arteterapia com famílias - psicanálise winnicotiana

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  • 5/25/2018 Arteterapia Com Famlias - Psicanlise Winnicotiana

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    UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    INSTITUTO DE PSICOLOGIA

    MARA BONAF SEI

    Arteterapia com famlias e psicanlise winnicottiana: uma

    proposta de interveno em instituio de atendimento

    violncia familiar

    So Paulo

    2009

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    MARA BONAF SEI

    Arteterapia com famlias e psicanlise winnicottiana: uma

    proposta de interveno em instituio de atendimento

    violncia familiar

    Tese apresentada ao Instituto dePsicologia da Universidade de So Paulopara obteno do Ttulo de Doutor emPsicologia

    rea de Concentrao: Psicologia Clnica

    Orientadora: Profa. Associada IsabelCristina Gomes

    So Paulo

    2009

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    AUTORIZO A REPRODUO E DIVULGAO TOTAL OU PARCIAL DESTETRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRNICO, PARAFINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.

    Catalogao na publicaoBiblioteca Dante Moreira Leite

    Instituto de Psicologia da Universidade de So Paulo

    Sei, Mara Bonaf.Arteterapia com famlias e psicanlise winnicottiana: uma

    proposta de interveno em instituio de atendimento violncia familiar / Mara Bonaf Sei; orientadora Isabel CristinaGomes. -- So Paulo, 2009.

    144 p.Tese (Doutorado Programa de Ps-Graduao em

    Psicologia. rea de Concentrao: Psicologia Clnica) Institutode Psicologia da Universidade de So Paulo.

    1. Arte-terapia 2. Famlia 3. Winnicott, Donald Woods,1896-1971 4. Violncia na famlia I. Ttulo.

    RC489.A7

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    FOLHA DE APROVAO

    Nome: Mara Bonaf Sei

    Ttulo: Arteterapia com famlias e psicanlise winnicottiana: uma proposta de

    interveno em instituio de atendimento violncia familiar.

    Tese apresentada ao Instituto dePsicologia da Universidade de So Paulopara obteno do Ttulo de Doutor emPsicologia

    rea de Concentrao: Psicologia Clnica

    Orientadora: Profa. Associada IsabelCristina Gomes

    Aprovado em:

    Banca Examinadora

    Prof. Dr. ____________________________________________________________

    Instituio: ___________ Assinatura: _____________________________________

    Prof. Dr. ____________________________________________________________

    Instituio: ___________ Assinatura: _____________________________________

    Prof. Dr. ____________________________________________________________

    Instituio: ___________ Assinatura: _____________________________________Prof. Dr. ____________________________________________________________

    Instituio: ___________ Assinatura: _____________________________________

    Prof. Dr. ____________________________________________________________

    Instituio: ___________ Assinatura: _____________________________________

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    Dedico este trabalho a Achiles Sei e VeraBonaf, meus pais, por proporcionarem umambiente suficientemente bom, quepossibilitou minha intensa dedicao satividades acadmicas e profissionais.

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    AGRADECIMENTOS

    Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior (CAPES) e

    Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo (FAPESP), pela

    concesso da bolsa de doutorado e pelo apoio financeiro para realizao desta

    pesquisa.

    Profa. Associada Isabel Cristina Gomes, pela orientao, apoio e confiana

    depositada em mim, com um olhar para a jovem pesquisadora que poucos

    conseguiam ter. Permitiu que eu me abrisse para novas formas de interveno em

    Psicologia Clnica, tanto ao me iniciar na prtica com famlias quanto por aceitar que

    inserisse a Arteterapia nestes atendimentos.

    Dra. Cristina Dias Allessandrini, pela leitura atenta e cuidadosa do texto no Exame

    de Qualificao, pelas sugestes recebidas, por acreditar e respeitar minhas idias

    no que concerne Arteterapia e por seu importante papel no maior reconhecimento

    deste campo do saber tanto no contexto nacional, quanto internacionalmente.

    Profa. Dra. Maria de Ftima Arajo pelas observaes e sugestes no Exame de

    Qualificao.

    Aos colegas do Grupo de Pesquisa Casal e Famlia: Clnica e Estudos Psicossociais

    pelas trocas e enriquecimento propiciados em nossos encontros.

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    amiga, colega de profisso, parceira em artigos e projetos, Elisa Corbett, que com

    seu Projeto Acolher, desenvolvido no SOS Ao Mulher e Famlia, to

    sensivelmente encaminhou famlias para a Arteterapia e tornou possvel o

    empreendimento de minha proposta de interveno.

    amiga Karen Ferri Bernardino pelos projetos e idias trocadas no campo da

    Arteterapia, alm dos momentos compartilhados em nossas vidas pessoais.

    amiga Carolina Grespan Pereira Souza pela amizade, pelos intercmbios no

    campo da Psicologia e da pesquisa, alm de gentilmente colaborar na reviso da

    traduo para o ingls do resumo desta tese.

    Ao SOS Ao Mulher e Famlia, por aceitar minha proposta de interveno, ceder o

    espao e confiar no trabalho por mim desenvolvido. Que as reflexes advindas desta

    investigao possam, ento, servir para um contnuo aprimoramento dos servios

    ofertados por esta instituio.

    Aos meus tios, Caio e Eliana Bonaf, pela recepo e acolhimento em minhas

    viagens a So Paulo.

    A Maria Claudinete e ao restante da minha famlia, pelo apoio sempre dado ao longode minha trajetria.

    Ao querido Mauricio, pelo intenso carinho e compreenso, apesar da recente

    entrada em minha vida.

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    Pensar transgredir

    No me lembro em que momento percebi que viver deveria ser uma permanentereinveno de ns mesmos para no morrermos soterrados na poeira da

    banalidade embora parea que ainda estamos vivos.

    Mas compreendi, num lampejo: ento isso, ento assim. Apesar dos medos,convm no ser demais ftil nem demais acomodada. Algumas vezes precisopegar o touro pelos chifres, mergulhar para depois ver o que acontece: porque a

    vida no tem que ser sorvida como uma taa que se esvazia, mas como o jarro quese renova a cada gole bebido.

    Para reinventar-se preciso pensar: isso aprendi muito cedo.

    Apalpar, no nevoeiro de quem somos, algo que parea uma essncia: isso, mais oumenos, sou eu. Isso o que queria ser, quero me tornar ou j fui. Muita inquietao

    por baixo das guas do cotidiano. Mais cmodo seria ficar com o travesseiro sobre acabea e adotar o lema reconfortante: Parar para pensar, nem pensar!

    O problema que quando menos se espera ele chega, o sorrateiro pensamento quenos faz parar. Pode ser no meio do shopping, no trnsito, na frente da tev ou docomputador. Simplesmente escovando os dentes. Ou na hora da droga, do sexo

    sem afeto, do desafeto, do rancor, da lamria, da hesitao e da resignao.

    Sem ter programado, a gente pra pra pensar.

    Pode ser um susto: como espiar de um berrio confortvel para um corredor commil possibilidades. Cada porta, uma escolha. Muitas vo se abrir para um nada ou

    para uma escolha. Outras, para um jardim de promessas. Alguma, para a noite almda cerca. Hora de tirar os disfarces, aposentar as mscaras e reavaliar: reavaliar-se.

    Pensar pede a audcia, pois refletir transgredir a ordem do superficial que nospressiona tanto.

    Somos demasiado frvolos: buscamos o atordoamento das mil distraes, corremosde um lado a outro achando que somos grandes cumpridores de tarefas. Quando o

    primeiro dever seria de vez em quando parar e analisar: quem a gente , o quefazemos com a nossa vida, o tempo, os amores. E com as obrigaes tambm, claro, pois no temos sempre cinco anos de idade, quando a prioridade absoluta

    dormir abraado no urso de pelcia e prosseguir, no sono, o sonho que afinal nessaidade ainda vida.

    Mas pensar no apenas a ameaa de enfrentar a alma no espelho: sair para asvarandas de si mesmo e olhar em torno, e quem sabe finalmente respirar.

    Compreender: somos inquilinos de algo bem maior do que o nosso pequenosegredo individual. o poderoso ciclo da existncia. Nele todos os desastres e toda

    a beleza tm significado como fases de um processo.

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    Se nos escondemos num canto escuro abafando nossos questionamentos, noescutaremos o rumor do vento nas rvores do mundo. Nem compreenderemos queo prato das inevitveis perdas pode pesar menos do que o dos possveis ganhos.

    Os ganhos ou os danos dependem da perspectiva e possibilidades de quem vai

    tecendo a sua histria. O mundo em si no tem sentido sem o nosso olhar que lheatribui identidade, sem o nosso pensamento que lhe confere alguma ordem.

    Viver, como talvez morrer, recriar-se: a vida no est a apenas para ser suportadanem vivida, mas elaborada. Eventualmente reprogramada. Conscientemente

    executada. Muitas vezes, ousada.

    Parece fcil: escrever a respeito das coisas fcil, j me disseram. Eu sei. Masno preciso realizar nada de espetacular, nem desejar nada excepcional. No

    preciso nem mesmo ser brilhante, importante, admirado.

    Para viver de verdade, pensando e repensando a existncia, para que ela valha a

    pena, preciso ser amado; e amar; e amar-se. Ter esperana; qualquer esperana.

    Questionar o que nos imposto, sem rebeldias insensatas mas sem demasiadasensatez. Saborear o bom, mas aqui e ali enfrentar o ruim. Suportar sem se

    submeter, aceitar sem se humilhar, entregar-se sem renunciar a si mesmo e possvel dignidade.

    Sonhar, porque se desistimos disso apaga-se a ltima claridade e nada mais valera pena. Escapar, na liberdade do pensamento, desse esprito de manada que

    trabalha obstinadamente para nos enquadrar, seja l no que for.

    E que o mnimo que a gente faa seja, a cada momento, o melhor que afinal seconseguiu fazer.

    Lya Luft (2004, p. 21-3)

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    RESUMO

    SEI, M. B. Arteterapia com famlias e psicanlise winnicottiana: uma propostade interveno em instituio de atendimento violncia familiar.2009. 144 f.Tese (Doutorado) Instituto de Psicologia, Universidade de So Paulo, So Paulo,

    2009.

