minhas tardes com o avô

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Neste livro, o escritor Elton Licks mergulha no imaginário infantil para contar as aventuras da menina Lilás na companhia do avô. Juntos, eles falam sobre as coisas boas da vida e compartilham um mundo de magia.

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© 2015 by Licks, Elton

Editor: Rafael Augusto Machado Projeto gráfico, capa, edição e revisão final: Rafael Augusto Machado

Revisão de texto: Rafael Augusto Machado Fotos: freeimages.com

L711m Licks, Elton Antonio Minhas tardes com o avô / Elton Antonio Licks. _ Nova Prata, RS : Ed. do autor, 2015. 72 p.; 23 cm.

ISBN 978-85-919639-0-4

1. Literatura infantojuvenil I. Título.

CDU 82-83

Catalogação na fonte elaborada pela Bibliotecária Clarissa Padovani - CRB 10/1775

Rafael Augusto Machado - Jornalista - MTE-RS 14.140Caxias do Sul (RS)

Fone: (54) 3214.6119 | 8427.4306rafaelaugustomachado@gmail.comwww.editoravirtua.wordpress.com

www.editoravirtua.lep.com.brfacebook.com/editoravirtua

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SUMÁRIO

Primeira Parte 6Segunda Parte 19Terceira Parte 32Quarta Parte 45Quinta Parte 54

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Primeira Parte

Aconteceu há dois anos. Não, aconteceu há cinco. Sete anos? Eu penso em dois anos. Com certeza confirmo que foram dez doze. Um dia comum e olhe lá. Eram horas da tarde, o céu estava claríssimo, o mundo rondava normalmente como um pião espacial. Uma tarde: era tarde de mais ou de menos. A espe-rança, e a esperança metida a pensar o futuro. Então, um dia como outro qualquer. Por isso mesmo a menina Lilás, voz bonita e suave como música suave, apareceu ali no alto da pitangueira, no alto da guabirobeira, no alto da jabuticabeira, no alto do araçazeiro. Agarrada a um galho, temerariamente entre os galhos envergados, tocava para a boca uma e duas e três, etc, frutas, frutinhas. Pitangueira não cresce do dia para a noite, nem muito;

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a sete-capotes praticamente é muito difícil de encontrar; e a azedinha tem um gosto agridoce de provocar lágrimas. Pas-sarinho não vive sem, coleirinha, canarinho-da-terra, sabiá- do-campo, pintassilgo, corruíra, cara-dourada, verdelhão, indaié, etc, passarinhos, pássaros, aves. Essas árvores - se demoram! - demoram para crescer. E Lilás ali, pendurada nos galhos feito bola de cor de enfeitar árvores de natal, e mandando uma duas três, etc, frutos, frutinhas para o próprio bico. Lilás amava e adorava espetáculos de águas dançantes, celulares pequenos, presente de amigo-secreto, amigo secreto, presentes, desenhar luas no caderno, colecionar sapos de fantasia, procurar cidades na internet. E agora, o que as gentes vão pensar? Então, a menininha Lilás teve uma dúvida, algumas dúvidas, ali no meio das suas ideias matagais, chacarais, sitioais. E disse mesmo de si consigo: - Quem fez isso tudo? Quem colocou essas árvores no mundo? As pedras têm coração? As árvores falam, riem e se interessam pelo futuro? Os passarinhos nascem no meio do rio? Aí, ela saltou da pitangueira, saltou da quaresmeira, saltou do butiazeiro, saltou do araçazeiro, saltou da goia-beira-do-mato, saltou e saiu correndo e correu perguntar ao avô. A curiosidade muito urgente. Todas as tardes de sempre, a menina Lilás visitava o avô paterno. Eram as tardes de verão, verão. O horário pou-co variava. Moravam perto, logo ali, coisa de um quarteirão, subindo o morro. A menina foi achar o avô ali na área da casa. E o sau-dou com beijos na face: “pete! pete!”... As palavras saltando na frente do sem-fôlego para respirar. O avô, octogenário, tomava seu chimarrão acomodado na cadeira de balanço, olhando o clima e a temperatura e o céu lá pelos morros.

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Apreciando o quintal. Olhando o morro lá longe. Acompa-nhando o crescimento espalhado e disforme do bairro São Cristóvão. Lilás falou com muita pressa: - Vô, que dúvida! - Hum... Que foi? - Quem criou tudo isso: as árvores, as aves, as estrelas, os mares, as galáxias, os ventos, etc? O avô entendeu tudo, é. As respostas teriam que ser rápidas e precisas. Mas que respostas? O avô pensou rápido. O vento tocava, empurrava e vergava mais ou menos as árvores do quintal. O Avô se defendeu: - Tanta pergunta? Vou me afogar, blublugue!... O vento parecia vir de longe. O vento vinha realmente de longe, pra lá da montanha Anhangava na Serra da Bai-taca. E podia já vir, com nuvens ou sem nuvens, modificar tudo. Um carancho se empoleirou no palanque da cerca de ripinhas pintadas de branco. O avô olhava um lugar à frente, um horizonte longo e sem presença. O avô foi narrando: - Deus é mesmo um Superpai difícil, minha menina Lilás. Ele e seu mundo. Este mundo: sim e não. E tudo, as árvores, os rios, as estrelas, as montanhas, os detalhes e o futuro. Deus, o Hiperpai, é um mistério, é um enigma, é um segredo. Ninguém O localiza, e nem O encontra assim no mais, nem mesmo assim tão fácil, pensa o quê! E nem te digo que Deus existe e nem te digo que Deus fez tudo o que se vê por aí. É ou não é uma maravilha?! - Mas todo mundo elogia Deus, o Todo-Poderoso... Ele vive onde? Ele gosta de mim e de nós e de todo o mundo, praticamente de tudo que se vê? - Praticamente óbvio. Não sei. As perguntas são in-teressantes, as respostas que aguardem. Alá, porém, é mais sábio. Lilás via coisas menores que ela, maiores que ela, mais profundas que ela. E via outras coisas que não era bom dizer

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senão perdia a graça. O jabuti-de-flecha patinava na grama, ali entre morder e pegar umas línguas-de-vaca, uns cabinhos de grama verde, umas guaxumas. O fura-bolo da menina enrolava, ou tentava enrolar, uma mecha de cabelos. A Lilás bebeu um gole de limonada e voltou a atacar: - Deus vive viajando? Vive entre todas as coisas? É ave? É uma árvore? Mora na ilha da Galheta? Pega um cometa e some para o fim do mundo, ou para o começo do mundo, ainda quem sabe para a estrela Aldebarã? - Deus teve sonhos. Daí pra frente Deus teve ideias e planos. Agora, Deus tem futuro. Os homens têm sonhos e palavras ou esperança e futuro. Pois, Deus já existia e o universo começou num dia qualquer. - Que história é essa de Deus e todo o mundo? - Deus é todo o mundo. Uns gostam de chamá-lo de Deus ou Alá, outros de Big-Bang, outros de Destino, outros de Acaso, outros de Tupã, outros mais de Nhanderuvuçu. São muitos mistérios que envolvem o Megapai e o universo. Às vezes, Ele fica por aqui mesmo na terra, disfarçado. Se es-condendo em qualquer coisa, camuflado. Um piscar, Ele vira irapuá no meio do enxame. Vira uma sardinha no cardume de sardinhas. Vira formiga subindo em árvore na floresta. Vira pedra no pedregulho. E assim por diante. E a gente se enche de sustos, essa é que é a pura realidade, e nada. Onde a gente menos espera lá está Deus-Pai, e a gente nem se dá conta, nem se dá por achado, nem se dá por vencido. É, Deus vive na terra dos papagaios; na terra das pacas; na terra das águas dos cavalos-marinhos; na terra das castanheiras-do- pará; na terra das hipérboles. É ou não é uma maravilha?! - Então, se pode dizer que Deus é tudo e cada coisa? Que as árvores gostam do verde? O céu do azul? O mar do azul e do verde? Que as estrelas são fogueiras de São João? - O que conta, o que importa, o que vale mesmo é a esperança e o futuro. Futuro tem começo e não tem fim;

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Esperança não tem começo e não tem fim. O burro de nome Tapiti, lerdo, solto, manso, pelo mar-rom, acabou de zurrar lá perto da porteira, zuoooh!... Zurrou de fome, de sede, de preguiça? Lilás perguntou ao avô: - Por que Tapiti ri desse jeito, vô? - Porque tem pena de mim, pena de ti, etc. - Pena? O avô conversava, seguia tomando seu chima, olhava o céu sem ver, olhava o horizonte, falava e dizia, às vezes erguia o braço para um gesto. Não oferecia porque a água estava muito quente para o bico da menina. O papagaio Loló, meio de lado no peitoril da janela que dava para a va-randa, degustava uma bergamota ou laranja ou pedaço de melão. O avô, como se visse nuvem passar a qualquer hora e toda hora, continuou a desenrolar o carretel: - Quer saber o que mais, Lilás? Pois é. Deus colocou três filhos e uma filha, assim sem escalas e diretamente, aqui no mundo: que era para testá-los, obrigá-los a trabalhar, fazê-los se interessar pelos estudos, prendê-los ao mundo e ao futuro da humanidade, ensiná-los a viver e a morrer. Tinham doze anos, dois a mais que você. Não sabiam ou não tinham condições de fazer milagres. Jesus era cabeludo, usava camisolão e turbante latino, acinzentados, de época; Curupira vestido de plumas e penas das aves do mato e do pantanal; Buda cabelo raspado e camisolão com turban-te, amarelos, de época; e a celestiosa Sheherazade cabelo longo e ruivo amarrado com fita azul ou amarela, e vestido longo e verde com fita azul na cintura, e sandálias de borra-cha. Por enquanto. A Lilás se interessou e perguntou. As sombras do ar-voredo manchavam, com desenhos esquisitos e bonitos, o terreiro ensolarado da chacrinha do vovô. O galo Coronel e família, pelo terreiro, conversavam coisas de família talvez, coisas do clima ou coisas das precisões diárias. A menina

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Lilás indagou: - Por que Deus queria testar seus filhos? Que que o mundo tem a ver com esses testes? Como Deus teve quatro filhos se não teve esposa, e não tem, não terá? Onde fica o céu? - Simples. Deus queria saber se podia contar com seus filhos para o futuro. Para entregar-lhes os astros e as estrelas, o mar, os detalhes e os bichos da terra. Deus queria pretender descansar na aposentadoria; ainda quer, eu acho. O avô tomava o seu mate amargo porque achava bom. O jabuti De Flecha cuidava de pastar seu pasto de grama rala do jardim. A menina mordia sua fatia de pão barrada com doce de abóbora ou com marmelada de uva ou com chi-mia de caju. O sol passeava de guarda-sol no dia azul, pela tarde. Um ferreirinho, ou uma ferreirinha, batia ferrinhos lá no alto, lá mesmo nas grimpas do pinheiro-do-paraná. Loló telefonava ao amigo ou amiga de Tefé: “Oi! Aqui é de Senho-ra dos Remédios, é. Em Senhora dos Remédios está muito quente e quentíssimo.” A Lilás voltou à carga, esmolando: - Como moravam os três meninos e a menina? Viviam suspensos nas nuvens? Quem sabe numa garrafa de pirata? Um oco de jequitibá? Desenhados nos livros sagrados? Es-tátuas de praças públicas? Na imaginação do povo? - Moravam numa tenda feita de taquaras-pocas, ou de folhas de palmeira babaçu, ou ainda de capim sapé, santa-fé. Várias taquaras embiradas, várias folhas trançadas, feixes de capim amarrados. No meio do deserto poeirento e pedregu-lhento. No meio de pedras e areia e mais nada. Num lugar de pouco ou nenhum trânsito. Num lugar sem nenhum valor imobiliário. De muito calor no verão e muito frio no inverno e muita chuva no verão e no inverno e ventos que corriam dos lados vindo de todos os cantos. Um lugar sem nada por perto. Por isso mesmo, já no sítio do avô da menina, o céu

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era uma tampa de azul com manchas de nuvens brancas. Os passarinhos corriam, os insetos fugiam. Os variados insetos faziam fosquinhas para o tempo. - O que é esperança no futuro, vovô? Eu posso ter isso aí? - Futuro é uma estrada assim ou assado, longa ou cur-ta, depende. Esperança é aquilo que se procura todo santo dia atrás do morro, atrás da porta, atrás das horas, atrás da noite, aquilo tudo que se procura e não se alcança, talvez. Assim quer Alá. É ou não é uma maravilha?! - Não entendi nada. Não entendo de nada, nem do mundo, nem de esperança, nem de futuro, nem de mim, nem de Deus, nem da planta tamatarana. Lilás ficou pensando. Era difícil pensar naquilo tudo assim de uma vez. As folhas das árvores do quintal faziam frufru, flaflá, farfalhá... Um par de alados - o joão-de-barro e a maria-de-barro - piavam, riam e brincavam por aí. Um pouco distante da varanda, para os lados do paiol, a vaca malhada Vaquinha também mugia, falava, ruminava, tossia, conversava. Trocava ideias quem sabe com o compadre cavalinho baio Petiço, senhor de crinas escorridas pelo pes-coço de tábua. O vento remexia as copas das árvores, todas as plan-tas, e espantava as poucas nuvens. O planeta Terra girava e ninguém percebia. E todos, então, o deixavam girar em paz. E tudo vai e vem, tudo continua até que acabe, até que haja paciência. Avô continuou: - Então. Um dia Curupira acordou cedo, o céu ama-nhecia, o dia já cheio de sol e andorinhas, tenho certeza. Curupira pegou e foi até a montanha predileta e perguntou ao Deus-Pai: “Tupã, eu posso fazer um rio aqui mesmo, e que desça montanha abaixo até alagar o vale, com cascata cartão-postal e bonita e coisa e tal?” Deus-Pai, de imediato,

