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UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES PRÓ-REITORIA DE PLANEJAMENTO E DESENVOLVIMENTO DIRETORIA DE PROJETOS ESPECIAIS PROJETO “A VEZ DO MESTRE” A MODELAGEM DA ARGILA NA ARTETERAPIA: DE CRIATURA A CRIADOR, O HOMEM (RE)CONHECENDO-SE E (TRANS)FORMANDO-SE A PARTIR DO BARRO FÁTIMA CERVIÑO GIL RIO DE JANEIRO JUNHO / 2003

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UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES PRÓ-REITORIA DE PLANEJAMENTO E DESENVOLVIMENTO

DIRETORIA DE PROJETOS ESPECIAIS PROJETO “A VEZ DO MESTRE”

A MODELAGEM DA ARGILA NA ARTETERAPIA: DE CRIATURA A CRIADOR, O HOMEM (RE)CONHECENDO-SE E

(TRANS)FORMANDO-SE A PARTIR DO BARRO

FÁTIMA CERVIÑO GIL

RIO DE JANEIRO JUNHO / 2003

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UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES PRÓ-REITORIA DE PLANEJAMENTO E DESENVOLVIMENTO

DIRETORIA DE PROJETOS ESPECIAIS PROJETO “A VEZ DO MESTRE”

A MODELAGEM DA ARGILA NA ARTETERAPIA: DE CRIATURA A CRIADOR, O HOMEM (RE)CONHECENDO-SE E

(TRANS)FORMANDO-SE A PARTIR DO BARRO

Apresentação de monografia à Universidade Candido Mendes como condição prévia para a conclusão de Pós-Graduação “Latu-Sensu” em Arteterapia em Educação e Saúde.

Autor Fátima Cerviño Gil

Orientador Prof. Ms. Vilson Sérgio de Carvalho

RIO DE JANEIRO JUNHO / 2003

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AGRADECIMENTOS

A Deus, que me permitiu existir. A Carl Gustav Jung e à Drª. Nise da Silveira, que por sua coragem de ousar e ir mais além na área da Psicanálise, nos presentearam, respectivamente, com sua Análise Junguiana e com a Arteterapia. A meus queridos pais Maria e Manuel, por todo o apoio familiar, amor e carinho e pelas renúncias e sacrifícios feitos ao longo de suas vidas para o meu bem estar. À minha querida irmã Cristina, por sua grande amizade e incansável apoio nos momentos difícies. Ao meu psiquiatra Ricardo Vaz que cuida de mim com tanta competência e carinho. Ao meu arteterapeuta Hesio Fernandes Pinheiro Filho que acreditou em mim, me incentivou, me apoiou e me mostrou um belo caminho profissional para ser seguido através da arte. Que com sua sensibilidade consegue entender até os meus silêncios e com o seu silêncio, inúmeras vezes, respeita os meus momentos e me diz muito mais do que através de palavras. Ao meu orientador Prof. Ms. Vilson Sérgio de Carvalho, por sua orientação segura e pela atenção, paciência e carinho durante a elaboração desta monografia. À minha co-orientadora Eveline Carrano, por sua atenção e carinho sempre presentes. Às minhas professoras Maria Cristina Urrutigaray, Eveline Carrano, Cláudia Brasil, Virgínia de Souza e ao professor Celso Sanches, pelos ensinamentos transmitidos ao longo de todo o curso, com competência, cuidado e carinho. Aos meus colegas de turma, pela solidariedade, pelo apoio e incentivo nos momentos mais difíceis do nosso aprendizado e por todos os bons momentos que passamos juntos. Um agradecimento especial a meus amigos tão queridos Cesar Amorim e Ray Reichelt, amo vocês dois. Aos meus colegas de trabalho, Ana Peixoto, Anna Beatriz Santos e Moyses Júnior, por todo auxílio oferecido e pela compreensão e paciência nos momentos de estresse.

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DEDICATÓRIA

Uma pessoa tão linda e tão querida, que está sempre presente no meu coração ... ... À você, Maria Cristina Urrutigaray, dedico com muito carinho esta monografia. Obrigada por todos os ensinamentos transmitidos ao longo do curso, com grande amor e competência. E obrigada pelo cuidado durante as vivências em sala de aula, as quais muitas vezes mexeram tanto comigo. Mas, lá estava você, sempre atenta, segura e carinhosa, transmitindo a confiança que eu precisava para me entregar. Você está presente na minha vida, muito além da sala de aula, como um exemplo a ser seguido de profissional completa e de pessoa sensível e iluminada. Tudo o mais que eu pudesse escrever para você ainda seria pouco. Mas enquanto escrevo me emociono e, então, penso que os sentimentos valem mais do que mil palavras. Outra vez, obrigada. Por você existir e ser uma pessoa tão especial. Te admiro e te respeito. E te amo muito ... muito ... muito ...