    A Psicanlise Winnicottiana baseia-se na crena de que o viver criativo est ligado sade. Winnicott props as Consultas Teraputicas, quando a psicoterapia no erapossvel e a pessoa poderia ser ajudada com poucos encontros. Criou o Jogo doRabisco, no qual o contato entre terapeuta e paciente ocorre por meio de desenhos.Entende-se que a soma destas caractersticas permite uma articulao desta teoria prtica da Arteterapia, interveno teraputica que oferece recursos artsticos parafacilitar expresso e comunicao. Objetivou-se com esta investigao, construiruma proposta de interveno com famlias, em uma prtica da Artepsicoterapiapautada na Psicanlise Winnicottiana, para aplicao no contexto institucional.Trata-se de uma pesquisa qualitativa em Psicologia Clnica, por meio da qual foram

    atendidas 10 famlias clientes de uma instituio de ateno violncia familiar. Oprocesso psicoteraputico familiar foi empreendido com a oferta de recursosartsticos disponveis em uma caixa artstica composta por diferentes materiaisexpressivos e presente nas sesses. Escolheu-se trs famlias para aprofundamentoda compreenso do processo, com foco na importncia dos encontros iniciais naconstruo do processo teraputico familiar, no emprego da Arteterapia comofacilitadora da comunicao de pensamentos e sentimentos no settinge nos limitese alcances desta forma de terapia. Percebeu-se que as famlias tiveram dificuldadesem aderir interveno, com interrupes precoces dos atendimentos. Entende-seque este abandono pode ter ocorrido devido proposta de reflexo sobre asvivncias da famlia, s dores resultantes da violncia e pelo questionamento acercados papis que cada pessoa ocupa na famlia. O uso dos materiais artsticos facilitoue enriqueceu as contribuies das crianas e adolescentes. Complementou tambma compreenso dos adultos, com suas escassas, mas reveladoras produes, almde ampliar o entendimento da dinmica familiar. Apesar das dificuldadesencontradas, relacionadas especialmente com o foco na famlia como o paciente dasesso, na ateno psicolgica em instituies para casos de violncia familiar,considera-se que observar a famlia como o paciente necessrio. Por fim, assinala-se que a Arteterapia pde ser uma facilitadora do processo psicoteraputico dasfamlias, pois minimiza resistncias e amplia o entendimento do grupo, com maioresganhos proporcionados pela interveno.

    Palavras-chave: Arteterapia; Famlia; Winnicott; Violncia na famlia

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    ABSTRACT

    SEI, M. B. Art therapy with families and Winnicotts psychoanalysis: a proposalof intervention in an institution for cases of family violence. 2009. 144 f. Thesis(Doctoral) Instituto de Psicologia, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2009.

    The Winnicotts Psychoanalysis is based on the belief that the creative life is relatedto health. Winnicott has proposed the Therapeutic Consultations, when thepsychotherapy was not possible and the person could be helped with just a fewmeetings. He has created the Squiggle Game, in which the contact between therapistand patient occurs through drawings. It is understood that the sum of these featuresallows an articulation of this theory to the practice of Art Therapy, a therapeuticintervention that offers artistic resources to facilitate expression and communication.It was aimed on this research to build a proposal of intervention with families, in apractice of Art Psychotherapy guided by Winnicotts Psychoanalysis, applied to aninstitutional context. This is a qualitative research in Clinical Psychology, through

    which 10 families were attended, clients of an institution of attention of family violencecases.. The family psychotherapeutic process was undertaken with the provision ofartistic resources available in an "art box" consisted of different expressive materialsand available in the consultations. It was chose three families to deepen theunderstanding of the process, focusing on the importance of the initial meetings inthe construction of the family therapeutic process, with the use of Art Therapy as afacilitator of communication of thoughts and feelings and on the limits and scope ofthis form of therapy. It was noticed that families had difficulties to join the intervention,with early discontinuation of care. It is understood that this interruption may haveoccurred due to the proposal to reflect on family experiences, the pain resulted fromthe violence and the questions about the roles that each person occupies in thefamily. The use of artistic materials facilitated and enriched the contributions ofchildren and adolescents. It also supplemented the understanding of adults, with itsrare but revealing productions, in addition to improve the understanding of familydynamics. Despite the difficulties encountered, particularly related with the focus onthe family as the sessions patient, in psychological care in institutions for familyviolence cases, it is considered that observing the family as the patient is indeednecessary. Finally, it was noted that the Art Therapy could be a facilitator of thepsychotherapeutic process with these families, because it minimizes the resistanceand increases the understanding of the group, with higher gains provided by theintervention.

    Keywords: Art therapy; Family; Winnicott; Family Violence

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    LISTA DE TABELAS

    Tabela Pgina

    Tabela 1 Famlias e atendimentos realizados entre Jun/2005 e Dez/2007 74

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    LISTA DE FIGURAS

    Figura Pgina

    Figura 1 Produo em conjunto da famlia 79

    Figura 2 80Figura 3 80Figura 4 80Figura 5 80Figura 6 81Figura 7 81Figura 8 81Figura 9 82Figura 10 82Figura 11 82Figura 12 83Figura 13 90

    Figura 14 90Figura 15 90Figura 16 91Figura 17 91Figura 18 91Figura 19 91Figura 20 91Figura 21 92Figura 22 92Figura 23 92Figura 24 94Figura 25 95Figura 26 95Figura 27 95Figura 28 95Figura 29 96Figura 30 96Figura 31 97Figura 32 97Figura 33 97Figura 34 98Figura 35 98Figura 36 99

    Figura 37 99Figura 38 100Figura 39 106Figura 40 106Figura 41 107Figura 42 108Figura 43 108Figura 44 109Figura 45 111Figura 46 111

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    Figura 47 112Figura 48 112Figura 49 113Figura 50 113Figura 51 113

    Figura 52 113Figura 53 113Figura 54 115Figura 55 115Figura 56 115

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    SUMRIO

    Captulo Pgina

    1. Apresentao 1

    2. Fundamentao terica2.1. A Arteterapia2.1.1. Precursores e Conceituao da Arteterapia2.1.2. Arteterapia no Brasil e no mundo

    2.2. Interfaces entre Arteterapia e Psicanlise Winnicottiana2.3. Da famlia terapia familiar: conceitos e consideraes2.4. Violncia familiar: conceituao e contextualizao2.5. Violncia familiar e o atendimento institucional: o SOS

    Ao Mulher e Famlia2.6. A construo de uma proposta interventiva aplicada

    clnica institucional com famlias

    555

    1220354450

    54

    3. Objetivos

    3.1. Objetivos gerais3.2. Objetivos especficos

    59

    59594. Mtodo

    4.1. Participantes da pesquisa e procedimentos4.2. Materiais4.3. Anlise de dados4.4. Aspectos ticos

    6064676869

    5. Resultados e Discusso5.1. A proposta5.2. Famlias atendidas: apresentao e breves reflexes5.3. Incio de um percurso: o caminho trilhado pela famlia 15.4. Aprofundamento e compreenso: famlias e o papel da

    Arteterapia

    7070737587

    6. Consideraes Finais 1177. Referncias 1268. Anexo 144

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    1. Apresentao

    Esse estado de esprito, a inquietude, no vem de uma

    patologia, de uma falta ou de uma agitao mrbida;tem a ver com o fato de que aquilo que circunscreve odomnio do esprito o movimento estabelecido no seio

    da diversidade das coisas, a inquietante diversidadedos seres e das coisas, que submete a uma velhaconstante quem pretenda no render suas armas

    diante dos emaranhados da vida.(Leenhardt, 2005, p. 15)

    A compreenso do homem em sua complexidade, em seus opostos, sempre

    foi algo que me atraiu. Tive um incio profissional na rea de Exatas, em um curso

    tcnico relacionado Tecnologia de Alimentos. Conseguia fazer anlises

    laboratoriais com resultados extremamente prximos, com apenas pequenas

    variaes entre si, ao seguir as normas para anlise dos alimentos estabelecidas no

    laboratrio. Contudo, aquelas atividades, apesar de poderem ser facilmente

    desempenhadas, no exerciam um grande fascnio e, assim, optei por seguir meus

    estudos na rea de Psicologia.

    Formei-me, ento, em Psicologia pela Faculdade de Filosofia, Cincias e

    Letras de Ribeiro Preto, uma unidade da Universidade de So Paulo, que prima

    pela pesquisa cientfica, mas com uma grande ligao com a rea de Biolgicas. A

    Psicologia acaba por, l, se ligar a esta rea do conhecimento e, naquele campus,

    tem-se um Programa de Ps-Graduao em Psicobiologia, com grandereconhecimento na rea acadmica. Entretanto, tal ligao com a rea de Biolgicas

    faz com que a pesquisa tenha um olhar e delineamento prximos de uma concepo

    positivista de cincia.1

    1Cabe ressaltar que, neste campus, h tambm um Programa de Ps-Graduao em Psicologia, que compreende estecampo como pertencente s Cincias Humanas e que propicia a realizao de pesquisas a partir deste enfoque.

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    Afastei-me aos poucos de tal concepo, j durante a pesquisa de iniciao

    cientfica, quando propus a anlise das obras plsticas de cinco casos de usurios

    atendidos por um servio de sade mental. Diante deste projeto, a FAPESP, agncia

    financiadora da pesquisa, apontou que um olhar mais aprofundado para um nmero

    menor de casos seria mais interessante do que uma ampla, mas superficial,

    explorao dos trabalhos.

    No mestrado, voltei-me para a rea de violncia familiar e pesquisei a questo

    do desenvolvimento emocional numa perspectiva winnicottiana a partir de um caso

    de ludoterapia de orientao psicanaltica. Observar tais situaes, pautada na

    teoria de Winnicott, ressaltou a grande importncia que a famlia tem para o

    desenvolvimento do indivduo.

    Contudo, nos casos de violncia familiar, o grupo familiar no se mostra

    capaz de oferecer um ambiente suficientemente bom para seus membros. Neste

    sentido, a violncia pode ser vista como invases na continuidade de ser da criana

    e ocasiona conseqncias diversas para os indivduos por ela acometidos.

    O atendimento psicoteraputico da criana uma sada para a minimizao

    de tais seqelas, como pude ilustrar na dissertao de mestrado. Contudo, ao se

    focar a criana, deixa-se, por vezes, de observar a famlia como um todo. Pode-se

    transmitir a idia de que a criana a responsvel ou nica influenciada pelas

    circunstncias e deixa-se de acolher e trabalhar os demais indivduos.

    Tendo em vista estas consideraes, optei por convidar a famlia para oatendimento, com o ideal de proporcionar, por meio das sesses, um espao de

    sade e reflexo. Visava-se que fossem capazes de reproduzi-lo posteriormente,

    com a transformao do grupo familiar em um lugar de crescimento e vida e no

    apenas de desencontros e dor. Entende-se que a vivncia da psicoterapia familiar

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    psicanaltica pode indicar novas formas dos membros se relacionarem, dar lugar

    para elaborao de vivncias traumticas, de maneira a no perpetuar o sofrimento

    da violncia ao longo das geraes, alm de facilitar outras formas de comunicao,

    neste caso, por meio da Arteterapia.

