quideia de uma força americana entrar no lémen para resgatar a Nadia me parecia viáConvenci-me alegremente de que em breve a minha irmã e os miúdos estariam em casãos e salvos.Apesar das muitas desilusões e recuos que tínhamos sofrido, eu continuava desesperpor encontrar uma espécie de fada-madrinha ou padrinho. Uma que tivesse uma vari

de condão, que nos libertasse de todas as preocupações e responsabilidades, e prometetrazer-me a Nadia e as crianças.Nessa noite, a Mãe telefonou-me.- Como é que correu? - perguntei.- Bem - respondeu ela, no seu estilo curto e seco. - Tivemos uma longa conversa e ela emuito confiante que vão conseguir efectuar esta missão.- De que é que eles precisam? - quis saber. - Precisam de dinheiro?- Ainda não falaram de dinheiro. Precisam de factos. Precisam de saber como é o terrenvolta das aldeias. Precisam que lhes descrevamos tudo ao pormenor.- Eu posso fazer isso - disse eu. Os pormenores do local onde passara aqueles oito ahediondos continuavam marcados a fogo na minha’memória. Era capaz de descrever c

trilho e cada rocha, cada árvore raquítica e cada montanha estéril. Quando lá chegáramo território estava por cartografar, ou pelo menos foi isso que disseram à Mãe quandocomeçou a procurar-nos. Mas dentro da minha cabeça havia um mapa o mpormenorizado possível. Eu percorrera aqueles caminhos de terra todos os dias, e entrasaíra de Taez de carro, sonhando com o momento em que pudesse fugir. Queria dar-ltodos os pedacinhos de informação que ainda tinha guardados na mente.Nos dias que se seguiram, eu, a Mãe e a Jana sentámo-nos à volta da mesa da cozinhaminha mãe, a fazer o máximo de desenhos e mapas que conseguíamos. Indicámos oficava a casa da Nadia e as restantes casas em relação à dela. Mostrámos a localização caminhos de acesso à aldeia e quais os melhores pontos para observar as entradasaídas dos homens, sem serem vistos.

Anotei tudo aquilo de que me lembrava sobre a cidade de Taez, os sistemas de transpora estrada que levava a Maqbana. Indiquei todas as sinalizações e aldeias que havia pcaminho. Estava a ficar eufórica por ser capaz de tomar a planear alguma cactivamente. Era muito melhor do que estar sentada à espera que o telefone tocasse edesse notícias. Estávamos novamente a assumir o controlo da situação e isso faziabem.Bebemos chá durante dias a fio, enquanto recordávamos cada vez mais pormenoreslembranças já não eram tão dolorosas como quando eu tivera de as invocar para escreo livro, pois agora tinham um objectivo concreto. Os nossos anjos-da-guarda tinhfinalmente chegado e estávamos entusiasmadas com aquela história toda. Eu queria dlhes o máximo de informação possível.

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- Não são suficientemente pormenorizados - concluí um dia, olhando para os desenhos tínhamos feito. - Eles precisam de saber as distâncias exactas entre os diversos locPrecisam de saber a altura exacta destas montanhas, para poderem saber o que conseguir ver do alto delas e onde é que serao avistados pelos aldeões. Temos de arrabons mapas do lémen.No dia seguinte corri todas as livrarias de Birmingliam, mas nenhuma delas tinha algo mdetalhado que o vulgar atlas, que indicava apenas as principais cidades iemenitas. Pajuda a um dos empregados, que me recomendou uma livraria de viagens em Londres,

vendia mapas.Meti-me no comboio para Londres. A livraria ficava em Long Acre, entre Convent GardeLeicester Square. Tinham todos os livros possíveis e imaginários sobre todo e qualqdestino do mundo. Quem me dera ter descoberto a loja há muito mais tempo.dispusesse de mapas como estes, a Mãe não teria tido tantas dificuldades em nos locadepois de termos estabelecido contacto com ela. Comprei um que incluía até as aldeiaAshube e Hockail, e regressei a Birmingliam.O meu coração pulava de alegria e entusiasmo. Desta vez íamos conseguir. íamos trazêde volta, ainda que tivéssemos de contratar homens violentos para o fazer. Agora quencontrar-me eu própria com os indivíduos que iam efectuar a operação de resgate.- Vou marcar outra reunião - prometeu a Mãe.

Uns dias depois, disseram-nos para comparecermos no hotel Post House, nos arredoresBirmingliam. Quando estacionámos à porta do hotel sombrio, típico local de passagem pexecutivos, senti o estômago às voltas. Percebi que a Mãe estava tensa, de olhos fixosvazio e de boca fechada, absorta nos seus pensamentos. Saímos do automóvel e entráno hotel.Dois homens e duas mulheres esperavam-nos no átrio. Uma das mulheres era JReconheceu a Mãe assim que nos aproximámos e levantaram-se todos para cumprimentar. A outra mulher, que nos disse chamar-se Jackie, tinha um sotaque ing Judy e os dois homens - o marido, Don Feeney, e Ken, um indivíduo alto e calado, que foi apresentado como um amigo de longa data de Don - eram americanos.Don parecia ser o chefe. Pediu desculpas à Mãe por não se ter encontrado com ela an

mas ficara retido na Islândia, a tentar resgatar umas crianças, e acabara por ser preso. Fpor esse motivo que Judy se encarregara da reunião preliminar. Don era um homemaspecto vulgar, de estatura média e cabelo curto, vestido desportivamente, com calçasgaliga e uma camisa.Perguntei quem era o homem da fotografia que vinha na capa do livro. Penso quealtura, achara que seria ele quem se encarregaria da missão.- O Dave já não participa em missões no terreno - disseram-nos. - Mas continua a pertenà organização. Ainda utilizamos o rancho dele como base de treinos.Eram as pessoas mais descontraídas e acessiveis que eu jamais conhecera. Simediatamente que nos encontrávamos em boas mãos. Era como se Deus tivefinalmente ouvido as minhas preces, murmuradas entre soluços pela noite dentro. Envi

me um grupo de pessoas calmas, competentes e altamente especializadas, que iam acacom todos os nossos problemas. Tudo correria bem daí por diante. A única coisa tinhamos de fazer era dar-lhes todas as informações de que necessitavam e depois espeque nos informassem sobre o que iria passar-se em seguida.Quando se atinge o estado de desespero que se apoderara de mim e da Mãe, uma psoa está disposta a fazer seja o que for e a acreditar em quem quer que prometa soluçõ’, Quando recontámos a nossa história uma vez mais, as duas mulheres começarachorar. A sua reacção parecia genuína. Fizeram-nos sentir tão optimistas em relaçãofuturo!Os homens interrogaram-me durante horas, com o mapa aberto sobre a mesa. Falavcomo soldados, homens de acção que sabiam como lidar com situações de per

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Contaram-nos que os iemenitas tinham baixado o seu sistema de radar durante a gueIrão-1raque, o que dificultava entrar ou sair de avião do território.- Teremos de nos manter a uma altitude muito baixa - comentaram. Eu limitei-me a acecom a cabeça, como se entendesse o que eles estavam a dizer. Era de bom grado deixava tudo nas mãos deles. James Bond tomara-se real para mim.- Não nos parece que haja qualquer problema - disseram, por fim. - Vai ser uma Í operarápida, entrar e sair. Teremos de trabalhar a partir de dentro, no terreno. Como há à tancrianças envolvidas na missão, necessitaremos de levar oito a dez homens, todos eq

pados com camuflados e dados atordoantes.- Bem vão precisar - disse eu. - Não fazem ideia de como aquela gente se agarra :. cunhas e dentes a qualquer criança britânica que consiga apanhar. Se vos apanharemmatam-vos. Também podem vir a precisar de alguma coisa para acalmar a Nadia, porela -1 vai ficar aterrorizada e não perceberá o que está acontecer. Vai fazer de tudo pproteger os filhos.- As crianças não serão um problema - garantiram-nos. - Por isso é que vamos levar uequipa tão grande.- Depois do seu primeiro encontro com a Judy - explicou Don à Mãe -, enviamos dhomens ao lémen para fazerem uma inspecção ao terreno. Eles tiraram fotos.Espalhou as fotografias ampliadas em cima da mesa, diante de nós. Sustive a respiraç

com o espanto. Tinham conseguido entrar em Ashube e fotografar o telhado de casaNadia a partir da montanha. Tinham penetrado numa aldeia sobre a qual os diplomatas disseram várias vezes que era «impossível de alcançar». Tinham realmente lá estadregressado com fotos de reconhecimento. Nem queria acreditar no que via. As fotograeram tão nítidas e pormenorizadas que era quase como se estivesse lá novamente, a tudo com os meus próprios olhos. Senti vontade de chorar, ao pensar que a Nadia estdentro da casa enquanto eles a fotografavam de fora. Estiveram tão perto dela! Tudo indicava que eles já se encontravam a meio caminho de a salvar. Outra imagmostrava um dos membros da equipa a posar junto de um sinal que apontava pMaqbana. Fui percorrida por um arrepio ao lembrar a primeira vez que passara por aqumesmo sinal, rumo à aldeia.

- Vamos evacuá-los de helicóptero - explicou Don. - Descobrimos o local perfeito pahelicóptero pousar, por isso vamos conseguir sair da aldeia e ir embora muito antes dehomens perceberem sequer o que aconteceu. E precisamos de ter um navio à espera plevar toda a gente.- E onde vai estar esse navio? - quis saber.Abriu de novo o mapa e apontou para o ponto mais a sul do Mar Vermelho, onde o lémquase tocava em África.- Aqui - disse ele -, em 1)jibuti. É um porto francófono, o maior do Golfo de Áden. principal porta de saída da Etiopia para o mar.- óptimo - comentei. - Se é francês, melhor ainda. O governo francês e o que inais nos tajudado.

- Queremos entrar no território durante o Ramadão - disse Don -, quando toda a gepassa o dia a jejuar e a dormir. Assim estarão menos alerta e haverá menos homens perto. Quando acordarem e se derem conta do que aconteceu, já nós estaremos no ar.Pareciam tão eficientes e seguros de si que eu só pensava por que é que nunca ningunos falara daquela maneira. Os funcionários do consulado jamais tinham mostrado metda capacidade de iniciativa desta gente, quando ainda por cima isso fazia parte das sfunções.Ao longo dos anos, tinham feito algumas tentativas para ver se a Nadia estava bem, meu sabia que, uma vez, uma mulher do consulado recebera ordem para ir falar com a Nadepois de toda a publicidade francesa, e acabara por entrevistar a rapariga errada. N

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sequer acertara com a casa. Dirigiu-se a uma zona muito mais chique de Maqbana e facom uma mulher coberta por um véu grosso, que mal falava inglês.No seu relatório, descreveu o «bonito ambiente» em que a Nadia vivia, numa casa cheia«comodidades». Citou a Nadia como tendo dito coisas como «eu não querer ir casa».Qualquer pessoa que tenha conversado em inglês com a Nadia sabe perfeitamente quemantém o seu sotaque típico de Birmingliam. Relatórios como este, com uma falta de rtão gritante, entraram para os arquivos com o carimbo oficial. Foram aceites coverdadeiros. Sempre que tomávamos a discutir o nosso caso, tínhamos de explicar por

motivo era impossível a Nadia ter tido tal conversa, o que significava que éramos forçaa chamar mentiroso a um funcionário britânico, ou pelo menos a insinuar que ele, ou era incompetente.Ao longo dos anos, recebemos vários desses relatórios «oficiais» sobre o estado da NaSurgiam sempre vindos do nada. Regra geral, nem sequer sabíamos que alguém decidivisitar a Nadia. Num deles, um funcionário dizia que a Nadia estava bem e de boa saú«embora, a meu ver, parecesse confusa e drogada».Uma carta dessas chegava-nos inesperadamente às mãos, deixando-nos atormentacom imagens horríveis da Nadia, impotente, sem ter quem a ajudasse, sem saber o realmente se passava no mundo exterior.Senti que, agora, podíamos pôr para trás das costas todos os processos burocráti

Quando terminou o nosso encontro no hotel, eu estava disposta a pôr as nossas vidas mãos daquelas pessoas. Com alguma relutância, eles disseram que chegara a hora de fde dinheiro. Naquele instante, eu ter-lhes-ia dado tudo o que pudesse. As receitas direitos de autor do livro tinham começado a avolumar-se. Para mim, todo o dinheiro conseguisse angariar fazia parte de um fundo para libertar a Nadia e os miúdos. Se espessoas conseguissem fazê-lo, dar-lhes-ia tudo o que tinha (e não tinha) de mão beijadaO momento parecia propício. Acabara de receber dos editores franceses um chequecerca de cem mil libras. A meu ver, era dinheiro irreal, desmesurado em relação a tudresto na minha vida. Mal conseguia acreditar na quantidade de zeros indicada no cheque o meu agente literário me enviara. Pouco me importava o fim que levaria edinheiro, desde que tivesse a Nadia junto de mim em Inglaterra. Don disse-nos que

começar a montar a operação imediatamente e que nos manteriam a par de todospassos. Teríamos de ser pacientes, algo a que, de qualquer modo, já estávahabituadas.Nos meus momentos mais optimistas, acreditava que estes americanos iam ser os nossalvadores. Imaginava-os a fazer planos e ’a organizar o seu pequenino exército privadcomprar anuas e a alugar um helicóptero e um navio. Permiti a mim mesma acreditar estávamos próximo do clímax da nossa história e do fim do inferno da Nadia.A Mãe avisava-me sempre que eles necessitavam de mais dinheiro. Eu pagava-lhes de bgrado. Sabia que uma operação dessas seria cara. Primeiro, pediram vinte mil libras pos custos de organização. Tratámos de tudo para enviar o dinheiro directamente da miconta bancária para a conta da empresa nos Estados Unidos, conhecida como C

Segundo consta, a empresa fora criada especialmente para aquela operação. Não interessava o que eles faziam para a administrar. O ar de mistério que envolvia as questburocráticas da missão estava em sintonia com o projecto. Afinal, estávamos a agmargem dos ditames da lei internacional. Era de esperar que os nossos novos aliaquisessem tomar algumas precauções.Convocaram outra reunião e marcámo-la em casa de uma amiga da Mãe. Por essa alturatinham feito mais investigações e ficámos impressionadas com as suas descobertas e co grau de pormenor dos seus planos. Parecia que estávamos a aproximar-nos do diaque eles entrariam em Maqbana. Quando terminámos a reunião já a tarde ia a mDisseram-nos que necessitavam de mais um cheque, para avançarem para a fase seguiEstavam com pressa, porque iam voltar para os Estados Unidos naquela noite.

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- Os bancos estão quase a fechar - disse eu. - Vou ter de telefonar para a minha agêncavisar que vamos para lá agora, para levantar o dinheiro.Eu e a Mãe conduzimos que nem loucas até ao centro da cidade, sabendo que o baestava prestes a fechar as portas. Chegámos mesmo à justa. Levantámos o dinhevoltámos para casa a correr e entregámos-lhes a quantia.No espaço de uns meses, tinham-nos levado 85.OOO libras e dito que estavam prontoefectuar a operação de resgate. O meu optimismo disparou em flecha, juntamente coansiedade, pois se algo corresse mal, a Nadia e os miúdos poderiam acabar por se mag

Empurrei esses receios para o fundo da minha mente. Era um risco que teríamos de corOs americanos garantirani-nos que tinham previsto todos os percalços. Só nos restconfiar neles, o que era fácil.A Mãe manteve-se em contacto com eles quase todos os dias. Tinha os seus númerostelemóvel e nunca sabia onde estariam, de cada vez que lhes telefonava. Às veconversava com eles duas ou três vezes por dia, para ter a certeza de que não desiludiriam. Recebeu uma conta de telefone de quinhentas libras, que eu paguei comelhor das boas-vontades.Ela e a Jana meteram-se num avião rumo à Carolina, para visitarem a equipa e levarmais dinheiro. Foram a casa deles e conheceram as suas famílias. A Mãe estava confiade que eles andavam a fazer tudo o que podiam para pôr a operação em marcha.

Diziam-nos que estavam a efectuar outras missões ao mesmo tempo que planeavanossa, o que explicava por que nunca os encontrávamos no mesmo lugar, quando ltelefonávamos. Gostaríamos que se dedicassem apenas ao nosso caso, mas de certo mera encorajador saber que os seus serviços eram tão requisitados e que estavam a ganexperiência, fazendo resgates um pouco por todo o mundo.As suas certezas de que conseguiriam resgatar a Nadia e os miúdos nunca se abateramnós deixámos que eles nos convencessem de que as probabilidades de êxito eelevadas. A Mãe reparou, porém, que eles nunca lhe ligavam. Era sempre ela questabelecia contacto, mas depreendeu que era por serem pessoas tão ocupadas.Foram bastante honestos ao dizerem-nos que nem todas as suas missões corriam coprevisto. Salientaram que havia sempre um factor de risco, o que nós compreendíam

perfeitamente. No fim de contas, estavam a violar a lei e podiam ser presos, coacontecera a Don, na Islândia. Arranjavam sempre desculpas muito plausíveis pquaisquer atrasos.

Parecia que estávamos, uma vez mais, condenadas a esperar, mas pelo menos sabíaque algo estava a ser feito e tínhamos alguém com quem falar sobre a evolução do casonão estávamos à espera que o Mohammed ou Gowad cumprissem uma promessa tinham feito em plena discussão, ou que um deputado nos ligasse depois de «investigassunto».Um ano depois do nosso primeiro encontro, os americanos telefonaram a dizer estavam prontos para partir e que necessitavam de mais cem mil libras para pôr tudo

andamento. O facto de terem demorado tanto a chegar àquela fase fez-nos pensar tinham estado profundamente empenhados a fazer trabalho de campo e a tratar preparativos.Se tivessem pedido tanto dinheiro logo no início, talvez tivéssemos pensado duas veantes de lhes pagar. Sabia, por intermédio de outras fontes, que geralmente não cobravmais do que oitenta mil libras por uma operação e fiquei surpreendida por ver o nopreço subir em flecha. Mas confiava neles cegamente. Parecia que, até ver, tinhcumprido todas as suas promessas.- Porquê tanto dinheiro? - perguntei à Mãe.

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- É por causa dos miúdos - explicou-me ela. - Nunca fizeram uma missão que envolvetantas crianças. Requer mais homens e mais trabalho de organização. Não podem cotantos riscos.A explicação parecia plausível. Estava disposta a dar-lhes o dinheiro para avançarem cooperação. Pensei que a Mãe e a Jana deviam saber o que estavam a fazer. Ao fim ecabo, já lidavam com os americanos há bastante tempo. O dinheiro foi depositado na cobancária deles, perfazendo um total de 185 OOO libras, e ficámos à espera que telefonassem a dizer que a missão estava a decorrer ou que fora concluída.

À medida que os dias se foram transformando em semanas, tentei não pensar no estaria a acontecer. Limitava-me a rezar para que eles nos surpreendessem um diprosseguia com a minha vida como de costume. Às vezes perguntava à Mãe se recebnotícias e o porquê daquele silêncio. Havia sempre uma boa desculpa: surgira omissão, ou não era a melhor altura do ano, ou havia problemas com os membrosequipa.Pareciam saber sempre o que se estava a passar no lémen e isso dava-lhes motivossobra para não actuar. Se um VIP se encontrava em Taez e as medidas de seguraestavam mais apertadas, por exemplo, seria um mau momento para efectuar a operade resgate.Os profissionais eram eles e nós confiávamos nas suas decisões. O facto de se mantere

par dos acontecimentos no lémen fazia-nos sentir que, pelo menos, estavam presteentrar em acção.A Mãe acreditava em tudo o que eles lhe diziam e, como tal, eu estava disposta a acredtambém. Não queria que entrassem em Maqbana sem terem a certeza de que ermomento mais indicado. Sabia que uma missão como aquela só poderia ser efectuada uvez, e que se algo corresse mal não teríamos uma segunda oportunidade.Posto isso mantive-me quieta e calada, guardando para mim os meus receios crescenNão tinha forças para assumir um papel activo nos contactos com a equipa de resgadeixei tudo nas mãos da Mãe, sabendo que ela me informaria de quaisquer nodesenvolvimentos.As semanas, porém, converteram-se em meses e continuávamos sem notícias. Quando

sentia optimista, pensava que a operação estava a decorrer e era invadida por uma ode excitação só de imaginar que a Nadia vinha, finalmente, a caminho de casa. momentos de depressão dizia para mim mesma que a missão jamais se concretizariaque eles tinham partido e deparado com alguma calamidade.Por fim, reparei que a Mãe também estava a ficar perturbada. Mostrava-se distraídirritadiça sempre que falávamos uma com a outra, e fumava compulsivamente cigaatrás de cigarro. Percebi que estava preocupada e que não me queria contar porquê.- Andas aborrecida com alguma coisa - disse eu, quando nos encontrámos uma vez.- Que se passa?No início, ela não me queria dizer. Deu-me respostas vagas e tentou mudar de assumas eu não desisti. Sentámo-nos a conversar, até que finalmente ela admitiu que estav

começar a ter dúvidas sobre os americanos.- Não estão a fazer nada - disse, num tom de voz tenso, contendo as emoções.- Não os apresses, Mãe - aconselhei eu, tentando sossegá-la, apesar de por vezesprópria ser assaltada pelas mesmas dúvidas. A última coisa que eu queria era queperdesse o único fiozinho de esperança ao qual se agarrava desde que os americatinham entrado em cena.- Eles só hão-de agir quando chegar a hora certa. Um dia destes, surpreendem-Receberemos um telefonema e seremos sacudidas para ir ter com a Nadia a algum lugapassámos por tantos anos de espera e sofrimento que não nos importamos de esperarpouquinho mais, pois não?

