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Pedro Filipe Gama da Silva
A prescrio como causa de extino da responsabilidade criminal Um estudo de direito penal portugus
Tese de Mestrado em Direito, na rea de especializao de Cincias Jurdico-Criminais, orientada pela Prof. Doutora Cristina Lbano Monteiro e apresentada
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra
2015
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Pedro Filipe Gama da Silva
A prescrio como causa de extino da
responsabilidade criminal
Um estudo de direito penal portugus
Dissertao apresentada Faculdade de Direito
da Universidade de Coimbra no mbito do 2 Ciclo de
Estudos em Direito (conducente ao grau de Mestre), na
rea de especializao de Cincias Jurdico-Criminais
Orientador: Prof. Doutora Cristina Lbano
Monteiro
Coimbra
2015
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Para a Maria Ins
Agradeo penhoradamente minha orientadora, a Exma. Sra. Prof. Doutora
Cristina Lbano Monteiro.
Orgulho-me de estar ligado, na minha formao, Faculdade de Direito da
Universidade de Coimbra. Se a essncia do conhecimento consiste em aplic-lo, uma vez
possudo (Confcio), mostra-se plenamente justificado que, enquanto juiz de direito, volte
aos bancos da minha Faculdade.
Tenho tido sorte de ter conhecido tanta gente boa na minha vida. O meu grato
pensamento vai para todos aqueles com quem caminhei e foram j alguns os caminhos
que percorri ao longo da minha vida. Lembro-me, em especial, da minha avozinha de
100 anos de vida e do meu av, Joo Soares da Rocha Gama; dos meus irmos, Andr e
Isabel; e da Ana Rita.
Dedico este trabalho aos meus pais, Jos e Emlia, pilares da minha existncia;
aos meus filhos, Maria Ins e Joo Francisco, pilares da minha felicidade; e minha
mulher Ana Carina (porque no eram s palavras).
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A prescrio como causa de extino da responsabilidade criminal
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Abreviaturas e Siglas
Ac. Acrdo
BFD Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra
BMJ Boletim do Ministrio da Justia
CEJ Centro de Estudos Judicirios
CJ Colectnea de Jurisprudncia
CJ STJ Colectnea de Jurisprudncia do Supremo Tribunal de Justia
CP Cdigo Penal
CPB Cdigo Penal Brasileiro
CPC Cdigo de Processo Civil
CPP Cdigo de Processo Penal
CRP Constituio da Repblica Portuguesa
CSC Cdigo das Sociedades Comerciais
DR Dirio da Repblica
Estudos Cunha Rodrigues Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues
Estudos Eduardo Correia Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Eduardo
Correia
Estudos Figueiredo Dias Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Jorge de
Figueiredo Dias
Estudos Gomes Canotilho Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Jos
Joaquim Gomes Canotilho.
Estudos Teixeira Ribeiro Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor J. J. Teixeira
Ribeiro
RBCCrim Revista Brasileira de Cincia Criminal
RFL Revista da Faculdade de Letras
RGIT Regime Geral das Infraces Tributrias.
RLJ Revista de Legislao e de Jurisprudncia
RMP Revista do Ministrio Pblico
ROA Revista da Ordem dos Advogados
RPCC Revista Portuguesa de Cincia Criminal
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A prescrio como causa de extino da responsabilidade criminal
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RScC Revue de Science Criminelle et de Droit Pnal Compar
STJ Supremo Tribunal de Justia
TC Tribunal Constitucional
TRC Tribunal da Relao de Coimbra
TRE Tribunal da Relao de vora
TRG Tribunal da Relao de Guimares
TRL Tribunal da Relao de Lisboa
TRP Tribunal da Relao do Porto
TPI Tribunal Penal Internacional
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A prescrio como causa de extino da responsabilidade criminal
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ndice
Abreviaturas e Siglas ............................................................................................... 3
ndice ....................................................................................................................... 5
1. Introduo ............................................................................................................ 6
1.1. O problema ................................................................................................... 6
1.2. Importncia prtica e relevncia terica ...................................................... 8
2. O Instituto da Prescrio no Direito Penal ........................................................ 11
2.1. Caracterizao (geral) do instituto ............................................................. 11
2.2. Breve referncia histrica (direito portugus) ........................................... 23
3. Direito Penal e Processo Penal. Fundamentos, finalidades e funes ............... 31
3.1. Do direito penal .......................................................................................... 31
3.2. Das penas e medidas de segurana ............................................................ 36
3.3. Do processo penal ...................................................................................... 42
4. A Prescrio e a Imprescritibilidade. Seus fundamentos e natureza jurdica .... 48
4.1. Os fundamentos da prescrio ................................................................... 48
4.2. A natureza jurdica ..................................................................................... 55
4.3. A imprescritibilidade ................................................................................. 61
5. A Relevncia Jurdico-Constitucional da Prescrio ......................................... 69
5.1. Aproximao ao problema ......................................................................... 69
5.2. Da segurana jurdica e da paz social na prescrio .................................. 71
5.3. Da especificidade constitucional do direito penal ..................................... 74
5.4. Da (in)constitucionalidade da imprescritibilidade ..................................... 78
6. O Regime Jurdico da Prescrio ....................................................................... 86
6.1. Da prescrio do crime .............................................................................. 87
6.2. Da prescrio da pena e medida de segurana ......................................... 107
6.3. Dos efeitos jurdico-penais da prescrio ................................................ 110
7. Concluso ........................................................................................................ 120
Bibliografia .......................................................................................................... 124
Jurisprudncia ...................................................................................................... 143
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A prescrio como causa de extino da responsabilidade criminal
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1. Introduo
1.1. O problema
No presente trabalho pretendemos tratar do problema do decurso do tempo no
direito penal1 enquanto causa de extino da responsabilidade penal. O tempo influi as
mais variadas relaes jurdicas, pertencentes aos diversos domnios do direito2. O direito
penal que, formalmente, compreende o conjunto das normas jurdicas que regulam os
1 O designativo actual mais comum para a disciplina que nos ocupa direito penal, que parece dar
relevo s penas enquanto consequncias jurdicas deste ramo do direito, desvalorizando as medidas de segurana. Como alternativa, tendo como pressuposto no as consequncias mas os pressupostos daquelas consequncias (o crime), denomina-se esta disciplina por direito criminal. Porm, porque as medidas de segurana se ligam a comportamentos levados a efeito sem culpa (ou independente dela), sendo a culpa essencial ao conceito de crime, tambm o direito das medidas de segurana no se pode considerar criminal, vide esta discusso em FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal, Parte Geral, I, p. 3 e ss.; EDUARDO CORREIA, Direito Criminal, I, p. 1 e ss.; GERMANO MARQUES DA SILVA , Direito Penal Portugus, I, p. 13 e ss. (para quem indiferente a denominao); e JESCHECK, Tratado de Derecho Penal, p. 8 e ss. Esta discusso foi tratada por CAEIRO DA MATTA, Direito Criminal Portugus, I, p. 7 e ss., que explica que as expresses direito penal e direito criminal so, muitas vezes, empregadas indistintamente. Mas a segunda expresso mais ampla do que a primeira. Desde uma longa poca s houve direito penal; os filsofos no conheciam outros meios para corrigir seno os crceres, a pena. A cincia da penalidade sucedeu a cincia da criminalidade. Estuda os crimes sob todos os seus aspectos; reage contra eles e evita-os, pela organizao do trabalho e da propriedade e, de uma maneira geral, por todas as medidas legislativas destinadas a corrigir e sanear o meio social; e por HENRIQUES DA SILVA , Elementos de Sociologia Criminal e Direito Penal, p. 38 e ss., para quem o direito penal a parte do direito criminal que respeita s penas. Numa outra perspectiva, PAULO FERREIRA DA CUNHA interroga-se porque que, ao contrrio do direito civil, administrativo, comercial, do trabalho, etc., que vai buscar o nome ao aspecto material e temtico da disciplina, o direito penal baptizado pelo elemento sancionatrio (A Constituio do Crime, p. 59 e ss.).
2 Vide, esta frase, para o direito civil, em MANUEL DE ANDRADE, Teoria Geral da Relao Jurdica, II, p. 439. Sobre a repercusso do tempo nas situaes jurdicas civis, vide MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil, V, p. 115 e ss. No direito civil, o tempo um facto jurdico no negocial, susceptvel de influir, nas relaes jurdicas (C. A. DA MOTA PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, p. 659); surge como elemento de constituio de direitos subjectivos e direitos potestativos e influencia a exercitabilidade de direitos (subjectivos), mas tambm se reconduz extino de direitos (subjectivos e potestativos), bem como em fazer cessar a exercitabilidade de direitos subjectivos. Cf. MANUEL DE ANDRADE, Teoria, cit., p. 439 e ss.; CASTRO MENDES, Teoria Geral do Direito Civil, II, p. 343-4 (distinguindo a prescrio aquisitiva da prescrio extintiva); PIRES DE LIMA / ANTUNES VARELA, Cdigo Civil Anotado, I, p. 270 e ss.; OLIVEIRA ASCENSO, Direito Civil, Teoria Geral, III, p. 341-2; C. A. DA MOTA PINTO, Teoria, cit., p. 372 a 377 (se o titular de um direito o no exercer durante certo tempo fixado na lei, extingue-se esse direito); ANA FILIPA ANTUNES, Prescrio e Caducidade, p. 23 e ss. (a prescrio um instituto que se funda num facto jurdico involuntrio: o decurso do tempo); CARVALHO FERNANDES / BRANDO PROENA (Coords.), Comentrio ao Cdigo Civil, Parte Geral, p. 737 e ss.; e HEINRICH HRSTER, A Parte Geral do Cdigo Civil Portugus, p. 214 a 216 (que identifica os trs institutos que so determinados pelo decurso do tempo factos jurdicos involuntrios : a prescrio, a caducidade e o no uso do direito). MANUEL QUINTERO LOPES estabelece um nico ponto de contacto entre a prescrio no direito criminal e a do civil: o decurso de certo lapso de tempo (A Prescrio em Direito Criminal, p. 3 e ss.).
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A prescrio como causa de extino da responsabilidade criminal
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pressupostos, a determinao, a aplicao e as consequncias de uma conduta cominada
com uma pena ou medida de segurana3 , como no podia deixar de ser, no alheio ao
tempo e ao decurso do mesmo.
O decurso do tempo no direito penal projecta-se, em toda a sua plenitude, no
instituto da prescrio4. A prescrio afecta o procedimento criminal e a execuo das
penas e das medidas de segurana5. A prescrio do procedimento criminal impede a
aplicao de uma pena; a prescrio da pena impede a sua execuo. Estamos, porm,
convencidos de que a denominada prescrio do procedimento criminal afecta muito mais
do que isso, j que pe em causa o apuramento da existncia do prprio crime.
Atravs deste estudo, propomo-nos percorrer o caminho que nos permita
responder aos seguintes problemas:
- Qual o enquadramento jurdico-criminal mais adequado para a denominada
prescrio do procedimento criminal? At que ponto se distingue da prescrio da pena?