    Elegi os recursos artsticos expressivos como estratgia de aproximao com

    as famlias, como forma de religar-me, enfim, Arte e Arteterapia, interesses

    descobertos j no perodo de graduao e pesquisa de iniciao cientfica. Porm,

    esta escolha no se fundamentou apenas em critrios pessoais de interesse. A Arte

    tem a qualidade de oferecer concretamente outras linguagens para a comunicao

    dos indivduos do grupo familiar, dar igual importncia para as contribuies que

    cada um tem na sesso e facilitar o desenrolar do atendimento como um todo.

    A construo de uma proposta de interveno, embasada nos recursos da

    Arteterapia e orientada teoricamente pela Psicanlise Winnicottiana, empreendida

    com famlias em uma instituio com histrico de acolhimento de indivduos em

    situao de violncia familiar, o que passo agora a discutir. Para tanto, a tese foi

    dividida em algumas etapas relacionadas com a fundamentao terica que orientou

    a construo da interveno, a descrio do contexto institucional em que se deu

    esta investigao, a metodologia e procedimentos empregados e por fim a

    apresentao de resultados e discusses.

    Quanto aos aspectos tericos, optou-se por discorrer sobre o campo da

    Arteterapia, seu histrico e desenvolvimento, alm de interfaces entre Arteterapia ePsicanlise Winnicottiana. Em seguida, foram discutidas questes relativas famlia

    e terapia familiar, alm de apresentar a conceituao da violncia, conseqncias,

    formas de interveno, com contextualizao da instituio onde os atendimentos

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    ocorreram. Por fim, a partir dos referenciais tericos elencados, delineou-se uma

    proposta interventiva.

    Os captulos seguintes so referentes aos aspectos prticos da pesquisa,

    com listagem dos objetivos desta, o mtodo empregado, referenciado na pesquisa

    qualitativa em psicologia clnica e psicanlise. Foi feita uma contextualizao dos

    participantes da Arteterapia familiar, dos procedimentos utilizados e das estratgias

    para anlise dos resultados obtidos.

    Os dados referentes aos encontros com as famlias foram apresentados por

    meio das temticas que compuseram a anlise de dados. Ilustram o papel da

    Arteterapia como facilitadora do processo psicoteraputico familiar, momentos deste

    percurso, alm dos limites e alcances da proposta empreendida, que por vezes se

    assemelharam s Consultas Teraputicas preconizadas por Winnicott (1971/1984).

    A insero de atendimentos familiares no contexto institucional de

    atendimento a indivduos de baixo poder econmico mostrou-se como algo difcil de

    ser realizado. A presena do fenmeno da violncia familiar um fator agravante.

    Assim, quanto maior o grau de violncia na famlia, menor a adeso desta ao

    atendimento. Contudo, a utilizao dos recursos da Arteterapia favoreceu a

    comunicao dos participantes e percepo de contedos no expostos de outras

    maneiras, fato que permitiu melhor entendimento do grupo familiar, com atuao do

    terapeuta mais prxima das necessidades da famlia.

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    2. Fundamentao terica

    A arte um antdoto contra a violncia. (...) em seus

    efeitos, a arte e a violncia so diretamente opostas.(May, 1992, p. 209)

    2.1. A Arteterapia

    2.1.1. Precursores e Conceituao da Arteterapia

    A origem da arte to antiga como antiga a origemda humanidade. A arte nasceu com o primeiro homem.A mais remota manifestao de arte que se conhece,

    pertence edade da pedra. Dessa pocha so dignosde admirao os desenhos de animaes gravados em

    ossos e em pedras os quaes, segundo os auctores,apresentam qui, maior antiguidade que as estatuas

    egypcias. Cada povo tem sua predileco ornamental.(Cesar, 1929, p. 7)

    A Arteterapia tem suas origens ligadas tambm s origens do homem,

    quando se analisa as associaes entre a humanidade e as atividades de cunho

    artstico em geral. O homem ainda no tempo das cavernas gravava imagens nestas

    e deixava marcado para a posteridade elementos de sua histria a partir,

    justamente, de elementos grficos. Alm disto, h descries da Antiguidade sobre o

    uso dos recursos advindos do campo das Artes com finalidades curativas, com

    registros destas atividades j na Grcia do sculo V a.C. (Valladares e Novato,

    2001).

    Porm, a utilizao da Arte com fins teraputicos no ocorria de forma

    estruturada como atualmente. Ao longo da Histria, notou-se uma ciso no

    conhecimento, que separou o campo da Arte do campo da Cincia, alm de dividir o

    homem em razo e emoo. Estas divises foram questionadas ao longo do tempo

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    e hoje se busca uma maior integrao do homem em seus diferentes aspectos e a

    Arteterapia pode, justamente, facilit-la ao unir Arte e terapia.

    H, hoje, um corpo terico prprio Arteterapia, que relaciona teorias

    psicolgicas, sobre o psiquismo, o desenvolvimento fsico, cognitivo, emocional ao

    campo da Arte, com pesquisas a respeito de procedimentos e materiais especficos

    para determinadas situaes e populaes. O empreendimento de investigaes em

    Arteterapia e a sistematizao de achados colaboram para um constante

    aprimoramento das estratgias empregadas, como se prope nesta pesquisa.

    Parte-se do conceito de Arteterapia como uma estratgia de interveno

    teraputica que visa promover qualidade de vida ao ser humano por meio da

    utilizao dos recursos artsticos advindos principalmente das Artes Visuais, mas

    com abertura para um dilogo com outras linguagens artsticas. Foca-se o indivduo

    em sua necessidade expressiva e busca-se ofertar um ambiente propcio ao

    surgimento de uma expressividade espontnea e portadora de sentido para a vida.

    O profissional deste campo deve ter conhecimento acerca do ser humano, de

    seu desenvolvimento nos diversos mbitos, suas patologias, alm de ter uma

    familiaridade com o campo da Arte e sua Histria, com os materiais e tcnicas

    artsticas. Deve j ter trilhado um caminho pessoal na rea, com desenvolvimento de

    uma linguagem artstica que lhe seja prpria.

    De acordo com a Associao de Arteterapia do Estado de So Paulo

    (AATESP, 2008),

    A arteterapia insere-se dentro de um contexto de explorao criativa evalorizao do sensvel, viabilizado por meio da utilizao dosrecursos artstico-expressivos. (...) a arteterapia caracteriza-se porpossibilitar que qualquer um entre em contato com seu prpriouniverso interno, com aqueles que esto sua volta e com o mundo. medida que a emergncia da expresso se mostra cada vez maisindispensvel, tanto mais o sentido da vida torna-se evidente e,

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    conseqentemente, o despertar do desejo de como aprender a lidarcom os problemas, com os medos, com as deficincias, de modo atornar os pensamentos e os atos mais consonantes com o viver pleno.

    Quanto ao histrico mais recente da Arteterapia, tem-se notcia do interessequanto relao entre Arte e Sade na Alemanha, com o mdico Johann Christian

    Reil. De acordo com Caterina (2005), este psiquiatra alemo, que foi um

    contemporneo de Pinel, construiu um protocolo teraputico com fins de cura

    psiquitrica pautado em trs diferentes estgios. Num primeiro momento, o paciente

    era envolvido em atividades que implicavam no trabalho fsico, realizado ao ar livre.

    A segunda fase era composta por estmulos sensoriais a partir do uso de objetos

    especficos para esta proposta. J a terceira etapa era constituda por estmulos

    relacionados rea intelectual, por meio de desenhos, smbolos e elementos que

    pudessem carregar sentidos no campo cognitivo e no campo afetivo.

    Objetivava-se, nesta experincia, que o paciente tivesse seu interesse pelo

    mundo externo despertado, com maior ligao entre indivduo e meio. Alm disto,

    percebia-se que a expresso obtida nos desenhos, sons, texto, movimentos,

    mostrava-se como uma forma de comunicao dos contedos internos (Caterina,

    2005).

    Posteriormente, outros profissionais estudaram a arte desenvolvida por

    pacientes psiquitricos. De acordo com Andriolo (2006), j em 1845, Pliny Earle, um

    alienista, havia publicado um ensaio acerca da produo artstica daqueles

    denominados como insanos. Em 1848, Forbes Winslow, alienista britnico,

    publicou o estudo On the insanity of men of genius, que apontava semelhanas

    nas produes de doentes mentais, dando seguimento ao interesse de Pliny Earle.

    Em 1872, o psiquiatra francs Abroise Tardieu assinalou novamente a importncia

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    de uma ateno para as produes de doentes mentais, no texto tudes medico-

    lgale sur la folie (Andriolo, 2006).

    Osorio Cesar, em sua obra A expresso artistica nos alienados(Contribuio

    para o estudo dos symbolos na arte), publicada em 1929, fez uma reviso de textos

    que articulavam a explorao da ligao entre arte e sade mental no final do sculo

    XIX e incio do sculo XX. Cesar (1929) citou Simon que, em 1876 publicou uma

    curiosa analyse de desenhos, pretendendo especifical-os em cada caso para chegar

    como meio, a um diagnostico certo das molestias mentaes (p. 4).

    Descreveu brevemente a pesquisa de Lombroso que, em 1889 reuniu as

    produces artisticas de 107 doentes que comearam a pintar ou esculpir depois da

    molstia. (Cesar, 1929, p. 4). De acordo com ele, Lombroso foi quem primeiro notou

    a semelhana entre a arte desenvolvida por pacientes psiquitricos e a arte primitiva

    e ressaltou que havia doentes que mostravam capacidade para inovar e esta

    originalidade, diz elle, chega s vezes singularidade, rareza, a qual todavia

    explicavel logicamente quando se aprofundam nas idas dos doentes e se

    comprehendem a liberdade e a largueza cin qye se move sua phantasia (Cesar,

    1929, p. 5).

    Dentre os estudos que articulam arte e psiquiatria, pode-se citar os estudos

    de Morselli, que em 1894 preocupou-se com os desenhos de pacientes psiquitricos;

    de Julio Dantas, em Portugal, que publicou no ano de 1900 uma obra acerca das

    produes artsticas do Hospcio de Rilhafolles; de Rogues de Fursac, que reuniu,em 1905, uma publicao com produes artsticas de pacientes psiquitricos

    (Cesar, 1929).