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EPÍGRAFE

“A experiência do trabalho com arteterapia proporciona a possibilidade de reconstrução e de integração de uma personalidade. Contribuindo como procedimento prático e, apoiado num referencial teórico de suporte, permite à aquisição da autonomia, como objetivo ou meta para melhora da vida humana. Pois ao ser possível integrar, pela atuação consciente, o resultado do criado com a temática emocional oculta na representação apresentada, o sujeito adquire a condição de transcender as suas vivências imediatas, experimentando novos sentimentos, e disponibilizando-se para novas oportunidades”. (URRUTIGARAY, 2003: 18)

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RESUMO

O objetivo desta monografia é demonstrar como a técnica de

Modelagem na Argila é “facilitadora”, na Arteterapia, para uma abordagem do

“Homem” de forma integral, por aproximá-lo de seus sentimentos e por remetê-lo à

sua origem a partir do barro.

A argila é o material plástico tomado como elemento central do

estudo devido à sua plasticidade e potencial terapêutico. Seu emprego é

exemplificado nesta monografia através de práticas utilizadas no ateliê

arteterapêutico.

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METODOLOGIA

Para a elaboração da presente monografia foi realizada uma pesquisa

bibliográfica sobre o tema em questão através de livros, artigos publicados em

revistas de Arteterapia e sites da Internet.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO

CAPÍTULO I

CAPÍTULO II

CAPÍTULO III

CAPÍTULO IV

CAPÍTULO V

CONCLUSÃO

BIBLIOGRAFIA

ÍNDICE

FOLHA DE AVALIAÇÃO

9

11

15

18

20

24

29

32

34

35

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INTRODUÇÃO

Na medida em que o homem começou a empreender maiores

esforços na busca por auto-conhecimento e auto-transformação, observou-se a

necessidade de abordagens psicoterapêuticas mais “integradoras” que falassem

não apenas à sua razão mas, também, à sua emoção.

Assim, a Arteterapia apresentou-se como uma modalidade

terapêutica que, apoiada nos fundamentos teóricos da Psicologia, utilizou-se da

Arte para, através de diversas modalidades expressivas (Artes Plásticas, Dança,

Música, Teatro e outras), possibilitar um meio para atingir uma maior aproximação

do homem de seus sentimentos – a Arte utiliza-se da linguagem não verbal, a

“linguagem da emoção” – com o objetivo de promover uma abordagem mais

“integradora” do mesmo.

O objetivo desta monografia foi apresentar um estudo sobre a

utilização da Modelagem na Argila – uma técnica expressiva das Artes Plásticas –

pela Arteterapia, bem como disponibilizar um material bibliográfico específico

acerca do tema, uma vez que a literatura disponível atualmente é ainda muito

escassa.

A escolha do tema deveu-se ao fato de a Modelagem na Argila

aproximar o homem de sua origem, de suas raízes, de sua ancestralidade – ele foi

“modelado” por Deus a partir do “barro” – apresentando-se como uma técnica

expressiva “facilitadora” para possibilitar à Arteterapia atingir o seu objetivo como

modalidade terapêutica.

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Para conseguir realizar o seu objetivo, esta monografia foi

estruturada em cinco capítulos:

No primeiro capítulo procurou-se conceituar Arteterapia e apresentar

o seu objetivo como modalidade terapêutica, bem como os meios que se utiliza

para o alcance do mesmo.

Depois, no segundo capítulo, demonstrou-se a relação do homem

com o barro desde a sua criação e, também, a utilização deste como um meio de

deixar registrada a sua história evolutiva ao longo dos tempos.

À seguir, no terceiro capítulo, a argila é apresentada como o material

plástico que mais remete o homem à sua origem a partir do barro.

Continuando, no quarto capítulo, explicou-se em detalhes o “porquê”

da modelagem na argila aproximar o homem de seus sentimentos.

Por último, no quinto capítulo, a autora apresentou a utilização da

Modelagem na Argila no ateliê arteterapêutico, como um caminho para possibilitar

ao homem o auto-conhecimento e a auto-transformação.

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CAPÍTULO I

ARTETERAPIA:

A EXPRESSÃO DO INCONSCIENTE

ATRAVÉS DA ARTE

Pode-se conceituar Arteterapia como sendo uma modalidade

terapêutica que, utilizando-se da arte como linguagem expressiva e apoiando-se

nos fundamentos teóricos da Psicologia, visa “permitir e sustentar um olhar para o

“Homem” de modo mais integrador. Pelo qual aspectos, tais como os cognitivos –

os afetivos – e os motivadores das ações, possam ser enquadrados dentro de

uma postura totalizadora e unitária”. (URRUTIGARAY, 2003: 13)

“Observando o comportamento humano desde os primórdios da

cultura humana, verifica-se que o “fazer” do homem, ao longo dos séculos, revela

uma necessidade de expressão”. (URRUTIGARAY, 2001: 6)

E é através da arte que o homem encontra-se diante da sua primeira

e mais significativa forma de expressão, surgida antes mesmo que a linguagem

escrita fosse registrada. Segundo Beckett (1997), “por sua antiguidade, pode-se

verificar que a arte é mesmo nosso direito inato. Ela teve início não na história,

mas na pré-história, milhares de anos atrás”. (BECKETT, 1997: 10)

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A partir da pré-história e ao longo dos anos pode-se observar que a

arte faz-se presente registrando toda a história evolutiva do homem, a sua cultura

e religiosidade; representando as necessidades e anseios de cada povo nas

diferentes épocas e, ainda, atuando como influenciadora de mudanças e novos

comportamentos.