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lascou no céu límpido uma rajada de raios com trovões. Sem demora disse ainda, numa voz teatral: “Claro que sim, meu filho predileto”. E Deus-Pai continuou falando: “Você ergue suas mãos pro alto da nuvem, esta mesma onde me escondo neste momento e feche os olhos e espere só um instantinho”. E o menino Curupira falou tá falado: “Escuto e obedeço, meu grande Pai”. Curupira agiu obediente. Então, quando apontava os braços com as mãos para o alto da nuvem, veio um raio tão forte, tão imprevisível, tão potente que explodiu e sapecou com o menino Curupira. A menina Lilás interrompeu a narrativa do avô para um aparte. O dia era de uma quinta-feira à tarde. Avô chu-churreava o mate. O mundo parecia de brinquedo. Loló telefonava para os amigos de Bagé: “Oi! Aqui é de Criciúma, é. Em Criciúma está muito quente e quentíssimo!” A menina questionou: - Ele morreu? O menino Curupira, esturricou? Virou fumacinha azul? - Não. Os filhos prediletos de Deus são eternos, imor-tais. Não morreu, mas ficou todo sapecado e com os pés virados para trás. Ficou sabendo, ficou mais esperto. E tos-sindo tossindo, cofe! cofe!... - Mas por Alá! Por que Deus-Pai fez isso, meu Deus? Tupã não tem dó do seu filho magnífico? - Sabe-se lá! Ou então era um teste. E depois não foi uma derrota, foi um aprendizado. Curupira levou como aper-feiçoamento. Estava escrito: Maktub. - E a coisa passou dali? E Deus ficou brigado com Curupira? E Curupira ficou emburrado com o poderosíssimo Pai? - Muito mais do que isso. Mas também nada de muito extraordinário. Então, aí Curupira foi, desceu a montanha e foi para casa. Todo sapecado, envergonhado, cabisbaixo, tossindo tossindo o cofe!... lá dele. Em casa com os irmãos

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quase não teve coragem de se abrir. Depois pegou e foi saiu novamente foi visitar o padrinho Jurupari. Chegando na pa-lhoça do padrinho, viu o padrinho na varanda, mateando. Curupira chegou, sentou num banquinho e não disse água. De vez em quando tossia tossia, cofe! cofe!... O padrinho Ju-rupari também ficou na dele, mateando, olhando a paisagem, olhando sem ver. Ficaram assim um tempão, ficaram assim em silêncio. Lilás não teve paciência e interagiu. As horas e os números do tempo corriam pelo mundo com o vento ou com a brisa. A laranjeira de pomos vermelhos esticava sua som-brinha junto dos brincos-de-princesa. A menina queria mais: - Jurupari, o padrinho dele, tinha ou não esposa? Não tinha filhos? Tinha o quê? Era um profeta de barbas longas e brancas? Um profeta de maracá, choque! choque!... - Jurupari tinha uma idade avançada, naquela oca-sião. Por volta de 375 anos. E muitos tataranetos e muitas tataranetas... - 375 anos de idade?! Mais que uma árvore? Quase mais que uma pedra? - Talvez 450. Mas continuo. Jurupari finalmente per-guntou a Curupira se ele queria um chima. Curupira disse que talvez. Então, matearam um tempão. Até que Curupira resol-veu falar. Falou a história do milagre que queria fazer e que poderia ter feito, e que dera no logro que dera quando um raio veio lhe cair na cabeça. Jurupari só fez, por enquanto, olhar o afilhado. Olhou um pouco o afilhado. Curupira ficou aguardando a boa vontade do padrinho. Jurupari disse, fa-lando após meia hora de silêncio: “Fique tranquilo, Curupira. Alá-Deus-Tupã só está te preparando para o futuro. É um longo aprendizado de erros. Um dia, para o fim e o começo e o meio de tudo, meu afilhado, você mesmo fará seus próprios milagres”. O avô de Lilás tomava o chimarrão, e todo preparado

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para ver a tarde passear já passeando a sua frente. As an-dorinhas corriam rasantes entre telhados e árvores e tarde. Os bem-te-vis chamando o quê. O galo Coronel, vermelho de crista vermelha e cauda em preto, cuidava da família, vigian-do do degrau da escada do alpendre. Um curió escondido no araçá-congonha chamava a esposa. Vovô prosseguiu: - Um dia a voz de Deus-Pai chegou para Jesus e mandou: “Hei!, meu filho. Pegue este carreto aí de vocês, encha-o de pedras e leve-o para o fundo do sertão ou grotão ou curimatá”. Jesus se admirou: “Eu, meu Deus-Pai? Por que logo eu? Não entendo. O deserto já não tem pedras soltas o suficiente?” Deus retrucou lá de cima escondido detrás da nuvem e numa voz de mando: “Pois estou lhe mandando! Vá, obedeça e pronto!” Assim quis Alá. É ou não é uma maravilha?! - E Jesus então foi, é? Não tinha outro jeito? - Jesus pegou o carreto, encheu de pedras e rumou para o deserto escaldante. Assim como um burrego puxando uma carroça para o deserto de areia fofa e pedras soltas. E você sabe, Lilás, no deserto não tem sopa. Que nada. O deserto não tem outra coisa que areia e pedra solta. Umas estradinhas ruins pacas para passear de carrinho carregado de pedras. Lá o dia é um forno, uma fornalha, e a noite uma geladeira. Não tem água gelada ou sorveterias para uma paradinha. Nada. Não tem chocolate quente, café com sal-gadinhos. Nada. Sem contar que quando venta venta muito forte, venta tempestade de poeira que modifica a paisagem e você não consegue abrir os olhos, e você se perde. Então, a menina lembrou de perguntar uma coisa. En-quanto isso, o Loló telefonava para a amiga de Sabará: “Oi! Aqui é de Piracicaba, é. Em Piracicaba está muito quente e quentíssimo.” Aí, a guriazinha cantou: - Jesus já tinha saudade de sair dali? A chapa estava queimando?

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- Que esperança, que futuro... - Que cor tem a esperança, vô? Para onde o próprio futuro se atira? - Na maré baixa a esperança é verde, na maré alta é azul. E o futuro, e o próprio futuro se apincha para a poeira das estrelas. - E é feita de quê? E é feito de quê? Posso esperar? Posso alcançar? - A esperança é feita de diamante: pra não morrer nun-ca nunca. O futuro é feito de vento: vento que vai levando o tempo levando o tempo. Ou vice-versa. Lilás lembrou que nunca vira o avô comer pitangas, nunca vira o avô saborear araçás-do-mato, nunca vira o avô se acercar de uma jabuticabeira. Pensou em oferecer. A Jandaia, cadelinha sempre contente, língua de fora, voltava de uma aventura não se sabia onde. Jandaia veio e farejou a menina, se deitou nos pés do avô. O Coronel cantou fora de hora? O Coronel cantou dentro da tarde? O Coronel cantou ali; e um vizinho acolá, respondeu. Avô continuou, acrescentando: - Já no segundo ou terceiro dia, Jesus estava muito mal. O deserto escaldante prejudicava muito as bolhas dos pés, das mãos e dos lábios. Dor de cabeça. A luz feria os olhos. Tudo reverberava e resplandecia cegando o sobrevi-vente. Que nada. Nenhuma sombra para remédio. Nenhum oásis para se refrescar. Jesus não precisava de miragens. Jesus precisava de um milagre. - O menino Jesus não sabia fazer milagres? Jesus e seus irmãos e sua irmã já não nasceram sabendo? - Jesus queria fazer milagres, mas ainda não podia, não era tempo. O calor muito insuportável do deserto era de esquentar e de ferver e de derreter. Jesus fez de tudo para não se deixar abater, não dormir, não se entregar. Ele até se emocionou.

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- Não tinha como? Não tinha uma umazinha de saída? - Jesus estava muito extenuado pelo mormaço. Jesus não tinha capacidade para sair da enrascada sozinho. E Jesus tinha que se virar sozinho. - Jesus nunca mais saiu do deserto? - O menino Jesus pegou as poucas forças que lhe restavam e voltou pra casa de arrasto. Sozinho, aborrecido, sonolento e assustado. Deixou para lá a carguinha de pe-dras. Muito magoado com a sorte. Os joelhos e os cotovelos contundidos de tanto cair no chão. - Deus tinha culpa? Deus Todo-Poderoso ia falar com Jesus? - Jesus achou naquela hora que Deus procurava cas-tigá-lo ou dar-lhe uma lição das boas. Só não sabia causo de que e para quê. Jesus ficou com febre alta, delirou, falou coisas estranhas e abstratas. Os irmãos tinham que cuidar para que ele não caísse da rede de dormir.

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Segunda Parte

O dia amanheceu radioso, depois choveu, mais à tar-de amainou. Um avião de carga passou deixando rasto de fumaça branca. A menina Lilás subiu o morrinho e logo chegou na varanda no alpendre na área da casa do avô. Era fácil. De boné e camisa de listras e bermuda cheia de bolsos. Lá pelas dezesseis horas. Cabelo vermelho longo sobrando do boné esverdeado, camisa de faixas horizontais em azul e branco e bermuda xadrez preta com verde. No céu, ali perto, ainda nuvens parando para comprar, nuvens comendo pipocas doces salgadinhos guaranás, nu-vens viajando de óculos escuros, nuvens contando as novi-dades cochichando umas com as outras. Brancas nuvens. O sol isso assim esgotando a tarde. O par de pintassilgos veio rir e riu. Riram os dois e partiram. A guria achava engraçado quando ouvia o avô sorver

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o mate e fazer aquele chiado de estar no fim, tipo assim..., esfrrrommme! Esse chiado, provocado pelo ar que entra na bomba do mate quando a água acaba, que era engraçado. E também havia outras coisas engraçadas no mundo. Uns alguns tico-ticos campeando sementinhas, quirerinhas, mi-galhinhas ali pelo chão do pátio. A família do Coronel com-partilhando com tico-ticos e coleirinhas, sem crise. Nuvem passava em silêncio para o sul. O avô enchia a cuia e ia dizendo: - Os quatro irmãos tinham, cada qual, seu padrinho predileto, já se sabe. Cada padrinho tinha o afilhado pre-dileto, também. Mas, enfim. Curupira sempre procurava o padrinho Jurupari quando tinha lá suas dúvidas. Buda tinha o padrinho Brama. Jesus o padrinho Confúcio. E a verdosa Sheherazade com a madrinha Iara. Quando não estavam em casa, era porque estavam com os padrinhos e com a madrinha. Se não estavam em casa, nem com os padrinhos ou com a madrinha, estariam onde não sei. É ou não é uma maravilha?! Lilás perguntou novamente. Jandaia bocejou, se alon-gando toda como uma cadela de borracha, abrindo bem a boca e mostrando todos os dentes. Passou a língua nos bei-ços e procurou um que fazer. Parece que foi ver ali ali alguma coisa que pensou. O famoso e trololoso Loló telefonava aos amigos de Ubiratã: “Oi! Aqui é de Verdejante, é. Em Verde-jante está muito quente e quentíssimo.” A menina observou outras questões que talvez o avô não pudesse responder: - Os garotos e a garota trabalhavam de artesãos e de artesã? Teriam vidas secretas, fora dos testes? Seriam agentes invisíveis? Levariam vida de pessoas comuns? Eram invisíveis disfarçados de humanos? - Calma, ainda é cedo. Então, Curupira gostava de ir pra montanha. Seu proceder predileto era pegar uma me-renda, um cantil de água e subir a montanha. Só voltava, só

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descia de lá, quando enjoava. Jesus tinha o rio, o rio sagra-do, onde sempre ia pescar. Fingia pescar, não gostava de ver o peixe sofrer. Caminhava sobre as águas. Não pescava nada nada. Nem queria pescar. - Não queria pescar? Era vegetariano. - Está visto que era isso. Ficava logo amigo dos peixes. Era amigo de tudo. Assim como os outros irmãos e a irmã. - Eu gosto de sapos, sabe, vô?! - confessou a Lilás. Tenho sapos de verde, de amarelo, de duas cores, de tricolo-res, de borracha, de isopor, desenhados, esculpidos. Só não tenho de verdade e ao vivo porque acho que não é justo. - Pois quem não gosta de bicho também não gosta de nada mais. E a camomilosa Sheherazade adorava subir no telhado da palhoça onde viviam, e ficava ali, ficava ali se fingindo de passarinho, cantando como um ferreirinho, se achando passarinho, se achando coruja-do-mato. O Buda já gostava de ficar na sombra do umbu centenário. O momento ideal dele era relaxar debaixo da árvore depois do almoço. Cochilava com sorriso beatífico, todo beatificado. - O que é a felicidade, vô? - Hum... É uma abelha que traz o mel de muito longe no espaço. Imagine uma abelha buscar o mel do outro lado da montanha. Terá dois dias, no máximo dois dias, para essa operação de viver e trabalhar. Ninguém tem nada com isso se acaso a abelha erre o caminho. Assim quis Tupã. É ou não é uma maravilha?! O avô adorava aquele momento, todas as tardes, ali observando o clima. Numa mão a cuia. A outra mão segu-rando um joelho, talvez. Um cotovelo no braço da cadeira de balanço. O avô assobiava. Silenciava para ver um tico-tico mais curioso chegar quase muito perto. Parava de assobiar e continuava a prosa. De Flecha ensinava o esperar, Jandaia ensinava o ouvir, uma corruíra ensinava o curiosar. Vinha daí e de tudo um bafo de forno assando o arvoredo verde.