    Um profissional que se destacou dos demais, quanto ao olhar depositado

    para as relaes entre arte e psiquiatria, foi Marcel Rej, mdico que se dedicou

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    tambm crtica da arte. Sua posio, em textos como Lart malade: dessins de

    fous, datado de 1901 e Lart chez ls fous: le dessin, la prose, La posie, de 1907,

    diferenciou-se dos demais pesquisadores da Arte a partir do campo mdico por ser

    o primeiro a notar elementos propriamente artsticos naquelas obras (Andriolo,

    2006, p. 47).

    Outros textos publicados na Alemanha foram elencados por Cesar (1929),

    como Das bildnerische Schaffen der Geisteskranken, de 1919, Bildnerei der

    Geisteskranken e Bildnerei der Gefangenen, o ltimo em 1926, de autoria de H.

    Prinzhorn, Ein Geisteskranker als Knstler, escrito por Morgenthaler, em 1921,

    obra onde foi aplicada a psicanlise para compreenso da produo artstica de um

    esquizofrnico e, por fim, Lart et la Folie, de autoria de Vinhon e publicado em

    1925, em Paris.

    O psiquiatra Prinzhorn, que havia inicialmente estudado Filosofia e Histria da

    Arte (Andriolo, 2006), considerado ainda hoje um importante nome na rea.

    Organizou uma vasta coleo de produes artsticas, exposta na Coleo Prinzhorn

    Museum Sammlung Prinzhorn, em Heidelberg - Alemanha. De acordo com Ferraz

    (1998), a importncia deste psiquiatra encontra-se no fato de que em um momento

    em que a psiquiatria considera apenas os aspectos nosocomiais e mrbidos, o

    mdico Prinzhorn mostra que o doente mental tambm tem possibilidades criadoras

    que sobrevivem desagregao da personalidade (Ferraz, 1998, p. 23). Suas

    publicaes posteriores se utilizaram de pressupostos tericos psicanalticos, deforma diversa de outros estudiosos, numa busca de encontrar, do ponto de vista

    cultural e esttico, um ncleo criador comum a todos os homens (Andriolo, 2006, p.

    48).

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    No campo exclusivo da Psicanlise, Freud interessou-se por estabelecer

    relaes entre Arte e Psicanlise, seguido por outros estudiosos, como o

    psicanalista Pfister, que passou a incluir atividades artsticas em sesses

    teraputicas (Ferraz, 1998). Na rea da psicologia analtica, o psiquiatra Carl Gustav

    Jung comeou a empregar, a partir da dcada de 1920, recursos advindos do campo

    da arte como parte do tratamento. Pedia aos pacientes que desenhassem seus

    sonhos ou situaes conflitivas e considerava os desenhos como uma simbolizao

    do inconsciente pessoal ou coletivo (Andrade, 2000).

    Estas associaes entre Arte e Psiquiatria foram, igualmente, estabelecidas

    no contexto brasileiro. possvel listar, na dcada de 1920, os trabalhos de Osrio

    Cesar (1929), no Juqueri e de Ulysses Pernambucano, no Hospital da Tamarineira,

    que no chegou a publicar seus achados (Andriolo, 2003), alm de Nise da Silveira

    (1992), na dcada de 1940, no Centro Psiquitrico de Engenho de Dentro.

    De acordo com Andriolo (2006), Ulysses Pernambucano foi o primeiro, no

    Brasil, a relacionar arte e loucura, com estudos e conferncias sobre o tema. Estes

    inspiraram o psiquiatra Slvio Moura a apresentar, no ano de 1923, o texto

    Manifestaes artsticas nos alienados, como tese de concluso do curso de

    Medicina e primeiro trabalho que se tem notcia no Brasil sobre o tema.

    Quanto a Osrio Cesar, este foi um psiquiatra e crtico de arte, vinculado ao

    Juqueri, hospital psiquitrico localizado no municpio de Franco da Rocha. Este

    profissional se interessou, na dcada de 1920, pelas produes artsticas dospacientes psiquitricos e sistematizou um mtodo de leitura das obras pautado no

    referencial psicanaltico (Andriolo, 2003). Considerava que a obra tinha um contedo

    manifesto, composto pela camada exterior, pela tcnica e estilo do autor, e um

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    significado latente, simblico, composto pela fantasia que mascarava os impulsos

    tidos como inconfessveis (Andriolo, 2003).

    Ferraz (1998) fez um levantamento histrico acerca das atividades

    desenvolvidas no Juqueri e sobre a histria da Escola Livre de Artes Plsticas.

    Registrou que, por volta de 1927, existiam setores de bordados e outros tipos de

    artesanato nos diversos pavilhes e colnias do hospital. Os pacientes podiam

    realizar atividades de pintura com aquarela, modelagem em barro, dentre outras

    atividades que necessitavam de ambiente, material e tcnica, sem, contudo, poder-

    se afirmar que estas atividades tinham um objetivo teraputico. A Escola Livre de

    Artes Plsticas, especificamente, nasceu em 1949, aps o surgimento, em 1943, da

    oficina de pintura como parte das aes de praxiterapia desenvolvidas no local

    (Ferraz, 1998).

    Ainda no contexto da Arte e Psiquiatria no pas, pode-se mencionar o nome

    de Nise da Silveira, psiquiatra que, a partir de 1946, props uma estratgia

    teraputica diferenciada no Centro Psiquitrico Engenho de Dentro, no Rio de

    Janeiro. As atividades da Seo de Teraputica Ocupacional se fundamentavam em

    propostas, verbais e no-verbais, que facilitavam a livre expresso dos sintomas.

    Havia uma crena de que ao tomarem um contorno, os sintomas perdiam seu

    potencial. Esse processo era possvel por meio de um ambiente cordial, centrado na

    personalidade de um monitor sensvel, que funcionaria como uma espcie de

    catalisador (Silveira, 1992, p. 16), sinalizao que indica a importncia do meio e doprofissional que cerca a pessoa em seu processo expressivo.

    Esta psiquiatra partia da crena de que a pintura e a modelagem tinham

    caractersticas teraputicas, por permitir que os doentes dessem forma a emoes

    tumultuosas e mobilizassem foras autocurativas rumo conscincia.

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    Adicionalmente, com o intuito de alcanar maior compreenso acerca do processo

    psictico e sobre o valor teraputico que a arte poderia ter para estes pacientes, foi

    inaugurado, em 1952, o Museu de Imagens do Inconsciente (Silveira, 1992).

    Quanto qualificao das atividades como Arteterapia, Nise da Silveira no

    utilizava esta designao, por compreender que o termo arte carrega uma

    conotao ligada ao valor, qualidade esttica do material, que no era o objetivo

    contido em sua proposta teraputica. De acordo com ela,

    nenhum terapeuta tem em mira que seu doente produza obrasde arte, e nenhum psictico jamais desenha ou pinta pensando

    que um artista. O que ele busca uma linguagem com a qualpossa exprimir suas emoes mais profundas. O terapeutabusca nas configuraes plsticas a problemtica afetiva deseu doente, seus sofrimentos e desejos sob forma noproposicional. (Silveira, 1992, p. 92)

    Por meio desta colocao, pode-se observar uma viso prxima da partilhada

    pelos arteterapeutas atualmente, no sentido de valorizar no a esttica da produo,

    mas sim o valor expressivo do material, como algo que carrega sentidos para a vida

    da pessoa. possvel, no entanto, dizer que estas atividades configuraram-se mais

    como precursoras do campo da Arteterapia. Representaram no uma prtica

    arteteraputica, mas sim uma importante contribuio para esta rea, principalmente

    quanto aos modos de se compreender as produes e a importncia do processo

    expressivo.

    2.1.2. Arteterapia no Brasil e no mundo

    O histrico da Arteterapia tal como hoje conhecida e nomeada construiu-se

    a partir de aes nos continentes americano e europeu em pocas prximas.

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    Primeiramente, nos Estados Unidos, Margaret Naumburg, com formao no campo

    da Psicologia, desenvolveu, a partir de 1914, uma prtica na Walden School.

    Realizou-a em conjunto com sua irm, Florence Cane, com formao na rea de

    Artes e fundamentou-se no referencial psicanaltico (Andrade, 2000).

    Margaret Naumburg assinalava que a Arteterapia proporcionava uma

    liberao do inconsciente por meio de imagens espontaneamente projetadas na

    expresso plstica e grfica. Pode ser utilizada como uma forma de psicoterapia

    primria ou auxiliar (Naumburg, 1991, p. 388). Considerava a relao transferencial

    e entendia que, por meio dela, a expresso espontnea era liberada, com incentivo

    associao livre. O profissional no deve interpretar a produo e sim encorajar o

    paciente a descobrir por si mesmo o significado de suas prprias produes.

    (Naumburg, 1991, p. 390).

    Florence Cane tinha uma prtica mais voltada para o campo da Arte, por sua

    formao como arte-educadora. Considerava que sua proposta estava constituda

    na crena de que todo ser humano nascia com o poder de criar. A partir disto, criou

    uma estratgia de ensinar Arte fundamentada nas seguintes funes: movimento,

    sentimento e pensamento. Compreendia que parte da cura daqueles que

    necessitavam de cuidados mdicos poderia ocorrer por meio da catarse do processo

    artstico, acompanhada de um profissional que reconhecesse os sentidos do que

    expressado e ajudasse a pessoa a tambm se reconhecer (Cane, 1983).

    No continente europeu, um nome importante do artista Adrian Hill, quecunhou o termo art therapy, no Reino Unido, em 1942, para designar uma prtica

    que j era desenvolvida neste territrio nos contextos do tratamento moral,

    psicanlise e em experimentos da arte moderna (Hogan, 2001). Adrian Hill props o

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    uso da Arte para o tratamento de soldados traumatizados com suas experincias de

    guerra (Case e Dalley, 1992).

    Este artista tinha, ele mesmo, experienciado os benefcios do processo

    artstico quando foi submetido a um tratamento mdico para a tuberculose. Como

    sintetiza Winnicott (1949), ao resenhar o livro deste profissional,

    Adrian Hill, ele prprio artista e professor de arte, passou por umperodo de ociosidade como paciente tsico em um sanatrio edescobriu uma nova razo para desenhar e pintar. F-lo sentir-semelhor e talvez tenha indiretamente afetado o processo fsico de cura.(p. 422)

    J no Brasil, apesar dos precursores da Arteterapia terem desenvolvido seus

    trabalhos nas dcadas de 1920 e 1940, este campo do conhecimento e atuao

    define-se a partir da dcada de 1960, com a vinda de Hanna Yaxa Kwiatkowska ao

    Brasil (Ciornai e Diniz, 2008). Sobre o histrico especfico da Arteterapia em territrio

    brasileiro, a Revista Arteterapia: Reflexes realizou, em seu nmero de 2006,

    entrevistas com precursoras da Arteterapia no pas. Listaram os nomes de ngela

    Philippini, Joya Eliezer, que optou por no participar da entrevista, Maria Margarida

    de Carvalho e Selma Ciornai. Este documento situa o incio especfico da Arteterapia

    no Brasil a partir da dcada de 1960, com os primeiros cursos de extenso na rea,

    ministrados por profissionais de outros pases.

