a imagem como arma-tese

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    Adriana de Barros Ferreira Cunha

    A Imagem como Arma:

    O uso ideolgico das imagens de guerra

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-

    Graduao em Artes da Escola de Belas Artes da

    Universidade Federal de Minas Gerais, como

    requisito parcial obteno do ttulo de Mestre em

    Artes.

    rea de concentrao: Arte e Tecnologia daImagem

    Orientador: Prof. Dr. Luiz Nazario

    Belo Horizonte

    Escola de Belas Artes / UFMG

    2008

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    Ferreira, Adriana, 1979-

    A imagem como arma: o uso ideolgico das imagens de

    guerra / Adriana de Barros Ferreira Cunha. - 2008

    207 f : il. + 1 DVD

    Orientador: Luiz Nazario

    Dissertao (mestrado) - Universidade Federal de

    Minas Gerais, Escola de Belas Artes.

    1. Ideologia e comunicao Teses 2. Fotografia de guerra

    Teses 3. Cinema Teses I. Nazrio, Luiz, 1957-

    II. Universidade Federal de Minas Gerais. Escola de Belas

    Artes III. Ttulo.

    CDD: 770.1

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    Dedico este trabalho memria dos pioneiros no

    registro de imagens de guerra. Por arriscarem

    suas vidas em prol da transmisso da informao,

    incentivaram o desenvolvimento de novas

    tecnologias que hoje permitem que qualquer

    pessoa possa registrar um conflito em imagens e

    transmitir seu ponto de vista a outras pessoas,

    garantindo a liberdade de expresso.

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    Uma planta em meu quintal germina. Surge uma

    dvida sobre qual ser. Somente o tempo poder

    mostrar. O tempo... Ele bsico e necessrio.

    Fiquei a observ-la... Aps alguns meses, j

    apareciam botes de flores que se abriram para a

    vida. Infelizmente, as flores se foram... Mas,

    surpresa... Frutos ainda verdes despontam de

    onde j no havia flores. Agora os frutos

    amadureceram e pssaros vm com-los. Sim...

    A vida renasce e o que era uma simples semente,

    agora pssaro...

    Agradeo ao meu orientador que, muito

    pacientemente, plantou a semente...

    Agradeo aos meus pais, irmo, marido e filho,

    por cuidarem da semente at que esta virasse

    pssaro...

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    Resumo

    Estimulado pelos conflitos, o desenvolvimento tecnolgico dos meios decaptao e difuso das imagens fez com que estas se tornassem armas eficazes na

    manipulao das massas. Hoje, com um controle quase impossvel de ser exercido sobre

    as imagens produzidas, o mundo em que vivemos se transformou num mundo dominado

    pelas imagens.

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    Abstract

    Stimulated for the conflicts, the technological development of the ways of

    recording and dissemination images made efficient weapons to manipulate the society.

    Today, with an almost impossible control about the produced images, the world where

    we live was transformed into a world controled by the images.

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    Lista de Ilustraes

    Captulo 1: A Descoberta do Poder das Imagens Tcnicas

    Figura 1 A carroa laboratrio que acompanhou Roger Fenton Crimia ................. 29

    Figura 2 O dia de trabalho dele terminou ..................................................... 32

    Figura 3 Capito Brown do 4 Light Dragoons .................................... 33

    Figura 4 O Vale da Sombra da Morte .................................. 34

    Figura 5 Campo de Batalha onde o General Reynolds foi Derrotado ...................... 38

    Figura 6 O que eu preciso, John Henry? ...................................................................... 39

    Figura 7 A Colheita da Morte.................................. 40Figura 8 A Casa do Atirador de Elite ................................... 42

    Figura 9 O ltimo Sono de um Atirador de Elite.................................... 42

    Captulo 2: O Rolo de Filme: entre a Realidade e a Fico

    Figura 1 Cmara fotogrfica compacta da Kodak ........................................................ 45

    Figura 2 Cartaz da Kodak onde se l o slogan............................................................. 45

    Figura 3 Campo de prisioneiros beres ........................................................................ 47

    Figura 4 Beres em ao .............................................................................................. 48

    Figura 5 O estereoscpio .............................................................................................. 49

    Figura 6 A ltima mensagem para casa ....................................................................... 50

    Figura 7 Fuzileiros Reais indo para o front .................................................................. 50

    Figura 8 Fuzileiros Reais lutando ................................................................................. 51

    Figura 9 Muitos tanques foram perdidos ...................................................................... 53

    Figura 10 Estes homens esto usando um pulverizador ................................................ 54

    Figura 11 Trs imagens cronofotogrficas da Fazenda Faffmont ............................... 55

    Figura 12 Fotografia do afundamento do Lusitnia ...................................................... 56

    Figura 13 Fotograma da animao de McCay .............................................................. 56

    Figuras 14 e 15 Tomadas impossveis de serem captadas in loco................................ 57

    Figura 16 Uma trincheira na frente de batalha .............................................................. 60

    Figura 17 Caminho com alto-falante ........................................................................... 64

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    Figura 18 Vitria ........................................................................................................... 64

    Figura 19 Passaremos! .................................................................................................. 65

    Figura 20 Exrcito Popular ........................................................................................... 65

    Figura 21 Esquerda Republicana ................................................................................... 65

    Figura 22 Milcia Legalista ........................................................................................... 67

    Figura 23 Morte de um Soldado Legalista .................................................................... 68

    Figura 24 A pequena garota abotoou erradamente seu casaco ..................................... 69

    Figura 25 Madri Entre novembro e dezembro de 1936 ............................................. 70

    Captulo 3: Entre a Iluso e a Realidade

    Figura 1 Toda a Alemanha ouve o Fhrer com o receptor Volt .................................. 77

    Figura 2 Tomada area ................................................................................................. 79

    Figura 3 Cmara colocada em um elevador ................................................................. 79

    Figura 4 Tomada de baixo para cima [...] .................................................................... 79

    Figura 5 Uma mulher com seu filho no colo [...] ......................................................... 79

    Figura 6 Paradas coreografadas .................................................................................... 80Figura 7 A catedral de luz ............................................................................................ 80

    Figura 8 Adenoid Hynkel discursando ......................................................................... 85

    Figura 9 O sonho de dominar o mundo......................................................................... 85

    Figura 10 Msicos na Parada Militar ............................................................................ 88

    Figura 11 Msicos na Parada Militar ............................................................................ 88

    Figura 12 O cuco, com bigode, saudando ..................................................................... 88

    Figura 13 Hitler saudando ............................................................................................. 88

    Figura 14 Donald molhando o nico gro de caf na gua ........................................... 89

    Figura 15 Donald se alimentando com aroma de ovos e bacon ................................. 89

    Figura 16 Donald cortando o po com serrote .............................................................. 89

    Figura 17 A Frente de Trabalho Nazista ....................................................................... 90

    Figura 18 A Frente de Trabalho Nazista com suas ps ................................................. 90

    Figura 19 Donald coagido a trabalhar ........................................................................... 90

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    Figura 20 Donald reage coao e ameaado de morte ............................................ 90

    Figura 21 Donald nas frias controladas pelo Estado ................................................... 90

    Figura 22 Carlitos se revolta contra os opressores ........................................................ 91

    Figura 23 Donald faz uma saudao s imagens dos trs lderes .................................. 91

    Figura 24 Donald se revolta e sada a imagem de Hitler com a cauda ......................... 91

    Figura 25 Donald sada por engano a sombra da Esttua da Liberdade ....................... 91

    Figura 26 A sombra projetada na parede da Esttua da Liberdade ............................ 91

    Figura 27 As ms condies de vida do Donald nazista ............................................... 92

    Figura 28 O conforto da vida real do Donald capitalista .............................................. 92

    Figura 29 Mapa cronofotogrfico ................................................................................. 94Figura 30 Capa da Revista Veja e Leia de fevereiro de 1943 .................................... 95

    Figura 31 Prisioneiros alemes capturados pela URSS ................................................ 96

    Figura 32 Liberao de Paris, 1944 ............................................................................... 98

    Figura 33 Soldados descansando, 1944 ......................................................................... 98

    Figura 34 A morte em cores vivas ................................................................................ 98

    Figura 35 Desero em massa do exrcito alemo ....................................................... 98

    Figura 36 Montanha de corpos ...................................................................................... 99

    Figura 37 Prisioneiros assassinados s pressas ............................................................. 99

    Figura 38 Prisioneiro morto congelado na neve ............................................................ 99

    Figura 39 Soldados alemes fuzilados.......................................................................... 99

    Figura 40 Sobreviventes no alojamento em Mauthausen............................................ 100

    Figura 41 Cidados austracos removem os cadveres ............................................... 100

    Figura 42 Os homens selecionados [...] ...................................................................... 103

    Figura 43 A imagem do piloto acenando .................................................................... 103

    Figura 44 Restou apenas a silhueta do homem ........................................................... 104

    Figura 45 As estampas dos quimonos ficaram gravadas na pele................................ 104

    Figura 46 Pessoas na fila para se registrar .................................................................. 105

    Figura 47 Um policial registra os feridos .................................................................... 105

    Figura 48 O piloto condecorado com uma medalha ................................................. 106

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    Figura 49 Cinegrafistas e fotgrafos registram a chegada dos heris ......................... 106

    Figura 50 Uma das primeiras imagens fotogrficas captada ....................................... 108

    Figura 51 Imagens como esta, foram censuradas ........................................................ 108

    Figura 52 Apesar do alvo principal serem as indstrias [...] ....................................... 109

    Captulo 4: O Poder da Informao

    Figura 1 Capa da Revista Life sobre a Crise de Cuba ................................................ 113

    Figura 2 Fotografia area mostrando base de lanamento de msseis ........................ 115

    Figura 3 ltima fotografia feita por Robert Capa ...................................................... 118

    Figura 4 Capa da Revista Life .................................................................................... 120

    Figura 5 Capa da Revista Life .................................................................................... 120

    Figura 6 Uma mulher chora sobre o corpo de seu marido ......................................... 121

    Figura 7 Marines recolhem um corpo sob tiros .......................................................... 121

    Figura 8 Menina atingida por uma bomba de Napalm ............................................... 122

    Figura 9 Morte de um informante vietcongue ............................................................ 122

    Figura 10 Soldado em estado de choque............................. 122

    Figura 11 Menino chora ao ver o corpo de sua irm sendo recolhido ........................ 122