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O prático Loló telefonava para os camaradas de Óbidos: “Oi! Aqui é de Sorriso, é. Em Sorriso está muito quente e quen-tíssimo.” Vovô promoveu: - Um dia Jesus pegou e foi caminhando pela praia ao lado do leito do seu rio predileto. Pelo rio, pelas margens, curucuru, jaburu, capivara, colhereiro, garça-branca, sara-cura, preá, saíra-ouro, jacaré-do-papo-amarelo, rendeira, ratão-do-banhado. - Aqui no Brasil, vô? Seria o rio Tucumandera? Seria o rio Amapá Grande? Não seria o rio Purus? Ou talvez o rio Branco? Quem sabe o rio Trombetas? - Acho que sim. Não me lembro bem. Mas poderia ser o rio São Francisco, o rio Turvo, o rio Uruguai, o rio Solimões ou o rio Madeira. Então, Jesus andou com as mãos às costas. Pensando com as nuvens, como quase sempre tinha a mania. Foi indo pela praia fluvial. Demorou um tanto. Caminhou um bom trecho pela areia, pelo cascalho, pelos gravatás. Uma hora se assustou e não sabia mais se queria voltar ou continuar. Olhou o sol e decidiu continuar. Aí, encontrou um santo. - Seria o santo São Cristóvão? O santo São Francisco de Assis? O santo São Sebastião? Ou uma santa, a Santa Luzia? - Este santo escrevia na areia. Está claro, minha que-rida, que era o beato Anchieta. Mas Jesus não sabia. Pelo menos naquele dia, naquela hora. E nem se lembrou de per-guntar se o futuro santo era santo ou beato. - Que oportunidade e tanto. - É que foi tudo muito rápido. Jesus viu o beato escre-vendo e foi logo indagando, curioso, antes de qualquer coisa: “Que o senhor está escrevendo aí, seu padre?” O beato José Anchieta respondeu logo: “Um extenso poema para elogiar Nossa Senhora”. Jesus perguntou outra coisa: “Quem é essa senhora Nossa Senhora?” O padre jesuíta beato respondeu,

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de uma vez só: “É a mãe dos meninos divinos e da menina divina”. - Ora! E Jesus disse o quê, vovô? Jesus engoliu em seco? - Foi muita surpresa para Jesus. Foi tanta a surpresa que Jesus se assustou muito. Jesus tonteou na hora mesmo. Ficou pronto para pedir socorro, perdido perdidinho, sem saber como fazer, o que fazer, onde pôr as mãos e o nariz. E saiu correndo. Chegou em casa correndo, entrou em casa correndo, entrou em casa correndo e com a surpresa nos olhos abertos. Chegou em casa e se sentou no banquinho perto da porta já com o coração saltando pela boca. Estava apavorado e não era por menos. - Jesus nunca tinha lembrado da própria mãe? Não sabia que tinha uma mãe tão generosa? Não sabia que tinha quase uma família padrão? - Desconfiava, assim como também os outros seus irmãos. Desconfiava, mas não tinha certeza. Não tinha cer-teza e tinha medo de perguntar. Então, você vê, Lilás. Agora ele passou a ter uma luz. Imagine o susto. - Se fosse eu... ora, eu não teria mais sossego o dia todo e a noite inteira. - Os irmãos também ficaram assustados e pensativos. Um tentava consolar o outro, mas também estavam pensan-do a mesma coisa. Eles não sabiam de nada. Os quatro não entendiam o porquê de não morarem com a mãe. O avô assobiou foi um verso repetido de uma canção. Um grande pinheiro-do-paraná, lá para os lados do morro, pegava o seu solzinho nos ossos. Jandaia foi até ali fazer só ela sabia o quê. Foi, latiu com calma e ficou. O Coronel olhou para o latido e ficou aguardando o quê. O avô prosseguiu: - No outro dia Jesus foi falar com seu padrinho Confú-cio, lá na mata de taquaras, taquaral. Demorou perto de dois dias de caminhada para chegar no capãozinho. Chegou e já

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foi se queixando: “Padrinho Confúcio, eu descobri que tenho uma mãe, e não sei onde nem como. Eu descobri por acaso, agora não sei o que fazer”. Então, o padrinho Confúcio ficou em silêncio. Nada disse nada. Não dizia uma palavra. Aliás, o padrinho Confúcio, padrinho predileto de Jesus, havia feito greve de silêncio há mais de quinhentos anos. Cumprira até ali e cumpriria até sempre. - Como poderia, então, dar conselhos a Jesus? - in-dagou a preocupadíssima menina. - Bem... era difícil. Se era. No começo foi mesmo di-fícil. Depois, Jesus se acostumou e até adorou o jeito silen-cioso do padrinho. Lilás reparou que o vento passava agora mais carregadinho e mexia um tanto mais com as folhas das árvores ali presentes. Um araçá-da-anta conversava com uma guajuvira. Borboletas, poucas e boas borboletas, voando baixo entre os galhos dessas plantas. Outras libélulas quase transparentes. O avô prosseguiu por conta própria: - Buda estava naquele certo dia todo sossegado caído lá debaixo do seu umbu secular. Assim, Deus-Pai o encontrou. Deus lhe disse, e numa voz retumbante: “Buda, meu filho, quero que você cate por aí tudo que você puder de lenha e traga aqui e faça um monte com ela”. Buda achou estranha aquela ideia fora de hora e perguntou, então: “Mas por quê, Deus-Pai?” Deus lhe disse, um pouco mais bem explicado, com a voz por dentro da nuvem: “Vá e junte a lenha, faça o monte de lenha e taque fogo”. Buda não esperou mais, pegou e foi. - Que Deus queria com tanta urgência, com tanta lenha? - Devia de ser mais uma das lições. E acho mesmo que era, porque seis ou oito horas depois, quando Buda termina-va de catar toda a lenha na redondeza, Deus voltou lá detrás na nuvem e disse: “Buda, filho querido, agora taque fogo e fique por aí mesmo olhando”. Buda botou fogo e ficou perto,

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olhando tudo queimar. Levou mesmo umas cinco horas até a fogueira virar um brasedo vermelhinho. Então, Deus-Pai retornou, invisível, ali mais por cima da nuvem, e ordenou novamente: “Buda, filho meu, caminhe sobre as brasas, as-sente sobre as brasas, deite sobre as brasas e role sobre as brasas”. - Nossa! Por essa Buda acho não esperava, eu acho. Uma prova de fogo. - Nem eu, minha filha. Nem eu, nem ninguém. E Buda aguentou o que pôde, coitado. Daí, voltou pra casa todo mal e mal assado. Os irmãos trataram de curar as queimaduras. O pobre passou muitas dificuldades. Não podia andar, não podia tomar banho, não podia deitar, não podia muita coisa, não podia tossir, não podia rir. Podia perder a paciência? Podia. E Buda até perdeu a paciência. Cada ferida, cada queimadura, ui! aiaiai! nossa! Dava arrepio só de ver. Dá ar-repio só de pensar. Imagine. - Buda cheirava a churrasco mal passado? - Então não qué?! Pior que insolação na praia. Buda batia o queixo de tanta febre. Ficou febril, delirou, tudo que tinha direito. Um perigo pra saúde, nossa! Porque quase quase torrou. Só não torrou por ser imortal. É ou não é uma maravilha?! - Ficou com desconfiança de Deus-Pai, depois? Ou com suspeita? Pelo menos com receio? Muito magoado? - Ficou é muito ressabiado. Daí, quando pôde vestir uma roupa melhor, foi atrás de se aconselhar com o seu padrinho Brama. Chegando lá, pois Brama vivia no templo construído no alto da rocha, Buda falou: “Padrinho Brama, por que tive que quase morrer no meio daquele brasil todo?” Aí então, Brama riu: “Ah ah ah!... ran ran ran!... ih ih ih!... ri ri ri!... eh eh eh!...” Brama se expressava rindo a bom rir todos os risos. Brama sabia rir de tudo e de todos. Rolando sempre de rir. O jeito lá dele. Buda já estava a par, já estava vaci-

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nado com as gargalhadas do padrinho. Brama não falava há séculos, mas ria muito e de todo jeito e de todo o coração e de todo o mundo. Brama ria com a boca, o pé, a barriga, o antebraço. - E Buda entendia as gargalhadas do seu padrinho Brama. Não era uma alegria às vezes fora de lugar? - Talvez por tudo isso que Buda gostava tanto dele. Buda achava seu padrinho muito engraçado e bonachão e direito e direto. O jumento Tapiti, lá no pasto junto à taipa de pedras, zurrava, zuoooh!... alegre. - Por que Tapiti chora assim, vô? - Porque tem compaixão de mim, compaixão de ti, etc. - Compaixão? Lilás sabia, ou lhe contaram certa vez, que dizem que os peixes são surdos, que as girafas não dormem deitadas, que os grilos têm ouvidos nas patas, que os macacos brigam por arranca rabos, que as galinhas não têm dentes, que os gatos não estão nem aí, que os caranguejos andam penden-tes do lado esquerdo, que os urubus dormem em pleno vôo, que as formigas não param não param. A guria tinha com ela, no fundo do seu pensamento, que essa necessidade de futuro dá muito trabalho para as pessoas, bichos e coisas. A cadela Jandaia, ali mesmo no terreiro, corria atrás de uma borboleta violeta. E Jandaia pa-recia mesmo uma criança xereta. O nacional Loló telefonava aos irmãos de Satuba: “Oi! Aqui é de Santa Maria do Salto, é. Em Santa Maria do Salto está muito quente e quentíssimo.” O avô retornou e prosseguiu: - Olha, Lilás. Os padrinhos dos quatro também se reuniam para prosear. Eram caras fora de série. Eles eram verdadeiros filósofos, peritos profetas. Eram verdadeiros xa-mãs. Eram verdadeiros mitos. Eram muito idosos e gostavam de pensar, passear pensando com as mãos às costas, con-

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versar e pensar e passear. - Já lá ou aqui se vão muitos e muitos anos, né?! É certo que o tempo vem e vai e vem? - O tempo e a distância não são nada. E para os padrinhos dos meninos e da menina, o tempo não passava mesmo de um brinquedo, ou de um balão de aniversário, ou ainda de um passatempo com histórias cruzadas. - Eram mágicos? Eram feiticeiros? Ou filósofos místicos? - Eram deuses conservadores, porém mágicos, gran-des filósofos. Mágicos quando queriam. E eles se reunião vez ou outra. Às vezes iam ao Egito bater um papinho ali no oco de uma pirâmide à beira do rio Nilo. Ou corriam até a Índia visitar o sagrado rio Ganges. Ou às praias salgadíssimas do mar Morto. Ou até Parintins ver a disputa do boi Garantido e do boi Caprichoso. Gostavam de gastar o tempo perene em, Salvaterra, Afuá, Soure, Taperoá, Valença... Mas no interior da pedra da Gávea se sentiam melhor. - Um dia, entre os dias do passado, né, vô?! - Geralmente dialogavam conversavam sobre coisas importantes, absolutas e indispensáveis. Sentavam-se na mesa do bar-restaurante, só eles quatro. Padrinho Jurupari bebia seu café com biscoitos de polvilho e falava coisas de um novo mundo e de um velho mundo. Padrinho Confúcio bebia seu café com biscoitos de mel e olhava tudo, escutando, sacudindo a cabeça. Padrinho Brama bebia seu café com biscoitos de chocolate e ria, rã rã rã!... rá rá rá!... ri ri ri!... sem parar ele ria. A dona Iara bebia seu café doce com biscoitos vovó-sentada e mexia as antenas lá dela, as asas transparentes lá dela, contava histórias curtas com final engraçado, com final feliz, com final educado, com final amazônico, com final finalícimo. - O que padrinho Jurupari falava de tão existencial, por exemplo? - O necessário, o possível e o divino. Às vezes até o

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irremediável. Até mesmo o interminável. Falava de astros e estrelas, falava de futebol nas galáxias, falava do tempo em que era doido por merengue e bala de goma e sorvete seco. - Por que nas cavernas da pedra da Gávea? É um lugar especial? Já foi um lugar espacial? - Você sabe que existem vestígios de espaçonaves interplanetárias óvinis etês de Varginha, Chapada Diamantina, Maragogipe, etc, né?! Os ipês florescem em agosto. As pitangueiras dão pitangas ali por novembro. Os araçás dão araçás ali por janeiro fevereiro. Então, está visto, tudo muito bom. Sabiá- verdadeiro gosta que se amarra em pitangas e araçás-de- coroa. No verão as pitangueiras convocam a passarinhada toda para um banquete. De Flecha, naquele tal instante, arrastava a casa para a sombra do alpendre. O sol ainda andava na sua voltinha. Pegava o ônibus, o trem, o avião das quatro cinco da tarde. O próprio sol explica melhor o dia, e nem todos os mistérios. Mas o avô seguia a narrativa ladeira abaixo: - A sedosa Sheherazade ouviu vozes enquanto estava dormindo, até tarde, uma manhã de domingo. As vozes vi-nham do teto da cabaninha. A bondosa Sheherazade acordou e abriu a janela, queria ver qual era a da voz. E a voz queria mesmo falar com ela mesma, e falou. A voz veio, então, do alto e da nuvem, de lá de fora do alto. A voz disse com essas palavras fáceis: “Minha lindinha filha cheirosa Sheherazade. Você reconhece minha voz?” Aí, a historiosa Sheherazade disse, respondendo: “Ora, claro que sim, meu Paizão”. Pois a voz voltou do alto da nuvem: “Assim eu digo que você precisa pegar umas frutinhas do araçá-de-minas, pra mim. Vá e me traga umas arrobas dessa frutinha que eu quero provar, tá bem?” E a dengosa Sheherazade respondeu bem respondido: “Escuto e obedeço, bom Pai Todo-Poderoso”. - A fabulosa Sheherazade era mesmo uma boa guria,

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não, vovô?! - As meninas sempre são mais fofinhas e quietinhas e bonitinhas e obedientinhas. É normal. Todo o mundo acha. Mas, bem... Aí, a levíssima Sheherazade foi para o espaço aberto do campo procurar o tal do araçá-da-praia. - Mas não são alguns tipos e tipos de araçás, vovô? - Pode mesmo ser. Todo caso a bonitosa Sheherazade foi para o descampado e encontrou o araçá-de-são-paulo. Subiu na árvore e começou a comer. Não era para ela própria comer, mas quis provar, gostou e continuou comendo. Gos-tou do gosto e foi se deliciando. Comeu um, comeu muitos. Não resistiu e comeu foi comendo em vez de guardar para Deus, o Megapai de todos nós. Foi aí que ela, a imaginosa Sheherazade, demorou para mais da conta. E Deus se can-sou de esperar e fez um milagre que foi o seguinte: Deus deixou que a importantíssima Sheherazade caísse do galho do araçá-do-pará e se atrapalhasse toda. E de fato. Assim, a vitoriosa Sheherazade ficou pendurada pelos cabelos, pe-las gadelhas, pelas crinas. A esculturosa Sheherazade ficou presa e pendurada do galho pela juba, e balançava como um móbile que fosse de pano de metal. - Nada pior que puxarem o cabelo. Que coisa, né, vô?! - Coisa e meia. E doía não só um pouco. Mas a pres-tigiosa Sheherazade tinha chance de gritar. Chance de gritar era o que ela mais desejava, tanto que esperneou e gritou. Sorte que não tinha ido muito longe e os irmãos puderam ouvi-la e acudi-la e salvá-la e carregá-la. - Eu também não gosto que puxem meus cabelos, é! - A dengosa Sheherazade ficou envergonhada e ma-nhosa que durou uns bons dias com o burro amarrado. Subiu no seu lugar favorito que era o telhado de palha da cabana. Ali podia espiar tudo e ficar sossegada em silêncio. Podia até falar sozinha sem que ninguém reparasse, sem que ninguém ouvisse, sem que ninguém respondesse e sem que ninguém

