arteterapia com famílias - psicanálise winnicotiana
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UNIVERSIDADE DE SO PAULO
INSTITUTO DE PSICOLOGIA
MARA BONAF SEI
Arteterapia com famlias e psicanlise winnicottiana: uma
proposta de interveno em instituio de atendimento
violncia familiar
So Paulo
2009
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MARA BONAF SEI
Arteterapia com famlias e psicanlise winnicottiana: uma
proposta de interveno em instituio de atendimento
violncia familiar
Tese apresentada ao Instituto dePsicologia da Universidade de So Paulopara obteno do Ttulo de Doutor emPsicologia
rea de Concentrao: Psicologia Clnica
Orientadora: Profa. Associada IsabelCristina Gomes
So Paulo
2009
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AUTORIZO A REPRODUO E DIVULGAO TOTAL OU PARCIAL DESTETRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRNICO, PARAFINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.
Catalogao na publicaoBiblioteca Dante Moreira Leite
Instituto de Psicologia da Universidade de So Paulo
Sei, Mara Bonaf.Arteterapia com famlias e psicanlise winnicottiana: uma
proposta de interveno em instituio de atendimento violncia familiar / Mara Bonaf Sei; orientadora Isabel CristinaGomes. -- So Paulo, 2009.
144 p.Tese (Doutorado Programa de Ps-Graduao em
Psicologia. rea de Concentrao: Psicologia Clnica) Institutode Psicologia da Universidade de So Paulo.
1. Arte-terapia 2. Famlia 3. Winnicott, Donald Woods,1896-1971 4. Violncia na famlia I. Ttulo.
RC489.A7
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FOLHA DE APROVAO
Nome: Mara Bonaf Sei
Ttulo: Arteterapia com famlias e psicanlise winnicottiana: uma proposta de
interveno em instituio de atendimento violncia familiar.
Tese apresentada ao Instituto dePsicologia da Universidade de So Paulopara obteno do Ttulo de Doutor emPsicologia
rea de Concentrao: Psicologia Clnica
Orientadora: Profa. Associada IsabelCristina Gomes
Aprovado em:
Banca Examinadora
Prof. Dr. ____________________________________________________________
Instituio: ___________ Assinatura: _____________________________________
Prof. Dr. ____________________________________________________________
Instituio: ___________ Assinatura: _____________________________________
Prof. Dr. ____________________________________________________________
Instituio: ___________ Assinatura: _____________________________________Prof. Dr. ____________________________________________________________
Instituio: ___________ Assinatura: _____________________________________
Prof. Dr. ____________________________________________________________
Instituio: ___________ Assinatura: _____________________________________
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Dedico este trabalho a Achiles Sei e VeraBonaf, meus pais, por proporcionarem umambiente suficientemente bom, quepossibilitou minha intensa dedicao satividades acadmicas e profissionais.
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AGRADECIMENTOS
Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior (CAPES) e
Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo (FAPESP), pela
concesso da bolsa de doutorado e pelo apoio financeiro para realizao desta
pesquisa.
Profa. Associada Isabel Cristina Gomes, pela orientao, apoio e confiana
depositada em mim, com um olhar para a jovem pesquisadora que poucos
conseguiam ter. Permitiu que eu me abrisse para novas formas de interveno em
Psicologia Clnica, tanto ao me iniciar na prtica com famlias quanto por aceitar que
inserisse a Arteterapia nestes atendimentos.
Dra. Cristina Dias Allessandrini, pela leitura atenta e cuidadosa do texto no Exame
de Qualificao, pelas sugestes recebidas, por acreditar e respeitar minhas idias
no que concerne Arteterapia e por seu importante papel no maior reconhecimento
deste campo do saber tanto no contexto nacional, quanto internacionalmente.
Profa. Dra. Maria de Ftima Arajo pelas observaes e sugestes no Exame de
Qualificao.
Aos colegas do Grupo de Pesquisa Casal e Famlia: Clnica e Estudos Psicossociais
pelas trocas e enriquecimento propiciados em nossos encontros.
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amiga, colega de profisso, parceira em artigos e projetos, Elisa Corbett, que com
seu Projeto Acolher, desenvolvido no SOS Ao Mulher e Famlia, to
sensivelmente encaminhou famlias para a Arteterapia e tornou possvel o
empreendimento de minha proposta de interveno.
amiga Karen Ferri Bernardino pelos projetos e idias trocadas no campo da
Arteterapia, alm dos momentos compartilhados em nossas vidas pessoais.
amiga Carolina Grespan Pereira Souza pela amizade, pelos intercmbios no
campo da Psicologia e da pesquisa, alm de gentilmente colaborar na reviso da
traduo para o ingls do resumo desta tese.
Ao SOS Ao Mulher e Famlia, por aceitar minha proposta de interveno, ceder o
espao e confiar no trabalho por mim desenvolvido. Que as reflexes advindas desta
investigao possam, ento, servir para um contnuo aprimoramento dos servios
ofertados por esta instituio.
Aos meus tios, Caio e Eliana Bonaf, pela recepo e acolhimento em minhas
viagens a So Paulo.
A Maria Claudinete e ao restante da minha famlia, pelo apoio sempre dado ao longode minha trajetria.
Ao querido Mauricio, pelo intenso carinho e compreenso, apesar da recente
entrada em minha vida.
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Pensar transgredir
No me lembro em que momento percebi que viver deveria ser uma permanentereinveno de ns mesmos para no morrermos soterrados na poeira da
banalidade embora parea que ainda estamos vivos.
Mas compreendi, num lampejo: ento isso, ento assim. Apesar dos medos,convm no ser demais ftil nem demais acomodada. Algumas vezes precisopegar o touro pelos chifres, mergulhar para depois ver o que acontece: porque a
vida no tem que ser sorvida como uma taa que se esvazia, mas como o jarro quese renova a cada gole bebido.
Para reinventar-se preciso pensar: isso aprendi muito cedo.
Apalpar, no nevoeiro de quem somos, algo que parea uma essncia: isso, mais oumenos, sou eu. Isso o que queria ser, quero me tornar ou j fui. Muita inquietao
por baixo das guas do cotidiano. Mais cmodo seria ficar com o travesseiro sobre acabea e adotar o lema reconfortante: Parar para pensar, nem pensar!
O problema que quando menos se espera ele chega, o sorrateiro pensamento quenos faz parar. Pode ser no meio do shopping, no trnsito, na frente da tev ou docomputador. Simplesmente escovando os dentes. Ou na hora da droga, do sexo
sem afeto, do desafeto, do rancor, da lamria, da hesitao e da resignao.
Sem ter programado, a gente pra pra pensar.
Pode ser um susto: como espiar de um berrio confortvel para um corredor commil possibilidades. Cada porta, uma escolha. Muitas vo se abrir para um nada ou
para uma escolha. Outras, para um jardim de promessas. Alguma, para a noite almda cerca. Hora de tirar os disfarces, aposentar as mscaras e reavaliar: reavaliar-se.
Pensar pede a audcia, pois refletir transgredir a ordem do superficial que nospressiona tanto.
Somos demasiado frvolos: buscamos o atordoamento das mil distraes, corremosde um lado a outro achando que somos grandes cumpridores de tarefas. Quando o
primeiro dever seria de vez em quando parar e analisar: quem a gente , o quefazemos com a nossa vida, o tempo, os amores. E com as obrigaes tambm, claro, pois no temos sempre cinco anos de idade, quando a prioridade absoluta
dormir abraado no urso de pelcia e prosseguir, no sono, o sonho que afinal nessaidade ainda vida.
Mas pensar no apenas a ameaa de enfrentar a alma no espelho: sair para asvarandas de si mesmo e olhar em torno, e quem sabe finalmente respirar.
Compreender: somos inquilinos de algo bem maior do que o nosso pequenosegredo individual. o poderoso ciclo da existncia. Nele todos os desastres e toda
a beleza tm significado como fases de um processo.
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Se nos escondemos num canto escuro abafando nossos questionamentos, noescutaremos o rumor do vento nas rvores do mundo. Nem compreenderemos queo prato das inevitveis perdas pode pesar menos do que o dos possveis ganhos.
Os ganhos ou os danos dependem da perspectiva e possibilidades de quem vai
tecendo a sua histria. O mundo em si no tem sentido sem o nosso olhar que lheatribui identidade, sem o nosso pensamento que lhe confere alguma ordem.
Viver, como talvez morrer, recriar-se: a vida no est a apenas para ser suportadanem vivida, mas elaborada. Eventualmente reprogramada. Conscientemente
executada. Muitas vezes, ousada.
Parece fcil: escrever a respeito das coisas fcil, j me disseram. Eu sei. Masno preciso realizar nada de espetacular, nem desejar nada excepcional. No
preciso nem mesmo ser brilhante, importante, admirado.
Para viver de verdade, pensando e repensando a existncia, para que ela valha a
pena, preciso ser amado; e amar; e amar-se. Ter esperana; qualquer esperana.
Questionar o que nos imposto, sem rebeldias insensatas mas sem demasiadasensatez. Saborear o bom, mas aqui e ali enfrentar o ruim. Suportar sem se
submeter, aceitar sem se humilhar, entregar-se sem renunciar a si mesmo e possvel dignidade.
Sonhar, porque se desistimos disso apaga-se a ltima claridade e nada mais valera pena. Escapar, na liberdade do pensamento, desse esprito de manada que
trabalha obstinadamente para nos enquadrar, seja l no que for.
E que o mnimo que a gente faa seja, a cada momento, o melhor que afinal seconseguiu fazer.
Lya Luft (2004, p. 21-3)
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RESUMO
SEI, M. B. Arteterapia com famlias e psicanlise winnicottiana: uma propostade interveno em instituio de atendimento violncia familiar.2009. 144 f.Tese (Doutorado) Instituto de Psicologia, Universidade de So Paulo, So Paulo,
2009.