“A arte é, antes de tudo, criação” (URRUTIGARAY, 2003: 107). E a

criação está presente na vida do homem desde a sua origem, pois “Deus criou o

homem à Sua imagem, criou-o à imagem de Deus; Ele os criou homem e mulher”.

(Gênesis 1, 27: 19)

E é através da prática da Arteterapia, utilizando-se da arte como

meio para se expressar, que o homem passa de “criatura” à “criador”, trabalhando

e desenvolvendo as inúmeras potencialidades que jazem adormecidas em seu

interior por meio do “fazer”. Porque, conforme escreve Urrutigaray (2003),

“Fazer arte implica diretamente em estimular as ordenações

de idéias surgidas pela elaboração mental, como ação

interativa entre fato e idéia implícita nele, produzindo o

pensamento. Aquele que tem acesso à arte ou ao “fazer

artístico” está tendo oportunidade de desenvolver ou

configurar habilidades, as quais são, por sua vez,

reveladoras da estrutura intelectiva ou cognitiva de quem as

realiza, assim como também de seus sentimentos e valores

ideais. Pois uma imagem projetada num papel ou numa

escultura, ou num movimento do corpo, reflete a maneira

pessoal de cada um relacionar-se, posicionar-se, de estar no

mundo”. (URRUTIGARAY, 2003: 29)

Como objetivo principal a Arteterapia propõe-se a promover a

“individuação” do homem, ou seja, “torná-lo consciente de sua identidade profunda

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como ser único e autêntico no mundo” (GRINBERG, 1977: 227), através da

integração de todos os aspectos de sua personalidade, a qual por sua vez só se

realizará por meio da comunicação do consciente com o inconsciente, visando a

compreensão deste por aquele.

E o elemento central que permite a compreensão do inconsciente,

por parte do consciente, é o “símbolo” (etmologicamente, a palavra símbolo

significa “aquilo que une”). Segundo Jung (1977),

“O que chamamos de símbolo é um termo, um nome ou

mesmo uma imagem que nos pode ser familiar na vida diária,

embora possua conotações especiais além do seu

significado evidente e convencional. Implica alguma coisa

vaga, desconhecida ou oculta para nós.” (JUNG, 1977: 20)

Grinberg (1997) escreve que “pode-se dar forma ao material

simbólico utilizando-se as mais diversas técnicas expressivas” (...) pois, ainda

segundo o autor, “com a utilização dessas técnicas, a fantasia inconsciente é

mobilizada e se expressa. Ganha vida e forma estética. Podemos relacioná-la a

fatos passados, liberar emoções”. (GRINBERG, 1997: 195)

Assim, a Arteterapia apresenta-se como uma modalidade terapêutica

facilitadora no processo de desenvolvimento da individuação do paciente, pois

conforme escreve Urrutigaray (2001),

“a prática da arteterapia facilita a decodificação

(entendimento) do mundo interno, a subjetividade, através

do confronto que o sujeito criador e gerador das imagens,

faz com suas configurações possibilitando a consciência

de seus conteúdos, dado pela análise dos elementos que

a constituem”. (URRUTIGARAY , 2001: 9)

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Segundo Bello (2003), “a energia contida dentro da imagem

simbólica age como uma força direcional, guiando a psique na sua evolução

interior para a individuação. Com o tempo, o símbolo se define melhor e seu

conteúdo inconsciente passa à consciência”. (BELLO, 2003: 84)

Dessa forma, como técnica expressiva, “a arteterapia alcança sua

meta como função terapêutica por permitir essa passagem de um conteúdo

inconsciente, não assimilado, transmutado ou transformado em outro

conscientizado”. (URRUTIGARAY, 2003: 25)

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CAPÍTULO II

DO BARRO AO HOMEM ... DO HOMEM AO BARRO

“O ser humano, nas várias culturas e fases históricas,

revelou essa intuição segura: pertencemos à Terra; somos

filhos e filhas da Terra; somos Terra. Daí que homem vem de

húmus. Viemos da Terra e a ela voltaremos. A Terra não

está à nossa frente como algo distinto de nós mesmos.

Temos a Terra dentro de nós. Somos a própria Terra que na

sua evolução chegou ao estágio de sentimento, de

compreensão, de vontade, de responsabilidade e de

veneração. Numa palavra: somos a Terra no seu momento

de auto-realização e de autoconsciência.” (BOFF, 1999: 72)

A vida origina-se da criação e, desde a sua criação, o homem está

intimamente ligado ao barro. Em seu íntimo jazem inúmeras possibilidades e

potencialidades originadas da terra fértil, que aguardam o momento propício para

serem desenvolvidas.

Dentro da visão ocidental para a criação do homem, encontramos na

tradição judaico-cristã a seguinte afirmação: “O Senhor Deus formou o homem do

pó da terra e insuflou-lhe pelas narinas o sopro da vida, e o homem transformou-

se num ser vivo”. (Gênesis 2, 7: 19)

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Na Mitologia, conforme a crença dos povos da antiguidade, o Mito de

Prometeu nos oferece a explicação para a criação do homem a partir do barro:

“Segundo os antigos gregos, Zeus e Prometeu tinham feito o

homem. Prometeu era um titã, um dos velhos deuses que

apoiara Zeus na sua luta com Crono. E foi Prometeu quem

modelou com barro os primeiros homens, fazendo-os andar

na posição vertical para poderem olhar os deuses. E Zeus

deu-lhes o sopro da vida” .

