a mediação em matéria tributária: uma realidade a pensar no … · 2020-06-18 · pode...

17
A mediação em matéria tributária: uma realidade a pensar no ordenamento jurídico português? Cláudia Sofia Melo Figueiras (Mestre em Direito Tributário e Fiscal pela Universidade do Minho e Assistente Convidada na Escola Superior de Gestão do Instituto Politécnico do Cávado e do Ave e na Escola de Direito da Universidade do Minho). Resumo: A mediação enquanto meio alternativo de resolução de litígios que valoriza uma maior aproximação entre as partes, maxime do sujeito passivo e da Administração Tributária, pode contribuir para a criação de uma maior consciência ético-tributária e, assim, fomentar uma maior prevenção de litígios no futuro. A mediação cabe na categoria dos meios consensuais de resolução de litígios. É um meio de resolução de litígios que requer a intervenção de um terceiro, mediador, cuja função é aproximar as partes com vista à celebração de um acordo entre ambas. No ordenamento jurídico português, não é possível mediar litígios entre particulares e a Administração Tributária. De facto, são vários os obstáculos que se apresentam à mediabilidade dos litígios em matéria tributária. Está-se a pensar, essencialmente, no princípio da legalidade, no princípio da indisponibilidade do crédito tributário e no princípio da igualdade. Abstract: In the Portuguese legal system there is an ethical-tax consciousness deficit. Therefore it is relevant to encourage the creation of means that enable awareness increase. Using mediation as an alternative mean of dispute resolution that values closer ties between the parties, maxime of the taxpayer and tax authorities, can contribute to create more ethical- tax consciousness and thus foster greater prevention of future disputes. Mediation fits in the category of consensual means of dispute resolution It is a dispute resolution mean that requires the intervention of a third party mediator, whose function is to bring the parties together in order to find an agreement between them. In Portuguese law it is not yet possible to mediate disputes between individuals and the Tax Administration. In fact, there are several obstacles related to the disputes mediability on tax matters. It is thought, essentially, on the principle of legality, in the principle of availability of the tax credit and the principle of equality.

Upload: others

Post on 05-Jul-2020

2 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

A mediação em matéria tributária: uma realidade a pensar no ordenamento jurídico

português?

Cláudia Sofia Melo Figueiras (Mestre

em Direito Tributário e Fiscal pela

Universidade do Minho e Assistente

Convidada na Escola Superior de

Gestão do Instituto Politécnico do

Cávado e do Ave e na Escola de

Direito da Universidade do Minho).

Resumo: A mediação enquanto meio alternativo de resolução de litígios que valoriza uma

maior aproximação entre as partes, maxime do sujeito passivo e da Administração Tributária,

pode contribuir para a criação de uma maior consciência ético-tributária e, assim, fomentar

uma maior prevenção de litígios no futuro. A mediação cabe na categoria dos meios

consensuais de resolução de litígios. É um meio de resolução de litígios que requer a

intervenção de um terceiro, mediador, cuja função é aproximar as partes com vista à

celebração de um acordo entre ambas. No ordenamento jurídico português, não é possível

mediar litígios entre particulares e a Administração Tributária. De facto, são vários os

obstáculos que se apresentam à mediabilidade dos litígios em matéria tributária. Está-se a

pensar, essencialmente, no princípio da legalidade, no princípio da indisponibilidade do crédito

tributário e no princípio da igualdade.

Abstract: In the Portuguese legal system there is an ethical-tax consciousness deficit.

Therefore it is relevant to encourage the creation of means that enable awareness increase.

Using mediation as an alternative mean of dispute resolution that values closer ties between

the parties, maxime of the taxpayer and tax authorities, can contribute to create more ethical-

tax consciousness and thus foster greater prevention of future disputes. Mediation fits in the

category of consensual means of dispute resolution It is a dispute resolution mean that requires

the intervention of a third party mediator, whose function is to bring the parties together in order

to find an agreement between them. In Portuguese law it is not yet possible to mediate disputes

between individuals and the Tax Administration. In fact, there are several obstacles related to

the disputes mediability on tax matters. It is thought, essentially, on the principle of legality, in

the principle of availability of the tax credit and the principle of equality.

Palavras-chave: Litígios; Meios Alternativos de Resolução de Litígios; Mediação Tributária.

Keywords: Litigation; Alternative Dispute Resolution; Tax Mediation.

0. Nota Introdutória

O presente texto tem como tema «A mediação em matéria tributária: uma realidade a

pensar no ordenamento jurídico português?» e tem por base a comunicação a apresentar no

I Congresso de Direito Transnacional – Desafios e perspetivas na contemporaneidade (I

CONDITRANS), que se irá realizar na Universidade de Salamanca, nos dias 21 e 22 de abril,

de 2016.

Neste trabalho iremos debruçar-nos sobre a eventual mediabilidade dos litígios em

matéria jurídico-tributária. Na verdade, acredita-se que a mediação enquanto meio de

resolução de litígios poderá, por um lado, permitir uma resolução mais célere dos litígios que

envolvem a Administração Tributária e os sujeitos passivos e, por outro lado, promover uma

maior aproximação das partes. Nesta medida, porque reconcilia as partes, a mediação pode

exercer uma função preventiva de novos litígios em matéria tributária.

Vamos dividir o presente trabalho em três partes fundamentais. Uma primeira parte

tomará como designação «Mediação em matéria tributária: que futuro para o ordenamento

jurídico português?». Esta parte, por sua vez, será subdividida em duas pequenas subpartes:

a primeira subparte terá como objeto de estudo a «Noção de mediação: em especial, a

distinção de figuras afins» e nela iremos apresentar uma noção de mediação e distingui-la de

outros meios de resolução de litígios como a conciliação e a arbitragem e a segunda subparte

terá como subtema os «Obstáculos à mediabilidade dos litígios em matéria tributária e

respetiva superação», sendo que neste momento iremos apresentar os principais obstáculos

à mediabilidade dos litígios em matéria tributária e a respetiva forma de superação. Esta

segunda subparte dividir-se-á, por sua vez, em quatro pequenas subpartes que tomam a

seguinte denominação: «O princípio da legalidade»; «O princípio da indisponibilidade do

crédito tributário»; «O princípio da igualdade»; e, finalmente «A exigência constitucional da

mediabilidade dos litígios em matéria jurídico-tributária». A segunda parte do presente

trabalho terá como título «A mediação tributária numa perspetiva de direito comparado: o caso

norte-americano e italiano – breve referência» e nela irá fazer-se um sumário estudo de Direito

Comparado. Na terceira e última parte, iremos apresentar as principais conclusões do

presente trabalho.

1. Mediação em matéria tributária: que futuro para o ordenamento jurídico português?

1.1. Noção de mediação: em especial, a distinção de figuras afins

A mediação é um meio alternativo de resolução de litígios1 (MARL), a par da

conciliação e da arbitragem, entre outros2. Quanto à sua classificação como meio alternativo

de resolução de litígios, não subsistem dúvidas. De facto é comumente aceite que a mediação

é um MARL. Menos consensual, porém, é o que se deve considerar por verdadeira mediação,

isto porque, a este respeito, são vários os entendimentos da doutrina especialista,

particularmente quando se procura distinguir a mediação da conciliação. Vejamos, assim,

algumas posições dos pensadores de Direito.