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Foi então que começámos a ter dificuldade em contactá-los. Os números de telemótinham sido desactivados. A Mãe ligava para as casas deles na Carolina e os filhos é qatendiam as chamadas. «Não, o Pai não está», diziam. «Está para fora, noutro país. temos nenhum número para onde possa ligar-lhe».Comecei a pensar que tínhamos sido enganadas e que nunca mais lhes poríamos a vem cima, nem neles, nem no dinheiro. Uma vez mais, estávamos de braços atados nenorme vazio, sem saber o que ia acontecer a seguir. O que de facto aconteceu, foi aque jamais me teria passado pela cabeça.

CONTABILISTA E O INSPECTOR DAS FINANÇAS

No início, sempre que recebia uma carta ou uma conta do Ministério das Finanças, pagtudo o que me pediam. Tinha bastante dinheiro e não fazia ideia do que devia pagar, isso esperava que me dissessem. Nunca gerira dinheiro antes. Tinha quinze anos quasaí de Inglaterra e, no lémen, é certo e sabido que jamais lidara com contas bancáriashomens é que tratavam de todas as questões económicas nas aldeias.Nos poucos empregos que tive quando cheguei a Inglaterra - a trabalhar numa fábrica,exemplo -, estive sempre dependente de um patrão que se encarregava do pagamendos devidos impostos. Recebia o que me davam ao fim da semana e não fazia pergunta

dinheiro nunca me interessou.Se recebesse uma carta a pedir, imaginemos, o pagamento de um seguro, dirigia-mrepartição de finanças no centro da cidade e entregava um cheque. Davam-me um recibeu voltava para casa convencida de que resolvera o assunto. Não sabia que tinha de famais do que isso.Quando os cheques chorudos dos direitos de autor começaram a chegar-me às mvindos de países como a França e a Alemanha, eu depositava-os numa conta bancárlevantava o dinheiro sempre que precisava. Eram quantias tão avultadas que conseguia conceber como gastar a totalidade. Se as Finanças me tivessem pedido a parte, eu tê-la-ia entregado de boa vontade. Não percebi que existia um ano de grantes de os impostos serem calculados e que, por lei, era obrigada a assum

responsabilidade de os pagar. Mesmo que tivesse sabido disso, provavelmente não tagido de maneira diferente. O dinheiro parecia chegar para tudo. Só não podia adivinque a CTU me convenceria a transferir duzentas mil libras para a sua conta.Quando comecei a receber facturas das Finanças no valor de milhares de libras, não tidinheiro para as pagar. A grande parte fora para a CTU, na América, e o resto gastara-ocampanha para libertar a Nadia, ou a ajudar amigos e familiares que estavam em apuLimitara-me a passar cheques e a levantar dinheiro sempre que necessitava, sem penquanto ficaria na conta. Houvera as contas de telefone para pagar e a viagem ao lémenMãe e da Jana. Tudo somado, nada restava no banco.Não sabia o que fazer, por isso decidi cruzar os braços, esperando estupidamente quproblema desaparecesse. Talvez, disse para mim mesma, o meu agente literário

enviasse um novo cheque chorudo, que me permitiria ir às Finanças resolver o assuDecidi esperar e ver o que acontecia. Ignorei as cartas e as contas, que começaramempilhar-se a um canto do quarto. Afastei-as da minha mente, esperando que aacontecesse. Já tinha demasiados problemas com que me preocupar. Por fim, contumencionei o assunto de passageni à Mãe e à Jana.- Devias arranjar um contabilista - disse a Jana. - O problema não se vai resolver por sZana. Vão andar atrás de ti até pagares.- O que é um contabilista? - perguntei.- Uma pessoa que entende disto - respondeu ela, agitando no ar as papeladas das Finan- e que te vai dizer quanto deves e quanto tens de pagar.- Não conheço nenhum contabilista - protestei. - Não entendo nada do assunto.

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- Posso indicar-te um e entrar em contacto com ele, se quiseres.Na época, já a Jana demonstrara vezes sem conta que era uma verdadeira amiga, taminha como da Mãe, e ambas sabíamos que ela tinha os pés muito mais assentes na tedo que nós. Confiávamos nela para nos orientar em assuntos como aquele. Cumprindsua palavra, pôs-me em contacto com um indivíduo chamado Michael, em Londres. Umsemanas depois fomos ao seu encontro, levando connosco um saco enorme com todascartas relativas aos impostos e outros documentos.Eu estava muito nervosa. Agora que discutira o assunto com a Jana, percebia que

metera numa terrível alhada. Não recebi mais nenhum cheque e o meu agente literdisse-me que já me dera todo o dinheiro que estava em falta. Haveria mais pagamenmas não suficientes para pagar aquela conta exorbitante. Aos olhos dos inspectores Finanças, pareceria que eu tentara ludibriá-los. Ganhara uma fortuna e no espaço de anos dissipara-a, sem pagar os respectivos impostos. Comecei a imaginar que ia ser pre que teria dívidas para o resto da vida.Michael foi muito simpático. Mandou-me sentar no seu gabinete e escutou a história toSuponho que terá visto o estado em que eu me encontrava, pois não fez qualquer pressExpliquei-lhe como o livro fizera muito dinheiro, como ele tinha desaparecido todo e quatinha dado aos americanos. Vi que ficou estupefacto. Provavelmente nunca conhecera upessoa capaz de arranjar tantos sarilhos em tão pouco tempo. Atrevo-me a dizer que d

ter-me julgado extremamente ingénua e tola, mas, se o fez, teve a bondade de o guarpara si. Suponho que, se não houvesse gente como eu no mundo, os contabilistas comoficariam no desemprego.Fez-me uma série de perguntas, as mesmas que os inspectores das Finanças lhe fariaele quando tivesse de lhes explicar o que acontecera. Senti-me tão mal! Embora estivesse a ser muito gentil, a verdade é que parecia que eu estava numa sala de tribuacusada de ter roubado dinheiro.Senti-me uma criminosa, a tentar responder a cada pergunta corri o máximohonestidade possível, fumando cigarro atrás de cigarro para disfarçar o nervosismo. vezes tinha dificuldade em me lembrar simplesmente de tudo o que acontecera. Entreglhe a pilha de papéis que acumulara no apartamento e todos os pormenores

pagamentos que efectuara à CTU e que o banco me fornecera.- Vá para casa - disse ele - e deixe o caso nas minhas mãos. Vou ter de decidir qumelhor maneira de abordar o problema. Não vale a pena entrar em pânico. Vasolucionar esta embrulhada.Vi que estava a ter dificuldade em compreender tudo o que eu lhe dissera e que ia precde tempo para reflectir e analisar os papéis. Parecia ser um homem decente e a Jana dime que ele a ajudara a resolver urna série de problemas, por isso deixei o meu destino suas mãos. Do mesmo niodo que eu confiava nele, percebi que também ele acreditavaminha sinceridade. Fora ingénua e estúpida por ter gasto o dinheiro sem pensar em paos impostos antes, mas não tentara defraudar ninguém deliberadamente. Não tinha consecretas em off-shore. Não vivia num casarão, nem andava em Birmingliam num Merce

novinho em folha. Limitara-me a viver o dia-a-dia, gastando dinheiro no que me apeteajudando pessoas que me pediam, e o resto dera-o aos americanos. Não havia questobscuras. Não havia mistério quanto ao destino que levara toda aquela fortuna.Ouvi tudo o que Michael me disse como se estivesse perdida num labirinto. No início, consegui reter tanta informação, mas assim que saímos do escritório comecei a analisáQuando cheguei a Birmingliam, estava tão tensa e nervosa que não sabia como agueaquilo tudo. Compreendia finalmente que estava a braços com um imbróglio terrível. Palém de todos os nossos outros problemas, ainda me fora meter em dívidas comFinanças. A totalidade do dinheiro que conseguira ganhar desaparecera e eu sabia qindependentemente do que Michael dissesse, ia ser acusada de fraude.

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Nos meus momentos de depressão, via-me atrás das grades, e que aconteceria entãoLiarn e à Cyan? Tivera tanto dinheiro na conta e nem sequer arranjara tempo para oferecer umas belas férias e, agora, era demasiado tarde. Nada restava para lhes dar, npara a Nadia, se ela voltasse para Inglaterra. Sentia o peso do mundo a esmagar-Pensei que não ia aguentar muito mais tempo sem dar em louca.A Jana apercebeu-se da minha aflição e telefonou ao Michael uns dias depois.- Ela não vai conseguir suportar a pressão - disse-lhe ela. - Está à beira de um colanervoso. Terá de deixar o caso pendente por uns tempos.

Michael foi muito compreensivo e disse à Jana que ia começar a falar com os inspectodas Finanças em meu favor e que, por enquanto, eu não teria de envolver-me no assuNo que me tocava, as coisas acalmaram-se durante umas semanas. Tentei prosseguir ca minha vida como de costume, fingindo que nada se passava, tratando do Liam e da Ce visitando amigos e familiares. De vez em quando, lembrava-me do que devia estaacontecer nos bastidores e sentia um desejo terrível de desistir da luta. Mas, aos poucopoucos, recuperei as forças e a autoconflança. Quando Michael entrou de novo em contacomigo e me perguntou se eu podia ir ao seu escritório, para falar com umas pessoas Finanças, senti-me capaz de enfrentar a situação.Se da primeira vez que fui ter com Michael estava nervosa, agora encontrava-me mil vepior e tremia dos pés à cabeça, quando entrei no gabinete. Imaginava que o inspector

Finanças seria um ogre, como os robots inexpressivos que fazem os testes de conduçsem nunca nos dirigirem a palavra ou olharem de frente, limitando-se a rosnar ordens.À medida que o comboio, balouçante, nos levava até Londres, à Jana, à Mãe e a mimaginei o interrogatório que me esperava. Ia sentir-me novamente uma criminosa, cose tivesse tirado o dinheiro de propósito para o esconder num banco da Suíça. Estconvencida de que ia parar à cadeia. Fumava desenfreadamente e as minhas mtremiam de cada vez que acendia um cigarro.O Sr. Smart era tudo menos o que eu pensara. Mostrou-se tão simpático e atencioso coMichael. Dera-se ao trabalho de vir da Escócia para se encontrar comigo e, hoje, sei estava relacionado com a Brigada Antí-Fraude. Michael, porém, achara por bem partilhar essa informação comigo, na altura, não fosse eu ficar ainda mais perturbada.

O facto de termos os nomes, moradas e número de conta da equipa da CTU influencprofundamente a sua atitude. Eu levara todos esses dados comigo. O Sr. Smart fisatisfeitíssimo e pareceu bastante surpreendido.- Isto é óptimo - disse ele, todo contente. - Estava com receio de que viesse aqui, hdizer-me que lhes entregara o dinheiro e que não ficara com qualquer registo destransacções, o que dificultaria imenso o meu trabalho. Com esta informação, podeminvestigá-los no nosso sistema informático. Então teremos pelo menos alguma coisa pdar ao IRS, o equivalente das Finanças nos Estados Unidos. Assim, eles poderão tenreaver parte do dinheiro.Arrumou os dossiers e nós regressámos a casa. Senti-me muito melhor, apesar de saque ainda tinha uma enorme dívida a pesar-me nos ombros. Podia não correr perigo de

processada ou detida, mas continuava na mais absoluta penúria. O Sr. Smart voltou paEscócia, para começar a investigar os arquivos de computador, e nós retomámos a noespera, sem fazer ideia do que poderia estar a acontecer nos bastidores.Enquanto as autoridades financeiras averiguavam o caso na América, Michael encarregse de pôr a minha contabilidade em ordem, para calcular ao certo quanto é que eu deao Estado. Pediu-nie recibos de tudo o que gastara durante o período em que recebadiantamentos e direitos de autor referentes ao livro, e toda a papelada do meu ageliterário. Precisava de provar quanto dinheiro eu ganhara exactamente, e explicar quelevara.Dia após dia, Michael explicou-me tudo pacientemente por telefone e eu comececompreender como funcionava o sistema. Agora entendia o que fizera de errado. Perc

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que, por ter escrito o livro, assumira o estatuto de trabalhador independente, o que estsujeito a regras e normas que não me dera ao trabalho de averiguar e de que ninguéminformara. Passo a passo, lá chegaria.Desconhecendo o facto de que as autoridades financeiras andavam a investigá-losamericanos mantiveram um contacto esporádico com a minha mãe. Talvez tivesesperança de poderem pedir-nos mais dinheiro. De vez em quando a Mãe recebia telefonema deles, garantindo que continuavam empenhados no caso e que, não a tinhesquecido. Dispunham ainda de um bom manancial de explicações para a sua falta

resultados: tinham surgido outros casos que eram mais urgentes e que teriam uresoluçao mais rapida. A nossa operação era mais complexa, diziam, e precisavam de tcerteza de que tudo estava em ordem antes de avançarem.Embora houvesse momentos em que eu gostaria de acreditar que diziam a verdade e estavam apenas à espera do momento ideal para agir, a maior parte das vezes eu saque o dinheiro desaparecera e que nada podia fazer contra isso. A Mãe não discutia celes, nem os acusava de nos terem enganado. Também ela queria acreditar que aipodia haver possibilidade de serem pessoas sérias. E, lá no fundo, tinha medo de  Tinham-nos convencido de que não hesitariam em utilizar armas para atingir os sobjectivos. A Mãe não os queria como inimigos.Vendidas! estava a vender bem por toda a Europa e um ou outro editor ligava-me qu

todos os meses a pedir para ir ao seu país dar mais entrevistas. Acedia a maior parte vezes, mas estava a tomar-se uma tarefa cada vez mais dificil. Esgotara as minreservas de energia. Era como se estivesse a funcionar em piloto automático, a tentar co Liam e a Cyan, a responder às perguntas de Michael, a preocupar-me com a Mãe, a tenadaptar-me a todas as viagens que me organizavam; entrar e sair de aeroportos, levapassagens aéreas, deslocar-me para os hotéis, recontar a história toda a mais um jornaque nada sabia do assunto... Tinha a cabeça a andar à roda.Não queria desiludir nenhum dos editores, por terem sido tão compreensivos e empenhados em ajudar-nos a contar a nossa história ao mundo. Os editores franceses,especial, foram extraordinários. Tinham vendido, até à data, mais de um milhãoexemplares do livro e feito tudo o que podiam para nos apoiar. O facto de não ter

conseguido libertar a Nadia não se devia, certamente, a falta de empenho ou esforçosua parte.Nos primeiros tempos eu tinha energia de sobra. Conseguia dar entrevistas durante horafio, responder às mesmas perguntas uma e outra e outra vez. Estava absolutameconvencida de que, se mantivesse as atenções viradas para o nosso caso, conseguirialibertar a Nadia em três tempos. Quando os meses se transformaram em anos, sentminhas forças a esvaírem-se e comecei a ter menos vontade de lidar com pessoas quefaziam perguntas absurdas ou que não pareciam estar totalmente do nosso lado. Esttão cansada que, por vezes, era tudo menos simpática para os jornalistas e equipastelevisão que vinham falar comigo, bombardeando-me com perguntas por todos os lado- Ouçam! - irritei-me, um dia, quando não paravam de me interromper e eu tinh

sensação de que não dormia há uma eternidade. - Vocês precisam de mim para escrevevossas notícias. Eu não preciso de vocês. Por isso, acalmem-se e deixem-me falar. Limitse a ouvir e a escrever, ou a fazer o que quer que fazem, e depois vão-se embora.Em momentos como esse, tudo me parecia inútil. De que servia atrair as atenções órgãos de comunicação social, se os iemenitas se estavam nas tintas para o caso? Tsido tudo aquilo uma enorme perda de tempo?, perguntava-me. Mas depois lá descansum pouco, ou alguém dava-me uma palavra de alento, e eu arranjava forças para contina lutar. Não era capaz de conceber outro caminho a seguir e também não podia fsentada de braços cruzados, sabendo que a Nadia ainda estava no lémen, à espera quecumprisse a minha promessa.

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Quando as Finanças norte-americanas investigaram a CTU, descobriram que a empresquem pagáramos tanto dinheiro encerrara as portas. Fora criada única e exclusivamepara receber os nossos pagamentos. Agora o dinheiro fora retirado e a empdesmantelada. As pistas ficavam-se por aí. Uma investigação mais aprofundada reveque essas mesmas pessoas tinham constituído uma série de outras empresupostamente uma para cada missão, que tinham desaparecido sem deixar rasto. Udelas chamava-se «The No Longer Trading Company» - «Empresa Que Já Não Existe» que nos pareceu uma grande lata da parte deles, como se estivessem a mandar bu

quem quer que resolvesse investigá-los.O Sr. Smart convocou-nos para uma reunião e disse-nos que, quando o DepartamentoFinanças norte-americano decidira congelar todos os bens das pessoas que conhecêramdescobriu que na verdade nada estava em nome delas. Todas as casas e escritórios eralugados, de maneira que podiam facilmente fazer as malas e partir assim que as cocomeçassem a dar para o torto. Tudo indicava que eram os clássicos burlistas. PedíamoDeus que todas aquelas provas estivessem erradas; queríamos acreditar que eles euma espécie de nómadas por motivos meramente de segurança. Mas era cada vez mdificil manter a fé.Entretanto, eu e a Mãe estávamos constantemente a tentar lembrar-nos de novas manede chamar a atenção para o caso da Nadia. Embora tivéssemos perdido todo o dinh

ganho com Vendidas! e fosse penoso reviver a história vezes sem conta durante as viagde promoção, publicar um livro fora, de longe, o gesto mais eficaz que fizéramos pdivulgar o caso por todo o mundo.Quando a Mãe me disse que também estava. a pensar escrever um livro sobre as svivências, senti-me dividida. Estava preocupada que ela pudesse passar por uma terrprovação, não só durante a fase de escrita, mas depois, durante as viagens de promoçLembrava-me bem de como fora dificil para mim, e a saúde da Mãe era muito mais frdo que a minha. Ao mesmo tempo, tive de reconhecer que era uma maneira excelentetrazer novamente a nossa história a público.Embora Vendidas! ainda estivesse à venda em todo o mundo, e embora tivesse stransmitido na rádio com bastante êxito, a verdade é que já não era notícia. Cada

menos me pediam para dar entrevistas. Por um lado, era um alívio - permitia-me ocume da educação dos meus filhos -, mas por outro, deíxava-me desesperada, pois qucontinuar a exercer pressão sobre os governos britânico e iemenita para que tomassmedidas. A publicação de outro livro acarretaria uma nova ronda de entrevistas e artig Talvez agora tivéssemos sorte e chegássemos junto das pessoas certas. A Mãe tambpoderia ganhar algum dinheiro, para voltar ao lémen se a oportunidade surgisse, ou ppagarmos os bilhetes de avião da Nadia e dos filhos, ou o que quer que o Mohammed pedisse. Posto isto, outro livro parecia uma boa ideia.Sabia que a Mãe não seria capaz de escrever pelo seu próprio punho. O esforço sdemasiado para ela. O seu cérebro estava tão cheio de factos, datas e discussões, nunca conseguiria pô-los por ordem sozinha e redigi-los de maneira suficientemente c

para que os leitores entendessem a história. Tinham sido tantas as conversas cdiplomatas, políticos, jornalistas e editores! Havia pilhas e pilhas de cartas, formuláriodocumentos jurídicos para organizar. O esforço tê-la-ia matado. Tinha de arranjar algupara trabalhar com ela.Decidiu escrever o livro com a Jana, o que se me afigurou uma boa ideia. Para começar,confiava inteiramente na Jana e além disso tinham passado por imensas coisas junAbrir-se com a amiga seria fácil e ainda por cima a Jana já conhecia todos os pormenoda história, talvez até melhor do que a minha própria mãe.A Jana tem uma memória incrível, o que a toma extremamente útil para a Mãe, quedistrai tanto com as preocupações do dia-a-dia que muitas vezes se esqueceacontecimentos ou datas cruciais. A Jana nunca se esquece de nada. Se a Mãe est

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contar uma história e não consegue lembrar-se de um nome ou de uma sequênciaacontecimentos, a Jana preenche sempre todas as lacunas.Além disso, entende de computadores, campo em que a minha mãe é uma nulidade, isso poderia facilmente redigir o texto, fazendo com que as palavras da Mãe fluíssetivessem sentido para os leitores.A ideia era o livro abranger a vida da Mãe desde que ela saíra de casa, em adolescente,aos dias de hoje. Mostraria como ela e o Pai se conheceram e como ele começardominá-la ao estilo tradicional muçulmano. Contaria a maneira como ele levara os d

filhos mais velhos, a Laila e o Alimed, para o lémen, impedindo a Mãe de os ver até seradultos. Narraria, depois, a sua perspectiva sobre o meu desaparecimento e o da NaDurante os oito anos em que estivemos ambas em Maqbana, a vida da minha mãe fora pesadelo, enquanto tentava desesperadamente encontrar-nos e libertar-nos, esbarraem muros de pedra e cal para cada lado que se virasse.Esse pesadelo constituíra, porém, um importante ponto de viragem. Até então, a mimãe fora uma mulher tipicamente submissa, que deixava o marido maltratá-la. Tivera sfilhos e fora tratada como lixo. Sofrera duas depressões nervosas, na sequência dos mtratos que o meu pai lhe infligira.A ideia de nos perder, a mim e à Nadia, da mesma maneira que perdera a Laila e o Alimera inconcebível e inaceitável. Obrigou-a a dar uma reviravolta à sua vida e a lutar p

primeira vez, e a ganhar coragem para salvar a Tina, a Ashia e o Mo do mesmo destSeparou-se do Pai e começou a sua longa cruzada, angariando apoios para a nossa causcontactando os órgãos de comunicação social e o governo. O esforço deu cabo da saúde frágil, mas ela negou-se a desistir da sua luta. Deu ao livro o título Sem piedadesubtítulo de «A luta de uma mãe contra a moderna escravatura».O livro descrevia todos os seus esforços, depois do meu regresso, para conseguir libertNadia e os miúdos. Ajudava a explicar às pessoas, que já conheciam a nossa história, uparte do seu passado com o Pai, a maneira como se deixou enganar por ele, e respondalgumas das perguntas que os meus leitores me faziam depois de lerem Vendidas!Conversou com o meu agente sobre essa ideia e ele vendeu-a aos mesmos editoresVendidas!. A Mãe começou então a desaparecer durante dias inteiros, enfiada

apartamento da Jana, regressando a casa de madrugada, com páginas e páginas impresa computador. Não sei se a Mãe teria conseguido suportar toda essa experiência seajuda da Jana. Formavam uma equipa incrível. Não fui capaz de ler o manuscrito, anunca arranjei forças sequer para ler Vendidas!, ou para ouvir a adaptação que a BBCpara a rádio. Sei que seria demasiado penoso. Conhecia os factos todos, não qutorturar-me a relembrá-los.O manuscrito final pesava três quilos e os editores tiveram de cortar metade do matepara que ficasse com a extensão adequada para publicação. Havia demasiadas coisas pcontar e eles consideraram que os leitores não conseguiriam lidar com isso.Sem piedade foi publicado em 1995, relatando todos os traumas da vida da minha mRecebeu óptimas críticas por parte da imprensa britânica. Estávamos de volta

escaparates das livrarias e às páginas dos jornais. Talvez agora encontrássemos a pescerta para lutar pela nossa causa. O dinheiro do livro surgira tão facilmente, que devopensado que continuaria a ser assim, como se os direitos de autor fossem um poço sfundo. Mas então soube, através das conversas com Michael e o meu agente literário, o fluxo de dinheiro estava a abrandar de forma drástica. Percebi, por fim, que a maior pados bestsellers só se mantém no topo das tabelas durante uns meses, porventura um ase o autor tiver sorte. A partir do momento em que todas as pessoas interessadacompraram o livro, as vendas caem a pique e uns meses depois as receitas decresctambém.Michael empenhara-se arduamente em clarificar toda a minha contabilidade e chegaum acordo com o Sr. Smart, que compreendeu que eu não tinha possibilidade de pag