    Figura 12 Soldado do Esquadro Zippo, ateando fogo numa vila ............................ 123

    Figura 13 Prisioneiro norte-americano ........................................................................ 125

    Figura 14 Fotografia dentro do esconderijo subterrneo ............................................ 126

    Figura 15 Dentro da Fortaleza em Quang Tri ............................................................. 128

    Figura 16 Astronautas caminhando na Lua ................................................................. 134

    Figura 17 Transmisso televisiva mostrando os astronautas na Lua .......................... 134

    Figura 18 Pessoas arriscavam a vida para atravessar o muro ..................................... 135

    Figura 19 Os portes foram finalmente abertos .......................................................... 135

    Figura 20 As pessoas literalmente derrubam o muro .............................................. 136

    Figura 21 Imagens de mltiplas cmaras de captao noturna ................................... 138

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    Captulo 5: A Velocidade dos Meios de Comunicao comoArma do Terror

    Figura 1 A evacuao das aeronaves .......................................................................... 144

    Figura 2 A exploso das aeronaves ............................................................................ 144

    Figura 3 Um dos terroristas fotografado ................................................................. 145

    Figura 4 O corpo carbonizado de um dos atletas assassinados .................................. 145

    Figura 5 Imagem do primeiro avio atingindo a Torre Norte do WTC ..................... 147

    Figura 6 A coliso do avio causa uma exploso ....................................................... 147

    Figura 7 Agora em transmisso pela televiso ao vivo [...] ..................................... 148

    Figura 8 E tambm colide, explodindo a seguir ......................................................... 148

    Figura 9 A Torre Sul desaba numa chuva de poeira ................................................ 149

    Figura 10 20 minutos depois, a Torre Norte tambm desaba ...................................... 149

    Figura 11 Avio seqestrado colide no prdio do Pentgono ..................................... 150

    Figura 12 Restos do quarto avio que caiu na Pensilvnia ......................................... 150

    Figura 13 Um homem foge do desabamento ...................................................... 153

    Figura 14 A bandeira norte-americana foi hasteada ................................................... 153

    Figura 15 Um fotgrafo da polcia de Nova Iorque registra [...] ................................ 153

    Figura 16 O mesmo fotgrafo registra a manifestao da populao [...] .................. 153

    Figura 17 A derrubada da esttua de Saddam ............................................................. 156

    Figura 18 Na estrada para Bagd ................................................................................ 157

    Figura 19 A entrada em Bagd .................................................................................... 157

    Figura 20 Civis mortos ................................................................................................ 157

    Figura 21 Militares mortos .......................................................................................... 157

    Figura 22 Cena da entrevista coletiva ......................................................................... 158

    Figura 23 Soldados norte-americanos posam para fotografias ................................... 158

    Figura 24 Vago destrudo .......................................................................................... 159

    Figura 25 Corpos enfileirados ..................................................................................... 160

    Figura 26 Resgate dos feridos ..................................................................................... 160

    Figura 27 A procura por sobreviventes ....................................................................... 160Figura 28 nibus destrudo ......................................................................................... 161

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    Figura 29 Vago de trem destrudo ............................................................................. 161

    Figura 30 Prisioneiro submetido a eletro choque ........................................................ 163

    Figura 31 Prisioneiro nu, com sua roupa ntima usada como venda ........................... 163

    Figura 32 A soldado aponta para os rgos genitais dos prisioneiros ........................ 164

    Figura 33 Os prisioneiros nus deveriam deitar uns sobre os outros ............................ 164

    Figura 34 Os dedos da mo de um prisioneiro so cortados ....................................... 165

    Figura 35 O prisioneiro vendado leva pauladas .......................................................... 165

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    Sumrio

    Introduo ............................................................................................................................. 14

    Captulo 1: A Descoberta do Poder das Imagens Tcnicas ....................... 25

    A Realidade Amena das Imagens ..................................................................................... 26

    A Realidade Incmoda das Imagens ................................................................................. 35

    Captulo 2: O Rolo de Filme: entre a Realidade e a Fico ....................... 44

    Uma Nova Realidade: As Imagens em 3-D ...................................................................... 46

    A Fora da Propaganda ..................................................................................................... 51

    A Propaganda como Munio ........................................................................................... 61

    Captulo 3: Entre a Iluso e a Realidade ............................................................. 73

    A Propaganda Nazista ....................................................................................................... 75

    O Cinema Antinazista em Hollywood ............................................................................... 83

    Imagens do Front .............................................................................................................. 93

    A Fotografia da Morte ..................................................................................................... 101

    Captulo 4: O Poder da Informao ...................................................................... 111Evidncias da Guerra Psicolgica I .............................................................................. 112

    Imagens do Frontem Casa .............................................................................................. 116

    A Influncia da Televiso na Guerra Psicolgica ........................................................... 133

    Imagens do Front Ao Vivoem Casa ................................................................................ 136

    Captulo 5: A Velocidade dos Meios de Comunicao

    como Arma do Terror .................................................................................................... 142

    O Terrorismo Miditico em Propores Mundiais .......................................................... 148

    Evidncias da Guerra Psicolgica II ............................................................................ 163

    Consideraes Finais: Imagens do Mundo Mundo das Imagens ........ 166

    Referncias das Ilustraes .................................................................................... 173

    Bibliografia ......................................................................................................................... 188

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    Introduo

    Aos doze anos de idade, ao assistir a Guerra do Golfo ao vivopela televiso,

    escrevi este texto:

    A GuerraPor favor, algum me diga, me esclarea, pois no consigo entender

    porque existe a guerra, se h sofrimento tanto para os que ficam quanto paraos que vo, pois alm de correrem o iminente risco de morte, ainda sofrem com

    fome, frio, solido e falta de informao. As mulheres passam noites semdormir aflitas, procura de notcias sobre seus maridos, filhos, netos e amigos,que por um dever estpido vo guerrear.

    Por que isso? Apenas por causa de idias loucas de irresponsveis,surgem estas guerras. Ser que estes idealistas no pensam nas crianas quenem chegam a conhecer o pai e vo saber anos depois, que este morreu numaguerra, tendo o peito costurado por tiros de metralhadora? Nem nas moas,que esperam por seus namorados e tm que receber suas cartas de volta, seusrestos mortais embalados em sacos plsticos?

    H uma arma maior e mais poderosa que qualquer arma de fogo jexistente, que acaba com todas as guerras: a diplomacia.

    As imagens de guerra, mesmo um tanto distantes e asspticas, instigaram o olhar

    de uma criana. As questes acerca do comportamento humano nos momentos de

    conflito me chamaram a ateno e, desde ento, venho procurando entender as razes da

    guerra, como ela registrada, representada e recebida pela sociedade.

    Em minha vida acadmica, interessei-me pela fotografia, e observando o

    fenmeno da banalizao da manipulao fsica da imagem, esbarrei na questo

    ideolgica dessa manipulao, que estimulou o desenvolvimento deste trabalho.

    Na realizao deste, foi levado em considerao o amplo universo imagtico em

    que a sociedade ocidental est inserida desde a inveno da fotografia haproximadamente 150 anos. Para tanto, foi considerada imagem toda e qualquer

    informao visual no-textual, obtida especialmente atravs de tcnicas fotogrficas e

    cinematogrficas. As ilustraes e desenhos so apresentados em situaes especficas,

    quando seu uso se aplica propaganda. Isso porque este trabalho permeia a discusso

    acerca da veracidade das imagens gravadas pela luz e o efeito que essa pretensa

    veracidade gera sobre a sociedade.

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    No incio do sculo XIX, uma grande inveno mudou o rumo das artes,

    especialmente da pintura: a fotografia. Com um registro mais verdadeiro e barato, as

    pessoas que no tinham acesso a um pintor retratista para eternizar sua imagem viram

    na fotografia essa possibilidade. E o que aconteceu foi a popularizao da fotografia deretrato, enquanto as artes plsticas passaram por uma revoluo conceitual.

    A crena na veracidade da imagem, assim como sua manipulao, no so

    novidades. Numa anlise mais profunda, pode-se afirmar que desde que se usou a

    pintura para retratar isso acontece. Numa pintura, a possibilidade de manipulao

    evidente: um pintor sempre imprime sua marca, seu estilo, em seus trabalhos e,

    conseqentemente, filtra aquilo que no interessante nem para si, nem para seu cliente.

    J na fotografia a manipulao de certa forma velada: as pessoas querem ter sua

    imagem eternizada, porm, a querem da melhor forma, mesmo que essa no

    corresponda totalmente realidade: para isso, os fotgrafos usavam (e muitos ainda

    utilizam) um verdadeiro arsenal de roupas, acessrios e maquiagem para construir, junto

    ao cliente, a figura que este desejava eternizar. Alm desses recursos pr-fotogrficos,

    ainda eram executados retoques durante o processamento da imagem, com a

    interferncia sobre o negativo, seja riscando-o ou pintando-o; ou, aps o processamento,

    adicionando cor aos lbios, pele e olhos; o que hoje se faz digitalmente atravs desoftwares especficos instalados no computador. Em Diante da Dor dos Outros, Susan

    Sontag enfatiza:

    Mas a imagem fotogrfica, na medida em que constitui um vestgio eno uma construo montada com vestgios fotogrficos dispersos, no podeser simplesmente um diapositivo de algo que no aconteceu. sempre aimagem que algum escolheu; fotografar enquadrar, e enquadrar excluir.

    Alm disso, modificar fotos precede de muito tempo a era da fotografia digital e

    das manipulaes do programa Photoshop: para os fotgrafos, sempre foipossvel adulterar uma foto.Uma pintura ou um desenho so considerados uma fraude quando se

    revela no terem sido feitos pelo artista a quem foram atribudos. Uma foto ou um documento filmado, exibido na tev ou na internet considerada uma

    fraude quando se revela que engana o espectador quanto cena que se properetratar. [...]

    No se espera que uma foto evoque, mas sim que mostre. Por isso asfotos, ao contrrio das imagens feitas mo, podem servir como provas. Masprovas de qu? A insistente suspeita de que a foto de Robert Capa intituladaMorte de um Soldado Legalista talvez no mostre o que alega (uma hiptese que a foto registra um treinamento, perto da linha de frente) continua a

    assediar as discusses sobre a fotografia de guerra. Todos so literalistasquando se trata de fotos. [...]