ÁNGELES DE PALMA DEL TESO3 define a mediação como uma técnica através da

qual um terceiro, mediador, procura aproximar a posição das partes, promovendo o

intercâmbio de diferentes pontos de vista e a composição de interesses, exercendo uma

função ativa na resolução do litígio, na medida em que pode propor às partes o conteúdo de

um acordo que a ambas satisfaça. Em sentido aproximado, RAFAEL FERNÁNDEZ

MONTALVO/PILAR TESO GAMELLA/ÁNGEL AROZAMENA LASO4, defendem que a

mediação é um procedimento em virtude do qual um terceiro – mediador – contribui para a

resolução de um litígio entre partes, procurando a sua aproximação, através da composição

de interesses, podendo, inclusivamente fazer propostas de acordo. EDUARD VINYAMATA5,

por sua vez, define a mediação como sendo um processo de comunicação entre as partes

1 A expressão meio alternativo de resolução de litígios nasceu, em 1976, nos E.U.A, para significar um conjunto de meios

de resolução de litígios alternativos aos meios tradicionais, como o recurso aos Tribunais do Estado (sobre a evolução histórica

dos meios alternativos de resolução de litígios, entre outros, pode ver-se Jerome T Barrett and Joseph P Barrett, A History of

Alternative Dispute Resolution: The Story of a Political, Cultural, and Social Movement (San Francisco: Jossey-Bass, 2004);

Carrie Menkel-Meadow, ‘Roots and Inspirations - A Brief History of the Foundations of Dispute Resolution’, in The Handbook of

Dispute Resolution, ed. by Michael L. Moffitt and Robert C. Bordone (San Francisco: Jossey-Bass, 2005), p. 13 a 32 (p. 13 a 32).

Em especial, no ordenamento jurídico português, entre outros, pode ver-se Mariana França Gouveia, Curso de Resolução

Alternativa de Litígios (Coimbra: Almedina, 2014), em especial p. 34 e 35.

2 Em relação à mediação, à conciliação e à arbitragem pode dizer-se que estes, entre os meios alternativos de resolução

de litígios, são os meios tradicionais de resolução alternativa de litígios. Existem, porém, outros que têm vindo a implementar-se

em vários ordenamentos jurídicos e que, por vezes, se traduzem num casamento perfeito entre dois dos meios tradicionais de

resolução alternativa de litígios. A título exemplificativo considere-se os seguintes meios alternativos de resolução de litígios: o

mini trial, o private trial, o court annexed arbitration, o summary jury trial, o neutral listener, o neutral expert factfinding, os sistemas

de med-arb ou de arb-med (para mais desenvolvimentos sobre estes meios de resolução alternativa de litígios, mais recentes,

pode ver-se, entre outros, Zulema D. Wilde and Luis M. Gaibrois, O Que É a Mediação?, ed. by (Trad.) Soares Franco (Lisboa:

Agora Publicações, Lda., 2003), p. 21 a 24.

3 Ángeles de Palma del Teso, ‘Las Técnicas Convencionales En Los Procedimentos Administrativos’, in Alternativas

Convencionales En El Derecho Tributario: XX Jornada Anual de Estudio de La Fundación «A. Lancuentra» (Madrid: Marcial Pons,

2003), p. 15 a 47 (p. 38).

44 Rafel Fernández Montalvo, Pilar Teso Gamella and Ángel Arozamena Laso, El Arbitraje: Ensayo de Alternativa Limitada

Al Recurso Contencioso-Administrativo (Madrid: Consejo General del Poder Judicial, 2004), p. 31 e 32.

5 Eduard Vinyamata, Aprender Mediación (Barcelona: Paidós, 2003), p. 17.

que requer a ajuda de um mediador imparcial que procura que as partes cheguem, por elas

mesmas, a um acordo. Finalmente, RICARDO CASTILHO sustenta que a mediação se baseia

«na arte da linguagem»6, visando o restabelecimento da comunicação entre os intervenientes

num determinado litígio. Na mediação intervém um terceiro, mediador, que tem por objetivo

«ajudar as partes a chegar a um consenso, utilizando métodos psicológicos, de modo que

ambas acabem por concluir que de alguma forma obtiveram êxito no final»7, mas sem que

possa fazer propostas de acordo.

A principal diferença que se encontra nas noções supra propostas pela doutrina reside

no poder de intervenção do terceiro mediador. Para alguns autores, o mediador exerce um

papel mais ativo podendo, inclusivamente, fazer propostas de acordo (tese defendida, entre

outros, por ÁNGELES DE PALMA DEL TESO) para outros autores, porém, na mediação o

terceiro mediador apenas pode procurar aproximar as partes não dispondo de qualquer poder,

nomeadamente quanto à proposta de acordos (tese defendida, entre outros por RICARDO

CASTILHO).

Na verdade, a principal dificuldade reside, como se referiu supra, na distinção da

mediação face à conciliação. Os dois conceitos, por vezes, confundem-se. Com efeito, alguns

autores consideram mediação aquilo que outros autores consideram de conciliação. A querela

principal reside, exatamente, no poder de intervenção do terceiro mediador ou conciliador. De

facto, em regra, aqueles autores que defendem um maior poder de intervenção do mediador,

defendem um menor poder de intervenção do conciliador e aqueles que defendem um maior

poder de intervenção do conciliador, defendem um menor poder de intervenção do mediador.

Assim, não pode apresentar-se um conceito unânime de mediação, pois não existe

unanimidade na doutrina, nem na própria legislação que é, muitas vezes, a este respeito

confusa. A lei da mediação portuguesa (LMP)8, por exemplo, define a mediação como sendo

uma «forma de resolução alternativa de litígios, realizada por entidades públicas ou privadas,

através do qual duas ou mais partes em litígio procuram voluntariamente alcançar um acordo

com assistência de um mediador de conflitos»9, sendo o mediador «um terceiro, imparcial e

independente, desprovido de poderes de imposição aos mediados, que os auxilia na tentativa

de construção de um acordo final sobre o objeto do litígio»10. Já na lei da mediação espanhola

(LME)11, a mediação vem conceituada como sendo «aquel medio de solución de

6 Ricardo Castilho, ‘Mediação E Conciliação E a Efetividade Dos Direitos Fundamentais’, in La Solución Extrajudicial de

Conflictos (ADR) - Estudios Para La Formación En Técnicas Negociadoras, ed. by Patricia Blanco Díez (Navarra: Aranzadi,

2011), p. 37 a 44 (p. 42).

