a origem das palavras

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A origem das palavras

A origem das palavras THAS NICOLETI DE CAMARGOespecial para a Folha de S.Paulo

Como vimos na semana passada, as palavras sofrem alteraes de forma e de significado no decorrer do tempo. Existem vrios processos que do origem a novos termos. Resultado da lei do menor esforo, a abreviao ou reduo um dos mais comuns entre eles.

raro ouvirmos algum dizer "pneumtico" em vez de "pneu" ou "cinematgrafo" em lugar de "cinema", embora sejam as formas originais. Afinal, "pneu" o que se refere ao ar, e "cinema" quer dizer movimento.

"Metr", de origem francesa, reduo de "chemin de fer mtropolitain" (estrada de ferro metropolitana). "Quilo" vem de "quilograma"; "plio", de "poliomielite"; "porn", de "pornogrfico"; "extra", de "extraordinrio"; "Pinda", de "Pindamonhangaba". "Kombi", de origem alem, reduo de "kombinationsfahrzeug" (veculo combinado para carga e passageiros). "Automvel" convive com sua abreviao "auto", que deu origem palavra "auto-escola". Vale lembrar que "auto" (prefixo latino) significa "a si mesmo", mas, em "auto-escola", a reduo de "automvel".

Caso semelhante ocorre com "motoboy", tambm formado a partir da abreviao de "motocicleta" ("moto"), qual se prendeu a reduo do estrangeirismo "office boy" ("boy"), vigente entre ns h bastante tempo.

Em "motoboy", existe a concorrncia de elementos de lnguas diferentes (portugus e ingls), o que faz da palavra um vocbulo hbrido. Embora malvistos por alguns gramticos, os hbridos, alm de comuns, so teis lngua. "Televiso" e "telescpio", etimologicamente, tm o mesmo significado, ou seja, aparelho para ver de longe.

A idia de distncia est contida no radical grego "tele"; "viso", de origem latina, equivale a "scop", de origem grega. "Sambdromo" mistura lnguas africanas ("samba", que "animao") ao grego ("dromo", que "pista").

Em "burocracia", tambm ocorre hibridismo. Do francs "bureau" (escritrio) e do grego "-cracia" (administrao), o termo nomeia a administrao da coisa pblica por funcionrios de reparties sujeitos a rgida hierarquia e disciplina. Burocrtico no sinnimo de lento, embora muitos usem a palavra com esse sentido; a lentido um efeito da tramitao burocrtica.

H palavras que, inventadas para registro comercial de uma marca, acabam adquirindo a fora de substantivos comuns. Foi o que ocorreu com "isopor"(de poros iguais), nome do poliestireno celular rgido, e com "cotonete".

Siglas tambm podem converter-se em substantivos. "Ibope" hoje sinnimo de ndice de audincia e at de prestgio. Essas so provas do dinamismo da lngua, sempre pronta para incorporar o novo.

17/10/2000 - 08h50

Questes de 01 a 05(FEI-JUL) De acordo com o cdigo assinale o significado dos prefixos gregos:a) movimento circularb) composioc) oposiod) anterioridadee) posio superior1 - ( ) antdoto2 - ( ) simpsio3 - ( ) hiprbole4 - ( ) profeta5 - ( ) perfrase

6 - (GV-Rio) Assinale o item em que h erro quanto anlise da forma verbal CANTVAMOS: a) CANT-radicalb) -A-vogal temticac) CANTA-temad) -VA-desinncia do pretrito imperfeito do subjuntivoe) -MOS-desinncia de 1 Pessoa do plural

7 - (CICE) O item em que no h correspondncia de significao entre os dois elementos sublinhados :a) CIRCUNferncia-PERmetrob) SEMIcrculo-HEMIsfrioc) SUBterrnio-HIPtesed) SUPERlotar-HIPRbolee) PROjetar-DIAgonal

8 - (CICE) O item em que no h correspondncia de significao entre o elemento sublinhado e a(s) palavra(s) entre parnteses, :a) ANENOScpio-(vento)b) PentaEDRO-(lado base)c) HOMOgneo-(semelhante)d) MIRIpode-(dez mil)e) PolGONO-(lado)

9 - Numere a 1 coluna de acordo com a 2, associando letra e nmero de acordo com o significado dos radicais gregos.1 - ( ) anemmetro2 - ( ) misgino3 - ( ) etologia4 - ( ) quiromancia5 - ( ) gimnospermaa) costume + estudob) mo + adivinhaoc) nu + semented) averso + mulhere) vento + medidaa) A, E, C; D, Bb) B, C, D, A, E,c) E, D, A, B, Cd) C, A, B, E, D,e) D, B, E, C, A.

10 - Associe as alternativas com os nmeros que indicam os elementos componentes da palavra propostaLOUVSSEMOSI - temaII - vogal temticaIII - desinncia do pretrito imperfeito do subjuntivoIV - desinncia de 1" pessoa do pluralV - radicala) LOUV_____b) A_____c) LOUVA_____d) SSE_____e) MOS_____

11 - Idem - SAPATEIROS

I - sufixo designador de profissoII - desinncia de gnero masculinoIII - desinncia de nmero pluralIV - radicala) -SAPAT_____b) -EIR_____c) -O_____d) -S_____

12 - Numere a 1 coluna de acordo com a 2, associando os prefixos gregos e latinos que se correspondem quanto ao significado:1 - ( ) eufonia2 - ( ) perfrase3 - ( ) sinfonia4 - ( ) anticlerical5 - ( ) hiptesea) circunavegaaob) contempornioc) benevolented) subsecretrioe) contrapora) A, E, C, D, Bb) B, C, D, A, Ec) E, D, A, B, C,d) C, A, B, E, D,e) D, B, E, C, A

13 - (CESCEA) Assinale a alternativa em que aparecem um prefixo GREGO indicador de ANTERIORIDADE;a) Sempre existiram metafricas profeciasb) Dizem que nunca se morre na antevsperac) Tudo no passou de simples explicao perifrsticad) Foi um diagnstico cruele) No sei

14 - Coloque, no espao em branco, o elemento grego de acordo com a definio dada, numerando a 2 coluna de acordo com a 1:1 - ___bulico: SEM vontade ()anti2 - ___stasia AFASTAMENTO da f () pro3 - ___patia, sentimentos opostos() meta4 - ___morfose, MUDANA de um ser () a5 - ___logo: ANTERIOR pea () apoa) 2, 3, 1, 4, 5b) 2, 1, 4, 3, 5c) 2, 3, 5, 1, 4d) 3, 5, 4, 1, 2e) 4, 3, 2, 5, 1

15 - Idem

1 - ___biologia: DUPLICIDADE de sentido() homo2 - ___grama: INVERSO de letras () riu3 - ___ite: inflamao da mucosa () hipo4 - ___glosso: SOB a lngua () anto5 - ___fono: SEMELHANA de sons () ana6 - ___fago: que come FLORES () antia) 4, 5, 6, 2, 1, 3b) 3, 4, 5, 6, 2, 1c) 5, 4, 6, 1, 2, 3,d) 3, 5, 4, 6, 1, 2,e) 4, 6, 3, 5, 2, 1

16 - INSTRUO: Coloque, no espao em branco, o elemento GREGO de acordo com a definio dada1 - ______tansia BOA morte2 - ______fobia medo a LUGARES3 - ______teca coleo de QUADROS4 - ______cracia governo de RICOS5 - ______gamo que s fez UM casamento6 - ______governo de POUCOS7 - ______metro mede CALOR8 - ______latria adorao por ANIMAIS9 - ______pnia DIFICULDADE de respirao10 - ______filo amigo de LIVROS

17 - INSTRUO: Numere a Segunda coluna de acordo com a primeira:1 - pedagogo

() cavalo - carreira2 - panorama

() vento-medida3 - hipdromo () ferro - obra4 - hemoptise () tudo - vejo5 - rinoceronte () estrangeiro - horror6 - siderurgia () pssaro - amigo7 - xenofobia

() povo - que conduz8 - demagogia () nariz - chifre9 - anemmetro () criana - que conduz10 - ornitfilo () sangue - escarro

18 - INSTRUES: Relacione, abaixo, as duas colunas:1 - Pediatria() sol - curo2 - filantropo () mo - obra3 - helioterapia () mundo - vejo4 - hipoptamo () amigo - homem5 - cirurgia () glndula - inflamao6 - adenite () pequeno - vejo7 - cosmorama () gua - temor8 - misantropo () criana - curo9 - hidrofobia () dio - homem10 - microscpio () cavalo - rio