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    Com o tempo, muitas fotos encenadas se convertem em um testemunhohistrico, ainda que de um tipo impuro como a maior parte dos testemunhoshistricos1.

    As imagens estticas ou em movimento, sempre estiveram sujeitas

    manipulao fsico/qumica, alm da ideolgica. Por isso, foram escolhidos momentos

    de guerra, pois so momentos histricos largamente estudados, tornando claras as

    intervenes ideolgicas sobre as imagens produzidas. Foram abordadas algumas

    guerras no tradicionais, como a Guerra Fria e a atual Guerra ao Terror, por serem

    intensamente travadas atravs das imagens. J as diversas revoltas e guerrilhas do

    sculo XX no puderam ser contempladas neste trabalho, pois o tornariam amplo

    demais, ainda que alguns destes eventos tenham produzido imagens memorveis, como

    a imagem de Che Guevara morto na Revoluo Cubana; a do estudante chins

    enfrentando uma fileira de tanques na Praa da Paz Celestial; ou as fotografias

    manipuladas de Stalin, das quais eram subtrados os lderes cados em desgraa durante

    a Revoluo Russa.

    Particularmente, as imagens com um sentido esttico menos apurado transmitem

    a sensao de maior segurana quanto sua veracidade, o que nem sempre pode ser

    verificado, conforme salienta Susan Sontag:

    Ao voarem baixo, em termos artsticos, essas fotos so julgadas menosmanipuladoras hoje, todas as imagens de sofrimento amplamente divulgadasesto sob essa suspeita e menos aptas a suscitar compaixo ou identificaoenganosas2.

    Quando a fotografia foi inventada, sua capacidade de gravar e exibir uma

    imagem mais prxima daquilo que se v foi impressionante. At ento, todos os

    registros imagticos eram feitos atravs da pintura. A fotografia trouxe a iluso de que

    nada poderia interferir entre a cmara e o objeto fotografado, desaparecida a figura

    intermediria do pintor: o fotgrafo era visto apenas como um operador do

    equipamento. Por isso, as imagens fotogrficas e, por sua vez, as cinematogrficas,

    passaram a ser sinnimo de veracidade. Esse sentimento vem se modificando em

    relao fotografia h cerca de duas dcadas, desde a inveno da fotografia digital e da

    popularizao da manipulao digital da imagem.

    1In: SONTAG, Susan , 2003, p. 42, 50.2 In:Ibidem. p. 27.

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    A fotografia pode no ser confivel como constatao de uma verdadeou mesmo pode no conter um indicativo seguro da ideologia de seu autor, masser certamente um resultado decorrente de seu relacionamento com o mundo sua volta e, portanto, passvel de se transformar em testemunho importante,

    talvez mesmo denunciador das angstias e aspiraes de seu tempo3.

    Qualquer meio de comunicao, ao tentar fazer um simples registro daquilo que

    ocorre sua volta, esbarra na impossibilidade de iseno, pois no h meios de se evitar

    qualquer manipulao de contedo, conforme salienta Boris Kossoy referindo-se

    fotografia, observao aplicvel a qualquer meio de comunicao que se utilize de

    imagens:

    A fotografia no est enclausurada condio de registro iconogrficodos cenrios, personagens e fatos das mais diversas naturezas que configuramos infinitos assuntos a circundar os fotgrafos, onde quer que se movimentem.

    A fotografia, por ser um meio de expresso individual, sempre se prestou aincurses puramente estticas; a imaginao criadora , pois inerente a essa

    forma de expresso; no pode ser entendida apenas como registro da realidadedita factual. A deformao intencional dos assuntos atravs das possibilidadesde efeitos pticos e qumicos, assim como a abstrao, montagem e alteraovisual da ordem natural das coisas, a criao enfim de novas realidades tmsido exploradas constantemente pelos fotgrafos4.

    Essa possibilidade de criao de novas realidades que a comunicao mediada

    por imagens oferece, foi utilizada largamente como material de propaganda, conforme

    se observa desde a primeira guerra registrada fotograficamente, o que poderia gerar uma

    falsa informao iconogrfica do ponto de vista histrico. Para isso foram observadas

    duas categorias de fontes fotogrficas, conforme o mtodo sugerido por Boris Kossoy

    em seu livro Fotografia e Histria:

    As fotografias tomadas pelo autor por puro prazer documentalou esttico, por sua vontade prpria, desvinculada, em

    princpio, de alguma aplicao imediata; As fotografias encomendadas aos profissionais do ofcio por

    terceiros: os clientes/contratantes.Qualquer que seja o caso pode-se comprovar a fidedignidade do

    contedo, pelo menos enquanto reproduo icnica da realidade, atravs dacomparao com outras fotografias que representam o mesmo assunto,tomadas pelo prprio fotgrafo ou por outros fotgrafos, aproximadamente namesma poca.

    certo que a fidedignidade do contedo de uma fonte histrica estdiretamente relacionada com seu autor, e nesse sentido mister que se tenham

    3In: HUMBERTO, Lus, out. 1981, p.24.4In: KOSSOY, Boris, 2001, p. 49.

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    detalhes de sua vida, de seu comportamento individual e social, de sua situaoeconmica, bem como de sua obra, conjunto de informaes cuja determinaoem profundidade no to simples de se alcanar pelo pouco que se sabeacerca da vida dos pioneiros fotgrafos, autores das imagens que devemosexaminar5.

    O presente trabalho dar maior ateno biografia dos vrios fotgrafos e

    cineastas que tiveram suas imagens analisadas como fontes histricas. E a evoluo

    tcnica dos meios de captao e transmisso de imagens ser a base da discusso acerca

    dos usos ideolgicos das imagens de guerra. Imagens estas que podem ser destacadas

    em trs vertentes: as de uso em combate, as de registro do combate (foto-jornalsticas) e

    as de propaganda.

    As imagens foram utilizadas inicialmente em combate como instrumentos deespionagem. Mapeando o territrio inimigo atravs da cronofotografia6 e, mais tarde,

    atravs dos satlites, tornou-se possvel planejar melhor o avano das tropas e atingir

    mais facilmente os pontos estratgicos. O avano tecnolgico no campo das imagens

    tornou-se uma necessidade premente, e as descobertas nesse campo vm sendo

    aproveitadas tambm para outras finalidades, como entretenimento, segurana e

    urbanismo. A fotografia feita por satlite um exemplo dessa utilizao: possvel

    fazer um mapeamento da ocupao geogrfica do espao e verificar a distribuio

    social, a fim de possibilitar melhorias na infra-estrutura urbana. Outro exemplo foi o

    desenvolvimento da captao da imagem noturna, que tornou possvel a existncia de

    cmaras de vigilncia utilizadas em empresas e residncias, capazes de registrar a

    imagem mesmo com total ausncia de luz.

    O avano tcnico dos meios de captao influenciou fortemente os modos de

    registro e o teor das imagens obtidas. Equipamentos menores e de manuseio mais

    simples possibilitaram imagens mais prximas da frente de batalha. Se na Guerra daCrimia, Roger Fenton, considerado o primeiro fotgrafo de guerra, usando uma cmara

    de grande formato com chapas de vidro midas que deviam ser reveladas logo aps a

    exposio, o que era feito em uma carroa, obteve imagens de guerra buclicas; dcadas

    mais tarde, na Guerra Civil Espanhola, Robert Capa, com um equipamento porttil e

    5KOSSOY, Boris, 2001, p. 104-105.6Mapeamento fotogrfico feito atravs de vrias imagens areas que so justapostas a fim de formar ummapa.

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    filmes que no precisavam ser revelados imediatamente, pde aproximar-se da frente de

    batalha e captar imagens de guerra consideradas mais realistas pela sociedade.

    Porm, Kossoy tambm salienta que mesmo as imagens consideradas realistas

    esto sujeitas s manipulaes fsicas, qumicas, estticas e ideolgicas:

    Apesar do amplo potencial de informao contido na imagem, ela nosubstitui a realidade tal como se deu no passado. Ela apenas traz informaesvisuais de um fragmento do real, selecionado e organizado esttica e ideo-logicamente7.

    As imagens de registro do combate sofrem, sobretudo, a influncia ideolgica,

    mesmo antes de serem exibidas ao pblico; desde a ideologia de quem encomendou as

    imagens, passando pela do fotgrafo ou cinegrafista, at a do editor responsvel pela

    publicao, ainda segundo Boris Kossoy:

    A fotografia indiscutivelmente um meio de conhecimento do passado,mas no rene em seu contedo o conhecimento definitivo dele. A imagem

    fotogrfica pode e deve ser utilizada como fonte histrica. Deve-se, entretanto,ter em mente que o assunto registrado mostra apenas um fragmento darealidade, um e s um enfoque da realidade passada: um aspecto determinado.

    No demais enfatizar que este contedo o resultado final de uma seleo depossibilidades de ver, optar e fixar um certo aspecto da realidade primeira,

    cuja deciso cabe exclusivamente ao fotgrafo, quer esteja ele registrando omundo para si mesmo, quer a servio de seu contratante8.

    A interveno ideolgica assemelha-se censura, s que na maioria das vezes

    esta feita antes da produo da imagem, enquanto a censura normalmente intervm

    aps o registro. Essa interveno pode ser desde uma auto-censura exercida pelo

    fotgrafo ou cinegrafista na escolha do tema e ngulo a ser fotografado, at uma

    recomendao feita pelo contratante. A censura por sua vez, imposta na maioria das

    vezes por governos ou autoridades de modo a vetar a distribuio de determinadasimagens e informaes, impedindo o conhecimento de certos temas pelo pblico.

    Nesse momento pode-se falar de manipulao ideolgica da sociedade; e

    nesse momento tambm que as imagens comparam-se a armas, pois, ao distribuir certos

    tipos de imagens e no outros se tende a criar uma idia central movendo a sociedade,

    que passa a ser alimentada por determinado tipo de informao. Inconsciente do quadro

    total, a populao acredita naquilo que v, manipulada em suas percepes. Uma

    7In: KOSSOY, Boris, 2001, p. 114.8In:Ibidem. p. 107.

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    imagem pode estimular as pessoas a participarem e investirem num conflito, ou mesmo

    gerar medo e revolta. Dessa forma torna-se impossvel tratar da manipulao ideolgica

    e psicolgica sem considerar os avanos tecnolgicos no campo das imagens, sempre

    evidenciados nos perodos de guerra.