7 Castilho, p. 42.

8 Aprovada pela lei n.º 29/2013, de 19 de abril.

9 Artigo 2.º, al. a), da LMP.

10 Artigo 2.º, al. b), da LMP.

11 Aprovada pela ley n.º 5/2012, de 6 de julio.

controversias, cualquiera que sea su denominación, en que dos o más partes intentan

voluntariamente alcanzar por sí mismas un acuerdo con la intervención de un mediador»12. A

noção de mediação e mediador, prevista no ordenamento jurídico português, parece-nos

admitir um maior poder de intervenção do mediador do que a noção prevista no ordenamento

jurídico espanhol em que se reforça a ideia de que as partes devem alcançar «por sí mismas»

um acordo. Parece-nos, assim, que o critério do poder de intervenção do terceiro não é

suficiente para distinguir a mediação da conciliação e deste modo se estabelecer um conceito

menos equívoco de mediação.

Independentemente das considerações supra referidas, partilhamos do entendimento

de CÁTIA MARQUES CEBOLA13 quando refere, a respeito, em especial, da distinção entre

mediação e conciliação, que a diferença entre ambas as figuras não deve reconduzir-se a

questões meramente metodológicas ou científicas. Isto porque dado o caráter flexível de

ambos os instrumentos de resolução de litígio, não se pode ab initio descrever com exatidão

e certeza que tipo de metodologias ou técnicas o mediador, ou o conciliador, vão adotar no

âmbito do processo de mediação, ou de conciliação. A mediação deve distinguir-se da

conciliação, na medida em que esta tem uma natureza processual ao contrário da primeira.

De facto, tal como MARIANA FRANÇA GOUVEIA14, julgamos que a conciliação, ao contrário

da mediação, é conduzida por quem tem o poder adjudicatório, ou seja, pelo juiz, ou árbitro

da causa. A mediação, ao contrário da conciliação, é, portanto, presidida por um terceiro que,

frustrada a obtenção do acordo, mais nenhum contacto tem com o processo. Deste modo,

pode definir-se a mediação como um meio alternativo de resolução de litígios em que intervém

um terceiro, neutro e imparcial, que tem por objetivo aproximar e auxiliar as partes na

obtenção de um acordo, podendo, para o efeito, sugerir acordos, mas que, frustrada a

mediação, não tem qualquer poder adjudicatório sobre o processo. Assim, fica esculpido o

conceito de mediação, afastando-se, em nosso entendimento, pelas razões aduzidas, do

conceito de conciliação. No ordenamento jurídico português parece, inclusivamente, na maior

parte das vezes, que o legislador afasta a mediação do processo, dele aproximando a

conciliação. De facto, a tentativa de conciliação ocorre, normalmente, no âmbito de um

processo jurisdicional15.

12 Artigo 1.º, da LME.

13 Cátia Marques Cebola, La Mediación (Madrid: Marcial Pons, 2013), p. 163.

14 Gouveia, p. 23.

15 Veja-se o artigo 594.º, n.º 3, do Código do Processo Civil (CPC), que no diz que a tentativa de conciliação é presidida

pelo juiz. Idêntico é para o processo administrativo, o artigo 87.º-C, n.º 3, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.

Também na jurisdição arbitral, o regulamento do Centro de Informação, Mediação e Arbitragem da Ordem dos Notários

(disponível em http://www.notarios.pt/NR/rdonlyres/0F966738-9F4E-4627-

92FC55FC4F63E553/3963/RegulamentoArbitragem1.pdf) consagra no artigo 28.º, a possibilidade de as partes atribuírem

poderes conciliatórios ao Tribunal Arbitral

A mediação não se confunde, pois, igualmente, com o conceito de arbitragem. De

facto, a arbitragem é um meio alternativo de resolução de litígio que requer a intervenção de

um terceiro para decidir, com força de caso julgado, o litígio que opõe as partes. Os árbitros

exercem, pois, tal como o juiz do Tribunal do Estado, uma verdadeira e própria função

jurisdicional16. Ao contrário da mediação, cuja possibilidade de consagração no ordenamento

jurídico-tributário se equaciona no presente trabalho, a arbitragem é já uma realidade no

ordenamento jurídico português. De facto, a arbitragem em matéria tributária foi instituída em

Portugal pelo decreto-lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro17, visando o legislador, com a

consagração deste regime, três objetivos principais: imprimir uma maior celeridade na

resolução de litígios que opõem a administração tributária ao sujeito passivo; reduzir a

pendência de processos nos tribunais administrativos e fiscais; e, finalmente, reforçar o Direito

Fundamental de acesso ao Direito e aos Tribunais. Em termos legislativos, a única referência

à mediação em matéria tributária que se conhece constou da alínea o), do n.º 4, do artigo

124.º, da lei n.º 3-B/2010, de 28 de abril, que autorizou a consagração de um regime jurídico

de arbitragem em matéria tributária no nosso ordenamento jurídico e no âmbito da qual se fez

referência a uma eventual nomeação de mediadores ou conciliadores no regime dos centros

de arbitragem tributária18.

16 A jurisprudência constitucional portuguesa tem-se encaminhado no sentido de que os árbitros exercem uma função

jurisdicional. Com efeito, os árbitros exercem uma função jurisdicional, na medida em que declaram o Direito da causa, ou seja,

o ««juiz-árbitro» desenvolve uma função jurídica pela qual declara o Direito (jurisdictio), se bem que não possa executá-lo, ao

invés do que se passa com o «Juiz-funcionário». Sendo que «esta evidente ausência de ‘potestas’ por parte do árbitro, enquanto

não representa ou encarna a organização jurídico-política do Estado, se vê compensada com a ‘auctoritas’ (…) As decisões do

árbitro são verdadeiras e próprias decisões jurisdicionais, dotadas de autoridade»» (citação do Acórdão do Tribunal

Constitucional n.º 52/92 de 14/03/1992, disponível em www.tribunalconstitucional.pt). Também na Sentença n.º 62/91 de

22/03/1991, do Tribunal Constitucional Espanhol se entendeu que a arbitragem constitui «un equivalente jurisidiccional, mediante

el cual las partes pueden obtener los mismos objetivos que com la jurisdicción civil» (citação do acórdão disponível em

www.tribunalconstitucional.es).

17 Sobre o regime jurídico da arbitragem tributária já tivemos a oportunidade de nos debruçar no âmbito de outros trabalhos.

Entre outros, veja-se Cláudia Sofia Melo Figueiras, ‘Arbitragem: A Descoberta de Um Novo Paradigma de Justiça Tributária?’, in

A Arbitragem Administrativa E Tributária - Problemas E Desafios, ed. by Isabel Celeste Monteiro da Fonseca, 2.a edição (Coimbra:

Almedina, 2013), p. 81 a 102; Cláudia Sofia Melo Figueiras, ‘Arbitragem Em Matéria Tributária: O Modelo Português’, in Derecho,

Filosofía Y Sociedad: Una Perspetiva Multidisciplinar, ed. by José Luis Castro Fírvida and Maria Victoria Álvarez Buján (Santiago

de Compostela: Andavira, 2015), p. 303 a 317. Além dos nossos trabalhos, muitos outros autores se têm vindo a debruçar sobre

o tema no nosso ordenamento jurídico. Veja-se, entre outros, Jorge Lopes de Sousa, ‘Algumas Notas Sobre O Regime Da

Arbitragem Tributária’, in A Arbitragem Administrativa E Tributária - Problemas E Desafios, ed. by Isabel Celeste Monteiro da

Fonseca, 2.a edn (Coimbra: Almedina, 2013), p. 227 a 242; Tânia Carvalhais Pereira, ‘Aspetos Práticos’, in Guia Da Arbitragem

Tributária, ed. by Nuno de Villa-Lobos and Mónica Brito Vieira (Coimbra: Almedina, 2013), p. 63 a 87; Nuno Villa-Lobos and Tânia

Carvalhais, ‘Arbitragem Tributária: Breves Notas’, in A Arbitragem Administrativa E Tributária - Problemas E Desafios, ed. by

Isabel Celeste Monteiro da Fonseca, 2.a edn (Coimbra: Almedina, 2013), p. 375 a 388.