    Maria Margarida de Carvalho foi uma das precursoras da Arteterapia no pas

    e menciona, como seu primeiro contato com este campo, um curso de extenso

    ministrado pela arteterapeuta Hanna Kwiatkowska na Pontifcia Universidade

    Catlica de So Paulo, em 1964 (Carvalho, 2006). Deu seguimento a seus estudos

    de forma independente e iniciou a prtica clnica em Arteterapia no ano de 1968 em

    seu consultrio particular. Organizou, em 1995, o livro A arte cura? Recursos

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    artsticos em psicoterapia, escrito com a colaborao de outros profissionais, aps o

    I Encontro Paulista de Arte-terapia realizado em 1993 (Carvalho, 1995).

    Carvalho descreveu sua atuao em Arteterapia em parceria com Radh

    Abramo, realizada junto a detentos da Penitenciria do Estado de So Paulo, no ano

    de 1972, com obras expostas em 1973 na II Jornada Mdico-Hospitalar do Hospital

    do Servidor Pblico de So Paulo. Fez referncia tambm Arteterapia com

    pacientes psiquitricos em acompanhamento ambulatorial, aps a alta hospitalar,

    realizada no ano de 1974. Descreveu a realizao de cursos diversos de extenso

    em Arteterapia ministrados por ela ao longo da dcada de 1970 (Carvalho, 1995).

    J ngela Philippini considerou como relevante para seu incio na Arteterapia,

    na dcada de 1970, as contribuies de Nise da Silveira e a participao em um

    grupo que possibilitou o estudo com arteterapeutas americanos convidados para

    treinamento de profissionais no Brasil. Listou os nomes de Diane Rode,

    arteterapeuta responsvel pelo setor de Arteterapia do Hospital de Pediatria Monte

    Sinai localizado em Nova Iorque, e Bobbi Stoll, com experincia na rea de

    violncia, que contriburam para sua formao na rea (Philippini, 2006).

    Fundou um curso de Arteterapia na Clnica POMAR, localizada no municpio

    do Rio de Janeiro, no ano de 1982, que a partir de 1983 foi transformado em

    Formao em Arteterapia. No Estado de So Paulo, aps os cursos de extenso,

    breves, ministrados por Maria Margarida, um curso de Introduo Arteterapia no

    Sedes Sapientiae foi organizado em 1989 e, a partir de 1991, foi criado o primeiroCurso de Aperfeioamento e Especializao em Arteterapia.

    Selma Ciornai teve uma formao em Arteterapia ao mesclar cursos no

    exterior e no pas, tambm a partir da dcada de 1970. Estudou, em Israel, com

    Peretz Hesse, arteterapeuta vinculado Sociedade Internacional de Psicopatologia

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    da Expresso e Arteterapia na Frana. Estudou, em curso da Associao de

    Psiquiatria e Psicologia da Infncia e Adolescncia Rio de Janeiro, entre 1976-77,

    com Luis Duprat de Brito Pereira, psiclogo com estudos em Arteterapia nos

    Estados Unidos. Por fim, fez um mestrado em Arteterapia na Califrnia State

    University, entre 1978 e 1983 (Ciornai, 2006).

    Com o passar dos anos a Arteterapia se ampliou no Brasil, com uma notvel

    proliferao dos cursos de extenso e especializao, em todo territrio nacional.

    Foram institudas associaes estaduais que unidas formaram a Unio Brasileira de

    Associaes de Arteterapia (UBAAT), fundada em 22 de Abril 2006, que busca

    reconhecimento da Arteterapia como campo profissional especfico, aps Fruns

    com as associaes estaduais realizados nos anos de 2002 e 2003 (UBAAT, 2008).

    Apesar destes avanos no estabelecimento da Arteterapia como um campo

    profissional com suas especificidades e potencialidades, esta uma rea anda em

    construo no Brasil. A formao no pas ocorre por meio de cursos de

    Especializao, que complementam a formao inicial do arteterapeuta e esta

    caracterstica faz com que haja grandes diferenas entre a atuao dos mesmos.

    De forma geral, argumenta-se que a Arteterapia caracteriza-se como um

    processo que une trs diferentes elementos: o cliente/paciente, a obra e o

    arteterapeuta (Carvalho, 2006). No entanto, a importncia dada a cada aspecto

    diferencia-se a partir da formao inicial do arteterapeuta, do pblico alvo e dos

    objetivos do trabalho empreendido.Quanto aos diferentes enfoques em Arteterapia, pode-se citar a diviso

    historicamente existente nos Estados Unidos em Artepsicoterapia e Arte como

    terapia (Andrade, 2000). A primeira prtica concebia o uso dos recursos

    arteteraputicos atrelados ao processo psicoteraputico, enquanto a Arte como

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    terapia apresentava-se como uma estratgia teraputica auxiliar, com foco no

    processo criativo e expressivo.

    Sobre Margaret Naumburg, a arteterapeuta norte-americana Elinor Ulman

    (1986) afirma que esta profissional foi uma expoente da Artepsicoterapia. Para

    Ulman (1986), a Arteterapia poderia ser uma forma principal ou auxiliar de terapia e

    a Arte seria um ingrediente que tornava possvel o procedimento psicanaltico. Edith

    Kramer, com orientao terica advinda da Psicanlise, focava-se mais nas

    qualidades existentes na Arte, com observao da contribuio desta, em si mesma,

    para o campo da psicoterapia. Naumburg estaria mais em acordo com as tcnicas

    psicanalticas, enquanto Kramer estaria mais atrelada aos princpios freudianos. Em

    ambos os casos a Psicanlise servia para a compreenso das necessidades bsicas

    do ser humano, apesar de aplicarem este conhecimento de maneiras diferentes

    (Ulman, 1986).

    De acordo com Ulman (1986), as propores da Arte e da terapia, isto , a

    diferenciao em Artepsicoterapia e Arte como terapia, no contexto arteteraputico

    apresentam grande variao. Esta autora defende que estas formas de exercer a

    clnica podem existir lado a lado, na mesma sala, ao mesmo tempo ou em diferentes

    momentos do trabalho do mesmo arteterapeuta.

    Para Hogan (2001), as prticas em Arteterapia no Reino Unido se distinguem

    no que denomina como analytic art therapy, que seria uma prtica baseada nas

    teorias psicanalticas, com especial ateno relao transferencial e,conseqentemente, interpretao do encontro teraputico; art psychotherapy,

    que enfatiza a importncia da anlise verbal do material produzido nas sesses, com

    situaes em que a produo se torna algo adicional psicoterapia verbal; art

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    therapy, que foca as produes sem considerar a anlise verbal como algo

    necessrio no contexto arteteraputico.

    A partir de diferentes olhares e teorias para compreenso do ser humano,

    sintetiza-se algumas qualidades apresentadas pela Arteterapia, que a reforam

    como uma estratgia teraputica efetiva. Assim, esta auxilia a pessoa a tornar-se

    mais comunicativa acerca de seus sentimentos, com menor propenso a internaliz-

    los de maneira no saudvel ou a atu-los de forma destrutiva, com impacto positivo

    na vida daqueles que so atendidos por meio da Arteterapia (Saunders e Saunders,

    2000).

    Acredita-se que o fazer artstico proporciona, de maneira eficaz e rpida,

    pontes para a intersubjetividade, um contato rico, ntimo e profundo que,

    dependendo do caso, pode prescindir de palavras ou enriquecer com elas (Ciornai,

    1995, p. 62). As atividades artsticas se constituem como catalisadoras de um

    processo de resgate de qualidade de vida e do viver, em seu sentido mais humano.

    Os recursos expressivos e artsticos tm a funo de ajudar a pessoa a

    concretizar, de maneira significativa, uma imagem interna. Considera-se que, em

    diversos casos, a simples explicitao da imagem acaba elaborando no nvel

    simblico aquele contedo psquico preexistente (Allessandrini, 1996, p. 14).

    A utilizao teraputica das artes plsticas pode ser adequada tanto em

    situaes individuais como em situaes grupais, com propostas que focam mais a

    expresso plstica do que a expresso verbal, quando a ltima vem para enunciaraquilo que foi elaborado plasticamente (Bayro-Corrochano, 2001). Os recursos

    artsticos so um meio de comunicao no verbal que torna a terapia mais flexvel e

    permite a captao da riqueza do mundo emocional e relacional do indivduo. Pode

    ser utilizada com diversos fins, tais como uma possibilidade de catarse, de insight e

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    como elemento projetivo que propicia a interveno teraputica (Surez e Reyes,

    2000), em um processo que demanda um intenso trabalho de observao, escuta,

    compreenso e elaborao por parte do arteterapeuta (Verdeau-Paills, 2003).

    Quanto dinmica dos encontros arteteraputicos e a presena das

    linguagens artstica e verbal, Pereira (1976) defende que a associao de ambas

    pode ser realizada com o intuito de se resgatar a ligao entre a imagem e a fala,

    auxiliando o homem a ser aquele que sente aquilo que pensa (p. 30). H

    arteterapeutas, ento, que defendem a explorao verbal das produes e que

    compreendem que a mudana ocorre a partir do dilogo entre paciente e

    arteterapeuta sobre a obra. Consideram que escutar a linguagem do cliente no

    nega o processo de olhar o produto de arte. uma sntese de dois meios de

    comunicao criativos (Riley, 1998, p. 58). Assim, o fazer e a reflexo sobre aquilo

    que feito desempenham um papel no processo de autoconhecimento (Norgren,

    1995).

    Frayze-Pereira (2005) preconiza que o psicanalista conta apenas com suas

    prprias associaes para interpretar a obra de arte, com a interpretao advinda

    dos efeitos da obra sobre sua subjetividade e no como o significado real da obra.

    Ao se transpor estes pressupostos do campo especfico das Artes Plsticas para a

    rea da Arteterapia, observa-se a relevncia da linguagem verbal no processo

    arteteraputico.

    A leitura da obra de arte tem um carter sem fim, que se multiplicaindefinidamente e possvel o aprofundamento dos enigmas por ela propostos. De

    acordo com Frayze-Pereira (2005), assim como cabe escuta do psicanalista

    permitir o livre curso das associaes do paciente, caracterstico da psicanlise

    implicada trabalhar com a manifestao singular da obra na relao com

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    intrprete/espectador (p. 73). Em Arteterapia isto poderia ser compreendido como

    abertura para a expresso verbal do paciente, como promotora de maior

    conhecimento da pessoa em questo.