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totalidade da quantia. Ele estava disposto a aceitar um pagamento muito reduzido, mmenor do que me pediam à partida, pois tinha esperança de conseguir recuperar partedinheiro dos americanos. A partir de então, sempre que chegavam cheques relativos direitos de autor, o meu agente enviava-os directamente para o DepartamentoFinanças. Paga a dívida pendente, o dinheiro tomaria a vir para mim. Embora a dívtivesse sido reduzida, parecia que os cheques que estavam a entrar jamais cobrirtamanha quantia. Era como atirar pedras para um poço sem fundo.O Sr. Smart dissera que, se as Finanças conseguissem deitar a mão ao dinheiro que est

na posse dos americanos, ficariam com uma parte correspondente à minha dívidentregar-me-iam o que sobrasse. Parecia-me um negócio justo, mas muito deprimentenos restava esperar e rezar para que isso acontecesse. Só nos restava esperar, mais uvez.Agora que o dinheiro se fora, tínhamos de continuar a procurar novas maneiras de ajudNadia. Fomos forçadas a reajustar abruptamente os nossos padrões de vida. Hoje depeda Segurança Social e do abono de família e o Paul tem uma pensão de invalidez, mastodo isso equivale a 16O libras por semana. Conseguimos aguentar-nos por um fio, mpouco ou nada sobra na poupança. Quando vamos ao supermercado, temos o cuidadoprocurar as melhores promoções do dia e entretanto tomei-me perita em compras nas lde caridade do bairro onde a minha mãe vive. Compro a maior parte das roupas

miúdos na Loja de Apoio à Luta contra o Cancro, e compro livros na Loja de Apoio à TercIdade. Quando o Mark sofreu um pequeno acidente e eu tive de mudar-lhe a roupaurgência, consegui arranjar-lhe uma sweatshirt e um par de calças de ganga por uma le meia. Chego, inclusive, a comprar algumas prendas de Natal nas lojas de caridade. me incomoda. Desde que tenhamos o suficiente para alimentar e vestir os miúdos, doupor satisfeita. Sei que, assim que terminar o meu curso de professora de natação, torna ganhar um salário e, quem sabe, poderei até comprar um carro novo para ajudar a leos miúdos à escola.Não me preocupara muito com o facto de ter perdido o dinheiro para os mercenários atédia em que vi a tipa inglesa, a Jackie, participar nuni programa de televisão à horapequeno-almoço. Ela escrevera um livro sobre as suas aventuras, incluindo pormenores

nosso caso, e as câmaras mostraram a mansão e o carro de luxo que ela comprara comlucros da sua actividade. Senti que me esfregavam na cara o dinheiro que deveria ter gasto na educação dos meus filhos.Quando a Mãe me mostrou uma carta que recebera de mais um produtor de televischamado Nick Gray, eu disse-lhe que não queria saber do assunto. Já tinhamos lidado cum realizador de cinema que se interessara pela nossa história, e a conversa com ele dera em nada, deixando-nos completamente frustradas. Senti que éramos presa fácil pqualquer pessoa que quisesse explorar o calvário da Nadia. Era incapaz de enfrentar a idde criar novas expectativas, para as ver uma vez mais despedaçadas. «Não me venfalar de mais ninguérri», disse-lhe eu. «Deixa-me em paz. Deixa-me viver a minha viddinheiro foi-se todo, vamos ter de encontrar outro caminho para salvar a Na

Começaremos de novo com uma campanha, com manifestações, o que quer que seja, chega de documentários televisivos.»A Mãe começou a rir, mas percebi que era um riso nervoso. Ela sabia que eu estavalimite, pois sentia o mesmo, mas era incapaz de ver um fiapo de esperança e nãoagarrar a ele. Devia ter tanto medo como eu de se decepcionar mais uma vez, mas conseguia deixar passar uma oportunidade em branco, por mais insignificante parecesse. Ignorou o meu mau feitio e empenhou-se em dar-me a volta. Pouco deacabei por resmungar que aceitava ir encontrar-me com o fulano, na companhia dela.Fui à reunião com cara de poucos amigos, preparando-me para desmascarar, a qualqinstante, as segundas intenções do Sr. Gray. Estava pronta para troçar de quaisqpromessas que ele nos fizesse. Pensei que, se estivesse disposto a prosseguir apesa

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minha má educação, então talvez se safasse. Seria uma espécie de teste. Se ele desistdemasiado depressa, não nos teria servido para nada, de qualquer maneira. Precisávamde alguém capaz de suportar obstáculos e insultos, vindos de rigorosamente toda a gecom quem se cruzasse durante o processo de investigação.Pareceu-me sincero. Ouviu a nossa história, embora naquela fase tenhamos decidido dizer nada sobre os americanos. Agora que acreditávamos que eles nos tinham defrauddelíberadamente, começavam a parecer-nos perigosos e sinistros. Enquanto pensávamque estavam do nosso lado, sentíamo-nos reconfortadas pelo seu estilo militar e t

aquele discurso sobre acções violentas. Agora eram uma espécie de inimigos, o que deixava aflitas.«Esta gente é capaz de tudo», disse eu à Mãe, um dia, quando estávamos a falar soeles. «Podem muito bem aparecer no teu quintal e dar-te um tiro. Sabemos que capazes disso, por causa das coisas que fizeram no passado. Não podemos dar-nos ao lde os irritar.»Nick foi muito paciente nesse primeiro encontro. Talvez tivesse falado com outras pessque o avisaram de que, por vezes, eu era uma pessoa difícil. Parecia compreender queestava numa situação de muito stress e como tal não levou a peito o meu comportameA dada altura da conversa, utilizei palavras que nem sequer sabia que faziam parte do mvocabulário. Estava simplesmente farta de ver gente entrar nas nossas vidas, faze

promessas a torto e a direito e enchendo-nos de esperança. Ele manteve-se calaescutando tudo o que eu tinha para dizer, sem tentar protestar ou discutir, um pouco coum psiquiatra faria. Penso que tentei chocá-lo de propósito, para ver se ele reagia ao mdiscurso. Na época, estava-me nas tintas para a impressão que causava nos outDurante uns tempos, fui inclusive muito mázinha para a minha própria família. Assim me calei, incapaz de me lembrar de mais alguma coisa para dizer diante daquela paciêinfinita, ele disse que gostaria de fazer um documentário sobre nós.- Agora, é consigo - concluiu, levantando-se. - Se decidir colaborar connosco, entre contacto comigo e nós faremos o filme.Mesmo depois de ele se ter ido embora, continuei a sentir o mesmo que sentira quandMãe me falara dele na carta. Não tinha forças para mergulhar no longo torvel

emocional que um documentário implicaria. Não queria passar por mais horas e horasentrevistas, ter de reviver o pesadelo outra vez. Não queria ouvir as cassetes da Nadiaver fotografias suas, sabendo que ela continuava à espera que eu cumprisse a promeque lhe fizera. A ideia de passar por tudo novamente, para no fim nos desiludirmos, impensavel.A Mãe deve ter percebido que eu necessitava de tempo para pensar. Comecei por afastideia da mente, mas era praticamente impossível. Dei voltas e voltas ao cérebro, à procde alternativas para apresentar à minha mãe, mas nada se me ocorreu, e no fundinhominha consciência ouvia uma voz a dizer-me que estava a desperdiçar uma oportunidde ajudar a Nadia.Passaram-se dias e, uma noite, deitei-me na cama a passar em revista gs m

pensamentos sobre o assunto. «Não terei eu sofrido já o suficiente? Não devia andaatormentar-me desta maneira», pensei. «A história tem de ser contada. Se mantivermos a história da Nadia viva na memória das pessoas, outras mães perderãoseus filhos da mesma forina. Mesmo que este documentário não sirva para trazer a Nade volta para Inglaterra, poderá ajudar a salvar mais uma criança dessa sina horríPoderá alertar uma mulher, nem que seja uma só, para os perigos que andam à espreifazer com que ela não permita que os filhos viajem para um país estrangeiro sem eSeguindo o mesmo raciocínio, se não denunciássemos os americanos, eles continuariadefraudar outras mães desesperadas. Estavam a dar-me a oportunidade de alterar tisso. Tinha de aceitar.

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Quando comuniquei à Mãe a minha decisão, vi como ficou aliviada. Mas ela queria falássemos apenas da Nadia e das autoridades envolvidas no caso. Confessou-me tinha demasiado medo dos americanos para correr o risco de falar sobre eles, pelo mepor enquanto.No dia seguinte telefonámos a Nick Gray e dissemos-lhe que tinhamos decidido avancom o projecto. Ele convidou-nos a ir aos estúdios de televisão, em Leeds, pconhecermos os produtores que estavam interessados na história e conversarmos sobcaso.

Para levarmos o projecto por diante, teríamos de assinar um contrato. Eu não queassinar nada; já estava a ter dificuldades de sobra em lidar com todos os meus outcompromissos. Nick mostrou-se compreensivo, mas inflexível. Disse-me que precisavaassinatura para dar início à investigação. Por fim, inspirei fundo e acabei por pegacaneta, fechei os olhos e assinei. Até que ponto poderiam as coisas piorar? Aqui estuma oportunidade e eu tinha de aceitar todas as que me quisessem dar. Agora queempenhara no projecto, não conseguia imaginar qualquer outra alternativa.Nick começou a aparecer em casa da Mãe com a sua equipa de filmagens e uma ouentrevistadora, chamada Enima, para gravar entrevistas comigo e com a Mãe. Fez horhoras de gravações, para no fim ter material suficiente para montar. Emina, iniciava cdia conversando comigo durante três horas ou mais. No fim, eu sentia-me sem forças

para casa descansar, antes de ir buscar os miúdos à escola ou à baby-sitter, enquanto Nentrevistava a Mãe por um período de tempo idêntico.Falávamos sobre a Nadia e sobre os nossos sentimentos. Foi-me extremamente dencarar a objectiva sem chorar. Todos os muros que ergo na minha mente para evitar a todas as distracções que o dia-a-dia me traz, desfazem-se assim que tenho de explicaque sinto.Quando falo sobre a Nadia, vejo-a naquela aldeia no fim do mundo. Vejo a maneira comhomens a maltratam e humilham. Vejo a luta diária que ela tem de enfrentar. Sintaperto de fome que ela deve ter-se habituado a suportar no estômago, já quase sreparar. Lembro-me do calor abrasador do fomo da cozinha e do trabalho duro ppreparar aquela comida monótona. Durante o dia, as moscas atacam-na às centenas

noite, vejo-a deitada na sua cama dura, com todos os músculos e articulações doridouvindo o uivar distante dos lobos, nas montanhas.Sei como é penoso, porque eu própria passei por isso. Mas tive sempre a convicção de conseguiria fugir, o que me dava alento para sobreviver, um motivo para acordar todamanhãs. Estou certa de que, a maior parte do tempo, a Nadia deve ter perdido a esperade escapar. Deve pensar, agora, que o seu destino é permanecer prisioneira daquinferno até ao dia da sua morte. Enquanto for fértil, continuará a produzir filhos, e deserá uma mulher velha, a vida ter-lhe-á sido arrancada do corpo por pessoas que se esnas tintas para ela, que a consideram apenas mais uma peça de gado, presente na cpara trabalhar e parir. Não consigo conter as lágrimas, sempre que permito que essentimentos aflorem, quer haja uma câmara presente, quer não.

Uns dias depois, quando já estávamos à-vontade com o Nick, a Mãe disse:- Contamos-lhes a história dos americanos, Zana?Naquela altura já me sentia preparada para abordar o assunto e concordei. Fiquei satisfpor a Mãe ter decidido enfrentar a questão abertamente. Acredito, hoje, que enquanto mantivéssemos caladas, eles sairiam vencedores. Pelo menos, se divulgássemos o caeles teriam de se justificar de alguma maneira. Percebi, também, que a história americanos daria ao documentário uma perspectiva completamente nova. O Nick tomse uma espécie de amigo da família e eu queria confiar-lhe a verdade. Não queria queacontecimentos do passado envenenassem a minha mente contra uma pessoa que estsinceramente disposta a ajudar.

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Dissemos-lhes que tinhamos mais uma coisa para contar. Puseram a câmara a rodar e explicámos tudo, desde o momento em que aquele maldito livro me fora entregue, duraum almoço em Estocolmo, até aos infrutíferos telefonemas para a Carolina, as Filipinasabe Deus para que outros pontos do globo.Assim que ouviu o nosso relato, o Nick quis viajar até à América e tentar filmar o pessoaCTU.- Que história dos diabos! - comentou ele. - Posso dizer aos tipos da CTU que estamofazer um documentário sobre o resgate de crianças desaparecidas - prosseguiu.

- Aposto que vão adorar a ideia de terem publicidade à borla. Quando lá estiver, poperguntar-lhes sobre o vosso caso e o que é que aconteceu. Eles não precisam de saque vocês já perceberam que foram burladas. Podemos mostrar ambos os lados da histe deixar o telespectador decidir em quem acredita. Deve ser bastante óbvio o que foi realmente se passou. Também preciso de levar uma equipa de filmagens ao lémen, pcaptar os locais onde tudo aconteceu e dar às pessoas uma noção do que aquilo é.- Olhe que não vai conseguir chegar à aldeia e muito menos falar com a Nadia - avisei.- Eu sei - respondeu ele. - Mas podemos fazer imagens do cenário, dar ao telespectauma ideia do ambiente e da zona onde a Zana esteve presa e onde a Nadia continua retSeria óptimo se pudesse vir connosco, para a filmarmos lá. Se fosse até Taez, taconseguíssemos convencer os iemenitas a trazerem a Nadia para um encontro consig

filmar tudo.Senti um calafrio percorrer-me dos pés à cabeça. Jamais voltaria ao lémen com uma equde televisão. Ouvira os boatos de que os homens tinham planeado raptar-me, quandestive com os franceses para o encontro com a Nadia no jardim de Taez. A Mãe avisara-também, de que o Abdullah alegava que tornara a casar-se comigo. Ficava apavorada sópensar que, se voltasse ao lémen, seria raptada em plena rua e que nunca mais se ouvfalar de mim em Inglaterra.Estava igualmente convencida de que a Mãe não deveria fazer a viagem. Podia ter assassinada, quando fora até lá com a Jana, e chegara a ser atacada por uma multidãovissem que tinha regressado com uma equipa de filmagens, sabe-se lá o que podacontecer-lhe.

A Tina e a Ashia concordaram comigo e dissemos-lhe as três que nunca aceitaríanaquele plano. A Mãe, contudo, era muito obstinada e tomava-se dificil demovê-la da idSe havia uma possibilidade de ver a Nadia, por mais perigosa que fosse, ela queria tenApesar de todos os nossos conselhos, contactou a Embaixada Britânica em Sanaa, ppedir 1 um visto. Para alívio meu, os funcionários com quem falou disseramrotundamente que ela correria demasiado perigo. Porém, a Mãe insistiu que queria vfilha.- Primeiro terei de mandar alguém encontrar-se com a Nadia - disse o Cônsul, percebeque a Mãe não seria fácil de dobrar -, para lhe perguntar se quer encontrar-se consigo.- Como é que se atreve a dizer uma coisa dessas? - explodiu a Mãe. - Sou a mãe dela! Npreciso que lhe perguntem se ela quer ver-me.

O Cônsul fez orelhas moucas. Mandou um funcionário falar com a Nadia e a reacção ddeve ter sido a mesma que eu tive, quando a Mãe me mostrou a carta do Nick pprimeira vez. Disse ao funcionário que não queria mais confusões. Era óbvio quMohammed lhe faria a vida negra, se a Mãe insistisse em fazer exigencias. A noprioridade era fazer o filme e não levantar mais ondas. Era fácil perceber que se a Mãe desistisse da ideia iríamos pisar novamente um campo minado, e que o centro atenções seria ela e não a Nadia. Tínhamos de pensar numa solução melhor. Era um alsaber que a minha mãe não ia voltar ao lémen, mas não éramos capazes de pensar nuoutra pessoa para o fazer.- Eu vou - anunciou o Mo. Ficámos todos surpreendidos. Depois de tantos anos à esperaNadia, o nosso irmãozinho crescera. Tinha então vinte e quatro anos e queria participa

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drama familiar. Agora, pensando bem, ele era, à partida, a escolha óbvia. Sendo raphavia poucas probabilidades de o Pai mandar raptá-lo e, por outro lado, ele nunca afronninguém em Taez.Quando o Mo foi com a nossa mãe ao lémen pela primeira vez, para nos procurar, a mià Nadia, ainda era adolescente, mas pelo menos sabia o que esperar desta seguviagem. E seria bom para a Nadia ver o nosso irmão mais novo, depois de tanto tempo.O Mo tomara-se uma pessoa muito segura de si. Trabalhava numa fábrica que constcarrinhos de golfe motorizados, para milionários espalhados pelo mundo inteiro. O

ocupava-se das reparações. Os carrinhos chegavam à fábrica para serem consertadvindos de lugares longínquos como a América do Sul, muitas vezes já com uma gordestinada ao meu irmão. O dono da fábrica era um israclita que lera Vendidas! e estava a par da nossa história. Foi de boa vontade que dispensou o Mo durante tempos, sem lhe suspender o salário. O Mo sempre se dera bem com toda a gente, mopelo qual era muito mais indicado para ir ao lémen do que eu ou a Mãe. Era pouco prováque se metesse em brigas ou fosse mal-educado para as pessoas, se as coisas azedasseAntes de partir, o Mo decidiu que devia contactar o nosso pai para ver se ele sabepormenores concretos sobre o paradeiro da Nadia e sobre o seu estado de saúde. Precisda ajuda do Pai para comunicar com ela. Não me importei. Os problemas que tinha coPai eram pessoais e não esperava que os outros também cortassem relações com ele.

Muitos anos antes, quando eu ainda estava em Maqbana, o Mo fora a casa do Paroubara-lhe uma cassete e uma carta que eu enviara à Mãe, mas que o Pai interceptFora um acto de grande coragem para um rapazinho tão pequeno, e ajudara a alertMãe para a gravidade da situação em que eu e a Nadia nos encontrávamos. Infelizmena sequência disso o Pai e o Mo nunca mais se falaram. O Pai disse-lhe que ele teriaescolher entre ele e a Mãe. O Mo escolheu a Mãe.Quando surgiu a ideia da viagem do Mo, pareceu-me sensato que ele fosse falar conosso pai para perguntar se seria seguro viajar até ao lémen. Sabíamos que se o avisasse toda a gente no seu país-natal para deixar o Mo em paz, o seu desejo srespeitado. Se o Pai dissesse ao Mohammed para levar a Nadia para Taez, paraencontrar com o Mo, o encontro realizar-se-ia. O Mo precisava de convencer o Pai de

queria retomar a relação com ele, para poderem falar de homem para homem.Partiu rumo a casa dele sem ter a menor ideia do tipo de recepção que o esperaAceitaria o Pai falar com ele? Resmungaria e barafustaria com ele, por causa de toaqueles anos em que o Mo tomara o partido da Mãe? Ou receberia o filho pródigo de braabertos, na esperança de o trazer para o seu lado, agarrando a oportunidade de envenea sua mente contra as mulheres da família?

mo

Naquele dia, o Mo deve ter necessitado de uma grande dose de autocontrolo pconseguir ser educado com o Pai, quando a sua vontade era bater-lhe.

