a montanha mágica: o debate de davos em 1929, entre...

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26 Anais do VII Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar (2011) A Montanha Mágica: o Debate de Davos em 1929, entre Cassirer e Heidegger Adriano Ricardo Mergulhão * RESUMO O presente resumo tem por finalidade, expor uma discussão acerca de um debate específico, ocorrido no ano de 1929, entre uma série de conferências organizadas entre os dias 17/03 e 6/04, em um resort localizado na montanha de Davos (Suíça). Uma das apresentações, tinha como temática global “Homem e Geração” e discutiria a “Crítica da Razão Pura de Kant, e a tarefa da fundamentação da metafísica”. Dois convidados debateriam o tema: Ernst Cassirer e Martin Heidegger. Representantes de duas conflitantes correntes filosóficas, vigoradas na Alemanha do séc. XIX. O movimento denominado Neokantiano guiado pela epistemologia da ciência, que influenciou E. Cassirer, junto a uma apropriação do método transcendental kantiano. E por outro lado, o historicismo e a hermenêutica de W. Dilthey, junto à fenomenologia de E. Husserl, que influenciaram sobremaneira Heidegger. O caráter desta “divisão” é marcado pela oposição entre filosofia analítica, de orientação lógica (científico - epistemológica) e a filosofia continental, de inclinação fenomenológica (e tendência “literária”). Nosso intuito é esclarecer esta polêmica, procurando situá-la à luz, do contexto filosófico que a produziu, ou seja, definir quais tradições serviram de “pano de fundo” para a realização desta (disputatio) “disputa”. Existe aqui a preocupação central, de esclarecer a transformaç ão do problema da objetividade, mediante uma compreensão mais aguda das ressonâncias e campos de influência da filosofia de Kant dentro do âmbito das tradições que culminaram ao longo dos séculos XIX e XX (as escolas de Baden, Marburg e Freiburg), como uma resposta, ou desdobramento das consequências do declínio da República de Weimar e da extensão da influência dos movimentos classificados como Romantismo e Idealismo Alemão. PALAVRAS-CHAVE: Metafísica, neokantismo, epistemologia, fenomenologia, filosofia alemã, Cassirer, Heidegger, Kant, Debate de Davos, 1929. * Adriano Ricardo Mergulhão é aluno do Mestrado em Filosofia da Faculdade de São Bento (SP). E-mail: [email protected].

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Anais do VII Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar (2011)

A Montanha Mágica: o Debate de Davos em 1929, entre Cassirer e Heidegger

Adriano Ricardo Mergulhão*

RESUMO

O presente resumo tem por finalidade, expor uma discussão acerca de um debate específico,

ocorrido no ano de 1929, entre uma série de conferências organizadas entre os dias 17/03 e

6/04, em um resort localizado na montanha de Davos (Suíça). Uma das apresentações, tinha

como temática global “Homem e Geração” e discutiria a “Crítica da Razão Pura de Kant, e a

tarefa da fundamentação da metafísica”. Dois convidados debateriam o tema: Ernst Cassirer e

Martin Heidegger. Representantes de duas conflitantes correntes filosóficas, vigoradas na

Alemanha do séc. XIX. O movimento denominado Neokantiano guiado pela epistemologia da

ciência, que influenciou E. Cassirer, junto a uma apropriação do método transcendental

kantiano. E por outro lado, o historicismo e a hermenêutica de W. Dilthey, junto à

fenomenologia de E. Husserl, que influenciaram sobremaneira Heidegger. O caráter desta

“divisão” é marcado pela oposição entre filosofia analítica, de orientação lógica (científico-

epistemológica) e a filosofia continental, de inclinação fenomenológica (e tendência “literária”).

Nosso intuito é esclarecer esta polêmica, procurando situá-la à luz, do contexto filosófico que a

produziu, ou seja, definir quais tradições serviram de “pano de fundo” para a realização desta

(disputatio) “disputa”. Existe aqui a preocupação central, de esclarecer a transformação do

problema da objetividade, mediante uma compreensão mais aguda das ressonâncias e campos

de influência da filosofia de Kant dentro do âmbito das tradições que culminaram ao longo dos

séculos XIX e XX (as escolas de Baden, Marburg e Freiburg), como uma resposta, ou

desdobramento das consequências do declínio da República de Weimar e da extensão da

influência dos movimentos classificados como Romantismo e Idealismo Alemão.

PALAVRAS-CHAVE: Metafísica, neokantismo, epistemologia, fenomenologia, filosofia alemã,

Cassirer, Heidegger, Kant, Debate de Davos, 1929.

* Adriano Ricardo Mergulhão é aluno do Mestrado em Filosofia da Faculdade de São Bento (SP). E-mail:

[email protected].

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Anais do VII Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar (2011)

INTRODUÇÃO

No ano de 1929, entre os dias 17 de março a 6 de abril, foram realizadas em Davos

(Suíça) uma série de conferências que tinham por objetivo discutir a filosofia alemã

contemporânea à época. Uma das apresentações discutiria a “Crítica da Razão Pura de Kant, e a

tarefa da fundamentação da metafísica”. Dois convidados debateriam o tema: Ernst Cassirer e

Martin Heidegger. Grandes representantes de duas correntes filosóficas vigoradas na Alemanha

do séc. XIX. O movimento Neokantiano guiado pela epistemologia da ciência, que influenciou E.

Cassirer (junto a uma apropriação do método transcendental kantiano). E por outro lado, a

Hermenêutica e o Historicismo de W. Dilthey, junto à fenomenologia de E. Husserl, que

influenciaram sobremaneira Heidegger na elaboração de seu próprio caminho filosófico. Neste

período também, estamos diante de uma configuração exemplar sobre a divisão de tradições

ideológicas distintas, presentes no pensamento filosófico daquele contesto histórico. O caráter

desta “divisão” é marcado pela oposição entre filosofia analítica, de ordem lógico/semântico

(científico/epistemológico) e a filosofia continental, de orientação fenomenológica (e tendência

“filosófica/literária”). Em um primeiro momento, seguindo esta linha interpretativa, e testando

a legitimidade de suas premissas, esta exposição tem por diretriz, a análise histórica e filosófica,

relativa não só ao conteúdo do diálogo travado por Heidegger e Cassirer, sobre duas leituras

possíveis da filosofia Crítica de Kant. Mas de forma mais abrangente, nosso intuito é esclarecer

alguns aspectos específicos e polêmicos, procurando situá-los à luz, do contexto filosófico que

os delimita, ou seja, situar as tradições que serviram como “pano de fundo” para a realização

desta “disputa” histórica entre estes dois grandes mestres do pensamento ocidental.

DESENVOLVIMENTO

Como temos um debate realizado no ano de 1929 como nosso tema principal. Neste

período ilustraríamos, em um bom exemplo o quadro cultural desta época, com a alusão que

fazemos ao livro do qual “emprestamos” o título para o presente trabalho, “A montanha

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mágica”. A partir desta escolha, queremos indicar uma dupla referência, (histórica/geográfica e

literária/poética) para uma possível analogia entre dois acontecimentos. Primeiramente ao fato

do debate aqui estudado, ter se realizado nas frias montanhas da cidade de Davos, na Suíça,

mesmo local onde se desenrola o romance. Sua versão original, Der Zauberberg (“A Montanha

Mágica”) foi publicada em 1924 pelo conhecido escritor alemão Thomas Mann (1875-1955),

que coincidentemente, recebeu o premio Nobel da literatura, no mesmo ano de 1929, data em

que também se passa o debate entre Cassirer e Heidegger. Este último filósofo, aliás, havia,

recentemente lido tal romance (“O próprio Heidegger lera o romance A montanha mágica com

Hannah Arendt no verão do amor de 1924” SAFRANSKI 2005 p. 228), alguns anos antes do

aludido encontro com Cassirer, e então, possivelmente deve ter lhe passado pela mente, a

existência deste intrigante personagem fictício, que foi o engenheiro Hans Castorp, o

protagonista da obra, que naquele mesmo local geográfico, havia travado extensos diálogos

sobre um tema, que ao filósofo da floresta negra, também era imprescindível compreender, em

seu viés fenomenológico, o Tempo. O literato T. Mann, no cap. VII do mencionado livro nos

atesta que nesta obra “Colocamos a questão de saber se é possível narrar o tempo, unicamente

para reconhecer que era esse, precisamente, o nosso propósito com a história em curso”.