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achasse graça. Depois de uns alguns dias ela desceu e saiu para espairecer. Foi visitar a madrinha dela, a dona Iara, é. E a Iara morava no oco de um imenso e grosso e antigo jequitibá, muito perto no barranco do rio Maracá. É, a dona Iara morava ali e a amigosa afilhosa Sheherazade chegou para se consolar e pedir arrego e pedir consolo. Assim quis Tupã. O avô parou para abastecer a cuia. E abasteceu. A menina Lilás contava nos dedos as libélulas que chegavam para beber nos pés de bromélias do canteiro junto à varanda. Duas árvores copadas e importantes chegavam mais perto, quais? A gabirobeira e a jabuticabeira. O espaço, para onde os olhos passeavam, perto, vivia cheio de um trânsito de nuvens, passarinhos, abelhas, zangões, vespas, marimbondos. Outros alados e nuvens sobrevoavam o telhado de telhas de barro cozido da casa do avô. O avô continuou a tocar a gaita: - Pois a arábica Sheherazade chegou na casa típica da dona Iara e se sentou e se queixou. Sheherazade, a azulada, desabafou sua frustração sofrida no pé de araçá-do-brejo ou araçá-felpudo, sei lá. “Uma piada”, disse ela, toda toda vexada. E dona Iara ouviu, gostou, sorriu, riu, esfregou as mãos, sacudiu as asinhas e depois pediu ela mesma a pa-lavra. Então, dona Iara consolou a galantosa Sheherazade com o que sabia de melhor, ou seja, contou uma lenda feita no rio Negro. Uma história de moral e alto astral. E foi uma história das que Sheherazade, a meninosa, gostava e sabia aprender. Uma história de era uma vez... De foi no tempo das árvores falantes... De no ano anterior ao nascimento de tal imperador... De nas terras do herói... De na época que o Brasil tinha um rei e rainha e príncipes e princesas... E a dona Iara sempre tinha muitas histórias para passar o tempo e o vento e o rio. Lendas que iam e vinham. Uma vez um carro- de-boi, sem condutor e sem bois, chegou na ilha das Palmas e... Para lá do norte havia, talvez para sempre, um país sem

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tevê e teto, onde os homens não deixavam o bigode crescer e as mulheres não deixavam as unhas crescer... Era um índio completo, de olhos brancos, que não existia, sonhado o ano passado... Enfim, o mundo assim de histórias e tudo acom-panhando cheio de aventuras.

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Terceira Parte

Um bom-dia-seu-chico gorjeou bateu asas pipiou sal-titou assim assim. O passarinho veio plantar uma sibipiruna para piar o futuro na sombra. Quando a menina chegou junto do avô, aquela tarde sonolenta e preguiçosa, já debaixo de um sol... Sol interminável, sol acrobata, sol sem camisa. Pois o vento soltava os cabelos no espaço. O vento arrastava o tempo. O vento mexia com as andorinhas no céu. O vento era gênio. Dia cheio de árvores quentes, dia cheio de preguiça, dia cheio de besouros irisados, dia cheio de tesoureiras chamando, dia cheio de buzinas pelo vai e vem na estrada RS-470 do lugar conhecido mais como “da Canhada Funda”. A hora ficava verdadeira quando vinha um passarinho perguntar as horas. A menina apontava: - Olha só um cardeal! O avô roncou o mate, esffffrrrooou!... pegou da

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térmica e encheu a cuia outra vez. A menina Lilás ouviu uma juruviara-verde-amarela cantar. A chacrinha toda ouviu. Ou seria um uirapuru rindo? Uirapuru neste horário? Não é muito difícil e raro ouvir um uirapuru? Papagaio Loló telegrafava aos magrinhos de Viamão: “Oi! Aqui é de Prata do Piauí, é. Em Prata do Piauí está muito quente e quentíssimo.” O avô recitava contando: - Os quatro irmãos se davam muito bem, isso é certo. Sem mais nada, o dia passou. E desceu realmente a noite com tudo. Na noite costumavam acender uma fogueira no pátio. A fogueira era um costume antigo que se tinha para guiar os viajantes no deserto ou até para espantar o sono. Os quatro irmãos faziam isso até para se aquecerem no in-verno. E era uma oportunidade que tinham para contar es-trelas, olhar estrelas. Sentavam em volta da fogueira, braços cruzados, olhando as chamas, conversando. Buda poderia dizer: “Acho que as estrelas são diamantes muito muito das enormes. Cada estrela um enorme enormíssimo diamante solitário.”Curupira completaria: “Como são puras e distantes, praticamente, não perderão nunca nunca o brilho.” Shehe-razade, a morenosa, opinaria: “As estrelas são janelinhas do céu. Quem sabe fogueirinhas de papel-jornal.” E Jesus con-sideraria: “Como são muito muito distantes, suas cores vêm num brilho só, numa cor sozinha e fria, sem som ou eco.” - Os irmãos e a irmã namoravam, vovô? - Hein?! Ah, sim! De uma feita os três guris saíram para um baile na cidade Bom Pastor. Era carnaval e os irmãos se fantasiaram de três tracajazinhos. Pularam a noite toda. Não se cansaram tão facilmente. Carnaval é gostoso e bom e muito bom para quem não se cansa, uma vez. E já imitaram o caminhar ou dançar da galinha, do galo. Depois o dançar ou andar da vaca, do boi. E assim por diante. Imitaram o capitari e sua namorada a tartaruga-da-amazônia. A dança e a coreografia da perdiz e do perdigão. Iniciando imitar

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os animais domésticos até chegar nos da mata atlântica. Quando amanheceu pensaram em ficar e curtir o segundo, o terceiro, e o quarto dia de cinzas. - E a esquecidíssima Sheherazade não foi, vô? - Acho que ela tava com gripe, na ocasião, é. - É mesmo? - Sim. Faz tempo. Acho que era isso mesmo. Se não foi isso foi quase isso, sim. O que não faz muito mal, não. O futuro pertence a todos. E o futuro tem recursos de sobra. Tupã esculpiu os homens para que fossem teimosos, no bom sentido. Aí, o vovô quis dar um tempo no chimarrão. Colocou a cuia para descansar no porta-cuia. Se ergueu da cadeira de balanço apoiado na bengala, apoiado na bengala. Então, caminhou pela área. Os bichos da casa se assanharam, o Coronel gaguejou, a Jandaia bocejou, o Loló trololou. O avô ia dizendo o que mesmo. O avô, reagiu: - Ah, sim! Deus-Pai chamou os quatro uma vez mais e disse, dali mesmo, de detrás da nuvem: “Peguem de se antenarem que hoje mesmo vamos todos para a floresta mais próxima”. - Deus só falava de detrás das nuvens? Que estratégia segura, não é, vô? Porém a voz era reconhecível e trovejosa e assombrosa. - E tanto. Era só a voz que soprava de lá mesmo de detrás da nuvem. E os meninos e a menina perguntaram: “Fazer o quê, Deus-Pai?” E Deus respondeu: “Quando chega-rem à floresta eu digo.” E Deus não falou mais nada, calou-se, nublou-se. É ou não é uma maravilha?! O avô que falava. Agora um pouco ali parado em pé para esticar as pernas, meio que andando pela área, girando o telescópio. Reparou mal e mal nas laranjeiras vermelhas, laranjeiras vermelhas. Um gavião-real nadava no azul. E o avô teve uma ideia, e falou, virando o corpo para a menina

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que vinha pelo lado. O avô declamou: - A esperança... corre corre acuda!, a esperança, e é bom que se diga, a esperança não pode ser esquecida ou substituída ou enganada ou mal empregada. Para que viva a esperança, para que continue o futuro, é preciso que se vá para o nada pelo menos uma vez na vida. E que se sonhe renascer no infinito. Vovô falou isso e se calou por um minuto. Um gavião- papa-formigas pousou na ponta do palanque da cerca. Con-tinuou lá e olhando. Sem ser incomodado pelos bem-te- vis, pelas tesoureiras, pelos quero-queros, pelos caraxués, pelos ferro-velhos. Continuou pesquisando o quê. O Loló gastava mais um número para os companheiros de Quatá: “Oi! Aqui é de Pontalina, é. Em Pontalina está muito quente e quentís-simo.” O avô, voltou ao tema: - Aí, os três meninos e a menina foram para a floresta. Chegaram lá e entraram na mata cheia de gritos, roncos, chiados, silvos, pipios, berros, rastos e sombras. Sombras que se mexiam, plantas tortas, pedras respirantes, olhinhos acesos e piscantes, árvores de copa vermelha, amarela, ver-de, azul. Foram caminhando e olhando por onde andavam. Pássaros quase falavam. Enxame de mosquitos. O chão atapetado pelas folhas secas. E andaram andaram, e sempre na dúvida, é claro. Bando de macacos bugios regougava. E marimbondos, tananás, saci-pererê, ipupiara. A caminhada até cansar pelas trilhas mal e mal. Aqui e ali um corguinho para beber água. Caminharam, eles andando em fila, cento-peia, procurando um caminho, buscar o quê, se indagando, caminhando. Pararam e ficaram na dúvida. Mudaram de tri-lha, mudaram de ânimo, mudaram de conversa. Aguardavam que Deus se pronunciasse. Deus não se pronunciava. Bando de papagaios falando muito alto, palmeiras com coqueiros, patativa piando. Então, a floresta existia e se apresentava e se pronunciava. E foram ver era mesmo? Era mesmo um

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chupa-cabra? Assim até cansarem, até esgotarem. E Deus não se pronunciava mesmo, não se pronunciou. Os mateiros ficaram na dúvida. - Duvidaram de quê, vô? Duvidaram do futuro e muito mais? Ficaram presos na floresta? Ficaram grilados com a sombra fria da floresta? - A dúvida maior era: o que Deus-Pai queria com eles ali naquela floresta que mal dava para caminhar? E por que Deus já não aparecia de uma vez e dizia o que queria de uma vez? Então, na dúvida não resolvida, os quatro pegaram e se sentaram no chão úmido. Iam esperar até que Deus desse o ar de sua graça. - Então, não esperaram muito, quase nada? E espera-ram até que horas? Esperaram horas, eu acho. - Nossa! Toda vida. Quer dizer, toda vida se ficassem esperando lá como estátuas. Só aguentaram esperar umas horas e pronto, já perderam a paciência. Acho que sim. Esperaram até o sol cair fora do dia. O gavião-de-penacho passou por cima da mata e gritou, latiu, urrou e até ululou. Aí, ficaram muito muito preocupados. Acharam que Deus tinha feito uma gozação com eles. - Voltaram pra casa emburrados? Voltaram se pergun-tando interrogações? Voltaram por outro caminho? - Pensaram isso, mas já era quase noite. Já era bem escuro. O pior é que não tinham onde dormir. Não enxer-gavam o caminho. Faz frio à noite na floresta, pensa o quê. Há feras perigosas saindo pra caçar. A onça-pintada, por exemplo, a sucuriju, a murucututu, a martinta-pereira, o boto, o janauí. E muito mais. Poderiam se perder no labirinto de árvores e arbustos e folhagens e ervas e cipós e lianas. - Por que Deus não mandava uma luz, a própria lua? - Porque era outro teste. Uma prova tipo de sobre-vivência na floresta. Tipo prova de recruta. Prova de índio tupinaé adolescente. Deus queria ver se eles quatro chora-

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vam de fome, de sede, ou não. Pensa o quê?! O futuro tem mistérios, nhenhenhém!... - Ficaram, então, aquela noite na floresta? Sem dormir, aposto. - Naquela noite e mais cinco dias com as cinco noites. Pensa o quê. Na verdade se perderam na floresta. Cipós e trepadeiras e carrapichos se agarravam às pernas. Um labi-rinto de varadouros e furos e caminhos de anta e caminhos de porco-do-mato e caminhos de galinha-d’água que não se podia confiar. O que é bem comum, quando não se conhece e não se sabe por onde andar. E dentro do silêncio um ruído, um ruído que arranhava e rasgava e triturava, cleque! cle-que!... De repente o ruído vinha e ia e voltava. Vinha devagar, ia devagar, retornava devagar... Dentro do silêncio noturno, o ruído andava e caminhava e se mexia. Com medo das feras e dos ruídos noturnos, quebraram o galho dormindo no alto de um angico, um guamirim, um caramuru, uma ingazeira. Isto quando conseguiram. De repente até podia cair uma chuva, se Deus mandasse e assim preferisse. - Tavam perdido no mato sem cachorro, sem gps, sem celular. - Tranquilo, tchê. E olha só. Tinham que ir atrás do de-comer. O que a floresta, aliás, só oferecia meio assim na moita: raízes, frutinhas miúdas, folhas doces, flores co-loridas, água límpida, mel de abelha. Nem isqueiro havia pra uma fogueira. Além disso, ainda precisavam encontrar o caminho de casa. - Eu mesma conheço de nome e ouvir falar e ver na tevê, por exemplo, um número de frutas e de frutos: abaca-xi, pitanga, caju, biribá, buriti, cupuaçu, pinhão, guabiroba, ingá, taperebá, pequi, cereja-do-mato, jabuticaba, tarumã, azedinha, guabiju. Eu conheço de comer as frutas e frutos: araticum, araçá. As que mais adoro de frutas e os frutos: butiá, goiaba-do-mato. As que nunca pude provar e sei que