(http://www.prometeupoesias.hpg.ig.com.br/prometeu.html)

Boff (1999) narra a fábula-mito de Higino, também conhecida como a

fábula-mito do Cuidado. Sua origem data de antes de Cristo e é o resultado da

recopilação de histórias e mitos da tradição grega e latina, reelaborados por Higino

nos termos da cultura romana. Essa fábula-mito, faz um bela referência à criação

do homem a partir do barro:

“Certo dia, ao atravessar um rio, Cuidado viu um pedaço de

barro. Logo teve uma idéia inspirada. Tomou um pouco do

barro e começou a dar-lhe forma. Enquanto contemplava o

que havia feito, apareceu Júpiter.

Cuidado pediu-lhe que soprasse espírito nele. O que Júpiter

fez de bom grado.

Quando, porém, Cuidado quis dar um nome à criatura que

havia moldado, Júpiter o proibiu. Exigiu que fosse imposto o

seu nome.

Enquanto Júpiter e o Cuidado discutiam, surgiu, de repente,

a Terra. Quis também ela conferir o seu nome à criatura, pois

fora feita de barro, material do corpo da Terra. Originou-se

então uma discussão generalizada.

De comum acordo pediram a Saturno que funcionasse como

árbitro. Este tomou a seguinte decisão que pareceu justa:

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“Você, Júpiter, deu-lhe o espírito; receberá, pois, de volta

este espírito por ocasião da morte dessa criatura.

Você, Terra, deu-lhe o corpo; receberá, portanto, também de

volta o seu corpo quando essa criatura morrer.

Mas como você, Cuidado, foi quem primeiro moldou a

criatura, ficará sob seus cuidados enquanto ela viver.

E uma vez que entre vocês há acalorada discussão acerca

do nome, decido eu: esta criatura será chamada Homem, isto

é, feita de húmus, que significa terra fértil”. (BOFF, 1999: 46)

E também a Arqueologia através de seus estudos, pesquisas e

descobertas, formando um elo entre o presente e o passado da humanidade,

apresenta-nos um acervo de inúmeras peças modeladas no barro, desde a pré-

história, demonstrando-nos a permanente e constante ligação do homem com o

barro, uma ligação com o Divino e com a Mãe Terra.

Do barro fomos criados, através do barro nos expressamos para

contarmos nossa história ao longo dos tempos e, no final, ao barro retornaremos.

É a história do homem ... do barro ao homem ... do homem ao barro!

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CAPÍTULO III

“ARGILA: A MASSA PERFEITA”

Segundo Carrano (2002), a argila é uma massa obtida da terra,

retirada de encostas feitas de barro (as “barreiras”). Ela é extraída de forma

primitiva: primeiro ela é retirada manualmente da barreira; a seguir, é purificada

através da peneiração ou socagem, para a retirada dos pedaços duros (não

modeláveis); e, posteriormente, é adicionada água em quantidade apropriada para

se obter a massa de consistência adequada para a modelagem. A argila deve ser

armazenada de tal forma que sua umidade seja mantida, a fim de não perder suas

propriedades adequadas à modelagem.

Várias pesquisas e análises comprovam a riqueza da argila em

inúmeros minerais e oligo-elementos que atuam de forma natural e eficiente em

várias perturbações do corpo, e por isso ela vem sendo amplamente utilizada pela

medicina alternativa e pela cosmetologia, em função de sua ação anti-séptica,

cicatrizante, desintoxicante, absorvente, adstringente, secativa, tonificante e

revitalizante.

Dentro do contexto histórico, a argila apresenta-se como a matéria-

prima de todas as civilizações pós-paleolíticas, expressando a história, a cultura, a

religiosidade e a arte dos povos através dos tempos. Por isso a sua utilização pela

Arteterapia é incomparável em relação a outros materiais plásticos.

“De fato, independente de toda idéia de mistura da terra com

a água, parece que se pode afirmar a existência de um

verdadeiro protótipo da massa imaginária no reino da

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imaginação material. Na imaginação de cada um de nós

existe a imagem material de uma massa ideal, uma perfeita

síntese de resistência e de maleabilidade, um maravilhoso

equilíbrio das forças que aceitam e das forças que repelem.

A partir desse estado de equilíbrio que confere uma imediata

alacridade à mão trabalhadora, têm origem os juízos

pejorativos inversos do mole demais e do duro demais. Dir-

se-á do mesmo modo que no centro desses dois contrários,

a mão conhece por instinto a massa perfeita”. (BACHELARD,

2001: 64)

É na argila que pode-se encontrar essa “massa originária”, “a massa

ideal”, a “massa perfeita”, a massa que por suas propriedades de flexibilidade e

maleabilidade adaptam-na às necessidades mais variadas de expressão do

homem.