19 - Assinale a alternativa errada na seguinte anlise mrfica da palavra DESORGANIZSSEMOS:a) -mos e-sse-desinncias verbaisb) --vogal de ligaoc) des-- iz-afixos (prefixo e sufixo respectivamente)d) desorganiz-radical secundrio, organ-radical primrioe) desorganiza-tema

20 - Numere a Segunda coluna de acordo com a primeira, fazendo a correspondncia de sentido entre os prefixos gregos latinos:1 - Afnico

() inocular2 - anatomia

() intramuscular3 - anfbio

() demolir4 - antdoto

() translcido5 - apogeu

() superclio6 - arquimilionrio

() extraterreno7 - catadupa

()anbidestro8 - ditongo

() bpede9 - difano () ultramoderno10 - dispnia () malefcio11 - ectozorio () contravenemo12 - encfalo () abdicar13 - endocrdio ( ) desleal14 - epiderme () dissecar

21 - Numere a 2 coluna de acordo com a 1, fazendo a correspondncia de sentido entre prefixos gregos e latinos:1 - Eufnico() super-realista2 - hemisfrio () jultiforme3 - hiperfuno ( ) ante-sala4 - hipoglosso () primognito5 - mesclise () benefcio6 - metfora () adjunto7 - monculo () contemporneo8 - panorama () semicrculo9 - permetro () unnime10 - polgrafo () onisciente11 - prlogo ( ) interpor12 - prottipo () transpor13 - sincrnico () circunferncia14 - paraninfo () subchefe

22 - O elemento mrfico PUSE - Em "PUSRAMOS" se chama:

a) raizb) radicalc) temad) prefixoe) sufixo temporal

23 - Assinale a alternativa, contendo a palavra em que o elemento grifado "O" vogal de ligaoa) oporb) alunosc) cerebrozinhod) cartografiae) fao

24 - Admitindo que no haja desinncia nominal de masculino em "LIVRO ", "TRIBO" etc...por no haver a oposio com um feminimo em "A" (como ocorre em aluno/aluna) que nome teria esse elemento mrfologicoa) Desinncia nominal de singularb) Vogal de ligaoc) sufixod) infixoe) vogal temtica

25 - Assinale a denominao do elemento mrfologico "E"de "CANTEMOS"a) desinncia modo temporal (ou "sufixo temporal" para outros)b) temac) vogal de ligaod) vogal temticae) desinncia nmero-pessoal

26 - Assinale a palavra em que a consoante grifada faz parte da raiz, no sendo consoante de ligao como nas demaisa) bambuzalb) lapisinhoc) cafeteirad) chaleirae) paulada

27 - Assinale o radical primrio de INDECOMPONVEL:a) -indecompon-b) -decomponc) -pon-d) -compone) -ponvel

28 - Assinale o item que apresenta erro no destaque da variante da raiz FAZ-do verbo "FAZER"a) faamos (fa-)b) faremos(fa-)c) fizemos (fiz)d) fez (fez-)e) feito (feit-)

29 - Assinale o processo de formao da palavra grifada na frase "No sei o PORQU dessa tristeza".a) formao regressivab) abreviaoc) reduplicaod) parassintticoe) nenhuma das respostas

30 - Nas seguintes anlises mrfologicas parciais esto destacados os constituintes imediatos e indicados os processos de formao das palavras. Assinale a anlise que apresenta erradamente o destaque e o nome do processo:a) prazerosamente = prazerosa + mente (derivao sufixal)b) descobrir = des + cobrir (derivao prefixal)c) descobrimento = des + cobr(r) mento (derivao parassinttica)d) permalta = pern(a) + alta (composio por aglutinao)e) mandachuva = manda + chuva (composio por justaposio

31 - Idem:

a) enforcamento-derivao sufixalb) empobrecer-derivao parassintticac) tique-taque-reduplicaod) planaltino-composio por aglutinaoe) luso-brasileira-composio por justaposio

32 - Assinale o cognato abaixo de formao regressiva:a) terrestreb) aterroc) terra-novad) subterrnioe) terremoto

33 - Idem:

a) embarcarb) embarcaoc) desembarqued) desenbarcare) barqueiro

34 - Assinale o item cujos trs nomes so formados pelo processo de ABREVIAO (no confundir com a formao regressiva) :a) estranja-foto-atrasob) extra-foto-pneuc) engorda-livro-pneud) cinema-plio-"justa" (= justia)e) cine-pneu-portuga

35 - Assinale a relao HIBRIDISMOS compostos por aglutinao:a) pernalta-fidalgo-embora-auriverdeb) criptgamo-hectmetro-macrbio-siderurgiac) altmetro-sociologia-alcolatra-burocraciad) hiperfuno-autofinancivel-endovenoso-hipossecreoe) sinosite-comunismo-lacerdista-aluminita

36 - Todas as palavras abaixo se formam de radicais gregos, EXCETO:a) antologia, pedagogiab) energia, metalurgiac) homogneo, homologiad) incgnita, nguloe) astronomia, simpatia

37 - Todas as palavras abixo se formam de radicais latinos EXCETO:a) telefone, snteseb) comferncia, itinerrioc) misericrdia, suicdiod) revoluo, sumrioe) aplicar, explicao

38 - Assinale a palavra que no tem prefixo grego:a) eufoniab) permetroc) sinfoniad) arquiplagoe) justapor

39 - Assinale a palavra que no tem prefixo latino:a) cisalpinob) exdoc) ultrapassard) extraviare) emigrar40 - Assinale a apalavra que no tem sufixo grego:a) neuroseb) cemitrioc) relicriod) poetisae) laringite41 - Assinale a palavra que no tem sufixo latinoa) brancurab) solvelc) afabilidaded) gotculae) cristianismo42 - Numere a 2coluna de acordo com a 1, sendo que todos os exemplos abaixo so palavras derivadas;1 - parassinttica2 - prefixal3 - sufixal4 - deverbal ou regressiva() suprfluo() epiderme() combate() burrico() enfocara) 2, 2, 4, 3, 1,b) 3, 2, 4, 4, 1,c) 3, 3, 2, 1, 4,d) 4, 4, 2, 3, 1,e) 1, 1, 4, 3, 2,

POTICA E POIESIS: A QUESTO DA INTERPRETAO

Manuel Antnio de Castro - UFRJ

Caminho: para cima, para baixo, um e o mesmo.Herclito. Fragmento 601

Lesen aber, was ist es anderes als sammeln: sich versammeln in der Sammlung auf das Ungesprochene im Gesprochenen?2

Mas o que ler, seno reunir: reunir-se reunio do no-dito no dito?Martin Heidegger

Vivendo, se aprende; mas o que se aprende, mais, s a fazer outras maiores perguntas.

Guimares Rosa.3

A questo

A interpretao faz parte da nossa existncia cotidiana. Nem sempre nos damos conta de que nossas escolhas e decises se fazem a partir de interpretaes. Elas se processam ao longo do dia, dos anos e da vida, de uma maneira natural. Mas o que a interpretao? Esta a nossa questo. Questionar radica no que h de mais profundo em ns. Nele sabemos e no sabemos, queremos e no queremos. O caminho da interpretao a interpretao do caminho como o no-querer e o no-saber de toda questo. Se j soubssemos o que desejamos na interpretao, no questionaramos. Existir interpretar a questo. Mas o que a interpretao para que nela se d a questo? A interpretao, o questionar e o que somos esto assim profundamente interligados. Por isso, quando tomamos como tema a interpretao, em nossa prpria existncia que estamos pensando. Interpretar nessa dimenso interpretar-se. A questo : O que o interpretar para que nele possa acontecer um interpretar-se? Interpretar-se eclodir no que cada um .

Eclodir diz-se em grego: poiein. De poiein se formaram as palavras poeta, poema e poiesis. E como reflexo em torno do que eclode em todo poiein, se fundou a Potica. a interpretao filosfica do que a arte, isto , o poeta, o poema e a poiesis. E como tal, h dois mil e trezentos anos tem acompanhado as vicissitudes da filosofia e da arte na cultura ocidental. Mas ao lado da Potica filosfica, que pensa as obras poticas por um paradigma que lhe externo, podemos tambm pensar outra Potica, que se origina na dinmica do prprio fazer potico. H, portanto, duas Poticas: a que nos advm na palavra do filsofo e a que nos advm na palavra do poeta, ou seja, nas obras como manifestao da poiesis. Nesta perspectiva, temos um duplo caminho contraditrio. De um lado, a Potica filosfica define o que a poiesis a partir da sua concepo de conhecimento e verdade, de outro, a poiesis que se d como Potica nos poemas dos poetas. Seja na palavra do filsofo, seja na voz do poeta, Potica e poiesis radicam na questo da interpretao.