    A propaganda de guerra, muitas vezes responsvel por incitar a populao ao

    combate, tem uma linguagem prpria, que se utiliza principalmente de trucagens visuais

    e de recursos tcnicos inovadores em que imagens de registro do combate muitas vezes

    se mesclam com imagens produzidas em estdio, formando falsas imagens de combate

    responsveis por transmitir a mensagem desejada. Ou seja, a imagem de propaganda j

    vem desde sua concepo carregada de material ideolgico a ser transmitido, o que a

    torna uma das mais poderosas armas de guerra.

    O desenvolvimento dos meios de captao e transmisso de imagens alterou o

    comportamento social frente s imagens. Houve uma enorme evoluo desde as

    primeiras imagens de guerra: se durante a Guerra da Crimia, temos situaes posadas

    devido s limitaes tcnicas, tematizando e mostrando apenas cenas pitorescas para

    acalmar a populao inglesa acerca das boas condies de vida dos soldados publicadas

    em jornal somente um ms aps terem sido captadas. Nos dias de hoje temos ataques

    terroristas televisionados em rede mundial e ao vivo; ou ainda, homens-bomba

    divulgando suas misses de martrio em vdeos domsticos de alcance local e

    planetariamente pela Internet com as imagens servindo como armas suplementares de

    um terror globalizado. Essas imagens que acompanham a humanidade h pouco mais de

    um sculo criaram um inconsciente coletivo quanto aos horrores que se espera ver,

    fazendo com que [...] a imagem ultrafamiliar, ultracelebrada de agonia, de runa se

    constitua um elemento inevitvel do nosso conhecimento da guerra mediado pela

    cmera9.

    As imagens, tanto estticas quanto em movimento, ganharam especial ateno

    dos governos ao serem utilizadas para o registro das batalhas e como meio de

    espionagem do inimigo. Na Primeira Guerra Mundial, pela primeira vez os avies foram

    utilizados com finalidades militares. Foi tambm o incio do registro areo, com tropas

    treinadas especialmente para isso. Esse registro servia no apenas para espionagem das

    tropas inimigas, mas tambm para o ensino de manobras areas aos novos pilotos. As

    9In: SONTAG, Susan, 2003, p. 24.

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    cmaras fotogrficas e cinematogrficas ainda tinham grandes formatos, o que

    dificultava a aproximao do fotgrafo ou cinegrafista linha de frente da batalha.

    Nessa poca, a propaganda cinematogrfica foi largamente utilizada, orientando a

    opinio pblica contra os pases inimigos, mobilizando a populao, contribuindo para oxito da Trplice Entente.

    Na Segunda Guerra Mundial, com a percepo da importncia das imagens

    cinematogrficas como armas de propaganda, estas foram utilizadas desde o incio at

    os ltimos minutos do conflito. Se todos os pases envolvidos utilizaram o cinema como

    arma de propaganda, foi a Alemanha quem o fez de modo mais sistemtico. Hitler no

    teria obtido o apoio popular e nem teria mobilizado com tanta eficcia o povo alemo

    para a guerra e a execuo do Holocausto sem a monopolizao dos meios de

    comunicao10.

    Aps a inveno da televiso,em 1924, o primeiro grande conflito armado teve

    suas imagens largamente difundidas atravs desse meio, gerando primeiramente uma

    repulsa pelas imagens, para logo em seguida banalizar a violncia, como observou

    Susan Sontag emDiante da Dor dos Outros:

    A guerra que os Estados Unidos travaram no Vietn, a primeira a sertestemunhada dia-a-dia pelas cmeras de tev, apresentou populao civilamericana a nova teleintimidade com a morte e a destruio. Desde ento,batalhas e massacres filmados no momento em que se desenrolam tornaram-seum ingrediente rotineiro do fluxo incessante de entretenimento televisivodomstico.11

    Essa banalizao da violncia foi marcante quando a Guerra do Golfo,

    televisionada ao vivo12 de Bagd em horrio nobre, era acompanhada por famlias

    inteiras, que podiam jantar assistindo ao bombardeamento do Iraque. Para que isso

    ocorresse, desenvolveram-se vrias tecnologias, especialmente a de gravao noturna devdeo. As armas tambm passaram a usar a tecnologia de captao de imagens para

    atingir o inimigo com miras a laser e msseis teleguiados. A proibio de mostrar

    imagens de mortos e feridos e a propaganda de que esta era uma guerra com

    10Cf. NAZARIO, Luiz, 1994.11In: SONTAG, Susan, 2003, p. 21/22.12 A transmisso tinha um atraso na relao imagem/som que eram transmitidos em velocidades

    diferentes, as exploses eram vistas e alguns segundos aps eram ouvidas. Por isso, algumas vezes,mesmo com a alcunha de transmisso ao vivo, as imagens eram gravadas e sincronizadas com o udio,para ento serem exibidas. In: MAXIMILIANO, Adriana, p. 23-43, jan. 2006.

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    bombardeios de preciso cirrgica, ferindo o mnimo de civis (que no eram to

    precisos assim, salvo se comparados aos bombardeios da Segunda Guerra, que

    destruam quarteires, vilas ou cidades inteiras em torno do verdadeiro alvo), tornaram

    tolerveis as novas cenas de destruio transmitidas diariamente ao vivo pela TVmundial.

    O extremo dessa situao manifestou-se em 11 de setembro de 2001, quando um

    atentado terrorista foi transmitido via televiso e internet simultaneamente, em tempo

    real13, causando a paralisao de vrias atividades comerciais ao redor do mundo e

    transmitindo, como nunca antes ocorrera, a sensao de terror ante um iminente conflito

    mundial. As emissoras de rdio, televiso e internet mobilizaram-se to rapidamente

    que foi impossvel ao governo norte-americano tomar qualquer atitude de censura nas

    transmisses de dados e imagens, que chegaram quase que instantaneamente a uma

    grande parcela da populao mundial. Outro atentado terrorista, o de 11 de maro de

    2004, em estaes de metr em Madri, foi registrado tanto pelas cmaras de segurana

    quanto pelos aparelhos de telefonia celular de passageiros que estavam nos vages e nas

    plataformas das estaes atingidas. Em segundos, em vrias partes do mundo j se sabia

    o que havia acontecido e, pelo menos parcialmente, como havia acontecido. Familiares

    congestionaram as linhas de telefonia e internet em busca de informaes.

    Atualmente, as imagens tm sido cada vez mais usadas com o objetivo de

    humilhar e coagir prisioneiros de guerra e, conseqentemente, as sociedades envolvidas

    no conflito. A tortura, antes uma prtica secreta, oculta, denegada, , cada vez mais,

    acompanhada de encenaes de carter psicolgico, num fenmeno caracterstico de

    nossas sociedades do espetculo. Exemplos disso so os vdeos dos homens-bomba

    palestinos, gravados antes de suas misses de martrio, sucesso de aluguel e vendas

    nas locadoras de Gaza e Cisjordnia; as imagens de prisioneiros ocidentais

    seqestrados, sofrendo no cativeiro ou sendo decapitados no Iraque, gravadas pelos

    prprios terroristas e enviadas s emissoras de televiso a cabo; ou ainda, as imagens de

    iraquianos suspeitos de terrorismo sofrendo humilhaes na priso de Abu Ghraib,

    fotografados por soldados norte-americanos.

    13Usei a terminologia tempo realpara a transmisso ao vivo, simultnea aos acontecimentos, em que atransmisso televisiva tinha um atraso considerado nulo e a transmisso via internet tinha um atraso quevariava conforme a conexo e servidor do espectador internauta.

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    A globalizao dos meios de comunicao foi um grande avano tecnolgico,

    mas tambm tornou possvel um terror a nvel global, que, por sua vez, levou a uma

    guerra unificada contra o terror. Os terroristas tm se utilizado cada vez mais dos meios

    de comunicao, seja para divulgar os ataques, seja para assumi-los. A manipulaopsicolgica tornou-se mais eficaz ao atingir um nmero cada vez maior de pessoas,

    fazendo com que ataques terroristas isolados se tornassem problemas mundiais.

    Um mundo de imagens. nesse mundo que vivemos hoje, segundo o prof. Dr.

    Ernesto Ruiz, (...) a imagem deixou de ser uma mera ilustrao (como nos livros) para

    converter-se em mensagem14. Dessa forma, a construo poltica, econmica e social

    tm-se dado com as bases fixas na estrutura formada pelas imagens que nos chegam

    quase que no mesmo instante em que so geradas. O desenvolvimento dos meios decaptao e a velocidade cada vez maior dos meios de transmisso nos inserem num

    mundo de virtualidades fabricadas pelas imagens que captamos, transmitimos e

    assimilamos.

    As maneiras de utilizao e de percepo da imagem pela sociedade mudaram

    muito, pois hoje, qualquer pessoa, mesmo aquela que no possui um conhecimento

    tcnico, pode registrar e transmitir uma imagem conforme a percebe, imediatamente,

    para qualquer outra pessoa, dificultando o controle do Estado e a conseqentemanipulao ideolgica que manteria uma unidade de opinies. Uma das causas dessa

    modificao de comportamento frente s imagens a evoluo dos equipamentos de

    captao, que agiu diretamente sobre o tipo de imagens possveis de serem registradas;

    outra causa foi a evoluo concomitante dos equipamentos de transmisso de imagens,

    que alteraram o modo, a qualidade e a velocidade de recepo dessas pela populao.

    Como o tipo de imagem e a maneira como foi difundida interfere diretamente

    sobre sua ao diante da sociedade e ter maior ou menor eficcia como armaideolgica de guerra, alguns termos adotados assumiram definies adequadas a esse

    trabalho como a seguir: por captao de imagem entende-se desde a encomenda das

    imagens a um fotgrafo ou cinegrafista, at a gravao pela luz e seu processamento

    final; e por transmisso se entende atravs de qual meio de comunicao determinado

    tipo de imagem chegou ao grande pblico. Alencastro e Silva, pesquisador brasileiro

    14In: REUNIO DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE PESQUISA HISTRICA (SBPH), XVII, 1997, p.66.

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    sobre a histria das telecomunicaes, afirma em seu livro Telecomunicaes: histrias

    para a histria, que:

    As telecomunicaes esto a servio do indivduo, como pessoa oucomo agente econmico, pois somente elas fornecem meios para deciso e ao distncia. Elas constituem o sistema nervoso da coletividade nacional15.