    2.2. Interfaces entre Arteterapia e Psicanlise Winnicottiana

    as imagens, em seus valores expressivos, so fontesde processos, de afetos, de significaes. Porm, em

    especial, a imagem artstica tem uma inventividade

    nitidamente superior de qualquer outra imagem: elapermanece na esfera da inveno, da descoberta.Aproxima-nos de um campo que tambm o da

    psicanlise. (Amendoeira, 2008, p. 51)

    A Arteterapia pode estar fundamentada em diferentes abordagens tericas e

    no Brasil nota-se a grande influncia da Gestalt-terapia, na Arteterapia Gestltica

    (Ciornai, 2004) e da Psicologia Analtica, na Arteterapia Junguiana (Philippini, 2004).

    A partir de um referencial psicanaltico considera-se a existncia e influncia do

    inconsciente, que pode se manifestar por meio das produes realizadas no

    contexto arteteraputico. A Arteterapia embasada na Psicanlise faz-se pouco

    presente no Brasil. Todavia, internacionalmente, tem-se outro panorama, com uma

    pluralidade maior de teorias que apiam a atuao arteteraputica e uma presena

    mais intensa da Psicanlise e dos referenciais psicodinmicos.

    A prtica arteteraputica realizada por profissionais ligados Psicanlise, de

    acordo com alguns autores, pode se associar a um fazer mais livre, com menor

    estruturao. Assim, a atuao no seria marcada por consignas constantes, passos

    demarcados dentro dos encontros, mas sim por um livre movimento do paciente em

    seu processo de se expressar por meio dos materiais artsticos. Esta maior liberdade

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    seria similar ao processo de associao livre preconizada pelo tratamento verbal

    criado por Freud (McMurray e Schwartz-Mirman, 1998).

    Quanto ligao da Psicanlise com as Artes em geral, nota-se, nos escritos

    freudianos, um especial interesse pela compreenso de obras, de artistas, com

    associao entre obra e biografia. Diversos so, ento, os textos na extensa obra de

    Freud que discutem questes relacionadas ao campo artstico e entre eles elenca-se

    Delrios e sonhos na Gradivade Jensen (1907), Escritores Criativos e Devaneios

    (1908), Leonardo da Vinci e uma Lembrana de sua infncia (1910), O Moiss de

    Michelangelo (1914).

    No texto Escritores Criativos e Devaneios, Freud (1908/1996) aborda o tema

    do brincar infantil e argumenta que a criana consegue diferenciar o que e no

    real. Suas reflexes colaboram para o entendimento da viso sobre os processos

    que permeiam a criao artstica. Desta forma, o brincar e a atividade do escritor

    criativo estariam relacionados. De acordo com ele, o escritor faz o mesmo que a

    criana que brinca. Cria um mundo de fantasia que ele leva muito a srio, isto , no

    qual investe uma grande quantidade de emoo, enquanto mantm uma separao

    ntida entre o mesmo e a realidade (Freud, 1908/1996, p. 135-6).

    Ao se considerar que as foras motivadoras das fantasias so os desejos

    insatisfeitos, e toda fantasia a realizao de um desejo, uma correo da realidade

    insatisfatria (Freud, 1908/1996, p. 137), o mundo imaginativo d permisso para

    que coisas penosas do mundo real possam, ento, ser prazerosas.H autores, mesmo dentro do campo psicanaltico, que discordam da

    abordagem de Freud para o campo da Arte. Pereira (1976) argumenta que Freud

    limitou-se mais a uma anlise das motivaes psicolgicas do artista, com atrao

    prioritria pelo contedo e pelas motivaes que conduziam o artista escolha do

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    tema, sem observao quanto qualidade esttica da obra, rea em que se

    declarava como um profano. Apesar das naturais limitaes e crticas acerca das

    anlises de obras e artistas feitas por Freud, este teve o grande mrito de abrir um

    horizonte para a interpretao psicanaltica da cultura e de suas mais variadas

    manifestaes (Pereira, 1976, p. 31).

    Quanto s possveis explicaes que a Psicanlise poderia dar para a

    criao, Winnicott assume, diferentemente de Freud, uma postura crtica e, para ele,

    no se trata, naturalmente, de que algum seja capaz de explicar o impulso criativo,

    sendo improvvel que se deseje sequer faz-lo; mas possvel estabelecer

    utilmente, um vnculo entre o viver criativo e o viver propriamente dito. (Winnicott,

    1971/1975, p. 100). Como ser observado pela seguinte descrio da teoria

    winnicottiana do desenvolvimento emocional, o autor foi um psicanalista que avaliou

    que a criatividade estava intrinsecamente ligada sade.

    No que concerne a prtica arteteraputica pautada na Psicanlise, Pereira

    (1976) defende que a Arteterapia facilita um mergulho do paciente em seu

    inconsciente, que pode se conhecer mais por meio deste processo. Para ela, o apelo

    intuio artstica presente nas pessoas de forma geral facilita e acelera a tomada

    de conscincia de seus conflitos, sem o profundo desgaste emocional envolvido

    numa ruptura de defesas solidamente estruturadas que por vezes se voltam contra o

    processo teraputico (Pereira, 1976, p. 39).

    No apenas Freud desejou explicar os impulsos criativos, como tambmoutros psicanalistas o fizeram, cada um a sua maneira. De forma sinttica, pode-se

    dizer que Freud associava os impulsos criativos aos mecanismos de sublimao,

    Melanie Klein aos mecanismos de reparao e Winnicott associava a criatividade

    prpria sade (Orlandi e Burnier, 2003).

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    No caso especfico da Psicanlise Winnicottiana, pode-se defender que esta,

    alm de considerar o inconsciente e sua manifestao no settingarteteraputico e

    observar os fenmenos de transferncia e contratransferncia, tambm se configura

    como uma forma especfica de olhar tanto o ser humano, seu desenvolvimento e

    patologias, quanto a atuao do profissional de sade. Winnicott foi um pediatra e

    psicanalista ingls que, por sua prtica com crianas e observao do que

    denominava pares me-beb, concebeu uma teoria acerca do desenvolvimento

    emocional que assinalava o importante papel da famlia e do meio na promoo da

    sade.

    Em sua viso, o desenvolvimento emocional marcado por trs etapas

    denominadas dependncia absoluta, dependncia relativa e rumo

    independncia (Winnicott, 1963b/1983). A primeira caracteriza-se pela extrema

    dependncia do beb em relao ao meio, sem perceber uma realidade externa a si

    mesmo, numa situao de fuso com a me. Neste estado de indiferenciao, a

    me entra num estado de preocupao materna primria (Winnicott, 1956/2000),

    que facilita a percepo e atendimento das necessidades do filho.

    Esta experincia cria uma iluso de onipotncia, com a me que apresenta o

    seio no momento em que o beb est pronto para cri-lo. Esta iluso oferece bases

    para a sade mental posterior e para a criatividade e essencial para o posterior

    processo de desiluso, quando o ambiente gradualmente apresentado ao

    indivduo. Ele se percebe como limitado por uma membrana eu x no-eu, como umser outro, diferenciado da me e do meio. A desiluso caracterstica j da etapa de

    dependncia relativa, quando a criana consegue, ento, perceber o meio externo,

    captar seus sinais e aguardar pelo olhar direcionado aos seus desejos e

    necessidades.

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    A me tem um considervel papel para este caminhar saudvel e com base

    na preocupao materna primria pode ser uma me suficientemente boa.

    Quando no o , no complementa a onipotncia do beb, sem corresponder ao

    gesto do filho. Ela o substitui por seu prprio gesto, que deve ser validado pela

    submisso do lactente. Essa submisso por parte do lactente o estgio inicial do

    falso self, e resulta da inabilidade da me de sentir as necessidades do lactente

    (Winnicott, 1960/1983, p. 133).

    Ao longo do processo de amadurecimento, tem-se uma internalizao, por

    parte dos indivduos, dos cuidados recebidos, que podem ser reproduzidos para

    consigo prprios. A pessoa passa a se relacionar com o ambiente de forma mais

    independente, contudo esta independncia nunca total, j que o indivduo normal

    no se torna isolado, mas se torna relacionado ao ambiente de um modo que se

    pode dizer serem o indivduo e o ambiente interdependentes (Winnicott,

    1963b/1983, p. 80).

    Ao longo destas etapas, observa-se a ocorrncia de trs processos,

    denominados por Winnicott (1945/2000) como: integrao, personalizao e

    realizao. Desta forma, considera-se que no incio da vida no h uma

    personalidade integrada, tem-se um estado de no-integrao primria (Winnicott,

    1945/2000).

    O estado de no-integrao, acompanhado por uma no-conscincia,

    caracteriza-se pela uma ausncia de globalidade tanto no espao quanto no tempo(Winnicott, 1988/1990, p. 136). A partir deste conceito, compreende-se a importncia

    do fenmeno da integrao para que o indivduo atinja a condio de, efetivamente,

    relacionar-se com a realidade externa (Winnicott, 1945/2000).

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    A integrao atingida a partir da no-integrao por meio de fatores

    internos, como os impulsos e experincias instintivas, e dos cuidados ambientais,

    tanto aqueles de ordem fsica, como o segurar e alimentar o beb, quanto aqueles

    de ordem emocional. possvel dizer que o bom cuidado infantil faz com que o

    beb, uma unidade humana, sinta-se efetivamente como uma unidade em termos de

    desenvolvimento emocional (Winnicott, 1988/1990).

    Ao longo do desenvolvimento, diz-se que a perda da integrao deve passar

    a ser descrita pela palavra desintegrao, em vez de pelo termo no-integrao

    (Winnicott, 1988/1990, p. 14) e se considera a desintegrao como uma dolorosa

    defesa do indivduo.

    A etapa de personalizao caracteriza-se pelo sentimento de estar dentro do

    prprio corpo (Winnicott, 1945/2000, p. 225) e a experincia da psique localizar-se

    dentro do corpo uma conquista a ser alcanada pelo indivduo, mais do que algo

    naturalmente j existente. obtida por meio de vivncias pessoais relacionadas a

    impulsos, sensaes da pele, erotismo muscular e adicionalmente a partir dos

    cuidados com o corpo e da gratificao a partir da satisfao de exigncias

    instintivas. Seu oposto a despersonalizao, que seria a perda de vinculao

    entre a psique e o soma (Winnicott, 1988/1990, p. 145).

    Por fim, quanto ao momento de realizao, este implica na apreciao do

    tempo e do espao e de outros aspectos da realidade (Winnicott, 1945/2000, p.