A Psicanlise Winnicottiana baseia-se na crena de que o viver criativo est ligado sade. Winnicott props as Consultas Teraputicas, quando a psicoterapia no erapossvel e a pessoa poderia ser ajudada com poucos encontros. Criou o Jogo doRabisco, no qual o contato entre terapeuta e paciente ocorre por meio de desenhos.Entende-se que a soma destas caractersticas permite uma articulao desta teoria prtica da Arteterapia, interveno teraputica que oferece recursos artsticos parafacilitar expresso e comunicao. Objetivou-se com esta investigao, construiruma proposta de interveno com famlias, em uma prtica da Artepsicoterapiapautada na Psicanlise Winnicottiana, para aplicao no contexto institucional.Trata-se de uma pesquisa qualitativa em Psicologia Clnica, por meio da qual foram
atendidas 10 famlias clientes de uma instituio de ateno violncia familiar. Oprocesso psicoteraputico familiar foi empreendido com a oferta de recursosartsticos disponveis em uma caixa artstica composta por diferentes materiaisexpressivos e presente nas sesses. Escolheu-se trs famlias para aprofundamentoda compreenso do processo, com foco na importncia dos encontros iniciais naconstruo do processo teraputico familiar, no emprego da Arteterapia comofacilitadora da comunicao de pensamentos e sentimentos no settinge nos limitese alcances desta forma de terapia. Percebeu-se que as famlias tiveram dificuldadesem aderir interveno, com interrupes precoces dos atendimentos. Entende-seque este abandono pode ter ocorrido devido proposta de reflexo sobre asvivncias da famlia, s dores resultantes da violncia e pelo questionamento acercados papis que cada pessoa ocupa na famlia. O uso dos materiais artsticos facilitoue enriqueceu as contribuies das crianas e adolescentes. Complementou tambma compreenso dos adultos, com suas escassas, mas reveladoras produes, almde ampliar o entendimento da dinmica familiar. Apesar das dificuldadesencontradas, relacionadas especialmente com o foco na famlia como o paciente dasesso, na ateno psicolgica em instituies para casos de violncia familiar,considera-se que observar a famlia como o paciente necessrio. Por fim, assinala-se que a Arteterapia pde ser uma facilitadora do processo psicoteraputico dasfamlias, pois minimiza resistncias e amplia o entendimento do grupo, com maioresganhos proporcionados pela interveno.
Palavras-chave: Arteterapia; Famlia; Winnicott; Violncia na famlia
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ABSTRACT
SEI, M. B. Art therapy with families and Winnicotts psychoanalysis: a proposalof intervention in an institution for cases of family violence. 2009. 144 f. Thesis(Doctoral) Instituto de Psicologia, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2009.
The Winnicotts Psychoanalysis is based on the belief that the creative life is relatedto health. Winnicott has proposed the Therapeutic Consultations, when thepsychotherapy was not possible and the person could be helped with just a fewmeetings. He has created the Squiggle Game, in which the contact between therapistand patient occurs through drawings. It is understood that the sum of these featuresallows an articulation of this theory to the practice of Art Therapy, a therapeuticintervention that offers artistic resources to facilitate expression and communication.It was aimed on this research to build a proposal of intervention with families, in apractice of Art Psychotherapy guided by Winnicotts Psychoanalysis, applied to aninstitutional context. This is a qualitative research in Clinical Psychology, through
which 10 families were attended, clients of an institution of attention of family violencecases.. The family psychotherapeutic process was undertaken with the provision ofartistic resources available in an "art box" consisted of different expressive materialsand available in the consultations. It was chose three families to deepen theunderstanding of the process, focusing on the importance of the initial meetings inthe construction of the family therapeutic process, with the use of Art Therapy as afacilitator of communication of thoughts and feelings and on the limits and scope ofthis form of therapy. It was noticed that families had difficulties to join the intervention,with early discontinuation of care. It is understood that this interruption may haveoccurred due to the proposal to reflect on family experiences, the pain resulted fromthe violence and the questions about the roles that each person occupies in thefamily. The use of artistic materials facilitated and enriched the contributions ofchildren and adolescents. It also supplemented the understanding of adults, with itsrare but revealing productions, in addition to improve the understanding of familydynamics. Despite the difficulties encountered, particularly related with the focus onthe family as the sessions patient, in psychological care in institutions for familyviolence cases, it is considered that observing the family as the patient is indeednecessary. Finally, it was noted that the Art Therapy could be a facilitator of thepsychotherapeutic process with these families, because it minimizes the resistanceand increases the understanding of the group, with higher gains provided by theintervention.
Keywords: Art therapy; Family; Winnicott; Family Violence
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LISTA DE TABELAS
Tabela Pgina
Tabela 1 Famlias e atendimentos realizados entre Jun/2005 e Dez/2007 74
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LISTA DE FIGURAS
Figura Pgina
Figura 1 Produo em conjunto da famlia 79
Figura 2 80Figura 3 80Figura 4 80Figura 5 80Figura 6 81Figura 7 81Figura 8 81Figura 9 82Figura 10 82Figura 11 82Figura 12 83Figura 13 90
Figura 14 90Figura 15 90Figura 16 91Figura 17 91Figura 18 91Figura 19 91Figura 20 91Figura 21 92Figura 22 92Figura 23 92Figura 24 94Figura 25 95Figura 26 95Figura 27 95Figura 28 95Figura 29 96Figura 30 96Figura 31 97Figura 32 97Figura 33 97Figura 34 98Figura 35 98Figura 36 99
Figura 37 99Figura 38 100Figura 39 106Figura 40 106Figura 41 107Figura 42 108Figura 43 108Figura 44 109Figura 45 111Figura 46 111
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Figura 47 112Figura 48 112Figura 49 113Figura 50 113Figura 51 113
Figura 52 113Figura 53 113Figura 54 115Figura 55 115Figura 56 115
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SUMRIO
Captulo Pgina
1. Apresentao 1
2. Fundamentao terica2.1. A Arteterapia2.1.1. Precursores e Conceituao da Arteterapia2.1.2. Arteterapia no Brasil e no mundo
2.2. Interfaces entre Arteterapia e Psicanlise Winnicottiana2.3. Da famlia terapia familiar: conceitos e consideraes2.4. Violncia familiar: conceituao e contextualizao2.5. Violncia familiar e o atendimento institucional: o SOS
Ao Mulher e Famlia2.6. A construo de uma proposta interventiva aplicada
clnica institucional com famlias
555
1220354450
54
3. Objetivos
3.1. Objetivos gerais3.2. Objetivos especficos
59
59594. Mtodo
4.1. Participantes da pesquisa e procedimentos4.2. Materiais4.3. Anlise de dados4.4. Aspectos ticos
6064676869
5. Resultados e Discusso5.1. A proposta5.2. Famlias atendidas: apresentao e breves reflexes5.3. Incio de um percurso: o caminho trilhado pela famlia 15.4. Aprofundamento e compreenso: famlias e o papel da
Arteterapia
7070737587
6. Consideraes Finais 1177. Referncias 1268. Anexo 144
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1. Apresentao
Esse estado de esprito, a inquietude, no vem de uma
patologia, de uma falta ou de uma agitao mrbida;tem a ver com o fato de que aquilo que circunscreve odomnio do esprito o movimento estabelecido no seio
da diversidade das coisas, a inquietante diversidadedos seres e das coisas, que submete a uma velhaconstante quem pretenda no render suas armas
diante dos emaranhados da vida.(Leenhardt, 2005, p. 15)
A compreenso do homem em sua complexidade, em seus opostos, sempre
foi algo que me atraiu. Tive um incio profissional na rea de Exatas, em um curso
tcnico relacionado Tecnologia de Alimentos. Conseguia fazer anlises
laboratoriais com resultados extremamente prximos, com apenas pequenas
variaes entre si, ao seguir as normas para anlise dos alimentos estabelecidas no
laboratrio. Contudo, aquelas atividades, apesar de poderem ser facilmente
desempenhadas, no exerciam um grande fascnio e, assim, optei por seguir meus
estudos na rea de Psicologia.
Formei-me, ento, em Psicologia pela Faculdade de Filosofia, Cincias e
Letras de Ribeiro Preto, uma unidade da Universidade de So Paulo, que prima
pela pesquisa cientfica, mas com uma grande ligao com a rea de Biolgicas. A
Psicologia acaba por, l, se ligar a esta rea do conhecimento e, naquele campus,
tem-se um Programa de Ps-Graduao em Psicobiologia, com grandereconhecimento na rea acadmica. Entretanto, tal ligao com a rea de Biolgicas
faz com que a pesquisa tenha um olhar e delineamento prximos de uma concepo
positivista de cincia.1
1Cabe ressaltar que, neste campus, h tambm um Programa de Ps-Graduao em Psicologia, que compreende estecampo como pertencente s Cincias Humanas e que propicia a realizao de pesquisas a partir deste enfoque.
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Afastei-me aos poucos de tal concepo, j durante a pesquisa de iniciao
cientfica, quando propus a anlise das obras plsticas de cinco casos de usurios
atendidos por um servio de sade mental. Diante deste projeto, a FAPESP, agncia
financiadora da pesquisa, apontou que um olhar mais aprofundado para um nmero
menor de casos seria mais interessante do que uma ampla, mas superficial,
explorao dos trabalhos.
No mestrado, voltei-me para a rea de violncia familiar e pesquisei a questo
do desenvolvimento emocional numa perspectiva winnicottiana a partir de um caso
de ludoterapia de orientao psicanaltica. Observar tais situaes, pautada na
teoria de Winnicott, ressaltou a grande importncia que a famlia tem para o
desenvolvimento do indivduo.
Contudo, nos casos de violncia familiar, o grupo familiar no se mostra
capaz de oferecer um ambiente suficientemente bom para seus membros. Neste
sentido, a violncia pode ser vista como invases na continuidade de ser da criana
e ocasiona conseqncias diversas para os indivduos por ela acometidos.
O atendimento psicoteraputico da criana uma sada para a minimizao
de tais seqelas, como pude ilustrar na dissertao de mestrado. Contudo, ao se
focar a criana, deixa-se, por vezes, de observar a famlia como um todo. Pode-se
transmitir a idia de que a criana a responsvel ou nica influenciada pelas
circunstncias e deixa-se de acolher e trabalhar os demais indivduos.
Tendo em vista estas consideraes, optei por convidar a famlia para oatendimento, com o ideal de proporcionar, por meio das sesses, um espao de
sade e reflexo. Visava-se que fossem capazes de reproduzi-lo posteriormente,
com a transformao do grupo familiar em um lugar de crescimento e vida e no
apenas de desencontros e dor. Entende-se que a vivncia da psicoterapia familiar
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psicanaltica pode indicar novas formas dos membros se relacionarem, dar lugar
para elaborao de vivncias traumticas, de maneira a no perpetuar o sofrimento
da violncia ao longo das geraes, alm de facilitar outras formas de comunicao,
neste caso, por meio da Arteterapia.