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são frutas e frutos que existem e são apetitosos: açaí, sete- capotes. E o vovô já prosseguia na aventura dos quatro divinos: - Bem, remando o barco morro abaixo. Um dia daque-les o céu começou ameaçando céus e terras com muita chu-va, baita temporal. As aves piavam assustadas com o tempo nervoso. Era, aliás, um dia demais a mais muito abafado. De minuto em minuto relâmpagos trincavam o céu escuro. Tro-vões se sucediam com estrondos cada vez mais pesados e por perto. A terra chegava a tremer com ameaça do céu cair sobre nossas cabeças. Para logo começou a chegar pesados e frios pingos frios e grossos varando a folharada. Os hós-pedes involuntários da mata batiam os queixos, abraçados com o próprio corpo arrepiado molhado. Descia dos galhos e folhas uma cortina de água fria. Caía chuva torrencial. Os pés afundavam no afofado tapete molhado das folhas mo-lhadas tombadas no solo. Vento por tudo retorcendo copas e galhos. Mais raios e trovões que não cessavam. A água correndo. Vendaval, tormenta. O quarteto divino já achou, então, que Deus de todos nós, exagerava, uma vez. O avô apoiou uma mão na mureta de ripinhas da área. A outra ainda segurava a bengala. De Flecha comia sua língua-de-vaca com muita calma e economia. Lilás entendia, de ouvir dizer, que quando Deus fez a fala, Ele já tinha dito tudo; quando Alá fez os dez dedos, Ele já tinha pesquisado todos os números; quando Tupã fez os rastos, Ele já andara de tamancos no barro. Vovô voltou para revelar, reviver: - Bem, custaram mesmo a sair da floresta. Até que tiveram uma luz. Pensaram assim: “Mas que lado fica nossa casa? Não fica no sentido do nascer do sol? Então, vamos nos guiar pelo sol do leste!” E assim os quatro esperaram mais dois dias até aparecer o sol. Pois um dia apareceu e foi comemorado. Aí, então, foi um abraço. Foram no sentido do sol nascente, deixaram o sol passar por cima, viram o sol

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do outro lado. Quatro cinco dias assim. E depois de muito pisar em espinhos, andar e andar por quebradas e trilhas e caminhos, dormir de noite nos braços das árvores, saíram da floresta, da mata atlântica. É, saíram da floresta. E voltaram para casa no deserto de areia e pedras e sol de rachar. Foi melhor para eles quatro. - Alá, o Bondoso, não bateu palmas, não deu os pa-rabéns, não vivou? - Tupã? Que nada. Nem apareceu no alto atrás da nuvem. Nem água. Nem te ligo. Nem a sua voz de trovão se fez ouvir. E Deus nos livre e guarde! Avô voltou a sua cadeira de balanço. Lugar predileto seu, e continuou. No alto, bando de papagaios, bando de periquitos, bando de araras-vermelhas, bando de araras--azuis, bando de tuins, um par de maritacacas. Avô olhando reto, longe, longe. O avô prosseguiu e devolveu: - Então, certo dia, chegou uma correspondência, um e-mail. O imperador Dom Pedro II os convidava para pas-sar um fim de semana na Quinta da Boa Vista, palácio São Cristóvão, passear pela cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. - Muito bom. Pelo menos alguém os conhecia, né?! - Sim. Filho de algo, fidalgo. Muita gente bem in-formada os conhecia. Assim, os três meninos e a menina olharam aquele convite e ficaram na dúvida: “Será que nosso Pai eterno aprovará? Como saber se Deus deixará?” Querer viajar eles queriam. Saber com certeza se poderiam é que não sabiam. - O jeito era consultar o trovão, então? - Isso ou aquilo. Viagem muito longa, o fuso. Querer ir era uma coisa, outra coisa era desobedecer a Deus. Eles ficaram com receio de que o Pai não gostasse. Eram meninos e menina obedientes, claro. - O que fizeram? Ficaram em casa?

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- Aí resolveram perguntar para a nuvem. - E com que palavras? Palavras novas? - Acenderam uma vela cada qual e se ajoelharam. Mãos dadas para fazer uma corrente de pensamento mais forte. E rezaram tudo o que sabiam olhando a nuvem através da janela. Pediram um sinal, um som, uma luz, sete cores do arco-íris, um vento forte, um fenômeno qualquer. A resposta demorou pra quase uma semana. E todo dia eles rezavam, todo dia ajoelhavam, velas de espermacete ligadas, olhar ansioso lá para a nuvem passando pela janela envidraçada ou janela aberta. Pra você vê que no céu também existe uma burocracia. Deus só atende quando quer, e se quiser. Enfim, lá pela quinta-feira, véspera da partida, na última hora, che-gou o anjo-mensageiro com a resposta. O anjo da resposta oficial, pensa o quê. É ou não é uma maravilha?! - O arcanjo Gabriel, quase certo. Ou o arcanjo Miguel. - Não sei, não vi a placa. Não sei se era arcanjo, serafim ou anjo barroco. Eu digo anjo porque com certeza levava umas asas nas costas e nos calcanhares. Veio pelo ar. Era, com justiça, um tipo riponga. Não sei se era Gabriel, Rafael, Raziel, Miguel, Tonel, ave ou pássaro ou passarinho. Era um nome desses. Bem, então o anjo falou com eles e disse: “Ordem de Deus: vocês quatro podem ir sim passar o fim de semana no palácio São Cristóvão e visitar a família imperial.” E o anjo aproveitou para dar uns conselhos por conta própria: “Colecionem figurinhas de jogador de futebol, colecionem cedês de marchinhas antigas de carnaval, colecionem cartões-postais da cidade ex-capital do país, fotografem a pedra da Gávea, a baía da Guanabara, a floresta da Tijuca. Isso no mínimo”. O anjo esperou que eles fizessem as malas e só então bateu asas e se foi, subindo lá para o alto, escorregando entre as nuvens. Era um anjo que voava alto, asas brancas, asas que douravam aos raios do sol, asas que se perdiam entre nuvens, asas azuis com bordas

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douradas. E o céu se rindo de raios de ouro. - Os meninos foram a pé? Não era longe pacas? Por que o anjo não os carregou pelo ar? Por que o anjo não os teletransportou? - Claro que era longe. Então, Jesus disse que poderiam ir até o rio das Antas e lá pegar uma chalana, ou uma gaiola, ou uma jangada, ou uma lancha a motor. Foi o que fizeram. Os filhos de Deus ainda não eram de fazer milagres por conta própria. - Eu gosto de rios. Que rio passava por ali? E acho que continua passando. Sim, era o rio Xingu. O rio Pelotas, também. Mais o rio dos Sinos. Com certeza o rio Tietê ou o Guaporé ou o Gravataí ou o Ianamu ou o Jari ou o Cuiabá. - Nenhuma aventura a mais na viagem? Muitos mos-quitos? Vento na cara? - Nada de mais. Nenhum incidente. Nenhum ataque de pororocas. Nenhuma peleia, nenhum entrevero. Os rios eram navegáveis. Não era tempo de seca, não era tempo de bandeirantes e nem passavam por terras de corredeiras pe-rigosas, terras de dinossauros, ou terras de vespas gigantes, lugar de cataratas. - Era a primeira vez que iam ver o mar? - Acho que sim. Enfim, chegaram ao palácio na sexta--feira à tarde. O sol quase entrando. A cidade do Rio de Janeiro com a lagoa Rodrigo de Freitas, a praia de Ipanema, o Pão de Açúcar, o Cristo no alto do Corcovado. E os habi-tantes baianos, mineiros, pernambucanos, paraibanos. Uma cidade com muito a oferecer em termos de atrações turísti-cas, altas praças e ruas e calçadas decoradas de pedrinhas portuguesas, futebol, shows de música, restaurantes, praias, desfiles de escolas de samba e tiroteios na madrugada. O imperador Pedro e a imperatriz Teresa Cristina exultaram, pularam de alegria, fixaram um sorriso satisfeito quase per-

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manente, decretaram dia santo. Os meninos e a menina receberam do casal imperial todas as graças, privilégios, honras, mordomias, distinções, estimas, homenagens, liber-dades, franquezas, condecorações, primazias e importân-cias. O imperador pessoalmente mostrou o palácio, o jardim de verão, o jardim de inverno, o jardim botânico, o jardim das visitas, o jardim mourisco. A imperatriz convidou para o chá-da-índia no jardim da cidade, no jardim das orquídeas, no jardim de cristal, no jardim de pedras preciosas, no jardim dos ipês-roxos. - O imperador e a imperatriz já sabiam, talvez, que os três meninos e a menina eram filhos prediletos do Criador das estrelas e das montanhas e dos oceanos? - Sem dúvida. Senão não os teriam convidado para conhecer as suas três filhas princesas e mais o príncipe her-deiro. - O imperador queria era casar suas filhas e seu filho com os divinos, é? - Claro, quem não gostaria?! O imperador e a impera-triz não davam ponto sem nó. Já pensavam em casar no mí-nimo uma filha. O imperador Pedro queria ser quase parente de Deus. É ou não é muito? É ou não é uma maravilha?! - Eu acho legal, essa ideia imperial do imperador e da imperatriz. - Mas os meninos e a menina só tinham doze anos, dois mais que você, Lilás. É, pra você vê, Lilás. A coisa não podia andar nessa velocidade. O avô ficou olhando sem ver. Olhando o espaço sem ponto. Olhando o céu sem ver e pensando sem razão nenhuma. O espírito em reticências. Nem percebeu se pas-savam nuvens passageiras, passarinhos ligeiros, besouros redondos, joaninhas abauladas, colibris elétricos. A rua Itália seguia em frente feita de terra vermelha batida ladeada de árvores uns pinheiros uns coqueiros-aracuris umas casinhas

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aqui e mais ali com portãozinho de ferro. Depois avô ouviu a menina perguntar. O vento voava manso e quente por sobre a casa do avô, sobre o sítio. A Lilás, cobrou: - Eles, os hóspedes, caíram em tentação, vô? Que pen-saram diante de tantos luxos e circunstâncias? O palácio de-via era estar mesmo decorado com caríssimas obras de arte do mundo todo, é? Peças de ouro, tapete vermelho, dragões da independência, hein?! E as paisagens com montanhas e praias ao redor e ali por perto? - Está com receio por eles, é, querida Lilás? Veja só. Durante o dia comiam do bom e do melhor. Frequentavam a piscina, a praia, o parque. Conversavam com as princesas e com o príncipe. Iam a passeios pela orla marítima, subiam nas montanhas que olham a vista da cidade, corriam até a floresta da Tijuca, desfilavam pela cidade em carruagem aberta, visitavam igrejas folheadas a ouro, tiravam fotos sentados nas muretas das pontes, tomavam sorvete na calçada de ondas, escalavam o Corcovado, tocavam no Pão de Açúcar. E à noite, altas festas, com carnaval muito animado, e muitos artistas famosos, badalação, capas de revistas, jogos de futebol, autógrafos de celebridades, etc., festas surpresas, festas de aniversário, reuniões dançantes nos jardins climatizados. - Alá, o Esmeraldino, estava vendo tudo isso. Deus estava vendo tudo isso. Tupã não deixaria de ver tudo isso. - Ora ora! Imagine se Deus perderia seus filhos predi-letos e divinos de vista! Por nada desse mundo, netinha! Ele, garanto, ainda tava era mesmo rindo e muito. - Porque já devia ser mesmo outro dos testes para os meninos e a menina. Aposto nisso. - Mas bah, tchê, guria! Sem sombra de nenhuma dúvida. - Avô, me diga o nome das filhas e filho do imperador Pedro II com a imperatriz Teresa Cristina. - Uma que eu sei era a Isabel. Havia mais duas, agora.

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Ah, já sei. Havia a Leopoldina e a Clarissa. Havia o príncipe Pedro José Antônio Carlos João Manoel Ricardo Maria Es-têvão Miguel Portugal de Alcântara Aragão e Bragança. Por aqueles dias eram essas três e esse um. - E os meninos gostaram das namoradas? E a menina gostou do príncipe? Foram e se apaixonaram? Trocaram beijos, claro. Trocaram telefones e selfies e endereços. - Os meninos gostaram, olharam, trocaram lá um que outro beijinho, agradeceram e vieram embora. A menina fi-cou na dela, deixou que o príncipe pegasse na mão e olhe lá. Sabe, sempre fica um pouco de perfume em quem entrega orquídeas, em quem pega orquídeas, em quem vê orquídeas. Na segunda-feira pela manhã, para decepção do imperador, da imperatriz, das princesas e do príncipe, os quatro divinos puxaram o carro e voltaram pra casa. É que os meninos e a menina, no fim das contas, sabiam que a missão deles era mais importante que pensar em curtir longas festas, longas férias. Como filhos de Deus, como divinos, tinham uma missão maior. Maior que todas. Uma missão pra lá de Bagdá. Uma missão total, internacional, universal, eternal. Uma missão de esperança no futuro, no futuro. Uma missão, enfim, pra não sobrar mais nada, pra não faltar mais nada. - A missão de cada um era ser Deus como o próprio Deus-Pai? - É isso mesmo. Cada qual se tornaria um Deus no futuro. Um Deus, uma Deusa de esperança para o povo. E serem exemplos perfeitíssimos de bondade e paciência e tolerância e condescendência. De fazerem milagres sérios e necessários e pontuais e memoráveis. - Voltaram pra casa direitinho, e bonitinhos. - Pois é. Voltaram à rotina normal e espetacular de aprendizes de deus. - Vô, então, me explique o que são a beleza, a felici-dade, o amor e a amizade.

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A guria Lilás foi bater o ponto. Visitar o avô era sua melhor ideia na tarde de sol, pelas tardes de sol. O avô ainda estava lá por dentro. O avô tossiu arras-tando as chinelas de couro preto fechadas na frente, assim assim. O avô apareceu e se sentou na cadeira de balanço de vime. Suspirou sentou olhou, a menina comendo uvas brancas, olhou o céu azul, etc, barba por fazer, óculos de grau caindo na ponta do nariz. Sol forte acostumado com azul. Lá do outro lado lá longinho, o encontro de guamirins angicos paineiras etc jerivás imburanas-de-cambão jequiti-bás-de-agulheiro caxindubas fazendo um capão de mato. O mês tinha um apelido, janeiro, a semana uma filha, terça-feira, a filha olhou a idade, umas dezesseis horas e vinte minutos. Pois o que não se faz no sábado domingo se faz na segunda-feira, e se espera.