    Este trabalho leva em considerao os aspectos tcnicos que interferem na

    maneira de captao e transmisso da imagem sociedade; e os aspectos culturais de

    cada perodo, analisando a veracidade da imagem como fator scio-cultural e poltico

    em cada situao.

    15In: SILVA, J. A. Alencastro e, 1990, p. 207.

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    Captulo 1

    A Descoberta do Poder

    das Imagens Tcnicas

    Os conflitos armados ocorridos a partir da segunda metade do sculo XIX foram

    marcados pela transio entre as guerras antigas, com armamento pouco eficaz, e as

    guerras modernas, com armamento cada vez mais preciso e mortal, comunicaes por

    telgrafo, estradas de ferro para transporte de suprimentos, enfermagem e cozinha

    eficientes, alm da cobertura de fotgrafos e reprteres de jornais. Neste contexto,

    destacaram-se duas guerras em diferentes continentes, a da Crimia (1853-1856) na

    Europa, e a de Secesso (1861-1865) na Amrica do Norte. Como observou Susan

    Sontag,

    Nas primeiras guerras importantes registradas por fotgrafos, aGuerra da Crimia e a Guerra Civil Americana, bem como em todas as guerrasat a Primeira Guerra Mundial, o combate propriamente dito esteve fora doalcance das cmeras. As fotos de guerra publicadas entre 1914 e 1918, quase

    todas annimas, eram, em geral quando de fato transmitiam algo do terror eda devastao , de estilo pico e, freqentemente, retratos das conseqncias:os cadveres espalhados ou a paisagem lunar resultante de uma guerra detrincheiras; as vilas francesas arrasadas que a guerra encontrara em seucaminho1.

    Mesmo assim, estas imagens surtiram efeitos psicolgicos nem sempre

    desejados sobre a sociedade da poca.

    1In: SONTAG, Susan , 2003, p. 21/22.

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    A Realidade Amena das Imagens

    Entre 1853 e 1856 houve a invaso Pennsula da Crimia2 pelos exrcitos

    aliados da Gr-Bretanha, Imprio Francs, Imprio Otomano3e Sardenha4, somando um

    contingente total de cerca de 57 mil homens a maior fora expedicionria que

    atravessara os mares at ento. O objetivo da expedio era aniquilar o poder russo no

    Mar Negro. Para isto, era necessrio tomar a importante base naval de Sebastopol, na

    pennsula da Crimia. Neste momento, a Guerra Russo-Turca, que por vrios meses

    arrastou-se pelo vale do Danbio, entrava em uma nova fase. A causa desta guerra foi a

    disputa entre os Imprios Otomano, Francs e Russo pelo controle dos lugares santos

    em Jerusalm. Porm, alm deste objetivo declarado, rivalidades polticas, comerciais e

    estratgicas envolviam estas naes. A presena Anglo-Francesa no mar Negro e a

    declarao de guerra vinda do Imprio Otomano deram ao Imprio Russo razes para

    iniciar a guerra.Na luta, os exrcitos aliados expulsaram as foras russas do territrio

    otomano e perseguiram-nas at a pennsula da Crimia, onde ocorreu a maior batalha.

    Em 1856 foi assinado um Tratado de Paz, conhecido como Tratado de Paris de 1856,

    que estabeleceu que o mar Negro ficasse aberto aos navios mercantes de todas as

    naes, mas fechado para sempre aos navios de guerra.

    Nesta poca, uma parcela considervel da populao era analfabeta, e por isto se

    tornava cada vez maior a necessidade de um tipo de informao visual, utilizada

    especialmente para a propaganda poltica e para a publicidade comercial. A difuso da

    imagem em larga escala representava a passagem de um mercado restrito a um mercado

    de massa.

    A esta necessidade, a fotografia respondeu com o desenvolvimento do processo

    do coldio mido5, divulgado por Frederick Scott Archer em 1851. O coldio mido eracomposto por nitrato de celulose dissolvido em lcool e ter. A mistura era ento

    aplicada sobre uma chapa de vidro, e por sua vez, colocada dentro da cmara

    fotogrfica. Este procedimento deveria ser feito rapidamente, antes que a mistura

    secasse, pois ao expor fotograficamente a chapa, as reas expostas luz secavam mais

    2A Pennsula da Crimia nesta poca era parte do territrio do Imprio Russo, atualmente faz parte doterritrio Ucraniano.3Atual Turquia.4Atual Itlia.5In: Fotografia: Manual completo de arte e tcnica, 1981.

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    rapidamente que as no expostas, e medida que secavam, endureciam e perdiam a

    sensibilidade luz. Como a mistura evaporava e secava muito rapidamente, o fotgrafo

    deveria estar sempre prximo a uma cmara escura (um laboratrio), onde pudesse

    preparar as chapas, coloc-las dentro da cmara fotogrfica e revel-las aps aexposio luz, tudo em menos de 15 minutos. O tempo dessa exposio oscilava entre

    20 segundos e um minuto para as paisagens e os motivos arquitetnicos, e entre 2 e 20

    segundos para os retratos pequenos6. Com um negativo de vidro, esta tcnica permitia

    obter uma cpia de qualidade, mais ntida do que outra tcnica usada na mesma poca, a

    calotipia.

    Inventada por William Henry Fox Talbot, a calotipia7 era um procedimento

    fotogrfico que consistia em utilizar o papel como negativo, e atravs desse podia-sereproduzir um nmero ilimitado de cpias. Porm, as cpias eram pouco ntidas, pois

    durante a confeco do positivo a textura do papel-negativo tambm aparecia. Isto

    depreciava a tcnica, visto que o daguerretipo, tcnica anterior, mas ainda em uso,

    oferecia uma grande nitidez, ainda que no permitisse fazer cpias.

    O termo daguerretipo8 deriva do nome do inventor da tcnica, Louis J.

    Daguerre, francs que a descreveu pela primeira vez em 1839. Uma chapa de cobre

    polida como um espelho recebia uma fina camada de prata atravs de uma reaoqumica aos vapores de iodo. A exposio luz variava entre trs e trinta minutos. A

    chapa era ento, revelada com vapores de mercrio. Esta tcnica tinha alguns

    inconvenientes: o longo tempo de exposio, a toxidade do processo, o alto custo pelo

    uso de metais nobres (mais tarde o ouro passou a ser utilizado no processo); e por se

    tratar de uma superfcie especular, no era possvel ver a imagem positiva de qualquer

    ponto de vista. Porm, ela se popularizou rapidamente; e apenas a partir de 1851 passou

    a ser substituda gradualmente pelo coldio mido, pois as imagens obtidas atravs

    deste processo eram to precisas e detalhadas quanto s imagens do daguerretipo: alm

    disto, com o uso do negativo de vidro era possvel fazer-se quantas cpias fossem

    desejadas.

    6In: FABRIS, Annateresa, 1991, p. 17.7In: Fotografia: Manual completo de arte e tcnica, 1981.8In:Ibidem.

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    Se a Guerra da Crimia memorvel pelo alto custo do envio das tropas

    Crimia, William Howard Russell, correspondente do The Times9, considerou ter sido a

    mais ftil das guerras travadas at ento, e a mais mal administrada. No inverno de

    1854/1855, as notcias da guerra, que eram despachadas da frente de batalha em cavalose navios a vapor e chegavam a Londres com at uma semana de atraso, no eram nada

    animadoras, e algumas at desesperadoras. Russel, principal correspondente desta

    guerra, revelou as terrveis condies em que as tropas britnicas se encontravam e fez

    com que a sociedade cobrasse do governo mudanas na administrao da guerra e

    providncias quanto ao conforto dos soldados. Numa de suas cartas do campo de

    batalha de Sebastopol, ele escreveu:

    Agora est chovendo canivetes o cu est preto como tinta o ventoest uivando sobre as barracas cambaleantes as trincheiras transformaram-se em diques nas barracas a gua s vezes o cho. No h nenhum denossos homens aquecido ou agasalhado eles ficam fora por doze horasseguidas nas trincheiras esto sucumbindo misria de uma guerra noinverno e nem uma alma parece cuidar de seu conforto, e menos ainda desuas vidas. Estas so duras verdades, mas a populao britnica tem que ouvi-las. Ela tem que saber que os pobres mendigos que perambulam pelas ruas de

    Londres na chuva, tm uma vida de prncipe, se comparada com a dos soldadosbritnicos que esto lutando to longe por seu pas.

    (1 de Dezembro) A morte, est convivendo lado a lado com a vida, e

    criou um espetculo terrvel, alm da imaginao. Os acessrios mais comunsa um hospital esto em falta; e no h a ateno merecida decncia e higiene o ambiente horrvel o ar ftido ajuda a pesar a atmosfera, exceto

    pelos furos nas paredes e teto por onde d para respirar. E eu posso afirmarque estes homens morrero sem que algo seja feito para salv-los10.

    O governo britnico tentou conter estas notcias, divulgando que eram

    mentirosas e caluniando o correspondente. Porm, no havia como dizer que os

    nmeros estavam mentindo: do nmero total de baixas, 88% morreram por causa das

    agruras do inverno ou em decorrncia de doenas como o clera, por conta das pssimas

    condies de higiene; enquanto apenas 12% sucumbiram por ferimentos causados nas

    batalhas11. Porm, havia um trunfo at ento pouco explorado que foi utilizado pela

    coroa britnica para desmentir com eficcia as declaraes de Russel: a fotografia. As

    imagens produzidas pelo fotgrafo oficial da Coroa, mais que documentar o conflito,

    9 Jornal ingls, de ampla circulao nacional, no mais editado. Hoje, os de maior circulao na

    Inglaterra so o The Guardian, oDaily Mirrore o The Sun.10Apud: GERNSHEIM, Alison; GERNSHEIM, Helmut, 1954, p. 12 /13.11In: GERNSHEIM, Alison; GERNSHEIM, Helmut.Loc. Cit.

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    serviram para acalmar a opinio pblica britnica quanto ao estado de sade e condies

    de vida dos soldados.