Elegi os recursos artsticos expressivos como estratgia de aproximao com
as famlias, como forma de religar-me, enfim, Arte e Arteterapia, interesses
descobertos j no perodo de graduao e pesquisa de iniciao cientfica. Porm,
esta escolha no se fundamentou apenas em critrios pessoais de interesse. A Arte
tem a qualidade de oferecer concretamente outras linguagens para a comunicao
dos indivduos do grupo familiar, dar igual importncia para as contribuies que
cada um tem na sesso e facilitar o desenrolar do atendimento como um todo.
A construo de uma proposta de interveno, embasada nos recursos da
Arteterapia e orientada teoricamente pela Psicanlise Winnicottiana, empreendida
com famlias em uma instituio com histrico de acolhimento de indivduos em
situao de violncia familiar, o que passo agora a discutir. Para tanto, a tese foi
dividida em algumas etapas relacionadas com a fundamentao terica que orientou
a construo da interveno, a descrio do contexto institucional em que se deu
esta investigao, a metodologia e procedimentos empregados e por fim a
apresentao de resultados e discusses.
Quanto aos aspectos tericos, optou-se por discorrer sobre o campo da
Arteterapia, seu histrico e desenvolvimento, alm de interfaces entre Arteterapia ePsicanlise Winnicottiana. Em seguida, foram discutidas questes relativas famlia
e terapia familiar, alm de apresentar a conceituao da violncia, conseqncias,
formas de interveno, com contextualizao da instituio onde os atendimentos
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ocorreram. Por fim, a partir dos referenciais tericos elencados, delineou-se uma
proposta interventiva.
Os captulos seguintes so referentes aos aspectos prticos da pesquisa,
com listagem dos objetivos desta, o mtodo empregado, referenciado na pesquisa
qualitativa em psicologia clnica e psicanlise. Foi feita uma contextualizao dos
participantes da Arteterapia familiar, dos procedimentos utilizados e das estratgias
para anlise dos resultados obtidos.
Os dados referentes aos encontros com as famlias foram apresentados por
meio das temticas que compuseram a anlise de dados. Ilustram o papel da
Arteterapia como facilitadora do processo psicoteraputico familiar, momentos deste
percurso, alm dos limites e alcances da proposta empreendida, que por vezes se
assemelharam s Consultas Teraputicas preconizadas por Winnicott (1971/1984).
A insero de atendimentos familiares no contexto institucional de
atendimento a indivduos de baixo poder econmico mostrou-se como algo difcil de
ser realizado. A presena do fenmeno da violncia familiar um fator agravante.
Assim, quanto maior o grau de violncia na famlia, menor a adeso desta ao
atendimento. Contudo, a utilizao dos recursos da Arteterapia favoreceu a
comunicao dos participantes e percepo de contedos no expostos de outras
maneiras, fato que permitiu melhor entendimento do grupo familiar, com atuao do
terapeuta mais prxima das necessidades da famlia.
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2. Fundamentao terica
A arte um antdoto contra a violncia. (...) em seus
efeitos, a arte e a violncia so diretamente opostas.(May, 1992, p. 209)
2.1. A Arteterapia
2.1.1. Precursores e Conceituao da Arteterapia
A origem da arte to antiga como antiga a origemda humanidade. A arte nasceu com o primeiro homem.A mais remota manifestao de arte que se conhece,
pertence edade da pedra. Dessa pocha so dignosde admirao os desenhos de animaes gravados em
ossos e em pedras os quaes, segundo os auctores,apresentam qui, maior antiguidade que as estatuas
egypcias. Cada povo tem sua predileco ornamental.(Cesar, 1929, p. 7)
A Arteterapia tem suas origens ligadas tambm s origens do homem,
quando se analisa as associaes entre a humanidade e as atividades de cunho
artstico em geral. O homem ainda no tempo das cavernas gravava imagens nestas
e deixava marcado para a posteridade elementos de sua histria a partir,
justamente, de elementos grficos. Alm disto, h descries da Antiguidade sobre o
uso dos recursos advindos do campo das Artes com finalidades curativas, com
registros destas atividades j na Grcia do sculo V a.C. (Valladares e Novato,
2001).
Porm, a utilizao da Arte com fins teraputicos no ocorria de forma
estruturada como atualmente. Ao longo da Histria, notou-se uma ciso no
conhecimento, que separou o campo da Arte do campo da Cincia, alm de dividir o
homem em razo e emoo. Estas divises foram questionadas ao longo do tempo
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e hoje se busca uma maior integrao do homem em seus diferentes aspectos e a
Arteterapia pode, justamente, facilit-la ao unir Arte e terapia.
H, hoje, um corpo terico prprio Arteterapia, que relaciona teorias
psicolgicas, sobre o psiquismo, o desenvolvimento fsico, cognitivo, emocional ao
campo da Arte, com pesquisas a respeito de procedimentos e materiais especficos
para determinadas situaes e populaes. O empreendimento de investigaes em
Arteterapia e a sistematizao de achados colaboram para um constante
aprimoramento das estratgias empregadas, como se prope nesta pesquisa.
Parte-se do conceito de Arteterapia como uma estratgia de interveno
teraputica que visa promover qualidade de vida ao ser humano por meio da
utilizao dos recursos artsticos advindos principalmente das Artes Visuais, mas
com abertura para um dilogo com outras linguagens artsticas. Foca-se o indivduo
em sua necessidade expressiva e busca-se ofertar um ambiente propcio ao
surgimento de uma expressividade espontnea e portadora de sentido para a vida.
O profissional deste campo deve ter conhecimento acerca do ser humano, de
seu desenvolvimento nos diversos mbitos, suas patologias, alm de ter uma
familiaridade com o campo da Arte e sua Histria, com os materiais e tcnicas
artsticas. Deve j ter trilhado um caminho pessoal na rea, com desenvolvimento de
uma linguagem artstica que lhe seja prpria.
De acordo com a Associao de Arteterapia do Estado de So Paulo
(AATESP, 2008),
A arteterapia insere-se dentro de um contexto de explorao criativa evalorizao do sensvel, viabilizado por meio da utilizao dosrecursos artstico-expressivos. (...) a arteterapia caracteriza-se porpossibilitar que qualquer um entre em contato com seu prpriouniverso interno, com aqueles que esto sua volta e com o mundo. medida que a emergncia da expresso se mostra cada vez maisindispensvel, tanto mais o sentido da vida torna-se evidente e,
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conseqentemente, o despertar do desejo de como aprender a lidarcom os problemas, com os medos, com as deficincias, de modo atornar os pensamentos e os atos mais consonantes com o viver pleno.
Quanto ao histrico mais recente da Arteterapia, tem-se notcia do interessequanto relao entre Arte e Sade na Alemanha, com o mdico Johann Christian
Reil. De acordo com Caterina (2005), este psiquiatra alemo, que foi um
contemporneo de Pinel, construiu um protocolo teraputico com fins de cura
psiquitrica pautado em trs diferentes estgios. Num primeiro momento, o paciente
era envolvido em atividades que implicavam no trabalho fsico, realizado ao ar livre.
A segunda fase era composta por estmulos sensoriais a partir do uso de objetos
especficos para esta proposta. J a terceira etapa era constituda por estmulos
relacionados rea intelectual, por meio de desenhos, smbolos e elementos que
pudessem carregar sentidos no campo cognitivo e no campo afetivo.
Objetivava-se, nesta experincia, que o paciente tivesse seu interesse pelo
mundo externo despertado, com maior ligao entre indivduo e meio. Alm disto,
percebia-se que a expresso obtida nos desenhos, sons, texto, movimentos,
mostrava-se como uma forma de comunicao dos contedos internos (Caterina,
2005).
Posteriormente, outros profissionais estudaram a arte desenvolvida por
pacientes psiquitricos. De acordo com Andriolo (2006), j em 1845, Pliny Earle, um
alienista, havia publicado um ensaio acerca da produo artstica daqueles
denominados como insanos. Em 1848, Forbes Winslow, alienista britnico,
publicou o estudo On the insanity of men of genius, que apontava semelhanas
nas produes de doentes mentais, dando seguimento ao interesse de Pliny Earle.
Em 1872, o psiquiatra francs Abroise Tardieu assinalou novamente a importncia
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de uma ateno para as produes de doentes mentais, no texto tudes medico-
lgale sur la folie (Andriolo, 2006).
Osorio Cesar, em sua obra A expresso artistica nos alienados(Contribuio
para o estudo dos symbolos na arte), publicada em 1929, fez uma reviso de textos
que articulavam a explorao da ligao entre arte e sade mental no final do sculo
XIX e incio do sculo XX. Cesar (1929) citou Simon que, em 1876 publicou uma
curiosa analyse de desenhos, pretendendo especifical-os em cada caso para chegar
como meio, a um diagnostico certo das molestias mentaes (p. 4).
Descreveu brevemente a pesquisa de Lombroso que, em 1889 reuniu as
produces artisticas de 107 doentes que comearam a pintar ou esculpir depois da
molstia. (Cesar, 1929, p. 4). De acordo com ele, Lombroso foi quem primeiro notou
a semelhana entre a arte desenvolvida por pacientes psiquitricos e a arte primitiva
e ressaltou que havia doentes que mostravam capacidade para inovar e esta
originalidade, diz elle, chega s vezes singularidade, rareza, a qual todavia
explicavel logicamente quando se aprofundam nas idas dos doentes e se
comprehendem a liberdade e a largueza cin qye se move sua phantasia (Cesar,
1929, p. 5).
Dentre os estudos que articulam arte e psiquiatria, pode-se citar os estudos
de Morselli, que em 1894 preocupou-se com os desenhos de pacientes psiquitricos;
de Julio Dantas, em Portugal, que publicou no ano de 1900 uma obra acerca das
produes artsticas do Hospcio de Rilhafolles; de Rogues de Fursac, que reuniu,em 1905, uma publicao com produes artsticas de pacientes psiquitricos
(Cesar, 1929).