Uma vez que fora ao lémen logo no início, quando a Mãe andava à nossa procura, estava mais por dentro do nosso sofrimento do que a maior parte das pessoas. Viracondições em que vivíamos e apercebera-se de que éramos tratadas como escravas.mesma forma que eu, também ele conseguia visualizar, com demasiada nitidez, o quNadia ainda tinha que passar, todos os dias da sua vida, enquanto o Pai se encontrconfortavelmente na sua casa de Birmingham e nada fazia para a ajudar. Um telefonedo Pai e no espaço de dias a Nadia estaria num avião ramo a Inglaterra.Sabendo o que sabia, o Mo fervilhava de tanta raiva contida e a sua vontade era esmuo Pai assim que o visse. Mas cerrou os dentes ao bater à porta, ciente de que tinha decontrolar. Era preciso convencer o Pai de que queria retomar uma boa relação com

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 Teve de repetir para si próprio que o estava a fazer pela Nadia e pela Mãe e que, se fizeasneira, elas sofreriam as consequências.O Pai ainda vivia em Sparkbrook, com a sua nova e jovem inulher e os dois filhos. Quaabriu a porta e viu o Mo na entrada, deve ter-se sentido confuso, perguntando-se o teria acontecido dessa vez. Assim que percebeu que o Mo estava a tentar restabelecer uamizade entre ambos, ficou emocionado.Passou-se mais ou menos o mesmo comigo, daquela vez que fui visitá-lo, depoisregressar do lémen. Fui vê-lo, trajada à árabe, para lhe dizer que o amava e pedir

autorizasse a Nadia a voltar para casa. Na altura ele chorara e dissera-me que nuncatinha apercebido de como fôramos maltratadas, e garantira que ia imediatamente pediMohammed para mandar a Nadia para Inglaterra. Nada daquilo fora sentido, claro, enunca mais o visitei.Ver o seu segundo filho varão deve tê-lo emocionado ainda mais. Mandou o Mo entrar casa e apresentou-o à mulher e à sua nova família.O Pai sempre gostou de se ouvir a si mesmo e, estando nervoso na presença silenciosséria do Mo, desatou a falar sobre a sua vida. Disse ao Mo que pagara 15 OOO libras pcasar com aquela rapariga, para que ela pudesse entrar em Inglaterra, onde terpossibilidade de fazer uma operação cirúrgica de que necessitava. Ela tinha uma pemais curta do que a outra, por causa de um problema na anca, e tinha de usar um sap

especial para caminhar. A família dela vivia já em Birmingliam e eram amigos dNenhum de nós duvidou de que a história fosse verdadeira. Parece exactamente o tipocoisa que o Pai faria.O que achámos estranho, porém, é que, quando a Nadia e eu pedimos ao Ministério Negócios Estrangeiros para nos tirar do lémen, disseram-nos que não podiam, portinhamos «dupla nacionalidade». A Mãe é inglesa, o que significa que o Pai deve cidadão iemenita. Se assim for, como é que ele podia casar com uma pessoa para queobtivesse um passaporte britânico? É porque deve ter nacionalidade britânica. Isso signque eu e a Nadia nunca poderíamos ter dupla nacionalidade, fomos sempre cidabritânicas e o nosso governo recusou-se a admitir esse facto.O Pai e a sua nova mulher têm quatro filhos e por vezes tenho pena de não poder

conhecer os nossos meios-irmãos, mas é impossível que as duas famílias se dêem bdepois de tudo o que aconteceu. O nosso ódio e desconfiança em relação ao Pai são profundos que jamais permitiremos que torne a fazer parte das nossas vidas, e ele tambnunca deixará que nos aproximemos da sua nova família. Atrevo-me a dizer que a nuidele foi submetida a uma lavagem ao cérebro, de maneira a acreditar que somos toprostitutas e mulheres ímpias, que não respeitamos os nossos homens e que temos deevitadas a todo o custo. Seria dificil mudar quaisquer ideias que o Pai lhe tivesse enfiadocabeça a nosso respeito.Recentemente, muitas mulheres têm vindo da região de Maqbana para InglateAntigamente, os homens viajavam e mandavam dinheiro às esposas e mães, para fazeum pé-de-meia para a refôrma. Mas agora uma alteração na lei relativa aos impostos

com que lhes fosse mais proveitoso trazerem, também, as mulheres para cá. Assim podpedir apoio à Segurança Social em nome delas e poupar o dinheiro em Inglaterra. Quachega a hora da reforma, pegam nas suas economias e voltam para o lémen, onde o cude vida é uma fracção do da Grã-Bretanha.Foi isso mesmo que fizeram Gowad (o suposto sogro da Nadia) e a mulher, Salama. Muanos depois, quando tinham conseguido juntar dinheiro suficiente, venderam a casaBirmingham e regressaram ao lémen, para viverem dos rendimentos. Ouvi de várias fonque Gowad morreu poucas semanas após o regresso, o que me leva a pensar que tahaja justiça no mundo, ainda que por vezes tarde...Não há dúvida de que o Pai sente a falta de Gowad. Penso que, quando Gowad. estava Inglaterra, deviam encontrar-se com frequência, provavelmente para falarem sobre tud

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que estava a acontecer, enquanto jogavam cartas pela madrugada dentro, engendraplanos para dificultarem a vida a todos nós.Quando Gowad e Salama saíram do lémen, deixando a Nadia a tomar conta dos seus fildisseram que voltariam uns meses depois. A verdade é que não faziam qualquer tençãoregressar e a Nadia ficou a braços com a tarefa de educar os filhos do casal, bem comoseus. Quando finalmente voltaram para o lémen, as crianças já eram crescidas. Tiveoutra filha em Inglaterra e, por vezes, eu via Gowad levá-la à escola. Apesar de ter apenove ou dez anos, era uma garota alta, quase da minha altura.

Há uns anos inscrevi-me num curso de costura, numa escola de Birmingham, e encontrsala cheia de mulheres iemenitas incapazes de proferir uma só palavra em inglês. Etodas jovens e estavam de véu, e fizeram-me lembrar as raparigas da aldeia, que eu fica conhecer tão bem quando lá estivera. Suponho que a maior parte deve ter sido trazpara Inglaterra para casar com homens da idade do meu pai. Devem ter sido vendipelos pais, para poderem viver em Inglaterra e enviar dinheiro para as suas famíliainverso do que me acontecera a mim e à Nadia.Embora viver em Birmingham seja infinitamente melhor do que em Maqbana, e qunenhuma diga que quer voltar para o seu país-natal depois de se ter habituado ao estilovida no Ocidente, o choque cultural de quando chegam a Inglaterra pode ser tão dramácomo foi para mim e para a Nadia aterrar no lémen.

A professora tentou incentivar as raparigas a tirarem o véu durante a aula, dado estavam apenas mulheres na sala, mas elas recusavam-se a fazê-lo. Deviam sentimuito vulneráveis e inseguras. Estavam rodeadas pelos filhos pequenos - apesarpoderem recorrer à creche da escola -, tal como fariam se estivessem nas suas aldeiasorigem. Não voltei ao curso. A professora demorava demasiado tempo a fazer-se entene as crianças faziam tanto barulho que não conseguíamos avançar. Eu deixara tudo para trás e não queria relembrar o passado.Na minha mente, gostaria de ter matado Gowad com as minhas próprias mãos, tal cogostaria de matar o meu pai e Abdul Khada, o homem que me levou para o lémen eentregou ao seu filho, tratando-me como um cão durante oito anos. Na verdade, sei nada de bom adviria daí e que não seria por isso que a Nadia voltaria para casa. Viro a c

quando vejo um deles nas ruas de Birmingharn e tento não lembrar o que nos fizeram.Embora ainda culpe esses três homens por terem criado esta situação, actualmente suma raiva maior contra os ministros do governo que deviam ter vindo em nosso auxcontra as pessoas que supostamente estavam incumbidas de nos proteger e que decidiabandonar-nos. Se um pai em Inglaterra maltrata um filho, as autoridades intervrapidamente. Por que será que nunca fomos merecedoras desse tipo de atenção?O Mo foi ver o Pai duas vezes e em ambas as ocasiões voltou para junto de nós com taraiva que pensámos que fosse explodir. No passado, ele jurara matar o Pai se o visse pfrente, e nós sabíamos que o dizia do fundo do coração. Agora o Mo tinha de se sentouvir o velho gabar-se da sua vida e a dizer mal de mim e da Mãe, para poder contar coapoio dele para a viagem.

- Ouve - disse o Mo, na primeira visita. - Continuamos a ser pai e filho. Ternos assuntosfamília para tratar. Quero falar com a minha irma e preciso que organizes um enconentre nós os dois. Podes pedir para ela ligar para aqui, de maneira a eu conversarpouco com ela?O Pai, sem dúvida satisfeito por ser alvo de um tratamento tão respeitoso por partefilho, concordou em entrar em contacto com o seu intermediário em Taez, Nasser Salemandar vir a Nadia da aldeia para casa de Nasser, de modo a poder receber uma chamdo Mo.Lembrava-me muito bem daquela casa, e mais tarde o Mo disse-me que nada mudaEnquanto a maior parte das pessoas de Taez tinha linóleo no chão, boas mobílias e o mmoderno equipamento electrónico, Nasser Salch continuava a viver ao fundo de

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caminho de terra batida, numa casa com chão de cimento. Devia ganhar bastante dinhde todas as pessoas que o usavam como agente, o suficiente para comprar uma cmelhor, mas insistia em viver como os aldeões mais pobres. Era um homenzinho pequesempre a correr de um lado para o outro a tratar de assuntos de terceiros, mas o Mo saque teria de lidar com ele, se quisesse ver a Nadia. Necessitava, também, de obter propara o doeumentário de Nick Gray sobre a maneira como a vida da Nadia era gerida pehomens.Nasser Saleli, telefonou ao Pai, para lhe dizer a data em que a Nadia ia estar em Taez. O

voltou a casa do Pai no dia marcado, para fazer a ligação. Pensei que eles não iam cuma sua palavra e que ela não estaria realmente em casa de Nasser Saleli.O Nick deu um gravador ao Mo, com um microfone pequenino, para ele registar a convee nós podermos ouvir o que a Nadia dizia.O Mo foi para casa do Pai com o coração aos pulos. Se o Pai percebesse que estava ausado para um programa televisivo, seria impossível prever a sua reacção. A histterminaria certamente em discussão, e o Mo não poderia contar com qualquer tipoajuda na sua viagem a Taez. Para o Mo já era suficientemente dificil ter de pensar no dizer à Nadía, e o facto de ter de manusear o gravador e de o manter escondido dotomava a situação duplamente complicada.A ligação foi estabelecida para casa de Nasser Saleh e, milagre dos milagres, a Na

estava lá, como prometido. Parecia que os homens estavam mais dispostos a colabocom o Mo do que connosco, mais dispostos também a manter a sua palavra. Ela veiotelefone e discretamente ele ligou o gravador.- Estou a pensar ir visitar-te - disse ele, depois de terem trocado banalidades durante instantes.- O quê? - A Nadia não queria acreditar no que ouvia. - E se for eu até aí?- O que é que queres dizer? - perguntou o Mo.- E se eu for a Inglaterra com o Mohammed e os miúdos?- Estás a falar a sério?- Estou - disse a Nadia. - Mas precisamos de dinheiro para as passagens.O Mo ficou calado durante uns segundos, tentando perceber o que estava em jogo. Est

ela a falar só em seu nome, ou ter-lhe-iam dito para fazer aquele discurso? Teriam efinalmente, aceitado a ideia de a deixarem partir? Seria assim tão fácil, depois de tatempo? Ou seria uma táctica para o fazer desistir da viagem ao lémen?- Está bem, então - acabou ele por responder. - Vamos tratar de tudo. Eu vou até aí e las passagens. Quantos miúdos são, ao todo?- Seis. Já tínhamos perdido a conta ao número de filhos que ela tivera. Terminado o telefonema, o Mo quis sair de casa o mais rápido possível, para nos coesta estranha reviravolta. Estava também ansioso por vir embora, não fosse o Pai deteo microfone. Mas não podia virar costas de imediato, pois poderia parecer suspeito, pque ficou mais um pouco e conversou sobre a sua viagem, até que finalmente se levan

e voltou para nossa casa.Nessa noite, ele mostrou a gravação ao Nick e a todos nós. Ficámos chocados, acreditando no que estávamos a ouvir. Senti-me dividida entre um sentimento de júbperante a ideia de que a Nadia ia regressar para junto de nós, e uma desconfiança quedizia para não me entusiasmar demasiado, pois acabaria por me desiludir mais uma vezSabia que o Mohammed podia realmente ter dito à Nadia que iam todos viajar Inglaterra. A Embaixada Britânica prometera que, se a família decidisse um dia visitaGrã-Bretanha, os funcionários tratariam da papelada necessária o mais depressa possSó não acreditava que o Mohammed estivesse, de facto, a ser sincero. Assim que pensano que iria acontecer à chegada a Inglaterra, o mais provável era dar o dito pelo não difaltar à sua promessa. Devia saber que, mal a Nadia e os miúdos estivessem sãos e sa

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em Birmingliam, ela jamais quereria voltar para Asímbe e ele perderia o controlo sobre pois teria a família à sua volta, a protegê-la.- Muito bem - disse o Nick, assim que a cassete chegou ao fim. - Vamos tratar passagens. Terá de ser você a ir ao lémen, Mo. A Nadia está à sua espera e pareceficado bastante satisfeita com a ideia.Devia estar a pensar que seria um excelente final para o seu documentário, mostraNadia a regressar a casa, passados dezasseis anos de ausência. Se isso acontecessenão teria qualquer problema em o deixar gravar o nosso reencontro. Todas as câmaras

mundo poderiam registar esse momento, pouco me importava, desde que a Nadia voltapara Inglaterra.- Não vai poder filmá-la, Nick - avisou o Mo. - Se o tentar fazer, vai estragar tudo. Pcaptar imagens da paisagem e de Taez, e eu vou tentar arranjar gravaçoes da Nadfalar, mas ninguém vai permitir que vocês se aproximem dela com câmaras. Se descobrir que levo uma equipa de filmagens comigo, sabe Deus o que fará.Eu sabia que ele tinha razão. Lembrava-me da reacção da Nadia à equipa de televfrancesa, e a desconfiança com que tratara a Jana, pensando que ela era jornalNinguém no lémen deveria saber da existência desse documentário, ou fariam da vida dum inferno ainda pior do que já era.Claro que se o programa fosse para o ar, não poderíamos fazer nada para impedir qu

Mohammed descobrisse, mas era urn risco que valia a pena correr.O Mo viajou para o lémen sozinho, dando ao mundo a impressão de ser um homem qufazer uma visita inocente à sua irmã. Arrumámos mais uma mala cheia de prendas parae para os filhos.O Nick e a sua equipa viajaram uns dias depois, fazendo-se passar por turistas, de câmde vídeo em punho.- Não te preocupes - dísse-me o Mo, antes de partir -, eu trago-a para casa.Estava tão seguro e cheio de esperança, que decidi não dizer nada. Rezava a todasalmas para que ele conseguisse resgatar a Nadia. A minha reacção instintiva fopessimismo, mas não queria abalar a confiança dele. Já tinha preocupações e pressõessobra, passava bem sem as minhas habituais previsões negras e malfadadas. Guardei p

mim esses pensamentos e desejei-lhe boa sorte.Embora eu quisesse acreditar que o resgate podia ser possível, era incapaz de o conceImaginava-os a levarem a Nadia para a cidade e a instalarem-na num apartamento, pela falar com o Mo. Imaginava o Mohammed e Nasser Saleh a permitirem ao Mo uma cdose de liberdade, mas a vigiarem todos os seus passos.Começariam, então, a pressionar a Nadia para ela dizer ao Mo que estava feliz no lémeque não queria partir. A intenção deles era que ele voltasse para casa e nos dissessmim e à Mãe, que não valia a pena continuar a lutar, porque ela decidira ficar comarido.Se o Mo ficasse a sós com a Nadia, longe do Mohammed, talvez conseguisse levá-confessar o que realmente desejava, mas ela mudaria imediatamente de discurso

soubesse que ele estava a gravar as suas palavras para um programa de televisão.Não me agradava a ideia de não sermos francos com ela e de não lhe explicarmos o estávamos a fazer, mas sabia que ela não conseguiria entender e que a perspectivaatrair mais atenções dos media a deixaria aterrorizada. Era uma situação horrível e seme cada vez mais deprimida.- É um desperdício de dinheiro comprar as passagens - disse eu ao Nick, uns dias depoiso Mo voltar de casa do Pai -, porque ela não vai voltar para Inglaterra.- Fiz um acordo com a agência de viagens, que nos reembolsará se as passagens não fousadas - explicou o Nick. - Por via das dúvidas.Parecia que ele também não estava muito optimista. Depreendo que, depois depassado tantas horas a ouvir-nos, a mim e à Mãe, a falar sobre a quantidade de vezes

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tinhamos visto as nossas expectativas cair por terra, nem ele conseguia acreditar quNadia viesse para Inglaterra.Assim que o Mo partiu, todos receámos pela sua segurança. Sabíamos o que aconteceMãe e, embora ele fosse homem, não gostávamos sequer de pensar que o mesmo poderia acontecer. Depois de conversar com as minhas irmãs, a Tina e a Ashia, decpara bem do Mo - falar com o Pai e insistir para que me deixasse falar com ele, e com stambém com a Nadia, por telefone. Poder falar com o nosso irmão directamente far-nosentir melhor, e por outro lado não havia maneira de entrarmos em contacto com a Na

sem a ajuda do Pai.Sabíamos que jamais conseguiríamos contactar a Nadia enquanto ela estivesse na aldmas em Taez seria possível. Desde que convencêssemos o Pai...Sabíamos que a Mãe arranjara uma série de inimigos, na sua viagem ao lémen, e que opodia falar com várias pessoas para olharem pela segurança do Mo. Nunca me passou pcabeça que o Pai desejasse mal ao próprio filho, mas o Mo ia necessitar de proteccontra outras pessoas. Queria que todos soubessem que ele estava em Taez com a bêndo Pai.Não via o meu pai desde o dia em que o confrontara, após o meu regresso a Inglaterra,1988. Desde então evitara-o deliberadamente, com medo de não conseguir controlar-mde lhe saltar ao pescoço, ao vê-lo passear em liberdade pelas ruas de Birmingh

enquanto a Nadia continuava presa. Sabia que bastava uma palavra do Pai para pôr fimnosso pesadelo, mas ele não tinha coragem de falar com Gowad ou com o Mohammed.Podia dizer-lhes que a Nadia nos vinha visitar, tal como poderia ter-lhes dado ordem pnos libertar em qualquer altura, durante aqueles oito anos em que lá estive. Mas ele numexeu uma palha para nos ajudar, apesar de ser nosso pai e o responsável pelo nosofrimento. A única vez que o vira, ele chorara e pedira-me perdão, mas eram melágrimas de crocodilo. Nos anos que passaram depois desse encontro, ele nada fez presolver o assunto. Mentira-me, como tantas vezes fizera.A ideia de entrar em casa dele era-me insuportável. Mas sabia que, para me manter contacto com a Nadia durante a visita do Mo, teria de o fazer através do Pai. Não haalternativa. Se a Mãe ou eu tentássemos ligar para casa de Nasser Saleh, por inicia

própria, nunca nos deixariam falar com ela. Tinha de ir a casa do Pai e pedir-lhe para fazer o telefonema. Para tal, precisavacontrolar o meu mau feitio e não o atacar. Na minha mente, tê-lo-ia matado de bom graPor fora, teria de ficar de boca fechada, com medo do que poderia dizer, e de olhos baixcom medo de olhar para a sua cara trocista e ser incapaz de me dominar.A Tina, que se mantinha em contacto com ele há anos, desde que o encontrara na rconcordou em vir comigo. Eu ia precisar de alguém para falar por mim, já que não confem mim mesma sob tanta pressão.Aparecemos-lhe à porta sem avisar. Queríamos apanhá-lo de surpresa, para que ele tivesse tempo de inventar uma história ou de dizer que lhe estávamos a pedir o impossou de sair de casa e deixar que a sua jovem mulher lidasse connosco. Abriu a porta e f

a olhar-nos, horrorizado, enquanto eu entrava pela casa dentro sem dizer uma palavra.Recompondo-se ligeiramente, abraçou a Tina. Ela correspondeu ao gesto de uma mansilenciosa, que denotava respeito. Era impossível adivinhar-lhe no rosto o que estarpensar, quando me seguiu até à sala com o Pai a reboque.O facto de a Tina e a Ashia se terem mantido em contacto com o Pai, fora útil ao longo anos, pois ele dizia-lhes coisas que, de outro modo, eu e a Mãe nunca teríamos ficadsaber. A dada altura, disse à Tina que Abdul Khada, o homem que se dizia meu sogro, va Inglaterra com uns documentos para me levar de volta para o lémen, depois de eufugido. Eu e a Mãe rimo-nos quando soubemos disto. Bem gostaríamos de o ver bater-noporta para levar a cabo essa ideia disparatada. Ele ainda não arranjou coragem para

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enfrentar. Após oito anos a ser torturada por Abdul Khada no lémen, gostaria de tepossibilidade de lhe deitar a mão em Inglaterra.Mas, enquanto ríamos, sentimos ambas um arrepio de medo. Quem teria acreditado quPai seria capaz de nos vender, a mim e à Nadia, quando tínhamos apenas catorze e quanos? Nunca era boa ideia subestimar o poder de homens como o Pai e Abdul Khada. isso, fora útil saber o que planeavam.A mulher do Pai estava sentada na sala, quando eu entrei. Olhei-a de relance, mas nãodirigi a palavra e sentei-me numa cadeira. Ela parecia jovem e os seus olhos estav

arregalados, de medo e confusão. Deve ter-se interrogado sobre o que estaria a aconteSabe Deus que histórias terá ela ouvido sobre mim, vindas do Pai e dos seus amiguinhDevem ter-lhe dito que eu era louca e perigosa, uma espécie de mulher-demónio decididacabar com as vidas deles. E suponho que, de certo modo, era verdade. Estavam dcrianças pequenas a brincar no chão, e reparei que a rapariga estava grávida de uterceira. As crianças não se aproximaram de mim. Devem ter pressentido que o mestado de espírito não era dos melhores. Duvido que soubessem que eu era sua irmã.Sentada a olhar para elas, enquanto o Pai e a Tina conversavam, tive pena delas. Bpodiam viver em Birmingliam, mas estavam isoladas da sua própria família, que moravaperto. Não faziam ideia de quem eram o Liam, a Cyan e o Mark. Na verdade, estas criande tenra idade eram tios dos meus filhos. Pensei que era triste não poderem fazer parte

nossa família e brincarem juntos todos os dias.Suponho que, quando forem mais velhinhos, o Pai os mandará para o lémen, a menina pcasar e o menino para se alistar no Exército, e nunca mais os veremos. Seria bom que dia eles nos procurassem, para saber quem são os seus meios-irmãos, mas provavelmeesse dia nunca chegará. Como a mulher do Pai é iemenita, não deverá ter qualqproblema em voltar com os filhos para a sua terra-natal. Não teria de passar pela situaterrível em que a Mãe se encontrou.Adorava participar nas suas vidas, mas jamais o poderei fazer, porque isso implicretomar a minha relação com o Pai. Se ele morresse ou sumisse do mapa, eu começarvisitá-los e a tentar ajudá-los como pudesse, mas enquanto ele estiver vivo e impensáfazê-lo.