18 Além disso, ainda em 2009, o Conselho Superior do Tribunais Administrativos e Fiscais e o Centro de Arbitragem

Administrativa, assinaram um protocolo de entendimento com o intuito de promover a resolução alternativa de litígios em matéria

tributária, através da criação de uma rede estruturada de comissões de conciliação, mediação e consulta, acordando em propor

ao Ministério da Justiça as alterações legislativas e regulamentares para que essa rede fosse criada.

1.2. Obstáculos à mediabilidade dos litígios em matéria tributária e respetiva

superação

Tal como se referiu a respeito do conceito de mediação, este é um meio de resolução

de litígios que visa a obtenção de um acordo, ou, mais concretamente, de uma transação19

que, nas areias em que nos movemos, se deve estabelecer entre a Administração Tributária

e os sujeitos passivos. Neste âmbito, pode dizer-se que os acordos, neste caso em particular

a transação, constituem verdadeiros contratos fiscais, ou numa aceção mais ampla, contratos

em matéria tributária20. Dado que a mediação visa o estabelecimento de um acordo entre

aqueles sujeitos, a consagração da mediação em matéria tributária, no nosso ordenamento

jurídico, não é vista com «muitos bons olhos». Desde logo, porque a Lei Geral Tributária (LGT)

no artigo 36.º, n.º 2, refere que «Os elementos essenciais da relação jurídica tributária não

podem ser alterados por vontade das partes» e no n.º 3, do mesmo artigo, que «A

administração tributária não pode conceder moratórias no pagamento das obrigações

tributárias». Na verdade, são vários os obstáculos que se podem levantar à mediabilidade dos

litígios em matéria jurídico-tributária. Basta que se pense em três princípios fundamentais que

integram o nosso ordenamento jurídico-tributário, ou seja, o princípio da legalidade, o princípio

da igualdade e o princípio da indisponibilidade do crédito tributário21. Assim, os principais

obstáculos à mediação em matéria tributária têm natureza principológica. Não obstante, como

se verá, tais obstáculos do foro principológico não constituem, nem podem constituir, um

impedimento, em absoluto, à mediabilidade dos litígios em matéria tributária. Além disso,

parece-nos que é a própria Constituição da República Portuguesa que não proíbe, mas, pelo

contrário, exige a existência de meios alternativos de resolução de litígios em matéria

tributária, como a mediação.

19 Segundo LUIZ DIAS MARTINS FILHO/LUÍS INÁCIO LUCENA a transação é um acordo que assenta em mútuas

concessões pelas partes, com o intuito de chegar a um ponto de interesse comum, que lhes permite pôr um termo num conflito

de interesses ou num litígio (Luiz Dias Martins Filho and Luís Inácio Lucena Adams, ‘A Transação No Código Tributario Nacional

(CTN) E as Novas Propostas Normativas de Lei Autorizadora’, in Transação E Arbitragem No Âmbito Tributário - Homenagem

Ao Jurista Carlos Mário Da Silva Velloso, ed. by Oswaldo Othon de Pontes Saraiva Filho and Vasco Branco Guimarães (Belo

Horizonte: Editora Fórum, 2008), p. 15 a 42 (p. 18)). Neste caso, a transação visa colocar termo a um litígio que se estabelece

entre a Administração Tributária e os sujeitos passivos.

20 Sobre os contratos fiscais não pode deixar de se recomendar a leitura de José Casalta Nabais, Contratos Fiscais -

Reflexões Acerca Da Sua Admissibilidade (Coimbra: Coimbra Editora, 1994).

21 Como sustenta JOSÉ JUAN FERREIRO LAPATZA, quando se defende a introdução de meios consensuais no âmbito do

Direito Tributário, logo se levantam várias vozes que defendem ferozmente a legalidade, a igualdade e o interesse geral (José

Juan Ferreiro Lapatza, ‘Terminación Convencional de Los Procedimientos Inspectores’, in Alternativas Convencionales En El

Derecho Tributario: XX Jornada Anual de Estudio de La Fundación «A.Lancuentra» (Madrid: Marcial Pons, 2003), p. 315 a 325

(p. 324)).

1.2.1. O princípio da legalidade

O princípio da legalidade tributária implica que os elementos essenciais dos impostos,

bem como o regime geral das taxas, estejam disciplinados por lei da Assembleia da República

ou decreto-lei autorizado do Governo. Lei essa à qual a Administração Tributária está

vinculada por força do princípio da legalidade da atuação da Administração Pública. Um

entendimento rígido deste princípio parece afastar, à partida, qualquer margem de

consensualização do Direito Tributário.

Não se pode, contudo, hoje, entender o princípio da legalidade tributária e da atuação

da Administração de uma forma absolutamente rígida e que impeça qualquer margem de

consensualização entre a Administração Tributária e o sujeito passivo. Assim, entende-se que

o princípio da legalidade tributária será respeitado desde que o ato que consinta a utilização

de meios de consensualização, como a mediação, no âmbito de matérias tributárias, decorra

de uma lei da Assembleia da República ou de um decreto-lei do Governo devidamente

autorizado, que deve consagrar o objeto da mediação; os requisitos e os impedimentos ao

exercício da função de mediador; as regras do processo de mediação; os princípios aplicáveis

ao processo; os custos da mediação; e, finalmente, os efeitos jurídicos da transação obtida

em mediação.

Estamos em crer, aliás, tal como sustenta alguma doutrina, que «[s]e a legalidade

tributária surgiu, historicamente, como forma de garantir a participação dos cidadãos na

definição dos tributos que deles seriam exigidos, nas democracias representativas modernas,

os acordos entre o Fisco e o contribuinte traduzem, de alguma forma, a retomada do

consentimento dos cidadãos na tributação não mais de forma genérica, mas em relação a

cada situação concreta»22. Nesta aceção, o acordo pode ser encarado, a par do princípio da

legalidade tributária, como uma forma de prestação do consentimento da tributação. Deste

modo, o acordo surge como um aliado do princípio da legalidade tributária porque o reforça

enquanto garantia do consentimento do povo em matéria de tributação.

Assim sendo, com a mediação e a possibilidade de celebração de um acordo nesse

âmbito, não há risco, em nosso entendimento, de colisão com o princípio da legalidade

tributária, tal como não há risco de colisão com o princípio da legalidade de atuação da

Administração, pois se a mediação estiver prevista em lei da Assembleia da República ou

decreto-lei autorizado do Governo, ao aceitar submeter um litígio a um mediador, a

Administração Tributária estará, exatamente, a respeitar a normatividade a que está

expressamente vinculada.