Um profissional que se destacou dos demais, quanto ao olhar depositado
para as relaes entre arte e psiquiatria, foi Marcel Rej, mdico que se dedicou
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tambm crtica da arte. Sua posio, em textos como Lart malade: dessins de
fous, datado de 1901 e Lart chez ls fous: le dessin, la prose, La posie, de 1907,
diferenciou-se dos demais pesquisadores da Arte a partir do campo mdico por ser
o primeiro a notar elementos propriamente artsticos naquelas obras (Andriolo,
2006, p. 47).
Outros textos publicados na Alemanha foram elencados por Cesar (1929),
como Das bildnerische Schaffen der Geisteskranken, de 1919, Bildnerei der
Geisteskranken e Bildnerei der Gefangenen, o ltimo em 1926, de autoria de H.
Prinzhorn, Ein Geisteskranker als Knstler, escrito por Morgenthaler, em 1921,
obra onde foi aplicada a psicanlise para compreenso da produo artstica de um
esquizofrnico e, por fim, Lart et la Folie, de autoria de Vinhon e publicado em
1925, em Paris.
O psiquiatra Prinzhorn, que havia inicialmente estudado Filosofia e Histria da
Arte (Andriolo, 2006), considerado ainda hoje um importante nome na rea.
Organizou uma vasta coleo de produes artsticas, exposta na Coleo Prinzhorn
Museum Sammlung Prinzhorn, em Heidelberg - Alemanha. De acordo com Ferraz
(1998), a importncia deste psiquiatra encontra-se no fato de que em um momento
em que a psiquiatria considera apenas os aspectos nosocomiais e mrbidos, o
mdico Prinzhorn mostra que o doente mental tambm tem possibilidades criadoras
que sobrevivem desagregao da personalidade (Ferraz, 1998, p. 23). Suas
publicaes posteriores se utilizaram de pressupostos tericos psicanalticos, deforma diversa de outros estudiosos, numa busca de encontrar, do ponto de vista
cultural e esttico, um ncleo criador comum a todos os homens (Andriolo, 2006, p.
48).
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No campo exclusivo da Psicanlise, Freud interessou-se por estabelecer
relaes entre Arte e Psicanlise, seguido por outros estudiosos, como o
psicanalista Pfister, que passou a incluir atividades artsticas em sesses
teraputicas (Ferraz, 1998). Na rea da psicologia analtica, o psiquiatra Carl Gustav
Jung comeou a empregar, a partir da dcada de 1920, recursos advindos do campo
da arte como parte do tratamento. Pedia aos pacientes que desenhassem seus
sonhos ou situaes conflitivas e considerava os desenhos como uma simbolizao
do inconsciente pessoal ou coletivo (Andrade, 2000).
Estas associaes entre Arte e Psiquiatria foram, igualmente, estabelecidas
no contexto brasileiro. possvel listar, na dcada de 1920, os trabalhos de Osrio
Cesar (1929), no Juqueri e de Ulysses Pernambucano, no Hospital da Tamarineira,
que no chegou a publicar seus achados (Andriolo, 2003), alm de Nise da Silveira
(1992), na dcada de 1940, no Centro Psiquitrico de Engenho de Dentro.
De acordo com Andriolo (2006), Ulysses Pernambucano foi o primeiro, no
Brasil, a relacionar arte e loucura, com estudos e conferncias sobre o tema. Estes
inspiraram o psiquiatra Slvio Moura a apresentar, no ano de 1923, o texto
Manifestaes artsticas nos alienados, como tese de concluso do curso de
Medicina e primeiro trabalho que se tem notcia no Brasil sobre o tema.
Quanto a Osrio Cesar, este foi um psiquiatra e crtico de arte, vinculado ao
Juqueri, hospital psiquitrico localizado no municpio de Franco da Rocha. Este
profissional se interessou, na dcada de 1920, pelas produes artsticas dospacientes psiquitricos e sistematizou um mtodo de leitura das obras pautado no
referencial psicanaltico (Andriolo, 2003). Considerava que a obra tinha um contedo
manifesto, composto pela camada exterior, pela tcnica e estilo do autor, e um
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significado latente, simblico, composto pela fantasia que mascarava os impulsos
tidos como inconfessveis (Andriolo, 2003).
Ferraz (1998) fez um levantamento histrico acerca das atividades
desenvolvidas no Juqueri e sobre a histria da Escola Livre de Artes Plsticas.
Registrou que, por volta de 1927, existiam setores de bordados e outros tipos de
artesanato nos diversos pavilhes e colnias do hospital. Os pacientes podiam
realizar atividades de pintura com aquarela, modelagem em barro, dentre outras
atividades que necessitavam de ambiente, material e tcnica, sem, contudo, poder-
se afirmar que estas atividades tinham um objetivo teraputico. A Escola Livre de
Artes Plsticas, especificamente, nasceu em 1949, aps o surgimento, em 1943, da
oficina de pintura como parte das aes de praxiterapia desenvolvidas no local
(Ferraz, 1998).
Ainda no contexto da Arte e Psiquiatria no pas, pode-se mencionar o nome
de Nise da Silveira, psiquiatra que, a partir de 1946, props uma estratgia
teraputica diferenciada no Centro Psiquitrico Engenho de Dentro, no Rio de
Janeiro. As atividades da Seo de Teraputica Ocupacional se fundamentavam em
propostas, verbais e no-verbais, que facilitavam a livre expresso dos sintomas.
Havia uma crena de que ao tomarem um contorno, os sintomas perdiam seu
potencial. Esse processo era possvel por meio de um ambiente cordial, centrado na
personalidade de um monitor sensvel, que funcionaria como uma espcie de
catalisador (Silveira, 1992, p. 16), sinalizao que indica a importncia do meio e doprofissional que cerca a pessoa em seu processo expressivo.
Esta psiquiatra partia da crena de que a pintura e a modelagem tinham
caractersticas teraputicas, por permitir que os doentes dessem forma a emoes
tumultuosas e mobilizassem foras autocurativas rumo conscincia.
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Adicionalmente, com o intuito de alcanar maior compreenso acerca do processo
psictico e sobre o valor teraputico que a arte poderia ter para estes pacientes, foi
inaugurado, em 1952, o Museu de Imagens do Inconsciente (Silveira, 1992).
Quanto qualificao das atividades como Arteterapia, Nise da Silveira no
utilizava esta designao, por compreender que o termo arte carrega uma
conotao ligada ao valor, qualidade esttica do material, que no era o objetivo
contido em sua proposta teraputica. De acordo com ela,
nenhum terapeuta tem em mira que seu doente produza obrasde arte, e nenhum psictico jamais desenha ou pinta pensando
que um artista. O que ele busca uma linguagem com a qualpossa exprimir suas emoes mais profundas. O terapeutabusca nas configuraes plsticas a problemtica afetiva deseu doente, seus sofrimentos e desejos sob forma noproposicional. (Silveira, 1992, p. 92)
Por meio desta colocao, pode-se observar uma viso prxima da partilhada
pelos arteterapeutas atualmente, no sentido de valorizar no a esttica da produo,
mas sim o valor expressivo do material, como algo que carrega sentidos para a vida
da pessoa. possvel, no entanto, dizer que estas atividades configuraram-se mais
como precursoras do campo da Arteterapia. Representaram no uma prtica
arteteraputica, mas sim uma importante contribuio para esta rea, principalmente
quanto aos modos de se compreender as produes e a importncia do processo
expressivo.
2.1.2. Arteterapia no Brasil e no mundo
O histrico da Arteterapia tal como hoje conhecida e nomeada construiu-se
a partir de aes nos continentes americano e europeu em pocas prximas.
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Primeiramente, nos Estados Unidos, Margaret Naumburg, com formao no campo
da Psicologia, desenvolveu, a partir de 1914, uma prtica na Walden School.
Realizou-a em conjunto com sua irm, Florence Cane, com formao na rea de
Artes e fundamentou-se no referencial psicanaltico (Andrade, 2000).
Margaret Naumburg assinalava que a Arteterapia proporcionava uma
liberao do inconsciente por meio de imagens espontaneamente projetadas na
expresso plstica e grfica. Pode ser utilizada como uma forma de psicoterapia
primria ou auxiliar (Naumburg, 1991, p. 388). Considerava a relao transferencial
e entendia que, por meio dela, a expresso espontnea era liberada, com incentivo
associao livre. O profissional no deve interpretar a produo e sim encorajar o
paciente a descobrir por si mesmo o significado de suas prprias produes.
(Naumburg, 1991, p. 390).
Florence Cane tinha uma prtica mais voltada para o campo da Arte, por sua
formao como arte-educadora. Considerava que sua proposta estava constituda
na crena de que todo ser humano nascia com o poder de criar. A partir disto, criou
uma estratgia de ensinar Arte fundamentada nas seguintes funes: movimento,
sentimento e pensamento. Compreendia que parte da cura daqueles que
necessitavam de cuidados mdicos poderia ocorrer por meio da catarse do processo
artstico, acompanhada de um profissional que reconhecesse os sentidos do que
expressado e ajudasse a pessoa a tambm se reconhecer (Cane, 1983).
No continente europeu, um nome importante do artista Adrian Hill, quecunhou o termo art therapy, no Reino Unido, em 1942, para designar uma prtica
que j era desenvolvida neste territrio nos contextos do tratamento moral,
psicanlise e em experimentos da arte moderna (Hogan, 2001). Adrian Hill props o
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uso da Arte para o tratamento de soldados traumatizados com suas experincias de
guerra (Case e Dalley, 1992).
Este artista tinha, ele mesmo, experienciado os benefcios do processo
artstico quando foi submetido a um tratamento mdico para a tuberculose. Como
sintetiza Winnicott (1949), ao resenhar o livro deste profissional,
Adrian Hill, ele prprio artista e professor de arte, passou por umperodo de ociosidade como paciente tsico em um sanatrio edescobriu uma nova razo para desenhar e pintar. F-lo sentir-semelhor e talvez tenha indiretamente afetado o processo fsico de cura.(p. 422)
J no Brasil, apesar dos precursores da Arteterapia terem desenvolvido seus
trabalhos nas dcadas de 1920 e 1940, este campo do conhecimento e atuao
define-se a partir da dcada de 1960, com a vinda de Hanna Yaxa Kwiatkowska ao
Brasil (Ciornai e Diniz, 2008). Sobre o histrico especfico da Arteterapia em territrio
brasileiro, a Revista Arteterapia: Reflexes realizou, em seu nmero de 2006,
entrevistas com precursoras da Arteterapia no pas. Listaram os nomes de ngela
Philippini, Joya Eliezer, que optou por no participar da entrevista, Maria Margarida
de Carvalho e Selma Ciornai. Este documento situa o incio especfico da Arteterapia
no Brasil a partir da dcada de 1960, com os primeiros cursos de extenso na rea,
ministrados por profissionais de outros pases.