- Qual o fundamento e natureza jurdica do instituto da prescrio? A
imprescritibilidade tem fundamento jurdico-criminal?
Realizaremos uma abordagem de tais problemas a partir dos fundamentos da
prescrio, que identificaremos (e no tanto a partir dos seus efeitos).
Mais visamos apurar se a prescrio tem relevncia jurdico-constitucional (ser
conforme Constituio a consagrao, no nosso direito penal, de crimes imprescritveis?)
e abordar alguns dos principais problemas que se suscitam neste instituto no mbito do
direito penal e processual penal.
3 Isto , dos crimes e dos factos susceptveis de desencadearem medidas de segurana, assim,
FARIA COSTA, Noes Fundamentais de Direito Penal, p. 3; mas tambm EDUARDO CORREIA, Direito Criminal, I, p. 1; e CLAUS ROXIN, Derecho Penal, I, p. 41 e ss.
4 Existem outras manifestaes jurdicas do decurso tempo no direito penal, como o caso do instituto da sucesso de leis penais no tempo e do princpio fundamental da proibio da retroactividade da lei penal. Sobre esta problemtica, TAIPA DE CARVALHO , Sucesso de Leis Penais, em especial, p. 98 e ss. e 139 e ss.; e FARIA COSTA, Noes Fundamentais de Direito Penal (Fragmenta iuris poenalis), p. 73 e ss.
5 O nosso sistema jurdico-criminal, ao nvel das sanes, assenta em dois polos: o das penas, que tm a culpa por pressupostos e por limite (art. 40 do CP), e o das medidas de segurana, que tm a sua base na perigosidade individual do delinquente (art. 91 do CP) (cf. FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal, I, p. 86).
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A prescrio como causa de extino da responsabilidade criminal
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1.2. Importncia prtica e relevncia terica
Justifica a presente investigao a necessidade de compreender a existncia do
instituto da prescrio no mbito do direito penal o direito de ultima ratio6, cuja
interveno, nas palavras de Costa Andrade7, s deve ocorrer quando se revelar idnea,
porque eficaz na proteco dos bens jurdicos e seja, alm disso, necessria, isto , quando
for possvel assegurar a proteco dos bens jurdicos por meios menos gravosos para a
liberdade.
A prescrio surge no Cdigo Penal Portugus como causa de extino da
responsabilidade criminal (Ttulo V do Livro I do CP). Ora, como se poder compreender a
existncia de tal instituto jurdico, que extingue a responsabilidade criminal, num direito
que tem, como ensina Gomes Canotilho8, uma funo (e apenas a) de proteger bens
jurdicos ( um direito de proteco), cujas possibilidades de incriminao dependem dos
interesses, situaes ou funes que sejam elevadas dignidade de bem jurdico no
contexto da ordem axiolgica jurdico-constitucional9, e cuja interveno s se justifica se
no for possvel o recurso a outras medidas igualmente eficazes mas menos violentas dos
que as criminais; que se rege (sendo, nessa medida, limites legislao penal) por um
princpio da fragmentariedade, segundo o qual o direito penal s se deve limitar defesa de
graves perturbaes da ordem social, proteco das condies existenciais indispensveis
vida comunitria; e por um princpio de subsidiariedade, que aponta para a ideia de que
as medidas penais constituem o ltimo recurso, dentro do catlogo das medidas legislativas
para a proteco e defesa de bens jurdicos10. Impe-se compreender o que acontece ao
direito penal, aos seus fundamentos e aos seus fins, nos casos de extino da
responsabilidade criminal por prescrio, porventura, para compreendermos a sua
fundamentao jurdico-constitucional.
Tenhamos presente as seguintes hipteses prticas orientadoras da enunciao do
problema:
6 Vide FIGUEIREDO DIAS, Temas Bsicos da Doutrina Penal, p. 57. 7 Constituio e Direito Penal, A Justia nos Dois Lados do Atlntico, p. 201-2. 8 Teoria da Legislao Geral e Teoria da Legislao Penal, Estudos Eduardo Correia, p. 852-3. 9 Vide EMLIO DOLCINI / GIORGIO MARINUCCI, Constituio e Escolha dos Bens Jurdicos,
RPCC, Ano 4, 2, p. 197. FIGUEIREDO DIAS / COSTA ANDRADE, Direito Penal, Questes fundamentais, p. 57-8.
10 COSTA ANDRADE, A Dignidade Penal e a Carncia de Tutela Penal como Referncias de uma Doutrina Teleolgico-racional do Crime, RPCC, Ano 2, 2, p. 184 a 187. Vide tambm CLAUS ROXIN, Derecho Penal, I, p. 65 a 67.
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A prescrio como causa de extino da responsabilidade criminal
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i) A mata B, seu vizinho, na sequncia de uma discusso por causa de uns
rumores sobre a intimidade deste com a sua mulher11. Os factos ocorreram em 1.01.2014.
A, que imediatamente se entregou s autoridades policiais, aps a instruo do competente
processo, foi julgado e condenado por sentena proferida em 5.10.2014, numa pena de 12
anos de priso, a qual transitou em julgado, aps o competente recurso, em meados de
2015. Iniciou o cumprimento da pena de priso a 1.06.2015.
ii) B e C mataram D, na sequncia de uma discusso por causa de um muro. Os
fatos ocorreram em 1.01.2014. Nos dias seguintes, iniciou-se o processo criminal. Aps os
factos, B, que havia sido emigrante no Canad, abandonou o pas e o seu paradeiro foi
desconhecido at 5.06.2028, data em que se apresentou para renovar o seu carto de
cidado. Estava declarado contumaz desde 5.10.2014, foi detido, constitudo arguido e,
aps interrogatrio, foi-lhe aplicada a medida de coaco de priso preventiva. Viria a ser
condenado numa pena de 8 anos de priso, a qual transitou em julgado em meados de
2029. Iniciou o cumprimento da pena em 1.06.2029. A participao de C nos factos apenas
foi conhecida 1.06.2029, data em que a sua responsabilidade criminal foi julgada extinta
por prescrio.
iii) F matou G, seu genro e vizinho, na sequncia de uma discusso por causa de
uma propriedade que ambos disputavam. Os factos ocorreram em 1.01.2014. Com a ajuda
de amigos e familiares o paradeiro de F foi desconhecido at 1.6.2029. Nessa data, a
responsabilidade criminal foi declarada extinta por prescrio.
O que leva o direito penal a tratar de forma diferente os trs casos enunciados?
Tenhamos ainda presente os seguintes exemplos:
iv) H aparece morto no dia 1.01.2014. Iniciou-se, de imediato, o competente
procedimento criminal. Depois de uma longa investigao, o processo foi arquivado em
2018, por no se ter apurado quem foi o autor de tal crime. Em 1.6.2029, no seguimento de
declaraes voluntrias da mulher e de um seu filho, veio a apurar-se que o autor desses
factos foi I. 11 Utilizamos o crime de homicdio nos casos ora enunciados, por ser aquele que protege o bem
jurdico dos bens jurdicos, aquele que est no topo dos bens jurdicos a vida humana (a vida de outra pessoa). O direito vida um direito prioritrio, pois, como escrevem GOMES CANOTILHO / V ITAL MOREIRA, condio de todos os outros direitos fundamentais (Constituio da Repblica Portuguesa Anotada, I, p. 446). Ensina FARIA COSTA, somos seres da vida. O direito penal valora hierarquicamente os bens ou valores jurdicos que quer proteger, sendo a vida humana o bem ou valor jurdico-penal mais fortemente protegido (O Fim da Vida e o Direito Penal, Liber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias, p. 764 e 767-8). No haver, tendo presente o bem jurdico protegido, maior dificuldade do que aceitar a prescrio de um crime de homicdio.
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A prescrio como causa de extino da responsabilidade criminal
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v) J matou L, seu funcionrio, com um tiro de pistola no interior de uma herdade
onde aquele trabalhava. As autoridades judicirias apenas tomaram conhecimento desse
facto em 1.6.2029, quando o corpo de L foi encontrado num terreno, dentro de plstico,
aquando do incio de uma construo.
A prescrio abrange e aplica-se, de forma diferenciada, em funo de uma
multiplicidade de factores, uns ligados ao direito penal, quer substantivo, quer adjectivo,
outros ligados a circunstncias diversas da vida mais ou menos aleatrias.
O objectivo deste trabalho tentar demonstrar que a interveno do direito penal,
a partir de determinada altura, incua e no visa cumprir nenhum dos fins a que se
prope e que, no fundo, constituem os fundamentos da sua interveno legitimadora. A
partir desse tempo, que pode ou no coincidir com os prazos de prescrio consagrados
pelo legislador ordinrio, a interveno do direito penal pode ser violadora dos princpios
fundamentais que o legitimam.
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2. O Instituto da Prescrio no Direito Penal
Iniciaremos este estudo pela caracterizao do instituto da prescrio no nosso
direito penal, realizando, logo aps, uma brevssima referncia histrica de tal instituto.
2.1. Caracterizao (geral) do instituto
2.1.1. O instituto da prescrio tem no decurso do tempo o seu elemento central
caracterizador e reporta-se, no nosso direito positivo, ao procedimento criminal e s penas
(e medidas de segurana)12. O mero decurso do tempo no nos pode levar a considerar que
um determinado facto qualificado como crime simplesmente no ocorreu, porm, o direito
penal, a partir de determinada altura, deixa de ter motivos ou fundamentos para intervir13.
O nosso Cdigo Penal enquadra a prescrio numa causa de extino da
responsabilidade criminal14.
Figueiredo Dias15 apresenta-nos a prescrio como um pressuposto da punio,
em concreto, um pressuposto negativo da (obstculo ) punio. Defende o ilustre
Professor que certos institutos regulados no Cdigo Penal constituem em ltimo termo,
pressupostos, positivos ou negativos da efectivao da punio, isto , da aplicao ou
execuo da consequncia jurdica. A se inscrevem, como pressupostos positivos, a queixa
12 Para EDUARDO CORREIA (Direito Criminal, I, p. 161), na prescrio do procedimento criminal,
passado um certo prazo depois da prtica de um facto deixa de ser possvel o procedimento criminal; na prescrio das penas, depois de certo prazo aps a condenao, deixa de ser possvel execut-la.
13 Vide MAURACH / GSSEL / ZIPF, Derecho Penal, 2, p. 968. 14 MUOZ CONDE / GARCA ARN caracterizam a prescrio como uma causa de extino da
responsabilidade criminal fundada na aco do tempo sobre os acontecimentos humanos (Derecho Penal, p. 408). Trata-se, para FREDERICO DA COSTA PINTO (A Categoria da Punibilidade na Teoria do Crime, II, p. 766), de uma designao equvoca, que abrange institutos heterogneos, como a prescrio, a morte do arguido, a amnistia e o indulto, mas a mesma designao utilizada pelo legislador para se referir a outras figuras, com a restituio e reparao nos crimes patrimoniais (art. 206 do CP) ou o pagamento da quantia a descoberto no crime de emisso e cheque sem proviso, sendo que, assumindo um referente material (a responsabilidade), na sua formulao legal, alguns deles, com a prescrio e a amnistia, incidem directamente e exclusivamente sobre o procedimento criminal.