A Tina explicou ao Pai por que motivo ali estávamos: queríamos falar com o Mo sempre ele telefonasse do lémen.O Pai não protestou. Parecia bastante humilde, esforçando-se por fazer conversa co Tina, apesar de a sua voz estar a falhar por causa da emoção. A minha presença silence taciturna deve tê-lo enervado. Deve ter sentido o meu ódio e, também, que eu estavbeira de perder a compostura e de o atacar. O ar naquela sala estava pesado de tatensão.Ele pouco mudara desde a última vez que o vira, estava apenas mais velho, com mcabelos brancos. Nenhum de nós sabe ao certo a sua idade, porque mentiu em relaçãdata de nascimento quando chegou a Inglaterra e, desde então, tem mudado de idsempre que lhe convém. Eu não queria acreditar que aquele homenzinho insignifica

ainda pudesse ter tanto controlo sobre as nossas vidas. Não falávamos com ele há anono entanto ele ainda detinha o poder de manter a Nadia longe de nós. A Nadía e o mfilho, o Marcus... Por culpa dele, os filhos da Nadia nunca chegaram a conhecer a fammaterna.Eu era uma mulher adulta, a viver numa sociedade supostamente livre, e ele continuavcontrolar a minha família como se eu fosse uma criança. No entanto, abusara de todoseus direitos de pai e mostrara que o seu único interesse era o seu próprio bem-esNunca fizera absolutamente nada por nós. Destruíra as vidas que a Mãe consegconstruir para nós. Eu odiava-o tanto, naquele momento, que só me apetecia pegar nufaca e degolá-lo.

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Ao ouvir a voz dele, tudo o que passei no lémen veio-me à mente. Lembrei-me das sovdas humilhações, das violações e da falta de cuidados médicos. Pensei no Marcus ecomo me haviam obrigado a deixá-lo para poder sair do país, e pensei na Nadia, aindalémen depois de tantos anos.Quando ele percebeu que eu estava a falar a sério e que não tencionava ir embora até ele arranjasse maneira de eu falar com a Nadia e o Mo, pegou no telefone e marconúmero de Nasser Salch. Sem lhe dirigir a palavra, tirei-lhe o auscultador da mãencosteio ao ouvido. Estava a tocar.

- Estou? - Ouvi a voz da Nadia. Por sorte, fora ela própria quem atendera o telefone. Pareridiculamente fácil depois deste tempo todo. Fiquei atordoada por estar a falar com elainesperadamente. Pensava que o Pai e Nasser Salch iriam tentar empatar-me, durante pmenos duas semanas, até me deixarem falar com ela, Não sabia o que dizer...- Olá! - disse eu. - Sabes quem fala?- Sei - respondeu ela, com um ar tão calmo como se nos tivéssemos falado na vêspera.A tensão que se sentia, naquela sala em Inglaterra, não me deixava falar à-vontade cominha irmã, sabendo que o Pai estava a ouvir tudo, na esperança de que eu dissealguma coisa que ele depois pudesse utilizar contra mim, noutra ocasião. Perguntei se oestava bem e ela confirmou.- Como é que te sentes? - perguntei.

- Estava agora a explicar ao Mo - respondeu ela.Falou em inglês durante a conversa toda, sem nunca recorrer ao árabe, o que espantoso, porque, mesmo depois de estar em Inglaterra há dez anos, ainda me escapumas palavras em árabe de vez em quando, especialmente quando me aborreço commiudos, Suponho que ela estaria a conversar com o Mo quando o telefone tocou e retomara o hábito de falar inglês.Quando acabei de falar com ela, passei o telefone à Tina. Dirigi-me directamente para ocarro, sem olhar para o Pai, e esperei por ela lá fora. Assim que saí daquela casa, perdi te qualquer pressa. Quando a Tina entrou finalmente no automóvel, nenhuma de nós faRegressámos a casa da Mãe num silêncio ensurdecedor. Contámos à Mãe o que se passe, daí para a frente, eu e a Tina não tomámos a falar sobre aquela tarde. Era como

nenhuma de nós quisesse admitir em voz alta que aquele homem era realmente nosso pA Tina disse à Mãe que perguntara à Nadia se ia voltar com o Mo para Inglaterra.- Não posso - respondera a Nadia. - O Mohammed pôs os miúdos na escola e eles só férias em Junho. Mas iremos em breve. O Mohammed prometeu-me.Lembrava-me bem desse tipo de promessas. Quando estive no lémen com a Nadiahomens prometiam-nos sempre que poderíamos regressar a Inglaterra «quando chegashora certa», mas essa hora nunca chegara. Espantava-me que ela ainda acreditasse no eles lhe diziam, mas suponho que tenha de agarrar-se a qualquer fiapo de esperança lhe estendam, caso contrário, nada lhe resta. Tem de acreditar que um dia a deixapartir, senão não valeria a pena continuar a viver. Tive a certeza, assim que a Tina contou à Mãe a desculpa das aulas, que a Nadia nã

voltar com o Mo. Era mais uma ratoeira do Mohammed e da sua família. Mais desculMais complicações. Mais mentiras. Mais desespero e impotência.Dias depois, marcámos outro telefonema, para que eu pudesse falar com o Mo, de casaPai. Foi uma conversa dificil. Deviam estar outras pessoas na sala com o Mo, e ele estavtentar passar-me mensagens em código. Era impossível para ambos falar à-vontade soo que podia estar a acontecer naquelas sinistras paragens de Taez.Assim que se instalou no lémen, o Mo começou a enviar-nos taxes, para nos pôr a paque se passava. Disse-nos que o Mohammed arranjara um emprego como polícia, nucidade chamada Hodeidah, a quatro horas de carro de Taez, mas que tirara uns diasfolga para acompanhar a Nadia, enquanto ela estivesse com o irmão. Não foi surpresa pnós. Pensámos logo que ele nunca permitiria que a mulher conversasse a sós com

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família, passado tanto tempo. Fez questão de visitar o Mo, pouco depois de ele chegalémen. Devia querer mostrar-lhe que sabia da presença do Mo e que era ele qudominava a situação.- Comprei as passagens para todos vocês - disse o meu irmão ao Mohammed. Podementão, ir à Embaixada Britânica pedir os passaportes para os miúdos, para viajarmos junpara Inglaterra?- Passagens? - O Mohammed ficou surpreendido e, depois, irritado. - Não queria trouxesses as passagens. Queria que trouxesses o dinheiro.

A Nadia olhou para ele horrorizada e, de repente, desfez-se em lágrimas.- Mas tu prometeste! - gritou ela ao Mohammed e saiu a correr do quarto.Apesar disto, o Mo continuava bastante optimista em relação ao estado de espíritoNadia e estava convencido de que conseguiria persuadi-Ia a voltar para casa, assim quMohammed fosse trabalhar e eles ficassem a sós. Comecei a pensar que talvez me tiveequivocado e que, afinal, podia ser que ainda houvesse esperança. Três dias depois, o estilo alegre dos faxes mudou. As palavras do Mo pareciam imbuídasum sentimento de pânico. «Ela é teimosa, Mãe», escreveu ele. «Não está a correr comoqueria. Andam a pressionar-nos.»Eu e a Mãe começámos a temer pela vida dele. Posso imaginar como deve ter sido dipara o Mo tentar convencer a Nadia de tudo o que a família fizera nos últimos dez anos

esperança de que ela finalmente tivesse coragem de dizer que queria a liberdade. Ele poderia compreender a maneira como a mente da Nadia funciona, mas eu sim. Ela dter-se mostrado muito mais reservada diante dele. Não deve ter permitido que ele vissque lhe vai por dentro daquela carapaça dura, que criou à sua volta para se proteger desilusões constantes e aguentar a luta diária pela sobrevivência.

«BOM, ELA DISSE-Q NÃO DISSE?»

A vida em Taez foi muito mais fácil para o Mo do que para a Mãe ou para a Jana, pusimplesmente por ser homem. No lémen, a vida é para os homens e as mulheres existapenas para os servir e parir os seus filhos.

O Mo tinha liberdade para entrar e sair da casa onde estava alojado. Não precisava deexplicações a ninguém. Não se lhe depararam «taxistas» ou «guias» ao virar de cesquina, insistindo em tomar conta dele, como acontecera com a Mãe. Ele pôde fundidiscretamente na multidão dos cafés e mercados, andar pelas ruas buliçosas sem olhassem para ele duas vezes.O Nick e a sua equipa, que também se encontravam na cidade, conseguiram encontracom ele e filmá-lo sub-repticiamente na rua sem que ninguém reparasse. Necessitavamfilmagens de fundo, para complementar as cassetes que o Mo andava a fazer das sconversas com a Nadia. Queriam mostrar o contraste entre Taez e Birmingliam, para uma ideia do abismo cultural em que a Nadia e eu caíramos.Quando voltou para Inglaterra, o Mo trouxe consigo uma cassete de noventa minutos

senti-me dividida, sem saber se queria realmente ouvi-Ia. Estava desesperada por esca voz da Nadia, mas tinha a certeza de que fazê-lo seria destroçador. Sentir-me-ia péssse ela dissesse que a sua vida era horrível, e igualmente mal se declarasse que era fepois saberia, então, que continuavam a forçá-la a mentir. Ganhei coragem e acedi a ouvgravação.Ao escutarmos as nuances da sua voz, que me era tão próxima, percebemos que as cotinham começado a azedar entre ela e o Mo. No início, a Nadia estava descontraída vontade. Parecia segura de si e contente por ter um membro da família por perto.Quando o Mo lhe fez perguntas sobre o passado, ela disse que não queria falar sobre iPosso imaginar como deve ser doloroso, para ela, recordar tudo aquilo que teve de sof Tenho a certeza de que o dia em que chegou ao lémen está gravado indelevelmente na

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memória. Está certamente na minha... Os homens obrigaram-me a dizer-lhe que ela estcasada com um rapaz que nunca vira na vida e que não poderia voltar para BirmingliEsse momento deve atormentá-la sob a forma de terríveis pesadelos, sempre que temdeitar-se ao lado do Mohammed e ouvi-lo ressonar.Abrir a mala de prendas, que lhe enviámos por intermédio do Mo, deve ter extremamente emotivo para ela. Quando se vive num mundo tão diferente, despojadotodo e qualquer conforto, a visão de algo tão simples como a nossa marca preferidabatatas fritas deve arrastar consigo uma torrente de memórias. Enquanto analisava

coisas que lhe mandámos, foi descrevendo-as a Mo, uma a uma, com o entusiasmo de ucriança que abre as prendas de Natal.Ainda me lembro do gosto seco e poeirento dos chocolates e bolachas que eu ecostumávamos comprar no lémen, sempre que conseguíamos deitar a mão a uns trocotentávamos alegrar-nos com um pequeno luxo. Quando ela tomou a provar os Toffos, dter recordado a nossa infância juntas, em que não ia a lado nenhum sem os seus pacode Toffos nos bolsos.- Onde está a minha família? - perguntou ao Mo, de repente. - Quero ir para casa. assim que viu o gravador de cassetes, sentimos o pânico na sua voz.- Desliga isso! - gritou. - Não me faças uma coisa destas. Só me vais arranjar sarilhos.* Mo manteve a fita a correr.

* partir do instante em que percebeu que as suas palavras poderiam ir parar aos órgãoscomunicação social e, consequentemente, aos ouvidos do marido, a Nadia começopapaguear as mesmas deixas robóticas que já escutáramos antes, diante das câmarastelevisão. Disse que era muito feliz e que não queria abandonar o lémen.Acabou com a conversa alegre de irmã e pôs-se a falar como uma estranha. A sua tomou-se irritada e amarga, como se o Mo fosse o instrumento da sua infelicidade. Tanaquele instante assim o pensasse. Apesar de saber que o Mo gravara as suas palaanteriores, dizendo que queria ir para casa, agora negava tudo.Quando o Mo acedeu, finalmente, a desligar o gravador, ela contou-lhe a pressão tivera de sofrer, quando a Mãe e a Jana tinham estado no lémen e sempre representantes da Embaixada Britânica decidiam ir visitá-la à aldeia.

- Todos eles me assustam - disse ela. - Até mesmo as pessoas da embaixada nie disseque, se quisesse voltar para Inglaterra, teria de deixar os meus filhos aqui. Sou incapazfazer isso. Quem é que tomaria conta deles, se eu me fosse embora? Tenho de fazer o eles mandam. Quando põem uma carta à minha frente e me dizem para a copiar, eu tede o fazer.Sabíamos que isso era verdade, porque, numa carta que a Mãe recebera da Nadia,assinara «Cumprimentos» e o texto não tinha quaisquer erros de ortografia ou pontuaçA Nadia dava muitos erros ortográficos, quando tinha catorze anos e ainda andavaescola em Inglaterra. Estando há dezasseis anos no lémen, a falar árabe todos os diasem ler praticamente nada em inglês, era muito pouco provável que tivesse aperfeiçotanto a sua escrita.

- Se pudesses escolher - disse-lhe o Mo, a dada altura da conversa gravada -, o que é gostarias de fazer?- Não entendo o que queres dizer - disse ela, parecendo genuinamente baralhada coideia de poder fazer uma escolha sozinha.- Se fosses homem e pudesses decidir o que te apetece fazer explicou pacientemente -, o que é que escolherias?- Viajar - respondeu ela.- Viajar para onde?- Viajar para todo o lado.Percebi exactamente o que ela queria dizer, porque eu senti o mesmo quando consefugir do lémen. Queria viajar pelo mundo inteiro e, graças ao livro, pude fazê-lo. Sei b

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como me senti aprisionada no lémen durante oito anos. Se ainda lá estivesse, ao fimtanto tempo, teria dado em louca.- Mas aonde gostarias de ir? - insistiu o Mo.- Bem, onde’é que fica a minha terra-natal? Onde é que está a minha família? - pergunela. - Em Inglaterra.Nunca, em todos estes anos de entrevistas, a Nadia disse que não queria regressaInglaterra. Por vezes, diz «É impossível», outras vezes, «Não se preocupe, Mãe, eu esbem». Diz inclusive que o Mohammed é um bom marido... quando ele está a ouvir.

nunca disse que não queria voltar para casa. Sabemos que ela o diria, se o sentisse, porassim se livraria de tantas pressões. Se a ouvíssemos dizê-lo, e se acreditássemos estava a ser sincera, desistiríamos de lutar pela sua libertação e deixá-la-íamos viver a vque escolhera na aldeia. Mas não é esse o caso. Tudo isto estava gravado na cassete. Quando a mostrámos ao Nick, ele perguntou quaipartes que queríamos que ele utilizasse no documentário. Pedimos-lhe que deixasspúblico ouvi-Ia dizer que queria viajar e voltar para Inglaterra, para ver a família. Espalavras resumiam os sonhos que sabíamos que ela guardava no coração. Pedimospara não passar as partes em que ela falava como um robot, papagueando as frases fora forçada a repetir, sobre ser feliz no lémen e querer que a deixassem em paz.Explicámos-lhe que, quando ela falava assim, como um robot, era porque se retirara p

dentro da sua carapaça. Está no lémen há quase vinte anos. Desde que eu parti, ela tem com quem falar sobre os seus sentimentos, ninguém em quem confie inteirameNão tem possibilidade de aliviar tanta pressão. Por isso guarda tudo para dentro, para desatar aos gritos nas montanhas e não pegar numa faca e matar alguém.Em vez dessa loucura, ela senta-se sozinha como um zumbi, proferindo frases que facom que não a incomodem. É como um cão que se habituou a apanhar, sempre que laou mostra demasiado entusiasmo. Ao fim de uns tempos, o pobre animal pára de ladresconde-se a um canto, concentrado em não fazer nada que possa irritar os seus carrasou chamar as atenções sobre si.Quando a Nadia se irrita comigo, ou com a Mãe, é porque sabe que, sempre que vamvisitá-la, tomamos a partir sem ela. Lembro-me de quando a Mãe nos visitou pela prim

vez no lémen e depois teve de voltar para Inglaterra, para continuar a lutar pela nolibertação. Foi insuportável vê-Ia ir embora, sabendo que estávamos de novo a abandonadas. Sabíamos que ela não tinha alternativa a não ser deixar-nos, mas isso nos impedia de nos sentirmos vazias e traídas. Sempre que um de nós vai ter com a Naapodera-se dela esse sentimento de perda e abandono.Se uma pessoa está constantemente a ser desiludida, acaba por deixar de ter esperanE penso que a Nadia insiste em dizer às pessoas que está bem e feliz porque não quer a Mãe se preocupe. Faz-se de forte, mas conseguimos perceber, pela maneira comoessas coisas, que não está a falar com o coração. São apenas respostas decoradas alguém que está cansado de ter esperanças e de as ver cair por terra.Foi isso mesmo que explicámos ao Nick. Ele prometeu-nos que utilizaria as partes ein

ela mostrava os seus verdadeiros sentimentos - os momentos em que se abriu com o Mlhe disse o que realmente queria - e nós confiámos nele.Inicialmente, o Mo devia ficar apenas uma semana em Taez, mas acabou por prolongsua visita por mais três dias, na esperança de que, passando mais um tempo com a Naconseguisse derrubar as suas defesas. Esperava conseguir recordar-lhe quem ela verdadeiramente e o que queria, de facto, da vida.A experiência chocou-o profundamente. Talvez ele se tivesse deixado arrastar por optimismo exagerado. Quando descobriu que não podia realmente ajudar a Nadia, maisque eu ou a Mãe, a desilusão atingiu-o em cheio. Ver alguém que se ama em sofrimenser incapaz de aliviar essa dor é uma das piores coisas por que uma pessoa pode passar

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Quando regressou a Inglaterra teve dificuldade em falar sobre o que vira e vivera no lémEra como se necessitasse de tempo para digerir e compreender o que tudo aqsignificava. Sei que houve pormenores que decidiu não me contar, com medo queficasse demasiado perturbada, e eu não quis pressioná-lo. Tirara algumas fotografiasNadia e dos filhos e eu fiquei chocada ao ver como ela estava magra e envelhecEnquanto todos os miúdos tinham um ar forte e feliz, parecia que, a ela, tinham-lhe suga vida. A Tina tornara-se muito bonita e era a cara chapada da mãe. Ver o seu rosto serenas fotos, lembra-nos a Nadia que conhecíamos em Inglaterra, há muitos anos.