Maria Margarida de Carvalho foi uma das precursoras da Arteterapia no pas
e menciona, como seu primeiro contato com este campo, um curso de extenso
ministrado pela arteterapeuta Hanna Kwiatkowska na Pontifcia Universidade
Catlica de So Paulo, em 1964 (Carvalho, 2006). Deu seguimento a seus estudos
de forma independente e iniciou a prtica clnica em Arteterapia no ano de 1968 em
seu consultrio particular. Organizou, em 1995, o livro A arte cura? Recursos
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artsticos em psicoterapia, escrito com a colaborao de outros profissionais, aps o
I Encontro Paulista de Arte-terapia realizado em 1993 (Carvalho, 1995).
Carvalho descreveu sua atuao em Arteterapia em parceria com Radh
Abramo, realizada junto a detentos da Penitenciria do Estado de So Paulo, no ano
de 1972, com obras expostas em 1973 na II Jornada Mdico-Hospitalar do Hospital
do Servidor Pblico de So Paulo. Fez referncia tambm Arteterapia com
pacientes psiquitricos em acompanhamento ambulatorial, aps a alta hospitalar,
realizada no ano de 1974. Descreveu a realizao de cursos diversos de extenso
em Arteterapia ministrados por ela ao longo da dcada de 1970 (Carvalho, 1995).
J ngela Philippini considerou como relevante para seu incio na Arteterapia,
na dcada de 1970, as contribuies de Nise da Silveira e a participao em um
grupo que possibilitou o estudo com arteterapeutas americanos convidados para
treinamento de profissionais no Brasil. Listou os nomes de Diane Rode,
arteterapeuta responsvel pelo setor de Arteterapia do Hospital de Pediatria Monte
Sinai localizado em Nova Iorque, e Bobbi Stoll, com experincia na rea de
violncia, que contriburam para sua formao na rea (Philippini, 2006).
Fundou um curso de Arteterapia na Clnica POMAR, localizada no municpio
do Rio de Janeiro, no ano de 1982, que a partir de 1983 foi transformado em
Formao em Arteterapia. No Estado de So Paulo, aps os cursos de extenso,
breves, ministrados por Maria Margarida, um curso de Introduo Arteterapia no
Sedes Sapientiae foi organizado em 1989 e, a partir de 1991, foi criado o primeiroCurso de Aperfeioamento e Especializao em Arteterapia.
Selma Ciornai teve uma formao em Arteterapia ao mesclar cursos no
exterior e no pas, tambm a partir da dcada de 1970. Estudou, em Israel, com
Peretz Hesse, arteterapeuta vinculado Sociedade Internacional de Psicopatologia
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da Expresso e Arteterapia na Frana. Estudou, em curso da Associao de
Psiquiatria e Psicologia da Infncia e Adolescncia Rio de Janeiro, entre 1976-77,
com Luis Duprat de Brito Pereira, psiclogo com estudos em Arteterapia nos
Estados Unidos. Por fim, fez um mestrado em Arteterapia na Califrnia State
University, entre 1978 e 1983 (Ciornai, 2006).
Com o passar dos anos a Arteterapia se ampliou no Brasil, com uma notvel
proliferao dos cursos de extenso e especializao, em todo territrio nacional.
Foram institudas associaes estaduais que unidas formaram a Unio Brasileira de
Associaes de Arteterapia (UBAAT), fundada em 22 de Abril 2006, que busca
reconhecimento da Arteterapia como campo profissional especfico, aps Fruns
com as associaes estaduais realizados nos anos de 2002 e 2003 (UBAAT, 2008).
Apesar destes avanos no estabelecimento da Arteterapia como um campo
profissional com suas especificidades e potencialidades, esta uma rea anda em
construo no Brasil. A formao no pas ocorre por meio de cursos de
Especializao, que complementam a formao inicial do arteterapeuta e esta
caracterstica faz com que haja grandes diferenas entre a atuao dos mesmos.
De forma geral, argumenta-se que a Arteterapia caracteriza-se como um
processo que une trs diferentes elementos: o cliente/paciente, a obra e o
arteterapeuta (Carvalho, 2006). No entanto, a importncia dada a cada aspecto
diferencia-se a partir da formao inicial do arteterapeuta, do pblico alvo e dos
objetivos do trabalho empreendido.Quanto aos diferentes enfoques em Arteterapia, pode-se citar a diviso
historicamente existente nos Estados Unidos em Artepsicoterapia e Arte como
terapia (Andrade, 2000). A primeira prtica concebia o uso dos recursos
arteteraputicos atrelados ao processo psicoteraputico, enquanto a Arte como
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terapia apresentava-se como uma estratgia teraputica auxiliar, com foco no
processo criativo e expressivo.
Sobre Margaret Naumburg, a arteterapeuta norte-americana Elinor Ulman
(1986) afirma que esta profissional foi uma expoente da Artepsicoterapia. Para
Ulman (1986), a Arteterapia poderia ser uma forma principal ou auxiliar de terapia e
a Arte seria um ingrediente que tornava possvel o procedimento psicanaltico. Edith
Kramer, com orientao terica advinda da Psicanlise, focava-se mais nas
qualidades existentes na Arte, com observao da contribuio desta, em si mesma,
para o campo da psicoterapia. Naumburg estaria mais em acordo com as tcnicas
psicanalticas, enquanto Kramer estaria mais atrelada aos princpios freudianos. Em
ambos os casos a Psicanlise servia para a compreenso das necessidades bsicas
do ser humano, apesar de aplicarem este conhecimento de maneiras diferentes
(Ulman, 1986).
De acordo com Ulman (1986), as propores da Arte e da terapia, isto , a
diferenciao em Artepsicoterapia e Arte como terapia, no contexto arteteraputico
apresentam grande variao. Esta autora defende que estas formas de exercer a
clnica podem existir lado a lado, na mesma sala, ao mesmo tempo ou em diferentes
momentos do trabalho do mesmo arteterapeuta.
Para Hogan (2001), as prticas em Arteterapia no Reino Unido se distinguem
no que denomina como analytic art therapy, que seria uma prtica baseada nas
teorias psicanalticas, com especial ateno relao transferencial e,conseqentemente, interpretao do encontro teraputico; art psychotherapy,
que enfatiza a importncia da anlise verbal do material produzido nas sesses, com
situaes em que a produo se torna algo adicional psicoterapia verbal; art
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therapy, que foca as produes sem considerar a anlise verbal como algo
necessrio no contexto arteteraputico.
A partir de diferentes olhares e teorias para compreenso do ser humano,
sintetiza-se algumas qualidades apresentadas pela Arteterapia, que a reforam
como uma estratgia teraputica efetiva. Assim, esta auxilia a pessoa a tornar-se
mais comunicativa acerca de seus sentimentos, com menor propenso a internaliz-
los de maneira no saudvel ou a atu-los de forma destrutiva, com impacto positivo
na vida daqueles que so atendidos por meio da Arteterapia (Saunders e Saunders,
2000).
Acredita-se que o fazer artstico proporciona, de maneira eficaz e rpida,
pontes para a intersubjetividade, um contato rico, ntimo e profundo que,
dependendo do caso, pode prescindir de palavras ou enriquecer com elas (Ciornai,
1995, p. 62). As atividades artsticas se constituem como catalisadoras de um
processo de resgate de qualidade de vida e do viver, em seu sentido mais humano.
Os recursos expressivos e artsticos tm a funo de ajudar a pessoa a
concretizar, de maneira significativa, uma imagem interna. Considera-se que, em
diversos casos, a simples explicitao da imagem acaba elaborando no nvel
simblico aquele contedo psquico preexistente (Allessandrini, 1996, p. 14).
A utilizao teraputica das artes plsticas pode ser adequada tanto em
situaes individuais como em situaes grupais, com propostas que focam mais a
expresso plstica do que a expresso verbal, quando a ltima vem para enunciaraquilo que foi elaborado plasticamente (Bayro-Corrochano, 2001). Os recursos
artsticos so um meio de comunicao no verbal que torna a terapia mais flexvel e
permite a captao da riqueza do mundo emocional e relacional do indivduo. Pode
ser utilizada com diversos fins, tais como uma possibilidade de catarse, de insight e
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como elemento projetivo que propicia a interveno teraputica (Surez e Reyes,
2000), em um processo que demanda um intenso trabalho de observao, escuta,
compreenso e elaborao por parte do arteterapeuta (Verdeau-Paills, 2003).
Quanto dinmica dos encontros arteteraputicos e a presena das
linguagens artstica e verbal, Pereira (1976) defende que a associao de ambas
pode ser realizada com o intuito de se resgatar a ligao entre a imagem e a fala,
auxiliando o homem a ser aquele que sente aquilo que pensa (p. 30). H
arteterapeutas, ento, que defendem a explorao verbal das produes e que
compreendem que a mudana ocorre a partir do dilogo entre paciente e
arteterapeuta sobre a obra. Consideram que escutar a linguagem do cliente no
nega o processo de olhar o produto de arte. uma sntese de dois meios de
comunicao criativos (Riley, 1998, p. 58). Assim, o fazer e a reflexo sobre aquilo
que feito desempenham um papel no processo de autoconhecimento (Norgren,
1995).
Frayze-Pereira (2005) preconiza que o psicanalista conta apenas com suas
prprias associaes para interpretar a obra de arte, com a interpretao advinda
dos efeitos da obra sobre sua subjetividade e no como o significado real da obra.
Ao se transpor estes pressupostos do campo especfico das Artes Plsticas para a
rea da Arteterapia, observa-se a relevncia da linguagem verbal no processo
arteteraputico.
A leitura da obra de arte tem um carter sem fim, que se multiplicaindefinidamente e possvel o aprofundamento dos enigmas por ela propostos. De
acordo com Frayze-Pereira (2005), assim como cabe escuta do psicanalista
permitir o livre curso das associaes do paciente, caracterstico da psicanlise
implicada trabalhar com a manifestao singular da obra na relao com
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intrprete/espectador (p. 73). Em Arteterapia isto poderia ser compreendido como
abertura para a expresso verbal do paciente, como promotora de maior
conhecimento da pessoa em questo.