Já o nosso propósito, com a história em curso neste resumo é muito mais modesto,

aludimos a esta comparação apenas para suavizar o semblante de nossos leitores. Pois esta

referência que utilizamos como título, nos foi suscitada por Rüdger Safranski, um dos principais

biógrafos de personalidades do meio filosófico atual, ao sugerir a similaridade entre o pensador

“campônio” M. Heidegger e o personagem Leo Naphta, um jesuíta, místico e conservador das

tradições antigas, e a figuração do filósofo cosmopolita E. Cassirer no personagem liberal

Lodovico Settembrini um humanista convicto. É o que respectivamente sugere a biografia

“Heidegger um mestre da Alemanha entre o bem e o mal”, onde nos dizeres do autor:

“Lá em cima em Davos, em seu romance A montanha mágica, surgido em 1924, T. Mann fizera o humanista Settembrini e o jesuíta Naphta realizarem seu grande debate. Eram arquétipos do embate intelectual daquela época. De um lado Settembrini, filho impenitente do iluminismo, um liberal, um anticlerical, um humanista de incrível eloqüência De outro Naphta, apóstolo do irracionalismo e da inquisição, apaixonado pelo eros da morte e da violência.(...) Settembrini quer o bem dos seres humanos, Naphta é um

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terrorista metafísico. Participantes da semana universitária de Davos realmente lembravam-se daquele fato ficcional. Kurt Riezler, então curador da universidade de Frankfurt e acompanhante de Heidegger nos passeios de esqui, alude ao episódio da Montanha Mágica em seu relato para o Neue Zürcher Zeitung. Portando atrás de Cassirer o fantasma de Settembrini , e atrás de Heidegger o de Naphta?” (SAFRANSKI p. 228)

É óbvio que não podemos responder de modo objetivo a esta pergunta, pois seria

leviano explicar a realidade com estes arquétipos ficcionais. Mas pudemos constatar, que além

de Safranski, outras publicações se utilizaram também destas aproximações, para

desenvolverem suas teorias. É o caso, do ótimo artigo de Irene Borges Duarte1, que descreve de

forma literária/filosófica, a factível participação do personagem Hans Castorp como um possível

espectador do debate, criando assim uma ficção dentro da realidade histórica. Porém, nosso

objetivo se situa no âmbito do estudo acadêmico desta situação, não se permitindo assim, estas

“extravagâncias” saudáveis do pensamento, e embora admita perfeitamente o diálogo com a

literatura, a poesia e a arte em geral não têm como proposta estabelecer aqui uma filosofia da

ficção (ou ficção filosófica), mas pelo contrário, temos a pretensão de realizar uma historiografia

prévia das imbricações a que estão sujeitos Heidegger e Cassirer naquele ano de 1929. Nosso

desejo na realização desta tarefa é poder compreender com mais exatidão as implicações

filosóficas de suas teorias, a luz do contexto existente na historicidade do momento, para daí

extrair um resumo crítico do significado de seus pontos de vista sobre a história da própria

filosofia, e em especial das suas relações com o desenvolvimento do pensamento metafísico, da

antiguidade, até o advento da critica Kantiana.

Desta forma, não poderíamos desprezar o diálogo constante com a história dos

conceitos metafísicos inseridos nestas tradições “paralelas”. Isto fez com que optássemos como

eixo condutor das nossas discussões, uma passagem por alto pela história da metafísica

(utilizada como um apêndice de apoio para a reflexão sobre o desenvolvimento de

determinados conceitos, haja vista, este ser um tema profundamente hermético, e de extrema

importância para a elucidação de alguns trechos do debate), onde o que esta em jogo, seria em

última instância, esta é nossa hipótese, uma compreensão adequada do conceito de “ser” e de

1Vide o artigo: “A Imaginação na Montanha Mágica. Kant em Davos, 1929” ( DUARTE 2006)

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“ser - humano”, concebidos de forma distinta por cada um dos respectivos autores. Heidegger,

durante o debate, diz que a questão do ser neste sentido, faz parte da constituição humana e de

sua confrontação entre a finitude e infinitude:

“O homem como ser finito, tem determinada infinitude no ontológico, mas o homem, jamais é infinito e absoluto em fatura do ente mesmo, senão, que ele é infinito, no sentido de entender o ser” (HEIDEGGER 1969 p.215)

É certo, que um tema tão abrangente, tal qual a compreensão do conceito de “ser”, nos

leva a um inevitável diálogo com grande parte da tradição filosófica, que não poderia ser

tratada aqui sem a tentação de se realizar um reducionismo que acabasse por “nivelar por

baixo” a nossa discussão, levando-a ao nível, de um “grande elenco” apoiado num “amontoado”

de nomes e datas, que acabaria por fim atravancando nosso objetivo primordial. Portanto, foi

nossa decisão, de modo um tanto arbitrário (necessário a nossa própria erudição para a

clarificação de nossa literatura sobre o tema), circunscrever nosso foco de atenção aos autores

essenciais para Heidegger e Cassirer em se tratando de metafísica. Chegamos assim a oferecer

ao longo da discussão principal de nosso trabalho (sobre o debate de Davos) um pequeno

“sobrevôo” histórico pelas teorias de alguns destes mestres do pensamento ocidental, tendo

Kant como a maior influência, este autor estando inserido dentro de um movimento filosófico

em especial, circunscrito ao século das luzes (séc. XVIII), que poderia ser ainda denominado,

segundo Cassirer2 de, “o século da crítica”, do qual todos somos herdeiros intelectuais, em

maior ou menos medida. Isto se fez necessário, em um primeiro momento, para sanar as

dúvidas pessoais que surgiram ao longo de nossa investigação, assim, do nosso ponto de vista,

este “apanhado” conceitual, um tanto superficial, foi realizado, para que a vista de nossos olhos,

se tornasse um pouco mais nítido o desenvolvimento da história da Metafísica, que culmina

nesta época iluminista em que Kant viveu, sendo que este filósofo é o alvo principal das

2Vide CASSIRER 1992 p. 367-371 “Pois o século XVIII, mesmo quando admite que o pensamento esbarra com um limite, quando reconhece a existência de um “irracional”, exige um conhecimento claro e seguro desse mesmo limite. Sabe-se que o mais profundo dos seus pensadores, Kant, elevará no final do século essa existência a categoria de um caráter próprio, constitutivo da filosofia em geral: ele só verá na própria “razão” filosófica uma faculdade original e radical de determinação de limites”

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especulações propostas como tema do debate. Ou, como nos diz Cassirer3:

“Além disso, tampouco há necessidade de, após a obra de Kant, e a “revolução do pensamento” realizada pela Crítica da Razão Pura, revertemos aos problemas e as conclusões da filosofia do iluminismo. Mas se algum dia tivesse de ser escrita essa “história da razão pura”, da qual Kant nos ofereceu um esboço na última seção da Crítica da Razão, ela não deixaria de reservar um lugar de destaque para aquela primeira época que foi a primeira a descobrir e a afirmar apaixonadamente a autonomia da razão e a impô-la em todos domínios da vida do espírito. Alias, é de uma evidencia cristalina que nenhuma obra da história da filosofia pode ser pensada e realizada numa perspectiva puramente histórica: toda a volta ao passado da filosofia constitui um ato de conscientização e autocrítica filosófica”

Para tanto, como foi dito, nos utilizaremos de um fio condutor, que estará atrelado

(funcionando como nosso elo, de ligação) aos pontos de vista de E. Cassirer e M. Heidegger em

meio ao conteúdo teórico do debate de 1929 entre ambos, publicado como anexo a obra “Kant

e o problema da Metafísica” (HEIDEGGER, 1966) aludindo o fato de que ambos pensadores nos

sugerem (em diferentes sentidos) uma “volta a Kant” (Zurück zu Kant),4 ou “Volta para Kant”

(Zurück auf Kant, como preferem alguns comentadores do período) que supostamente estaria

sendo promovida não apenas por estes dois autores, mas por distintas correntes do

pensamento alemão contemporâneo a eles. Portanto, buscaremos realizar um recorte

temático, das obras de Cassirer e Heidegger, apontando os rumos tomados por suas teorias,

para que a partir deste levantamento, pudéssemos sintetizar uma concepção mais global sobre

o tratamento dado a metafísica por ambos, apontando assim as possíveis aproximações ou

supostas discordâncias existentes dentro da temática proposta, ou seja, o método

transcendental. Sendo, que as obras citadas competem diretamente a uma leitura, que

pretenda se fundamentar por uma declarada argumentação em favor de suas possíveis

analogias com o conteúdo do Debate de Davos.