Para que a interpretao nos fale, no podemos nos ater a conceitos j estabelecidos. Apreender o seu mbito empreender um esforo onde o penhor do empenho se d enquanto sentido de uma livre relao com a prpria interpretao. Comeamos pela sua etimologia. Etimologia no aqui entendida filologicamente, mas no sentido de apreenso da verdade do real enquanto identidade de acontecimento e enunciao 4 (Torrano). A palavra interpretao vem do latim. O substantivo latino interpretatio tem origem na feira, no negcio, na discusso dos preos ou do preo, pretium, face ao qual os interlocutores assumem posies diversas, de onde o inter-pretium5 (Gomes). Estranhamos esse uso no corrente de interpretao. Examinemos, porm, os componentes da palavra: o prefixo inter e o radical: pretium. Inter, quando traduzido por entre, pe em cena o dilogo, o debate em que h posies diferentes. Indica tambm o lugar no qual e a partir do qual acontece o dilogo, o embate. O preo algo mutvel, que se define no decorrer e como conseqncia do dilogo. o valor que est em jogo. O dilogo em torno do jogo do valor se faz a partir do lugar no qual os dialogantes se movem. A este lugar de abertura e possibilidade do debate e embate deram os gregos o nome de ethos. A tenso e relao do entre como dilogo e do pretium como ethos fazem aparecer a terceira dimenso de toda interpretao: o barganhar, o especular. Todo interpretar implica, pois, o dilogo, o ethos, o especular. Especular um verbo comum tanto interpretao comercial como filosfica. E isso no de estranhar, pois a palavra interpretatio a traduo da palavra grega hermeneia, formada do verbo hermeneuein, interpretar: Hermeneuein, hermeneia e hermeneus no dizem, como sempre de novo se ouve, esclarecer no sentido de conduzir uma coisa estranha e obscura para o mbito claro e familiar da razo e do discurso. 6 (Carneiro Leo). A tarefa do intrprete no consiste em esclarecer o sentido da obra, que nela est oculto, mas num desvelar que implica: dilogo, ethos, especulao. Desvelar se diz em grego poiein. A interpretao e a Potica tm em comum, portanto, essas trs dimenses.

A Potica mtica

Assim comea Aristteles sua Potica: Falemos da potica - dela mesma e das suas espcies, da efetividade de cada uma delas, da composio que se deve dar aos mitos ...7. Segundo Aristteles, a manifestao da poiesis como poemas ou poesias se d no mito. Mas o que entender por mito e a partir deste, o fazer potico? Mito foi traduzido por fbula e depois por fico. O mito no um texto cannico ideal, a matria, a partir da qual os poetas dariam forma s obras poticas, em diferentes tramas. Na percepo metafsica do mito, no se atenta mais nem para o vigor da Potica, nem da poiesis, nem da interpretao, e muito menos do mito.

H uma simbiose fundamental entre Potica, poiesis, interpretao e mito. O que o mito, originariamente, para que torne possvel esta simbiose? Mythos se formou do verbo mytheomai, que significa: desocultar pela palavra. ... mythos tem o sentido de palavra divina que se apresenta em forma de palavra humana e que por assim apresentar revela o canto como fonte de conhecimentos relativos ao sentido do ser e s formas divinas do mundo... mythos significa as palavras das Musas Olmpicas, filhas de Zeus egfero 8 (Torrano). O mito aparece como o prprio real se doando como Linguagem na palavra. O real se manifestando como Linguagem a poiesis, o sentido do ser. Por outro lado, o sentido da palavra divina que se apresenta em forma de palavra humana no pode originariamente ser externo ao prprio mito, nem poiesis, nem Potica, nem interpretao. A prpria Potica eclode pela fora do mito. E este atende tanto dimenso da Linguagem divina como dimenso da palavra humana. Di-menso significa o mediar atravs do qual se presentifica o dual do sagrado: o divino e o humano. Tal dimenso idntica e diversa nos advm no mito de Hermes. uma figura na qual se fazem presentes o divino e o humano, a Linguagem e a palavra, a verdade e a no-verdade como ethos. Portanto, um mito no visa passar ou explicar fatos, ou ensinar padres de comportamento. No esse o sentido do mito. O mito funciona e se apresenta como a fora instauradora de uma ordem 9 (Carneiro Leo). o caso de Hermes. Ele o mensageiro divino entre os deuses e os homens. No o mensageiro de mensagens, a prpria mensagem, pois Hermes evoca o radical grego, herm- ... Como o latim verb-, o alemo Wort e o ingls word, o radical grego werm- provm de uma mesma raiz, wer ou wre, que significa o falar e dizer da lngua enquanto interpretao do mistrio10 (Carneiro Leo). Mistrio tem a mesma raiz de mito. Formou-se do verbo myeisthai e significa: velar, silenciar. O mito como desvelamento, e o mistrio como velamento se implicam mutuamente. Hermes no um mito que explica a mediao, a prpria palavra fundadora de poema e interpretao. A manifestao originria da poiesis se d como mito, pois mito em si a palavra divina. Esta Palavra divina a voz das musas, filhas de Zeus e Mnemosyne. Esta voz nos chega no canto do poeta. Interpelado pelas Musas e assim impelido a cantar, uma relao mimtica une o cantor origem desse impulso que o sagra e garante a seus cantos o carter ontofnico da revelao divina11 (Torrano). Notemos que a palavra que o poeta pro-fere como relao mimtica no imita nada enquanto representao, mas se torna a imagem viva do que so as Musas no Olimpo, em cujos cantos desdobra-se a viso do que foi, do que e do que ser. Essa interpelao o sagra cantor, outorga-lhe o centro e vidncia, pondo-o doravante a servio das Musas12 (Torrano). Na palavra do poeta, se apresentam as musas como fala (mythos) de revelao (mimesis) do ser (physis). Podemos concluir que a Potica, originariamente, se constitui em torno da physis, das Musas, do Mito e da mimesis.

Quando o poeta, atento e aberto voz das Musas, canta o canto da poiesis, nesse canto advm a viso do que foi, do que e do que ser, pois as Musas so filhas de Mnemosyne, a Memria. No qualquer memria, no a memria do escrito. a Memria do Ser que se doa como tempo. O poeta s poeta porque seu poema a interpretao da voz das Musas. Nele se manifesta a viso do que foi, do que e do que ser. Essa manifestao possvel porque nela se presentifica Hermes. Por isso, todo poeta hermeneuta, no a partir dele, mas da palavra mtica que nele ocorre. Hermes, a prpria palavra, sempre interpretao. Hermes, enquanto mensageiro dos deuses, a possibilidade fundamental de dilogo e intermediao entre homens e deuses. A tarefa dos homens, como a dos poetas, escutar a voz de Mnemosyne, que foi, e ser. Hermes, como palavra dos deuses ofertada aos homens na dico do poeta, diz sempre a verdade, porm no toda a verdade. Desta tenso entre verdade e no-verdade que surge o prprio mito como espelho de toda especulao. A essncia do espelho no representar o eu como o seu outro, no reduplicar o real em representaes, mas mostrar o que se esconde enquanto aparece. Ou seja, Hermes o prprio dilogo. No dilogo, as diferenas se especulam, no como diferenas de si, mas do real. Hermes, de onde provm hermenutica, a prpria interpretao enquanto dilogo de especulao. Especulao diz de uma intermediao pela qual o sentido de toda ao se faz o caminho de verdade e no-verdade do real. Hermes, como Palavra dos deuses, o deus que preside aos caminhos dos homens e a suas encruzilhadas. o seu ethos. No encaminhar de todo caminho se decidem os muitos caminhos possveis do homem. Decorre disso ser Hermes tambm o deus do comrcio, onde se d a interpretatio. Dialogar em torno do preo especular em torno da verdade. No qualquer verdade, mas a tica. No especular do dilogo, o valor tico fundamental a verdade e a no-verdade do real. Originariamente, perguntar pela interpretao : O que o dilogo e o especular como verdade do real? Essas so as dimenses da questo da interpretao. Na questo, a interpretao nos advm, no como a tarefa de esclarecer o que obscuro, mas como o esforo de subir a uma montanha: quanto mais alta, tanto mais abrangente a paisagem e profundo o horizonte.