    222-3). Aps esta etapa se torna possvel o relacionamento do indivduo comopessoa total com uma me total e com a compreenso e preocupao de seus

    pensamentos e atos sobre o outro.

    Observa-se a importncia do ambiente, nas funes de sustentar o

    desenvolvimento emocional da criana, por meio do manejo e da apresentao do

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    mundo em doses que o beb possa assimilar, ao longo deste processo. A fora do

    ego da criana proporcional sustentao dada pelo ambiente facilitador

    (Winnicott, 1964/1994). De acordo com Winnicott (1952/2000, p. 306), a sade

    mental, portanto, produto de um cuidado incessante que possibilita a continuidade

    do crescimento emocional.

    Vale apontar para a crena de que este ambiente suficientemente bom est

    mais atrelado s condies psquicas dos cuidadores para se atentarem criana e

    sua fragilidade no incio da vida, do que efetivamente s condies externas. Estas

    podem facilitar a entrada da me no estado de preocupao materna primria, por

    deix-la livre de demandas outras que no o prprio filho. Contudo, no garantem

    que a me seja capaz de ser uma me devotada a seu beb. Defende-se, ento,

    que a viso de Winnicott aplica-se s famlias de diferentes classes scio-

    econmicas, desde as mais favorecidas at aquelas consideradas como

    desfavorecidas, com maior influncia das questes internas de cada familiar e

    capacidade psquica para se dedicar ao outro.

    Quanto Arteterapia, esta se constitui como uma forma de atuao

    teraputica que prima pela oferta de condies para uso e desenvolvimento da

    criatividade. A partir de um referencial winnicottiano, acredita-se que o contexto

    arteteraputico e a relao estabelecida entre paciente e arteterapeuta configuram-

    se como uma reproduo do ambiente suficientemente bom e, com este, o processo

    de desenvolvimento emocional pode ser retomado.Acerca desta estratgia de interveno, tem-se uma resenha do livro Art

    versus illness, do arteterapeuta britnico Adrian Hill, escrita por Winnicott, onde ele

    faz consideraes sobre a prtica desenvolvida por este profissional, denominando-

    a erroneamente de terapia ocupacional. Winnicott (1949/1994) reconhece o valor

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    que as atividades artsticas podem ter para aqueles que esto enfermos, tendo sua

    primeira esposa, ela mesma, proposto um trabalho com o barro no Maudsley

    Hospital, com pacientes psiquitricos. Quanto obra de Adrian Hill, Winnicott

    (1949/1994) pontua que

    Um artista, ceramista, msico, escultor, modelador, que vive noprprio meio que escolheu, d-se ao trabalho de contactar um grupode pacientes acamados ou imobilizados e, atravs do contato pessoal,capacita cada paciente, sua maneira, a criar uma ponte entre oinconsciente e o viver comum consciente, uma ponte de duas mos.Muita coisa acontece, mas o principal que o paciente, porgradualmente descobrir suas premncias criativas e forasintegradoras positivas, fica capaz de olhar para o que est dentro doself, a fim de ver o que quer que esteja l, sejam o caos, as tenses, amorte, assim como a beleza e vivacidade inata. (p. 423)

    Como observado, h uma valorizao do trabalho desenvolvido pelo

    profissional da Arteterapia. Sua teoria parte da concepo que a criatividade a

    base saudvel da vida humana e que a submisso se caracteriza como um estado

    doentio (Winnicott, 1971/1975). Discorre sobre a existncia do falso self, que se

    constri na base da submisso. Pode ter uma funo defensiva, que a proteo doverdadeiro self (Winnicott, 1959-1964/1983, p. 122).

    Winnicott (1960/1983) defende que h vrios nveis de estruturao do falso

    self, desde uma organizao prxima da normalidade at um grau extremo. Abrange

    desde a possibilidade de se configurar como uma atitude social educada e agradvel

    at chegar ao ponto em que o verdadeiro selffica oculto. Nestes casos, o falso self

    se implanta como real e isso que os observadores tendem a pensar que apessoa real (Winnicott, 1960/1983, p. 130).

    A partir disto, fica compreensvel a ressalva que faz sobre o imperativo de que

    o paciente escolha como deseja se expressar, para que os sentidos e benefcios das

    atividades artsticas fiquem resguardados. Desta forma, ficar sujeito, quando

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    doente, a um programa escolhido pelo tcnico situado no poro do hospital ser

    ocupado e impedido de descobrir a si prprio ou de crescer (Winnicott, 1949/1994,

    p. 423).

    Winnicott faz diversas referncias criatividade, atividade artstica e ao

    artista em si, ao longo de sua obra e so igualmente temas de interesse para a

    Arteterapia e sua prtica. Refere-se a estas temticas nos momentos em que

    discorre sobre a sade, com apontamento da criatividade como um elemento bsico

    do viver saudvel, como tambm quando discute a comunicao e a no-

    comunicao, as questes relacionadas psiquiatria e ao desenvolvimento

    emocional como um todo.

    Na viso de Winnicott (1965/2001), os seres humanos apresentam um

    impulso criativo inato, que pode desaparecer quando no correspondido pela

    realidade externa. Todo indivduo recria o mundo que o cerca, contudo, para que isto

    seja possvel necessrio que este lhe seja apresentado nos momentos de

    atividade criativa, algo dependente da sensibilidade da me s necessidades do filho

    no incio de sua vida.

    Considera que a criao artstica toma o lugar do sonho, com importncia

    para o bem-estar humano (Winnicott, 1945/2000). E quanto criatividade primria,

    marca a necessidade de se perceber como a pessoa experimenta o processo de

    criar, de como isto sucede internamente. H sempre uma valorizao das

    experincias individuais, mais do que aquilo que visvel externamente, como noseguinte trecho,

    Se existe um verdadeiro potencial criativo, podemos esperar encontr-lo em conjunto com a projeo de detalhes introjetados em todos osesforos produtivos, e devemos reconhecer a criatividade potencialno tanto pela originalidade de sua produo, mas pela sensaoindividual de realidade da experincia e do objeto. (Winnicott,1988/1990, p. 130)

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    A obra um elemento que carrega um sentido de comunicao, porm

    Winnicott (1963a/1983) acredita que h, no artista, um conflito advindo de duas

    diferentes disposies, uma de efetivamente comunicar algo ao meio externo e outra

    que no deseja ser decodificado. Em um sentido mais amplo, atrelado cultura,

    aponta que, por meio da criao artstica, so mantidas pontes entre o subjetivo e o

    objetivo. Entende, adicionalmente, que o artista est sempre vencendo brilhantes

    batalhas, numa guerra que, na verdade, no tem fim. O fim constituiria em descobrir

    algo que no verdade, ou seja, que o que o mundo oferece igual ao que o

    indivduo cria (Winnicott, 1948/2000, p. 251).

    Winnicott d grande ateno aos sentidos que a obra pode ter para o artista e

    seu valor est atrelado forma como o artista cria. Em seu ponto de vista h dois

    tipos de artistas. Um trabalha baseado no falso self e, com isso, produz uma

    representao, uma amostra daquilo que externo, mas com posterior habilidade

    para relacionar esta primeira impresso exata aos fenmenos brutos que

    constituem a vivacidade dentro do verdadeiro selfsecreto. (Winnicott, 1988/1990, p.

    129). No caso de sucesso, tem-se uma produo que satisfaz tanto o artista em seu

    verdadeiro self, como as demais pessoas, com valor por aproximar elementos

    internos e externos, inicialmente separados.

    Diferentemente, o processo de criao de outros artistas se inicia com a

    representao bruta de aspectos internos, com grandes significados para si, maspouco compreensvel para os demais. Deve, por meio da criao, fazer com que

    estes elementos sejam inteligveis. Porm este processo pode se configurar como

    uma traio de si mesmo e trazer um carter de fracasso, de maneira que o maior

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    xito do artista seu trabalho de integrao dos dois selves (Winnicott, 1988/1990,

    p. 130).

    Winnicott (1971/1975) argumenta que a busca do eu por meio da Arte pode

    falhar, visto que esta busca se constitui mais como algo interno do que realizado por

    meio de elementos externos. Desta forma, considera que o eu (self) realmente no

    pode ser encontrado do que construdo com produtos do corpo ou da mente, por

    valiosas que essas construes possam ser em termos de beleza, percia e impacto

    (p. 81). O artista pode ter um reconhecimento do meio externo, com uma produo

    de valor no campo da Arte, mas com pouco significado para o encontro consigo

    prprio. Em sua viso, a criao acabada nunca remedia a falta subjacente do

    sentimento do eu (self) (Winnicott, 1971/1975, p. 81), algo para se atentar quando a

    linguagem artstica transposta para o contexto arteteraputico.

    Pensa-se que se deve valorizar a relao humana estabelecida por meio da

    Arteterapia e como esta pode, efetivamente, propiciar a emergncia do gesto

    espontneo. A produo adquire um valor, no mbito arteteraputico, na medida em

    que se apresenta como uma representao do verdadeiro self do paciente,

    portadora de sentidos para o viver.

    O uso de materialidades mediadoras no setting psicoteraputico abordado

    por Aiello-Vaisberg, pesquisadora brasileira, que discute esta utilizao e defende

    uma estratgia de interveno inspirada nos pressupostos de Winnicott. A prtica

    empreendida era inicialmente denominada Oficinas Psicoteraputicas Ser e Fazer,mas assumiu posteriormente a denominao de Artepsicoterapia.

    Esta autora parte de uma proposta de trabalho no plano existencial, mais do

    que no campo representacional. Os objetivos dos enquadres diferenciados

    propostos seriam de promover um ambiente capaz de favorecer a ocorrncia de

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    experincias emocionais mutativas, ou seja, de transformaes que tm lugar num

    plano propriamente existencial. Contrapem-se s clnicas psicanalticas que visam

    mudanas em registro mental, discursivo ou simblico, trabalhando em termos de

    auto-representao e representao do mundo, segundo um pressuposto que

    valoriza o saber de si (Aiello-Vaisberg e Machado, 2003, p. 13).