3Vide a introdução de: CASSIRER, E. [1932] A filosofia do Iluminismo. Tradução de Álvaro Cabral. Campinas: Unicamp, 1992. 4“ZURÜCK ZU KANT” é a frase originalmente usada pelo pensador Otto Liebmann, no livro “Kant und die Epígonen” com a qual ele pretende fazer uma critica, ao defender que todo o movimento do idealismo alemão não realizou o conseqüente desenvolvimento da filosofia transcendental, mas pelo contrário, foi um retrocesso e um descaminho. Assim esta frase seria um apelo para uma volta aos fundamentos da obra de Kant, marco alegórico do inicio do neokantismo. (para mais detalhes ver o esclarecedor artigo “Zurück zu Kant” de PORTA 2005)

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O que temos em mente com isto, é a construção de um diálogo entre a teoria destes

dois autores, com base no conteúdo de suas argumentações ao longo da disputa, para que

possamos nos deter, com maior exatidão, no significado de determinadas passagens,

demonstrando suas referências, a um contesto mais amplo que procure justificar os porquês da

defesa de certos pontos de vista antagônicos quanto as leituras possíveis da obra de Kant (“Daí

a (importância da) discussão que se realizou em 1929, em Davos, com Cassirer, onde, pela

primeira vez, Heidegger se estabeleceu em público com uma posição de rejeição dura e crítica

ao neokantismo” STEIN 1993 p.215). Assim, se justifica a utilização de referências diretas ao

pensamento de Immanuel Kant, em especial a sua obra “Crítica da Razão Pura” (que é o tema

especifico do debate) para tentarmos compreender as divergentes interpretações desta mesma

obra, pelo viés analítico/epistemológico (Cassirer) e ontológico/fenomenológico (Heidegger).5

Deste modo, as contundentes afirmações de Kant em sua crítica, sobre a ontologia

metafísica ( onde como alguns exemplos os trechos; “Em todos os homens, desde que neles a

razão se elevou à especulação, houve realmente uma metafísica, e nunca a deixaremos de

encontrar neles.” (...) “mesmo se todas as outras ciências juntas fossem precipitadas no abismo

de uma barbárie que tudo devastasse, nem por isso ela, (A Metafísica) deixaria de existir” (KANT

1997), nos levaram a propor, neste projeto, uma análise, do que Cassirer e Heidegger

compreendem como significado do termo “ser” para a Metafísica, e suas conseqüências para

uma adequada compreensão do “ser humano” em sua essência e manifestação. Tanto para a

tradição anterior, como para a posterior a Kant.

Parece-nos que Heidegger dedicou grande atenção a estas passagens relacionadas a

ontologia, realizada na Crítica, pois ele também se propõe a fazer uma nova “crítica” ao antigo e

consagrado modelo do homem, como um ser, definido em sua essência como sumamente

racional. Fazendo então referencias diretas ao fato 6, do homem não ser estritamente um

animal racional (ponto que Cassirer também toca, ao sugerir, que o homem, além de animal

5“In Kant and the problem of Metaphysics Heidegger presented his own interpretation of Kant in explicit contrast to the neo-Kantian view.” (GORDON 2010 p.126) nossa tradução; “Em Kant e o problema da Metafísica Heidegger apresentou sua própria interpretação de Kant, em contraste explicito com a visão Neo-Kantiana.” 6LIMA VAZ, 1997 p. 256 “Sem retomar os termos da problemática heideggeriana e os passos de seu itinerário ,

vários pensadores, ao aceitar o interdito de Heidegger à idéia de uma antropologia filosófica, tentaram por outros caminhos a recuperação do de uma idéia do homem genuinamente filosófica, capaz de responder a simples questão sobre o próprio ser daquele que é o único dentre os seres capaz de levantar estas questão fundamental”

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Racional, é também um animal Simbólico), conforme a definição consagrada de Aristóteles

(Heidegger faz severas objeções a esta determinação por exemplo, ao dizer que a “Metafísica é

o perguntar além do ente para recuperá-lo, enquanto tal e em sua totalidade, para a

compreensão” [HEIDEGGER 2005 p.61]). O professor Ernildo Stein (2010 p.29), nos enfatiza, a

importância que esta definição cabal do pensador estagirita, tomou ao longo dos séculos:

“Muitas vezes não nos damos conta das severas conseqüências que teve no pensamento antropológico do Ocidente a definição aristotélica do homem como zoon logon echon. A idéia de Animal Racional passou a ser a justificativa para se definir o ser humano de tal modo que ele se diferenciasse totalmente dos animais em geral. Esta tradição standard foi incorporada na Filosofia e assumida pela tradição cristã para acentuar a dignidade do ser humano em contraste com os animais. O problema desta definição não consiste no fato de ela ser certa ou errada, mas no fato de ela ter consolidado uma imagem dualista do homem na filosofia e nas ciências da cultura ocidental”

Aqui, encontramos um ponto de apoio, para as teses que serão levantadas ao longo

deste trabalho, ou seja, uma crítica em comum ao modelo dogmático do homem racional

imposto ao pensamento ocidental pela tradição grega, e que impera até os dias atuais. Tanto

Cassirer, quanto Heidegger demonstram uma relutância em aceitar tacitamente esta definição,

de forma que criam novos modelos, que poderiam até mesmo substituir o já desgastado

modelo racional em definições mais abrangentes, e abertas. Este é o paradigma de maior

interesse para nossa pesquisa proporcionado por Davos. Pois o encontro entre estes filósofos

nos permitiu ressaltar a intersecção e o choque entre duas gerações, ali representadas (pela

arbitrariedade da escolha dos organizadores) por estes dois singulares indivíduos, neste não

menos singular evento. Se por um lado temos Cassirer, um pensador cosmopolita e humanista,

na figura de um ancião (de origem judaica), já bem estabelecido entre os grandes nomes de sua

época. Vemos por seu turno, o pensador (interiorano e obscurantista) que era Heidegger

(acusado mais tarde, injustamente de anti-semitismo), ainda jovem, se firmando frente à

“ressaca” (como ele mesmo classifica) provocada pela onda avassaladora de seu primeiro (e

único) livro publicado, “Ser e tempo”.7 Obra que acabou por dividir muitas opiniões entre

7“Heidegger escreveu apenas um livro: Ser e Tempo. E mesmo este nasceu nas análises em aula e nos seminários,

onde se delinearam sua forma e sentido. Todas as outras obras de Heidegger são resultado direto de preleções, seminários, conferências e ensaios.” (STEIN, 2002, p.41)

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entusiastas e críticos, quanto a seu valor como filósofo, pois seu ainda seminal e atribulado

projeto monolítico ali iniciado, nunca foi concluído, como previa o índice da segunda parte

(ainda por ser escrita) desta obra, a qual como sabermos, nunca chegou a termo (embora E.

Stein argumente que o projeto original de Ser e Tempo, apenas mudou de orientação, mas

nunca foi abandonado, se apresentando ao longo de toda obra de Heidegger). Para

conseguirmos ter uma vaga noção metafórica, do que foi este encontro, possuímos o

depoimento do filósofo E. Lévinas, a época um estudante que ali presenciou a disputa e cuja

impressão foi de “estar assistindo à criação ou ao fim do mundo”.

Portanto, a análise que propomos neste projeto compreende uma revisão bibliográfica

extensa, mas que se mostra necessária devido às mutuas referencias que estes pensadores

fazem em suas obras, um com relação ao outro. Como exemplo, temos a revisão que Heidegger

fez posteriormente ao debate sobre a questão do pensamento mítico na obra de Cassirer, (a

qual oferecemos uma tradução direta do inglês, ao final de nossa dissertação), que se figura

presente como apêndice do livro “Kant e o problema da Metafísica”, elaborado em 1929, em

apenas três semanas8, poucos dias depois da realização do encontro de ambos, fato este que

teria, aliás, inspirado a escrita desta obra, temos também a famosa nota de rodapé9 que

Heidegger coloca em sua obra “Ser e Tempo” depois que este livro foi reeditado (a primeira

edição sai a público em em 1927), fazendo referencias positivas a “Filosofia das Formas

Simbólicas Vol. II” obra que Cassirer publica em meados de 1925.

Ernst Cassirer, por seu turno devolve a “gentileza”, e faz sua própria revisão do livro de

8DUARTE 2006 p. 560 - “W. Von Hermman, no seu epílogo da 5º ed. De Kant e o problema da Metafísica, refere,

igualmente, que Heidegger lhe comunicou “durante o trabalho de correção de provas da 4ºed. Que, ao voltar de Davos, se entregou de imediato à elaboração do manuscrito do Kantbuch, escrevendo-o em três semanas de trabalho sem pausa” 9Reprodução da nota de Ser e Tempo (HEIDEGGER 2006 p.96): “Recentemente E. Cassirer submeteu a presença mítica a uma interpretação filosófica. Essa investigação propicia perspectivas mais abrangentes às pesquisas etnológicas. Do ponto de vista da problemática filosófica, ainda permanece de pé a questão se os fundamentos da interpretação são suficientemente transparentes e, sobretudo, se a arquitetônica da Crítica da Razão Pura de Kant e seu conteúdo sistemático podem oferecer um arcabouço possível de acolhimento para tal tarefa, ou se aqui não seria necessário um novo ponto de partida mais originário. O próprio Cassirer vê a possibilidade de uma tarefa dessa natureza. É o que mostra a sua nota da p. 16 onde ele aponta para os horizontes abertos pela fenomenologia de Husserl. Numa conversa que o autor teve com Cassirer por ocasião de uma conferência sobre “Tarefas e caminhos da pesquisa fenomenológica”, na seção de Hamburgo da Sociedade Kantiana, em dezembro de 1923, mostrou-se já um acordo quanto a exigência de uma analítica existencial, esboçada na mesma conferência.”