2.2. Interfaces entre Arteterapia e Psicanlise Winnicottiana
as imagens, em seus valores expressivos, so fontesde processos, de afetos, de significaes. Porm, em
especial, a imagem artstica tem uma inventividade
nitidamente superior de qualquer outra imagem: elapermanece na esfera da inveno, da descoberta.Aproxima-nos de um campo que tambm o da
psicanlise. (Amendoeira, 2008, p. 51)
A Arteterapia pode estar fundamentada em diferentes abordagens tericas e
no Brasil nota-se a grande influncia da Gestalt-terapia, na Arteterapia Gestltica
(Ciornai, 2004) e da Psicologia Analtica, na Arteterapia Junguiana (Philippini, 2004).
A partir de um referencial psicanaltico considera-se a existncia e influncia do
inconsciente, que pode se manifestar por meio das produes realizadas no
contexto arteteraputico. A Arteterapia embasada na Psicanlise faz-se pouco
presente no Brasil. Todavia, internacionalmente, tem-se outro panorama, com uma
pluralidade maior de teorias que apiam a atuao arteteraputica e uma presena
mais intensa da Psicanlise e dos referenciais psicodinmicos.
A prtica arteteraputica realizada por profissionais ligados Psicanlise, de
acordo com alguns autores, pode se associar a um fazer mais livre, com menor
estruturao. Assim, a atuao no seria marcada por consignas constantes, passos
demarcados dentro dos encontros, mas sim por um livre movimento do paciente em
seu processo de se expressar por meio dos materiais artsticos. Esta maior liberdade
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seria similar ao processo de associao livre preconizada pelo tratamento verbal
criado por Freud (McMurray e Schwartz-Mirman, 1998).
Quanto ligao da Psicanlise com as Artes em geral, nota-se, nos escritos
freudianos, um especial interesse pela compreenso de obras, de artistas, com
associao entre obra e biografia. Diversos so, ento, os textos na extensa obra de
Freud que discutem questes relacionadas ao campo artstico e entre eles elenca-se
Delrios e sonhos na Gradivade Jensen (1907), Escritores Criativos e Devaneios
(1908), Leonardo da Vinci e uma Lembrana de sua infncia (1910), O Moiss de
Michelangelo (1914).
No texto Escritores Criativos e Devaneios, Freud (1908/1996) aborda o tema
do brincar infantil e argumenta que a criana consegue diferenciar o que e no
real. Suas reflexes colaboram para o entendimento da viso sobre os processos
que permeiam a criao artstica. Desta forma, o brincar e a atividade do escritor
criativo estariam relacionados. De acordo com ele, o escritor faz o mesmo que a
criana que brinca. Cria um mundo de fantasia que ele leva muito a srio, isto , no
qual investe uma grande quantidade de emoo, enquanto mantm uma separao
ntida entre o mesmo e a realidade (Freud, 1908/1996, p. 135-6).
Ao se considerar que as foras motivadoras das fantasias so os desejos
insatisfeitos, e toda fantasia a realizao de um desejo, uma correo da realidade
insatisfatria (Freud, 1908/1996, p. 137), o mundo imaginativo d permisso para
que coisas penosas do mundo real possam, ento, ser prazerosas.H autores, mesmo dentro do campo psicanaltico, que discordam da
abordagem de Freud para o campo da Arte. Pereira (1976) argumenta que Freud
limitou-se mais a uma anlise das motivaes psicolgicas do artista, com atrao
prioritria pelo contedo e pelas motivaes que conduziam o artista escolha do
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tema, sem observao quanto qualidade esttica da obra, rea em que se
declarava como um profano. Apesar das naturais limitaes e crticas acerca das
anlises de obras e artistas feitas por Freud, este teve o grande mrito de abrir um
horizonte para a interpretao psicanaltica da cultura e de suas mais variadas
manifestaes (Pereira, 1976, p. 31).
Quanto s possveis explicaes que a Psicanlise poderia dar para a
criao, Winnicott assume, diferentemente de Freud, uma postura crtica e, para ele,
no se trata, naturalmente, de que algum seja capaz de explicar o impulso criativo,
sendo improvvel que se deseje sequer faz-lo; mas possvel estabelecer
utilmente, um vnculo entre o viver criativo e o viver propriamente dito. (Winnicott,
1971/1975, p. 100). Como ser observado pela seguinte descrio da teoria
winnicottiana do desenvolvimento emocional, o autor foi um psicanalista que avaliou
que a criatividade estava intrinsecamente ligada sade.
No que concerne a prtica arteteraputica pautada na Psicanlise, Pereira
(1976) defende que a Arteterapia facilita um mergulho do paciente em seu
inconsciente, que pode se conhecer mais por meio deste processo. Para ela, o apelo
intuio artstica presente nas pessoas de forma geral facilita e acelera a tomada
de conscincia de seus conflitos, sem o profundo desgaste emocional envolvido
numa ruptura de defesas solidamente estruturadas que por vezes se voltam contra o
processo teraputico (Pereira, 1976, p. 39).
No apenas Freud desejou explicar os impulsos criativos, como tambmoutros psicanalistas o fizeram, cada um a sua maneira. De forma sinttica, pode-se
dizer que Freud associava os impulsos criativos aos mecanismos de sublimao,
Melanie Klein aos mecanismos de reparao e Winnicott associava a criatividade
prpria sade (Orlandi e Burnier, 2003).
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No caso especfico da Psicanlise Winnicottiana, pode-se defender que esta,
alm de considerar o inconsciente e sua manifestao no settingarteteraputico e
observar os fenmenos de transferncia e contratransferncia, tambm se configura
como uma forma especfica de olhar tanto o ser humano, seu desenvolvimento e
patologias, quanto a atuao do profissional de sade. Winnicott foi um pediatra e
psicanalista ingls que, por sua prtica com crianas e observao do que
denominava pares me-beb, concebeu uma teoria acerca do desenvolvimento
emocional que assinalava o importante papel da famlia e do meio na promoo da
sade.
Em sua viso, o desenvolvimento emocional marcado por trs etapas
denominadas dependncia absoluta, dependncia relativa e rumo
independncia (Winnicott, 1963b/1983). A primeira caracteriza-se pela extrema
dependncia do beb em relao ao meio, sem perceber uma realidade externa a si
mesmo, numa situao de fuso com a me. Neste estado de indiferenciao, a
me entra num estado de preocupao materna primria (Winnicott, 1956/2000),
que facilita a percepo e atendimento das necessidades do filho.
Esta experincia cria uma iluso de onipotncia, com a me que apresenta o
seio no momento em que o beb est pronto para cri-lo. Esta iluso oferece bases
para a sade mental posterior e para a criatividade e essencial para o posterior
processo de desiluso, quando o ambiente gradualmente apresentado ao
indivduo. Ele se percebe como limitado por uma membrana eu x no-eu, como umser outro, diferenciado da me e do meio. A desiluso caracterstica j da etapa de
dependncia relativa, quando a criana consegue, ento, perceber o meio externo,
captar seus sinais e aguardar pelo olhar direcionado aos seus desejos e
necessidades.
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A me tem um considervel papel para este caminhar saudvel e com base
na preocupao materna primria pode ser uma me suficientemente boa.
Quando no o , no complementa a onipotncia do beb, sem corresponder ao
gesto do filho. Ela o substitui por seu prprio gesto, que deve ser validado pela
submisso do lactente. Essa submisso por parte do lactente o estgio inicial do
falso self, e resulta da inabilidade da me de sentir as necessidades do lactente
(Winnicott, 1960/1983, p. 133).
Ao longo do processo de amadurecimento, tem-se uma internalizao, por
parte dos indivduos, dos cuidados recebidos, que podem ser reproduzidos para
consigo prprios. A pessoa passa a se relacionar com o ambiente de forma mais
independente, contudo esta independncia nunca total, j que o indivduo normal
no se torna isolado, mas se torna relacionado ao ambiente de um modo que se
pode dizer serem o indivduo e o ambiente interdependentes (Winnicott,
1963b/1983, p. 80).
Ao longo destas etapas, observa-se a ocorrncia de trs processos,
denominados por Winnicott (1945/2000) como: integrao, personalizao e
realizao. Desta forma, considera-se que no incio da vida no h uma
personalidade integrada, tem-se um estado de no-integrao primria (Winnicott,
1945/2000).
O estado de no-integrao, acompanhado por uma no-conscincia,
caracteriza-se pela uma ausncia de globalidade tanto no espao quanto no tempo(Winnicott, 1988/1990, p. 136). A partir deste conceito, compreende-se a importncia
do fenmeno da integrao para que o indivduo atinja a condio de, efetivamente,
relacionar-se com a realidade externa (Winnicott, 1945/2000).
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A integrao atingida a partir da no-integrao por meio de fatores
internos, como os impulsos e experincias instintivas, e dos cuidados ambientais,
tanto aqueles de ordem fsica, como o segurar e alimentar o beb, quanto aqueles
de ordem emocional. possvel dizer que o bom cuidado infantil faz com que o
beb, uma unidade humana, sinta-se efetivamente como uma unidade em termos de
desenvolvimento emocional (Winnicott, 1988/1990).
Ao longo do desenvolvimento, diz-se que a perda da integrao deve passar
a ser descrita pela palavra desintegrao, em vez de pelo termo no-integrao
(Winnicott, 1988/1990, p. 14) e se considera a desintegrao como uma dolorosa
defesa do indivduo.
A etapa de personalizao caracteriza-se pelo sentimento de estar dentro do
prprio corpo (Winnicott, 1945/2000, p. 225) e a experincia da psique localizar-se
dentro do corpo uma conquista a ser alcanada pelo indivduo, mais do que algo
naturalmente j existente. obtida por meio de vivncias pessoais relacionadas a
impulsos, sensaes da pele, erotismo muscular e adicionalmente a partir dos
cuidados com o corpo e da gratificao a partir da satisfao de exigncias
instintivas. Seu oposto a despersonalizao, que seria a perda de vinculao
entre a psique e o soma (Winnicott, 1988/1990, p. 145).
Por fim, quanto ao momento de realizao, este implica na apreciao do
tempo e do espao e de outros aspectos da realidade (Winnicott, 1945/2000, p.