15 Direito Penal Portugus, As Consequncias Jurdicas do Crime, p. 659 e ss. MARIANA CANOTILHO / ANA LUSA PINTO (As medidas de clemncia na ordem jurdica portuguesa, p. 337 e 370 e ss.) enquadram a prescrio (tal como a reabilitao) numa figura jurdica com afinidades ao direito de clemncia, mas que no constitui verdadeira medida de graa, antes, traduz-se numa forma de extino da aco penal ou da execuo de uma pena, devido ao decurso de um certo prazo fixado pela lei.
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A prescrio como causa de extino da responsabilidade criminal
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e a acusao particular e, como pressupostos negativos (obstculos), a prescrio do
procedimento criminal e da pena e as manifestaes do direito de graa, como a amnistia,
perdo genrico e indulto16.
A caracterizao nestes termos da prescrio do procedimento criminal, como
causa de afastamento da punio17, realizada a partir dos efeitos jurdicos da prescrio
a prescrio impede a efectivao da punio, o que leva a inscrever tal instituto na
doutrina da consequncia jurdica (e no na doutrina do facto)18.
Cavaleiro de Ferreira19 enquadra a prescrio (do procedimento criminal) numa
causa extintiva da punibilidade. A extino da procedibilidade acarreta a extino da
punibilidade. Esta afecta a relao jurdica punitiva e o direito de punir, enquanto a
extino da pena afecta a execuo da pena e, por isso, tambm a reaco jurdica punitiva,
na fase de execuo. Estamos perante duas causas de extino da responsabilidade penal: a
extino da punibilidade e a extino da pena. No estamos, assim, perante um caso de
extino do crime, mas dos efeitos jurdicos do crime, da sua punibilidade. A prescrio
extingue a relao jurdica processual, o que obsta possibilidade de uma punio,
porquanto o direito penal s pode ser aplicado mediante um processo penal20.
Para Figueiredo Dias21, o perodo decorrido sobre a prtica do facto torna-o no
carecido de punio. A prescrio do procedimento no conforma uma causa de excluso
nem da ilicitude, nem da punibilidade, mas um afastamento da punio. Faria Costa22
tambm integra a prescrio numa causa de afastamento da punio o que refora a sua
natureza substantiva. O agente do crime sabe que partida a sua conduta punida com
16 As Consequncias Jurdicas do Crime, p. 661. JESCHECK, que trata a prescrio no captulo dos
pressupostos processuais, define-os como circunstncias que ho-de concorrer no caso concreto para que possa surgir um processo penal. Se faltar um pressuposto processual ou existir um obstculo processual (um pressuposto processual negativo) no pode haver nenhum processo penal (Tratado de Derecho Penal, p. 815). CLAUS ROXIN v o problema da qualificao da prescrio, em termos paralelos ao da questo da delimitao do direito penal material e formal, defendendo a concepo de que decisivo para ser direito material a conexo com a prtica do facto, remetendo a prescrio para um impedimento processual (Derecho Penal, I, p. 984 e ss.). MAURACH, GSSEL e ZIPF aludem prescrio como um impedimento obrigatrio condenao e execuo da pena (Derecho Penal, 2, p. 970).
17 FIGUEIREDO DIAS, As Consequncias, cit., p. 702. 18 Cujo objecto essencialmente constitudo pelo estudo das reaces ou sanes criminais
penas e medidas de segurana , mas tambm os pressupostos (positivos e negativos) da punio e da reparao do dano (indemnizao de perdas e danos emergentes de crime), cf. FIGUEIREDO DIAS, As Consequncias, cit., p. 42 e 44.
19 Lies de Direito Penal, II p. 195. 20 CAVALEIRO DE FERREIRA, Lies, cit., p. 196. 21 As Consequncias, p. 701-2. 22 Noes Fundamentais, p. 93.
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determinada pena, mas que existe um limite de tempo em que o seu comportamento
criminal pode ser perseguido penalmente.
Neste enquadramento, a prescrio no tem a ver com a categoria da dignidade
penal, que pertence doutrina do crime; antes com a categoria da necessidade de pena o
perodo de tempo decorrido sobre a prtica do facto torna-o no carecido de punio23 , o
que a reconduz doutrina das consequncias jurdicas do crime.
Parece-nos simples concluir que a prescrio no tem enquadramento possvel
como causa de excluso da ilicitude ou da culpa24. Tais causas esto intimamente ligadas
ao momento da prtica do facto. A prescrio no est ligada ao comportamento do
arguido aquando da prtica do crime e no contempornea da prtica do facto, contudo, a
prescrio tem por efeito extinguir a responsabilidade criminal do agente; estamos perante
uma causa superveniente de extino da responsabilidade criminal, por se verificar num
momento posterior prtica do crime25.
As causas justificativas ou que excluem a culpa, contemporneas da prtica do
facto, isentam de responsabilidade criminal o agente que praticou o facto26. As causas de
extino da responsabilidade criminal verificam-se em momento posterior ao facto, porm,
extinguindo a responsabilidade criminal, fazem cessar a possibilidade de a mesma ser
apurada ou de ser executada a pena ou medida de segurana, entretanto, aplicada.
Limitar os efeitos da denominada prescrio do procedimento criminal extino
da punibilidade, no permite enquadrar devidamente no seu seio um conjunto de situaes
jurdicas que a mesma abrange, como sejam os casos declarados prescritos que no seriam
23 Vide, neste sentido, FIGUEIREDO DIAS, As Consequncias, cit., p. 701. Para FREDERICO DA
COSTA PINTO (A Categoria da Punibilidade, II, p. 771) a prescrio (do procedimento e da pena) traduz-se num puro juzo de conhecimento do perodo de tempo decorrido desde a prtica do crime ou da pena aplicada.
24 Cf. MUOZ CONDE / GARCA ARN, Derecho Penal, p. 406, para quem, por isso, no afecta em nada a existncia do crime.
25 GIORGIO MARINUCCI e EMLIO DOLCINI enquadram exactamente a prescrio numa ulterior causa de excluso da punibilidade, que designam como cause di estinzione del reato, com tal extino cessa a possibilidade de realizar a pretenso punitiva do Estado (Manuale di Diritto Penale, p. 381). LEVY MARIA JORDO (Commentario ao Cdigo Penal Portuguez, I, p. 260) apresentava a prescrio como um modo de extinguir os crimes e penas. PASCOAL DE MELLO E FREIRE referia que a prescrio apagava todos os crimes (Institutiones Iuris Criminalis Lusitani, Titulus XXIII, II). MANUEL QUINTERO LOPES (A Prescrio em Direito Criminal, p. 6) distingue as causas de iseno da responsabilidade criminal, que so anteriores execuo do crime, das extintivas que aparecem no s depois de cometido este, mas tambm aps a aco da justia o prosseguir e, em certos casos, depois mesmo de ter havido uma sentena condenatria.
26 So para MANUEL LEAL-HENRIQUES / MANUEL SIMAS SANTOS (Cdigo Penal Anotado, 1, p. 1212) causas de iseno de responsabilidade criminal por contraposio s causas de extino da responsabilidade criminal.
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A prescrio como causa de extino da responsabilidade criminal
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susceptveis de determinar qualquer sancionamento a nvel penal, desde logo porque no se
chegaria a demonstrar a existncia de crime.
2.1.2. O destino de qualquer procedimento criminal, que nasce com a notcia do
crime (art. 241 do CPP)27, a sua extino. Esta extino ocorre, em regra, com a sentena
absolutria ou com o cumprimento da pena aplicada por deciso condenatria, transitada
em julgado. Nestes casos, apurou-se a responsabilidade criminal do agente do crime,
atravs de uma deciso de mrito, absolutria ou condenatria, sendo, neste ltimo caso,
definidas as consequncias jurdicas do crime. Tal no ocorre no caso de, durante o
processo criminal, ocorrer a prescrio. Do mesmo modo, tal no ocorre no caso de se
verificar, por exemplo, a morte do arguido.
Quando se alude extino da responsabilidade criminal, estamos a falar de uma
impossibilidade de imputar a determinada pessoa um determinado crime e as
consequncias jurdicas da decorrentes, e isso no coincide, em absoluto, com extino do
procedimento criminal.
A prescrio extingue a responsabilidade criminal, sem que haja, muitas vezes,
qualquer apuramento de que tal responsabilidade efectivamente existe ou existiu.
verdade que actuao da prescrio, no nosso direito, antes do trnsito em julgado da
sentena final do processo, ao nvel do procedimento criminal28, o que resulta da lei (art.
118, n. 1 do CP), porm, se, porventura, tal no acontecesse, o procedimento sempre se
extinguiria por inutilidade superveniente.
O procedimento criminal tem um fim: o apuramento da responsabilidade criminal
decorrente da prtica de um facto criminal. Por fora da extino da responsabilidade
criminal, o mesmo deixa de se poder chegar a esse fim, pelo que a manuteno do processo
seria uma perfeita perda de tempo, de meios e de recursos. Porventura, embora no o
defendamos, poder-se-ia ponderar a consagrao de um regime jurdico processual que
permitisse a continuao do processo nos casos em que o sistema processual tivesse por
fim o de inocentar, ao nvel do mrito, as pessoas investigadas. Quando nos referimos
27 A aquisio da notcia do crime por ocorrer pelo conhecimento prprio do Ministrio Pblico,
pelo recebimento de auto de notcia elaborado por rgos de polcia criminal e pela denncia, que pode ser obrigatria (art. 242 do CPP) ou facultativa (art. 244 do CPP).
28 Para MUOZ CONDE / GARCA ARN as causas de extino da responsabilidade criminal a morte do arguido, o cumprimento da pena, o indulto, o perdo e a prescrio afectam apenas a perseguio do crime no mbito do processo penal (Derecho Penal, p. 406).
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A prescrio como causa de extino da responsabilidade criminal
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nestes termos, estamos a deixar claro que a extino da responsabilidade penal ocorre
apesar do mrito da causa, isto , sem efectivo e definitivo apuramento sobre se uma
determinada pessoa praticou (ou no) um determinado crime. No era, porm, impossvel,
verificados determinados pressupostos, nos quais, segundo cremos, necessariamente tinha
de estar a vontade da pessoa investigada, arguida ou mesmo condenada em termos no
definitivos, consagrar-se a possibilidade do processo prosseguir para se obter uma deciso
de mrito. O antema que um crime prescrito pode representar sobre um ser humano,
poderia levar os sistemas jurdicos a consagrar tal procedimento com um nico fim: obter
uma absolvio de mrito (j que a condenao j no poderia ser possvel) ou um
arquivamento definitivo do inqurito ou uma deciso de no pronncia que aprecie o
mrito dos factos objecto do processo. Existem diversas razes para que isso no ocorra,
desde logo, a necessidade de racionalizao dos meios colocados pelo Estado na sua
actuao de fiscalizao e de punio de comportamentos com relevncia criminal.