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Heidegger sobre Kant em 1931,10 (com direito a uma réplica de Heidegger, em pequenas notas

publicadas anos mais tarde, intituladas; “On Odebrecht´s and Cassirer´s Critiques of the

Kantbook”, “Sobre as críticas de Odebrecht e Cassirer do livro sobre Kant”). E embora Cassirer

não publique em vida o quarto volume de sua Filosofia das Formas Simbólicas, que seria

provavelmente intitulado, “Metafísica das Formas Simbólicas” ele esboça neste manuscrito

inédito um comentário, chamado “Mente e Vida: Heidegger” sobre a obra Ser e Tempo11. Além

deste fato Cassirer inclui posteriormente, ao debate, algumas importantes notas de rodapé, em

sua “Filosofia das Formas Simbólicas Vol.III” de 1929, fazendo referencias ao projeto

heideggeriano iniciado com a obra “Ser e Tempo”. Por fim, temos ainda a da crítica direta

dedicada ao tema da filiação de Heidegger ao PNSTA (Partido Nacional Socialista dos

Trabalhadores da Alemanha) esboçada em todo o capítulo XVIII “A técnica dos mitos políticos

modernos”, em seu livro póstumo “O Mito do Estado” (de 1946). Afora os muitos comentários

esparsos em cartas, ou mesmo dentro de suas obras, onde os nomes específicos não são

citados diretamente, mas que podemos supor, fazem analogia um ao outro.12

Deste modo, iremos apenas indicar e sugerir possíveis leituras para os acontecimentos,

sem que estes sejam maculados pela parcialidade de um observador onisciente, que já sabe de

antemão os desfechos históricos que serão prerrogativa por exemplo da associação, mais tarde

levada a cabo por muitos comentadores, de Heidegger e o Nacional Socialismo Alemão13.

Estamos ainda como foi dito, detendo nossa atenção ao ano de 1929 e seus arredores,

portanto, aquilo que está em questão neste momento, é principalmente uma crise dos valores

humanos, e a sua conseqüente crise financeira das bolsas de valores, que como sabemos servirá

como um estopim para a eclosão da segunda Guerra Mundial.

Deparamo-nos neste ano, com uma época singular, de intensa crise espiritual e

ideológica do mundo contemporâneo. Que possibilitou a celebração de um embate ideológico,

que talvez pudesse indicar uma “válvula de escape” para esta derrocada interior que o ocidente

10“Kant und das Problem der Metaphysik. Bemerkungen zu Martin Heidegger Kant interpretation” (1931) em E. CASSIRER “Gesammelte Werke” p.221 a 250, vol.17, 2004. 11“Mind and Life”: Heidegger (An unpublished Manuscript)” , vide também o texto seguinte de M. KROIS; “Cassirer´s umpublished Critique of Heidegger”, in Philosophy & c, vol. 16 n. 3 (1983) pp. 147 a 166 12

Para mais detalhes ver FRIEDMAN 2005 CAP. I –Encounter at Davos p. 6-12. 13

Para mais detalhes ver LOPARIC 1997. “Heidegger Réu” especialmente cap. 1, 2 e 3. E também “Heidegger e os judeus” de Jean François Lyotard Ed. Vozes, 1994.

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vivia. Talvez ali fosse esboçado um esclarecimento sobre estas crises. Mas será que um debate

entre estes dois “estranhos” personagens históricos, a primeira vista tão antagônicos poderia

realmente nos indicar algum caminho a ser seguido? Todos os que estavam ali presentes já

podiam suspeitar o tom de estranhamento que se faria presente em suas falas sobre um

mesmo tema específico, a crítica kantiana às nossas faculdades que presidem a razão, em seu

uso puro e a rede de conceitos sobre; o que seria enfim o Homem?14

Temos por traz de tudo isto, uma época de entre guerras, onde a soma de óbitos da

primeira grande guerra (ocorrida entre 1914 e 1918), chegou aos estratosféricos 14 milhões de

corpos ceifados, os ânimos da nação alemã se encontravam mergulhados em profunda

melancolia, que afora as vidas tolhidas de seus habitantes, custou-lhes ainda (com o tratado de

Versalhes) uma grande área geográfica, multas impagáveis, e a desmoralização frente o Mundo.

Portanto não estávamos apenas diante daquela crise de visibilidade mais imediata, ou seja, a

crise financeira de 1929, que levou a falência muitas nações capitalistas, tanto as consagradas

pela longa tradição neste mercado de risco, quanto as emergentes15, (gerando o que

poderíamos classificar como a primeira grande crise econômica de abrangência global.). Mas,

afora esta crise permeada por valores financeiros, temos ainda em vista uma crise espiritual

mais ampla, que afetará todos os acontecimentos do período. Portando também estamos

diante de uma crise da ciência e da filosofia, que ira correr em paralelo nas academias e

laboratórios em todos os departamentos científicos e filosóficos do continente europeu e

americano que se alastrava como um caminho de pólvora, uma “crise social” de amplitude

global, já diagnosticada por uma série de intelectuais.

14

LIMA VAZ 2001 p. 10 “Ora, como já sucedera coma Filosofia da natureza a situação da antropologia filosófica em face dos novos saberes sobre o homem assume inicialmente as características de uma crise, agudamente analisada entre outros por M. Scheler. Esta crise apresenta duas vertentes: a histórica, apresentada pelo entrelaçar-se, no tempo, das diversas imagens do homem que dominaram sucessivamente a cultura ocidental, tal como o homem clássico, o homem cristão e o homem moderno e a metodológica, provocada pela fragmentação do objeto da antropologia filosófica nas múltiplas ciências do homem, muitas vezes apresentando as peculiaridades sistemáticas e epistemológicas dificilmente conciliáveis.” 15No Brasil, por exemplo, em 30/10/1929 na manchete que estampava a capa de nosso principal jornal (A “folha de São Paulo”), lia-se em letras garrafais: “Grande pânico na bolsa de Nova Yorke ameaça a economia global” - A situação criada pelas especulações na bolsa de Nova Yorke culminou ontem na chamada “terça feira negra”. Jamais houve tamanha quantidade de investidores a tentar se desfazer de tantas ações de grandes corporação por ninharias. “Há antes incrível baixa dos valores que ameaça quebrar firmas financeiras e coloca em risco a estabilidade econômica mundial”

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Anais do VII Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar (2011)

Temos como, por exemplo, as obras de; Georg Simmel (1918 “O Declínio do Ocidente”),

Thomas Mann ( 1918 “Confissões de um homem a-político”), Alfred Weber ( 1925 “A crise da

idéia moderna de estado na Europa”), E. Jünger (1932 “O trabalhador”), E. Husserl (cujo

trabalho inacabado “A crise das ciências Européias”, lhe rendeu o tema de uma de suas últimas

conferências em 1935; “A crise da humanidade européia e a filosofia transcendental”), e outros

afins. Na filosofia, a crise também se revelava com grande extensão teórica:

“Philosophy too, was seized by crisis. During the war coma, new voices arose to challenge the primacy of academic ephistemology coma quickening rumors of a “crisis in the modern theory of knowloledge. But the crises came in various kinds, not all of them traceable of the same philosofical origins. Perhaps the most proeminent conflict turned on the questions of how modern philosophers might wrest genuine problems from the heritage of German Idealism. The problem afflicted Hegelians as well Kantians, Neo-hegelians and neo Kantians, but was felt most acutely perhaps in the philosophical debate over Kant´s ephistemology”(...) For Heidegger himself, the fondations crisis that afflicted physics, matematics, and philosophy appeared as a herald of radical Inovation.”16

Cassirer também comenta posteriormente (em 1944 no auge da segunda guerra) os

efeitos desta grande crise do ser humano e do próprio “humanismo” (em seu sentido mais

amplo), já nas primeiras linhas de sua antropologia filosófica, em seu capítulo inicial, nomeado

“A crise no conhecimento do homem sobre si mesmo.” (vide Cassirer 1977). As conseqüências

imediatas, deste clima ocasionado pela “crise dos fundamentos” resulta na ascensão e decaída

de muitos paradigmas científicos que estavam causando muitas ressonâncias no declínio

espiritual que já se delineava nos horizontes (um deles, de conseqüências mais monstruosas, é

o conceito de raça pura ariana) , em um momento prévio, ao absurdo avassalador, que foi a