É fácil tornar-se “uno” com a argila, porque ela remete o homem à

sua criação (do barro fomos criados), possibilitando a manifestação de processos

internos primários e permitindo uma fluidez entre o “material” e o “manipulador”,

pois “a mão conhece por instinto a massa perfeita”. Segundo Urrutigaray (2003),

“por ser um material ou substância da terra, porta aquele que a utiliza a

experiência de criar e ser criado simultaneamente, vivenciando a si mesmo como

criatura e criador” (URRUTIGARAY, 2003: 64)

CAPÍTULO IV

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MODELAGEM NA ARGILA:

UM MEIO DE APROXIMAR O HOMEM DE SEUS

SENTIMENTOS

“É na modelagem de um barro primitivo que a Gênese

encontra as suas convicções. Em suma, o verdadeiro

modelador sente, por assim dizer, animar-se sob seus dedos,

na massa, um desejo de ser modelado, um desejo de nascer

para a forma”. (BACHELARD, 2001: 80-81).

No trabalho de modelagem, através da utilização da argila, o homem

está diante da presença do barro. Sob um aspecto religioso, esse fato remete-o a

“um saber milenar” que o liga à sua criação, a partir do barro. Conforme escreve

Golvêa (1989),

“A natureza misteriosa do barro foi que propiciou ao ser

humano um conhecimento mais profundo de si mesmo. A

partir da estrutura oculta do barro o homem vem se

descobrindo quando pelo calor de suas mãos faz da terra

molhada a confidente de imagens carregadas de emoções

vividas e por viver. No barro o homem cria e é criado. No

barro ele encontra o espaço da divindade em si. Cria à si

mesmo à imagem e semelhança de Deus e dá vazão à sua

onipotência sem precisar enlouquecer. A consciência se

aproxima do inconsciente ao penetrar nas trevas oriundas da

própria matéria. Na alma do barro desvela-se a alma do

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homem. Na natureza do barro a psique do homem se refugia.

O obscuro da matéria se vê preenchido, fecundado pelo

obscuro do homem e, numa espécie de participação mística,

a identificação inconsciente acontece”. (GOLVÊA, 1989: 59)

Nenhum outro material plástico aproxima mais o homem de sua

“ancestralidade” do que a argila. Expressando sua história ao longo dos tempos,

através da modelagem na argila, o homem está “arquetípicamente” ligado ao

barro. Segundo Carrano, (2002),

“Ao manipular a argila, figuras arquetípicas passam por

nossas mãos, espremem-se entre nossos dedos, criam

formas, contam histórias, nos remetem a complexos,

configuram nossos símbolos. Ganham vida simbólica e

criativa, deixando-se fluir na própria criação”. (Carrano, 2002:

115)

Por possibilitar a expressão de uma linguagem não verbal, e portanto

não sujeita a censuras, a modelagem na argila aproxima o homem de seus

sentimentos, proporcionando uma “quebra das barreiras protetoras” que

bloqueiam a livre expressão de emoções, oferecendo assim a possibilidade de

criar um acesso para os lugares mais profundos do seu íntimo e permitindo a

construção de imagens de grande significado simbólico. Em referência a esse fato,

Urrutigaray (2003) escreve:

“Material mais próximo de um sentido visceral, devido seu

aspecto, traz em si uma modalidade de ênfase ao trabalho

com as mãos como propulsoras de imagens de experiências

mais fortes, mais viscerais, que usualmente encontram-se

dificultadas na sua expressão, verbalização, devido à

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interferência da consciência do ego”. (URRUTIGARAY, 2003:

63)

A modelagem na argila possibilita um meio para a ajudar o homem a

reconstruir a si mesmo, através da superação de alguns de seus conflitos

emocionais. Promove o “fortalecimento da personalidade” permitindo que pessoas

inseguras tenham a oportunidade de experimentar a sensação de “controle”, pois

em função das propriedades de flexibilidade e maleabilidade da argila, o trabalho

iniciado pode ser “desmanchado” e “recriado” inúmeras vezes e de diferentes

formas. E possibilita o “aumento da auto-estima”, permitindo que pessoas

depressivas tenham a oportunidade de ver o resultado concreto de sua criação,

despertando nelas o sentimento de “valor” e de “ser capaz de criar algo”.

“Favorecedora de descargas emocionais” (URRUTIGARAY, 2003:

64), a modelagem na argila possibilita a pessoas agressivas e que acumulam

raiva a oportunidade de descarregar suas emoções negativas e obter, como

resultado, um efeito calmante.

Por aproximar o homem de seus sentimentos, a modelagem na argila

possibilita o emergir de reações emocionais diversas.

Sendo uma massa macia, flexível e maleável, e por remeter o

homem a suas raízes, a argila pode apresentar-se como um material plástico

prazeroso e agradável aos sentidos.

Mas pode acontecer, também, de ser considerada como um material

“repulsivo”, desagradável e incômodo ao manuseio pois, vista como uma massa

mole, úmida e que faz sujeira, a argila pode facilmente ser associada aos

excrementos, remetendo a dificuldades vivenciadas pelo homem no período de

sua fase anal.

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O incômodo experimentado diante da sujeira produzida pela

manipulação da argila pode ser significativo de problemas emocionais associados

a uma possível compulsão por limpeza.