22 Onofre Alves Batista Junior, Transações Administrativas - Un Contributo Ao Estudo Do Contrato Administrativo Como

Mecanismo de Prevenção E Terminação de Litígios E Como Alternativa À Atuação Administrativa Autoritária, No Contexto de

Uma Administração Pública Mais Democrática (São Paulo: Editora Quartier Latin do Brasil, 2007), p. 412.

1.2.2. O princípio da indisponibilidade do crédito tributário

O princípio da indisponibilidade do crédito tributário, que é uma manifestação do

princípio da legalidade tributária, proíbe qualquer margem conformadora do objeto da relação

jurídica tributária, significando isto que a obrigação tributária é uma obrigação ex legge, cujo

objeto é indisponível, e que está submetida à vontade da lei e não das partes que nela

intervém. Um entendimento rígido deste princípio também afasta a admissibilidade da

mediação do âmbito do Direito Tributário. Não obstante, também este princípio não pode ser

encarado de uma forma absoluta23.

Desde logo, porque no nosso ordenamento jurídico a própria normatividade jurídica

tem vindo a demonstrar alguma flexibilização deste princípio. Com efeito, é a própria lei que,

atendendo à necessidade de adequação da normatividade jurídico-tributária à realidade

prático-factual, tem vindo a consagrar soluções legais que conferem alguma elasticidade ao

princípio sob análise. Basta que pensemos no artigo 36.º, n.º 5, bem como no artigo 37.º,

ambos da LGT, que desenham para o nosso ordenamento jurídico-tributário o instituto do

contrato, em particular dos contratos fiscais. Assim, os referidos preceitos, particularmente, o

artigo 37.º, n.º 2, da LGT, abrem a possibilidade da Administração celebrar acordos, desde

que salvaguardados os princípios da legalidade, da igualdade, da boa-fé e da

indisponibilidade do crédito tributário. Repare-se, aliás, que é a própria lei que tem vindo a

admitir no nosso ordenamento jurídico espaços para a consensualização. Basta que se pense

na contratualização da concessão de benefícios fiscais no âmbito de projetos de investimento;

nos acordos sobre os preços de transferência; e, mais recentemente, na aprovação pelo

decreto-lei n.º 151.º-A/2013, de 31 de outubro, de um conjunto de medidas excecionais de

recuperação de dívidas à Administração Tributária, permitindo a dispensa ou a redução do

pagamento dos juros de mora, dos juros compensatórios e das custas do processo de

execução fiscal nos casos de pagamento a pronto, total ou parcial, da dívida de capital, bem

como a atenuação do pagamento das coimas associadas ao incumprimento do dever de

pagamento dos tributos.

De todo o modo, ainda que se entenda que o princípio da indisponibilidade do crédito

tributário constitui um impedimento, insuperável, à consensualização no Direito Tributário

sempre se pode dizer que ao celebrar acordos, através da mediação, com o sujeito passivo,

a Administração Tributária não tem, necessariamente, que dispor do crédito tributário. De

facto, a celebração do acordo pode incidir sobre vários outros aspetos que enformam a

relação jurídica tributária, ainda que indiretamente estes afetem o valor do crédito tributário a

apurar. Está-se a pensar, por exemplo, nos momentos de maior abertura da atuação da

23 Neste sentido, veja-se Joaquim Freitas da Rocha, Lições de Procedimento E Processo Tributário, 5.a edn (Coimbra:

Coimbra Editora, 2014), p. 433.

Administração Tributária, ou seja, quando esta age ao abrigo de um maior poder de

conformação, bem como no domínio das obrigações acessórias, ambos campos férteis, em

nosso entendimento, em matéria de consensualização.

1.2.3. O princípio da igualdade

O princípio da igualdade tributária, que tem como decorrência o princípio da

capacidade contributiva, no domínio particular dos impostos, tem subjacente a si uma ideia

de generalidade e de universalidade, de acordo com a qual todos os cidadãos se encontram

adstritos ao Dever Fundamental de pagar impostos, mas em função da sua capacidade

contributiva. Além disso, o princípio da igualdade tributária tem como decorrência, no âmbito

particular das taxas e demais contribuições, o princípio da equivalência, de acordo com o qual

o valor dos tributos devem-se adequar aos custos que o sujeito passivo gera na

Administração, ou aos benefícios que a Administração lhes proporciona.

O princípio da igualdade da atuação da Administração impõe que a Administração trate

de modo idêntico os sujeitos passivos que se encontram numa situação idêntica e de modo

desigual os que se encontrem numa situação distinta. Tem-se pensado que admitir a

consensualização no Direito Tributário é um risco para a garantia do cumprimento do princípio

da igualdade tributária e da igualdade de atuação da Administração Tributária.

Na verdade, não existirá qualquer risco para o princípio da igualdade se for garantida

a transparência no desenvolvimento de todo o processo de mediação, nomeadamente através

da publicidade. De facto, qualquer processo de mediação em matéria tributária deverá ser

enformado pelo princípio da publicidade, nomeadamente do acordo celebrado entre a

Administração Tributária e o sujeito passivo. Além disso, a consensualização permite uma

maior troca de informação entre o sujeito passivo e a Administração Tributária, favorecendo,

desta forma, uma tributação mais em conformidade com a sua situação económica, ou com

o benefício que obteve da atuação da Administração24.

1.2.4. A exigência constitucional da mediabilidade dos litígios em

matéria jurídico-tributária

Em suma, pelas razões expostas, os três princípios supra analisados não representam

um impedimento, em absoluto, à mediabilidade dos litígios em matéria jurídico-tributária.

Parece-nos, aliás, que se fizer uma leitura muito atenta da Constituição da República

Portuguesa, que esta não nega a consensualização em matéria tributária, parecendo,

inclusivamente, admiti-la. Basta que se atente, de uma forma coordenada, ao Direito de

24 Luís María Romero Flor, ‘Las Actas Con Acuerdo En La Ley General Tributaria Y En El Derecho Comparado’ (Universidad

de Castilla-la Mancha, 2010), p. 84 <https://ruidera.uclm.es/xmlui/bitstream/handle/10578/1444/LAS ACTAS CON ACUERDO EN

LA LEY GENERAL TRIBUTARIA Y EN EL DERECHO COMPARADO.pdf?sequence=1>.

Participação, por um lado, e aos objetivos do nosso sistema fiscal, por outro lado, bem como

ao Direito Fundamental de acesso ao Direito e aos Tribunais.

Com efeito, o artigo 267.º, n.º 1, da CRP, consagra que a Administração Pública,

maxime Administração Tributária, tem o dever de «assegurar a participação dos interessados

na sua gestão efetiva». Uma leitura atenta do incisivo legal remete-nos para a admissibilidade

de instrumentos de consensualização, como a mediação, não só no Direito Administrativo,

mas, também, no Direito Tributário. A participação dos interessados no exercício da função

administrativa é um pressuposto jurídico-fundamental, que obriga os órgãos administrativos

não só a não impedir ou limitar o Direito de Participação, como, também, a fomentar a sua

realização no ordenamento jurídico. Aplicado às relações jus-tributárias, o Direito de

Participação deve ter como consequência a participação dos cidadãos na realização do

interesse público em matéria tributária.