    No registro da Guerra da Crimia, o tempo de exposio variava entre 10 e 15

    segundos, mesmo nos retratos12. Mas a maneira pela qual o fotgrafo enviado pelacoroa britnica, Roger Fenton dispunha as pessoas em cena, dava a impresso de que as

    imagens haviam sido capturadas em uma fotografia instantnea. Como o coldio mido

    exigia um rpido processamento desde a preparao da chapa at sua revelao aps

    exposta luz, o trabalho fotogrfico sofria, alm das limitaes ideolgicas, limitaes

    tcnicas impostas pelas pesadas e delicadas chapas de vidro; pela cmara com trip, que

    no permitia a livre movimentao do fotgrafo; e pela proximidade necessria da

    carroa13

    laboratrio, que se tornava um alvo em potencial.

    Figura 1 -A carroa laboratrio que acompanhou Roger Fenton Crimia.Fonte: GERNSHEIM, Alison; GERNSHEIM, Helmut, 1954, prancha 14.

    12In: GERNSHEIM, Helmut; GERNSHEIM, Alison, c1966, p. 139-140.13A carroa usada como laboratrio era por dentro toda pintada de preto e completamente vedada luz, epor fora, pintada de branco para diminuir o calor excessivo, o que a tornava vulnervel, pois erafacilmente vista a grande distncia. In: GERNSHEIM, Alison; GERNSHEIM, Helmut, 1954, p. 9.

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    Roger Fenton considerado o primeiro fotgrafo de guerra. Porm esta no

    uma afirmao verdadeira, visto que cerca de dois anos antes dele chegar Crimia, um

    pintor e fotgrafo romeno chamado Karl Baptist von Szathmari, registrou o incio da

    Guerra Russo-Turca, que mais tarde deflagraria a Guerra da Crimia14. Von Szathmariregistrou os uniformes e o comando russo, alm disto, obteve autorizao para

    fotografar no campo de batalha. Quando, por sua vez, os otomanos dominaram a regio,

    ele tambm registrou o comando otomano e o campo de batalha. Von Szathmari

    tambm seguiu o comboio russo no Vale do Danbio em sua carroa fotogrfica, e suas

    aventuras no so diferentes daquelas que Fenton viveu mais tarde na Crimia. Em maio

    de 1854, voltou para Bucareste depois de sua carroa ter sido alvo de um ataque

    otomano e de quase ter morrido. Ele mostrou um lbum com 200 fotografias naExposio Universal de 1855 em Paris, onde foram muito admiradas. No chegaram a

    ser publicadas, nem foram jamais exibidas na Gr-Bretanha, e talvez por isto tenham

    escapado da maioria dos registros dos historiadores da fotografia.15

    Alm de Von Szathmari, outros fotgrafos chegaram Crimia antes de

    Fenton16: em maro de 1854, um navio britnico que levou um fotgrafo amador

    chamado Gilbert Elliott. Ele fotografou to detalhadamente uma fortaleza que foi

    possvel atravs de suas imagens, determinar a relevncia de cada arma e traarcorretamente um plano de ataque. Quando o Imprio Francs e a Gr-Bretanha entraram

    na guerra, no final do ms, o governo britnico decidiu adicionar um pequeno

    destacamento fotogrfico ao exrcito, e nomeou o Capito John Hackett para organizar

    isto. Ele contratou em maio de 1854 um fotgrafo civil chamado Richard Nicklin. O

    contrato era de seis meses, que poderia ser estendido aps este perodo, ms a ms. A

    remunerao do fotgrafo era trs vezes superior de seus assistentes o Cabo John

    Pendered e o Sub-Cabo John Hammond e estes ltimos ainda tinham seus gastos com

    alimentao deduzidos. Depois de alguns dias de aulas de fotografia, eles embarcaram

    em junho para Varna, cidade da Bulgria, levando consigo 16 malas de equipamento

    fotogrfico. Elas continham uma cmara grande e uma pequena, duas lentes, uma

    cmara escura, oito garrafas de coldio, e numerosos outros qumicos, garrafas vazias e

    vasilhas, quatro suportes de impresso, dois suportes de vasilhas, duas barracas para

    cmara fotogrfica, seis barracas em trip e uma quantidade no especificada de vidros

    14

    In: GERNSHEIM, Alison; GERNSHEIM, Helmut, 1954, p. 10 /11.15In: GERNSHEIM, Alison; GERNSHEIM, Helmut.Loc. cit.16In: GERNSHEIM, Alison; GERNSHEIM, Helmut.Ibidem. p. 11 /12.

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    e papel de impresso17. No h informao sobre o trabalho fotogrfico de Nicklin e

    seus assistentes entre Varna e Balaclava, local que os britnicos ocuparam em setembro.

    Eles foram dados como mortos, quando a carroa laboratrio foi encontrada destruda

    juntamente com vrios navios de transporte e suprimentos, no porto de Balaclava depoisde um furaco ter atingido a regio em novembro de 1854.

    Os fotgrafos e o equipamento perdido foram prontamente substitudos18, e dois

    jovens oficiais, Brandon e Dawson, foram enviados na primavera de 1855 para a

    Crimia, com novos aparatos e suprimentos, tendo recebido treinamento por um ms do

    famoso fotgrafo londrino, J. E. Mayall. Novamente, os fotgrafos foram perdidos;

    porm desta vez, no se sabe a causa do desaparecimento. Assim, vrios fotgrafos

    registraram a Guerra da Crimia. Contudo, o mais famoso por este registro mesmoRoger Fenton, talvez por ter sobrevivido guerra e pelas suas imagens terem sido

    publicadas; sendo hoje a maior fonte pictrica acerca desta guerra.

    Em fevereiro de 1855, quando o inverno j tinha terminado, Roger Fenton

    chegou Crimia. Esta expedio no foi militar: teve patrocnio do governo britnico,

    especialmente da Rainha Victria e do Prncipe Albert, e apenas a ajuda do Duque de

    New Castle, Secretrio de Estado para Guerra. Alm disto, foi financiado tambm pela

    Manchester Publisher Thomas Agnew & Sons, que queria imagens das pessoas e cenasde interesse histrico, com o objetivo de vend-las ao pblico. Por isto, trabalhou sob as

    ordens de no ofender o bom gosto vitoriano 19. Fenton evitou fotografar os reveses

    dos soldados: todas as 360 fotos feitas foram exibidas e em nenhuma delas foram vistos

    os horrores da guerra.

    17In: GERNSHEIM, Alison; GERNSHEIM, Helmut, 1954. p. 11/ 12.18In: GERNSHEIM, Alison; GERNSHEIM, Helmut.Loc. cit.19No contrato estava includo alm da [...] publicao de suas fotos (na forma de estampas) em um

    jornal semanal menos tradicional e menos crtico, The Illustrated London News, a exposio das fotos emuma galeria e a comercializao destas em forma de livro, quando voltasse Inglaterra. In: SONTAG,Susan, 2003. p. 44.

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    Figura 2 O dia de trabalho dele terminou Tenente-Coronel Hallewell sendo servidoFonte: GERNSHEIM, Alison; GERNSHEIM, Helmut, 1954, prancha 44.

    Segundo Alison e Helmut GERNSHEIM, as imagens de Fenton acabaram pordesmentir os artigos de William Howard Russel publicados no The Times20. Estesartigos descreviam o pior perodo da guerra, anterior chegada de Fenton Crimia,quando o sofrimento das tropas era grande pela perda de agasalhos e suprimentos deinverno por conta do furaco que atingira a regio em novembro. Alm disto, antes deFenton, chegaram Florence Nightingale21e outras 38 enfermeiras, que formaram uma

    20In: GERNSHEIM, Alison; GERNSHEIM, Helmut, 1954. p. 30.21Florence Nightingale (1820-1910). considerada a fundadora da enfermagem moderna, e uma heronaao chefiar, nas mais precrias condies, o atendimento aos soldados britnicos durante a Guerra daCrimia. Devemos a ela o incio de uma srie de medidas de higiene adotadas nos hospitais. Numa visita

    ao campo de batalha, ela contraiu uma febre que quase a matou. Ao voltar Gr-Bretanha, fundou aprimeira escola de enfermagem do mundo. Tornou-se uma autoridade mundial em sade pblica eatendimento a doentes.

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    comisso para melhorar as condies de higiene; e chegaram tambm novossuprimentos para o inverno como casacos e barracas.

    Figura 3 Capito Brown do 4 Light DragoonsFonte: GERNSHEIM, Alison; GERNSHEIM, Helmut, 1954, prancha 71.

    Estes fatores contriburam para que as imagens captadas por Roger Fenton no

    coincidissem com as denncias que Russel havia feito poucos meses antes. As imagens

    que chegaram ao pblico eram amenas, diferentes daquelas de corpos em decomposio

    espalhados pela paisagem vistas mais tarde na Guerra de Secesso.

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    Figura 4 O Vale da Sombra da MorteFonte: GERNSHEIM, Alison; GERNSHEIM, Helmut, 1954, prancha 51.

    Parece que esta amenidade trouxe tranqilidade ao pblico britnico quanto

    sade e ao bem-estar do exrcito, em contraposio aos relatos de Russel. As imagens

    tornaram-se um relato aparentemente mais confivel e confortvel que o texto, pois

    carregavam em si a crena do registro fiel da realidade. A Guerra da Crimia marcou

    um ponto de transio: a partir de ento, os exrcitos europeus prestariam maior ateno

    ao bem-estar de seus soldados. A proviso de alimentos, roupas e medicamentos tornou-

    se central para o planejamento das guerras.

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    A Realidade Incmoda das Imagens

    Entre 1861 e 1865, ocorreu no continente americano a Guerra de Secesso22,

    travada dentro dos EUA. Esta guerra matou mais norte-americanos que qualquer outra

    guerra travada at hoje. Pois, [...] o poder letal dos exrcitos em guerra havia sido

    elevado a uma nova magnitude em razo das armas introduzidas pouco depois da

    Guerra da Crimia (1854-56), como o rifle de municiar pela culatra e a primeira arma

    de fogo com carregamento automtico23. Ela dividiu o povo basicamente em duas

    frentes: o Norte, composto por vinte e trs Estados Livres, conhecidos como federados e

    o Sul, com onze Estados Escravistas, os confederados. Porm, era muito freqente haver

    dentro de uma mesma famlia opinies divergentes, sendo esta diviso Norte e Sulapenas simblica.