O Mo contou-me pequeninas coisas, nem sempre percebendo como eram significatpara mim. Quando me disse que o Mohammed se queixara de que os miúdos andavsempre agarrados às saias da Nadia, na aldeia, compreendi que a minha irmã não mudnada. A maior parte das mulheres das aldeias afastam os filhos assim que podem. Talvefaçam por saber que lhos vão tirar e não queiram, como tal, criar laços demasiprofundos; ou talvez não tenham, pura e simplesmente, tempo ou energia parapreocuparem com eles. A Nadia, porém, continua a agir como uma mão britânica, tentaproteger e cuidar dos filhos enquanto puder. Isso explicaria também o porquê do seumuito mais exausto e desvalido do que o das outras mulheres da zona. Ela dá aos fidemasiado de si.Quando regressou a casa, o Mo passava a maior parte do tempo sozinho. Trancava-se

sótão durante horas a fio. Quando descia à sala, trazia os nós dos dedos em sangferidos. Nenhum de nós lhe perguntava porquê. A expressão dos seus olhos desencorajqualquer pergunta mais íntima e ninguém tentava averiguar o que se passava por dedaquela carapaça fechada.Um dia, quando ele saiu, eu e a Mãe subimos ao sótão para ver o que ele lá fazia. Vimomarcas nas paredes, no sítio onde dera murros, infligindo dor a si mesmo, comotentasse arrancar à força os maus pensamentos que o atormentavam.Talvez pensasse as paredes que esmurrava fossem o Pai ou o Mohammed...A namorada disse-nos que ele andava a dormir mal à noite. Muitas vezes, o Mo desistiatentar adormecer e levantava-se às duas ou três da manhã. Ia dar longos passeios evoltava horas depois. Posso imaginar a vontade que ele devia ter de limpar a sua mente

todas as imagens horríveis que vira ou que a Nadia lhe contara. Mas sei que é impossfazê-lo. A única maneira de aliviar esse tormento é distrain-rio-nos com outras coisas.Estando ocupada, eu conseguia empurrar as imagens do lémen para o fundo da cabedurante uns instantes, mas elas voltavam-me sempre à lembrança. Sou capaz de pensar em todos aqueles anos desperdiçados, quando ando a correr de um lado paoutro durante o dia. Mas, se não consigo dormir à noite, é impossível impedir que taquilo me invada como uma torrente, ainda por cima exacerbado pelo cansaço. Por vesinto que a dor me esmaga.Antes de deixar Birmingliam, o Mo foi falar com Gowad, para lhe perguntar por que é quNadia, o Mohammed e os miúdos não podiam vir passar umas férias a Inglaterra. famílias como a de Gowad, o respeito pelo pai é absoluto. O Mohammed jamais f

alguma coisa sem o consentimento do pai, apesar de ele próprio ser um homem adultomais provável é que o Pai pensasse que, mandando-nos para o lémen, também aprenderíamos a respeitá-lo cegamente. Enquanto vivi em Maqbana, confusa e sujeiuma lavagem cerebral, quase me transformei no tipo de filha que ele desejava. Supoque a Nadia tenha satisfeito as suas expectativas, já que cede sempre aos desejos homens que gerem a sua vida.) O Mo sabia que, se conseguisse convencer Gowad a autorização, a Nadia e os miúdos poderiam vir para Inglaterra numa questão de dias.Gowad riu-se na cara do Mo. Posso imaginar a maneira como ele terá desprezado o mirmão, tomando-o por um mero rapazinho ingénuo, que devia saber que não se podeem causa a autoridade dos mais velhos. Mas, no fundo, Gowad deve ter ficado nervoso

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presença do Mo, o que o fez falar com o meu irmão de um modo ainda mcondescendente do que era habitual. Toda a raiva e frustração que o Mo acumulara contra aquele homem, que detinha o pode resolver a vida da nossa irmã, explodiu e ele perdeu a cabeça. Ao sair de casaGowad, pegou em tijolos e começou a atirá-los às janelas. Deve ter servido para apaziga sua fúria, mas foi um gesto que lhe saiu caro. Gowad apresentou queixa na polícia e oacabou em tribunal, cujo juiz o obrigou a pagar os estragos que causara.Parece-me que vivemos num mundo estranho, de prioridades distorcidas, onde uni hom

que continua a perpetrar crimes terríveis contra terceiros, pode exigir uma indemnizapor umas quantas janelas partidas e recebê-la. As autoridades intervêm de bom grquando se trata de prejuízos materiais, mas mostram-se impotentes perante o caso de urapariga que está a ser maltratada dia a dia, ano após ano.A minha relação com o Mo está mais forte que nunca. O facto de ele ter estado no lémede ter tido um vislumbre da vida da Nadia fá-lo compreender exactamente aquilo que ea Mãe temos passado, e alterou a sua personalidade por completo. Sei que, hoje,compreende tudo o que lhe digo. Podemos sentar-nos durante horas, em silênciosabemos.’ ambos o que o outro está a pensar. Ele está a tentar retomar uma vida normfeliz, como, todos nós, mas os fantasmas estão lá, no subconsciente. Mesmo que a Navoltasse para casa amanhã, penso que ninguém poderia alguma vez apa

completamente todo o mal que nos foi feito nos últimos vinte anos.O Mo conseguiu arranjar uma fotografia do Marcus. A família do pai deve ter sabido quMo estava de visita à Nadia e enviou-lhe uma foto através dela. Agora tenho uma fotogrdo meu primogénito. Tem quase mais dez anos do que quando o deixei. Nada maissobre ele. Não sei quem são os seus amigos ou quais os seus pratos preferidos. Não seé um rapaz simpático ou mandão. Não sei se vai bem na escola ou se é mau aluno. Sque é exibicionista em casa, ou será um rapaz discreto que faz o que tem a fazersilêncio? Não tenho quem me conte estas coisas. Embora tenhamos recebido várelatórios da Embaixada Britânica, a dizer que ele estava ao cuidado da Nadia, nada dera verdade. A Nadia diz que nunca mais o viu desde que eu parti.Por mais que olhe para aquela foto, não consigo reconhecer a criança que deixei para t

 Tornou-se um jovem crescido, de vestes brancas e um turbante como o do Yasser Ara Tem um punhal à cintura. É um rapaz suficientemente adulto para conduzir um carrolémen, ou para ir trabalhar para qualquer país árabe.Pergunto-me, ao olhar para a fotografia, se ele se dará com os primos de Ashube. Ter-ão contado a história das duas «irmãs tristes de Maqbana», como nos chamavam, a mià Nadia, na época?Com tanta publicidade a nível internacional, é provável que a nossa história ainda sfalada pelas mulheres, quando lavam a roupa ou preparam a comida e os homens essentados à sombra a mascar quat e a discutir assuntos importantes. Estou certa de alguém terá levado para a região exemplares de Vendidas! ou de Sem piedapossivelmente comprados num aeroporto ou adquiridos por intermédio de um familiar

Inglaterra.Nada acontece em Maqbana. A vida é monótona e os dias longos. As pessoas conhistórias para passar o tempo e não posso acreditar que o Marcus não tenha ouvido algucoisa que o tivesse deixado curioso e com vontade de saber mais. Na escola, alguns seus colegas devem estar a par de, pelo menos, uma parte da verdade. Espero que sebons para ele e que não o atormentem com o meu passado. Tento ver para lá da foto, na esperança de descobrir o bebé que deixei, mas não o vPerdi os anos todos da infancia do Marcus e é impossível recuperá-los. Quando olho pafotografia, vejo um desconhecido. Não faço ideia de quando tomarei a encontrar-me cele. Talvez nunca. Pensar nisso dá-me dores de cabeça e traz-me lágrimas aos olhos.

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Lembro-me de como ele costumava agarrar-se a mim a toda a hora, quando era pequene pergunto-me o que terá acontecido depois de eu partir. Teria sido uma boa mãe para preocupada e carinhosa, mas as circunstâncias não mo permitiram. Ele foi obrigadcrescer com um vazio no coração, na ausência da pessoa que deveria ter estado ao lado acima de qualquer outra. Mas, no que toca aos governos britânico e iemenita, essum pormenor irrelevante. De cada vez que decidiram adiar uma decisão por mais um aroubaram um ano à infância do Marcus.Nos momentos em que me sentia mais em baixo, depois do regresso do Mo, dizia para m

mesma que talvez o documentário de Nick Gray mudasse tudo. Talvez provocasse otumulto político e alguém no poder decidisse arranjar maneira de me devolver o Marc Tinha de confiar nele.Depois de voltar do lémen, o Nick sentou-nos à volta da mesa, em nossa casa, e filmnos, conversando sobre o que achávamos que a Nadia estaria a passar, com base cassetes que ouvíramos. Estava a ser tão meticuloso com a preparação do programa, eu sentia-me cada vez mais optimista quanto ao impacto que o documentário teria, asque fosse transmitido na televisão.Ele também fez várias viagens aos Estados Unidos. Conseguiu localizar Don e Judy Feeda CTU, e entrevistou-os sobre o tipo de trabalho que efectuavam. Não lhes disse estava relacionado connosco, disse apenas que contactara algumas mães que tinh

recorrido aos serviços da organização americana, e que estava interessado em saber o eles faziam para ajudar essas pessoas. Os fulanos devem ter adorado a ideia de recebeuma publicidade à borla na televisão britânica.Em conversa com eles, trouxe o nome da Mãe à baila e eles mostraram-se tão coerenteconfiantes como sempre. Disseram que as nossas hipóteses de êxito haviam sido semmuito escassas, mas não falaram em reembolsar-nos se falhassem a sua missão. QuandNick os pressionou por causa do dinheiro, Judy virou costas e abandonou a entrevistaimagens, juntamente com o tipo de perguntas que o Nick lhes fez, tomavam evidente po telespectador que ele pensava que tínhamos sido roubadas.Assim que começámos a falar em público sobre a quantidade de dinheiro que tínhamdado aos americanos, sem nada obter em troca, outras mães entraram em conta

connosco para dizer que tinham passado pela mesma situação. Algumas eram mulheque a Mãe conhecera ao longo dos anos, em programas de televisão sobre crianraptadas, ou em encontros da Reunite e de outras organizações. Nenhuma delas perdtanto dinheiro como nós; ou se aperceberam mais cedo do que se passava, ou pursimplesmente não tinham acesso a quantias tão elevadas.O nosso maior erro fora ficarmos caladas durante tanto tempo, acreditando cegamentepalavra dos americanos. Se a Mãe os tivesse mencionado nas reuniões em que participaalguém poderia tê-la avisado muito mais cedo de que eles nem sempre cumpriam as spromessas. Assim, não lhes teríamos dado tanto dinheiro. Quando descobrimos a verda já era demasiado tarde para mudar as coisas. O certo é que tinham sido eles a insistisigilo e na discrição, pelo que não admira que isso tenha funcionado a seu favor.

Um programa televisivo conseguiu convencer um dos indivíduos da CTU a aparecerdirecto, para responder às alegações que eu e outros clientes insatisfeitos andávamofazer. Taparam-lhe o rosto, para que ninguém pudesse identificá-lo. A sua defesa consiem afirmar que, naquele ramo de actividade, não existiam certezas. Disse que hasempre uma possibilidade de não serem capazes de efectuar determinada missão e explicavam sempre às famílias os riscos inerentes.Lembro-me de nos dizerem, nos primeiro encontros, que tínhamos oitenta a noventa cento de hipóteses de êxito. Eu começara por pensar que seriam uns cinquenta por ceaté ver o profissionalismo dos planos e a quantidade de equipamento que tencionavusar. Por uns tempos, senti-me mais optimista. Penso que, se realmente tivessem tent

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efectuar a missão, teriam conseguido resgatar a Nadia. Mas, para quê darem-setrabalho? Já tinham o nosso dinheiro.Um dos homens que trabalhava para eles deixara a organização e criara uma emprprópria. Telefonou à Mãe a perguntar se ela conhecia outras mães com as quais pudesse entrar em contacto. A Mãe disse-lhe para ele resgatar a Nadia e os miúdoentão, ela teria todo o gosto em o recomendar a toda a gente.O Nick achou que, para ser justo, devia dar ao Pai a possibilidade de contar a sua versãohistória. Foi falar com ele no início das suas investigações, e ouviu a mesma asneirada

o Pai papagueava há quase vinte anos, sobre querer salvar-nos dos pecados da modeInglaterra e ensinar-nos a ser boas mulheres árabes, seguidoras do Corão.Depois de voltar de Taez e de ter descoberto mais factos sobre o nosso caso, o Nick decque devia ver o Pai novamente. Não me importei, porque sabia que o Pai jamais seria cade dar aos jornalistas argumentos convincentes para justificar os seus actos. Geralmeacabava por perder a cabeça e por se pôr a barafustar como louco, mostrando qobviamente, não tinha defesa moral possível.- Que quer saber? - gritou o Pai ao Nick, quando este lhe bateu à porta.- Quero saber o que foi feito da Nadia depois de termos saído de Taez - disse o Ninocentemente.- A Nadia voltou para a aldeia - berrou o Pai. - Está sob a protecção da família. Era f

acreditar nisso. Sabia que eles não iam querer que ela ficasse em Taez mais do que foestritamente necessário. As mulheres que vivem nas cidades têm tendência a torna«ocidentais», ou seja, autoconflantes, menos susceptíveis à intimidação e às lavagcerebrais. Por isso soubemos que ele estava a dizer a verdade e que a Nadia voltara pas montanhas, sujeita ao que quer que lhe pudesse acontecer a seguir.Quando acabou de montar o documentário, o Nick trouxe-nos uma cópia para vermos casa. Chorei novamente ao ouvir a voz da Nadia e todos nós a falar sobre ela.A Cyan estava sentada no meu colo, a ver o programa connosco. Viu-me a chorar no ecvirou-se para mim, em busca de conforto. Deparou com o meu rosto lavado em lágrimaa sua cara franziu-se de preocupação.- O Avô é mau, não é? - disse ela. - Não deixa a Tia Nadia vir para casa.

- Por que é que estás a chorar, Cyan? - perguntei, a minha voz entrecortada pela emoçã- Por nada - respondeu. - Os meus olhos estão só a deitar água.Desejei não a ter deixado ver o programa. Não queria que ela visse a mãe a chorar.O documentário era maravilhoso. O Nick fizera um excelente trabalho... até que chegomomento em que a Nadia dizia se desejava ficar ou partir. Eu não queria acreditar.sentada a ouvir o programa, que ele fizera exactamente o oposto do que lhe pedíramUsara o pedaço de fita em que ela dizia que era feliz e que não queria sair do lémecortara o resto sobre o seu desejo de viajar e ver a família. Parece que, à última hora,se acobardara e optara por se pôr contra nós. Ou talvez tenha recebido ordens pafazer...Ao ouvir as palavras saírem do televisor, senti que me davam um murro no estômago.

conseguia crer no que ouvia. Senti que, uma vez mais, as pessoas nos desiludQualquer pessoa que visse aquele programa ficaria com a impressão de que, embohistória tivesse sido profundamente trágica, a Nadia estava agora resignada com a vida e que não valia a pena continuar com a campanha para a libertar.Chegara a hora, concluiria o espectador, de desistirmos e aceitarmos que tínhamos perda batalha. Nem eu nem a Mãe estávamos dispostas a isso. O documentário do Nacabaria por ser uma arma contra nós, e não a nosso favor.Seguiu-se uma troca de palavras amargas com o Nick e, mais tarde, escrevi-lhe urna caa dizer que ele não sabia qual era o significado da palavra amor, pois não tinha filhos.O documentário, emitido na Primavera de 1997, obteve algum sucesso e foi vendidEspanha. Apesar das nossas reservas, eu e a Mãe fomos a Barcelona com o Nick promo

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o programa. Deveríamos aparecer juntos num talk show depois da exibição do filmeestaria sempre disposta a ir aonde fosse necessário, para contar a nossa versão da hista cada vez mais jornais de cada vez mais países. O programa do Nick podia não nosajudado a mostrar o que a Nadia realmente sentia, mas oferecera-nos mais uoportunidade de trazer a nossa história a público e gerar alguma controvérsia.Não dirigi a palavra ao Nick durante a viagem toda até Espanha. Ele sabia o que me iacoração e que eu tinha fama de ser difícil e obstinada, uma mulher que não se importde levantar ondas fosse com quem fosse. Evitou que o seu olhar se cruzasse com o me

eu tive a certeza de que ele sentia uma pontinha de remorso, mas isso não me serviuconsolo. Quando a televisão espanhola me convidou para participar num programa, pfalarsobre o documentário após a sua transmissão, expliquei o estado emocional em quNadia devia estar, depois de tanto tempo. Estava decidida a fazer tudo o que pudesse pminar a impressão que o filme deixara nos telespectadores.Recebemos muita publicidade em Espanha, mas na Grã-Bretanha, a resposta documentário que foi visto por cerca de três milhões de pessoas, foi uma desilusão. Cque a Yorkshire Television recebeu duas ou três cartas sobre o assunto, mas ncomparado com a resposta que obtiveramos ao livro. Foi um desapontamento terríSentimos que, para que a história fosse contada na sua totalidade em televisão, tería

de recomeçar do zero com outra equipa. A ideia de passar novamente por meses e mede entrevistas era insuportável.Pensando bem, não devíamos ter ficado surpreendidas com a falta de interesse Inglaterra. Nunca conseguimos cativar o público britânico da mesma maneira que oresto da Europa. Em países como a França e a Holanda, toda a gente parece ficar indigncom o que nos aconteceu. Todos, desde os governos aos editores e jornalistas, quefazer alguma coisa para mudar a situação. Em Inglaterra, todos parecem ter motivos pnão se envolverem no caso e para deixarem as coisas como estão. A única defesa do Npara o facto de ter utilizado aqueles trechos da cassete foi: «Bom, ela disse-o, não disseQuando voltámos de Espanha, o Nick veio visitar a Mãe, numa tentativa de preservar a amizade. Aquilo irritou-me. Um dia fui a casa da minha mãe e dei de caras com

sentado na cozinha, à conversa. Perdi a cabeça e atirei a matar. Acusei-o de distorcverdade por motivos de pura ambição pessoal. Disse-lhe que, em breve, íamos fazer odocumentário, que seria muito mais justo e melhor. Disse-lhe que a culpa era toda dNão me recordo de tudo o que me saiu pela boca fora, mas sei que fui extremameagressiva. Enquanto eu andava aos berros pela cozinha, o Nick transpirava, sem saberque buraco se enfiar.- Zana - disse ele, quando por fim o deixei falar -, lamento muito, a sério. Não faz ideiasentimento de culpa que trago dentro de mim. - Vi-lhe nos olhos que estava a ser sincerSe houver alguma coisa que eu possa fazer para repor a verdade...

- Não há nada que possa fazer - respondi com brusquidão. - Vá-se embora.

Ouvi dizer que o documentário tem passado noutros países, mas nunca mais recebenotícias do Nick.Depois da transmissão do documentário, a Jana mudou-se de Birmingham para a zona Dde Peterborough. Durante uns tempos viveu numa vila chamada Wisbech, onde mooutrora um homem de nome Thomas Clarkson, um dos principais responsáveis abolição da escravatura na Grã-Bretanha. Existe uma ponte construída em homenagem, designada «Ponte da Liberdade». Mas o facto de sair de Birmingham não fim à relação da Jana com a Mãe, que começou a viajar com frequência até Wisbech.A Mãe foi apresentada a um grupo de advogados, especializados em casos de direhumanos, que ficaram comovidos com a nossa história. Perguntaram se podiam faalguma coisa para ajudar a nossa causa. Aceitámos a oferta sem pensar duas vezes

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longo dos anos, tivéramos uma série de advogados a trabalhar para nós, na esperançaconseguirmos levar a tribunal o caso contra o Pai e os outros dois indivíduos. Sabíamcomo era dispendioso e demorado recorrer à justiça fosse para o que fosse, mas estávaseguras de que devia haver uma forma legal de resgatar a Nadia e os miúdos, e apenas teríamos de descobrir como. Não dispunhamos de dinheiro para pagar a advogado que estivesse disposto a ocupar-se de tão gigantesca tarefa e a Jana sabia disEla perguntou aos advogados de Wisbech se considerariam a hipótese de averiguaaspectos legais do caso sem nos cobrarem honorários. Explicou-lhes que estáva

falidas. Eles aceitaram e, agora que têm todos os nossos documentos, estão a tenprocessar o governo britânico e todas as outras pessoas que impediram a Nadia deacesso aos seus direitos humanos básicos.Continuamos a pensar, com mais convicção do que aquela que sou capaz de exprimir palavras, que a libertação da Nadia é responsabilidade do governo britânico. responsabilidade sua quando a Nadia tinha catorze anos e ainda andava na escola, Birmingham.Por não terem tomado medidas na hora certa, a situação tomou-se muito mais cplicada e é, agora, cem vezes mais dificil conseguir o seu resgate, porque ela tem filhos e está no lémen há quase vinte anos.Foram tantas as pessoas em cargos de poder que prometeram ajudar-nos e que dep

desistiram, ao perceberem que seria uma luta demorada, que começamos a acreditar não há justiça possível para o nosso caso. Todas essas pessoas parecem esperar que, se nos ignorarem durante algum tempo, acabemos por desistir da luta e dos protestos. É isso que acontece na maior parte famílias que depara com este tipo de problema: deixam-se, pura e simplesmente, abapelo desespero da situação. Mães que viram os seus filhos serem-lhes tirados acabamdecidir que é melhor deixá-los em paz, a viver como escravos, do que continuaincomodar toda a gente com o seu desejo de os libertar. Nem eu nem a Mãe estamdispostas a desistir tão facilmente... jamais.Devido à história de Wisbech, existem várias pessoas interessadas em questrelacionadas com a escravatura e a liberdade. Não são pessoas que detenham cargos

poder ou influência, mas têm crenças profundas e sabem distinguir o bem do mal. pessoas que empenham todo o seu tempo e energia na luta por causas que se lafiguram justas.A Jana marcou um encontro com algumas delas e falou-lhes da nossa situação. Começaa considerar a hipótese de criar uma campanha conjunta para libertar a Nadia e o objectivo principal tomou-se dar apoio à minha mãe e aliviar algumas das pressões quepesavam nos ombros. Escreveram a vários membros do parlamento e a quem quer pudesse ter alguma influência no caso.Um dos membros do grupo escreveu uma peça deteatro sobre escravatura e nós fomos Wisbech passar uns dias, para assistir a uma leitura da obra. Como acontece com graparte deste tipo de campanhas, não havia dinheiro. Tudo tinha de ser feito nos tem

livres das pessoas envolvidas, e contando com a sua boa vontade e desejo de mudar usituação que estava errada.Fizeram uma exibição privada do documentário de Nick Gray, que tivemos de novamente. Fiquei surpreendida com a reacção da plateia, que se mostrou, chocada.como a maior parte das pessoas que vivem no Ocidente, também estas não faziam idque a escravatura continua em prática em vários países. Durante todo o prograouviram-se expressões de espanto e indignação. Senti-me mais optimista. Por vezeslongo dos nossos anos e anos de luta, perguntei-me a mim mesma se seríamos as únpessoas a face da terra convencidas de que a situação da Nadia era injusta e que esterrada. Foi um alívio perceber que aquelas pessoas partilhavam a nossa opinião.