Contudo, no se pense que tal problemtica exclusiva da prescrio, pois pode
ter-se exactamente o mesmo problema no caso da morte da pessoa investigada, arguida ou
mesmo condenada em termos no definitivos. Em nome da memria dessa pessoa29, do seu
bom nome, reputao, mas em especial no interesse dos seus familiares mais prximos,
no seria estranho a existncia de um regime jurdico processual que o permitisse. Tudo
depende, muitas das vezes, da publicidade dada investigao, acusao j proferida ou
mesmo condenao no transitada em julgado. No ser difcil reconhecer os efeitos que
podem ter a declarao oficiosa da prescrio de um crime a que a pessoa foi condenada,
em 1 instncia, pouco antes de ser proferida uma deciso de 2 instncia, que iria revogar a
mesma ou que a iria absolver30. A morte do arguido, que mais imprevisvel, pode trazer
consigo situaes muito prximas destas, com solues que podem repugnar o mais
elementar sentido de justia.
29 A memria enquanto pedao de ns espiritualmente vinculante ligado nossa existncia e
que capaz de ser, depois da morte, ainda pertinente na definio do presente bem jurdico autnomo, vide FARIA COSTA, Art. 185 do CP (Ofensa memria de pessoa falecida), Comentrio Conimbricense do Cdigo Penal, I, p. 963-4.
30 Vide o problema da morte do arguido depois de proferida a sentena, mas antes do respectivo trnsito em julgado, para efeitos de reviso, em JOO CONDE CORREIA, O Mito do Caso Julgado e a Reviso Propter Nova, p. 469 e ss.
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A prescrio como causa de extino da responsabilidade criminal
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2.1.3. No estamos, a nosso ver, na denominada prescrio do procedimento
criminal, perante um mero pressuposto processual31. Por pressupostos processuais
costumam designar-se aqueles requisitos de que depende dever o juiz proferir deciso
sobre o mrito da causa32. Eles constituem as condies de que depende o exerccio da
funo jurisdicional, visando assegurar a justia da deciso (a sua conformidade com o
direito objectivo) e, por outro lado, a evitar decises inteis ou desnecessrias33. A falta de
pressuposto processual impede o juiz de conhecer o mrito da aco, e de entrar na
apreciao e discusso da matria que interesse deciso de fundo34.
O processo (penal) uma relao jurdica processual que deve sujeitar-se, como
toda a relao jurdica, existncia de certos requisitos, em concreto existncia de um
rgo dotado de jurisdio, ao objecto e aos sujeitos processuais. Sem jurisdio, sem
objecto e sem sujeitos processuais no h relao jurdica processual, no h processo e,
nessa medida, aqueles elementos so pressupostos do processo ou pressupostos
processuais35.
A prescrio do procedimento verdade impede o apuramento do facto
criminal (do mrito da causa), no havendo um juzo nem sobre a ilicitude, nem sobre a
culpa do agente. Da que se possa dizer que as normas sobre a prescrio condicionam a
efectivao da responsabilidade penal36. Contudo, isso decorre do facto (jurdico) de a lei, a
partir de terminado momento temporal, considerar extinta a responsabilidade criminal do
agente do crime, quer exista efectivamente essa responsabilidade, quer no exista.
A funo essencial do processo penal cumpre-se na deciso que define se foi (ou
no) cometido algum crime e, em caso afirmativo, sobre as respectivas consequncias
31 como pressuposto processual considerado por CRISTINA LBANO MONTEIRO, Perigosidade de
Inimputveis e In Dubio Pro Reo, p. 62. Para FREDERICO DA COSTA PINTO um pressuposto de procedibilidade superveniente de onde decorrem efeitos materiais reflexos, com uma formulao negativa (A Categoria da Punibilidade, II, p. 769).
32 MANUEL DE ANDRADE, Noes Elementares de Processo Civil, p. 74. 33 ANSELMO DE CASTRO, Direito Processual Civil Declaratrio, II, p. 8. No so, escreve o Autor,
condies de existncia do processo, pois eles mesmos so objecto de exame e de resoluo dentro do processo, pressupondo justamente a existncia deste.
34 ANTUNES VARELA / J. M IGUEL BEZERRA / SAMPAIO E NORA, Manual de Processo Civil, p. 104-5, nota 2. Os pressupostos processuais no se confundem com as condies da aco, que so os requisitos indispensveis para que a aco proceda; os requisitos necessrios para que a aco (cvel, penal, administrativa ou fiscal), baseada no direito substantivo, possa considerar-se fundada (procedente).
35 Vide, assim, GERMANO MARQUES DA SILVA , Direito Processual Penal Portugus, I, p. 41-2. 36 Cf. TAIPA DE CARVALHO , Sucesso de Leis Penais, p. 385, para quem a prescrio do
procedimento criminal, ao lado da queixa e da acusao particular, tem uma dupla natureza: so condies (positivas) do procedimento criminal, do mesmo modo condicionam a responsabilidade criminal.
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A prescrio como causa de extino da responsabilidade criminal
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jurdicas e sua execuo37. Portanto, o mbito da relao processual penal prende-se com a
definio da responsabilidade criminal do agente do crime. Naturalmente que, uma vez
extinta essa responsabilidade criminal, seja qual for a causa dessa extino, o processo
criminal deixa de poder prosseguir os seus termos e, de certo modo, torna-se intil, no
havendo fundamento para prosseguir. Da que, nestes casos, por fora da inutilidade ou
impossibilidade superveniente verificada, o processo penal se extinga38. A prescrio,
como causa de extino da responsabilidade criminal, por isso mesmo, s pode determinar
a extino do processo.
A extino do procedimento criminal fundamenta-se na extino da
responsabilidade criminal decorrente da prescrio. A extino da responsabilidade
criminal impe a prescrio do procedimento criminal (e tambm da pena ou medida de
segurana)39.
As regras referentes prescrio no concorrem para a delimitao da infraco
criminal, pois no fazem parte das categorias do tipo de ilcito, do tipo de culpa, nem
mesmo do tipo de punibilidade40, contudo, afectam o apuramento da responsabilidade
criminal, na medida em que a extinguem. Assim, julgamos poder dizer que, por fora dessa
extino (da responsabilidade criminal), a prescrio afecta a possibilidade de imputao
de uma infraco criminal ao seu agente41.
37 GERMANO MARQUES DA SILVA , Direito Processual Penal Portugus, I, p. 20. 38 A inutilidade e a impossibilidade superveniente da lide so causas de extino do processo civil
(art. 277, al. e) do CPC). Segundo LEBRE DE FREITAS e ISABEL ALEXANDRE (Cdigo de Processo Civil Anotado, 1, p. 546), isso ocorre quando, por facto ocorrido na pendncia da instncia, a pretenso do autor no se pode manter, por virtude do desaparecimento dos sujeitos ou do objecto do processo, ou encontra satisfao fora do esquema da providncia pretendida.
39 Existem outras causas de extino da responsabilidade criminal (art. 127 do CP), como seja a morte, a amnistia, o perdo, o indulto, bem como o cumprimento da prpria pena. O cumprimento da pena , recorda CAVALEIRO DE FERREIRA, o modo normal de extino da pena. Extingue no a punibilidade, mas exclusivamente a pena (Lies de Direito Penal, II, p. 206). O CP de 1886, no seu art. 126, estipulava que a pena (tambm) acaba: pelo seu cumprimento (1).
40 Todos os tipos incriminadores contemplam um facto e uma ameaa penal, pelo que o tipo de punibilidade tem objecto prprio e autonomia axiolgica. A autonomizao da categoria da punibilidade objecto da tese de FREDERICO DA COSTA PINTO, A Categoria da Punibilidade, II, em especial, p. 972 e ss., e em concluso, p. 1265 a 1273.
41 Da que se aplique prescrio as regras mais elementares do princpio da legalidade penal, quer do tempus delicti (art. 3 do CP), quer da irretroactividade da lei penal desfavorvel e retroactividade da favorvel, vide esta questo, embora qualificando as normas como lei processual penal material, em TAIPA DE CARVALHO , Sucesso de leis Penais, p. 368 e ss. O alargamento dos prazos de prescrio funciona como um factor de criminalizao.
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A prescrio como causa de extino da responsabilidade criminal
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A responsabilidade criminal fundamenta-se na prtica de um crime, sendo
juridicamente a consequncia do crime42. a susceptibilidade de se imputar a um
indivduo materialmente um crime, decorrente da prtica por parte do mesmo de um facto
ilcito-tpico, culposo e punvel43, e, por consequncia, de se lhe aplicar uma pena. um
referente de direito material (a responsabilidade), que permite imputar a um ser humano
(livre) a prtica de um facto que fundamenta a aplicao de uma pena criminal (um facto
punvel) pressupe a existncia de um facto que pode gerar atribuio de
responsabilidade44.
A responsabilidade penal, que materialmente subjectiva o princpio nulla
poena sine culpa enformador e regulador de toda a responsabilidade penal45 , ao
reportar-se sujeio e aplicao de uma pena, relaciona-se, intimamente, com as
finalidades da punio. Com isto no queremos dizer, porm, que o fundamento da
sujeio a uma pena a culpa46, antes pensamos, seguindo a lio de Figueiredo Dias47,
que a culpa, que deriva da essencial dignidade da pessoa humana, limite irrenuncivel da
sua aplicao e da sua medida.
A extino da responsabilidade remete-nos, portanto, para a no responsabilizao
criminal do agente.
42 Para CAVALEIRO DE FERREIRA (Lies, cit., p. 5 e 6) o crime fundamento de responsabilidade
penal, contudo, nem sempre ao crime se segue a responsabilidade penal, referindo-se s condies objectivas da punibilidade. O CP de 1886, no seu art. 27, prescrevia que a responsabilidade criminal consiste na obrigao de reparar o dano causado na ordem moral da sociedade, cumprindo a pena estabelecida na lei e aplicada por tribunal competente e, acrescentava o art. 28, recai nica e individualmente nos agente de crimes ou de contravenes.
43 O crime no apenas um facto desvalioso previsto na lei, mas sim um facto em relao ao qual a ameaa penal se revela necessria, adequada e proporcional (). A adequao da pena estatal no pode ser desligada do facto e a desaprovao penal do facto s pode ser feita com recurso ameaa penal, FREDERICO DA COSTA PINTO, A Categoria da Punibilidade, II, em especial, p. 984-5.