Por sua vez, o artigo 103.º, n.º 1, da CRP, consagra os objetivos fundamentais do

sistema fiscal, que se reconduzem, essencialmente, à satisfação das necessidades

financeiras do Estado e de outras entidades públicas e a uma repartição justa dos rendimentos

e da riqueza. De uma leitura conjugada deste artigo 103.º, n.º 1, com o supra citado artigo

267.º, n.º 1, da CRP, parece resultar que a participação dos cidadãos é um pressuposto

fundamental para se proceder a uma definição das necessidades financeiras do Estado e

demais entidades públicas, bem como para se proceder a uma repartição justa dos

rendimentos e das riquezas que existem no nosso ordenamento jurídico. A realização dos

objetivos fundamentais do sistema tributário implica o Direito de os cidadãos participarem

nessa mesma realização. Desde logo, porque eles são partes diretamente interessadas e

porque a Constituição lhe assegura essa participação. Assume-se, pois, como tarefa

fundamental do Estado garantir essa participação, criando as condições necessárias para um

bom relacionamento entre a Administração Tributária e os sujeitos passivos. Incumbe, deste

modo, ao Estado, no exercício da função legislativa, possibilitar a participação efetiva dos

cidadãos na prossecução do interesse público em matéria tributária. A participação constitui,

inclusivamente, uma condição fundamental para uma tributação mais conforme com a

capacidade contributiva, ou com o benefício que o sujeito passivo retira da atuação da

Administração, o que parece promover, desde logo, uma maior justiça tributária25.

Mas não só do Direito de Participação decorre uma exigência constitucional da

consagração da mediação no ordenamento jurídico-tributário. Basta que se pense no Direito

25 Como refere JOÃO TABORDA DA GAMA, «a participação procedimental dos administrados no procedimento tributário,

constitucionalmente prevista e legalmente regulada, leva a que entre ambos se vão esclarecendo dúvidas, aproximando posições

e reduzindo atritos» (João Taborda da Gama, ‘Contrato de Transacção Do Direito Administrativo E Fiscal’, in Estudos Em

Homenagem Ao Professor Doutor Inocêncio Galvão Telles - Volume V -, ed. by António Menezes Cordeiro, Luís Menezes Leitão,

and Januário da Costa Gomes (Almedina, 2003), p. 607 a 694 (p. 670).

Fundamental de acesso ao Direito e aos Tribunais, dele se devendo fazer uma interpretação

atualista. Tem-se afirmado que o Direito Fundamental de acesso ao Direito e aos Tribunais

comporta duas dimensões fundamentais, nomeadamente o Direito de acesso ao Direito e o

Direito de acesso aos Tribunais.

A primeira dimensão deste Direito Fundamental, ou seja, o acesso ao Direito, inclui

todas as vias de acesso, ou de exercício prático do Direito, que não sejam jurisdicionais.

Julgamos, na verdade, que o artigo 20.º, da CRP, não pode ser interpretado como

consagrando um Estado totalmente Judiciário, ou seja, como um Estado em que o Direito se

realiza apenas através do acesso aos Tribunais. De facto, o acesso ao Direito vai bem mais

longe do que isso. A garantia de acesso ao Direito pode e deve realizar-se de diversas formas.

É, com efeito, do nosso entendimento, dada a pluralidade de meios que, hoje, permitem o

acesso ao Direito, que se deve fazer uma interpretação atualista desta dimensão do Direito

Fundamental de acesso ao Direito e aos Tribunais. Com base nessa interpretação atualista,

cabem, naturalmente, no conteúdo material do acesso ao Direito, todos os instrumentos de

resolução de litígios que não impliquem, necessariamente, uma decisão jurisdicional no

âmbito de um Tribunal, tal como a mediação. Na verdade, a mediação assegura a realização

da justiça e do Direito, mas sem a necessidade do recurso à decisão jurisdicional no âmbito

de um Tribunal, incorporando e assegurando, assim, a realização desta dimensão

fundamental do Direito Fundamental de acesso ao Direito e aos Tribunais. Assim, pode, em

nosso entendimento, afirmar-se que de uma interpretação atualista da dimensão do acesso

ao Direito deste Direito Fundamental decorre a exigência constitucional da consagração de

meios de resolução de litígios como a mediação, nomeadamente em matéria tributária, pois

eles garantem a sua realização.

Repare-se que são várias as vantagens que, do ponto de vista do acesso ao Direito,

decorrem da utilização da mediação. Desde logo, a mediação é um meio de resolução de

litígios, em regra, mais célere do que o recurso aos meios adjudicatórios, como os Tribunais

do Estado e os Tribunais arbitrais. Além disso, a mediação pode, inclusivamente, prevenir a

existência futura de litígios, na medida em que contribui para uma maior aproximação das

partes, neste caso, da Administração Tributária e do sujeito passivo. De facto, a mediação

permite um diálogo entre o sujeito ativo e o passivo da relação jurídica tributária que os meios

adjudicatórios não permitem. Nesta medida, a mediação, enquanto instrumento de

consensualização entre as partes, pode contribuir para a criação de uma maior consciência

ético-tributária.

A justiça tributária será enformada pelo Direito Fundamental de acesso ao Direito e

aos Tribunais se permitir, no âmbito de matérias em que a consensualização seja admissível,

uma célere consensualização dos litígios, através de instrumentos de resolução de litígios

como a mediação, a qual pode, inclusivamente, contribuir, para uma maior prevenção de

litígios. Repare-se, contudo, que apesar da exigência constitucional da consagração de meios

alternativos de resolução de litígios em matéria tributária que visem a consensualização, como

a mediação, tal não significa que estes instrumentos se possam substituir aos Tribunais,

nomeadamente aos Tribunais do Estado. De facto, nem todos os litígios podem ser subtraídos

à jurisdição pública26, nem o Estado pode deixar de assegurar a realização da justiça, através

dos seus Tribunais e do ius puniendi dos juízes que os integram.

2. A mediação tributária numa perspetiva de direito comparado: o caso norte-

americano e italiano – breve referência

Nos E.U.A, a mediação em matéria tributária foi introduzida no Internal Revenue Code

pelo Internal Revenue Service Restructuring and Reform Act of 1998. Atualmente, o Internal

Revenue Service, através do Office of Appeals, oferece aos sujeitos passivos,

essencialmente, três programas de mediação. Esses três programas de mediação destinam-

se a diferentes tipos de sujeitos passivos e a diferentes fases do procedimento tributário, e

incluem, designadamente o Fast Track Settlement, o Fast Track Mediation e, ainda, o Post

Appeals Mediation.