A Potica metafsica

A questo da interpretao toma um rumo e um sentido completamente diferente com Plato. Na conjuntura de seu tempo, o vigor do mito, enquanto Linguagem instauradora de mundo, se perdera. A vida da Polis ficou merc da capacidade de manipulao comunicativa dos que sofstica e retoricamente dominavam o discurso. Em lugar da verdade do real, passou a dominar a doxa, ou seja, a opinio comum decorrente das decises das assemblias na gora. Para que tal no acontecesse, era necessrio formar bem o cidado, elaborando uma paideia nova, que lhe assegurasse o acesso verdade e liberdade. este o fundo que orienta toda a estrutura argumentativa do dilogo Repblica. Detectamos nele dois movimentos bem articulados. O primeiro gira em torno da contraposio da paideia potica paideia filosfica. Plato questiona o alcance da palavra mtica como reveladora do real. Em seu lugar, prope a paideia filosfica como nica capaz de formar o verdadeiro cidado.

Investiga, por isso, os princpios que presidem o poiein como tekhne. Ao fazer isto, Plato d incio formulao da Potica metafsica, filha da teoria das idias. Nela, o artefato discurso examinado como mediao que representa o real e no como mediao do real. Essa separao (khorismos) permite a anlise das formas de narrao: o poeta narra em seu nome, em nome dos personagens ou pe os prprios personagens para narrar. Se o poeta que narra ou pe os personagens para narrar, a obra que comea a ocupar o primeiro plano da Potica. As musas se tornam um entusiasmo que diz respeito mais ao poeta que s obras. Narrar fazer conhecer. At onde esse real, que eclode na narrativa, verdadeiro? o problema da mimesis. A verdade das assemblias, a doxa, era um produto do discurso, por isso, uma falsa verdade, uma manipulao da verdade pela fora persuasiva dos sofismas. Assim sendo, a palavra mimesis diz mais respeito verdade da Polis como idia representada do que verdade da physis como vigor da poiesis. Nesta perspectiva, os elementos constituintes da Potica se tornam metafsicos. idia corresponde a obra, palavra como ecloso mtica corresponde a palavra como mediao, mimesis reveladora corresponde a mimesis da representao, s Musas corresponde o poeta inspirado.

Em tal Potica, a experincia da poiesis se torna saber filosfico. o que nos ensina no mito da caverna. Nele se concebe o real como duas grandes instncias separadas: o mundo sensvel por oposio ao mundo inteligvel ou mundo das idias. Os ncleos fundamentais de toda Potica passaro a ser vistos no espelho deformante do mundo das idias, mundo que se torna a verdade nica do real nico. At onde a cama pintada pelo pintor apresenta o real como idia? Esta a questo. Claro, no mais o real dual do mundo do mito, mas o real nico do mundo das idias.

A resposta nos faz entrar no segundo grande momento. A mimesis ser tanto mais verdadeira quanto houver adequao entre a obra do poeta e a idia como real. A adequao se d pelo processo de sua descoberta e representao. Como ocorreu isso no mito da caverna? Nela, o homem est preso. Solta-se e, de etapa em etapa, caminha em direo ao mundo das idias, at a contemplao final da idia nica. O que importante aqui para a interpretao? Esta passa a ser verdadeira enquanto caminho em direo idia. Caminhar em direo a se diz em grego meta hodos. Se Plato separa a palavra do real, a religao se d no mtodo. Este seria, pois, o caminho que nos assegura o passar do real sensvel ao real inteligvel. A partir desta concepo, se constituir a idia dominante do que interpretao. descobrir no significante sensvel o significado inteligvel, no literal, o simblico, no denotativo, o conotativo. Isso ocorrer depois, porque o prprio Plato proceder de outra forma. A questo dos poetas a mesma de Plato: o real e sua verdade. Para a questo da interpretao, mais do que buscar as respostas nas obras do grande filsofo, talvez seja melhor perguntar: Como ele experienciou a verdade do real? Escrevendo dilogos. Dilogo , pois, a forma mais radical de Plato experienciar a manifestao da verdade do real.

Em Aristteles j aparece a Potica metafsica bem estruturada. O filosfo retoma os dados fundamentais apontados por Plato: o mito, a mimesis, o poeta, a obra. Mas h duas mudanas significativas. Em lugar das idias, a physis, apreendida, contudo, metafisicamente. O avano significativo aparece em relao palavra como mediao. No lugar desta, a obra passa a ocupar o centro da ateno. Ser vista em duas dimenses. Inicialmente concebida como um todo orgnico, em que o poetizar est estreitamente ligado s articulaes da tekhne, com vistas ao processo de unificao. o uno lgico como verdade do real que se torna o fundo da obra como tal. A constituio da obra se processa como articulao e unidade tcnica. Da o ttulo Peri poietikes tekhnes. No tender unidade do fundamento consiste a organicidade da obra, e no demonstrar tal organicidade consiste o processo de interpretao. A palavra tekhne foi traduzida para o latim como ars, de onde se formou a palavra arte. A arte, como concepo, fica estreitamente presa ao conceito de obra, e esta determinada pelo uno lgico, como verdade do real. O uno lgico buscado por Aristteles atravs das quatro causas: material, formal, eficiente e final. Como a obra toma o centro do interesse, passam a ser dominantes as causas material e formal. O artista vive em funo da articulao dessas duas causas, que foram tendo diferentes nomes como contedo e forma, significante e significado, enunciao e enunciado. Mas como essas causas so comuns a todos os entes, o ente obra de arte se distingue pela causa final. O fim da obra de arte o belo. A relao do poeta com a palavra determinada pela obra e esta articulada pela tekhne, ou seja, pela arte. A arte, nessa interpretao, se resolve na unicidade da obra. Esta foi a concepo dominante no percurso metafsico do ocidente.

A outra dimenso diz respeito katharsis. Este aspecto reintroduz o intrprete na economia da obra organicamente concebida. A concepo da unidade orgnica da obra perturbada pela presena da katharsis. S por ser inerente obra pode remeter diretamente para a essncia da interpretao. No podemos, por isso, identificar a katharsis com o belo, e muito menos com um mero efeito esttico. O que a Potica metafsica em torno da obra e sua unicidade orgnica est esquecendo? No ser este esquecimento o que h de mais fundamental em toda interpretao?

A interpretao metafsica da obra foi institucionalizada pelas escolas que se formaram em torno do legado filosfico de Plato e Aristteles. O triunfo do Cristianismo platonizado acaba por determinar a vigncia do mundo ideal de Plato. O encontro da cultura grega com a judaica ser determinante para os rumos da essncia da interpretao e do lugar destinado s obras poticas. Estas so de fundamental importncia para a cultura e identidade gregas. Os gregos, que no possuam nem livros sagrados nem casta sacerdotal, tinham procurado em seus poetas, sobretudo em Homero, os signos de sua unidade espiritual. Por isso achavam que na literatura se concentra o tesouro de uma civilizao13 (Zumthor). A experincia do real como Polis est estreitamente ligada sua experincia como poiesis. Para conservar as obras escritas criou-se a filologia. Ela abrangia sua conservao, classificao, estudo e interpretao. Tais tarefas tomavam como base a gramtica, a interpretao metafsica da lngua. Ou seja, a filologia era a aplicao da interpretao filosfica s obras poticas. Este dado fundamental, por dois motivos. Primeiro: a interpretao filolgica ou gramatical se tornou cannica. Cnon diz exatamente isso: rgua e regra. Segundo: os fillogos alexandrinos elaboraram a lista dos melhores textos clssicos ou cannicos. Alm do fundamento filosfico da filologia, h o outro aspecto: a escrita. Esta fixa a lngua como ela falada no momento em que se escreve. Com o passar do tempo, a lngua viva se transforma e a escrita precisa de especialistas que a estudem e interpretem. Com a escrita, uma determinada memria de realizao histrica registrada, que no acompanha a dinmica temporal. Quando o texto canonizado e, igualmente, a interpretao que o interpreta, um choque inevitvel surgir entre o acontecer histrico vivo e diferencial e a memria registrada e tomada como cnon. Nesse sentido, a escrita, a filologia e a interpretao filosfica tendem a reforar o mundo da identidade das idias platnicas, onde no h lugar para as diferenas. E a obra em sua organicidade toma definitivamente o centro das atenes. O ponto de referncia de toda interpretao o sentido determinado pelas obras cannicas.