44 FREDERICO DA COSTA PINTO, A Categoria, cit., p. 767. O Autor distingue os elementos do facto punvel que constituem fonte do juzo de responsabilidade e os elementos exteriores ao facto punvel que, uma vez verificados, extinguem a eventual responsabilidade do agente. Todos eles constituem pressupostos materiais da responsabilidade e no causas de extino da mesma; estas no condicionam a punibilidade do facto, pressupe-na integralmente.
45 FARIA COSTA, Aspectos Fundamentais da Problemtica da Responsabilidade Objectiva no Direito Penal Portugus, Estudos Teixeira Ribeiro, p. 355. O Autor analisa os casos onde a problemtica da responsabilidade objectiva pode ser aflorada crimes preterintencionais, negligncia inconsciente, aberratio ictus, error in persona vel objecto, erro na proibio, crimes cometidos em estado de embriaguez, responsabilidade das pessoas colectivas e condies objectivas de punibilidade , concluindo pela inexistncia de responsabilidade objectiva, antes, em quadros e nveis diferentes vrias refraces do princpio da culpa (p. 364 e ss.). Vide ainda GIUSEPPE BETTIOL, Direito Penal, III, p. 63 e ss.
46 Assim, FARIA COSTA, O Perigo em Direito Penal, p. 373. 47 Vide o acentuar dessa enunciao em O Direito Penal do Bem Jurdico como Princpio
Jurdico-Constitucional, XXV Anos de Jurisprudncia Constitucional Portuguesa, p. 41-2.
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A prescrio como causa de extino da responsabilidade criminal
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2.1.4. O instituto da prescrio (extintiva48) surge, no direito civil positivo, como
uma causa de extino de direitos. Se o titular de um direito o no exercer durante certo
tempo (fixado na lei), extingue-se esse direito49.
No processo civil, a prescrio enquadra-se numa excepo peremptria (ou
material), por se referir a vicissitudes da relao substantiva, determinando a
improcedncia da aco porque o direito alegado no existe nem pode j vir a existir50.
Trata-se de uma causa extintiva da pretenso do autor. A prescrio no um pressuposto
processual, nem positivo, nem negativo. Os pressupostos processuais reconduzem-se s
excepes dilatrias. A prescrio extingue o direito definitivamente51.
Chamamos estes ensinamentos do direito civil (comum) e processual civil, na
medida em que pensamos que, ao nvel do direito penal e processual penal, as coisas se
passam de modo similar. A prescrio extingue a responsabilidade penal do agente, no
afecta meramente a relao processual penal; afecta a relao processual, na medida em
que a mesma se extingue, porm, essa uma tcnica do processo para lidar com as
situaes de extino da responsabilidade penal, na qual o mrito no chegou a ser
conhecido em termos definitivos.
Pensamos que o legislador poderia ter previsto para estes casos a absolvio do
agente do crime, com fundamento em extino da responsabilidade criminal. Porm,
entendeu e, quanto a ns, bem destrinar os casos em que o mrito da causa chega a ser
conhecido, daqueles casos em que tal no ocorre. Sem prejuzo disso, ao nvel
substantivo (e no meramente processual) que a questo resolvida, com a extino da
responsabilidade criminal. Aps conhecida a prescrio no processo, no mais possvel
apurar a responsabilidade criminal do agente, no porque o processo esteja ferido de
alguma vicissitude, antes porque se mostra extinta a responsabilidade criminal do agente e
48 Por contraposio prescrio aquisitiva ou usucapio, pela qual se adquirem direitos reais, em
virtude da posse prolongada por certo tempo, que varia conforme as qualificaes da posse; embora uma tal aquisio acarretar a extino de um direito real preexistente vide MANUEL DE ANDRADE, Teoria Geral, p. 445.
49 Vide, assim, C. A. DA MOTA PINTO, Teoria Geral, p. 373. Invocada a prescrio, o beneficirio tem a faculdade de recusar o cumprimento da prestao ou de se opor ao exerccio do direito prescrito. Cumprindo-a, porm, espontaneamente no h repetio. O dbito prescrito passa categoria de obrigao natural (art. 403, n. 1 do CC). Vide, assim, MENEZES CORDEIRO, Tratado, cit., V, p. 171-2.
50 Vide ANTUNES VARELA / J. M IGUEL BEZERRA / SAMPAIO E NORA, Manual de Processo Civil, p. 297-8. E, assim, se distingue das excepes dilatrias ou processuais, que se reportam falta de pressupostos processuais. Cf. ANSELMO DE CASTRO, Direito Processual Civil Declaratrio, III, p. 214 e ss.
51 ANSELMO DE CASTRO, Direito Processual, cit., p. p. 220, procede distino das excepes dilatrias e peremptrias a partir dos seus efeitos: a ltima conduz inexistncia ou extino definitivas do direito, a outra apenas dilao dos seus efeitos para momento ulterior.
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A prescrio como causa de extino da responsabilidade criminal
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a existncia e manuteno do processo que visava exactamente realizar esse apuramento
tornou-se impossvel para esse efeito.
O processo, uma vez conhecida e decretada a prescrio, arquivado52. A soluo
de uma deciso formal, de arquivamento do processo, apresentada como argumento a
favor de quem defende a natureza processual da prescrio. Entre ns, Frederico da Costa
Pinto sustenta que a realidade que constituiu o objecto imediato da deciso a proferir tem
nestes casos natureza processual e, por essa via, o legislador consegue obter efeitos
materiais reflexos (como a no responsabilizao do agente) e prosseguir finalidades
poltico-criminais (limitar a interveno penal em funo da desnecessidade da pena)53.
Sustentando mesmo que est inclusivamente implcita na prescrio uma proibio de
conhecimento de mrito, pois trata-se de uma questo prvia que obsta ao conhecimento
do mrito (arts. 311, n. 1 e 368, n. 1 do CPP)54.
Ora, o facto de ser uma questo prvia a conhecer, no nos remete
necessariamente para a natureza processual de tal instituto, pois as questes impeditivas da
apreciao do mrito da causa podem ser de natureza substantiva ou adjectiva55. A ordem
de apreciao das questes a resolver numa deciso judicial imposta pela sua
precedncia lgica56 e, nisso, a procedncia da prescrio conduz inutilidade e
impossibilidade legal de verificao do mrito dos factos que constituem o objecto do
processo.
Acresce que no est afastada, para alguns casos, a necessidade, para o
conhecimento da prescrio, de o tribunal ter de conhecer o mrito da factualidade objecto
do processo, basta, para tal, estar controvertida a data da prtica do facto, quando isso
influa na verificao da prescrio. O conhecimento da verificao da extino da
responsabilidade criminal por prescrio, nestes casos, exige a fixao de tal data, o que s
52 Assim, M. M IGUEZ GARCIA / J. M. CASTELA RIO, Cdigo Penal. Parte geral e especial com
notas e comentrios, p. 459. 53 A Categoria da Punibilidade, II, p. 774. O Autor agrupa as causas de extino da
responsabilidade pena em: condutas reparadoras posteriores ao facto desistncia, restituio ou reparao em crimes patrimoniais, pagamento da quantia a descoberto no cheque sem previso, retratao nos crimes contra a realizao de justia ; obstculos efectividade da punio amnistia, perdo e indulto ; e pressupostos de procedibilidade (originrios ou supervenientes) queixa, renncia, caducidade ou desistncia, prescrio do procedimento criminal e excepo de bis in idem (p. 768 e ss.).
54 A Categoria, cit., p. 771 e nota 688. 55 Referindo-se ocorrncia de circunstncias, seja de natureza substantiva, seja de natureza
adjectiva, que impedem o conhecimento da questo de fundo, vide A. HENRIQUES GASPAR / OUTROS, Cdigo de Processo Penal Comentado, p. 1029.
56 Cf. art. 608, n. 1 do CPC.
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A prescrio como causa de extino da responsabilidade criminal
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ocorre na sentena que conhece do mrito do caso, aps a produo de prova em audincia
de julgamento. Apesar disso, mesmo nestes casos, em que a matria de facto foi apreciada,
estando provados os pressupostos da prescrio, a deciso de arquivamento do processo,
no havendo pronncia sobre o mrito da responsabilidade criminal
(absolvio/condenao).
A nosso ver a deciso de arquivamento, apreciada no processo, uma mera
tcnica processual de direito positivo, j que a prescrio dirige-se directamente contra a
pretenso punitiva do Estado (em sentido amplo), e no contra a relao processual, no
afectando unicamente a viabilidade do facto ser objecto de um processo penal57.
2.1.5. O mbito de aplicao da prescrio da pena e da medida de segurana, ao
impedir a execuo de tais medidas aplicadas por uma sentena transitada em julgado, ao
nvel dos efeitos , deste ponto de vista, distinto58.
Na prescrio da pena, o decurso do tempo tornou a execuo da pena sem
sentido e, por a, o facto deixou de carecer de punio59. Prescrita a pena, a mesma deixa de
poder ser imposta ou executada ao condenado. Contudo, este problema s surge depois de
definida a responsabilidade criminal do agente do crime, e em termos definitivos. Portanto,
depois de fixada, em termos definitivos, a responsabilidade criminal, a mesma declarada
extinta, na parte em que se refere execuo da pena (ou medida de segurana).
No equiparvel, ao nvel dos seus efeitos, a denominada prescrio do
procedimento criminal e a prescrio da pena (ou medida de segurana), e tanto assim
que, apesar de prescrita a pena, a deciso condenatria, transitada em julgado, que define a
responsabilidade do agente do crime, no deixa de produzir alguns efeitos jurdico-
criminais60.
Para Maurach, Gssel e Zipf61 trata-se de uma instituio de direito processual,
um impedimento processual, relativo ao direito de execuo das penas: aps o decurso de
determinados prazos, a execuo de uma sentena condenatria passa a ser inadmissvel.
57 Defendendo que s isso ocorre, FREDERICO DA COSTA PINTO, A Categoria da Punibilidade, II,
p. 1025. 58 Esta prescrio no apaga o crime; somente liberta o agente do cumprimento da pena,
MANUEL QUINTERO LOPES, A Prescrio em Direito Criminal, p. 115. 59 Nestes exatos termos, FIGUEIREDO DIAS, As Consequncias, cit., p. 702. 60 Vide o ponto 6.3. deste trabalho. 61 Derecho Penal, 2, p. 976.
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A prescrio como causa de extino da responsabilidade criminal
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Aqui, na nossa apreciao, no estamos tambm perante qualquer pressuposto
processual ou instituto de direito processual, estamos perante a extino da
responsabilidade criminal do arguido por fora da prescrio da pena. Existem efeitos
jurdicos, ao nvel da responsabilidade criminal, que j se produziram, porm, a pena (ou
medida de segurana) ainda no foi executada ou, pelo menos, no o foi integralmente,
cessando, com a prescrio, esses efeitos para o futuro. Os efeitos decorrentes da extino
da responsabilidade criminal so mais restritos do que os da denominada prescrio do
procedimento criminal, porm, no deixa de ser esse o efeito jurdico consagrado pelo
legislador penal, j que a prescrio das penas (e medidas de segurana) tambm uma das
causas (supervenientes) de extino da responsabilidade criminal.