222-3). Aps esta etapa se torna possvel o relacionamento do indivduo comopessoa total com uma me total e com a compreenso e preocupao de seus
pensamentos e atos sobre o outro.
Observa-se a importncia do ambiente, nas funes de sustentar o
desenvolvimento emocional da criana, por meio do manejo e da apresentao do
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mundo em doses que o beb possa assimilar, ao longo deste processo. A fora do
ego da criana proporcional sustentao dada pelo ambiente facilitador
(Winnicott, 1964/1994). De acordo com Winnicott (1952/2000, p. 306), a sade
mental, portanto, produto de um cuidado incessante que possibilita a continuidade
do crescimento emocional.
Vale apontar para a crena de que este ambiente suficientemente bom est
mais atrelado s condies psquicas dos cuidadores para se atentarem criana e
sua fragilidade no incio da vida, do que efetivamente s condies externas. Estas
podem facilitar a entrada da me no estado de preocupao materna primria, por
deix-la livre de demandas outras que no o prprio filho. Contudo, no garantem
que a me seja capaz de ser uma me devotada a seu beb. Defende-se, ento,
que a viso de Winnicott aplica-se s famlias de diferentes classes scio-
econmicas, desde as mais favorecidas at aquelas consideradas como
desfavorecidas, com maior influncia das questes internas de cada familiar e
capacidade psquica para se dedicar ao outro.
Quanto Arteterapia, esta se constitui como uma forma de atuao
teraputica que prima pela oferta de condies para uso e desenvolvimento da
criatividade. A partir de um referencial winnicottiano, acredita-se que o contexto
arteteraputico e a relao estabelecida entre paciente e arteterapeuta configuram-
se como uma reproduo do ambiente suficientemente bom e, com este, o processo
de desenvolvimento emocional pode ser retomado.Acerca desta estratgia de interveno, tem-se uma resenha do livro Art
versus illness, do arteterapeuta britnico Adrian Hill, escrita por Winnicott, onde ele
faz consideraes sobre a prtica desenvolvida por este profissional, denominando-
a erroneamente de terapia ocupacional. Winnicott (1949/1994) reconhece o valor
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que as atividades artsticas podem ter para aqueles que esto enfermos, tendo sua
primeira esposa, ela mesma, proposto um trabalho com o barro no Maudsley
Hospital, com pacientes psiquitricos. Quanto obra de Adrian Hill, Winnicott
(1949/1994) pontua que
Um artista, ceramista, msico, escultor, modelador, que vive noprprio meio que escolheu, d-se ao trabalho de contactar um grupode pacientes acamados ou imobilizados e, atravs do contato pessoal,capacita cada paciente, sua maneira, a criar uma ponte entre oinconsciente e o viver comum consciente, uma ponte de duas mos.Muita coisa acontece, mas o principal que o paciente, porgradualmente descobrir suas premncias criativas e forasintegradoras positivas, fica capaz de olhar para o que est dentro doself, a fim de ver o que quer que esteja l, sejam o caos, as tenses, amorte, assim como a beleza e vivacidade inata. (p. 423)
Como observado, h uma valorizao do trabalho desenvolvido pelo
profissional da Arteterapia. Sua teoria parte da concepo que a criatividade a
base saudvel da vida humana e que a submisso se caracteriza como um estado
doentio (Winnicott, 1971/1975). Discorre sobre a existncia do falso self, que se
constri na base da submisso. Pode ter uma funo defensiva, que a proteo doverdadeiro self (Winnicott, 1959-1964/1983, p. 122).
Winnicott (1960/1983) defende que h vrios nveis de estruturao do falso
self, desde uma organizao prxima da normalidade at um grau extremo. Abrange
desde a possibilidade de se configurar como uma atitude social educada e agradvel
at chegar ao ponto em que o verdadeiro selffica oculto. Nestes casos, o falso self
se implanta como real e isso que os observadores tendem a pensar que apessoa real (Winnicott, 1960/1983, p. 130).
A partir disto, fica compreensvel a ressalva que faz sobre o imperativo de que
o paciente escolha como deseja se expressar, para que os sentidos e benefcios das
atividades artsticas fiquem resguardados. Desta forma, ficar sujeito, quando
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doente, a um programa escolhido pelo tcnico situado no poro do hospital ser
ocupado e impedido de descobrir a si prprio ou de crescer (Winnicott, 1949/1994,
p. 423).
Winnicott faz diversas referncias criatividade, atividade artstica e ao
artista em si, ao longo de sua obra e so igualmente temas de interesse para a
Arteterapia e sua prtica. Refere-se a estas temticas nos momentos em que
discorre sobre a sade, com apontamento da criatividade como um elemento bsico
do viver saudvel, como tambm quando discute a comunicao e a no-
comunicao, as questes relacionadas psiquiatria e ao desenvolvimento
emocional como um todo.
Na viso de Winnicott (1965/2001), os seres humanos apresentam um
impulso criativo inato, que pode desaparecer quando no correspondido pela
realidade externa. Todo indivduo recria o mundo que o cerca, contudo, para que isto
seja possvel necessrio que este lhe seja apresentado nos momentos de
atividade criativa, algo dependente da sensibilidade da me s necessidades do filho
no incio de sua vida.
Considera que a criao artstica toma o lugar do sonho, com importncia
para o bem-estar humano (Winnicott, 1945/2000). E quanto criatividade primria,
marca a necessidade de se perceber como a pessoa experimenta o processo de
criar, de como isto sucede internamente. H sempre uma valorizao das
experincias individuais, mais do que aquilo que visvel externamente, como noseguinte trecho,
Se existe um verdadeiro potencial criativo, podemos esperar encontr-lo em conjunto com a projeo de detalhes introjetados em todos osesforos produtivos, e devemos reconhecer a criatividade potencialno tanto pela originalidade de sua produo, mas pela sensaoindividual de realidade da experincia e do objeto. (Winnicott,1988/1990, p. 130)
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A obra um elemento que carrega um sentido de comunicao, porm
Winnicott (1963a/1983) acredita que h, no artista, um conflito advindo de duas
diferentes disposies, uma de efetivamente comunicar algo ao meio externo e outra
que no deseja ser decodificado. Em um sentido mais amplo, atrelado cultura,
aponta que, por meio da criao artstica, so mantidas pontes entre o subjetivo e o
objetivo. Entende, adicionalmente, que o artista est sempre vencendo brilhantes
batalhas, numa guerra que, na verdade, no tem fim. O fim constituiria em descobrir
algo que no verdade, ou seja, que o que o mundo oferece igual ao que o
indivduo cria (Winnicott, 1948/2000, p. 251).
Winnicott d grande ateno aos sentidos que a obra pode ter para o artista e
seu valor est atrelado forma como o artista cria. Em seu ponto de vista h dois
tipos de artistas. Um trabalha baseado no falso self e, com isso, produz uma
representao, uma amostra daquilo que externo, mas com posterior habilidade
para relacionar esta primeira impresso exata aos fenmenos brutos que
constituem a vivacidade dentro do verdadeiro selfsecreto. (Winnicott, 1988/1990, p.
129). No caso de sucesso, tem-se uma produo que satisfaz tanto o artista em seu
verdadeiro self, como as demais pessoas, com valor por aproximar elementos
internos e externos, inicialmente separados.
Diferentemente, o processo de criao de outros artistas se inicia com a
representao bruta de aspectos internos, com grandes significados para si, maspouco compreensvel para os demais. Deve, por meio da criao, fazer com que
estes elementos sejam inteligveis. Porm este processo pode se configurar como
uma traio de si mesmo e trazer um carter de fracasso, de maneira que o maior
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xito do artista seu trabalho de integrao dos dois selves (Winnicott, 1988/1990,
p. 130).
Winnicott (1971/1975) argumenta que a busca do eu por meio da Arte pode
falhar, visto que esta busca se constitui mais como algo interno do que realizado por
meio de elementos externos. Desta forma, considera que o eu (self) realmente no
pode ser encontrado do que construdo com produtos do corpo ou da mente, por
valiosas que essas construes possam ser em termos de beleza, percia e impacto
(p. 81). O artista pode ter um reconhecimento do meio externo, com uma produo
de valor no campo da Arte, mas com pouco significado para o encontro consigo
prprio. Em sua viso, a criao acabada nunca remedia a falta subjacente do
sentimento do eu (self) (Winnicott, 1971/1975, p. 81), algo para se atentar quando a
linguagem artstica transposta para o contexto arteteraputico.
Pensa-se que se deve valorizar a relao humana estabelecida por meio da
Arteterapia e como esta pode, efetivamente, propiciar a emergncia do gesto
espontneo. A produo adquire um valor, no mbito arteteraputico, na medida em
que se apresenta como uma representao do verdadeiro self do paciente,
portadora de sentidos para o viver.
O uso de materialidades mediadoras no setting psicoteraputico abordado
por Aiello-Vaisberg, pesquisadora brasileira, que discute esta utilizao e defende
uma estratgia de interveno inspirada nos pressupostos de Winnicott. A prtica
empreendida era inicialmente denominada Oficinas Psicoteraputicas Ser e Fazer,mas assumiu posteriormente a denominao de Artepsicoterapia.
Esta autora parte de uma proposta de trabalho no plano existencial, mais do
que no campo representacional. Os objetivos dos enquadres diferenciados
propostos seriam de promover um ambiente capaz de favorecer a ocorrncia de
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experincias emocionais mutativas, ou seja, de transformaes que tm lugar num
plano propriamente existencial. Contrapem-se s clnicas psicanalticas que visam
mudanas em registro mental, discursivo ou simblico, trabalhando em termos de
auto-representao e representao do mundo, segundo um pressuposto que
valoriza o saber de si (Aiello-Vaisberg e Machado, 2003, p. 13).