Segunda Guerra Mundial. Heidegger definira este período, como um beiral para o abismo no

qual nos movemos. E iniciará, a partir de 1929 (com maior nitidez em 1931) um

16

(GORDON 2010 p.44 e 45);Nossa tradução: “A filosofia também foi acometida pela crise. Durante o coma de guerra, novas vozes surgiram para desafiar a primazia do (coma da) Epistemologia acadêmica, dando vida a rumores de uma “crise na teoria moderna do conhecimento”. Mas a crise surgiu em várias formas, e nem todas elas podiam ser seguidas pelas mesmas origens filosóficas. Talvez o conflito mais proeminente retorna para a questão de como os filósofos poderiam “arrancar” problemas genuinamente da herança do idealismo alemão. O problema afetava tanto os Hegelianos quanto os Kantianos, neo hegelianos e os neo kantianos, mas foi mais agudamente sentido, talvez no debate filosófico sobre a epistemologia kantiana. “Para o próprio Heidegger a crise do fundamento que aflige a física a matemática e a filosofia apareceu como início de uma inovação radical”

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Anais do VII Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar (2011)

aprofundamento acerca de suas discussões sobre o velamento do Ser ocasionado pelos abusos

da técnica e do pensamento cientifico. Demonstrando assim que existem determinados fatores

históricos que causam a obnubilação de nosso acesso a verdade do Ser, assim diz Stein (1993

p.218) que:

“A crise de 1929 é uma crise que entendemos, em primeiro lugar como uma crise mundial, uma crise econômica. Mas no pequeno mundo da Europa e no mundo ainda menor da universidade, e no mundo ainda menor do movimento fenomenológico, e no mundo ínfimo da vida de um filósofo, esta crise evidentemente toma proporções e nuanças muito surpreendentes”

Portanto, por “crise espiritual”, não devemos conceber meramente uma decaída dos

valores fundamentais (teológicos, filosóficos e científicos) envolvidos na crença pessoal ou

coletiva em determinado dogmatismo. É certo que também isto se inclui nesta crise, mas

ressaltaremos que para definir os fundamentos desta crise devemos nos voltar para o

abandono dos preceitos religiosos e afins, em lugar de uma secularização do homem moderno

que se torna um “cético neoliberal”.Este homem, acaba por ser o herdeiro de uma certa fé

iluminista nos poderes da racionalidade que hoje se vê profundamente abalada em suas

estruturas pelo surgimento de tempos em tempos, das ondas do “irracionalismo estatal”. Como

dizem os pensadores frankfurtianos, Adorno e Horkeimer, um “eclipse da razão” se escondia

por detrás de mitologemas teórico, como é o caso do nacional socialismo, que pairava no

horizonte do debate em questão e que acabaria por contaminar países que sempre prezaram o

uso de um bom senso sistemático (como no caso do Japão ou mesmo um cultivo da tradição

humanista, como a Itália, que cedeu para Mussolini ou a Espanha de Franco, entre outros).

Porém, o que mais nos espanta é saber que todo o esplendor literário da república de Weimar,

se esfacelava como um castelo de areia frente a truculência de um totalitarismo alienante que

conseguia cooptar cada vez mais adeptos para o triunfo da “banalidade do mal” (conceito

amplamente desenvolvido por Hannah Arendt). O triunfo da vontade e do horror expresso pelo

que a historia nos apresenta sobre os campos de concentração da Alemanha, Polônia, Ucrânia e

arredores. Cassirer, como foi mencionado anteriormente, é um filosofo de ascendência judaica,

herdeiro intelectual dos ideais estabelecidos pela república de Weimar, tendo até mesmo

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Anais do VII Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar (2011)

realizado escritos em defesa da constituição Alemã, por sua conta em risco pois:17

“Cassirer delivered hiss adress, “The idea of a Republican Constitution” for the Verfassungsfeier on august, 11, 1928, at a moment when the ultimate collapse of the Weimar Republic was still unforeseen. The Nazis had held their first party rally at Nuremberg in August 1927.”

Ele também irá realizar durante os amargos anos em que será exilado (1934 – 1945),

uma obra emblemática sobre o tema, da alienação da racionalidade, frente aos totalitarismos

do mundo moderno. Em seu livro “O mito do estado” (publicado postumamente em 1946),

temo o exemplo pioneiro de uma obra em que analisa irrestritamente o totalitarismo em suas

diversas facetas históricas e geográficas (principalmente os casos específicos de Hitler e Stalin),

fixando sua crítica predominantemente em um detalhamento, do que estava ocorrendo

naquele instante em que redigia sua obra (no ano de 1943), para que todos os terríveis

acontecimentos que ele acompanhava pelos noticiários, não se tornassem mais tarde, uma

versão idealizada dos castigos deixados a mercê do povo que ousou abrir a grande “caixa de

Pandora”, em nome de uma assombrosa e alienante, “depuração” do sangue da sua “raça”

“pura” ariana (CASSIRER 1946):

“Foi em 1933 que o mundo político começou a preocupar-se com o rearmamento da Alemanha e com as suas possíveis repercussões internacionais. O verdadeiro rearmamento já tinha começado anos antes, mas passado despercebido. O verdadeiro rearmamento começou com a origem e a ascensão dos mitos políticos. O rearmamento militar posterior foi somente uma coisa acessória. O fato estava consumado há muito; o rearmamento militar foi apenas a conseqüência necessária do rearmamento mental provocado pelos mitos políticos.”

A partir desta perspectiva, ainda nesta mesma obra, Cassirer não poupa Heidegger por

suas escolhas. E procura refletir (embora soubesse por seus contatos pessoais com o mesmo

que não se tratava de um anti-semita) como um pensador de tão grande porte intelectual pôde

ter sua conduta pessoal manchada por um episódio (embora passageiro), que nunca poderia ser

17

GORDON 2010, p.23 nossa tradução: “Cassirer apresentou seu discurso “A idéia de uma constituição republicana” para a comemoração da constituição em onze de agosto de 1928, no momento, quando ainda o último colapso da Rebública de Weimar não estava previsto. Os nazis tinham organizado seu primeiro comício em Nuremberg em agosto de 1927.”

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Anais do VII Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar (2011)

relegado ao esquecimento18. Pois o fato ocorrido, dava provas, de que até mesmo os homens,

supostamente mais preparados para enfrentar com todas as armas intelectuais os perigos e os

enigmas de uma “loucura massificante” (que tomava a forma de um novo mito político

moderno, baseado na des-razão) poderiam ser cooptados pela “grandiosidade” de um falso

ideal.

“Os novos homens estavam convencidos de que tinham realizado a profecia de Spengler. Interpretavam-no segundo seu próprio interesse. Se a nossa cultura - ciência, filosofia, poesia e arte - está morta, comecemos tudo de novo, em nossas vastas possibilidades, criemos um novo mundo e tornemo-nos os seus senhores. A mesma tendência aparece na obra de um moderno filósofo alemão que, à primeira vista, pouco parece ter em comum com Spengler e cujas teorias se desenvolveram independentemente daquele. Em 1927, Martin Heidegger publicou o primeiro volume do seu livro Sein und Zeit (Ser e Tempo). (...) Tal filosofia existencial não pretende nos dar uma verdade objetiva e universalmente válida. Nenhum pensador pode dar mais que a verdade de sua própria existência; e essa existência tem um caráter histórico (...) Ser lançado na corrente do tempo é um aspecto fundamental e inalterável da condição humana. Não podemos emergir dessa corrente nem mudar sua direção. Temos de aceitar as condições históricas de nossa existência. Podemos tentar compreendê-las e interpretá-las, mas não podemos alterá-las."

Esta doutrina fatalista (lembremos, esta é a visão de Cassirer sobre a obra), esboçada em

“Ser e Tempo”, poderia ser utilizada como uma chancela para grandes ideais políticos

revolucionários, que acabariam por levar a todos que ali penetrassem, ao “encantamento”

mítico e alienante de uma doutrina degenerada, que fizesse uso de suas teorias. Como na

história clássica do flautista de Hamelin, narrada pelos irmãos Grimm, muitos alemães foram

levados pela melodia dos discursos entusiastas e xenofóbicos de um Reich, que não obtendo

seu “devido” (e delirante) reconhecimento pela eliminação dos “camundongos”, resolveu

aprisionar toda a nova geração de seus seguidores em uma caverna de medo e remorso

insuperáveis. Neste sentido, diz Cassirer (p.338);

“Não pretendo afirmar que essas doutrinas filosóficas tiveram uma influencia

18HANNA ARENDT (2008 p.288) compara este desvio da vida de Heidegger, a tentação de Platão ao governar Siracusa; “Ora sabemos todos que Heidegger também cedeu uma vez à tentação de mudar de “morada” e de se “inserir”, como então se dizia no mundo dos afazeres humanos. E, no que concerne ao mundo, mostrou-se ainda um pouco pior para Heidegger do que para Platão, pois o tirano e suas vitimas não estava além mar, mas em seu próprio pais.”