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Sempre que temos reuniões com elas, tentamos decidir quem deveremos contactar. Sboa ideia, por exemplo, contactar a Oprah Winfrey e dar-lhe a conhecer a nossa causaesperança de que ela faça um programa sobre nós? Ou escrever ao Steven Spielberg, do seu interesse pelo tema da escravatura? Para qual dos talk shows existentes na Eurdeveríamos ligar a contar o caso?Entretanto, a Jana também tem andado a trabalhar na Internet, procurando pessoas possam interessar-se pela história e contando o caso a quem quiser ouvir. A net dá-uma oportunidade maravilhosa de levar a nossa mensagem a lugares onde o livro

chegou. As pessoas estão a reagir positivamente ao caso e estamos a construir uma rcada vez maior, mas continuamos a não conseguir encontrar alguém capaz de libertaNadia. Se nos puséssemos à espera que a pressão da opinião pública se tomasuficientemente grande para forçar o governo a agir, quando isso acontecesse seríatodos demasiado velhos para beneficiar dos resultados.Num desses encontros, alguém sugeriu que escrevêssemos a Terry Waite e John MeCaros reféns de Beirute que tiveram mais destaque na Grã-Bretanha. Terry Waite era tambum cristão devoto, com uma série de contactos junto de membros influentes da Igreja epolítica. Fora conselheiro do Arcebispo de Canterbury e da Igreja Católica, e trabalharavárias campanhas internacionais de beneficência antes de ter sido capturado.Pensávamos que os reféns de Beirute conseguiriam entender, melhor que ninguém, a id

de inocentes serem tomados como prisioneiros. Se entrássemos em contacto com epoderiam ajudar-nos a chamar a atenção de pessoas mais influentes para o nosso caso.A Jana conseguiu arranjar o endereço de correio electrónico de Terry Waite e enviouuma mensagem. Umas semanas depois ele respondeu-lhe, dizendo que teria todinteresse em conversar connosco. Eu nem queria acreditar que realmente íamos conhelo. Seguira o seu caso na televisão, como tantos milhões de pessoas, enquanto o muinteiro andava em campanha pela sua libertação. Durante anos, os noticiários mostraimagens da sua figura grande e imponente e do seu rosto barbudo.Lembro-me de assistir à sua libertação e de chorar, apesar de ele ser um homem adulde eu nunca o ter conhecido pessoalmente. Sempre que ouço histórias sobre alguém foi injustamente encarcerado, não consigo evitar as lágrimas. A mais pequenina co

desencadeia em mim uma catadupa de emoções que tenho de controlar para poprosseguir com a minha vida diária. Quando permito que essas emoções venham à tondor é tão forte que se torna quase insuportável. Conseguia imaginar o tormento que deviater passado, durante aqueles anos de cativeiro, e estava certa de que, quando encontrássemos, seríamos capazes de nos entender mutuamente, duas pessoas diferentes unidas por uma experiência semelhante.Marcámos um encontro e viajei até Cambridge com a Jana e o Emile, um homem que imprescindível para a nossa campanha e que ajudara muito a Jana. Eu estava excitcomo uma criança, incapaz de acreditar que ia realmente estar cara a cara com uma fighistórica de tanta importância. Terry Waite esperava-nos num hotel e, enquanto eu atravessava o átrio da entrada, s

um turbilhão de emoções subir-me pelo peito acima e formar-me um nó na garganta não me deixava falar. Tive medo de desatar a chorar assim que lhe apertasse a mão.com enorime esforço que contive as lágrimas e esbocei um sorriso.Ele sentou-se connosco e ouviu-nos contar a história mais uma vez. Parecia uma pestão calma e segura! Falou pouco e, quando o fez, foi usando frases curtas e concisDisse-nos que estava a par do nosso caso e deixou a Jana expor o que se passava.Enquanto eu ouvia a Jana e observava a reacção de Terry Waite, percebi que o caso dfora muito diferente do nosso. Ele não necessitara de publicidade para que a sua histchamasse a atenção de pessoas influentes. À partida, já conhecia essas pessoas e foraisso que a sua campanha resultara. Como era uma pessoa importante, os órgãoscomunicação social deram-lhe cobertura imediata e as campanhas seguiram

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naturalmente. Assim que foi capturado, a história tomou-se notícia de primeira págenquanto nós precisáramos de seis anos para conseguir dizer aos media que a Nadia etínhamos desaparecido.Não dispunhamos de quaisquer contactos em círculos políticos. As pessoas que tinhlutado por nós, como a Mãe, a Jana e o Emile, eram quase tão impotentes como nBateram em várias portas e imploraram que os ouvissem. A única coisa que podíamfazer era voltar a bater em novas portas e não desistir de contar o caso. Percebi queaquele homem decidisse juntar-se à nossa equipa e ajudar-nos a lutar, ta

conseguíssemos libertar a Nadia. Ele pertencia a uma esfera completamente diferente esenti o entusiasmo crescer dentro de mim. Era amigo pessoal de Robin Cook, que,época, ascendera ao cargo de ministro dos Negócios Estrangeiros do governo trabalhiPodia chamar a atenção de pessoas influentes para a nossa luta. Talvez agconseguíssemos finalmente dar um passo em frente. Talvez tivéssemos encontrado o nocampeão.Quando começou a fazer perguntas sobre a Nadia - que idade tinha e como estavasaúde -, senti de novo as emoções embargarem-se-me na garganta e fui incapaz de coas lágrimas. Não queria falar sobre essas coisas, porque se o fizesse via imediatamentNadia diante de mim e não conseguia falar com calma. Queria manter uma certa distânem relação aos acontecimentos, como se fosse uma mera história que estivéssemo

contar, sem grande emoção. Queria simplesmente que ele compreendesse os factoNadia fora obrigada a casar e a ficar no lémen; e, desde o início, o governo nada fizera pnos ajudar.- Deixem o caso nas minhas mãos - disse ele, quando achou que já lhe tínhamos contadsuficiente. - Vou falar com o Ministério dos Negócios Estrangeiros e depois digo-vos o se pode fazer.Uma vez mais, senti-me numa montanha russa emocional. Parte de mim queria acredque, dessa vez, o caso ia resolver-se. Mas, por outro lado, depois de tantas desilusõesofrimento, não conseguia crer que agora seria diferente. Queria ser optimist?L, ter acreditar que tudo correria pelo melhor, mas tinha medo de sofrer outro desapontamepelo que não me atrevi a ter demasiadas expectativas. Era como se estivesse novame

dividida em duas.Depois do encontro, no regresso a Birmingliam de comboio, senti curiosidade por TeWaite e comecei a fazer perguntas à Jana. Ele era tão carismático, um verdadeiro líder.falou-me do passado dele e conversámos sobre outras pessoas que poderíamos abordque se encontravam em posições de influência como Terry. Pensávamos que, quantos mnomes sonantes atraíssemos para o nosso lado, mais hipóteses teríamos. A reudeixara-nos cheias de optimismo.Ao mesmo tempo, sabíamos que teríamos de obter o máximo de documentos oficrelativos ao nosso caso, para termos algo de concreto para mostrar a essas pessoas. Ptal, necessitávamos de entrar em contacto com um membro do parlamento, uma coisa não fazíamos há anos.

Contactámos um deputado e mareámos encontro.- Uma coisa que podemos fazer - sugeri nessa primeira reunião, pensando nos planos quCTU elaborara para resolver o caso -, é contratar pessoas para irem ao lémen resgatáPessoas racionais.- Se tentarem raptar a Nadia, estarão a cometer um crime - avisaram-nos.- Não me importo - respondi. - Estou disposta a enfrentar uma pena de cadeia Inglaterra se isso significar que conseguimos tirar a Nadia e os miúdos do lémen.- Nós é que seríamos as criminosas? - a Mãe estava a perder as estribeiras. - Viunotícias, hoje?- Não tenho tempo para ver televisão - ripostou o deputado.

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- Pois bem, andam a noticiar que a Embaixada Britânica na Jordânia desviou centenasmilhares de libras. Tal como aconteceu em Sanaa. Eles, os funcionários públicos, é cometem crimes, não nós.Devíamos ter percebido logo que um deputado não faria nada para nos ajudar. Durantegovernos de Margaret Thatcher e John Major, fiquei convencida de que não estávamoobter resultados por se tratarem de governos conservadores, cujos políticos jamaisinteressariam pelos problemas de pessoas como nós. Quando o Partido Trabalhista subiupoder, sentimos que teríamos mais hipóteses de ser ouvidas, apesar de a Mãe ter escri

 Tony Blair, enquanto ele ainda estava na oposição, e ele ter passado a carta a outra pesqualquer. Havia um sentimento de renovação na Grã-Bretanha e nós pensávamos participaríamos desse espírito de mudança.- A Nadia é uma mulher adulta - disseram-nos. - Não podemos obrigá-la a vir para cá. - a mesma resposta que ouvíamos há anos. Mas a Nadia não era adulta quando fora levpara o lémen. Era uma criança, tinha a mesma idade que tem hoje o seu filho mais velh- Ela necessita de cuidados médicos - argumentámos, uma e outra vez, em vãopudéssemos trazê-la a Inglaterra, para que ela fosse vista por um médico, então depoisdecidiria o que fazer. Se tiver os filhos todos aqui e se sentir segura e, apesar discontinuar a dizer que quer voltar para Maqbana, nunca mais nos intrometeremos na vdela. Mas a Nadia tem de poder escolher em liberdade, o que não é possível enqua

estiver prisioneira no lémen e longe da família.Ficámos desapontadas, mas continuávamos com fé em Terry Waite. Imaginei-o a movediscretamente nos bastidores de Westminster e Lambeth Palace, explicando pacientemea nossa situação aos amigos e conhecidos, íris istindo educadamente para que fizesalguma coisa no sentido de rectificar imediatamente o caso. Só nos restava esperar quenos dissesse quando é que a Nadia iria ser libertada.Quando o documentário foi exibido, pensámos que, apesar de o Nick não ter usadotrechos da cassete em que a Nadia falava dos seus verdadeiros sentimentos, serviria couma boa arma de campanha. Demos ao deputado uma cópia da cassete original, em se ouvia a Nadia a conversar com o Mo, e dissemos que tivéramos um encontro com TeWaite. Enviámos também uma cópia a Terry, para que ele ouvisse as palavras exactas

Nadia e não apenas os bocados incluídos no programa. Estávamos optimistas. Parecia qfinalmente, tínhamos uma frente de trabalho bem organizada. Terry Waite escreveu-nos uns dias depois, dizendo que lhe parecia que o Mo pressionaNadia para ela dizer que queria voltar para casa. Não compreendia que o Mo tivera de fcom a Nadia, precisamente daquela maneira, para que ela compreendesse o quepassava. Mo estava a ficar irritado, porque ela não dizia as palavras que lhe dissera ansó que desta vez para a cassete... palavras que tomavam claros os seus sentimentos.Lembro-me de ouvir Terry Waite dizer, num documentário sobre a sua própria experiênde cativeiro, que, enquanto estivera preso, julgara que toda a gente o esquecera. Pvistos, não lhe passara pela cabeça que talvez a Nadia sentisse o mesmo em relação a ndepois de estar no lémen há quase vinte anos, pensando, metade desse tempo, qu

tinhamos abandonado.A Baronesa Symons escreveu-nos do Ministério dos Negócios Estrangeiros, utilizandvelha fórmula de que a Nadia tinha «dupla nacionalidade» e que nada podiam fazer pnos ajudar. Quando eu e a Mãe lemos essas palavras, ficámos à beira do desespeVoltávamos à estaca zero, quando a Nadia e eu ainda éramos crianças e eles se serviamnossa «dupla nacionalidade» para cruzarem os braços. Desde então conseguíramos foo governo britânico a admitir que isso não era verdade e que a Nadia e os filhos ecidadãos britânicos. Mas agora optavam uma vez mais por ignorar esse facto e retomaantigas desculpas caducas, apesar de os nossos pais terem ambos passaporte britânicoProcurámos um advogado muçulmano, para termos uma segunda opinião, e ele concorque, mesmo perante a lei islâmica, a Nadia e os filhos eram cidadãos britânicos.

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Quanto ao deputado, dísse-nos que o caso teria de ser encerrado e arquivado, e que nmais havia a fazer. Tentámos contactar novamente o advogado muçulmano, mas desaparecera, evaporara-se como se alguém o tivesse ameaçado.Quando voltei para Inglaterra, em 1988, vários advogados disseram-me que eu podprocessar o meu pai por rapto e encarceramento ilegal. Incluímos Gowad no casoesperança de que isso o forçasse a libertar a Nadia. Nessa época, ainda tínhamos fésistema judicial britânico. Eu acreditava que todos nos quereriam ajudar, assim tomassem conhecimento dos factos. Não fazia a menor ideia de como iria ser d

convencer as pessoas desses mesmos factos.Enquanto o processo estava a decorrer na justiça, o Pai começou a escrever à NadiaDeus sabe o que lhe disse, mas ela enviou-nos uma carta, pedindo para parannos decausar problemas e afirmando que o nosso pai era «bom» e que ela o amava. Descobrimmais tarde, que ele lhe dissera que tínhamos deitado fogo à sua loja de flsh and chonde vivêramos todos juntos antes de sermos levadas para o lémen. Chegou, inclusivenviar-lhe uma fotografia para ilustrar os danos. Não era pois de estranhar que a Naestivesse confusa quando eu e a Mãe falámos com ela a partir dos estúdios da televfrancesa.O nosso caso foi levado a tribunal uma vez, mas acabou por ser adiado por «faltaprovas». O facto de eu ter sido testemunha de tudo o que acontecera, pelos vistos

tinha peso algum perante a lei. Passara oito anos em Maqbana, a reunir provas, maminha palavra de nada servia. Resolvemos não desistir e os advogados conseguimarcar outra audiência. Antes desse dia chegar, porém, o governo britânico aconselhnos a desistir do caso contra Gowad, como mostra de boa vontade para com o goveiemenita. Dissemos que, não só íamos retirar a queixa, como estaríamos dispostapermitir que o governo iemenita fosse louvado pela sua cooperação, desde que libertassNadia e os miúdos.Aceitaram o acordo e nós desistimos da acusação. As nossas expectativas subiramflecha. Tinhamos, finalmente, encontrado uma solução que não forçaria os iemenitapassar pelos maus da fita. A Nadia ia voltar para casa. Mas, de repente, abateu-se silêncio terrível sobre o caso. Quando, por fim, conseguimos receber uma resposta ofi

fomos informadas de que os iemenitas tinham quebrado a sua parte do acordo. Uma mais, fomos enganadas.Passado tanto tempo, eu e a Mãe continuamos a ser rotuladas de histéricas pautoridades, mulheres em quem não se pode confiar. Quando a jornalista do ObserEileen MacDonald, visitou o lémen pela primeira vez e confirmou tudo o que a Mãe contara, o Ministério dos Negócios Estrangeiros disse que agora acreditavam em nporque dispunham de uma testemunha. Admitiram que não tinham acreditado na mimãe.A única hipótese que me ocorre é que nunca acreditaram em nós por causa da cornossa pele. Não vejo outro motivo que justifique que a Eileen deva ser levada a sério Mãe não.

A dupla desilusão, com o deputado e com Terry Waite, fez com que a Mãe tomasse a sode asma e acabasse por ficar de cama, sem se mexer durante vários dias. A pressão fdemasiada para que ela conseguisse suportá-la. Foi como se necessitasse de se retiracirculação, durante uns tempos, para poder lidar com o stress. O seu corpo fechara-semaneira a arranjar forças para enfrentar o mundo.As constantes pressões na vida da Mãe acabaram por ser demasiado fortes também pamarido, Abdul. Ele fora sempre uma pessoa muito calada, incapaz de conversar sobreseus problemas, e o seu tempo era passado a ouvir as preocupações da Mãe e a tenadaptar-se a um novo país. Sei que ele andava constantemente preocupado com a própria mãe síria, que estava doente e não tinha dinheiro para pagar um tratamemédico.

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No fim, deve ter sido um fardo demasiado pesado para ele carregar, pois um dia, quandMãe tinha saído, ele fez as malas e foi-se embora. Não houve quaisquer sinais de avlimitou-se a desaparecer e nunca mais tivemos notícias. Consigo entender por que moele preferiu Partir discretamente, a ter de se justificar perante a Mãe e de a ver fconfusa e destroçada. Talvez o casamento tenha sido um mero estratagema para consevir para Inglaterra. Se assim foi, Abdul conseguiu convencer a Mãe de que se tratavaamor verdadeiro.Ela ficou profundamente abalada por perder o homem que sempre pensara qu

acompanharia até ao fim da vida. Abdul era uma presença serena e reconfortante. Masverdade a sua partida pareceu ser apenas mais um de entre uma longa série de problemForam as complicações do caso da Nadia o que realmente a deitou abaixo. Talvez tesido por isso que Abdul partiu. Deve ter percebido que, enquanto a Nadia não estivesse liberdade, ele jamais poderia ter esperança de obter um pouquinho de atenção por pda Mãe. Ela ficara profundamente abalada quando se apercebera de que nem o deputanem Terry Waite, nos ajudariam.Não tem mal, Mãe - tentei consolá-la. - Isto só nos vem mostrar que não eram as pesscertas. Mas há-de haver mais alguém que possamos contactar. Só temos de recomeçprocurar.Outros dois deputados, depois de ouvirem a nossa história, pediram-nos que

entregássemos o caso. Assim fizemos e retomámos a espera habitual.O grupo de Wisbech também ainda não tinha desistido. Decidiram organizar umanifestação, para tentar chamar a atenção dos órgãos de comunicação social. Agradme a ideia de fazer um protesto público. Tinha visto que dera bons resultados noucasos. Mandaram imprimir T-shirts e marearam a manifestação para Londres, onde smais fácil atrair a atenção dos órgãos nacionais. Os organizadores trataram de todospreparativos, pediram autorização à polícia e delinearam o percurso, que terminaria Trafalgar Square. Comecei a sentir-me entusiasmada perante a ideia de tornar a fazer ade positivo.O Mo tinha tirado uma fotografia à Nadia, em Taez, que mostrava como ela estava canse magra. Mandámos fazer centenas de copias e escrevemos um pequeno texto a exp

que ela ainda se encontrava no lémen, passado tanto tempo. Decidimos distribuí-Ias na a todos os transeuntes.Depois de o documentário ter sido feito, começáramos a recolher assinaturas para upetição que tencionávamos entregar ao Primeiro-Ministro. Percorrêramos toda a cidadeBin-ningham, a pedir às pessoas para subscreverem a nossa causa. Levei uma centenacópias da petição para a escola do Liam e os miúdos deram-nas a todos os amigos, pque as levassem para casa, para os pais e familiares.Queríamos mostrar ao governo que a opinião pública era veementemente contra a situada Nadia. Até à data, conseguimos recolher mais de um milhão de assinaturasmanifestação dar-nos-ia uma possibilidade de aumentar essa listagem de nomes e levnossa história até junto de mais pessoas.

No dia marcado, de manhã bem cedo, partimos de Birmingliam numa camioneta. A mparte dos nossos acompanhantes eram amigos e familiares, muitos dos quais trouxeramfilhos. A Mãe, o Paul e eu trouxemos o Liam, a Cyan e o _Mark, e explicámos-lhes o íamos fazer.Esperava-nos mais gente em Londres, pelo que, quando partimos às dez horas, de cartaem punho, éramos cerca de sessenta pessoas. Tratava-se de uma pequena manifestacomparada com outras, mas suficiente para chamar a atenção dos transeuntes. Na altfiquei um pouco magoada por não teririos recebido mais apoio das pessoas, compreendo que nem todos queiram participar nesse tipo de actividade, e talvez tivéssemos publicitado o evento de maneira adequada.

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Estava um dia lindo e quente. Quase todas as pessoas a quem entregámos os panfledisseram que conheciam o caso. Ninguém hesitou em assinar a petição. Como semsentimos que todos ficavam comovidos ou chocados ao saberem que a Nadia ainda estencarcerada no lémen. Não conheço uma só pessoa, fora os iemenitas e os funcionáriosMinistério dos Negócios Estrangeiros, que seja da opinião de que a Nadia deva lá ficaque seria melhor desistirmos do caso.Foi uma oportunidade magnífica poder conversar com tanta gente diferente. Ajudou-mrecuperar a fé na opinião pública e a perceber que, por toda a Europa, as pess ’oas es

do nosso lado. Um indivíduo veio ter comigo, dizendo que trabalhava para as Finanças.- Foi extremamente injusto - disse-me ele - o que as Finanças lhe fizeram. Abordaram o caso da forma errada. Acho que não deviam tê-la impedido de receber os seus direitosautor como fizeram. Se ganhasse a lotaria, devolvia-lhe o dinheiro todo.Pareceu-me um gesto francamente bonito. Espero que o senhor continue a jogarlotaria...Não podíamos caminhar muito depressa por causa da asma da Mãe. Os polícias, que escoltaram pelas ruas, brincaram connosco por sermos tão ordeiros. Disseram que éraos manifestantes mais calmos que jamais tiveram de acompanhar. Tínhamos um megafconnosco e, quando começámos a ganhar coragem, pusemo-nos a gritar o nosso le«Liberdade para Nadia! Liberdade para Nadia!», esperando atrair mais atenções. Eu est

a ficar rouca e a Mãe sem fôlego, pelo que o Paul acabou por assumir a tarefa de gritarnós.Quando chegámos a Trafalgar Square, estávamos todos transpirados e cheios de caloalguns dos nossos amigos mais ousados saltaram para dentro da fonte pararefrescarem. Passeei por entre os grupos de turistas estrangeiros, falando com todos elpedindo-lhes a sua assinatura. Três turistas vieram ter comigo, perguntando se eu era ZMulisen. Disseram que tinham lido uma das traduções de Vendidas! e queriam tirar ufotografia comigo. Em momentos como esse, sentia que estávamos realmente a consepassar a nossa mensagem ao mundo. Mas, depois, lembro-me que ainda não conseguimudar a situação, desde que eu saí do lémen, em 1988.Quando voltámos para a camioneta, ao fim do dia, estávamos todos exaustos. Acabám

por adormecer na auto-estrada, a caminho de casa.Sentíamo-nos desiludidos com a pouco atenção que tínhamos recebido dos media, mpelo menos, fora uma lição útil para nós. Temos consciencia, agora, de que precipitámos a fazer a manifestação, simplesmente por querermos levá-la por diaenquanto o doeumentário ainda estava fresquinho na cabeça das pessoas. Mas a próxque organizarmos será planeada com tempo e calma, de modo a ser mais eficaz.A saúde da Mãe tem vindo a deteriorar-se ao longo dos anos. À medida que o stressaumentando, foram aumentando também os seus problemas físicos. Tem bronquite, ase psoríase. Tenho a certeza de que foram provocadas pelas pressões que pesam sobre a ansiedade que sente pelas filhas e as frustrações que tem de enfrentar a cada ndecepção. Parece que as únicas coisas que a fazem aguentar os seus tormentos são

comprimidos que tem de tomar e a sua própria força de vontade. Quanto mais fracotoma o seu corpo, mais forte fica o seu espírito.A sua agorafobia voltou e ela começou a ter ataques de pânico. Treme dos pés à cabsempre que alguém bate à porta, entra em apneia e não consegue articular as palavAgora nem sequer pensa em sair de casa, a menos que algum de nós a acompanDepende totalmente dos filhos para ir às compras ou para lhe trazermos alguma coisaque necessite.Quando eu tinha dinheiro, conseguia ajudá-la, pagando as suas contas telefónicacomprando-lhe passagens de comboio e avião para ela ir aonde precisava. Agora o dinhfoi-se e nós voltámos à estaca zero. Durante uns tempos cortaram-lhe o telefone, o quequase uma tortura para e] a.