A atuao do grupo liderado por esta pesquisadora difere da Arteterapia
concebida pelas associaes de Arteterapia filiadas Unio Brasileira das
Associaes de Arteterapia (UBAAT), que, semelhana das palavras de Ciornai
(2004), caracterizam a Arteterapia
como interface, que requer formao consistente em trs reas: a dearte que inclui tanto prtica de ateli como fundamentos da arte-educao, teorias da criatividade e histria da arte; a teraputica que inclui a fundamentao filosfica e psicolgica que d base aotrabalho do arteterapeuta, como o aprendizado da postura, da condutae do pensar teraputico; e a da arteterapiapropriamente dita, que dizrespeito a sua histria, a seu corpo terico e metodolgico e prticasupervisionada. (Ciornai, 2004, p. 13)
Discorre-se, na prtica empreendida pela Ser e Fazer, sobre algunsmateriais empregados nas oficinas sem, no entanto, apontar para a necessidade de
amplo conhecimento da linguagem e materiais artsticos em geral, pressupostos
para a prtica da Arteterapia nos moldes das citadas associaes. Os profissionais e
pesquisadores da Ser e Fazer elegem uma determinada materialidade com a qual
se identificam e oferecem-na numa atividade especfica e preferencialmente grupal
como Oficina Arte de Papel, Oficina de Velas Ornamentais, Oficina de Costura,
Oficina de Arranjos Florais, dentre outras (Aiello-Vaisberg e Machado, 2003).
Como apontado na fundamentao terica sobre o histrico e o
desenvolvimento da Arteterapia, tem-se uma formao que liga a Arte, e no apenas
o uso de materiais artsticos, com ensinamentos da Psicologia, de maneira a formar
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uma teoria especfica diferenciada daquelas advindas das reas de origem. Nos
cursos de Especializao em Arteterapia, h disciplinas prticas com uso dos
materiais artsticos, sobre Histria da Arte, com exposio sobre artistas e
movimentos artsticos. O profissional vivencia o Ateli Arteteraputico e sente como
defrontar-se com os materiais artsticos e expressar-se por meio destes.
No referencial winnicottiano, entende-se que os materiais advindos do campo
das Artes, oferecidos nos atendimentos arteteraputicos, presentificam o ambiente
suficientemente bom necessrio para o desenvolvimento emocional saudvel.
Oferecem uma nova linguagem de comunicao baseada no criar. H, na
Arteterapia, um apreo pelas tcnicas e materiais artsticos, que no so, contudo,
usados como caminho para submisso do paciente ao desejo do terapeuta. Tem-se
um setting, a partir da Psicanlise Winnicottiana, aberto expressividade do
paciente, com a presena viva e atenta do terapeuta, que tem a funo de auxiliar o
indivduo a trilhar seus prprios caminhos.
A atuao da Ser e Fazer difere da Arteterapia quanto ao tipo de olhar
dirigido para os materiais ofertados no encontro inter-humano que se estabelece nas
sesses. Porm, concorda-se com Aiello-Vaisberg que defende que esta estratgia
teraputica tem o papel de servir como um caminho para um viver criativo (Aiello-
Vaisberg, 1999, p. 656). A Arte se constitui no como um fim em si mesma, mas
como um meio que, em conjunto com o ambiente teraputico suficientemente bom,
possibilita a emergncia e acolhimento do gesto criativo e espontneo dosparticipantes do processo teraputico. Proporciona aos mesmosa experincia de ser
algum singular, nico a partir de sua espontaneidade. Os materiais podem ser
utilizados como mediao na comunicao emocional, condio facilitadora da
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presentificao do si mesmo do paciente, ou seja, da expresso de seu gesto
espontneo (Aiello- Vaisberg e Machado, 2003, p. 26).
Para a arteterapeuta brasileira Allessandrini (2006), na Arteterapia de
orientao winnicottiana, o ateli arteteraputico assemelha-se ao espao
transicional, espao intermedirio entre aquilo que interno e o que externo. Neste
sentido, a Arteterapia apresenta-se como auxiliar para a emergncia do verdadeiro
self.
De forma a sintetizar estas idias e com base no texto de Winnicott
(1965/1994) acerca do valor da Consulta Teraputica, pode-se dizer que a atuao
do arteterapeuta deve estar sempre prxima das necessidades e possibilidades do
paciente. H uma flexibilizao do setting quando comparado com o setting da
psicanlise ortodoxa e considera-se que h casos em que uma mudana
sintomtica rpida prefervel a uma cura psicanaltica (...) se houver um tipo de
caso que pode ser ajudado por uma ou trs visitas a um psicanalista isso amplia
imensamente o valor social do analista (Winnicott, 1965/1994, p. 244). Estas idias
colaboram para aplicao de sua teoria em contextos institucionais, quando muitas
vezes deve-se pensar no mnimo que se pode fazer em cada situao.
O arteterapeuta prope uma nova tcnica para o contato e comunicao com
o paciente, por meio dos recursos artsticos. Ressalta-se que o uso do grafismo no
era, para Winnicott, algo estranho. Ele prprio criou o Jogo do Rabisco, situao de
encontro clnico entre paciente e analista, onde ambos se mostram e se comunicampor meio da construo conjunta de desenhos. De acordo com Winnicott (1964-
1968/1994), o fato de o terapeuta jogar livremente sua prpria parte na troca de
desenhos, certamente tem grande importncia para o sucesso da tcnica (p. 232) e
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com isso tem-se a vantagem de que um procedimento desse tipo no faz o paciente
sentir-se inferior por nenhuma maneira (Winnicott, 1964-1968/1994, p. 232).
Para o desenrolar do processo teraputico, com incluso tambm da
Arteterapia, no h instrues tcnicas especficas a serem informadas ao
terapeuta. Este deve ficar livre para adotar qualquer tcnica que seja apropriada ao
caso. (Winnicott, 1965/1994, p. 247). O aspecto fundamental que seja fornecido
ao paciente,
um setting humano e, embora o terapeuta fique livre para ser eleprprio, que ele no distora o curso dos acontecimentos por fazer ou
no fazer coisas por causa de sua prpria ansiedade ou culpa, ou suaprpria necessidade de alcanar sucesso. O piquenique dopaciente, e at mesmo o tempo que faz do paciente. (Winnicott,1965/1994, p. 247).
Ainda na associao entre Arteterapia e Psicanlise ligada viso
winnicottiana, Greig (2004), ao discorrer sobre o nascimento da arte e da escrita,
aborda a temtica da expresso relacionada ao campo teraputico, a partir de um
olhar pautado na Psicanlise. Descreve a utilizao das Consultas Teraputicas e do
Jogo do Rabisco empreendidos por Winnicott, sua concepo acerca dos
fenmenos transicionais e da penetrao, por meio do desenho, no espao
compartilhado da cultura. A interpretao para Greig (2004) concebida como algo
ainda a ser discutido e considera que o trabalho psicanaltico no essencialmente
um chave explicativa, mas se apresenta antes como uma travessia (working through)
do sofrimento, com o acompanhamento do terapeuta (Greig, 2004, p. 144).
A expresso tem a caracterstica de se configurar como uma atividade
libertadora, contudo, necessria a presena de um mediador que funcione como
um prolongamento da prpria pessoa. Assim, a apropriao narcisista da expresso
prolonga-se, ento, com a relao dual paciente-terapeuta, um contido pelo outro
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(Greig, 2004, p. 146). O terapeuta como um prolongamento do paciente mostra-se
prximo da concepo da me suficientemente boa preconizada por Winnicott,
que, como um prolongamento de seu filho, reconhece suas necessidades, funo
tambm desempenhada na terapia.
2.3. Da famlia terapia familiar: conceitos e consideraes
A definio de famlia algo que tem se alterado ao longo do tempo em
consonncia com as alteraes na prpria constituio familiar. Alm disto, cada
diferente campo do saber, como a Sociologia, a Antropologia, o Direito, a Psicologia,
a define de uma forma diferente (Berenstein, 1988).
O psicanalista Meyer (2002) aponta para a seguinte definio de famlia:
trata-se de uma unidade scio-econmica organizada em torno de um par
heterossexual, ou seja, de um par potencialmente capaz de reproduzir a referida
unidade (p. 9). Contudo, esta definio pode ser questionada tendo em vista os
moldes da famlia atual. So acolhidas diferentes configuraes vinculares, que
colocam em cheque a definio do que se considera como famlia. Tm-se as
famlias reconstitudas, com filhos advindos dos diferentes relacionamentos de cada
cnjuge, monoparentais, constitudas por meio da inseminao artificial,
homoparentais, com a permisso de adoo de filhos por casais homossexuais,alm do fenmeno crescente de casais sem filhos por opo.
A temtica das mudanas na forma de vinculao abordada pelo socilogo
polons Zigmund Bauman, no livro Amor lquido (2004), quando discute a
tendncia observada no mundo atual de se estabelecer relacionamentos em rede,
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que se atam e desatam facilmente. Versa sobre a suposta diminuio do sofrimento
que esta estratgia representa, ao livrar o ser humano de encargos e tenses que os
relacionamentos podem trazer. Argumenta que
Estar em movimento, antes um privilgio e uma conquista, torna-seuma necessidade. Manter-se em alta velocidade, antes uma aventuraestimulante, vira uma tarefa cansativa. Mais importante, adesagradvel incerteza e a irritante confuso, supostamenteescorraadas pela velocidade, recusam-se a sair de cena. A facilidadedo desengajamento e do rompimento (a qualquer hora) no reduzemos riscos, apenas os distribuem de modo diferente, junto com asansiedades que provocam. (Bauman, 2004, p. 13)
Ainda em relao definio de famlia, nota-se que outros autores optam por
sentidos que apontam justamente para os tipos de vinculao estabelecidos neste
grupo. Consideram-na como um grupo composto por indivduos ligados por meio de
laos de parentesco ou aliana, que se forma a partir do vnculo do casal, carter
fundador da famlia, e seguido pelo nascimento da criana (Eiguer, 1998). Definem-
na como um grupo com caractersticas singulares e plurais, que renem elementos
de continuidade e contigidade e incluem laos de aliana, filiao e fraternidade(Correa, 2000, p. 35).
A famlia tem a funo de articular seus membros no conjunto social e
perpetuar-se para alm da morte de seus integrantes (Andr-Fustier e Aubertel,
1998). Forma-se a partir do encontro do casal, articula pessoas e geraes diversas
e desenvolve a herana genealgica por meio da transmisso psquica que ocorre
no espao familiar (Correa, 1999). O grupo familiar , ento, permeado por
mecanismos de identificao entre aqueles que dele fazem parte e se mostra como
um espao de circulao da transmisso psquica.
Quanto transmisso psquica, compreende-se esta como um fenmeno de
fundamental importncia para o terapeuta que trabalha com famlias. Foi abordado
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por Freud em sua obra, mas melhor desenvolvido por autores contemporneos,