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Anais do VII Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar (2011)

direta no desenvolvimento das idéias políticas na Alemanha. Muitas dessas idéias brotaram de fontes bem diferentes. Tinham uma finalidade “realista”, e não “especulativa”. Mas a nova filosofia enfraqueceu e minou lentamente as forças que podiam ter resistido aos modernos mitos políticos. Uma filosofia da história que consiste em sombrias predições de decadência e da inevitável destruição de nossa civilização (Spengler) e uma teoria que vê no Geworfenheit do homem (o Ser lançado de Heidegger) uma das suas principais características renunciaram a todas as esperanças de uma participação ativa na construção e reconstrução da vida cultural do homem. Tal filosofia renuncia a seus próprios idéias éticos e teóricos fundamentais. Pode então ser usada como instrumento dócil nas mãos dos chefes políticos”

Como sabemos, este chefe político que menciona Cassirer, esta fazendo referencia aos

desvarios de Hitler, e seus planos megalomaníacos que fariam enrubescer até mesmo a face de

um Deus grego como Epimeteu, cuja caixa esquecida, e aberta por sua mulher Pandora, fez

liberar o que em seu interior estava contido, a saber, todos males e tragédias humanas. Porém

o conteúdo desta “caixa de pandora” moderna deixou escapar uma onda de violência sem

precedentes, que seguramente, nunca antes havia chegado, até limites tão extremos. O que se

passou com Reich Alemão, em especial, tudo o que ocorreu no perímetro de seus campos de

concentração, em seus laboratórios experimentais (como o de Menghele), e nas mais diversas

trincheiras, durante os cinco anos de conflito, foi algo feito por homens como nós, por seres

humanos que não estavam presos aos feitiços de nenhum flautista mágico, ou gênio maligno

sobrenatural, muito menos por leitores desavisados de “Ser e Tempo”. A cristalização do horror

supremo se dava em meio ao cotidiano das ideologias de massa. Resta-nos agora, ao fundo

desta caixa, outrora aberta por Pandora, apenas uma tênue esperança, de que possamos nos

reabilitar deste estupor que espalhou a sua febre e sua desrazão pelo mundo afora. Novamente

algumas perguntas fundamentais da filosofia, voltam a ser colocadas;

O que podemos saber, acerca do destino para o qual se encaminha a humanidade, se

esta persistir nestes passos, que levaram a morte (num período de menos de 6 anos) entre 40 e

60 milhões de seres humanos? O que nós devemos fazer, após um acontecimento de tal porte,

com suas catástrofes cinicamente planejadas e executadas? Enfim, o que nos será permitido

esperar do futuro? Adorno, já se questionava o que seria da educação após Auschwitz... Existirá

uma nova paidéia a redimir o povo alemão de seu “eixo do mal”? Devemos, nos perguntar

friamente o que levou o ser humano a abolir todos os limites de sua moral em nome de uma

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Anais do VII Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar (2011)

tácita aceitação do horror supremo, frente a monstruosidade das “soluções finais” descritas

com abundantes e sórdidos detalhes por homens como Eichman, Goebbels, Speers e demais

nacionais socialistas, em seus julgamentos? Se silenciarmos perante as perguntas, o que

devemos esperar como respostas? Não há racionalmente uma devolutiva para estas questões...

Observamos, que embora seja ponto pacífico, que dediquemos os trechos acima a este tema,

não temos aqui o intuito de suscitar suspeitas tão graves sobre qualquer similaridade entre a

obra heideggeriana e a ascensão do nazismo (como diz Racine, “esqueçamos do homem, tudo o

que importa é sua obra”), pois estas implicações políticas não competem a proposta central do

nosso trabalho, sendo nossa intenção deixar claro apenas que o levantamento bibliográfico

relativamente posterior a década de 30 (e suas conseqüentes implicações políticas), nos serve

como fonte secundária para a abordagem dos pensadores aqui em evidencia. Agora, na

argumentação sobre o conjunto de suas obras, quando estas puderem fazer alguma ponte, ou

referência com os conteúdos discutidos no debate de Davos, tomamos a liberdade de nos

utilizar de livros, elaborados em diferentes períodos (conforme já deixamos claro

anteriormente), que nos ajudassem trazer alguma luz sobre determinados aspectos específicos

de suas teorias.

Agora, retornando a nossa temática original, podemos notar a existência de um grande

volume de fontes que por si mesmas justificam e ressaltam a importância do desenvolvimento

desta nossa pesquisa, para que possamos clarificar aquilo de Friedman nomeou como a “divisão

de caminhos” entre a teoria da ciência e a fenomenologia assim o nosso objetivo geral se foca

na existência desta reviravolta intelectual, que nos possibilitou, melhor delinear os rumos desta

partilha (e esta é nossa principal hipótese), que tem seu caso exemplar no Debate de Davos,

posto que esta discussão estaria absolutamente ligada a duas diferentes interpretações da

história da metafísica ocidental. Em especial reside o fato, que teríamos como o ponto

culminante desta querela ontológica, e como o principal signo de manifestação desta viravolta,

a filosofia crítica de Kant, dentro de dois vieses interpretativos distintos. Sua obra “Crítica da

razão pura” seria, portanto, o marco divisor de águas entre dois diferentes “mundos”

intelectuais. A saber, a filosofia analítica, e a filosofia continental, que até os dias de hoje,

continuam a cindir departamentos de filosofia por ambos hemisférios de nosso planeta. É,

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Anais do VII Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar (2011)

portanto, esta a pergunta nevrálgica que nos assalta, e que este projeto de pesquisa pretende

ao menos delimitar em seus mais nítidos contornos, fazendo uso destas obras, para identificar a

dinâmica que levou a esta singular configuração que permitiu colocar frente a frente Cassirer e

Heidegger sob o prisma crítico da historicidade: O que significa esta partilha de caminhos na

história da Metafísica e quais suas implicações para a contemporânea fundamentação do

conceito de ser humano?19 Dito isto, o leitor poderá decidir por si mesmo, se obtivemos algum

êxito em nosso empreendimento, haja vista nossa tentativa de oferecer, uma via de discussão,

ou roteiro de leitura, que se afaste de alguns preconceitos que incorrem das análises

precipitadas ou ingênuas sobre o tema em questão. Em linhas gerais, estamos de acordo, que:

“Em março de 1929, Heidegger debateu sua interpretação de Kant com Cassirer em Davos, na Suíça. Cassirer era um neo-Kantiano com uma mistura de hegelianismo. Nossas categorias variam ao longo da história sustentou ele. (...) O homem é de certo modo, infinito, quando ascende as formas simbólicas. À ênfase de Heidegger na finitude, ele objeta que a ética kantiana, que se aplica a todos os “entes racionais” e não apenas aos homens, revela a infinitude do homem, assim como o faz o nosso conhecimento das verdades eternas tais como a matemática. Heidegger replica que só necessitamos de leis morais porque somos finitos, e que a matemática, para Kant, depende de nosso tipo de sensibilidade especial, não sendo portanto mais eterna que nossa compreensão do ser. Cassirer e Heidegger estão freqüentemente em conflito, por serem profundas suas diferenças filosóficas”.20

Vejamos então algumas questões importantes sobre a diferenciação do método

Heideggeriano e Cassireriano e suas implicações existenciais para o Debate de Davos. Qual é

portanto a visão de mundo (Weltanschaaung) à que o ser humano está circunscrito, do ponto

de vista de Heidegger e de Cassirer, e quais suas correlações com o campo metafísico esboçado

pelo criticismo kantiano? Estamos de acordo com o filósofo francês Jean Luc Ferry (Em sua obra

“Kant, uma análise das três críticas” p.69), quando nos diz que este debate gira em torno de

dois pontos de vista distintos sobre o significado da obra Critica da Razão Pura:

“Ao fazer essa ligação entre a primeira e a terceira Crítica, provavelmente tocamos no ponto culminante do sistema kantista. No entanto, ainda resta uma questão a ser elaborada. Ela constitui todo o tema do célebre debate que, nos

19

Todos os grifos do texto são de nossa autoria e responsabilidade. 20

INWOOD M., em “Dicionário Heidegger” p. 105

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anos 20, opôs Heidegger e Cassirer, um dos mais eminentes representantes da escola neokantista: A primeira Crítica deve fundamentalmente ser compreendida como uma nova ontologia, que partiria de uma “analítica da finitude” para elevar-se a uma desconstrução da metafísica ou, de maneira mais banal, como uma teoria moderna do conhecimento, uma simples epistemologia?”