O Fast Track Settlement oferece aos sujeitos passivos (large Business and

International, Small Business/Self-Employed e Government Entities) a possibilidade de

resolverem os seus litígios, o mais cedo possível, ainda na fase de examination process. O

objetivo é resolver o litígio no prazo de 60 ou 120 dias, conforme o tipo de sujeito passivo e a

partir do momento em que é feito o pedido. Para o efeito, é escolhido um mediador que integra

o Office of Appeals do Internal Revenue Service, que tem por função auxiliar o sujeito passivo

e o Internal Revenue Service a chegar a um acordo. Neste âmbito, o mediador do Office of

Appeals pode definir as regras e os termos do processo de mediação; pode reunir conjunta

ou separadamente com as partes; e, finalmente, pode fazer propostas de acordo, as quais

podem, ou não, ser aceites pelas partes27.

26 Isto se a mediação for privada. Existem, contudo, sistemas de mediação que são públicos. Por exemplo, o nosso sistema

de mediação familiar, criado pelo despacho n.º 18 778/2007, de 13 de julho, publicado no Diário da República, II Série, de 22 de

agosto, tendo entrado em funcionamento em 16 de julho de 2007; o nosso sistema de mediação laboral, foi criado através de um

Protocolo celebrado em 5 de maio de 2006 entre o Ministério da Justiça e a Confederação da Indústria Portuguesa (CIP),

Confederação do Comércio e Serviços de Portugal (CCP), Confederação do Turismo Português (CTP), Confederação dos

Agricultores de Portugal (CAP), Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses – Intersindical Nacional (CGTP - IN) e a

União Geral dos Trabalhadores (UGT); e, finalmente, o nosso sistema de mediação penal, instituído no nosso ordenamento

jurídico pela lei n.º 21/2007, de 12 de junho. Assim, poderá pensar-se, igualmente, na criação de um sistema público de mediação

tributária.

27 As regras a que deve obedecer o Fast Track Settlement constam do Revenue Procedure 2003-40, disponível em

http://www.irs.gov/pub/irs-drop/rp-03-40.pdf. Na doutrina, para mais informações sobre este programa veja-se, entre outros,

David Parsly, ‘The Internal Revenue Service and Alternative Dispute Resolution: Moving From Infancy to Legitimacy’, Cardozo

Journal of Conflict Resolution, Vol. 8 (2007), 677 a 715 (p. 691 a 695).

O Fast Track Mediation, contrariamente ao Fast Track Settlement apenas se destina a

Small Business/Self-Employed, cujos litígios surgam na fase de collection process. A partir do

momento em que é feito o pedido, o processo de mediação deverá estar concluído no prazo

de 40 dias. Em termos procedimentais, o Fast Track Mediation é muito semelhante ao Fast

Track Settlement.

No Post Appeals Mediation, os sujeitos passivos só podem a ele aceder depois de

esgotado o tradicional processo de recurso. Atualmente, a utilização do Post Appeals

Mediation não está adstrita a determinados sujeitos passivos, podendo ser utilizada, tal como

o Fast Track Settlement, pelos large Business and International, Small Business/Self-

Employed e Government Entities, não está limitada a questões de valor superior a 1 milhão,

nem a questões meramente factuais, podendo incidir, igualmente, sobre questões de direito.

A resolução do litígio deve concluir-se no prazo de entre 60 a 90 dias. De modo idêntico aos

demais programas de mediação supra referidos, também o mediador será um funcionário do

Office Appeals do Internal Revenue Service. No entanto, possibilita-se que o sujeito passivo

indique um co-mediador que não integre o Office Appeals, sendo que, neste caso, as custas

ficarão inteiramente a seu cargo28.

Em Itália, a mediazione tributaria é um instrumento recente, tendo aí sido instituído

pelo artigo 39.º, n.º 9, do decreto-legge di 6 de luglio, de 2011, que adicionou ao decreto

legislativo n.º 546/92, di 31 di dicembre o artigo 17.º Bis, intitulado «Il reclamo e la mediazione»

(itálico nosso).

De acordo com o diploma citado, o sujeito passivo que entenda recorrer

jurisdicionalmente de um ato da Agenzia, deve, nas questões de valor inferior a 20.000€,

apresentar, previamente, uma reclamação. É no âmbito dessa reclamação, que é obrigatória,

que o sujeito passivo pode, ou não, apresentar uma proposta de mediazione tributaria. Essa

proposta de mediazione tributária deve ser devidamente motivada e fundamentada, não

devendo, o sujeito passivo, limitar-se a pedir a anulação total ou parcial do ato. A reclamação,

com a proposta de mediação, é apresentada na junta da Direzione provinciale ou da Direzione

regionale de que depende o órgão que haja praticado o ato, devendo esta proceder ao seu

reencaminhamento para junto de um departamento jurídico autónomo aí sedeado. Estes

departamentos analisam a proposta apresentada e podem aceitá-la, ainda que parcialmente,

rejeitá-la, ou então, apresentar uma contraproposta de mediazione, tendo em atenção o

princípio da economicidade da ação administrativa. O acordo é celebrado mediante o

assentimento de l’Ufficio e do sujeito passivo que o devem assinar e concretiza-se com o

pagamento, pelo sujeito passivo, do montante acordado. Este procedimento de mediazone

28 As regras a que deve obedecer o Post Appeals Mediation constam, atualmente, do Revenue Procedure 2014-63,

disponível em http://www.irs.gov/irb/2014-53_IRB/ar10.html.

tributaria tem, ainda, como vantagem, para o sujeito passivo, o facto de este beneficiar de

uma redução da sanção administrativa na proporção de 60%.

Este procedimento de mediazione tributaria, assume, na verdade, algumas

peculiaridades que nos fazem rejeitar a sua classificação como uma verdadeira mediação.

Desde logo, porque não se está, neste procedimento, perante um verdadeiro mediador, na

medida em que ele se confunde com uma das partes (l’Ufficio).

3. Conclusões

I) A mediação é um meio alternativo de resolução de litígios, tal como o são a

arbitragem e a conciliação.

II) Pode definir-se a mediação como um meio alternativo de resolução de litígios no

âmbito do qual intervém um terceiro, neutro e imparcial, que tem por objetivo

aproximar e auxiliar as partes na obtenção de um acordo, podendo, para o efeito,

sugerir acordos, mas que, frustrada a mediação, não tem qualquer poder

adjudicatório sobre o processo.

III) Na medida em que o terceiro, mediador, não tem qualquer contacto com o

processo jurisdicional, a mediação distingue-se da conciliação e na medida em que

o mediador não tem qualquer poder de imposição às partes de uma decisão,

distingue-se da arbitragem.

IV) Ao contrário da mediação, a arbitragem é uma realidade que já existe no

ordenamento jurídico português.

V) São vários os obstáculos que se podem levantar à mediabilidade dos litígios em

matéria jurídico-tributária, nomeadamente o princípio da legalidade, o princípio da

igualdade e o princípio da indisponibilidade do crédito tributário.

VI) Tais obstáculos do foro principológico não constituem um impedimento, em

absoluto, à mediabilidade dos litígios em matéria tributária, desde logo porque é

possível uma interpretação daqueles princípios que não só aceita a mediação em

matéria tributária como a exige.