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Muita gente tinha o número da minha mãe e ligava-lhe a toda a hora. Nem sequer popegar no telefone e falar com a Jana sempre que lhe apetecesse. Tudo isso contribuiu paumentar a sua ansiedade, e o que eu mais queria era poder aliviá-la.A última notícia que recebemos sobre a CTU indicava que o grupo já não se encontrava Estados Unidos e que fora obrigado a fugir para as Filipinas. Olhando para trás, penso eles devem ter começado por ser uma organização séria, que tentava dar o seu mepara ajudar as mães que os contratavam. Depois, as pessoas que a criaram retiraramou desistiram, e foram substituídas por outras, que não eram tão eficazes. Estas pesso

servindo-se da fama dos seus antecessores, perceberam que tinham descoberto umaneira fácil de ganhar dinheiro e tomaram-se gananciosas. Quando chegou a nossa v já nem se davam ao trabalho de tentar efectuar as missões, limitavam-se a ficar codinheiro e a apresentar uma série de planos e estratégias, só para nos atirar areia paraolhos.De quando em quando dou comigo a pensar: «Talvez nos surpreendam. Talvez um dMãe ou a Jana me telefonem a dizer que a Nadia foi libertada e que está à nossa espeMas esses momentos são cada vez mais raros, à medida que o tempo vai passando e nacontece.Por vezes, quando vou a casa da Mãe, encontro-a deitada, sem conseguir mexer o corpnão ser um braço ou uma perna, as suas forças completamente esgotadas. Quando pe

no tormento que ela tem passado, fico espantada como é que aguentou até agora. então que me vem à mente a crueldade que seria, para ela e para a Nadia, se a Mmorresse antes de se tomarem a reunir. A Nadia não pode estar destinada a vir para capenas para visitar a sua mãe no cemitério.Apesar de todos os contratempos e de tanta espera, ainda tenho fé em que sairemvitoriosas, no fim. Tem de assim ser, caso contrário, para quê tanto esforço? Sei qumaior parte das pessoas está do nosso lado, porque é isso que me dizem. Ao longo anos, tem havido tanta publicidade que a minha cara é bastante conhecida nas ruasBirmingliam. Depois de cada notícia ou reportagem feita pelos media, comodocumentário de Nick Gray, sou abordada por desconhecidos, que vêm desejar-me sorte. Às vezes, dão-me o seu número de telefone e pedem-me para entrar em conta

com eles, se houver alguma coisa que possam fazer para ajudar.As pessoas comuns conseguem ver a injustiça de toda esta história, mas não conseguimmobilizar a opinião pública ao ponto de pressionar aqueles que detêm o poder de mudsituação. As pessoas têm as suas próprias vidas e problemas para resolver. Por mais vontade que tenham, talvez não disponham de tempo para lutar pela nossa causa.Sabemos que não somos, de todo, as únicas pessoas nesta situação. No início da nocampanha, participámos num taIk show com algumas mães que tinham constituído uassociação chamada Reunite. Falámos com cinco dessas mulheres, cujos filhos tinham levados para países muçulmanos. Mais tarde, elas fizeram um documentário, que as lea esses países e lhes permitiu ver finalmente os seus filhos. Ouvi dizer que a maior pdelas conseguiu trazê-los de volta.

Li uma estatística do Ministério dos Negócios Estrangeiros que indicava que, em média, raptadas três crianças por dia, na Grã-Bretanha. Mesmo se dividirmos esse número três, continua a ser um dado chocante, que nos mostra quantas pessoas devem estsofrer em silêncio, incapazes de gerar tanta polémica como nós.Não se trata de um problema confinado apenas a Inglaterra. Em todos os países por oandei a promover o livro, ouvi histórias horríveis sobre crianças que foram raptadas pepais ou pelas mães, levadas para outros países e nunca mais vistas pelo resto da famComo o mundo é cada vez mais cosmopolita e as pessoas viajam com crescente facilidapenso que este problema tende a agravar-se.Enquanto houver casamentos mistos, haverá sempre choques culturais, e enquanto houseparações e divórcios, haverá sempre batalhas na justiça pela custódia de filhos. No m

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de toda esta confusão e mudanças sociais, temos de assegurar que as crianças são ouve nunca privadas da sua liberdade. Nenhuma criança deve ser submetida à situaçãoque a Nadia se encontra ainda hoje.Parece-me que esta questão é, de certa maneira, ignorada. Quando os activistas direitos dos animais querem impedir a exportação de gado, aparecem nos noticiários toos dias. Quando os ambientalistas querem impedir a construção de uma nova auto-estrque atravessará uma paisagem protegida, conseguem chamar a atenção do país intePor que é que não conseguimos atrair o mesmo tipo de atenção para a luta contr

escravatura infantil? Tendo três filhos pequenos, sei como é maravilhoso acompanhar o seu crescimentoquanto lhes é benéfica a presença da mãe. A mim e ao Marcus foi-nos arrancada evivência. Perdemos os dias, as semanas e os meses que uma família tem o direitopartilhar. Perdemos as manhãs em que ele acordou adoentado e só queria recemiminhos, e as pequenas discussões sobre tarefas a cumprir e deveres a fazer, e sobrerefeições que ele devia comer.Ele perdeu a oportunidade de saber como é viver com os seus irmãos. E o Liam, a CyanMark perderam a possibilidade de ter um irmão mais velho para brincar com eles e paraproteger.

Às vezes, penso que, assim que tiver idade para isso, o Mareus embarcará num avião e à minha procura. Mas depois percebo que ele pode nem saber que existo. A família dpode ter-lhe dito que morri, ou que sou uma pessoa horrível, que o abandonou por motegoístas. Não faço a mínima ideia do que lhe contaram. A única coisa que posso fazeagarrar-me à esperança de que ele fique tão curioso por saber quem foi realmente a mãe, que comece a fazer perguntas e alguém da aldeia acabe por lhe dizer a verdsobre o que me aconteceu quando fui prisioneira do seu avô. Se algum dia decidir vircomigo, estarei de braços abertos à sua espera.Sei que vou ter de recomeçar a minha relação com ele do zero, e desejo do fundocoração que ele venha ao meu encontro enquanto ainda for jovem; que não espere atéum homem adulto. Mas não posso fazer nada, a não ser esperar e ter esperança. So

com esse reencontro desde o dia em que o deixei.Antes de o Mo ir ao lémen, dei-lhe fotografias dos meus filhos para ele levar. Espero um dia o Marcus as veja. Pergunto-me se a Nadia olhará para elas da mesma maneira eu olho para a foto do Marcus e se tenta ver parecenças de família nos seus rostinalegres. Ver fotografias nossas deve lembrar-lhe a infância que vivemos juntas. Espero essas lembranças a reconfortem e não lhe tragam apenas infelicidade.Ela ainda se lembra dos seus colegas de escola. Apesarem de hoje serem adultos e tefilhos, a Nadia ainda pergunta por eles, das poucas vezes que conseguimos falar com Deve ser-lhe dificil imaginá-los como adultos. Mas nenhum mudou tanto como ela.Em Birmingham, vivemos numa comunidade unida e continuamos a ver-nos cfrequência. Quando estou com os meus amigos, não sinto que tenhamos mudado as

tanto em vinte anos, apesar do que nos aconteceu. Ainda falamos e rimos da mesmaneira que fazíamos em criança, quando ansiávamos pelo fim do liceu e por entrar nmundo recheado de aventuras.Nenhum de nós era capaz de imaginar o que nos esperava pela frente. Todos os nosamigos sabem o que nos aconteceu, a mim e à Nadia, mas nunca o mencionPerguntam~me, de vez em quando, se tive notícias dela, mas a resposta é quase sempmesma e, como tal, não há mais nada para dizer. Preocupamo-nos em prosseguir comnossas vidas. Espero que a Nadia consiga ver, naquelas fotografias, como seria retomar a sua vida em Inglaterra.Gosto de imaginá-la em Ashube, ao serão, quando todas as tarefas foram cumpridsentada a ver as fotos e a pensar como irá ser a sua vida, se um dia conseguir sai

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lémen. Deve ser doloroso, mas estou certa de que ela não quer esquecer o passaddesejo que saiba que continuamos à sua espera.Lembro-me da felicidade que senti quando a Mãe nos foi visitar, seis anos depois de termsido raptadas, e nos mostrou fotografias da família e amigos. Fez-me sentir mais saudaque nunca, mas ajudou-me também a fortalecer a minha vontade de lutar até ser liQuero manter essa esperança viva no coração da Nadia, apesar de estar ciente de qumaior parte do tempo, ela deve pensar que jamais conseguiremos libertá-la.O Mo disse-me que a Nadia tinha os quatro filhos crescidos junto dela, em Taez, e que

rapazes se agarraram a ele como lapas, pedindo-lhe para jogar futebol. Todos eles falavum pouco de inglês, o suficiente para comunicarem com o Mo, e queriam voltar compara Birmingliam. Penso que, para os meus sobrinhos iemenitas, a Inglaterra deve ser uterra exótica cheia de promessas, jogos de futebol, televisões e chocolates. Talvez a Nalhes conte histórias sobre a terra onde nasceu e, além disso, eles sabem que muitos adultos da família vêm para cá.Mo Perguntou à Nadía pelo Marcus, mas ela não sabia nada sobre ele. Embora, por lado, eu gostasse que ele tivesse ficado ao cuidado da Nadia, depois da minha partida,outro lado sei que foi melhor assim, caso contrário a minha irmã teria tido mais uma bpara alimentar, por minha causa.Apesar de toda a atenção dos media, e de todos os avanços no ramo das telecomunicaç

e satélites, os homens da aldeia continuam a conseguir esconder a Nadia durante anofio. Se ela morresse, eles poderiam ocultar-nos a notícia durante outros tantos anos, e meus piores momentos imagino que e isso mesmo que estão a fazer.Enviamos-lhe cartas, ao cuidado de Nasser Saleli, mas desaparecem algures no serviçoCorreios e não temos maneira de saber se chegam até ela. Nunca recebemos respostduvido que as nossas mensagens passem de Taez. Talvez o Moliammed as abra e, ao lenossas palavras de tristeza, se ria da nossa incapacidade para o derrotar.Às vezes julgo ouvir a voz da Nadia na minha cabeça, como se estivéssemos a ftelepaticamente uma com a outra. Nunca são conversas dramáticas. Não a ouço gritar pque eu a salve, limitamo-nos a falar de coisas banais do dia-a-dia. Por vezes, digo a mmesma que tudo não passa de imaginação e tento não pensar no assunto. Mas dep

apercebo-me de que quero, genuinamente, ouvir o que a minha imaginação possa quedizer-me e, portanto, respondo-lhe. A Nadia diz-me que sabe que andamos a fazer tudque está ao nosso alcance, e incentiva-nos a perseverar e a não desistir.A última vez que eu e a Mãe realmente falámos com ela foi no seu aniversario, Setembro de 1996. O Mo tinha acabado de regressar e conseguimos falar com a Nadia, estava em Taez, por telefone.- Quantos anos fazes, Nard? - perguntei.- Trinta e um - respondeu.- Não, fazes trinta e dois.- A sério? - A sua voz denotava surpresa.Uma das últimas coisas que ela disse à Mãe, antes de tomar a desaparecer em Maqba

foi: «Não se preocupe, Mãe. Fique sossegada. O Mohammed prometeu-me que, em brevamos a Inglaterra passar férias».Só os tolos acreditam em promessas, mas rezo para que ela não se aperceba disso. A Nanão tem conhecimento do grau de corrupção que se nos deparou desde o início da nocampanha. Ainda acredita que homens como o Mohammed, que lêem o Corão, são fiésua palavra. Talvez seja uma bênção. Talvez seja isso que a ajuda a sobreviver de dia pdia.A Mãe combinou telefonar novamente, daí a um mês. Mandaram-na ligar para casaNasser Saleh a uma dada hora. Fomos para casa da Mãe, para podermos falar com a NaQuando já nos encontrávamos todos reunidos, ela fez a chamada.- A Nadia não está - foi a resposta.

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- Então, vá buscá-la, por favor - pediu a Mãe. Sabíamos que o apartamento onde ela estdevia ser mesmo ao virar da esquina.- Ligue daqui a meia hora - disse a voz.Fizemos o que nos mandaram, mas a resposta foi a mesma. Disseram-nos para tentar dumas horas. Quando tomámos a telefonar, Nasser Saleh disse:- A Nadia está em Hodeidah, com o marido.- E quando é que volta? - perguntou a Mãe.- Não sei.

Compreendemos então que a tinham levado de volta para a aldeia.Quando as histórias de raptos no lémen. se tomaram notícia de grande destaque na GBretanha, no início de 1999, um repórter da BBC chamado Peter Wilson serviu-sehistória como Pretexto para me entrevistar no noticiário. Telefonou, também, ao Ministdos Negócios Estrangeiros, para saber se eles tinham conhecimento do paradeiro da NaFoi informado de que a Nadia estivera na embaixada, a pedir a emissão de passapopara ela e para seis crianças, mas «sem intenção de viajar». Disseram que teriam todgosto em que o Mohammed viajasse até Inglaterra como cidadão britânico emigrante, dque o seu pai tinha cidadania britânica.Quando os funcionários foram interrogados mais a fundo, tomou-se óbvio que nenhdeles tinha a certeza se fora a própria Nadia quem se apresentara na embaixa

Admitiram ainda que os passaportes tinham sido enviados «por correio». A hipótese deos ter recebido parece-me remota. O mais provável é que os documentos tenham svendidos a outra pessoa, que se encontra agora em Inglaterra à custa deles.Aprendi imenso, nos últimos dez anos, e confesso que há inúmeras coisas que fariamaneira diferente, se pudesse voltar atrás. Tanto eu como a Mãe cometemos erros ecada uma dessas vezes, pagámos o preço da desilusão. Mas sei que fizemos o melhor estava ao nosso alcance.Sempre que surge uma oportunidade, agarramo-la com unhas e dentes e com todenergia que temos. Mas nunca sinto que esgotámos todas as hipóteses. Ainda acreque, se continuarmos a lutar, encontraremos uma maneira de resolver o nosso problema Todos os dias me pergunto se, porventura amanhã, algo acontecerá para mudar a situaç

Continuo a ter esperança de que encontraremos o caminho certo, que nos levarápessoas certas. Talvez seja este livro, ou a publicidade que obtivermos com a sua publicação, aquilo finalmente nos vai permitir ficar juntas novamente. Talvez alguém num cargo de poder estas palavras e se sinta impelido a ajudar-nos. Talvez então eu possa cumprir a mipromessa à Nadia.Paul sabe que é frequente as lágrimas assaltarem-me. Apressa-se a ir distrair os miúdquando vê que não consigo aguentar mais. Se não fosse por ele, penso que não teria scapaz de proteger os meus filhos da verdade e ajudá-los a serem crianças felizes e livrescuidados.O Paul dá-me muito apoio. Deixa-me isolar-me um pouco, todos os dias, para cho

sozinha e conversar com Deus. Depois disso, durmo uns minutos, porque a infelicidesgota-me as forças. Se não consegui aliviar a dor através do choro, então converso coPaul sobre o que sinto. Mas ele não pode compreender inteiramente o que lhe digo, nãomesma maneira que um membro da família que tenha ido ao lémen e vivido o que eu vNunca leu Vendidas! nem Sem piedade. Não viu o documentário. Penso que não tconseguido ver com os seus próprios olhos o quanto sofri. Muitos dos meus amigos mchegados sentem o mesmo. Conhecem os pormenores básicos da historia, mas nuncareferem a ela. Não falando, conseguimos esquecer durante uns curtos instantes, e esses instantes que nos permitem recarregar baterias para continuar a lutar.

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Não quero dar a sensação de que a minha vida é só tristeza e amargura. Desde que salémen, fiz muitas coisas para além da campanha pela Nadia. Fiz, por exemplo, uma sériecursos para me preparar para o mercado de trabalho.Eu e o Paul gostaríamos de adoptar crianças, assim que a minha carreira o permita. Foentrevistados e investigados, e disseram-nos que podíamos avançar com um pedidoadopção. Só quero cuidar de miúdos em idade escolar, não gostaria de tratar de bebécrianças pequenas. Sei como é terrível ser-se separado da família em tenra idade. Qupoder ajudar algumas crianças a superar esse trauma.

Os miúdos que se encontram à espera de ser recebidos por uma família adoppassaram, muitas vezes, por situações trágicas. Foram vítimas de violência ou absexual, ou de negligência. Tiveram pais ineptos. Mas, sejam quais forem as histórias,que posso dar-lhes o amor de que necessitam e quero ter o máximo de competênpossível para ajudar a sarar as suas feridas emocionais. Quero poder dar-lhepossibilidade de levarem uma vida normal, depois do trauma que sofreram, para evitar acabem encurralados e indefesos corno a Nadia, independentemente de quais foremsuas circunstâncias.Até há pouco tempo, as autoridades responsáveis pelos processos de adopção aceitavam pais solteiros, mas, hoje em dia, a necessidade é tanta que até já pedpessoas como eu para serem pais adoptivos. Em sonhos imagino-me a viver algures nu

mansão com dez ou vinte crianças à minha volta. Claro que não o faria sozinha. O Paul equase sempre em casa. Tem imenso jeito para os miúdos e é muito mais paciente do eu. Se tivéssemos dinheiro, casávamo-nos, mas não quero fazê-lo, a menos que possamcasar como deve ser. Não quero um casamento com pompa e circunstância, apenas ucerimónia para a família e amigos, mas quero que seja numa igreja bonita, com os homde fraque e cartola. Talvez um dia, em breve, quando tivermos as nossas vorganizadas...Apesar de não conseguir imaginar como foi a nossa vida no lémen, o Paul escuta-majuda-me. É o meu psicólogo. Mantém-me sã. Permite-me, também, fazer todas as coque a campanha pela libertação da Nadia me exige. Não sei o que teria sido de mim sele, nos últimos anos. Tem estado sempre ao meu lado, o que faz dele uma criatura r

muito diferente dos homens que preencheram a minha infância. É bondoso, meigcompreensivo, precisamente o tipo de homem que qualquer rapariga gostaria de ter comarido, se pudesse escolher livremente. É um excelente cozinheiro, disposto a prepararuma refeição quando estou demasiado cansada até para torrar um pedaço de pão, e nãimporta de lavar, passar a ferro e pôr os miúdos na cama.Eu e o Paul não nos conhecíamos em criança, porque ele é cinco anos mais novo do queo que é uma lacuna enorme quando andamos na escola, mas de nada importa quasomos mais velhos. Conhecíamos, porém, o mesmo núcleo de pessoas e, assim quesaiu do liceu e entrou no mundo adulto, os nossos caminhos começaram a convergir cvez mais em casa de amigos comuns.Quando o conheci, eu estava a dar os primeiros passos para conseguir controlar

depressões que me assolavam nos primeiros tempos, após o meu regresso a InglateSentimo-no s imediatamen 1e atraídos um pelo o outro.Agora temos uma casa pequenina e aconchegante. Fica ao fundo de uma fileiramoradias, numa zona de Birmingliam que conheço bem, perto da loja defish and chonde eu cresci e que foi reduzida a cinzas.A nossa casa tem duas salas, uma cozinha comprida virada para o quintal, e três qua

de dormir no andar de cima. Temos um cão, um cruzamento de um Doberman com Rottweiler, chamado Saxon, que ladra o dia todo e protege os miúdos zelozamente. Tetambém um papagaio, que vive a um canto da sala de estar. Rivaliza com o televisor patenção das crianças e dos primos e amigos dos meus filhos.

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Ao serão, os miúdos sentam-se no tapete ou no sofá, a fazer os deveres da escoldiscutirem ou a treparem para cima dos adultos. Se há algum programa que eu qurealmente ver na televisão, subo ao andar de cima, onde tenho alguma paz e sosseguma casa de família, como tantas outras espalhadas por cada vila e cidade de Inglatecheia de gente, discussões e amor.Se pudéssemos, gostava de ter mais animais. Gostava de ter um aquário, dois gatos e malguns cães, mas os animais de estimação são tão dispendiosos como uma criança, pquem queira tratar deles devidamente. Gostava de ter um bull mastiff, um husky e

lobo-d’alsácia.Cubro o Saxon de mimos, e o Mark, o nosso filho mais novo, enfia-se no ninho delevezes, encontro-os a dormir juntos, o Saxon com a pata em cima do meu bebé, comoestivesse a protegê-lo. Gosto de pensar que o Mark está a salvo do mal.Desde que voltei para Inglaterra, fiz um curso de Inglês, um curso de puericultura,curso de iniciação à Matemática e um curso de mecânica. Começava a ter medo de cheà idade da reforma ainda a tirar curso atrás de curso e a procurar emprego. Foi então soube que a freguesia do bairro precisava de professores de natação.No liceu, sempre fui boa a natação e até hoje sou assombrada pela imagem de uma criaque se afogou num poço, no lémen, por não saber nadar.Não fazia’ideia de que os exames iriam ser tão difíceis, ou que teria tanto que estudar

casa, mas é uma sensação gratificante ver as crianças a soltarem-se da berma da piscina aventurarem-se à água pela primeira vez. Também tem sido positivo, para mim, a nível físico. O exercício ajuda-me a limpar a mede todos os fantasmas que se acumularam ao longo de anos e anos de dor e trabaárduo. Quando lerem este livro, espero já ter o meu diploma da Associação de Professode Natação.

Este livro foi composto em caracteres Times por Maria da Graça Samagaio, Portoimpresso e acabado por GRAFIASA, Rua D. Afonso Henriques, 742 - 4435-OO6 Rio TinPORTUGAL