A execuo da pena integra, no processo criminal, a fase derradeira do processo
(o Livro X do CPP). Depois de transitada em julgado62, a deciso penal condenatria63 tem
fora executiva. Os termos da execuo das sanes criminais esto previstos na lei
processual penal (e ainda no Cdigo de Execuo de Penas), em obedincia ao princpio da
legalidade64. A execuo corre nos prprios autos (art. 470, n. 1 do CPP), ou seja, no
processo onde foi decretada a deciso condenatria.
Ora, prescrita a pena, extingue-se a responsabilidade criminal do arguido
condenado, o que obsta execuo de uma consequncia jurdica do crime ou determina a
cessao imediata dessa execuo, se a mesma j se iniciou.
Nestes casos, a existncia do processo destinado execuo da pena deixa de ter
fundamento, o que determina o seu arquivamento. Tambm aqui ocorre a extino do
processo, que uma consequncia da extino da responsabilidade criminal verificada com
a prescrio da pena (ou medida de segurana). , porm, essa extino da
responsabilidade criminal, fundada na prescrio da pena, que fundamenta o termo do
processo.
62 A deciso condenatria s quando tiver transitada em julgado que tem fora executiva (art.
467, n. 1 do CPP), sendo este um corolrio natural do princpio da presuno de inocncia prescrito no art. 32, n. 2 da CRP (Todo o arguido se presume inocente at ao trnsito em julgado da sentena de condenao). Sobre o contedo deste princpio, vide GOMES CANOTILHO / V ITAL MOREIRA, CRP Anotada, I, p. 518.
63 A deciso absolutria tambm exequvel, tendo inclusive o recurso dessa deciso efeito devolutivo e no suspensivo (cf. art. 467, n. 2 do CPP). Vide esta questo em A. HENRIQUES GASPAR / OUTROS, Cdigo de Processo Penal Comentado, p. 1671.
64 Neste sentido, vide PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentrio do Cdigo de Processo Penal, p. 1219-1220, de onde decorre que aplicvel a lei de execuo das sanes anterior ao incio do processo em que elas sejam decretadas se da aplicao imediata da lei nova resultar o agravamento sensvel da situao do condenado.
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A prescrio como causa de extino da responsabilidade criminal
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2.2.6. A prescrio carrega consigo um conjunto de questes sobre as quais nos
pretendemos debruar65.
Qual o fundamento da prescrio? Qual a razo de ser que leva o Estado a
desinteressar-se, quer pela prossecuo do exerccio da aco penal, quer do cumprimento
de pena? Qual a natureza jurdica do instituto da prescrio? Devem existir crimes
imprescritveis? Podem existir crimes imprescritveis no nosso ordenamento jurdico?
Abordaremos, oportunamente, tais questes, sendo que, de seguida, realizaremos
uma brevssima incurso histrica sobre o instituto da prescrio no direito portugus.
2.2. Breve referncia histrica (direito portugus)
2.2.1. A palavra prescrio tem origem no latim em praescriptio (praescribo,
praescribere), que etimologicamente significa escrever antes, escrever no princpio66.
No direito romano, comea por ter origem no direito civil, em que, antes da
demonstratio, nas aces temporrias (em geral, as actiones pretoriae), era escrito um
texto introdutrio que informava o juiz se a aco fora ou no proposta dentro do prazo, o
que impedia o conhecimento do mrito da aco. A ideia de que o decurso do tempo
reconduzia a modificaes da situao jurdica subjectiva, fazendo nascer ou cessar
direitos (o que ocorria nas aces de restituio de coisas), fundamentou a sua extenso
para o direito penal, onde o acusado adquire o direito a no ser processado ou a no ser
julgado com excessivo atraso67.
A Lex Julia de adulteriis coercendis, do sculo XVIII a.c., conhecida pela
primeira formulao expressa, em matria penal, sob a forma da prescrio da aco
penal68. Aps cinco anos, para os crimes de adultrio, estupro, lenocnio e incesto (s),
aquele que tivesse cometido tais crimes no podia ser mais acusado. Tinha subjacente uma
65 FARIA COSTA enuncia estas e outras questes no seu estudo O Direito Penal e o Tempo
(Algumas Reflexes Dentro do Nosso Tempo e em Redor da Prescrio), BFD, p. 1152. O ilustre Professor refere-se prescrio como tendo um lugar dogmtico prprio (vide isso em Noes Fundamentais, p. 83).
66 Dicionrio de Latim-Portugus, p. 917. 67 SIMONA SILVANI , Il giudizio del tempo, Uno studio sulla prescrizione del reato, p. 17-8. 68 Cf. SIMONA SILVANI , Il giudizio del tempo, p. 18. Pretendeu-se com esta lei, do tempo de
Augusto, combater a degradao moral que caracterizou aquele perodo, vide VIEIRA CURA, Crimes, delitos e penas no Direito Romano Clssico, p. 201 e ss.
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A prescrio como causa de extino da responsabilidade criminal
24
ideia de perdo e de purificao do homem, j que, de cinco em cinco anos, decorriam as
festas lustrais, que expiavam a culpa69.
A introduo da prescrio como regra com excepes para todos os crimes
pblicos surge atravs da Lex Cornelia de falsis70. Previa-se71 a prescrio da aco em
regra, de prazo vintenal, com excepes, por exemplo, nos crimes sexuais (com prazos
mais curtos, pelo perodo lustral, ligado a tradies religiosas de perdo e de purificao),
no crime de peculato (5 anos), no de estelionato (2 anos) e de injria (um ano). Tambm
previa crimes imprescritveis, como o parricdio, o parto suposto e a heresia. Conhecia-se a
figura da prescrio que livrava o ru do julgamento: o julgamento tinha um prazo de dois
anos para terminar. pena no se aplicava a prescrio, porm, a execuo da pena dava
lugar a uma aco (ex judicato), que prescrevia em 30 anos.
A prescrio da pena surge apenas no sec. XVIII, no Cdigo Penal Francs de
1791. Esta importante codificao, influenciada pelo direito romano, veio consagrar, em
termos amplos a prescrio, enquanto instituto de ordem pblica e oficiosamente aplicado
pelo juiz, o que acabou por influenciar o direito de tradio romano-germnico.
A prescrio conheceu legislaes que a fixaram como dependente da verificao
de condies aps a prtica do crime: no ter o criminoso retirado proveito do delito, ter
reparado o prejuzo da resultante e no ter praticado qualquer outro crime. E foi um campo
de combate entre as concepes utilitaristas do direito de punir e as humanistas, onde se
tentava conciliar as exigncias de segurana e tranquilidade pblica dos cidados, com a
liberdade e a tutela dos direitos inviolveis da pessoa humana72.
Cesare Beccaria73, a quem se deve a secularizao e o teor liberal do direito penal
moderno74 (sculo XVIII), defendia que no merece a prescrio os crimes atrozes, de que
69 Manzini (Trattato de Diritto Penal Italiano, 3) sustenta que no se tratava de um verdadeiro
prazo prescricional, mas sim uma perda do direito de aco, apud MANUEL QUINTERO LOPES, A Prescrio em Direito Criminal, p. 12.
70 Cf. SIMONA SILVANI , Il giudizio del tempo, p. 19. 71 Vide MANUEL QUINTERO LOPES, A Prescrio, cit., p. 13 a 16. 72 Cf. SIMONA SILVANI , Il giudizio, cit., p. 21-2. 73 Dos Delitos e Das Penas, p. 129 a 131. 74 Vide, assim, a anlise de GIORGIO MARINUCCI, Cesare Beccaria, Um Nosso Contemporneo,
Dos Delitos e Das Penas, p. 34 e ss. (um nosso contemporneo, qualifica o Autor); mas tambm FARIA COSTA, Ler Beccaria Hoje, Dos Delitos e Das Penas, p. 5 e ss., para quem o pressuposto de que h uma pessoa que decide por si e em si tornou aquela forma de olhar o direito penal como liberal como uma ordem de liberdade e no como pura manifestao e um autoritarismo sem legitimidade historicamente fundamentada. Tambm FIGUEIREDO DIAS atribuiu a fundamentao do paradigma iluminista do direito penal ao Marqus de Beccaria (O Problema do Direito Penal no Dealbar do Terceiro Milnio, Homenagem ao Prof. Peter Hnerfeld, p. 255).
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A prescrio como causa de extino da responsabilidade criminal
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fica nos homens longa memria, quando se provam (que comea com o homicdio e
compreende todos os ulteriores actos de malvadez), j que isso representaria a negao de
que a todo o delito corresponderia uma pena como consequncia necessria e inevitvel. A
prescrio seria um prmio impunidade e um incentivo aos crimes. J os delitos
menores e obscuros devem eliminar com a prescrio a incerteza da sorte de um cidado,
um cidado no poderia ficar durante muito tempo sujeito s incertezas de um processo
movido pelo Estado, sendo que, com o passar dos anos, o ru poderia recuperar-se ou
mesmo a punio perder a eficcia exemplar75.
A oposio prescrio surge com argumentos como os de que nenhum delito
poderia ficar impune, todo o crime deveria ter uma pena, de que fomentava a impunidade,
era um prmio para os delinquentes que conseguissem elidir a aco da justia, colocando
em causa o efeito intimidatrio da pena, sendo que o decurso do tempo no afecta a
culpabilidade dado o seu carcter permanente.
A prescrio, porm, um instituto que foi sendo reconhecido em todas as
legislaes penais desde o sculo XIX, no direito de tradio romano-germnica. No
direito de tradio common law a prescrio no reconhecida como regra ou princpio
geral, antes apenas prevista, com excepo, para pequenos delitos76.
2.2.2. Em Portugal, o instituto da prescrio surge com desenvolvimentos no
sculo XIX77. At a, vigorava o sistema prescricional romano78.
A prescrio penal, porm, no permaneceu ausente das Ordenaes79. Nas
Ordenaes Afonsinas, a pena e o procedimento penal podiam extinguir-se, em certos
casos, pelo perdo (muito utilizado para efeitos de povoamento) e pela prescrio (Ttulo
75 Sustentava assim BECCARIA, com fundamento da ideia de que a probabilidade dos delitos est
na razo inversa da sua atrocidade, que, para os delitos menores, devia aumentar-se o tempo de investigao e diminuir-se o tempo de prescrio; enquanto para os crimes atrozes deve reduzir-se a durao do processo e aumentar o da prescrio (Dos Delitos e Das Penas, p. 130-1).
76 Sobre o modelo ingls, vide SIMONA SILVANI , Il giudizio del tempo, p. 327 e ss. 77 Para um enquadramento histrico-poltico das reformas legislativas ao nvel criminal no sec.
XIX, vide JOS A. BARREIROS, As instituies criminais em Portugal no sculo XIX: subsdio para a sua histria, Anlise Social, XVI (63), p. 587 e ss.