    Vrias causas so atribudas a esta guerra: alguns historiadores afirmam que a

    principal causa foi a questo da escravido, outros, a rivalidade econmica entre o norte

    industrializado e o sul agrcola. Havia tambm a questo poltica: em 1860 vrios

    lderes dos estados sulistas haviam proposto a secesso24da Federao caso Abraham

    Lincoln, abolicionista, vencesse as eleies. Ele foi eleito, e em 1861 sete estados

    sulistas se desligaram da Federao, formando uma nao, os Estados Confederados daAmrica, e elegeram um presidente prprio com o intuito de manter o regime escravista.

    Na realidade, o que agravou a situao e desencadeou o conflito foi o aumento da malha

    ferroviria, acompanhado pelo desenvolvimento do telgrafo, que tornou possvel

    perceber as diferenas e discrepncias ideolgicas entre os vrios estados. O senador

    Jonh O. Pastore fez uma observao acerca deste fenmeno:

    J no poderia estado algum, em todas as suas tradies e costumes,

    permanecer oculto por paredes de distncia e de silncio. Fios do telgrafo etrilhos do trem comeavam a eliminar o isolamento.25

    O telgrafo foi de importante valor para a Guerra de Secesso. No dia 15 de abril

    de 1861, a convocao de setenta e cinco mil homens, feita pelo Presidente norte-

    americano Abraham Lincoln, foi to eficiente que se ofereceram para defender o norte

    22 Na bibliografia norte-americana esta guerra chamada de American Civil War, Guerra CivilAmericana, enquanto na bibliografia brasileira ela chamada de Guerra de Secesso.23In: SONTAG, Susan, 2003, p. 21.24Em portugus significa ao de separar-se daquele ou daquilo a que estava unido. In: FERREIRA,Aurlio Buarque de Holanda, 1993.25In: PASTORE, John O; CAJADO, Octavio Mendes, 1966, p. 39/ 40.

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    de imediato, noventa e nove mil homens, alm de dinheiro e crdito sem limites. Alguns

    dias antes, a milcia de Washington havia tomado os escritrios da American Telegraph

    Company, o que fez com que o Sul no recebesse respostas s suas chamadas. Desta

    forma, a fora nortista aumentou, enquanto a sulista estava sendo emudecida.

    A Guerra de Secesso atraiu inmeros correspondentes de todo o mundo. Graas

    utilizao do telgrafo, os leitores podiam acompanhar todos os acontecimentos da

    guerra com o atraso de apenas um dia. A habilidade para descrever com preciso e

    concisamente foi mais importante que a de compor longas matrias com detalhes das

    batalhas26. Entretanto, os correspondentes eram muitas vezes inexperientes e os jornais

    cada vez mais sensacionalistas, a fim de aumentar as vendas. Com isto, a cobertura da

    Guerra de Secesso foi distorcida, devido aos exageros, calnias e relatos fictcios.

    A censura militar tambm foi exercida na guerra de secesso, inicialmente, por

    mera casualidade, quando o comandante das foras nortistas, Wienfield Scott, impediu a

    transmisso telegrfica de um despacho da Associated Press27, que registrava uma

    derrota, substituindo-a por uma vitria. Este ato levou os jornais a publicarem matrias

    registrando uma gloriosa vitria.28

    Em 1864, j era visvel a vitria do Norte, mas a guerra ainda se arrastou por um

    ano. Apesar do telgrafo, a notcia do fim da guerra demorou a se espalhar e a ltima

    tropa confederada se rendeu mais de quarenta dias aps a deposio do governo sulista.

    Ainda neste perodo, os navios de guerra, at ento com cascos de madeira e

    movidos vela, foram substitudos por couraados de ferro e posteriormente de ao,

    movidos a vapor. A princpio, os navios de madeira foram simplesmente recobertos com

    ferro para aumentar sua resistncia, mantendo as velas como principal meio de

    propulso. Logo a seguir, foram desenvolvidos cascos de ferro, com propulso mista.As armas contidas nestes navios tambm foram melhoradas. Os canhes dispostos em

    fileiras nas laterais do navio, agora se concentravam numa nica estrutura: a torre de

    tiro giratria, que permitia que se atirasse em qualquer direo, foi usada pela primeira

    vez nesta guerra. Os canhes, que eram de antecarga (carregados pela frente), passaram

    26In: ADAMS, KEITH (org). Acesso em: 30 mai. 2007.27AAssociated Press hoje a espinha dorsal do sistema de informao do mundo jornalstico dirio, comcobertura em todos os meios e notcias em todos os formatos. a maior organizao de venda de notcias

    e a mais antiga do mundo. Fundada em 1846, hoje a maior e mais confivel fonte de notcias e deinformaes independente. In: ASSOCIATED PRESS. Acesso em: 29 mai. 2007.28In: PASTORE, John O; CAJADO, Octavio Mendes, 1966.

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    a ser de retrocarga (carregados por trs), o que conferia maior segurana e agilidade ao

    processo. Um explosivo mais potente que a plvora, o cordite, tambm comeou a ser

    usado. Como os cascos dos navios eram agora de ferro ou ao, as bolas de canho nada

    faziam; da o desenvolvimento da forma cnica dos projteis conforme conhecemoshoje. Com todo este desenvolvimento armamentcio, as batalhas navais j no ocorriam

    a centenas de metros, mas a quilmetros de distncia entre os navios.

    Mathew Brady, um fotgrafo proprietrio de vrios estdios fotogrficos nos

    Estados Unidos, financiou a expedio de alguns fotgrafos s frentes de batalha para

    registrar a guerra, com o intuito de vender as imagens posteriormente ao pblico.

    Porm, costumava atribuir a si prprio a autoria de todas as imagens, e quando muito

    trocava a autoria de um fotgrafo pela de outro. Segundo Susan Sontag,

    As fotos de guerra de Brady [...] mostravam temas convencionais,como acampamentos povoados por oficiais e por soldados de infantaria, cida-des em estado de guerra, material blico, embarcaes e tambm, com enormecelebridade, soldados mortos da Unio e da Confederao, estirados no solodevastado de Gettysburg e Antietam. Embora o acesso ao campo de batalharepresentasse um privilgio concedido a Brady e sua equipe pelo prprio

    Lincoln, os fotgrafos no tinham uma misso oficial, como no caso de Fentonna Crimia. Sua situao se desdobrou de um modo mais americano, com o

    patrocnio nominal do governo cedendo espao para a fora de motivaes

    empresariais e autnomas29

    .

    As imagens da guerra no foram muito bem aceitas pelo pblico, e Brady sofreu

    um grande prejuzo que quase o levou falncia. Entre os fotgrafos financiados por ele

    estavam Alexander Gardner e Timothy OSullivan.

    Alexander Gardner veio da Esccia para os EUA em 1855 a partir de um convite

    feito por Brady. Gardner trabalhou no estdio de Brady em Nova Iorque e mais tarde

    tornou-se gerente do estdio de Brady em Washington. Em 1862, saiu do estdio de

    Brady passando a processar seus prprios negativos porque Brady se recusava a dar aele e aos outros fotgrafos, crdito individual para as fotografias da Guerra Civil.

    Gardner tornou-se o fotgrafo oficial do Exrcito da Unio do Potomac at o fim da

    Guerra Civil. Publicou a edio original de seu livro, Gardners Photographic

    Sketchbook of the War em 1866. O livro era composto por dois volumes, sendo que

    cada volume continha cem cpias fotogrficas impressas manualmente. Foi totalmente

    editado e escrito por Gardner, que incluiu, alm de suas fotografias, imagens de outros

    fotgrafos como Timothy OSullivan, George Barnard e Gibson, entre outros. Como29In: SONTAG, Susan, 2003, p. 45/46.

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    fotgrafo, Gardner ficou conhecido pelos retratos memorveis do presidente Lincoln.

    Continuou a ser um bem sucedido fotgrafo retratista em Washington at sua morte em

    1882.

    Timothy OSullivan iniciou sua carreira como aprendiz de Brady, mas pelosmesmos motivos de Gardner deixou de trabalhar com Brady e passou a fotografar a

    Guerra Civil por conta prpria. Quarenta e quatro fotografias suas foram includas no

    livro de Gardner. Suas imagens da guerra civil ficaram muito famosas, especialmente

    aquelas em que apareciam corpos de soldados espalhados pelos campos de batalha,

    insepultos. Trabalhou at sua morte em 1882, como fotgrafo do Tesouro Nacional.

    Figura 5 Campo de Batalha onde o General Reynolds foi Derrotado GettysburgFonte: GARDNER, Alexander, 2001, prancha 37, p. 83.

    Mesmo usando ainda um equipamento fotogrfico semelhante ao utilizado por

    Roger Fenton na Guerra da Crimia, Mathew Brady e seus colaboradores, Alexander

    Gardner, Timothy OSullivan, e outros, registraram a Guerra de Secesso de maneira

    diferente dos registros feitos por Fenton na Crimia: obtiveram imagens mais diretas das

    batalhas e dos soldados nos locais dos conflitos.

    As imagens obtidas eram muito parecidas esteticamente com as da Crimia;

    porm, algumas delas surpreenderam as pessoas por exibir corpos de soldados mortos,

    pois [...] com relao aos nossos mortos, sempre vigorou uma proibio enrgica

    contra mostrar o rosto descoberto. As fotos tiradas por Gardner e OSullivan ainda

    chocam porque os soldados da Unio e dos Confederados jazem de costas, com o rosto

    de alguns claramente visvel30. Este novo modo de registro feito por Brady e sua equipe

    30In: SONTAG, Susan. Diante da dor dos outros. So Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 61.

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    foi prontamente percebido pelo pblico como realista e fidedigno, mais crvel e

    verossmil que os relatos dos correspondentes de guerra na imprensa, como se pode

    notar atravs deste artigo publicado noHumphreys Journal31:

    O pblico devedor a Brady de Broadway por suas numerosas eexcelentes vistas da horrorosa guerra. (...) So seus os nicos documentossobre a batalha de Bull Run dignos de f. Os correspondentes dos jornaisrebeldes so verdadeiros falsrios; os correspondentes dos jornais do Norteno so igualmente confiveis e os correspondentes da imprensa britnica soainda piores que uns e outros, mas Brady no engana nunca32.

    Figura 6 O que eu preciso, John Henry?Warrenton, VA.Fonte: GARDNER, Alexander, 2001, prancha 27, p. 63.