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O tempo parecia passar depressa. Mas o tempo passa como bem entende. O vento é dono do tempo? Esse vento que levava para pastar algumas nuvens irregulares esque-cidas nos cantos do céu azul-claro. O vento que passava sobre a chacrinha do avô da menina Lilás. O vento e o rio são parentes. O vento veio primeiro. O tempo o vento o rio são sócios e parentes. O loro Loló telefonava para os amigos de Montanhas: “Oi! Aqui é de Estância, é. Em Estância está muito quente e quentíssimo.” O avô falou ou destravou: - Tupã trovejou, roncou de detrás duma nuvem bran-ca, a seguinte ordem ao seu dileto filho Jesus: “Jesus, vá e construa um trampolim ali no pátio do barraco e mergulhe.” Jesus, claro, ficou na dúvida, muito preocupado e retrucou, e por isso retrucou: “Mas, Pai, ali não há água! Ali não temos uma piscina, um açude, um olho d’água, uma sanga! Ali só há pedras soltas e pó! Por que um trampolim? E, principalmente, por que pular do trampolim?” Deus comandou outra vez com voz grossa de chefe: “Parece que você não entendeu, Jesus. Eu estou lhe mandando construir um trampolim, construa o trampolim e salte!” Então, Jesus foi fazer o trampolim para ele próprio saltar no seco. - Contra a vontade, né?! Talvez já ressabiado, e já sa-bendo que ia se esfolar todo. - Com a ajuda dos irmãos, Jesus arrumou taquaris e galhos e cordas e uma prancha até concretizar o trampolim. Concretizou o trampolim. Um elefante branco. - Elefante branco ou trampolim, vô? - Os dois num só. E acho que tinha a altura de um prédio de quatro andares. Então, quando Deus viu, espiando lá de cima, que o trampolim já estava prontinho, Ele falou ordenando: “Jesus, agora já que construiu o negócio todo você vai lá no topo e pule, mergulhe, se apinche. Pule como se pulasse numa piscina cheia de água, como se pulasse num açude, como se pulasse num colchão de molas, num

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colchão elástico. Pule de ponta cabeça como se pulasse de bung jump.” - Nossa! Jesus se arrebentaria todo! E Jesus aceitou arriscar? - Aí, Jesus ficou preocupadíssimo. Mas foi, era uma ordem, teve que se resignar e ir. Se despediu do irmão Curu-pira, se despediu do irmão Buda e se despediu da querida irmã Sheherazade, a esmaltosa. Sim, porque ele Jesus pen-sava que ia mesmo morrer e se separar dos irmãos. - E quando ele chegou no alto, vô, e olhou pra baixo? Será que sentiu um frio por todo no corpo, vô? Um arrepio que começava nas pernas e vinha subindo? Quatro andares é o bastante, vô! - Devia ser abichornante. Era duro, mas era queijo. Bem, aí então, Jesus pegou, olhou o céu, deserto àquela hora da tarde, se encheu de coragem até onde pôde, estufou o peito magro, respirou mais fundo, encheu o peito e se jogou, lá de cima, como se mergulhasse numa piscina, como se pulasse no sofá da sala, como se pulasse na cama, como se pulasse num monte de pasto seco. Um monte de feno sem feno algum, é claro. Assim quis Alá. - Pra que maltratar com o menino? Pra que esses tes-tes perigosos? Pra que fazer testes, estudar, vencer na vida e ser a primeira? Por que arriscar perder? - Assim, então, Jesus se pinchou de lá e caiu, tofe!... no chão, levantando poeira. Se quebrou todo. Quando a poeira baixou, os irmãos recolheram Jesus. Jesus estava com um calombo no queixo, escorria baba da boca, estava tonto do solavanco, desmaiado da pancada, aniquilado pelo vexame. - Mas, pra compensar, os divinos são imortais e não sentem nada nada. Foi mais ou menos um susto, só um susto. - Foi mesmo. E vinte dias depois, mal cicatrizado, Jesus foi e viajou à floresta de taquaras onde vivia em retiro o seu padrinho predileto, o senhor Confúcio. Chegando lá, Jesus

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lhe contou a história e lhe pediu explicação e conselho. Confúcio nem abriu a boca. O padrinho Confúcio não disse meia água. Nem mímica. Nem música. Nem linguagem dos sinais. - Não disse nada nada? Nem para consolar o menino divino? - Pra falar sério, Confúcio só fez assim, uma espécie de riso amarelo e silencioso... Olhou os próprios nós dos dedos, a palma das mãos, a sola dos pés. E mais nada nada mais, é. Nem ficou olhando as cicatrizes do menino divino. Confúcio não foi nada carinhoso com seu afilhado predileto. Não foi carinhoso, aparentemente. - Vovô! O que é o presente? E o futuro? - Para ter futuro é preciso ter presente. Para ter presente é preciso ter passado. Tendo passado você terá presente e futuro. Que presente você gostaria de ganhar no aniversário? - Eu quero ganhar de presente... uma viagem até Fortaleza, ou Belém, ou Oiapoque, ou ilha Itacuruçá. Lilás era uma menina que adorava andar no sol das manhãs, tomar sorvete, dizer coisas atropeladas, subir em árvores e agarrar as frutas, viajar de trem, conhecer o zoo-lógico de Sapucaia do Sul, navegar no Guaíba, folhear livros de dinos, procurar lagos e lagoas na internet. Lilás, como sempre, gostava de ir aos domingos no sítio do avô. Subia em árvores, comia laranjas, cajus, abios. Ela gostava do sítio, que tinha muita jabuticabeira e araçazeiro e guabirobeira. As pitangueiras eram perto de um pequeno açude. O açude tinha uns peixes incidentais que, de vez em vez, cruzavam por dentro da transparência da água, charutinhos, bagres, traíras, lambaris, cascudos. O asno Tapiti, esfregando a barriga no pé-de-bugre, zurrava, zuoooh!... triste-alegre. Depois de cheio o pantufo, depois de bem alimentado, a preocupação lá dele já passava. - Por que Tapiti ri e chora ao mesmo tempo, vô?

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- Porque tem dó de mim, dó de ti, etc. - Dó?! Dó ré mi fá lá si dó? O céu não segurava nenhuma nuvem naquele exato momento. E o avô se lembrou. Uns passos à frente, menina e avô, podiam ver e ouvir a azedinha cheirando com suas frutinhas amarelas. Três quatro cinco curicacas tagarelas tagarelando cruzavam o espaço aéreo da chácara, todas com os seus próprios bicos amarelos e longos e curvos. O avô, pregou: - Naquele dia, Alá gritou para Buda, chamando-o: “Buda, meu filho!” E Buda correu a atender. Tupã lhe disse, sempre sumido entre nuvens: “Vá à vila e me roube dois quilos de pequis maduros.” Buda ficou perturbado, com uma enorme interrogação no alto da cabeça. Deus reafirmou a ordem: “Vá e roube dois quilos de pequis maduros!” - Roubar não é legal, né, vô?! E por que Deus e Pai inventa essas pegadinhas pros seus diletos e divinos filhos, hein?! Ah!, já sei, os tais testes. - Então é. Mesmo assim, e até por isso mesmo, Buda teve que ir. E foi. E chegou ao mercado Ver-o-Peso. Procurou pelos tais pequis maduros. Olhou de ponta a ponta aquelas muitas barracas. Encontrou as frutinhas descansando numa caixa de madeira e mandou pesá-las uma quantia. Quando foi naquela hora de pagar, Buda agarrou os dois quilinhos de pequis e disparou, saiu correndo sem olhar para trás. O lugar era sempre muito frequentado, um formigueiro humano em meio de variedade de amostras de mercadorias e cheiros. - Pernas a todo vapor, né?! Fugiu pra onde, nesse tumulto? - O comerciante apitou lá um código deles feirantes e então toda a feira ficou pra pegar o gatuno. Que que é isso! Pobre Buda, ficou cercado. Veio a polícia. Buda ten-tou se esconder numa igreja triangular. Foi visto entrar e a polícia cercou o prédio. Buda teve que se entregar debaixo

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do maior vexame e debaixo da maior vaia. Antes e durante a operação, nossa! como levou de empurrões, e de não sei o quê. A polícia o deixou duas horas, quase um dia, a ver o sol quadrado, aprendendo a jogar xadrez. Buda até chegou a vomitar. Uma vergonha. - E por quê? Somente por causa de um teste patriarcal e altíssimo. - Buda foi solto e naquele dia seguinte. E foi tirar um tempinho lá debaixo do seu umbu centenário. Ali tentou tirar uma soneca. Não pôde. Tentou conversar consigo mesmo e só saíram desculpas esfarrapadas. Seu coração grande e bonito estava cheio de remorsos, frustrações, vazios e questões irrespondíveis. Pegou, se ergueu e foi visitar seu padrinho predileto, o Brama. Contou o caso ao padrinho, foi contando tintim por tintim. E esse gozador riu, rã rã rã!... ri ri ri!... eh eh eh!... ah ah ah!... Até vomitou, de tanto que riu às custas de Buda. - Que estranho, né?! Rir tanto e sem cabimento da péssima sorte do afilhado. O padrinho Brama, padrinho esse lá do Buda, entendia de aconselhar futuro? - E olhe que era o afilhado predileto, imagine se não fosse. Mas Brama era assim mesmo. Já era assim antes do mundo se formar e adquirir esses mistérios todos que andam por aí. Brama não mudou de lá pra cá. E Buda também quase já o entendia perfeitamente. Buda, quer saber?, já gostava muito do seu dileto padrinho Brama. Aí, o avô olhou seus petrechos de chimarrão, não viu. A Lilás olhou o De Flecha quase parando ali na grama do pátio, nem te ligo. O avô olhou o clima no tempo da tarde, bocejou. A menina olhou o avô, ajeitou com a mão os cabe-los e tascou: - Por que o universo não tem pé nem cabeça, ou seja, vô, não tem fim e não tem começo? - Eu queria responder e não respondo. Eu queria sa-

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ber e não imagino - disse, meio chateado consigo mesmo, e chateado com a dúvida. - E por que o universo é enfeitado no ar? Tipo assim como com bolas de cores pendentes dos galhos da árvore de natal? Aliás, não concordo! - Vai saber um dia? - respondeu perguntando o avô. O avô mandou um recado, um pedido, um faz favor para o interior da casa. Pediu mais água quente para o mate- amargo. O gavião-carijó guinchou circulando no espaço, o bem-te-vi noticiou, as tesoureiras se prepararam para a guerra, Coronel avisou a república. Logo chegou uma garrafa térmica cheinha. A vaca malhada Vaquinha saiu andando e provando e mastigando as folhas perfumadas da pitanguei-ra. E o avô continuou a contar desse jeito assim dele: - Pelo ano mil, então, Deus apareceu com sua voz po-tente lá por trás da nuvem de ouro. E trovejou, e ribombou, e reboou, e atroou, e tronou esse recado para a caludosa Sheherazade: “Minha filha! Vista-se de penas, e empreste penas de garça-branca, asas de pato-do-banhado, pés de tachã, bico de colhereiro e se prepare para voar. Preparada? Aí, então, voe!...” A calmosa Sheherazade não entendeu, é claro. Ficou na dúvida e olhou em volta. Olhou os irmãos que também perdiam os sentidos e direções, perdiam o sossego. O irmão Curupira opinou: “Tupã, o trovão, quer ver se você sabe nadar no azul do céu, talvez.” E o irmão Jesus: “Nosso Pai quer saber se você tá pronta para sair de anjo no fim do ano, quem sabe.” E o irmão Buda: “Alá pretende testar teus pulmões, acredito.” Mas tudo isso só acelerou o coração da pequena sorrisosa Sheherazade. E ela respirou fundo para poder, tum! tum! tum!... engolir a emoção. - E Sheherazade, a econômica, obedeceu, claro?! - A meninosa Sheherazade fez o que lhe foi ordenado pelo Superpai. Pegou e se empenou, pegou e se encheu de apetrechos de voo, pegou e se asou, pegou e calçou os pés

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de pato da tetéu e pegou e se preparou para voar. Bateu asas e tentou. E tentou e bateu asas até cansar muito. Doí-am os braços, acha o quê! E tentou tentou bastante. Foi daí para o capãozinho e escolheu uma árvore bem grande. Uma massarandubeira? Era um jerivá. Uma taperabá. Subiu bem no alto. Uma paineira? Olhou de lá de cima e teve um pres-sentimento. Se preparou para pular, ou para voar, ou para agradar ao seu Pai Todo-Poderoso. Pulou e tentou bater as asas... Caiu de bico aberto no chão, taque!... - A atentosa Sheherazade achou o seu fim? Achou o seu início? Teve certeza absoluta que era imortal e divina? - Como foi fácil adivinhar, Sheherazade, a tatuosa, era muito mais pesada que o ar, na ocasião, e chegou ao solo com desvantagem pra ela. Sim, descobriu que era dura de morrer. Que as partes doíam. Descobriu que ela e seus irmãos eram imortais, mas ainda não faziam milagres. - Imortais. E ainda são até hoje, garanto. - Eu não disse? Com certeza, Lilás. Daí, mesmo assim, a tranquilosa Sheherazade ficou desconsolada e emburrada. Não falou com mais ninguém por duas horas. Aí, subiu ao seu predileto telhado de sapé ou santa-fé para repensar a vida esportiva que levava. E logo logo aproveitou e foi trocar confidências com sua madrinha Iara. E as duas trocaram um diálogo no oco do jequitibá antigo, perto dum rio comprido. A madrinha Iara contou uma história do tempo que os animais viviam no potreiro do céu... do tempo que as pedras tinham coração... do tempo que os filósofos empinavam pandorgas... do tempo que as zabelinhas brincavam de esconde-esconde entre os aguapés... do tempo que o vento não media o tempo... do tempo do teatro na praça... do tempo do brinquedo do pula-corda... E quando contava as suas histórias, durante o contar de suas lendas, a madrinha Iara botava o olhar no sem fim dos pontos e não parava mais. Para além do rio Araguaia e algumas montanhas brancas ou

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azuis do país... Numa região recortada de rios bons, existia pequeno país que era governado por um cacique enfeitado de penas de harpia, armado de tacape, justo, poderoso, chamado...