Ao contrrio dos gregos, toda a cultura judaica gira em torno da religio e seus livros sagrados. A experincia do real o real como palavra religiosa. Entre os judeus da poca tardia, a bblia se identifica com a noo de escritura. A idia, primitivamente mgica, de santidade do livro, passa aos cristos e, ao fim da idade patrstica, se mistura com as concepes gregas. A autoridade da coisa escrita torna-se o objeto de um respeito que d origem a uma necessidade constante de recurso ao texto ...14 (Zumthor). Neste encontro da cultura judaica e da grega, a obra no s se torna o centro orgnico de toda interpretao, mas tambm adquire um sentido transcendente como palavra divina. Contudo, o sentido desta palavra divina nada mais tem a ver com a voz das musas na fala dos mitos. So dois mundos divinos distintos. E como tais vo se opor radicalmente. O mito, traduzido como fbula ou fico, no uma simples traduo, muito mais uma traio, porque nela se trai e retrai a verdade da poiesis. Contudo, o Cristianismo, para se afirmar, no pode simplesmente desconhecer toda a riqueza cultural grega. Surge o problema: Como interpret-la? Historicamente, algo de fundamental ocorreu. O Cristianismo absorve as idias do platonismo, que passam a assumir uma dimenso religiosa e transcendente. Isso largamente conhecido. Mas o importante a destacar que a interpretao platnica da verdade se torna a interpretao tambm da verdade religiosa. A idia de obra como palavra de Deus, portanto, algo transcendente, nica, verdadeira, eterna, advinda do judasmo, acaba influenciando a idia de obra de arte, que adquire um sentido tambm religioso e transcendente. Ainda que traduzissem o mito por fbula e o quisessem esvaziar de qualquer sentido de verdade, as obras como tais no perdiam seu vigor de verdade.

Quando a metafsica divide o real em sensvel e inteligvel, surge a necessidade do mtodo para interpretar. A idia, no sendo mutvel nem transitria, mas universal e permanente, constitui o objetivo do mtodo, na medida em que o fundamento ideal da obra. Cada realizao formal singular tem como princpio a obra ideal. O mtodo interpretativo, nesta concepo, tem dois objetivos: ou descobrir a idia que subsiste por debaixo do artefato discursivo, ou mostrar como as realizaes formais so, e at onde so, a realizao da obra ideal. Diante de tal concepo, a interpretao depende do mtodo ou mtodos. A interpretao correta est atrelada concepo de um paradigma ideal. A obra vai ser entendida como a reunio do como se diz em relao ao que subjaz como fundamento. A interpretao se consubstanciou em dois mtodos principais. O primeiro diz respeito Bblia. Recebeu o nome de Exegese. Entre os gregos designava todo processo de interpretao, seja religioso, seja literrio, seja jurdico. O mtodo exegtico partia do pressuposto de que havia dois textos: o texto propriamente bblico e o texto da doutrina crist, a inspirao divina. Ele se fundava na doutrina dos quatro sentidos: o literal e o espiritual. Este se subdividia em trs: alegrico, moral e anaggico.

O segundo mtodo, de larga e profunda influncia na cultura ocidental, o filolgico. Era aplicado s obras escritas. Quando se separa o sensvel do inteligvel, entra em cena a questo da mediao. Ela a prpria palavra. Mas enquanto o Logos originrio significava a reunio harmnica dos contrrios da physis, na filosofia passa a designar a palavra enquanto mediao lgica. A palavra como proposio se torna o lugar da verdade. O Logos como mediao deu origem s duas disciplinas bsicas: a retrica, que se voltou para o domnio da palavra falada, e a gramtica, traduzida para o latim por literatura, que se voltou para o estudo e o domnio da palavra escrita.

A Modernidade se inicia quando um novo mtodo de conhecimento proposto para substituir o antigo. Foi o que fez Descartes no seu livro Discours de la mthode. A busca a mesma de Plato: algo de indubitvel, permanente, universal. Porm, h uma diferena: o homem no sai da caverna. O caminho consiste numa caminhada em direo ao seu interior. E encontra a razo. A transcendncia substituda pela imanncia, o divino pelo profano, a exterioridade pela subjetividade, a physis pelo esprito. A dicotomia platnica continua a mesma: o mundo sensvel se torna res extensa, e o mundo inteligvel, res cogitans. Em Kant, teremos a mesma dicotomia: ao nmeno se ope o fenmeno. H uma diferena em relao posio platnica, mas que no muda a essncia da sua viso. O mtodo no passa simplesmente a dar acesso a um objeto exterior e transcendente, ele constitui o prprio objeto, assegurado em sua objetividade, no mais pela idia ou por Deus, mas pela razo.

Como fica a interpretao diante dessa nova teoria? Distinguiramos trs posies bsicas, tendo em comum a subjetividade. A primeira refora a velha posio filolgica, retomando os ensinamentos de Aristteles, mas lendo-o na tica das novas realidades scio-polticas. Centraliza-se na obra como um todo orgnico, seja do ponto de vista do gnero, seja do ponto de vista do estilo. A introduo do dado histrico no altera em nada a concepo bsica da obra. As mudanas se do nos elementos constituintes. O conceito de histria, tambm metafsico, no muda em nada o conceito essencialista da obra. o que comprovar a dialtica hegeliana, que se resolver na Idia Absoluta. A outra posio interpretativa resultar diretamente da posio kantiana. Uma vez que o mtodo que determina o objeto de conhecimento, em relao s obras literrias, surgir a Teoria Literria. Variando a teoria, teremos diferentes correntes literrias. Mas tm algo em comum: uma pretensa objetividade cientfica e uma anlise objetiva da obra. O mimetismo em relao cincia deixa de lado a palavra interpretao e introduz o vocbulo anlise. Esta concebe a obra como um objeto, cujo conhecimento das partes, em sua funcionalidade, leva ao conhecimento da verdadeira funcionalidade do todo: a obra. Dependendo da corrente, tal funcionalidade pode referir-se ao todo da obra, seja na anlise estlstica, seja na anlise estrutural, ou pode referir-se funcionalidade psicolgica ou social, quando se considera a obra como representao da estrutura psquica ou do sistema social. Notemos que, organicidade da obra em si, corresponde, nestas correntes, a organicidade psquica ou social. O conceito de obra, oriundo do platonismo e do aristotelismo, continua intocado. A terceira posio diz respeito arte pela arte e experincia esttica. Exemplifiquemos com a msica. Na sociedade aristocrtica, era composta e executada na corte, nas festas do rei, e nas igrejas, nas festas religiosas. A experincia musical era determinada pela ordem aristocrtica e pela vivncia religiosa, tanto uma como outra representaes de uma realidade transcendente. Desmontada a ordem aristocrtica, com a ascenso da burguesia, a msica passa a ser tocada em sales. No horrio marcado, todos ali se renem e tem lugar o concerto. Terminado, todos voltam para suas casas. A experincia musical se realizava como experincia esttica. Era algo subjetivo e individual. Deste modo, a inscrio da obra musical como experincia do real, como identidade cultural e como comunidade histrica se dilui. O trao comum s trs modalidades de interpretao a funo: do belo, na organicidade perfeita; psicolgica ou social, nos temas; esttica, como fruio do sujeito. Na concepo imanente do real, tambm o criador da obra ocupa um lugar determinante, como sujeito da criao. Assim como Deus criou o mundo do nada, o artista cria a obra a partir do vigor da sua genialidade. O gnio um deus sem transcendncia. Hoje, a anlise da obra est em crise. Ao menos nas funcionalidades tradicionais.

A Modernidade tem uma outra vertente alm da cientificista. A Reforma se desfez da exegese doutrinal da Igreja Catlica. Ser, pois, na Alemanha onde a interpretao tomar novos rumos. O fiel, baseado na doutrina da predestinao dever buscar os sinais de sua salvao, ao interpretar a Bblia. uma busca ntima e individual. Tal interpretao implica o lugar do interpretante. dentro dessa tendncia que surgem os pietistas, acentuando o lado racional do homem na hermenutica da salvao. E desenvolvem ento um mtodo novo de interpretao das escrituras, dividido em trs momentos: sutileza do compreender, do explicar, do aplicar. A sutileza introduz na interpretao o sentido da vida daquele que interpreta. A importncia desta mudana, para a interpretao, est em que se quebra o multissecular modelo de relao do leitor com a obra. A sutileza do compreender comea a fazer um contraponto com a obra. Mas o passo mais importante foi dado por Schleiermacher. Do ponto de vista da interpretao, introduz dois aspectos fundamentais. Primeiro: O que a compreenso para que se possa dar um sentido interpretao de uma obra? Com esta questo, Schleiermacher funda a hermenutica geral, ou seja, ele pergunta pelo fundamento da compreenso que toda interpretao exercita. A segunda contribuio marca um passo decisivo no questionamento da obra ideal e orgnica. Em que consiste a interpretao? Na reconstituio das vivncias do escritor e da sua insero histrica. Esta atitude retoma a essncia da interpretao, ao reintroduzir o dilogo, mas ainda a nvel do autor. Ao destacar a compreenso da obra como dilogo, a organicidade da obra que posta em questo. O que a obra?