Segundo Urrutigaray (2003),

“A manipulação deste material provoca no sujeito diversas

posturas, desde a mais profunda rejeição, dada às questões

regredidas que o material aporta, ligadas aos aspectos

referentes às sujeiras internalizadas, adquiridas tanto pela

dimensão cultural como àquelas resultantes de experiências

pessoais tidas como inaceitáveis, não adequadas,

desprezíveis, insuportáveis, e odiosos. Como pode, ao

contrário, provocar estados de profundo alívio e prazer pela

possibilidade de exteriorizar sentimentos, quanto por permitir

o manuseio de uma matéria tão próxima às nossas raízes

simbólicas: pois pela Bíblia o homem foi criado do barro:

Deus fez o homem à sua imagem e semelhança.”

(URRUTIGARAY, 2003: 63)

Através da arte da modelagem no barro temos, talvez, a primeira

forma de o homem transformar a natureza, de deixar suas marcas impressas ao

longo da história e de se expressar artisticamente, pois há referências de que a

modelagem no barro remonta à cerca de 40.000 anos, antes mesmo de surgirem

as primeiras pinturas rupestres nas cavernas.

No contexto arteterapêutico, é através das mãos que amassam, que

criam e que dão vida e forma a diversas imagens, que ele modela os conteúdos

originários do seu inconsciente, os quais, posteriormente, poderão ser

confrontados e elaborados para possibilitar o seu auto-conhecimento e

transformação, abrindo um caminho para o seu desenvolvimento integral

consciente.

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CAPÍTULO V

A MODELAGEM DA ARGILA NO ATELIÊ

ARTETERAPÊUTICO:

UM CAMINHO PARA O AUTO-CONHECIMENTO E A

AUTO-TRANSFORMAÇÃO

Quando no ateliê arteterapêutico o paciente modela uma peça de

argila, ele está “abrindo” um caminho para o “auto-conhecimento” e a “auto-

transformação”, pois todo o processo criativo – do início da modelagem à imagem

final acabada - tem como finalidade “trazer à luz um conteúdo inconsciente para

ser confrontado e integrado”. (URRTIGARAY, 2003: 24)

A modelagem na argila tem uma função “facilitadora” pois, durante o

processo criativo, o paciente pode desmanchar a imagem inicial e refazê-la outras

vezes de diferentes maneiras. “O poder de inovar, de fazer diferente, aumenta a

auto-estima, fortalece a personalidade, e dota de energia a consciência para

enfrentar futuras escolhas e definições diante da própria vida”. (URRUTIGARAY,

2003: 18). Nesse ato de “desmanchar” e “refazer”, ele vai percebendo que pode

transformar sentimentos, emoções e experiências negativas e destrutivas em

outras, “positivas” e “construtivas”. Isso possibilita ao paciente elaborar seus

conteúdos internos e fazer uma ponte entre suas vivências e experiências no

ateliê arteterapêutico com as do seu dia-a-dia, na prática cotidiana. Da mesma

forma que ele pode modificar a sua escultura, ele também pode modificar as

situações de sua vida causadoras de conflitos e sofrimentos. Golvêa (1989)

escreve:

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“(...) começa-se pelo mole do barro o encontro com a solidez

de uma vida. Na placidez do barro o analisando molda o que

irá desbastar momentos depois. O “ser” do barro é massa

que, unida à faculdade de formar imagens que o analisando

possui, e ao calor de suas mãos, pode transformar, construir

um mundo vivo (...)”. (GOLVÊA, 1989: 57)

Nas sessões arteterapêuticas, desde o início da modelagem até o

ponto final da imagem criada, o arteterapeuta tem a possibilidade de observar o

paciente em totalidade: a forma como ele reage à argila, sua postura corporal

durante a modelagem e a forma como ele modela, suas reações durante a

modelagem e diante da imagem final surgida. Em cada sessão algo de novo pode

vir à tona e isso é possível de ser observado pelo arteterapeuta.

Por sua propriedade de “materializar-se”, a argila possibilita que a

imagem modelada em uma sessão arteterapêutica possa estar presente em todas

as demais sessões consecutivas, servindo, assim, de poderoso meio de apoio e

orientação à interpretação e análise, por parte do arteterapeuta, de todo o

processo vivenciado pelo paciente. A partir de cada imagem modelada, o

arteterapeuta tem a possibilidade de entrar em contato com os símbolos

presentes, recorrentes ou não, fazendo uma correlação com as demais imagens

surgidas ao longo das sessões anteriores e posteriores, observando com mais

segurança os conflitos do paciente, bem como os progressos surgidos e/ou as

possíveis recaídas.

Ao longo das sessões de arteterapia o paciente, com a ajuda do

arteterapeuta, tem a oportunidade de realizar um “diálogo” com as imagens

modeladas. É através desse diálogo, numa ralação verdadeira de integração e

entrega com a imagem criada, que a vivência da transformação vai poder se

realizar. Na modelagem na argila esse diálogo é facilitado devido à imagem criada

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ser tridimensional, permitindo ao paciente e ao arteterapeuta um “olhar” mais

completo da mesma. Através desse diálogo o paciente tem a possibilidade de se

confrontar com suas imagens internas projetadas na materialização efetuada e de

entender e dar sentido ao que está sendo significado, pois “a percepção das

imagens – formas, pelo autor da obra, podem, pela condução do arteterapeuta

como mediador do processo, trazer clarificação ou conscientização de

acontecimentos psíquicos não identificados, ou não percebidos.”