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Quinta Parte

A Lilás chegou e já foi se sentando no banquinho de três pernas. Muito junto do avô. Cotovelos nos joelhos e mãos segurando o rosto. O sol forte. Chuva não vinha. O vento soprava o que podia. Nuvem com cara de caravela, nuvem com cara de música, nuvem com cara de formiga, nuvem com cara de dinossauro. O melhor e mais bonito eram nuvens com cara de bicho doméstico cachorro gato pato galinha. Lilás menina doce, o azul do dia, chamados de joão-de-barro. Passeriforme, a ave olhava de lado, o dançador- de-crista mirava revirando a cabeça, observando de soslaio. Desfilavam nuvens incríveis de outro planeta de outra galáxia. Vovô fez com o dedo e soprou, psiu!... para a menina Lilás. A menina viu e escutou, obedeceu. O avô fez que reparava uma coisa no ar com o ouvido. Escutaram: era

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uma belezinha de casal de canários-da-terra que cantava. Um canto de sabor de mel de abelha no verão. E a menina Lilás escutou, gostou. E o casal de aladinhos voou de mãos dadas por ali no terreiro. Se passou um tempo de passa-rinho. Se jogaram no pó do terreiro muito descontraídos e íntimos. Aí, o casal foi cantar e namorar noutra freguesia. Ajudado pela família, Coronel ciscava as folhas secas debai-xo da laranjeira vermelha. O avô pôde continuar o reconto: - Um dia o anjo-correio apareceu de surpresa na palhoça dos três meninos irmãos e da menina irmã e ordenou, dando um recado que era, claro, de Deus: “Vão ao leilão de gado vacum e lá arrematem o bezerro.” Os irmãos perguntaram de bate-pronto: “Que bezerro? Por que um bezerro? Para que um bezerro? Não é um terneiro?” O anjo não disse mais nada. Pegou e sumiu, pife!... no ar. Desta vez nem se dignou voar, de tanta que era a pressa. Se teletransportou, se pulverizou, se evaporou, ou sei lá, num passe de mágica, para o cosmo azul de cima. - Uma reticência... Então, outro mistério enigmático. - Então, eu digo: pois é. Aí, os três irmãos e mais a irmã foram lá na exposição agropecuária de Esteio e arremataram o bezerro. Um bezerro que eles acharam legal, que lhes pa-receu bom, que podia ser um bicho de estimação, por acaso. Custou todo o dinheiro que levavam, que não era lá muito, talvez quase nada, seus dinheirinhos. E o terneiro veio junto. E o bezerro foi tratado com zelo e admiração e pão-de-ló. E o bezerro estava em idade de crescimento. Virou um touro de estimação, um touro alado do bumba-meu-boi, um touro encantado da lenda. Uma manhã os irmãos e a irmã acor-daram e... que dê o tourinho chimarrão? Havia sumido. É ou não é uma maravilha?! Assim quis Alá, o Magnífico. - Não tinha nome o tourinho chimarrão, vô? O tempo passou assim depressa, como um foguete a jato? - Um nome... acho... não sei ao certo... O nome mes-

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mo dele era Garantido, talvez. Garantido o nome, vermelho a cor do pelo. E assim tiveram que procurar o paradeiro do boizinho, ora. Lilás já teve ou gostaria de ter peixe de aquário? Pei-xes emplumados, com penas leves, verdes, vermelhas, azuis? Peixes da Amazônia, dos rios ou igarapés? Peixes que fazem voltinhas no aquário, que fazem beicinhos, que dão adeusi-nhos, pintados de cores metálicas, transparentes, luminosos e que comem poeira? - Avô. Noite passada que sonhei que era uma árvore plantada. Que árvore? Ainda não sei. Não me lembro direito, não percebi direito, não olhei direito pra mim lá na hora. Só sei que eu era uma planta das grandes e altas. Plantada aqui mesmo no quintal do nosso pátio. Talvez uma pitangueira, uma ituá, uma pente-de-macaco, uma aroeira. E os passari-nhos felizes vinham pousar e repousar e pousavam nos meus braços. Bicavam e comiam os meus cabelos. Aí, começou uma chuva, passei frio e o vento que vinha de lá, da banda de lá... O avô sorvia o chima, cada sorvo bem quente e me-dido, olhava a paisagem, na boa. Prosseguiu na sua própria história contada. Gavião-belo rondando o espaço, a sombra correndo no chão. Loló mandava uma telemensagem aos caras de Arapoema: “Oi! Aqui é de Mar Vermelho, é. Em Mar Vermelho está muito quente e quentíssimo.” O avô contava o causo: - O boi sumira e não dissera para onde. Buda, Curupi-ra, Jesus e a silenciosa Sheherazade, os três irmãos e a irmã, saíram a procurá-lo, procurá-lo. - Mas é um mundão sem porteira... Um mundo que ainda não foi feito, vô! Um mundão que Deus dá! - É ou não é uma maravilha?! Justamente. Pratica-mente. Eternamente. E percorreram muitos países, viveram mil e uma experiências, cruzaram os oceanos, os hemisfé-

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rios, as latitudes, as longitudes, as altitudes. Foi difícil e ao mesmo tempo proveitoso. Cruzaram pontes famosas. Cru-zaram pontes famosas de rios famosos. Cruzaram pontes famosas de rios famosos que banhavam cidades famosas. Cruzaram pontes de rios que banhavam cidades em países famosos. Deus assim quis. De repente voltavam uma ponte, voltavam um rio, voltavam uma cidade. Voltavam uma ponte, voltavam uma montanha, voltavam um país, voltavam uma noite, voltavam um continente. E dispararam nas planícies disparadas, fugiram em serras, montanhas, montes, coxilhas, vales, peraus... Seguiram estradas, várzeas, cursos de rios, trilhos de trem, trilhos de preás, canhadas, passos... Dormi-ram em dormitório na ilha de Itaóca... Subiram o pico 31 de Março na serra do Imeri... Desceram em gaiola o rio Tarta-rugalzinho... - Quanto tempo? Mil e um dias? Mil e uma noites? Cem noites tapuias? Que esperanças no futuro? Foram a pé, ôni-bus, trem, a cavalo de pelo tordilho, avião a jato? - Quando se anda, quando se viaja, quando se anda caminhando procurando, na verdade verdadeira, estamos lendo o nosso futuro. É assim que se lê o futuro. Esperança e futuro são duas coisas numa só viagem pela estrada. - Salvar o boi Garantido era salvar o mundo? - O infinito do mundo. E os meninos e a menina, nessa lida de procurar o boi Garantido, passaram certo dia pelo país das borboletas. Só havia por lá borboletas. Podia escolher. Tontas e zonzas e leves. De todos os tamanhos e cores. Era um país em festa de borboletas. Nem te conto. Borboletas pra dar e vender, todas na maior santa da paz, se sacudindo no ar. Borboletas de estações de verão, de inverno, de outono, de primavera, noturnas e diurnas. Muita panapaná. Borboletas escondidas do vento, pinicando flores coloridas e cheirosas, voando quase em zigue-zague, inven-tando bordados no ar. Beira de rio entupido de borboletas.

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Cidade só de borboletas. Presidenta ou rainha borboleta, governadora borboleta, outras funcionárias públicas borbo-letas, borboletas adultas, borboletas crianças, borboletas cantoras, borboletas fazendo tricô na varanda, borboletas jogando voleibol na quadra da praça, borboletas medicando borboletas, borboletas comendo terra salgada. Primavera de borboletas. Aniversário de borboletas. Casamentos de borboletas. E muitos jardins e campos regados a flores para que as borboletas pudessem beber e se deliciar com o mel de cada dia, com o néctar de cada manhã, com cada raio de sol de cada dia de sol. - Encontraram o boi Garantido? - Claro... que não. - E nenhuma borboleta deu notícia da passagem do boi da esperança? - Mais ou menos. Não tinham certeza. Borboletas têm olhos nas asas, e esses olhos não foram feitos para olhar, mas para enganar quem pensa que são olhos para olhar. - Os meninos e a menina prosseguiram na procura? Os meninos eram teimosos? A menina era modestosa? - Exatamente. Pegaram a estrada. Tentando seguir uma pista, ou a intuição, o mapa da mina. O que não era fácil. O que não era nada fácil. E a estrada era sempre longa, o horizonte sempre no fim da paisagem, e a estrada sem-pre com mania de grandeza. Estrada morro acima, e morro abaixo, se esticando como pescoço de rio-cobra. - Eram meninos corajosos e iluminados. E mais uma menina bonitosa e divinosa. - E olha, Lilás. Um belo dia de setembro ou outubro ou novembro ou primavera, chegaram ao país das jabuticabei-ras com jabuticabas prontas. É, jabuticabas negras e pretas e tentadoras. Jabuticabas com cara de olhos pretos. E só havia muito pé de jabuticaba. Jabuticaba madura, lustrosa, e esteja certa. É, jabuticabas aos gritos, aos berros, aos re-

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linchos. Pés de jabuticabas de ambos os lados da estrada. Então, primeira coisa que os quatro arteiros pensaram em fazer, e já foram fazendo quase sem dar tempo de pensar? Eu pergunto e respondo, neta Lilás. Eles todos já na correria se pincharam pra cima dos pés de jabuticabas. E foi diverti-do. Ou ainda mais gostoso. Eu digo que foi saboroso, e fico satisfeito. - No país das jabuticabeiras e jabuticabas só havia jabuticabeiras e jabuticabas maduras e doces caindo pelo gramado? - Sim senhora, Lilás. No país das jabuticabas, hum!... toda a floresta se povoava de jabuticabeiras. Floresta um jabuticabal. E eram antigas, novas e anciãs. Todas carre-gadinhas dos pés à cabeça, das raízes à copa, enfeitadas no tronco e nos galhos. Ainda no país das jabuticabeiras e jabuticabas acontecia a festa da jabuticaba com mil doces e comes e bebes feitos de jabuticabas. E havia um prêmio especial para quem encontrasse a melhor jabuticaba, a mais doce, a mais brilhante, a mais preta, a mais exibida, a mais perfeita, a mais maior. - Perguntaram pelo boi Tatá? Pelo boi Barroso? Não, digo o boi Garantido? Perguntaram os meninos e a menina pelo boi Garantido desaparecido ou fugido ou colorado ou perdido? - Os viajantes chegaram para a rainha da floresta das jabuticabeiras, e que era uma enormíssima jabuticabeira, dava todas as maiores jabuticabas da estação, e indagaram, assim: “Realeza! Sua Saborosa teve notícia da passagem de um novilho, quase touro, um brasino, mais conhecido como boi Garantido, por estes seus domínios reais e jabuticabais?” E o que a rainha das jabuticabeiras respondeu? Respondeu isso, assim: “O Rio de Janeiro faz muito calor. O Vitória faz muito calor. O Curitiba faz muito calor. O Brasília faz muito calor. O Rosário do Sul faz muito calor. O Barra do Corda

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faz muito calor.” E os meninos e a menina se entreolharam sem entender, na verdade. - Diz sério, vô. Que código ou anticódigo era esse? - Linguagem lá das jabuticabeiras moradoras no país jabuticabal das jabuticabeiras carregadas de jabuticabas. Avô apreciava o ar livre, o céu da tarde caminhando devagar e quase parando, etc., e o verão, os desenhos do dia, a folia das andorinhas, das corruíras, dos enferrujados, dos caminheiros-de-espora, dos porangas. Temperatura ambiente em torno dos 30° centígrados. Avô com ideia leve na cabeça, pensamento leve como coisa qualquer bem leve, pluma ou sonho de passarinho. A menina teve um súbito pedido ou uma dúvida urgente: - Havia templos, igrejas, lugares consagrados, sítios arqueológicos, ruínas jesuítas abandonadas lá pelo caminho missioneiro do quarteto? - Hum... Ah é! Agora que a princesinha lembrou... Pois é. Aí, se passaram mês e tanto eles andando sob o sol e sob a chuva. E os quatro foram sempre andando muito mais. Viram até disco voador e bicho de três olhos, bicho de três cabeças, bicho falante, árvore falante. E os divinos mesmo falavam, diziam e sempre acertavam. Por dias e dias. Dia que fazia um sol, dia que era quase noite de tanta chuva. Então, pararam na escadaria de um templo e se sentaram. Olharam em volta. E inventaram pedir, ao povo que passava e não olhava, uma coisinha pra comer, qualquer coisa, qualquer pão seco, qualquer arroizinho soltinho, uma pamonha, um cartucho de amendoim torrado, um beiju, um pé de moleque. E aí comeram até fartar. Comeram um arroizinho soltinho com batata-doce e aipim e abóbora. E pode-se dizer que isso tudo não era nada demais nem de menos. O avô escutava o arvoredo, ginjeira-da-terra, embira, embaúba-da-mata, pixuna. A menina Lilás escutava a tarde solta no vento. O avô voltou com comentários. Antes a

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menina destravou: - E os viajantes federais passaram por mais continen-tes, países e aventuras? - Passaram pelo país dos saguis-de-duas-cores e os saguis-de-coleira e os saguis-caratinga, onde só havia saguis-leõezinhos. E passaram também pelo país dos macacos-aranhas, onde só havia macacos-aranhas. E passaram pela terra das águas dos peixes-bois, onde só havia peixes-bois. Cruzaram o país das cunhantãs, onde só havia cunhantãs preocupadíssimas em casar na noite de lua cheia. E muitos países e muitas terras e águas, quer saber. Havia o país das noites intermináveis povoado de morcegos de olhos cegos e corujas de olhos acesos. Havia a noite nos países intermináveis povoada de ruídos de grilos e ruídos de sapos-martelos e latidos de lobos-guarás. Terra esta de noite pesada e fechada e sem fim. Assim quis Alá. E o futuro não tem um ponto onde começar, e a esperança não tem um ponto onde findar. É ou não é uma maravilha?! Jandaia tossiu na escada do alpendre, tossiu outra vez, saiu correndo para trás da casa e não voltou tão cedo. Loló se espantou com aquele engasgo da cadela e telefonou para os seus tios lá de São Bento do Sapucaí: “Oi! Aqui é de Lagoa Vermelha, é. Em Lagoa Vermelha está muito quente e quentíssimo.” De Flecha dormia seu sono da tarde. Tarde, boa tarde, a mesma que já dava sinal de cansada também. O avô retomou o pé na estrada da história: - E um dia chegaram ao país dos escorpiões. Para lá do parque do Jaú. Maravilha o país dos escorpiões. Um perigo andar pelas estradas e ruas e cidades desse país. Os escorpiões são bichos muito simples, mas mortais. Apesar dos irmãos serem filhos de Tupã, e todos muito imortais e divinos, não calculavam vacilar com esses aracnídeos. Não ficaram mais de meia hora no país dos escorpiões. - Tomaram muito cuidado, espero. Andaram na ponta