    A atuao do grupo liderado por esta pesquisadora difere da Arteterapia

    concebida pelas associaes de Arteterapia filiadas Unio Brasileira das

    Associaes de Arteterapia (UBAAT), que, semelhana das palavras de Ciornai

    (2004), caracterizam a Arteterapia

    como interface, que requer formao consistente em trs reas: a dearte que inclui tanto prtica de ateli como fundamentos da arte-educao, teorias da criatividade e histria da arte; a teraputica que inclui a fundamentao filosfica e psicolgica que d base aotrabalho do arteterapeuta, como o aprendizado da postura, da condutae do pensar teraputico; e a da arteterapiapropriamente dita, que dizrespeito a sua histria, a seu corpo terico e metodolgico e prticasupervisionada. (Ciornai, 2004, p. 13)

    Discorre-se, na prtica empreendida pela Ser e Fazer, sobre algunsmateriais empregados nas oficinas sem, no entanto, apontar para a necessidade de

    amplo conhecimento da linguagem e materiais artsticos em geral, pressupostos

    para a prtica da Arteterapia nos moldes das citadas associaes. Os profissionais e

    pesquisadores da Ser e Fazer elegem uma determinada materialidade com a qual

    se identificam e oferecem-na numa atividade especfica e preferencialmente grupal

    como Oficina Arte de Papel, Oficina de Velas Ornamentais, Oficina de Costura,

    Oficina de Arranjos Florais, dentre outras (Aiello-Vaisberg e Machado, 2003).

    Como apontado na fundamentao terica sobre o histrico e o

    desenvolvimento da Arteterapia, tem-se uma formao que liga a Arte, e no apenas

    o uso de materiais artsticos, com ensinamentos da Psicologia, de maneira a formar

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    uma teoria especfica diferenciada daquelas advindas das reas de origem. Nos

    cursos de Especializao em Arteterapia, h disciplinas prticas com uso dos

    materiais artsticos, sobre Histria da Arte, com exposio sobre artistas e

    movimentos artsticos. O profissional vivencia o Ateli Arteteraputico e sente como

    defrontar-se com os materiais artsticos e expressar-se por meio destes.

    No referencial winnicottiano, entende-se que os materiais advindos do campo

    das Artes, oferecidos nos atendimentos arteteraputicos, presentificam o ambiente

    suficientemente bom necessrio para o desenvolvimento emocional saudvel.

    Oferecem uma nova linguagem de comunicao baseada no criar. H, na

    Arteterapia, um apreo pelas tcnicas e materiais artsticos, que no so, contudo,

    usados como caminho para submisso do paciente ao desejo do terapeuta. Tem-se

    um setting, a partir da Psicanlise Winnicottiana, aberto expressividade do

    paciente, com a presena viva e atenta do terapeuta, que tem a funo de auxiliar o

    indivduo a trilhar seus prprios caminhos.

    A atuao da Ser e Fazer difere da Arteterapia quanto ao tipo de olhar

    dirigido para os materiais ofertados no encontro inter-humano que se estabelece nas

    sesses. Porm, concorda-se com Aiello-Vaisberg que defende que esta estratgia

    teraputica tem o papel de servir como um caminho para um viver criativo (Aiello-

    Vaisberg, 1999, p. 656). A Arte se constitui no como um fim em si mesma, mas

    como um meio que, em conjunto com o ambiente teraputico suficientemente bom,

    possibilita a emergncia e acolhimento do gesto criativo e espontneo dosparticipantes do processo teraputico. Proporciona aos mesmosa experincia de ser

    algum singular, nico a partir de sua espontaneidade. Os materiais podem ser

    utilizados como mediao na comunicao emocional, condio facilitadora da

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    presentificao do si mesmo do paciente, ou seja, da expresso de seu gesto

    espontneo (Aiello- Vaisberg e Machado, 2003, p. 26).

    Para a arteterapeuta brasileira Allessandrini (2006), na Arteterapia de

    orientao winnicottiana, o ateli arteteraputico assemelha-se ao espao

    transicional, espao intermedirio entre aquilo que interno e o que externo. Neste

    sentido, a Arteterapia apresenta-se como auxiliar para a emergncia do verdadeiro

    self.

    De forma a sintetizar estas idias e com base no texto de Winnicott

    (1965/1994) acerca do valor da Consulta Teraputica, pode-se dizer que a atuao

    do arteterapeuta deve estar sempre prxima das necessidades e possibilidades do

    paciente. H uma flexibilizao do setting quando comparado com o setting da

    psicanlise ortodoxa e considera-se que h casos em que uma mudana

    sintomtica rpida prefervel a uma cura psicanaltica (...) se houver um tipo de

    caso que pode ser ajudado por uma ou trs visitas a um psicanalista isso amplia

    imensamente o valor social do analista (Winnicott, 1965/1994, p. 244). Estas idias

    colaboram para aplicao de sua teoria em contextos institucionais, quando muitas

    vezes deve-se pensar no mnimo que se pode fazer em cada situao.

    O arteterapeuta prope uma nova tcnica para o contato e comunicao com

    o paciente, por meio dos recursos artsticos. Ressalta-se que o uso do grafismo no

    era, para Winnicott, algo estranho. Ele prprio criou o Jogo do Rabisco, situao de

    encontro clnico entre paciente e analista, onde ambos se mostram e se comunicampor meio da construo conjunta de desenhos. De acordo com Winnicott (1964-

    1968/1994), o fato de o terapeuta jogar livremente sua prpria parte na troca de

    desenhos, certamente tem grande importncia para o sucesso da tcnica (p. 232) e

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    com isso tem-se a vantagem de que um procedimento desse tipo no faz o paciente

    sentir-se inferior por nenhuma maneira (Winnicott, 1964-1968/1994, p. 232).

    Para o desenrolar do processo teraputico, com incluso tambm da

    Arteterapia, no h instrues tcnicas especficas a serem informadas ao

    terapeuta. Este deve ficar livre para adotar qualquer tcnica que seja apropriada ao

    caso. (Winnicott, 1965/1994, p. 247). O aspecto fundamental que seja fornecido

    ao paciente,

    um setting humano e, embora o terapeuta fique livre para ser eleprprio, que ele no distora o curso dos acontecimentos por fazer ou

    no fazer coisas por causa de sua prpria ansiedade ou culpa, ou suaprpria necessidade de alcanar sucesso. O piquenique dopaciente, e at mesmo o tempo que faz do paciente. (Winnicott,1965/1994, p. 247).

    Ainda na associao entre Arteterapia e Psicanlise ligada viso

    winnicottiana, Greig (2004), ao discorrer sobre o nascimento da arte e da escrita,

    aborda a temtica da expresso relacionada ao campo teraputico, a partir de um

    olhar pautado na Psicanlise. Descreve a utilizao das Consultas Teraputicas e do

    Jogo do Rabisco empreendidos por Winnicott, sua concepo acerca dos

    fenmenos transicionais e da penetrao, por meio do desenho, no espao

    compartilhado da cultura. A interpretao para Greig (2004) concebida como algo

    ainda a ser discutido e considera que o trabalho psicanaltico no essencialmente

    um chave explicativa, mas se apresenta antes como uma travessia (working through)

    do sofrimento, com o acompanhamento do terapeuta (Greig, 2004, p. 144).

    A expresso tem a caracterstica de se configurar como uma atividade

    libertadora, contudo, necessria a presena de um mediador que funcione como

    um prolongamento da prpria pessoa. Assim, a apropriao narcisista da expresso

    prolonga-se, ento, com a relao dual paciente-terapeuta, um contido pelo outro

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    (Greig, 2004, p. 146). O terapeuta como um prolongamento do paciente mostra-se

    prximo da concepo da me suficientemente boa preconizada por Winnicott,

    que, como um prolongamento de seu filho, reconhece suas necessidades, funo

    tambm desempenhada na terapia.

    2.3. Da famlia terapia familiar: conceitos e consideraes

    A definio de famlia algo que tem se alterado ao longo do tempo em

    consonncia com as alteraes na prpria constituio familiar. Alm disto, cada

    diferente campo do saber, como a Sociologia, a Antropologia, o Direito, a Psicologia,

    a define de uma forma diferente (Berenstein, 1988).

    O psicanalista Meyer (2002) aponta para a seguinte definio de famlia:

    trata-se de uma unidade scio-econmica organizada em torno de um par

    heterossexual, ou seja, de um par potencialmente capaz de reproduzir a referida

    unidade (p. 9). Contudo, esta definio pode ser questionada tendo em vista os

    moldes da famlia atual. So acolhidas diferentes configuraes vinculares, que

    colocam em cheque a definio do que se considera como famlia. Tm-se as

    famlias reconstitudas, com filhos advindos dos diferentes relacionamentos de cada

    cnjuge, monoparentais, constitudas por meio da inseminao artificial,

    homoparentais, com a permisso de adoo de filhos por casais homossexuais,alm do fenmeno crescente de casais sem filhos por opo.

    A temtica das mudanas na forma de vinculao abordada pelo socilogo

    polons Zigmund Bauman, no livro Amor lquido (2004), quando discute a

    tendncia observada no mundo atual de se estabelecer relacionamentos em rede,

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    que se atam e desatam facilmente. Versa sobre a suposta diminuio do sofrimento

    que esta estratgia representa, ao livrar o ser humano de encargos e tenses que os

    relacionamentos podem trazer. Argumenta que

    Estar em movimento, antes um privilgio e uma conquista, torna-seuma necessidade. Manter-se em alta velocidade, antes uma aventuraestimulante, vira uma tarefa cansativa. Mais importante, adesagradvel incerteza e a irritante confuso, supostamenteescorraadas pela velocidade, recusam-se a sair de cena. A facilidadedo desengajamento e do rompimento (a qualquer hora) no reduzemos riscos, apenas os distribuem de modo diferente, junto com asansiedades que provocam. (Bauman, 2004, p. 13)

    Ainda em relao definio de famlia, nota-se que outros autores optam por

    sentidos que apontam justamente para os tipos de vinculao estabelecidos neste

    grupo. Consideram-na como um grupo composto por indivduos ligados por meio de

    laos de parentesco ou aliana, que se forma a partir do vnculo do casal, carter

    fundador da famlia, e seguido pelo nascimento da criana (Eiguer, 1998). Definem-

    na como um grupo com caractersticas singulares e plurais, que renem elementos

    de continuidade e contigidade e incluem laos de aliana, filiao e fraternidade(Correa, 2000, p. 35).

    A famlia tem a funo de articular seus membros no conjunto social e

    perpetuar-se para alm da morte de seus integrantes (Andr-Fustier e Aubertel,

    1998). Forma-se a partir do encontro do casal, articula pessoas e geraes diversas

    e desenvolve a herana genealgica por meio da transmisso psquica que ocorre

    no espao familiar (Correa, 1999). O grupo familiar , ento, permeado por

    mecanismos de identificao entre aqueles que dele fazem parte e se mostra como

    um espao de circulao da transmisso psquica.

    Quanto transmisso psquica, compreende-se esta como um fenmeno de

    fundamental importncia para o terapeuta que trabalha com famlias. Foi abordado

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    por Freud em sua obra, mas melhor desenvolvido por autores contemporneos,