O Logos grego foi traduzido para o latim por trs termos: Verbum ou palavra; ratio ou razo; discursus ou discurso. A tripla traduo j mostra a amplitude e complexidade do Logos grego como experincia do real. Vejamos o discurso. O suporte em que uma obra se realiza tem dois aspectos principais: o discurso e o material onde se inscreve. Quanto ao material, predomina o livro, embora j se possa tambm registr-lo num disquete ou CD. Neste caso, a denominao obra independe do material. Diz respeito ao discurso. Preferimos denomin-lo artefato discursivo. Os latinos, ao traduzirem o Logos por discurso, tinham em vista a sua apreenso como devir temporal. O Logos diz a manifestao do sentido do real como reunio harmnica de contrrios. O sentido do real o tempo se manifestando como discurso. Na palavra dis-curso, o real eclode como tempo. o que ela nos diz: o radical -curso vem do verbo currere, ou seja, a physis como fluir e manifestar-se. Uma vez que o fluir se d no manifesto, tiveram de acrescentar o prefixo dis-, que o mesmo que o prefixo dia-, na palavra di-logo. A correlao entre discurso e dilogo se perdeu porque a apreenso da physis como devir j se d numa chave metafsica, pela qual o tempo algo externo sua prpria manifestao. Neste discurso, o vigor do real como tempo fica reduzido mediao, no tempo. Enquanto mediao, o tempo deixa de ser ontolgico e se torna cronolgico. Na cronologia, o discurso a expresso tricotmica do tempo como passado, presente e futuro. O discurso perdeu a vigncia do vigor e passou a ser visto como algo esttico, que compe a obra. A apreenso da obra se dar na anlise da composio. Ela consiste na decomposio das partes em sua funcionalidade. o objetivo da Potica metafsica e seu mtodo. Este prev dois momentos. No primeiro, somos envolvidos pela exposio em seu nvel temtico e pela trama. O artefato discursivo nos aparece como um sistema de palavras e oraes, de construes estilsticas, de procedimentos metafricos. Todos esses elementos se organizam num todo que d um primeiro sentido ao artefato discursivo. o sentido literal.

Desse primeiro momento pode-se partir para um segundo, que consiste em surpreender como as articulaes se do a partir de recursos recorrentes e elementos-chave. Trata-se, na realidade, de descobrir a estrutura subjacente, ou seja, a dinmica implcita pela qual a organicidade da obra se d na perfeita funcionalidade de suas funes. A interpretao do artefato discursivo nos leva a perceber como o vigor da sua constituio articula funcionalmente todos os signos em torno das palavras-chave. Contudo, num mundo funcional, no basta constatar a funcionalidade. Resta a pergunta: Para que serve tal conhecimento? um conhecimento que se tem da obra de arte, mas com o qual nada se pode fazer. Pois o artefato discursivo uma mediao. Contudo, a mediao est em funo de algo que lhe externo, em funo de um fim. No fim a atingir que consiste a sua utilidade. O conhecimento da mediao ajuda a melhor atingir os objetivos externos e utilitrios. O conhecimento da mediao pela mediao vazio. Com ele no podemos fazer nada no sentido utilitrio da ao produtiva. Nem podemos afirmar que de um tal conhecimento nos adviria a experincia esttica, que em si, no seria utilitria, mas gratuita. O domnio do discurso pode ajudar na experincia esttica, mas de maneira alguma podemos afirmar que ela causada pelo conhecimento da obra em sua estrutura funcional. A interpretao, como conhecimento da obra em sua funcionalidade e organicidade, nos suscita a questo: O artefato discursivo faz necessariamente parte da obra, contudo, esta se dimensiona apenas na sua funcionalidade e organicidade? Na sua harmonia das partes, ela se prende lgica da mediao e, por isso mesmo, se torna uma mediao que se esgota em si mesma. Isso decorrente da separao metafsica. Obra de arte mediao? Nesse sentido, interpretar a mediao da mediao? A mediao ocupa, na questo da interpretao um lugar central como reflexo. A reflexo como mtodo se consubstanciou em Plato como eristike tekhne, a tcnica da disputa, ou seja, do dilogo. Mas neste caso, o dilogo era um mtodo que conduzia a um objetivo que estava fora do prprio dilogo. Quando na Modernidade, a idia deixa de ser transcendente e se torna imanente e transcendental, coloca-se o mesmo problema de acesso, ou seja, da mediao. No caso da arte, a obra como mediao e ao mesmo tempo como objeto dessa mediao, nos leva ao seu impasse. que a obra de arte foi reduzida ao seu artefato discursivo. Diante deste, devemos partir para a interpretao propriamente dita: fazer eclodir em ns a compreenso do que a obra potica como artefato discursivo no diz, mas quer dizer em tudo que diz15 (Carneiro Leo). Esse no-dizer em tudo que diz se torna a questo central da interpretao potica.

A Potica hermenutica

Sair do impasse metafsico voltar s obras poticas. Os diferentes mtodos interpretativos, at agora vistos, foram tributrios do conceito metafsico da obra potica. No adianta mudar a interpretao, se no se questiona tal conceito. Obra se origina do latim opus, que significa atividade e o produto que dela resulta. H trs tipos de produes: as naturais, como as plantas, os animais e os homens, que aparecem sem a ao do homem. E as que aparecem atravs da sua ao ou produtos culturais. Nestes, distinguimos os tecno-culturais e as obras de arte. Hoje, opomos os produtos da natureza aos produtos culturais, sejam artsticos ou no. Tal no se dava anteriormente metafsica. Natureza o que os gregos chamavam de physis. Para o grego, tudo provinha da physis, seja o homem e seus produtos, seja a terra, a gua, o ar, o fogo. Mas a physis era enigmtica, pois se mostrava em tanta diversidade e ao mesmo tempo se retraa como o oculto e permanente de tudo que se manifesta. Ela , portanto, ambgua: muda e permanece, diversa e una. Esta sua duplicidade se mostra tensional, pois a noite se ope ao dia, o feminino ao masculino, o divino ao humano, o caos ordem. Esta disposio dual se d como harmonia de contrrios e diferenas. Diz Herclito: O contrrio em tenso convergente; da divergncia dos contrrios, a mais bela harmonia16. nessa dualidade harmnica radical da physis que podemos tentar entender a obra potica. Quando temos obras naturais e obras culturais, em que consiste a diferena? A physis produz o homem. Este , portanto, natural. Porm, ele pro-duz as obras, que so, ao mesmo tempo, naturais e culturais. Nas obras culturais, a physis se manifesta como cultura e se oculta como physis. Porm, as obras culturais ainda so divididas em obras tecno-culturais e obras de arte.

Nessa seqncia de diferentes obras, qual o lugar do homem? Por que s o homem pro-duz obras diferentes dele mesmo? Que lugar ocupa o homem em meio physis? Entender as obras que o homem produz entender este lugar especial. So as obras que distinguem o homem. Perguntar pelo lugar especial do homem e pela sua possibilidade de produzir obras perguntar pelo sentido da ao que se d no homem. ao da physis que se d por intermdio do homem, os gregos denominaram: poiein e tekhne. Por estas aes, o homem se constitui e se diferencia como homem. Nas obras acontece a compreenso do que o homem , no e pelo vigor da physis. Esta, no agir do homem, se revela em seu sentido. As obras do homem se constituem e instituem como obras na medida em que pro-duzem mundo. Mundo no a obra, no o homem: o sentido da physis manifestado pelo homem nas obras. Nelas, advm o sentido do homem e da physis. Sentido a physis se manifestando como mundo no agir do homem. O agir do homem, que revela a verdade da physis como mundo, foi denominado poiein.