CONCLUSÃO

Como sabemos, tanto Cassirer quanto Heidegger travaram um diálogo constante com

toda a tradição do pensamento Ocidental (com Kant em primeiro plano, mas com referências

também a todos grandes pensadores do mundo ocidental em algumas partes específicas de

suas obras). Esta familiaridade que ambos possuem com a história da filosofia se reflete de

modo constante no desenvolvimento de suas concepções filosóficas. Porém neste ponto,

devemos destacar a diferença metodológica destes autores ao tratar destas questões. Embora

possamos afirmar que ambos possuem um domínio excepcional sobre os clássicos da filosofia, a

abordagem que fazem destas obras é absolutamente distinta, pois aqui se situa um problema

referente à noção de historiografia, ou seja, o conceito de história (e da história da filosofia

propriamente dita) que estes pensadores adotam para a realização e fundamentação de suas

próprias teorias. Vejamos então quais as implicações destas noções distintas. No caso de

Cassirer, sabemos aliás que a repercussão de suas obras como comentador da história da

filosofia21 e noutro particular quanto as que versam sobre a história do desenvolvimento do

pensamento cientifico22, acabaram por sobrepujar sua fama como filósofo stricto senso. Neste

quesito, argumentamos, que embora muito negligenciado ele foi o grande articulador de uma

doutrina absolutamente original, isto é, a sua filosofia das formas simbólicas, que se baseia,

como vimos, em um relativismo antropológico, onde o espírito humano se auto constrói, e se

articula em diferentes mundos/formas. Esta teoria, foi precursora de noções semióticas e

estruturalistas, que por muito tempo se viram relegadas ao segundo plano de sua obra, mas

21

vide os clássicos “A questão Jean Jacques Rousseau”, “A Filosofia do Iluminismo” “Indivíduo e Cosmos na filosofia do Renascimento”. 22

Vide a enciclopédica obra “El problema del conocimiento en la filosofía y en la ciência modernas” 1979, editada em 4 volumes.

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que atualmente, tem sido gradativamente retomada, principalmente por uma releitura

proposta por universidades americanas e do Reino Unido.

Diante desta questão, se esboçam duas concepções antagônicas tanto epistêmicas23,

quanto ontológicas, sobre a história da filosofia. Uma delas, a de Cassirer, nós poderíamos

denominar como “histórica/dialética”, visto sua influência Hegeliana. Por outro lado, em

Heidegger, iremos denominar sua postura como especulativa/hermenêutica (já que seu

objetivo seria o de extrair características novas, retiradas de uma reinterpretação

“tendenciosamente forçada” da tradição metafísica, submetendo-a ao crivo do método

fenomenológico.) O que gostaríamos de ressaltar com isto, seriam as implicações relativas a

escolha de um destes dois diferentes caminhos pela história da metafísica. Na decisão de

engajamento em uma destas duas vias, reside uma grande e incontornável perspectiva

metodológica, quanto aos conteúdos representados pela evolução temporal de determinados

conceitos que se ligam as suas temáticas específicas. Tais conceitos que se encontram

conectados (neste caso específico, em nossa dissertação, a evolução do conceito de “Ser” e

“ente”) a diferentes tradições, passam a desempenhar diferentes papéis em épocas distintas.

Neste sentido temos a concepção de Cassirer sobre Heidegger quanto a sua admissão de um

método historicista, que ele esboça em uma longa, porém elucidativa nota de rodapé (nota 35

p. 223) de sua filosofia das formas simbólicas vol. III “Fenomenologia do Conhecimento”:

Nota (35) Cf.. supra, PP. 213ss Th. Litt (Individuym und Gemeninshaft, 3ª Ed p.307) formula elegante e concisamente a mesma concepção básica da essência do “tempo histórico”: “Vejo o que tem sido e tornado, mover-se até mim como o centro do processo posto que este centro indica ao mesmo tempo o único lugar em que posso mover a alavanca para completar o começado, corrigir o equivocado, realizar o exigido. No entanto, não é uma justaposição exterior de duas formas e direções de configuração o que une em seu seio este centro, como todo foco vital; não é uma concatenação de atos contemplativos e práticos que estiveram unidos meramente pelo principio formal da livre

23

Ver Stein 1973 p.158 - “Tanto no pensamento neokantiano como na fenomenologia de Husserl a intenção fundamental se concentrava na busca daquela esfera em que reside toda a experiência ôntica dos objetos. Além da lógica da experiência deveria haver uma lógica pura. Por isso ambos fugiram de todas as questões facticas ou de conteúdo psicológico. Husserl levou esta atitude até a radicalidade do eu transcendental. Só assim pensava encontrar a condição ontológica do conhecimento ôntico. A transcendentalidade da consciência permitiria descobrir a correlação entre cogitatio e cogitatum, entre sujeito e objeto. Heidegger destaca-se de todas estas tentativa por uma afirmação ousada e totalmente nova: já na minha vida concreta, estou ligado a questão do ser. Só posso ser transcendentalmente, isto é compreendendo a mim mesmo em meu ser.”

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configuração, senão ambos estão intimamente unidos até o último detalhe. Cada linha do devir que vejo correr até mim, desde o passado, significa para mim não só um motivo de articulação e interpretação para o presente, o qual me rodeia e me requer como o reino da história em processo de devir, senão também um chamado a tomar uma decisão com a qual eu, o ator, determino por minha parte o futuro desta realidade... Assim pois, nisso que com uma verdade a medida que chamamos a “imagem”do passado, vive também a vontade a qual se volta por sobre o por vir, e na imagem guiadora com a qual se compromete a vontade se encontra submerso um conhecimento deste passado”. Partindo de suposições essencialmente distintas Heidegger tem fundamento o mesmo resultado, isto é, a intuição do motivo futuro inerente ao “tempo histórico”, e esta fundamentação forma parte dos resultados mais frutíferos e importantes de sua análise de “Ser e Tempo”. “Só o ente – assim resume Heidegger em sua análise – que é essencialmente futuro em seu ser de modo tal que seja livre para nele fracassar para morrer e se ver rechaçado, até para seu ‘aí’ fático, pode...ser momentaneamente para “seu tempo”. Só uma autentica temporalidade que é ao mesmo finita se faz possível, algo assim como destino, isto é, historicidade propriamente dita.” (Ser e tempo, primeira parte, parágrafo 74.) A oposição sistemática básica que existe entre a “metafísica do tempo” de Bérgson e a de Heidegger se encontra talvez expressada nestas frases com a máxima agudeza. (CASSIRER 1998 p.223) (nossa tradução)

Nesta “concepção metafísica do tempo” a partir da finitude do Dasein podemos ainda

fazer uma segunda apreciação do tempo histórico a partir da historicidade do ser, pois neste, se

administra ainda uma possível releitura de todo o passado pelo prisma do presente (enquanto

ser lançado) o que implícita ainda em toda possibilidade do futuro, enquanto cuidado (Sorge)

do Dasein com sua destinação. Neste contexto pela possibilidade que se abre no Dasein

temporal, temos que observar no tempo a constante “metamorfose ideológica” que pode ser

facilmente constatada por exemplo na transposição de certos significados de alguns conceitos

no decorrer de diferentes épocas históricas. Como exemplo, temos os termos gregos, que

foram transpostos para o latim, língua oficial do império romano, vejamos aqui o caso

emblemático do termo razão (Ratio), que no grego antigo era designado por Logos, isto pode

ocasionar implicações indeléveis na interpretação do passado. Na visão de Heidegger, esta

tradução feita pelos romanos, denota já uma interpretação, um tanto quanto impertinente,

como veremos mais a frente. Certamente, tanto Heidegger quanto Cassirer, (pensadores

versados nas línguas antigas e eminentes poliglotas), estavam bastante atentos a estas

modificações dos significados semânticos e suas conseqüentes inadequações em outras línguas

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(a própria linguagem já é sempre uma inadequação em relação ao significado espiritual que

esta tenta em vão exprimir em sua exatidão).24 Rios de tinta, já correram na tentativa de

justificar a modificação dos significados a que são impostos por diversos propósitos e interesses

específicos (geralmente de caráter político) as palavras “traduzidas” de uma para outra língua,

sem contar a re-apropriação dos profundos temas que se referem ao cabedal filosófico,

teológico e cultural, na passagem entre diferentes épocas, impérios e governos.