(URRUTIGARAY, 2003: 19). Assim, através da sua “criação”, o paciente abre uma

porta de entrada para o seu inconsciente e, através das etapas de construção da

sua consciência individual, as situações de desordem emocional e psíquica vão

cedendo lugar à ordem e à organização.

Segundo Pain (2001), “no trabalho de modelagem, todos os

elementos considerados como primários e sagrados pelos antigos intervêm: a

terra, a água, o fogo, o ar”. (PAIN, 2001: 128). E Golvêa (1989) nos diz que “o

cosmo do barro, da argila, oferece um universo imediato e se vincula às quatro

raízes, províncias matrizes de nosso universo: o ar, a água, a terra e o fogo”.

(GOLVÊA, 1989: 56)

Dessa forma, modelando a argila durante a sessão arteterapêutica,

em todas as etapas do processo criativo - modelagem, “secagem” da peça,

“cozimento” da peça, peça acabada -, o paciente tem a possibilidade de entrar em

contato com esses quatro elementos da natureza (terra, ar, fogo e água).

E também tem a possibilidade de “vivenciar” as quatro funções

psicológicas da “Tipologia de Jung” (sensação, pensamento, intuição e

sentimento), que se encontram associadas a esses quatro elementos. Para

Grinberg (1997), “tudo aquilo que o ego empregar visando relacionar-se consigo

mesmo, com o mundo e com os outros é uma função psicológica” (GRIBERG,

1997: 75). Trabalhar no paciente, conjuntamente com os quatro elementos, as

quatro funções psicológicas, vai possibilitar que ele desenvolva a auto-consciência

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pois, segundo Jaffé (1977), “elas preparam o homem para lidar com as

impressões que recebe do exterior e do interior. É através destas funções que ele

compreende e assimila a sua experiência. E é ainda através delas que pode

reagir”. (JAFFÉ, 1977: 240)

A sensação consiste em uma “percepção” que se dá por meio dos

órgãos dos sentidos. Ela diz que algo existe. É responsável pela estruturação

básica da vida. É a função psicológica associada ao elemento terra, elemento

representativo da origem da vida, ligado às raízes e às bases da humanidade. A

“modelagem” da peça de argila, primeira etapa do processo criativo do paciente na

sessão de arteterapia, está diretamente associada à função sensação e ao

elemento terra. No ato de modelar, no contato com a argila, o paciente

experimenta a textura, a consistência e a temperatura do material bem como todas

as reações positivas e/ou negativas que o contato com esse material desencadeia

em seu interior. Ele também experimenta a sensação de lidar com a terra, que

sustenta, nutre, acolhe e favorece a imaginação criativa.

O pensamento possibilita “reconhecer” o significado de algo. Ele

revela o que é esse algo. Permite a “conceituação” e favorece o estabelecimento

do sentido de ordem. É a função psicológica associada ao elemento ar, elemento

representativo da percepção de si mesmo, símbolo de comunicação, de expansão

e de liberdade. A “secagem” da peça modelada, segunda etapa do processo

criativo do paciente na sessão de arteterapia, está diretamente associada à função

pensamento e ao elemento ar. O paciente experimenta a possibilidade de entrar

em contato, de forma concreta, com os conteúdos de seu inconsciente, projetados

na imagem modelada. Ao olhar para essa imagem, ele tem a possibilidade de

“dialogar” com ela, buscando um reconhecimento e um entendimento desses

conteúdos inconscientes, abrindo um caminho para a compreensão intelectual e

emocional dos mesmos e permitindo criar um espaço para posteriores

transformações e libertação dos seus conflitos internos.

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A intuição “revela” as inúmeras possibilidades que residem em cada

fato. Promove a noção de origem e de destino de algo. É a função psicológica

associada ao elemento fogo, elemento purificador, regenerador e transformador

mas, também, que pode destruir. O “cozimento” da peça modelada, terceira etapa

do processo criativo do paciente na sessão de arteterapia, está diretamente

associada à função intuição e ao elemento fogo. O paciente experimenta a

expectativa “do que irá acontecer”. Seus medos, ansiedades, insegurança,

impaciência e demais sentimentos e emoções “conflitivos” estão sendo

trabalhados. O paciente tem a possibilidade de observar como ele lida com as

diferentes situações do dia-a-dia e como ele se posiciona diante de si mesmo e no

mundo.

O sentimento “mostra o valor” de algo. Possibilita uma visão de

“sentido” ou de profundidade e a afirmação da auto-estima. É a função psicológica

associada ao elemento água, elemento que é fonte de vida, meio de purificação,

propiciador de regeneração; é símbolo de fluidez e relaxamento; é facilitador da

concretização das imagens dos conteúdos do inconsciente. A “observação” da

peça modelada acabada, quarta etapa do processo criativo do paciente na sessão

de arteterapia, está diretamente associada à função sentimento e ao elemento

água. O paciente observa a sua criação e acrescenta à ela um significado. E ao

perceber que ele conseguiu “idealizar” e “realizar”, ele se reconhece possuidor de

valor e capaz de criar, de concretizar os seus desejos, promovendo assim um

fortalecimento da sua auto-estima.