VII) A própria Constituição da República Portuguesa não proíbe, mas, pelo contrário,

exige a existência de meios alternativos de resolução de litígios em matéria

tributária, como a mediação. Isto por força do Direito de Participação, consagrado

no artigo 267.º, n.º 1, da CRP, e do Direito Fundamental de acesso ao Direito e

aos Tribunais, consagrado no artigo 20.º, da CRP.

VIII) A mediação tributária, ainda que com uma configuração ligeiramente diferente

daquela que pensamos para o ordenamento jurídico português (verdadeira

mediação, em nosso entendimento), particularmente da modalidade presente no

ordenamento jurídico italiano (temos algumas dúvidas de que a mediazione

tributaria configure uma mediação, tal como a conceituamos), está prevista em

alguns ordenamentos jurídicos, nomeadamente nos E.U.A e em Itália.

IX) Perante a factualidade descrita, estamos em crer que, efetivamente, a mediação é

uma realidade a pensar para o futuro da resolução de litígios em matéria tributária,

no ordenamento jurídico português.

4. Bibliografia

Barrett, Jerome T, and Joseph P Barrett, A History of Alternative Dispute Resolution: The Story

of a Political, Cultural, and Social Movement (San Francisco: Jossey-Bass, 2004)

Batista Junior, Onofre Alves, Transações Administrativas - Un Contributo Ao Estudo Do

Contrato Administrativo Como Mecanismo de Prevenção E Terminação de Litígios E

Como Alternativa À Atuação Administrativa Autoritária, No Contexto de Uma

Administração Pública Mais Democrática (São Paulo: Editora Quartier Latin do Brasil,

2007)

Castilho, Ricardo, ‘Mediação E Conciliação E a Efetividade Dos Direitos Fundamentais’, in La

Solución Extrajudicial de Conflictos (ADR) - Estudios Para La Formación En Técnicas

Negociadoras, ed. by Patricia Blanco Díez (Navarra: Aranzadi, 2011), p. 37 a 44

Cebola, Cátia Marques, La Mediación (Madrid: Marcial Pons, 2013)

Figueiras, Cláudia Sofia Melo, ‘Arbitragem Em Matéria Tributária: O Modelo Português’, in

Derecho, Filosofía Y Sociedad: Una Perspetiva Multidisciplinar, ed. by José Luis Castro

Fírvida and Maria Victoria Álvarez Buján (Santiago de Compostela: Andavira, 2015), p.

303 a 317

———, ‘Arbitragem: A Descoberta de Um Novo Paradigma de Justiça Tributária?’, in A

Arbitragem Administrativa E Tributária - Problemas E Desafios, ed. by Isabel Celeste

Monteiro da Fonseca, 2.a edição (Coimbra: Almedina, 2013), p. 81 a 102

Flor, Luís María Romero, ‘Las Actas Con Acuerdo En La Ley General Tributaria Y En El

Derecho Comparado’ (Universidad de Castilla-la Mancha, 2010)

<https://ruidera.uclm.es/xmlui/bitstream/handle/10578/1444/LAS ACTAS CON

ACUERDO EN LA LEY GENERAL TRIBUTARIA Y EN EL DERECHO

COMPARADO.pdf?sequence=1>

Gama, João Taborda da, ‘Contrato de Transacção Do Direito Administrativo E Fiscal’, in

Estudos Em Homenagem Ao Professor Doutor Inocêncio Galvão Telles - Volume V -, ed.

by António Menezes Cordeiro, Luís Menezes Leitão, and Januário da Costa Gomes

(Almedina, 2003), p. 607 a 694

Gouveia, Mariana França, Curso de Resolução Alternativa de Litígios (Coimbra: Almedina,

2014)

Lapatza, José Juan Ferreiro, ‘Terminación Convencional de Los Procedimientos Inspectores’,

in Alternativas Convencionales En El Derecho Tributario: XX Jornada Anual de Estudio

de La Fundación «A.Lancuentra» (Madrid: Marcial Pons, 2003), p. 315 a 325

Martins Filho, Luiz Dias, and Luís Inácio Lucena Adams, ‘A Transação No Código Tributario

Nacional (CTN) E as Novas Propostas Normativas de Lei Autorizadora’, in Transação E

Arbitragem No Âmbito Tributário - Homenagem Ao Jurista Carlos Mário Da Silva Velloso,

ed. by Oswaldo Othon de Pontes Saraiva Filho and Vasco Branco Guimarães (Belo

Horizonte: Editora Fórum, 2008), p. 15 a 42

Menkel-Meadow, Carrie, ‘Roots and Inspirations - A Brief History of the Foundations of Dispute

Resolution’, in The Handbook of Dispute Resolution, ed. by Michael L. Moffitt and Robert

C. Bordone (San Francisco: Jossey-Bass, 2005), p. 13 a 32

Montalvo, Rafel Fernández, Pilar Teso Gamella, and Ángel Arozamena Laso, El Arbitraje:

Ensayo de Alternativa Limitada Al Recurso Contencioso-Administrativo (Madrid: Consejo

General del Poder Judicial, 2004)

Nabais, José Casalta, Contratos Fiscais - Reflexões Acerca Da Sua Admissibilidade (Coimbra:

Coimbra Editora, 1994)

Parsly, David, ‘The Internal Revenue Service and Alternative Dispute Resolution: Moving From

Infancy to Legitimacy’, Cardozo Journal of Conflict Resolution, Vol. 8 (2007), 677 a 715

Pereira, Tânia Carvalhais, ‘Aspetos Práticos’, in Guia Da Arbitragem Tributária, ed. by Nuno

de Villa-Lobos and Mónica Brito Vieira (Coimbra: Almedina, 2013), p. 63 a 87

Rocha, Joaquim Freitas da, Lições de Procedimento E Processo Tributário, 5.a edn (Coimbra:

Coimbra Editora, 2014)

Sousa, Jorge Lopes de, ‘Algumas Notas Sobre O Regime Da Arbitragem Tributária’, in A

Arbitragem Administrativa E Tributária - Problemas E Desafios, ed. by Isabel Celeste

Monteiro da Fonseca, 2.a edn (Coimbra: Almedina, 2013), p. 227 a 242

Teso, Ángeles de Palma del, ‘Las Técnicas Convencionales En Los Procedimentos

Administrativos’, in Alternativas Convencionales En El Derecho Tributario: XX Jornada

Anual de Estudio de La Fundación «A. Lancuentra» (Madrid: Marcial Pons, 2003), p. 15

a 47

Villa-Lobos, Nuno, and Tânia Carvalhais, ‘Arbitragem Tributária: Breves Notas’, in A

Arbitragem Administrativa E Tributária - Problemas E Desafios, ed. by Isabel Celeste

Monteiro da Fonseca, 2.a edn (Coimbra: Almedina, 2013), p. 375 a 388

Vinyamata, Eduard, Aprender Mediación (Barcelona: Paidós, 2003)

Wilde, Zulema D., and Luis M. Gaibrois, O Que É a Mediação?, ed. by (Trad.) Soares Franco

(Lisboa: Agora Publicações, Lda., 2003)