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dos pés. - Os escorpiões são perigosos e também muito justos. Só atacam quem pisar na cabeça deles. Estão representados no céu, numa constelação de estrelas de diamante. Coisa finíssima. Coisa antiguíssima. Coisa altíssima. Coisa cosmo-síssima. - Os escorpiões têm asas? Vivem de quê? - No país dos escorpiões os escorpiões são escorpi-ões sem sorriso. Dormem debaixo de pedra. E no país dos escorpiões não há cachorro, gato, tartaruga e automóvel. Tudo o mais existe e alcança. - Avô. Por que o céu não cai sobre nós? - Por enquanto vai ficar assim mesmo, é melhor. É que o céu e o mar são dois irmãos diferentes e muito bem. Tomara que continuem assim, cada um no seu mundo. Uma vez foram irmãos e parentes próximos. Hoje se separaram por “n” motivos. Foi algo enigmático, mas acabou tudo bem como está. Foi melhor assim. Foi melhor pra todo o mundo. Valeu a pena. Deixe estar. O avô e a Lilás, olhando o céu, podiam ver que as andorinhas estavam muito agitadas àquela hora da tarde. Talvez por ser de tardezinha. De fato vinha caindo ou entrando no ar, tocada por um vento ralo, a tarde lá do outro lado do tempo ou do morro. A mesma tarde que emocionava a Jandaia. Avô devolvia contando: - Havia escorpiões que trabalhavam durante o dia, os outros trabalhavam à noite e recebiam adicional noturno. Havia escorpiões, poucos, alguns, muito neurastênicos, que mastigavam as próprias mãos. E os meninos e a menina, com muito cuidado para não pisarem na cabeça de nenhum cidadão cidadã do lugar, foram saindo de fininho. Sem es-quecer de perguntar aos escorpiões, meio de longe, é claro, se eles tinham visto passar por ali um certo boi assim e... assim mesmo, que estava perdido ou fugido ou corrido ou

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sequestrado ou emburrado. - Os escorpiões viram alguma coisa? Os escorpiões enxergam à noite? Os escorpiões saem de dia para caçar? Os escorpiões gostam de pedras? - Viram ou repararam um talvez. Viram passar um boi alado. Um boi precavido. Um boi Garantido. Um boi assim e escaldado. - Oba! Estou torcendo pros meninos e pra menina. Então, os divinos e a divina estavam no caminho certo. - É, tinham descoberto uma pista. Uma pista aérea, mas uma pista. Não um rasto, mas uma indicação. Assim sendo, prosseguiram na caminhada. Logo pegaram a es-trada poeirenta. Rumo do sul do hemisfério sul, seguindo a estrela alfa do Cruzeiro do Sul. Sem correr porque o sol era muito escaldante, e a lua muito paralisante. - Cruzaram ainda outros países da igualdade, da semelhança, da mesmice, é? Eu gosto de história que tem bicho solto no meio, e muita árvore plantada também, rios descendo pro mar e caudalosos. - Breve chegaram ao país dos pântanos. Era um banha-dão, um alagadão do tamanho do Pantanal Mato-Grossense, ou do banhado do Taim. Um lugar úmido que só quem gosta desses lugares se sentiria bem ali. Uns matinhos de caniços, sarandis, gravatás, cipós com flores amarelas ou brancas, pés de araticuns, taquaras, carazinhos, samambaias, taboas, orquídeas, coqueiros de pequeno porte, aningaúbas, mães d’águas, tracajás, tucunarés, pirarucus, colhereiros, socós--grandes, tuiuius, guarás, gaviões-caburés, maçaricos, sara-curas, ximangos, olhos-d’água, arapapás, borboletas verdes, jaçanãs, cabeças-secas, maruins, moscas-da-abóbora. - Então, havia sortimento de viventes ali no banhadão? - Sobre isso não há dúvidas. E um bando de quero- queros aterrissou. Eles, os quero-queros são aves bonitas e boas e alarmadas. E só falam quero-quero!... Não, ninguém

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conseguiu até hoje domar ou amestrar quero-quero. E os quero-queros não têm nada contra as outras aves povoarem as árvores da beira do alagado. Os quero-queros são gri-tantes, mas conformados. E quase não dormem. - E os meninos e a menina como se viraram para saber informações do boi Garantido e perdido? - Arriscaram chegar perto. Mas, se sabe, os quero- queros são muito desconfiados, e não suportam estranhos na área, e são precavidos. Os quero-queros queriam expulsá-los rapidamente e de todo jeito. Essas aves fazem voos rasantes sobre os intrusos. - Então, os meninos tiveram que correr. E a menina proteger seus escorridos cabelos. - Foi por aí, sim. Foi quase assim. Foi por um fio. Os meninos perguntaram e os quero-queros respondiam, muito brabos, na língua deles que não se entende. E a menina pensou num rastro de boi, quem sabe. - Resultado. Tiveram ideia se o boi passara ou não pelo banhadão. - Mais ou menos. É isso mesmo. Os meninos e a me-nina repararam que pelo barro dos alagados havia umas pe-gadas de boi. Difícil foi saber se era o boi Garantido. Mas só podia ser o boi Garantido. Então, tiveram certeza que eram pegadas do boi Garantido. A menina cruzou os braços, atirou os cabelos soltos para trás e continuou ditando: - Se não fosse o boi dos garotos e da garota... - Se não fosse o boi dos meninos e da menina seria uma perda de tempo, uma pista falsa, seguiriam uma pista errada, dariam com os burros n’água. - Ficariam sem ânimo nenhum. Sentados à beira do caminho. - Pelo sim, pelo não, pelo talvez, seguiram as pegadas. - Havia estalagens, tavernas, tabernas, pousadas,

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campings, cavernas, grutas, lapas, e tudo mais ao longo do caminho? - Hum... Está claro que hotéis existiam e de todo tipo de luxo ou sem luxo. E pensões de todo tipo de dinheiro. E resorts de diversos números de estrelas. Poderiam estender a rede de dormir num barracão qualquer e dormir altos sonos, é. E eles se hospedavam em lugares muito bons, obrigado. Lilás, menina comportada, gostava e adorava de ver o sol depois da chuva. Saudades do sol. E amava a chuva, ver a chuva, olhar a água escorrendo dos beirais, correndo nas valetas. Quando chovia, claro. Enquanto o avô mateava e contava a história, Lilás às vezes estava com os olhos aqui, outras perdia os olhos ali, mas sempre por perto e com os ouvidos atentos o suficiente para ouvir a narração. A história acontecia. O limonoso Loló escrevia um e-mail para os de longe lá de Montes Claros: “Oi! Aqui é de Pato Branco, é. Em Pato Branco está muito quente e quentíssimo.” O avô tentou explicar: - Os meninos não descansavam, a menina não can-sava, e não iriam parar enquanto não encontrassem o boi Garantido de estimação. Pegaram novamente a estrada, seguiram então com novo fôlego. - Já tavam muito longe de casa, hein, vô? Quase no futuro? E com que esperança? Já passavam do rio Iguaçu? Já alcançavam a serra do Espinhaço? - Olha, Lilás, nem digo porque nem calculo. E lá fo-ram eles com aquela esperança brilhando nos olhos, com a alma enxaguada, com o coração passado a limpo. Seguiram um dois três dias, uma semana. Aí, chegaram à cidade dos homens e mulheres desempregados. Era uma cidade muito povoada e conhecida. Era uma cidade cercada de arame farpado e muros encimados com cacos de vidro de diversas cores e origens. Uma cidade onde ninguém confiava em nin-

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guém. Uma cidade que se podia entrar, mas não se sabia se se podia sair. Cidade de trânsito engarrafado. Uma cidade que não aparecia nos telejornais e mapas do governo. - Quem mandava nesse lugar, vô? Quem era o rei ou rainha da cocada preta ou branca? - Eram bandos de pessoas desocupadas. - Os viajantes tiveram notícias do boi, pelo menos? Descobriram algum rastro do Garantido? - Por incrível que pareça tiveram notícias do boi. É que alguns dos desempregados já haviam perseguido o boi para fazer um espeto corrido. E até conseguiram arrancar a cauda do boi. - O boi Garantido foi perseguido, é? O boi fugiu deles, é? - Pois os meninos não perderam tempo e se manda-ram. Na estrada olharam o chão e viram marcas recentes de cascos de boi e outros pertences de boi. - Seria do boi Garantido de estimação, com certeza. - Acho que sim. Mas as pegadas do boi mostravam um defeito no pobre do bicho. O boi Garantido, se fosse ele, estaria ferido na pata traseira do lado esquerdo. Talvez com a pata quebrada. E também, aqui e ali, sinais de pingos de sangue. O boi estava em sério risco de vida, parecia. O boi havia perdido a cauda para os desocupados da cidade dos desempregados. O boi tinha a pata avariada. O boi vermelho pingava vermelho. Assim quis a sorte. - Não podiam chegar a tempo de salvá-lo? Saíram cor-rendo para socorrê-lo? Chegariam a tempo? Estavam frios ou quentes? - Aí é que estava o sufoco. Pareciam ser de dois me-ses atrás aquelas marcas. Pensando assim, se apavoraram. Temeram pelo pior. Então, os meninos começaram a correr. E a menina disse, “me esperem!”, e também correu. Estavam já prontos para chorar. É ou não é uma maravilha?! - Eles não mereciam encontrar o boi Garantido todo

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morto, eu acho. - Também acho que não. Quer dizer, achava. Mas quem cuidava de tudo, da sorte do boi Garantido, da história toda, da sorte dos meninos, da sedosa pele de pêssego da menina, e etc, era e é Deus-Alá-Tupã. - Os três meninos acharam o boi morto, não é? A me-nina não quis ver o boi Garantido todo falecido, não foi? - Exatamente. Essa a triste notícia que tenho pra lhe dar, Lilás. Os meninos foram seguindo a pista deixada no chão da estrada, seguindo aquelas marcas, os sinais, os pingos de sangue nos ii. Pelos sinais no chão se via que o boi passara muito sofrido, se arrastando, mancando. Até cair para não po-der levantar. Até morrer. E parou. Agonizou. Caiu. E morreu. Até que a cidade inteira e capital do país dos urubus, que está lá instalada no alto acima das montanhas da serra do Mar, cheirar e ver e vir correndo, migrar voando, e se atirar sobre os restos mortais do boi Garantido. E depois só o silêncio. Du-rante o silêncio um barulho grasnado dos urubus esganados almoçando apressados. Foi isso que os guris e a guria viram, deduziram, interpretaram, adivinharam, pressentiram. - E... então, vô?! Só não foi pior por falta de favor nenhum? - Tudo é pó, exceto Alá, o Judicioso! Lilás, claro, ficou muito sentida com aquele fim trágico da história da aventura do boi Garantido. O avô ainda tinha mais a dizer, como com uma carta de coringa, mais uma coisinha e pronto, uma carta na manga. E foi contando: - Então, os meninos chegaram correndo. A menina chegou correndo quase sem fôlego. E viram só ossos bran-cos no acostamento da estrada federal. Ficaram atordoados de perguntas sem respostas. Ficaram mortos de pena do boi Garantido. Ficaram sem saber sair dessa. Ficaram sem esperança e sem futuro. - Se desconsolaram e caíram no chão?

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- Buda disse para os ossos se juntarem e comporem novamente o esqueleto antigo do boi. E os ossos se junta-ram como tinha de ser, sem nenhuma dúvida. E Jesus deu ordem à carne, aos músculos, aos nervos e ao sangue para que voltassem e alimentassem aquele esqueleto vazio. E foi também muito e rapidamente atendido. Por sua vez, Curupira chamou a vida e disse para ela entrar no corpo do boi ali deitado e tomar conta, bater com o coração, resfolegar com os pulmões. E a vida obedeceu, soprou e estufou dentro do peito e da barriga do boi. E a calorosa Sheherazade contou uma história de um boi Garantido e vermelho que não morria nunca. Uma história para boi ressuscitar. Uma história de boi que mordia a cauda. E contou uma lenda de um boi que era uma festa todo ano. Um boi que renascia para festejar com o povo festeiro. Uma história comum de um boi que virou lenda. Um boi inteiro e vivo e chifrante com sua cauda espanante e tudo. - Eram os milagres que aconteciam, vô! Eram os mila-gres que brotavam, vô! Eram os milagres esperados, vô! - Se eram. Eram os meninos e a menina arregaçando as mangas. E o boi Garantido estremeceu, bateu o coração, estufou os pulmões, abriu as narinas, abriu os olhos bovinos, espanou com a nova cauda umas moscas mexeriqueiras. E o boi se ergueu, vivinho da silva, como se nada tivesse acontecido, pronto pra outra, e ainda teve humor para dizer: “Bem, meninos, grandiosa menina, fiquei muito tempo para-do e agora... agora preciso tirar o tempo perdido, pastar um capim macio e verde. Ou seja, gentes, estou com muita fome de capim verde e frutas doces e flores maduras. E ainda vou brincar muito no fim do ano de bumba-meu-boi ou boi-de- mamão ou boi-de-jacá ou boi-de-matraca ou boi-de-melão ou boi-bumbá.” Lilás parecia querer se emocionar demais. O avô olhou para ela. Coronel sentara na entrada da porta. Jan-

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daia entrava pela porta. A tarde saía, devagarzinho, porta afora da casa do dia do mundo. E Lilás falou: - E voltaram pra casa com o boi vivinho da silva. E o futuro garantido. - Voltaram. E o boi Garantido prometeu fugir de casa e arriscar a própria vida mundo afora. Prometeu porque pro-meter é fácil. E o boi Garantido prometeu fazer festa todo ano num lugar conhecido e limpo mundo afora. Mundo de muitas terras de tizius, muitos países de tamanduás-bandeira onde só habitam tamanduás-bandeira, países de águas onde só vivem botos-cinzentos que adoram bailes altas horas da noite, terras de países de canaviais onde todo o mar é verde em ondas verdes ao som do vento verde. - E o mundo era o mesmo, só mais tarde, né, vô? - Eles, os quatro irmãos, mais o boi, voltaram rindo para casa. Mas todo lugar é a casa deles, agora, a partir daquela hora. E eles riram, caíram rindo, caíram rindo pela estrada e estradas, rolaram de rir, se abraçaram rindo, se seguraram na barriga de tanto rir, riram alto e mais alto, riam porque eram imortais e divinos e milagrosos. O avô descansou a cuia no porta-cuia. Ficou curtindo as cores da tarde. A tarde já ia se recolhendo, pintando as nuvens no horizonte, fechando o expediente dos passarinhos. O horizonte se desenhava de riscos azuis, amarelos, vermelhos. Urumutuns piavam no pinheiral. Uma revoada de estrelas começava a pontuar de olhinhos acesos o alto mais alto. E Lilás ali, aqui, em torno de si. Nem aqui, nem ali, nem lá ou acolá.

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