78 Assim o afirma PASCOAL DE MELLO E FREIRE nas suas Institutiones Iuris Criminalis Lusitani, Titulus XXIII, II, p. 228 (frente e verso). Neste sentido, MANUEL QUINTERO LOPES, A Prescrio em Direito Criminal, p. 19.
79 Para uma viso histrica do direito penal portugus, desde o perodo pr-romano, vide MANUEL DIAS DA SILVA , Elementos de Sociologia Criminal e Direito Penal, p. 264 e ss.
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A prescrio como causa de extino da responsabilidade criminal
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10: trs anos para os crime sexuais)80. O perdo do procedimento criminal para
povoamento era largamente regulado nas Ordenaes Manuelinas. Admitia-se, em certos
casos, a prescrio (Ttulos 23, 2, 35, 5, 48, 6, 111, 5), mas fixava-se tambm a
imprescritibilidade (Ttulo 112, 21)81. As Ordenaes Filipinas no apresentam aspectos
particulares relativamente ao sistema pena das Ordenaes Manuelinas, porm, previa-se
que o refgio nos contos implicava a extino, no espao, do procedimento criminal
(Ttulo 123)82.
Apesar de nunca ter vigorado, Pascoal de Melo Freire elaborou, por resoluo
rgia de 1783, um projecto de Cdigo Criminal, que apresentou em 1978 Cdigo
Criminal intentado pela Rainha D. Maria , no qual se atenuava o rigor das penas das
ordenaes, regulando-se sistematicamente a extino do procedimento criminal (Ttulo
LXVI) 83.
A Reforma Judiciria Decreto 13 de Janeiro de 1837 arts. 344 a 353 veio
consagrar duas espcies de prescrio: a do procedimento e a da pena, que podiam ser
alegadas a todo o tempo da causa e oficiosamente julgadas. Previa-se prazos de prescrio
diferentes em funo da natureza pblica ou particular do crime no mbito da querela
das partes ou do Ministrio Pblico, e para a acusao das partes ou do Ministrio Pblico.
Estipulava-se o prazo de 20 anos para a prescrio da execuo da pena, contados do dia
em que a sentena condenatria transitasse em julgado. Apesar da prescrio, nos crimes
de que resultasse a morte do ofendido, o ru no podia residir no lugar, vila ou cidade em
que vivesse o vivo ou viva, que no passou as segundas npcias, ou algum dos seus
descendentes ou ascendentes. Consagrava-se a interrupo motivada pelos actos de
acusao posteriores ratificao da pronncia e que as aces de perdas e danos baseadas
na prtica de crimes, que no fossem cumuladas com a aco criminal, e a restituio e
reparaes civis ordenadas em sentenas criminais prescreveriam segundo as regras do
direito civil.
A Novssima Reforma Judiciria, implementada pelo Decreto de 21 de Maio de
1841, arts. 1207 a 1216 consagrou a prescrio dos crimes em geral, estipulando
80 Cf. EDUARDO CORREIA, Evoluo Histrica das Penas, BFD, LIII, 1977, p. 87. 81 Cf. EDUARDO CORREIA, Evoluo, p. 94. 82 Cf. EDUARDO CORREIA, Evoluo, p. 102. 83 Vide PASCOAL JOS DE MELLO FREIRE, Cdigo Criminal Intentado pela Rainha D. Maria I, p.
143 (modo por que se extinguem as obrigaes criminais os crime pblicos e sociais prescrevem em 20 anos contados do dia em que se cometeram; os particulares e morais dentro de ano e dia). Cf., nestes termos, EDUARDO CORREIA, Evoluo, p. 118 e ss.
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A prescrio como causa de extino da responsabilidade criminal
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prazos (diferentes) de prescrio para a querela, diferenciados os crimes pblicos e os
crimes particulares, e para a acusao criminal84. Previa-se que a aco por perdas e danos,
deduzida com a acusao, prescrevia no mesmo espao de tempo que a criminal; fora desse
caso, prescreveria no prazo de 30 anos (art. 1212). Consagrava-se a prescrio das penas
em regra, 20 anos contadas desde o momento em que as penas passarem em julgado.
Porm, nos crimes de que resultasse a morte do ofendido, o ru no podia residir no lugar,
vila ou cidade em que vivesse o vivo ou viva, que no passou as segundas npcias, ou
algum dos seus descendentes ou ascendentes (arts. 1214 e 1215). As reparaes e
restituies civis j obedeciam aos princpios das obrigaes civis (art. 1216)85.
Em Fevereiro de 1847, um Decreto, que vigorou at 30 de Julho de 1847, data em
que foi reposta o prescrito na Novssima Reforma, alargou os prazos de prescrio,
diferenciando os crimes pblicos dos particulares. Os crimes pblicos seriam de maior
abalo para a comunidade, devendo ser maior o tempo para o seu esquecimento.
Em 1852, surge o novo Cdigo Penal Portugus86, aprovado a 10 de Dezembro de
1852, legislao substantiva que veio regular a prescrio nos arts. 123, 125 e 126.
Prescrevia-se a prescrio do procedimento criminal contra determinada pessoa, bem como
se consagrava a extino do procedimento criminal a que se no desse seguimento. O
prazo de prescrio era de 10 anos, embora para os crimes a que correspondia processo de
polcia correccional tal prazo era de 5 anos e para as contravenes o prazo era de um ano.
Consagrava-se a prescrio das penas, com prazos diferentes consoante as penas maiores
temporrias, penas correccionais e contravencionais (art. 124). Havia penas
imprescritveis: as perptuas (art. 124, 1 parte)87. A aco civil resultante do crime
84 Vide LEVY MARIA JORDO, Commentario ao Cdigo Penal Portuguez, p. 262. 85 Vide JOS DIAS FERREIRA, Novssima Reforma Judiciria Anotada, p. 323 a 325. 86 O Cdigo, porm, no correspondeu s expectativas e de to demorada e laboriosa redaco
acabaria por nascer j velho (ao optar pela manuteno da pena de morte, das penas perptuas e da morte civil, bem como pelos trabalhos pblicos), cf. M. J. MOUTINHO SANTOS, Liberalismo, legislao criminal e codificao. O Cdigo Penal de 1852, Cento e cinquenta anos da sua publicao, RFL, III, 3, p. 102.
87 A pena de morte (privao da vida por meio de fora) abolida a 1 de Julho de 1867 [conhecida pela reforma de Borjana de Freitas, que sobre a pena de morte disse: paga o sangue com o sangue, mata mas no corrige, vinga mas no melhora, usurpa a Deus as prerrogativas da vida e, fechando a porta ao arrependimento, apaga no corao do condenado toda a esperana de redeno, e ope falibilidade da justia humana as trevas de uma punio irreparvel, apud HENRIQUES DA SILVA , Elementos de Sociologia, Fascculo II (Apontamentos), p. 38 e ss.], embora no executada desde 1846 (vide sobre a erradicao, entre ns, da morte como pena, FRANCISCO CORREIA DAS NEVES, Algumas Consideraes Acerca da Pena de Morte, ROA, Ano 22, 1/2 trimestre, p. 194-5; MANUEL DIAS DA SILVA , Elementos de Sociologia Criminal e Direito Penal, p. 398 e ss.; EDUARDO CORREIA, Evoluo Histrica das Penas, p. 117 a 119) passados 20 anos aps o trnsito em julgado da sentena que a aplicava era substituda por penas corporais perptuas (art. 124).
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A prescrio como causa de extino da responsabilidade criminal
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prescrevia no mesmo espao de tempo que a criminal, se esta fosse cumulada. Se a aco
civil por dano e perda fosse separada do processo criminal, ento, j prescrevia segundo as
regras do direito civil, o mesmo ocorrendo com a restituio ou reparao civil mandada
fazer por sentena criminal passada em julgado. A prescrio interrompia com os actos
judiciais respeitantes ao crime, passando o prazo a contar-se desde o dia em que aqueles
actos fossem praticados. Se os criminosos retivessem qualquer objecto por efeito do crime
isso obstava a que o prazo prescricional comeasse a correr; o que tambm ocorria quando
no tivesse passado em julgado a sentena no juzo cvel, quando desta dependesse a
instruo criminal (art. 125). Apesar da prescrio da pena, ao nvel dos efeitos art. 124,
2 e 3 , tal no abrangia as consequncias da condenao relativas aos direitos polticos
e, se a pena houvesse prescrito em 20 anos, no deixava o condenado residir na comarca do
ofendido, sua viva e descendentes ou ascendentes88.
Aps a Nova Reforma Penal, de 14 de Junho de 188489, surge o Cdigo Penal
portugus de 1886, que vem prever que todo o procedimento criminal e toda a pena
acabam pela prescrio (art. 125, 2)90, variando os prazos de prescrio do procedimento
em funo da pena (maior, correccional ou pena que cabe na alada do juiz), consagrando-
se alguns casos especiais como era o caso dos crimes de abuso de liberdade de imprensa e
do procedimento das contravenes. As penas maiores prescreviam no prazo de 20 anos e
as correccionais em 10 anos, e as penas por contravenes passado um ano91.
O Cdigo de Processo Penal de 192992 veio consagrar, no seu art. 138, 4, a
prescrio como excepo93. Era um meio de defesa indirecto, constituindo questo prvia
88 LEVY MARIA JORDO (Commentario ao Cdigo Penal Portuguez, p. 265-6) explica que tal
norma tem influncia ( copiado) do cdigo de processo criminal francs. 89 Influenciada pelo Projecto de Levy de 1861/1864, que EDUARDO CORREIA qualificou como a
mais perfeita obra de preparao legislativa que tem sido levado a cabo entre ns (Direito Criminal, I, p. 109).
90 Embora tal no acontecesse se o ru retivesse qualquer objecto por efeito do crime (art. 125, 2, parte final).
91 Cf. VTOR FAVEIRO / LAURENTINO ARAJO, Cdigo Penal Portugus Anotado, p. 303 e ss.; LUIZ MAGALHES, Manual de Processo Penal, p. 689 e ss.; e HENRIQUES DA SILVA , Elementos de Sociologia II (Apontamentos), p. 157 e ss., que desenvolve a problemtica da aplicao da lei quando se elevam os prazos de prescrio.
92 Aprovado pelo Decreto n. 16 489, de 15 de Fevereiro de 1929. 93 De conhecimento oficioso (ex officio) do tribunal, conforme resultava do art. 139 do Cdigo,
impondo a lei ao Ministrio Pblico a obrigao de a deduzir, a deduzir ou conhecer em qualquer altura do processo at deciso final (art. 140). Segundo LUS OSRIO, a parte acusadora deve pedir somente que se julgue se se verifica ou no a prescrio, pois, pedindo que se julgue procedente a excepo, colocar-se-ia em oposio com o seu pedido de punio do ru. que o M. P. obrigado a zelar pelo exato cumprimento da lei, representando no processo uma funo de acusao e defesa (Comentrio ao Cdigo de Processo Penal Portugus, 2, p. 412).