Verdadeiros malabarismos etimológicos são feitos, por exemplo de caso, com os termos

platônicos e aristotélicos durante a época medieval/escolástica, como veremos no apêndice de

nosso trabalho. Porém, muitas vezes este pretensioso e enviesado “desenvolvimento das

idéias” de um autor, acaba por incorrer em certos “abusos ideológicos” que não justificam a

liberdade do pensamento, nem mesmo dentro da perspectiva de Kant, ao afirmar em uma

passagem famosa de sua primeira crítica que: “Nada há de extraordinário em que, graças à

comparação dos pensamentos que um autor exprimiu acerca de seu objecto, o compreendamos

até melhor do que ele se compreendeu a si próprio, por não ter determinado suficientemente

sua idéia” (KANT 1997 p.263). Porém, quando um pensador, declara peremptoriamente ser

este seu objetivo, não podemos lhe fazer objeções quanto à re apropriação de teorias clássicas,

mesmo que estas, não estejam seguindo o caminho sugerido pelo seu autor original. Neste

campo, é notório o caso de Heidegger. Cuja “má reputação” ocasionada muitas vezes por seu

estilo hermético, de “tomar os pés pelas mãos” de muitos filósofos, não é, no entanto,

resultado nem de má-fé, muito menos signo de uma ingenuidade teórica. Sua minuciosa

atenção, dedicada ao resgate de um sentido já esquecido das palavras, faz com que sua

filologia, se detenha, muitas vezes, aos verdadeiros significados, que deveriam estar

interligados aos termos correntes da tradição metafísica, e ao vocabulário filosófico dos gregos

antigos, que por fim, servem ao propósito de uma nova aplicação dentro de sua teoria. Esta

busca faz com que por vezes ele também se permita o ofício de “ourives”, e seja condescende

com certas extravagâncias, como a “criação” de novos termos (em geral valendo-se da

liberdade que o alemão permite, em referência a aglutinação de palavras), que melhor possam

24

Nietzsche, por exemplo, afirma de que toda palavra já é um pré-conceito; “Jedes Wort ist ein Vorurteil” , e que toda tradução é já uma interpretação: “Jede Übersetzung ist eine Interpretation”

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expressar seus pensamentos, contidos nestes novos conceitos, feitos para a “filigrana” de sua

própria fenomenologia enquanto método do pensamento. Esta “licença poética”, lhe é

concedida graças a todo seu cuidado com a língua alemã, utilizada, até seus limites gramaticais,

para melhor expressar aquilo que seria impronunciável pela linguagem lógico cientifica

tradicional.

Deste modo, Heidegger nos avisa, que o homem deve aprender a escutar o que está

sendo dito em meio ao mais absoluto silêncio. Esta pode parecer uma afirmação contraditória,

mas devemos nos lembrar que para a existência do som, é essencial que em seu intervalo,

exista o silêncio. (“No pensamento, a fala nunca é primeiro” [Heidegger 1969 p. 15]). O Ser, para

Heidegger, não pode ser dito em sua inteireza, visto que ele extrapola todo logos, que tenta

defini-lo (o ser está além do logos, por isso a necessidade do silêncio para que possamos

“escutá-lo” com o pensamento), pois este Ser, é pré-condição de toda definição. Isto é

explorado pelo filósofo, em sua busca pela superação da Metafísica tradicional, onde a tentativa

da filosofia seria de mediar esta relação de afecção do homem, na sua relação de unidade

(enquanto compreensão hermenêutica) com o próprio Mundo (em sua Totalidade). Por isso

Heidegger, mais tarde, no desenvolvimento de seu pensamento, irá considerar de extrema

importância a analítica da linguagem, não por seu viés lógico, mas sim, em seu caráter poético,

para que, tanto quanto possível, exista uma aproximação entre, aquilo que é (a priori), e aquilo

que é dito, de modo a tentar precisar aquilo que é (a posteriori) por meio do logos. Portanto, a

única maneira de se obter um pensamento metafísico sobre o Ser, é abrangê-lo a partir de um

referencial que o englobe e ao mesmo tempo o ultrapasse em seus limites finitos

(transcendência) de modo sine qua non. Devemos nos concentrar no Ser, e para isto ser feito, é

necessário tomar a filosofia, a partir de si mesma, como expressão e diálogo (logos) derradeiro

com toda a tradição e com o próprio “ser lançado” que transpassa o homem em sua essência.

Assim, a pergunta pela metafísica, se torna uma pergunta pelo homem, não em seu sentido

antropológico, mas como indagação sobre; “Quem é o homem?”25

25

As três grandes questões (Que podemos saber? Que devemos Fazer? O que nos é permitido esperar?) seriam então resumidas nesta única dúvida fundamental: Que é o homem? Neste sentido diz Heidegger (1964 p. 173, 174): “Surge aqui uma quarta pregunta acerca Del hombre. No queda como agregada exteriomente a las otras três y como supérflua, por lo tanto, si se considera que La psycologia rationalis como disciplina de La

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“Kant percebeu que ele mesmo contara, pelas suas duas primeiras críticas o caminho para a questão, que é o homem?, isto é, para sua Antropologia filosófica. Esta por sua vez, viera constituir, agora, por sua vez, uma pedra no caminho de sua compreensão sistemática. (...) Assim, Kant reduziu, recuando dum caminho muito promissor, a Antropologia a uma espécie de segunda inquilina da disciplina da filosofia prática. Acima dela estavam a Ética e a filosofia da história.” (STEIN 2010p. 218)

Isto por que, a partir do advento do iluminismo, o homem deve passar a viver sem

dogmas absolutos, pois tanto o sujeito, quanto o objeto estão em constante mutação, restando

ao ser humano, apenas sua liberdade, que é guiada em última instância pela autonomia de sua

razão. Porém, ao se prestar atenção demasiada ao ente racional, na tentativa de objetivá-lo,

esta “ratio sapiens” de que deriva a techné (compreendida como: “produzir a partir do deixar

aparecer”, “tirar de dentro”) o homem acaba se esquecendo que o Ser (como “a questão

metafísica essencial”), não se deixa conhecer a partir de um sujeito que se situa do lado de fora

de seu plano de imanência. Ou seja, o sujeito da ciência, que busca conhecer seu oposto, o

objeto (aos moldes do cogito Cartesiano, ou a partir da epistemologia tradicional, ou mesmo a

partir de uma pretensa ciência positiva). Esta divisão lógica que se estabelece nesta relação

dualista diametralmente oposta, fracionaria a totalidade em duas diferentes instâncias (a do

sujeito [eu singular], e a do seu objeto [neste caso o Ser]). Pressupõe-se que estes (sujeito e

objeto) pudessem ser pensados de modo distinto, como se o sujeito não participasse da

totalidade, o que seria absurdo de um ponto de vista ontológico. Heidegger contrapõe esta

noção clássica (também compartilhada por Descartes) ao seu conceito de Dasein, que é o ser

propriamente humano em sua relação de imanência com o Ser (enquanto totalidade), ou seja, o

Dasein tenta situar sua compreensão do ser em um campo pré lógico, posto que a existência

preceda a própria essência (o que Sartre ira reafirmar). Este Dasein ao se lançar no Mundo

poderia promover o desvelamento (alétheia) do Ser em sua totalidade, por meio de uma

tonalidade afetiva fundamental, a saber a angústia, ou tédio profundo (conceito este inspirado

pelas reflexões de Kiekergaard).

De tudo isto que foi exposto, o que nos é licito concluir, reside no fato, de que tanto

metaphysica specialis, trata ya Del hombre? (...) Com esto Kant expresó inequivocamente el verdadero resultado de su fundamentacion de La metafísica.”

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Heidegger, quanto Cassirer, procuram averiguar fundamentalmente, por caminhos paralelos,

uma mesma e definitiva questão. A saber, a grande e insolúvel questão que versa sobre a

essência do Ser em geral, e de um ser (ou um ente, se preferirem outra terminologia) em

particular, que dentre todos os outros, é único capaz de dar explicações coesas sobre a

estrutura do que é existente em seu entorno e de sua compreensão sobre seus próprios

resultados intelectuais acerca de sua própria condição humana, que por essência busca sempre

uma explicação que o defina enquanto uma parte integrante do Todo. E se não foram

suficientes destacados os grandes esforços para este fim, a partir da exposição destes dois

pensadores que são Heidegger e Cassirer ao menos, nosso texto deverá servir como uma

indicação sobre uma leitura destes grandes filósofos que buscaram com grande afinco a

resposta para aquilo que resulta das três primeiras dúvidas de Kant, e que se resumiria a

questão fundamental, que talvez nunca encontre sua resposta crucial e derradeira: “O que é o

homem?” 26

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FERRY, Luc. Kant: uma leitura das três críticas. Rio de Janeiro: Difel, 2010.

26

Esta questão além de aparecer na Lógica (Ak. Augsg. IX Logik, A25, trad. L. Amoroso, Laterza, Bari, 1984, p. 19) se encontra ainda em uma carta de Kant a C. F. Stäudlin de 1973, na qual Kant afirma que as 4 perguntas constituem o cerne de todo o seu trabalho filosófico.

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