Contudo, vimos que h dois tipos de obras, que o homem produz: as tecno-culturais e as obras de arte. Como se distinguem? As tecno-culturais definem-se pela sua funcionalidade, ou seja, a instrumentalidade e utilidade dentro do mundo. J as obras de arte nunca so funcionais nem operam nada. Uma obra de arte manifesta mundo. S no mundo manifesto que as obras tecno-culturais podem ser apreendidas em seu sentido funcional. A obra potica se define pelo seu sentido, por isso, s podemos apreender o sentido funcional pelo sentido da obra potica. O seu sentido vige no instituir mundo. O mundo o sentido da physis, manifestado no poeta enquanto poeta. No poema do poeta, a physis se revela em seu sentido. O que o sentido da physis? S podemos falar de sentido como ecloso de mundo pelo vigor da poiesis nos poemas dos poetas. A ecloso de mundo na obra dos poetas o real se manifestando como Linguagem, verdade e caminho. o ethos do real. A palavra revelando o mundo o real se manifestando como Logos. Logos, de legein, em seu sentido originrio, diz reunio. No Logos, o real se manifesta em sua verdade. A verdade do real a unidade de reunio de sua duplicidade fundamental: mudana e permanncia, diversidade e unidade. Ler ou reunir significa, pois, manifestar-se o real em sua tenso harmnica fundamental como verdade. Por isso diz Heidegger: Arte o pr-se em obra da verdade17. O sujeito da arte e do pr-se a verdade do real.

Os mesmos gregos que experienciaram o real como physis compreenderam a sua verdade como aletheia. Em si, a palavra diz o que no se oculta, ou seja, o tornar-se visvel da physis em cada ente: na planta, no rio, no homem. O que se oculta a no-verdade. A physis como real , portanto, a juno harmnica de verdade e no-verdade. Esta nada tem a ver com o erro. A verdade da obra potica no , portanto, algo oculto, que necessrio, atravs da interpretao, trazer para a luz. Ela o aspecto manifesto do que se oculta. Como manifesto, diz respeito ao mundo da physis. o seu sentido. A verdade da obra potica no diz, portanto, respeito a algo verdadeiro como a representao correta e adequada. A sua verdade diz sempre respeito verdade como sentido do real. Sentido implica escolha, limite, caminho. Escolha, limite, caminho esto diretamente ligados a todo operar. O que se opera na obra potica como sentido se d na medida em que se traa um caminho, o aparecer de limites. Quando o poeta traa o caminho da palavra abrindo um mundo como sentido na floresta do real, o caminho e seu sentido s so visveis e apreensveis na medida em que a prpria floresta se ausenta como floresta, e se oferece ao poeta como limites. Nos limites do caminho, vemos a forma, o seu irromper sinuoso, claro, verdadeiro. A claridade em que o caminho se instala como caminho, pelos limites que o fazem aparecer, provm da clareira da floresta. A floresta a physis. necessrio compreender o sentido que inaugura caminhos, sendas, veredas, em sua provenincia. O caminho como limite articula uma finitude que se alimenta do que se retrai, como sua permanente possibilidade, tanto de limite como de ilimitado. A esta dinmica de limite e ilimitado como possibilidade, no retraimento da floresta, se d o nome de forma. A forma na obra potica a palavra da poiesis no poiein do real. Portanto, a palavra do poeta, como manifestao da poiesis, no uma mediao externa quilo que se instaura e instala: a prpria physis e seu sentido se manifestando como poiesis, na forma do poema, enquanto sentido e limite de caminho.

A obra potica como verdade e caminho do real que se oferece ao intrprete. S nessa dimenso se pode integrar e compreender o lugar do artefato discursivo. A interpretao se constitui como dilogo, especulao e ethos. Mas estas dimenses s so passveis de concretizao a partir da obra potica como manifestao de mundo. preciso desconstruir o conceito metafsico, organicista e ideal, de obra de arte.

A obra potica se apresenta como dilogo e o dilogo como obra. Por isso retomamos agora a questo: O que constitui o dilogo? A nossa existncia cotidiana transcorre na sua maior parte como dilogo ou troca de opinies. Da estar sempre presente a interpretao. Troca de opinies se d no mundo. Outra forma de dilogo a que ocorre na sala de aula. Nela se faz presente quem ensina e quem aprende, tendo em vista o saber. Nesta conjuntura, o dilogo se dimensiona a partir do saber. O objetivo do dilogo levar um dos participantes a se apossar de um saber que ele ainda no tem. O dilogo ser tanto mais frutfero quanto os dois plos do dilogo se nivelarem e identificarem em relao ao saber. Este algo que algum tem e outro algum no tem, mas pode vir a ter, pelo dilogo. Apreendemos aqui duas caractersticas: um saber que se tem e pode ser ensinado e aprendido, e que, portanto, se pode tornar comum. um saber abstrato que anula as diferenas e o prprio vigor do dilogo. Nesse sentido, se ensina Fsica como se ensina Literatura, como se ensina Potica. Esta a viso metafsica do saber, que no preserva o dilogo originrio que toda obra potica . Dilogo no uma simples palavra entre outras. Nele e por ele advm no apenas uma dimenso fundamental da interpretao, mas a prpria essncia e razo de ser o que somos.

Dilogo no algo que pode ou no nos acontecer. Sempre s podemos acontecer como dilogo. Quando em meio s multides nos sentimos isolados; quando ss, lamentamos a ausncia do ser amado; quando retirados num lugar ermo, a solido com seu peso surdo e cinzento se abate sobre ns; quando cansados dos contatos trepidantes com os outros, nos retramos para ns mesmos, o que em todas essas experincias nos est acontecendo a busca do dilogo originrio, o que somos. No dilogo, somos sempre com os outros. O monlogo a mais radical afirmao do outro como ausncia. No dilogo, o outro aparece como fala que se ope. Na oposio das falas se constitui o dilogo. Se no houver oposio no h dilogo. A oposio dialgica leva a duas atitudes. Pela primeira, usa-se toda argcia e poder da palavra para convencer e vencer o outro. No se tolera a oposio. A ao comunicativa ser tanto mais comunicativa quanto mais anular as diferenas. Prevalece o saber nico. Outra atitude pode ainda ser gerada no dilogo. A oposio de posies no busca a eliminao da fala do outro, mas a composio. Na composio, cada posio reconhece de antemo o limite do seu saber. Cada saber se afirma como diferena. No dilogo das diferenas, a identidade no nem a soma do saber de todos, nem a sua mdia, nem o poder de argumentao do mais arguto, mas o no-saber. O no-saber no a indiferena, mas o vigor e possibilidade de toda diversidade, de todo novo saber, da composio de todos os saberes.

Di-, o prefixo da palavra dilogo, diz originariamente dualidade, de onde surge a separao, o limite. Por isso, dilogo implica diferena, cuja oposio no fundada pelo eu e o outro, mas pelo Logos do real. Pelo Logos, cada homem constitutivamente dialogante. Ao experienciarem o dilogo, os homens experienciam-se a partir do Logos do real. Por isso, o di- de dilogo diz a modalidade de presena do Logos no homem, como fora atravs da qual se manifestam as diferenas e oposies. No dilogo, a fala de cada dialogante a abertura para a escuta do Logos do real. Em tal abertura, o real se nos mostra em sua dualidade originria. o dilogo originrio que nos possibilita sermos j desde sempre dialogantes. A harmonia de contrrios do dilogo se manifesta como reflexo, da estar presente no ato de interpretar.

Refletir o ato atravs do qual nos dobramos sobre ns mesmos, nos vemos e nos auscultamos. Isto no significa nos dividirmos em exterior e interior. A reflexo une a viso e a escuta. Mas o que nela se v e escuta no somos ns mesmos num outro nvel de representao. Quando tal sucede, a obra s ainda nos atingiu como experincia vivida ou esttica. No ultrapassamos a dimenso da subjetividade. necessrio que, na reflexo, acontea em ns a escuta e a voz das musas, filhas de Mnemosyne. A Memria do que foi, e ser faz eclodir em ns a experincia potica. Na experincia potica experienciamos a verdade e o sentido do real como poiesis.

Ao intrprete da obra potica, o real se manifesta como experincia potica. Experincia outra palavra que ocupa em nossa existncia um lugar central. Vamos destacar trs aspectos. Toda experincia se mostra como dilogo. do dilogo consigo mesmo, com os outros e com as coisas do mundo que se pode atribuir experincia a algum. a experincia da vida. Do dilogo resulta um saber que torna as pessoas experientes. Esse saber pode dizer respeito a um conhecimento especfico ou s vicissitudes da vida. Neste caso, assume uma dimenso tica que se transforma em sabedoria.