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a conhecer antes do fundo da causa. Uma excepo peremptria, na medida em que
extinguia o direito94. Tratava-se de uma soluo de inspirao no processo civil que se
reportava a aco criminal (e pena)95. Explicava Lus Osrio96 que a prescrio um
meio de extinguir a aco ou a execuo pelo decurso de um certo lapso de tempo. A
prescrio da aco uma excepo da aco, e a prescrio da condenao uma
excepo do cumprimento da pena.
Apesar de tal regulamentao processual, talvez tendo presente as dvidas
relativas natureza substantiva de tal instituto, as regras do Cdigo Penal mantiveram-se
em vigor97, tanto que o art. 155 estipulava que os termos, prazos e efeitos da prescrio e
as causas da sua interrupo98 so os estabelecidos na lei penal (no art. 125 do CP e no art.
32 da L. 300). Os efeitos da prescrio eram os prescritos no corpo do art. 125 do CP, ou
seja, o procedimento criminal e toda a pena acabam, sob o Captulo VI denominado da
extino da responsabilidade criminal.
O Cdigo Penal de 1982 que surge no seguimento dos trabalhos da Comisso do
Projecto de 1963, coordenada por Eduardo Correia vem sistematizar a prescrio,
transformar prazos e efeitos, e prevendo novas causas interruptivas e causas suspensivas da
prescrio (no reguladas at a99). O projecto que foi objecto de discusso100 previa um
captulo denominado da prescrio da aco penal, estipulando no articulado que a
aco penal extingue-se, por efeito da prescrio, e um outro captulo denominado da
prescrio das penas, prevendo-se que as penas aplicadas, por sentena passada em
julgado, deixam de poder ser executadas.
O Cdigo Penal aprovado haveria de trazer, sob o Ttulo Da extino da
responsabilidade criminal, um captulo referente prescrio do procedimento criminal,
o qual se extingue, por efeito da prescrio, e um outro denominado prescrio das
penas, para alm de outras causas de extino, como a morte do agente, a amnistia e o
indulto. Essa formulao manteve-se, no essencial, com a reviso do 1995 do Cdigo
94 Cf. LUS OSRIO, Comentrio, 2, 1932, p. 406 e ss. (por contraposio s excepes dilatrias,
que no extinguem o direito). 95 O incidente da prescrio da aco levantava-se na fase declarativa, e o da prescrio da pena
na fase executiva da aco penal, assim, LUS OSRIO, Comentrio, 2, p. 487. 96 Comentrio, 2, p. 409. 97 Nestes termos, vide LUS OSRIO, Comentrio, 2, p. 406 e ss. (que descreve que a posio
dominante defende que a prescrio pertence ao direito substantivo). 98 Sobre os actos interruptivos da prescrio, vide LUIZ MAGALHES, Manual, cit., p. 692 e ss. 99 Cf. Actas das Sesses da Comisso Revisora do Cdigo Penal, Parte Geral, II, p. 224. 100 Cf. Actas, II, p. 217 e ss.
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Penal, a qual veio aditar prescrio das penas a prescrio das medidas de segurana101,
prescrevendo-se que a responsabilidade criminal extingue-se ainda pela morte, pela
amnistia, pelo perdo genrico e pelo indulto. So, porm, diversas as alteraes ao nvel
das causas de suspenso e de interrupo da prescrio, sendo a este nvel que tm ocorrido
as mais recentes alteraes legislativas, de que so exemplo a Lei n. 65/98, de 2 de
Dezembro, e a Lei n. 19/2013, de 21 de Fevereiro.
101 Na defesa de que as normas jurdicas sobre a prescrio no se aplicam s medidas de
segurana, vide BELEZA DOS SANTOS, Medidas de segurana e prescrio, RLJ, Ano 77, N. 2790, p. 321 e ss., em especial, Ano 80, N. 2854, p. 100-1.
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3. Direito Penal e Processo Penal. Fundamentos, finalidades e funes
Enunciaremos, de seguida, os fundamentos, as finalidades e as funes do direito
penal (e das penas) e do processo penal no nosso ordenamento jurdico-constitucional.
Visamos, com tal abordagem, questionar o que coloca em causa, a este nvel, a prescrio.
O que acontece com a prescrio aos fins do direito penal e do processo penal e aos seus
fundamentos legitimadores?
3.1. Do direito penal
O direito penal total102, escreve Figueiredo Dias103, cumpre uma funo
especfica de proteco dos bens fundamentais de uma comunidade, que directamente se
prendem com a livre realizao da personalidade tica do homem e cuja violao constitui
o crime.
102 Que se divide em direito penal substantivo ou material; direito processual penal, adjectivo ou
formal; e direito de execuo das penas e medidas de segurana ou direito penal executivo (tambm conhecido por direito penitencirio), e que formam o direito penal em sentido amplo ou o ordenamento jurdico-penal, vide FIGUEIREDO DIAS, Direito Processual Penal, 1974, p. 27; e Direito Penal, I, p. 6. A identificao de um conjunto de disciplinas (autnomas) relacionadas com o crime que so cincias auxiliares da cincia estrita do direito penal como a sociologia criminal, a antropologia criminal, a psicologia criminal, a psiquiatria criminal, a gentica criminal, e outras, e que tm o crime por objecto chamou von Liszt a enciclopdia das cincias criminais, vide esta problemtica em MARCELO CAETANO, Lies de Direito Penal, Lisboa, 1939, p. 59 e ss.; MAURACH / ZIPF, Derecho Penal, 1, p. 45 e ss.; e FARIA COSTA, Noes Fundamentais, p. 27 e ss. Hoje, podemos dizer, refere FIGUEIREDO DIAS, que poltica criminal (a quem cabe definir, quer no plano constitudo, quer no direito constituindo, os limites da punibilidade), a dogmtica jurdico-penal (a quem compete estabelecer os princpios que subjazem a uma direito positivo e explicit-los sistematicamente ensinamento de von Savigny sendo cada caso o ponto de partida para a determinao da totalidade normativa, sistematicamente enquadrada ou enquadrvel compete-lhe, por exemplo, estudar os conceitos integrantes da noo de facto punvel a aco, a tipicidade, a ilicitude, a culpa e punibilidade) e criminologia (que estuda, no s as causas do facto criminoso e da pessoa do delinquente, mas a totalidade do sistema de aplicao da justia penal, nomeadamente as instancias formais e informais de controle da delinquncia, abrangendo o inteiro processo de produo da delinquncia), so trs mbitos autnomos, ligados ao processo de realizao do direito penal, numa unidade teleolgica-funcional, sendo esta unidade que hoje continua a convir o antigo conceito de von Liszt de cincia conjunta do direito penal, cf. DP, I, cit., p. 41 (e, antes, p. 18 e ss.). Vide ainda sobre a relao criminologia-direito penal-poltica criminal, FIGUEIREDO DIAS / COSTA ANDRADE, Criminologia, p. 96 e ss.
103 DPP, 1974, p. 24.
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A misso do direito penal a da proteco da convivncia humana em
comunidade104. Ao Estado, no cumprimento dessa funo de proteco da ordem social,
incumbe o dever de administrao e realizao da justia penal105 - de forma exclusiva,
incumbe-lhe a tarefa de investigar, esclarecer e sentenciar os crimes cometidos dentro da
comunidade (princpio do monoplio estadual da funo jurisdicional106).
O direito penal realiza a sua tarefa de proteger bens ou valores fundamentais da
comunidade, sancionado as infraces jurdicas cometidas, exercendo uma funo
repressiva que, ao mesmo tempo, tambm preventiva, o que conseguido mediante o
sancionamento, a imposio e a execuo de penas justas107. Protege as concretizaes dos
valores constitucionais que esto ligados aos direitos e aos deveres fundamentais, protege
bens jurdicos, alguns bens jurdicos108. Entre a ordem axiolgica jurdico-constitucional e
a ordem legal jurdico-penal dos bens jurdicos, defendem Figueiredo Dias e Costa
Andrade109, h-de por fora verificar-se uma qualquer relao de mtua referncia, relao
que no ser de identidade, ou mesmo s de recproca cobertura, mas de analogia
material, fundada numa essencial correspondncia de sentido e, do ponto de vista da sua
tutela, de fins. Correspondncia que deriva de a ordem jurdico-constitucional constituir o
quadro obrigatrio de referncia e, ao mesmo tempo, o critrio regulativo da actividade 104 JESCHECK, Tratado de Derecho Penal, p. 1, assumindo uma importncia fundamental para as
relaes humanas enquanto ordem de paz e de proteco. FARIA COSTA (Noes Fundamentais, p. 10 e ss.) sustenta que o fundamento do direito penal encontra-se na primeva comunicacional de raiz onto-antropolgica, na relao de cuidado de perigo; a finalidade do direito penal surpreende-se e realiza-se na justia penal historicamente situao e a funo do direito penal a de proteger bens jurdicos.
105 FIGUEIREDO DIAS, DPP, 1974, p. 24. O Estado no pode demitir-se do seu dever de perseguir e punir o crime e o criminoso, ou sequer negligenci-lo, sob pena de minar os fundamentos em que assenta a sua legitimidade.
106 O que no significa a excluso total da autodefesa, mas o reconhecimento da sua admissibilidade apenas em casos excepcionais, como o caso do disposto no art. 336 do CC, vide FIGUEIREDO DIAS, DPP, 1974, p. 24.
107 Sobre as funes repressivas e preventivas do direito penal, vide JESCHECK, Tratado de Derecho Penal, p. 2 e ss.
108 A articulao entre a ordem de bens axiolgico-constitucional e a ordem de bens jurdico-penal apresenta grandes dificuldades porque sendo embora duas ordens de mtua referncia, esta referncia tem de operar-se entre dois mundos caracterizados pela fragmentariedade: 1) o mundo jurdico-constitucional, pois nem todos os bens jurdicos assumem dignidade constitucional em face do carcter fragmentrio, incompleto e aberto das constituies; 2) o mundo jurdico-penal, limitado pela sua prpria teologia intrnseca, defesa de alguns bens (graves perturbaes da ordem social e proteco das condies existenciais indispensveis vida comunitria), GOMES CANOTILHO, Teoria da Legislao e Teoria da Legislao Penal, Estudos Eduardo Correia, p. 854. O direito penal s deve intervir nos casos de ataques mais graves aos bens jurdicos mais importantes, vide MUOZ CONDE / GARCA ARN, Derecho Penal, p. 72 e ss. Conferir a respeito do problema da fragmentariedade, FARIA COSTA, O Perigo em Direito Penal, p. 258 e ss. Para PAULO FERREIRA DA CUNHA um direito constitucional relativamente fixo, estvel e legitimado, pode constituir o ponto de Arquimedes para o que no Direito Penal ande eventualmente deriva ou se encontre mngua de legitimao ou fundamentao (A Constituio do Crime, p. 95).