Segundo Golvêa (1989), “quando no encontro com a terra, a mão faz

algo de novo surgir, é o milagre da vida que acontece, da natureza um sopro de

energias conflui e o homem cria. (...) Nesses momentos,( ...) a concretude de algo

que foi criado, retorna para o indivíduo em saúde”. (GOLVÊA, 1989: 63-64)

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CONCLUSÃO

Conforme foi abordado no decorrer desta monografia, o homem está

ligado ao barro desde a sua origem.

Assim, na Arteterapia, nenhuma outra técnica expressiva e nenhum

outro material plástico aproxima mais o homem de sua origem que a Modelagem

na Argila.

Argila “é” barro. Do barro o homem foi criado, no barro ele deixou

suas “marcas” ao longo de sua história evolutiva e, um dia, ao barro retornará.

Assim, a argila tem o poder de aproximar o homem de suas raízes, pois carrega

consigo uma simbologia que o remete à sua ancestralidade.

Modelar é “dar forma a algo” é “criar”. Como grande e primeiro

criador, Deus modelou o Homem à Sua imagem e semelhança. Herdeiro de Deus,

no ato da criação, quando modela na argila, é a si mesmo que o homem está

dando forma, pois a modelagem é uma técnica que possibilita a “quebra” de

barreiras emocionais, aproximando o homem de seus sentimentos, de seu “eu”

mais profundo.

Assim sendo, no ateliê arteterapêutico, a Modelagem na Argila

possibilita uma abordagem mais totalizadora do paciente:

• Permite a permanente possibilidade de “mudança” e “transformação” – em

função de sua propriedade de flexibilidade e maleabilidade a argila permite

que a imagem criada possa ser modificada. Quando o paciente leva essa

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vivência para fora do ateliê arteterapêutico ele percebe que também pode

realizar mudanças e transformações em sua vida.

• Possibilita ao arteterapeuta um “olhar” mais completo sobre o paciente – além

da imagem criada, ele pode observar todas as reações emocionais do

paciente diante da argila bem como durante todo o processo da modelagem.

• Permite um acompanhamento mais integral da evolução do paciente e/ou de

suas possíveis recaídas – por sua propriedade de “materializar-se” a argila

possibilita que a imagem criada esteja presente em todas as sessões

arteterapêuticas.

• Possibilita ao paciente um maior “diálogo” com a imagem criada – por permitir

a criação de uma imagem tridimensional, a modelagem facilita que o paciente

possa “ver mais além” a mensagem representada na imagem possibilitando

uma maior precisão na decodificação da mesma.

• Permite ao paciente a vivência das quatro funções psicológicas

simultaneamente – do início da modelagem, passando pela “secagem” da

peça, seguida do “cozimento da mesma até a peça acabada, os quatro

elementos (terra, ar, fogo e água) associados às quatro funções psicológicas

também estão presentes, e unidos – as funções e os elementos – favorecem a

auto-consciência a partir da compreensão por parte do paciente das

impressões de seu mundo interno e do mundo externo.

Dessa forma, atendendo a proposta da Arteterapia de promover o

auto-conhecimento e a auto-transformação do homem, através de uma linguagem

não verbal – a linguagem da emoção, e por isso menos sujeita à racionalização e

censuras por parte da consciência –, a Modelagem na Argila apresenta-se como

um caminho que possibilita trazer à consciência um conteúdo oculto, oriundo do

inconsciente, para ser decodificado e assimilado.

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Assim, por todas as suas propriedades facilitadoras em relação às

demais técnicas e materiais plásticos, conclui-se que a Modelagem na Argila

mostra-se como um meio eficiente para a superação de conflitos e desordens

emocionais e para o desenvolvimento de todas as potencialidades do homem,

possibilitando como consequência levá-lo à “cura” e à “saúde”.

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ÍNDICE

FOLHA DE ROSTO

AGRADECIMENTOS

DEDICATÓRIA

EPÍGRAFE

RESUMO

METODOLOGIA

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO

CAPÍTULO I

CAPÍTULO II

CAPÍTULO III

CAPÍTULO IV

CAPÍTULO V

CONCLUSÃO

BIBLIOGRAFIA

ÍNDICE

FOLHA DE AVALIAÇÃO

ii

iii

iv

v

vi

vii

viii

9

11

15

18

20

24

29

32

34

35

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UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES PRÓ-REITORIA DE PLANEJAMENTO E DESENVOLVIMENTO

DIRETORIA DE PROJETOS ESPECIAIS PROJETO “A VEZ DO MESTRE”

A MODELAGEM DA ARGILA NA ARTETERAPIA: DE CRIATURA A CRIADOR, O HOMEM (RE)CONHECENDO-SE E

(TRANS)FORMANDO-SE A PARTIR DO BARRO Data da entrega: 25 de junho de 2003 Avaliado por: Prof. Ms. Vilson Sérgio de Carvalho Grau: _________

Rio de Janeiro, ___ / ___ / ___.

____________________________

Coordenador do Curso

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