A interpretao como experincia potica inclui essas trs dimenses, mas no podemos afirmar que ela j tenha ocorrido. Pode algum conhecer todas as obras de um poeta, sua vida e seu tempo, ainda assim, no se deu a interpretao potica. Tais interpretaes que levam em conta a vivncia esttica de cada um, o conhecimento do poeta, das suas obras, do seu tempo se diferenciam enquanto experincias que ocorrem no mundo. A interpretao potica nos remete para a etimologia de experincia. Ela se compe do prefixo ex- e do radical per-. De per- se formou o verbo grego perao, que significa originariamente: atravessar, e o substantivo peras: limite. Toda travessia se d como caminho. Abrir caminho dar-se limites. Da afirmar Heidegger: O limite no nada que de fora sobrevm ao ente. Muito menos ainda uma deficincia no sentido de uma restrio privativa. O manter-se, que se contm nos limites, o ter-se seguro a si mesmo, aquilo no que se contm o consistente, o ser do ente18. A experincia, em seu radical, faz-nos perceber o ente como um caminho de realizao, na dinmica dos limites. Mas isto se d com qualquer ente. Por isso, quando se trata da interpretao potica como experincia, temos de nos voltar para o prefixo ex- que significa para fora. Em ex-perincia, o prefixo indica um para fora do caminho e do limite, que no designa apenas uma mudana de espao, seno a experincia consistiria to-somente numa sucesso de espaos. No isso que ocorre.

A experincia constitutiva da existncia. Esta se desdobra como experincia. Temos um paralelismo significativo entre experincia e existncia. Os dois radicais se unem na concepo grega do ser. O radical de existncia -sist- indica o estar erguido sobre si mesmo. ... O vir e permanecer num tal estado o que os gregos entendem por Ser. O que dessa maneira chega a uma consistncia e assim se torna consistente em si mesmo, instala-se livremente e por si mesmo dentro da necessidade de seus limites, peras (Heidegger)19. O prefixo ex- das duas palavras indica, por isso mesmo, a abertura para tudo que . Por tal abertura o homem se abre a todo instante um crculo de desvelamento20 (Carneiro Leo). S por estar constitutivamente aberto ao Ser, pode o homem ter experincias e realizar obras poticas. Portanto, em toda abra potica se d, a partir da abertura, uma experienciao do real. O poeta no poema no revela qualquer experincia, mas experencia o real como mundo, a abertura da verdade e sentido do real. o que chamamos de experincia potica. A interpretao da obra potica s se d em toda a sua radicalidade, quando acontece como experincia potica. Esta resulta da verdade e sentido do Ser, e se realiza enquanto abertura de mundo. Em toda obra potica se institui mundo. Nada se medeia ou representa. A interpretao potica est sempre em demanda do sentido e verdade do real, manifestos na obra potica como abertura de mundo. Por isso, ela vai sempre aparecer como dilogo.

Heidegger vai denominar os poetas e pensadores vigias da casa do Ser, vigias da Linguagem. As interpretaes so as aes de vigiar a casa do Ser, no so o Ser. Interpretar no explicar nem analisar, con-duzir ao dilogo potico, onde o real se manifesta na sua verdade dialgica. A interpretao no substitui a obra potica, lana-se na mesma atrao de retraimento. O intrprete no salvaguarda o mundo que a obra de arte abre, mas a abertura de mundo. Salvaguardando a abertura de mundo, manifesta a obra potica como vigor de ter sido no vir a ser do porvir. A interpretao potica acontecer. Neste acontecer, a interpretao potica no se prope, criticamente, como a nica verdadeira. Assim entendida, no teria ainda ultrapassado a dimenso objetiva ou subjetiva, e nem teria descido, no dizer de Parmnides, ao corao intrpido da verdade de circularidade perfeita21. Ainda no teria compreendido o essencial da interpretao potica. Ela escuta da voz do real na palavra das Musas. Na escuta nos advm a apropriao do que somos como vigor de ter sido. Na interpretao potica, no h nem pode haver mtodo ou mediao: h tambm caminho e limite, mas como ex-perincia de sentido e verdade do Ser. Interpretar , pois, abrir-se para a escuta da verdade e sentido do Ser como ethos. Este abrir-se implica um interpretar-se e no um exteriorizar-se diante de uma obra. No consiste numa contemplao externa ou interna, ou na rememorao da vida vivida, ou, ainda, no gozo de uma experincia esttica. O interpretar-se um abrir-se para a vigncia do real, pela qual se d, na interpretao, uma experincia potica. Nesta, quem advm o real como mundo. Experienciar a verdade do real como mundo apropriar-se do que nos prprio. A apropriao se d nos limites do caminhar. D-se, por isso mesmo, como o experienciar da experincia potica. Interpretar-se poeticamente experienciar a experincia de ser. Ser o apropriar-se, em todo caminhar, do vigor de ter sido. Por ter sido, que podemos nos projetar nos caminhos da interpretao. A possibilidade e sentido de toda interpretao a questo da interpretao. Como possibilidade e sentido, fazemos nossa travessia. O sentido e verdade da travessia, no somos ns, no qualquer interpretao, no qualquer experincia, mas nica e to-somente a interpretao da questo. Mas qual a questo da interpretao?

Tudo o que at agora meditamos nesta fala, nada mais foi seno preparar a escuta da questo da interpretao. Determo-nos na questo o que nos faz experienciar a reflexo de Guimares Rosa, quando diz: Mestre no quem sempre ensina, mas quem de repente aprende22. A questo da interpretao como experincia potica nos levou, aparentemente, a uma simples inverso: interpretao da questo. No foi. Resultou do que aprendemos como exerccio do ensinar. O tema era: A questo da interpretao. O tema se tornou: A interpretao da questo. Estamos prontos para comear a caminhar. Para esta aventura potica, j desde sempre nos convocou o poeta e pensador originrio Herclito, quando, h dois mil e quatrocentos anos advertiu: Se no se espera, no se encontra o inesperado, sendo sem caminho de encontro nem vias de acesso23. A interpretao como caminho e experincia potica o concentrar-se na espera do inesperado.

NOTAS:

1. Os pensadores originrios. Trad. Emmanuel Carneiro Leo. Petrpolis, Vozes, 1991. p.75. 2. HEIDEGGER, Martin. Gesamtausgabe. Band 13. Aus der Erfharung des Denkens. Frankfurt a . Main, Vittorio Klostermann, 1983, p.108. 3. ROSA, Joo Guimares. Grande serto: veredas. 6. Ed. Rio de Janeiro, Jos Olympio, 1968, p. 312. 4. TORRANO, Jaa. O sentido de Zeus - o mito do mundo e o modo mtico de ser no mundo. S. Paulo, Iluminuras, 1996, p.25. 5. GOMES, Pinharanda. Prefcio, p. 12. In: Aristteles. Organon. Lisboa, Guimares, 1985. 6. LEO, Emmanuel Carneiro. Aprendendo a pensar. Petrpolis, Vozes, 1977, p. 238. 7. ARISTTELES. Potica. In: GARCIA YEBRA, Valentin. Ed. Trilnge. Madrid, Gredos, 1974, p. 125. 8. TORRANO, Jaa. O sentido de Zeus - o mito do mundo e o modo mtico de ser no mundo. S. Paulo, Iluminuras, 1996, p. 26. 9. LEO, Emmanuel Carneiro. Hermenutica e mito. In: Cadernos de Letras, 11. Faculdade de Letras da UFRJ, Depto de Letras Anglo-Germnicas, 1995, p. 19. 10. LEO, Emmanuel Carneiro. Aprendendo a pensar. Petrpolis, Vozes, 1977, p. 248. 11. TORRANO, Jaa. O sentido de Zeus - o mito do mundo e o modo mtico de ser no mundo. S. Paulo, Iluminuras, 1996, p. 26. 12. Idem, ibidem, p. 26. 13. ZUMTHOR, Paul. Langue, texte, nigme. Paris, Seuil, 1975, p. 93. 14. Idem, ibidem, p. 93. 15. LEO, Emmanuel Carneiro. Apresentao. In: HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Vozes, Petrpolis, 1988, I v. p. 18. 16. HERCLITO. Trad. Emmanuel Carneiro Leo. In: Os pensadores originrios. Petrpolis, Vozes, 1991, p. 61. 17. HEIDEGGER, Martin. Der Ursprung des Kunstwerkes. In: ... Holzwege. Frankfurt a . Main , 2. Aufl., 1952, p. 64. 18. HEIDEGGER, Martin. Introduo metafsica. Trad. Emmanuel Carneiro Leo. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1969, p. 88. 19. Idem, ibidem, p. 87. 20. LEO, Emmanuel Carneiro. O pensamento de Heidegger no silncio de hoje. In: Revista Vozes, 4, 1977, ano 71, p. 14. 21. Idem, ibidem, p. 6. 22. ROSA, Joo Guimares. Grande Serto: veredas. 6.ed. Rio de Janeiro, Jos Olympio, 1968, p.235. 23. HERCLITO. Trad. Emmanuel Carneiro Leo. In: Os pensadores originrios. Petrpolis, Vozes, 1991, p.63.

BIBLIOGRAFIA

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