    31O Huphreys Journal a primeira e mais antiga publicao dedicada fotografia dos Estados Unidos.Sua periodicidade quinzenal, e traz matrias sobre as novas tecnologias fotogrficas. Apesar dededicado fotografia e s suas tcnicas (ele tido como grande difusor das tcnicas fotogrficas); foi

    citado na Revista Mechanics como uma publicao tanto interessante quanto popular. In: HUMPREYSJOURNAL. Acesso em: 04 jun. 2007.32Apud: FABRIS, Annateresa, 1991. p25.

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    Figura 7 A Colheita da Morte Gettysburg.Fonte: GARDNER, Alexander, 2001, prancha 36, p. 81.

    No livro publicado por Gardner, assim como na exposio feita aps a guerra,havia textos seus acompanhando cada uma das imagens. Em seu contedo, alm de

    dados histricos e geogrficos, as impresses do fotgrafo. Abaixo, o texto que

    acompanha a imagem intitulada A Colheita da Morte, captada por Thimoty

    OSullivan e ampliada por Alexander Gardner:

    Lentamente, sobre os campos, a neblina de Gettysburg relutante emexpor os horrores luz veio uma manh sem sol, aps o recuo do exrcitoderrotado de Lee. Atravs da neblina, era, certamente, uma "colheita da morte"

    que foi apresentada; centenas e milhares de soldados rasgados da Unio esoldados rebeldes embora muitos fazendeiros j houvessem trabalhado nestaterra agora era um quieto campo de combate, embebido pela chuva, que pordois dias inundou o pas.

    Uma batalha foi freqentemente o assunto de descrio elaborada; maspode ser descrita em uma palavra simples, diablica! E a morte distorcidarelembra as antigas lendas de homens esquartejados pelos selvagens. A vidaceifada sem aviso fez os corpos quebrados carem em todas as posiesconcebveis. Os rebeldes representados na fotografia esto sem sapatos. Estessempre eram removidos dos ps dos mortos para suprir as necessidades dossobreviventes.

    Os bolsos postos para fora mostram que a apropriao no cessou nosps. Em torno dos corpos, se vem dispersos no campo de batalha, munio,tecidos, copos e cantis, biscoitos, etc, e cartas que podem ter o nome do

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    proprietrio, embora a maioria destes homens tenha sido enterrada comodesconhecidos, em uma terra desconhecida. Mortos no esforo frentico deromper o avano gradual do exrcito dos patriotas, cujo herosmo ultrapassouos limites, pagaram com a vida o preo de sua coragem, e quando o ataque foimal sucedido, encontraram sepulturas sem nome, longe de casa e sem

    compaixo.Tal retrato faz saber uma moral til: mostra o horror vazio e a

    realidade da guerra, em oposio s pginas anteriores (do livro). Esto aquios detalhes terrveis! Deixe que estes detalhes ajudem a impedir que outracalamidade como esta, recaia sobre nossa nao.33

    As imagens que mostravam corpos mortos foram poucas, mas suficientes para

    transmitir os horrores da Guerra de Secesso e impressionar a sociedade.

    Quando, em outubro de 1862, um ms aps a batalha de Antietam, as

    fotos tiradas por Gardner e OSullivan foram expostas na galeria de Brady emManhattan, o The New York Times publicou:

    Os vivos que se aglomeram na Broadway talvezpouco se importem com os mortos em Antietam, maspodemos imaginar que se empurrariam com menos descasoem sua marcha pela grande avenida, e que passeariammenos sossegados, se alguns corpos gotejantes, recm-cados no campo de batalha, estivessem estirados pela cala-da. Haveria um repuxar afobado de barras de saia e umacuidadosa escolha do local onde pisar... [...]

    A admirao pelas fotos se mistura com a sua desaprovao em virtudeda dor que podem provocar em mulheres da famlia dos mortos. A cmera trazo espectador para perto, para demasiado perto; com o auxlio de uma lente deaumento pois neste caso as lentes so duas a "nitidez terrvel" das imagens

    fornece informao desnecessria e indecente.Todavia, o reprter do Times no consegue resistir ao melodrama que

    meras palavras propiciam os "corpos gotejantes" prontos para "as covasescancaradas", ao mesmo tempo em que censura o realismo intolervel daimagem34.

    necessrio lembrar a carga de fidedignidade realidade que a fotografia

    carregava naquela poca (ainda hoje h rastros deste sentimento de realidadefotogrfica), quando era comum afirmar-se que a cmara nunca mente. A crena em

    sua fidelidade era to grande que Mathew Brady chegou a afirmar: a cmara

    fotogrfica o olho da histria35.De fato, a cmara, enquanto equipamento de captao

    e gravao da luz em um anteparo sensvel no pode mentir. Contudo, quem a opera, o

    fotgrafo, pode escolher diversos elementos como qual a luz, horrio do dia, paisagem

    de fundo e mesmo as pessoas que vo compor a cena, e todos estes elementos

    33In: GARDNER, Alexander, 2001, p. 80.34In: SONTAG, Susan, 2003, p. 54/55.35Apud: FABRIS, Annateresa, 1991, p. 24.

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    retratam seu ponto de vista pessoal. O fotgrafo tambm pode evitar uma cena que

    no lhe agrade ou que entre em contradio com o que deseja transmitir, conforme

    sinaliza Susan Sontag emDiante da Dor dos Outros:

    A primeira justificativa para as fotos brutalmente claras, queobviamente violavam um tabu, residia no puro dever de registrar. [...] Ahistria, evocada como uma verdade inapelvel se aliava ao crescente prestgiode certa idia de temas que demandavam maior ateno, conhecida comorealismo idia que, em breve, viria a ter mais defensores entre romancistas doque entre fotgrafos.

    Em nome do realismo, permitia-se exigia-se que se mostrassemfatos desagradveis, brutais. Fotos deste tipo tambm transmitem "uma moraltil" ao mostrar o puro horror e a realidade da guerra, em oposio sua

    pompa escreveu Gardner [...] em Gardners Photographic Sketch Book ofThe War (1866). O que no significava que ele e seus colegas houvessem neces-sariamente fotografado seus temas da forma como os encontraram. Fotografarera compor (no caso de temas vivos, posar), e o desejo de dispor melhor oselementos da foto no desaparecia porque o tema estava imobilizado, ou eraimvel. [...]

    Hoje se sabe que a equipe de Brady rearrumou e deslocou alguns doscadveres de soldados recm-mortos em Gettysburg: a foto intitulada "A casado atirador de elite rebelde, Gettysburg na verdade a foto do cadver de umsoldado confederado que foi deslocado de onde estava cado no campo debatalha, para um local mais fotognico, um abrigo formado por vrias rochasque flanqueavam uma barricada de pedras, e inclui um rifle cenogrfico queGardner ps encostado na barricada, junto ao cadver. (Parece no ser o tipo

    de rifle especial que um atirador de elite usaria, mas um rifle comum deinfantaria; Gardner no sabia disto, ou no se importou.)O estranho no que tantas clebres fotos jornalsticas do passado,

    entre elas algumas das mais lembradas fotos da Segunda Guerra Mundial,tenham sido ao que tudo indica, encenadas. O estranho que nos surpreendasaber que foram encenadas e que isto sempre nos cause frustrao36.

    Figura 8 A Casa do Atirador de Elite Gettysburg.Fonte: GARDNER, Alexander, 2001, prancha 41, p. 91.

    Figura 9 O ltimo Sono de umAtirador de Elite Gettysburg.

    Fonte: GARDNER, Alexander, 2001, prancha 40, p. 89.

    36In: SONTAG, Susan, 2003, p. 46-48.

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    Nestes dois conflitos apenas se iniciou o uso das imagens fotogrficas para

    registro e propaganda de guerra. Em alguns momentos, elas foram tidas como auxlio

    inteligncia de guerra, como arma de espionagem; em outros, elas constituram apenas

    registros de episdios e detalhes dos conflitos. Em todas as ocasies sofreram censura,seja por parte do governo, dos militares, do contratante ou at mesmo do prprio

    fotgrafo. Timidamente, as imagens fotogrficas foram mostrando suas diversas

    possibilidades de uso, que seriam enormemente ampliadas no final do sculo XIX e no

    incio do XX.

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    Captulo 2

    O Rolo de Filme:

    Entre a Realidade e a Fico

    Nas ltimas dcadas do sculo XIX, foram inventados os principais

    equipamentos que possibilitaram o desenvolvimento das telecomunicaes: em 1876, o

    telefone; em 1877, o fongrafo; em 1879, a luz eltrica; em 1884, o filme fotogrfico

    flexvel; em 1889, a cmara cinematogrfica1; e, em 1896, a radiotelegrafia, s para

    citar os mais importantes. Devido a estes inventos, o uso das imagens ampliou- se. Os

    jornais passaram a utilizar algumas fotografias para ilustrar suas matrias e enquanto

    isso, as salas de cinema proliferaram pelo mundo.

    Graas aos inventos novos de Thomas Edison (a luz eltrica), e de George

    Eastman (o filme fotogrfico flexvel em rolo), o desenvolvimento do cinema e a

    diminuio do tamanho dos equipamentos fotogrficos tornaram-se possveis. O

    interesse de Eastman pela fotografia tivera incio numa viagem de frias que eleplanejara fazer a So Domingos2. Esta regio encontrava-se na berlinda na dcada de

    1870, porque o ento presidente dos Estados Unidos, Ulysses Grant, queria anex-la

    para erguer, naquela rea, uma base naval americana. Um amigo sugeriu a Eastman que

    levasse consigo uma cmara e fizesse um registro fotogrfico da viagem. Como

    observou o prprio Eastman, teria de ser robusto o homem que quisesse ser fotgrafo

    de exteriores3. O equipamento normal inclua uma cmara do tamanho de uma caixa de

    sabo, um trip suficientemente pesado para agentar um bangal, um suporte dechapas secas e uma cmara escura, alm de um recipiente de gua e outro de substncias

    qumicas4. Os simples preparativos para a expedio que ele acabou no fazendo

    bastaram para provocar-lhe no esprito o interesse pela idia de criar uma cmara, com

    todos os acessrios, que fosse menor e menos pesada do que o fardo de uma besta de

    1O cinema, como o conhecemos foi desenvolvido pelos irmos Lumire, na Frana em 1895.2Capital da Repblica Dominicana.3Apud: PASTORE, John O; CAJADO, Octavio Mendes, 1966, p.63.4In: PASTORE, John O; CAJADO, Octavio Mendes.Loc. cit.