a guerra dos clark _ piauí_105 [revista piauí]

16
Edição 105 > _anais das artes plásticas > Junho de 2015

Upload: eduardosterzi

Post on 24-Jan-2016

93 views

Category:

Documents


7 download

DESCRIPTION

Reportagem da revista Piauí.

TRANSCRIPT

08/06/2015 A guerra dos Clark | piauí_105 [revista piauí] pra quem tem um clique a mais

http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao­105/anais­das­artes­plasticas/a­guerra­dos­clark 2/16

A guerra dos Clark

por CONSUELO DIEGUEZ

Herdeiros disputam o espólio e ameaçam o legado de uma das maiores artistas brasileiras

Às onze da manhã do último 16 de dezembro, quatro carros deixaram o Tribunal de Justiça noCentro do Rio de Janeiro e rumaram para a Zona Sul, com destinos diferentes. Um oficial deJustiça e dois advogados do escritório deSergio Bermudes, dentre os mais renomados da cidade,ocupavam cada veículo. Se fosse uma gincana, a missão do grupo seria Caça ao Tesouro.

Aqueles homens tinham autorização judicial para recolher, em quatro endereços nobres, as obras –esculturas, quadros, estudos, diários, escritos e o que mais houvesse – que encontrassem de LygiaClark. Artista brasileira cultuada e valorizada no mercado internacional, uma das expoentes doneoconcretismo, a mineira Lygia morreu em 1988, aos 67 anos.

Ao longo do trajeto, o grupo manteve contato por meio do WhatsApp. Era fundamental quechegassem juntos aos locais combinados, para surpreender os moradores e impedir que eles secomunicassem. Ao final do Aterro do Flamengo, o comboio se separou. Um dos carros seguiu emdireção a Botafogo, para a Mameluca Design, loja de réplicas em miniatura de obras da artista; doisforam para a Lagoa, e o último rumou para Ipanema. Por volta de meio­dia, quando os grupos jáestavam a postos em seus respectivos endereços, os celulares anunciaram que a hora chegara.

O edifício branco da avenida Epitácio Pessoa, com vista para a Lagoa, era o que provocava maisfrisson. No apartamento de Alvaro Clark, o filho mais velho de Lygia, a equipe chefiada peloadvogado Marcelo Gonçalves esperava apreender a parcela mais valiosa do acervo. É contra Alvaroque seu irmão, Eduardo Clark,move uma ação para recuperar parte das obras da mãe. O processose estende a outros herdeiros: a ex­mulher de Alvaro, Sandra Regina Brito, e a filha dos dois,Alessandra Clark, que também é proprietária da Mameluca.

Os advogados contratados por Eduardo pretendiam levar as peças para a casa do cliente, a fim deincorporá­las ao espólio da artista. “Elas nunca poderiam ter saído de lá”, disse GuilhermeValdetaro, advogado de Eduardo. Vinte e sete anos haviam se passado desde a morte de Lygia, e

08/06/2015 A guerra dos Clark | piauí_105 [revista piauí] pra quem tem um clique a mais

http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao­105/anais­das­artes­plasticas/a­guerra­dos­clark 3/16

nunca se fizera um inventário dos bens. Até aquele momento, os herdeiros negociavam o legadolivremente.

Quando a artista morreu, as obras foram divididas de modo informal entre seus três filhos: aprimogênita Elizabeth, que já faleceu e deixou dois filhos; Alvaro, hoje com 70 anos; e Eduardo,com 68. Além dos filhos de Elizabeth, Lygia teve mais quatro netas, mas elas não são herdeirasdiretas do espólio, que pertence a Alvaro, a Eduardo e aos filhos da primogênita. Ao mover a açãocontra o irmão mais velho, sua ex­mulher e a filha deles, Eduardo alega ter sido ludibriado. Acusa oirmão de ter se apossado irregularmente de parte do patrimônio, como centenas de estudos – osesboços em papel que Lygia fazia para suas obras – cuja existência ele ignorava.

À época da morte da artista, o valor das obras no mercado não era tão expressivo. Hoje umaescultura dela chega a ser negociada por mais de 2 milhões de dólares. Os quadros seguem omesmo padrão, enquanto os estudos estão sendo comercializados por até 250 mil dólares cada.

Ao tomar conhecimento de que no ano passado o irmão vendera alguns dos desenhos por umapequena fortuna, Eduardo foi atrás de seu quinhão. Entrou em contato com Alvaro, que reagiudizendo que os estudos lhe pertenciam. Teve início uma disputa fratricida, da qual emergiu ainimizade latente entre os irmãos e que contaminou toda a família. Os envolvidos trocam e­mailsvirulentos – em meio a acusações mútuas, é comum o tom subir e o nível baixar.

A relação complicada entre Eduardo e Alvaro remonta à infância. Viviam às turras desde pequenos,afastaram­se de vez na adolescência. Só voltaram a ter contato por causa da herança. A históriapoderia se encerrar aí – mais um caso de desinteligência familiar –, não fosse Lygia Clark uma dasmais importantes artistas brasileiras de todos os tempos. A briga dos herdeiros deixa de cabelo empé galeristas, marchands e colecionadores, preocupados com o valor e a comercialização das obras.Mais do que isso, é um patrimônio da cultura brasileira que está sob ameaça.

Alvaro Clark é um homem alto, magro, de cabelos grisalhos. Fala de maneira arrastada, carregada de esses e erres, típica dos cariocas. Naquele 16 de dezembro, os advogados e o oficial de Justiça oencontraram descalço, trajando uma bermuda preta e uma camiseta azul­marinho. E assim oherdeiro permaneceu durante o tempo em que estiveram em seu apartamento. Segundo um dospresentes, ao longo de nove horas ele consumiu três garrafas de champanhe.

À medida que o tempo passava, a tensão aumentava. Alvaro não desgrudava do celular, falando atodo instante com seu advogado, Edison Balbino, que tentava reverter a apreensão. Enquanto isso,o apartamento era revistado. No armário de um dos quartos, os advogados encontraram os estudosguardados em pastas de plástico. Levaram o material até a sala, onde já havia outras obras. Quandotomavam providências para embarcá­las num caminhão de mudança, Alvaro fez uma exigência: omaterial só sairia dali em um veículo da Fink, empresa especializada em transporte de objetos dearte. E ainda reivindicou a presença de um museólogo para acompanhar tudo. Providenciaram um.

O herdeiro então apelou, anunciando a um assustado oficial de Justiça que aquelas obras valiammilhões de dólares. Se alguma fosse danificada, ele exigiria reparação. Precavido, o oficial ligoupara o juiz, e dele ouviu que as peças deveriam ser acondicionadas em caixas de papelão. Seriamtodas lacradas e deixadas em custódia no próprio apartamento. Até a conclusão do processo nãopoderiam ser transferidas ou retiradas das embalagens.

08/06/2015 A guerra dos Clark | piauí_105 [revista piauí] pra quem tem um clique a mais

http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao­105/anais­das­artes­plasticas/a­guerra­dos­clark 4/16

Acertado o procedimento, o oficial pediu para ver as obras, a fim de inventariar o conteúdo a serlacrado. Nova discussão. De acordo com os presentes, Alvaro não permitiu que as pastas fossemabertas, alegando a fragilidade dos papéis, que correriam o risco de rasgar caso não fossemmanuseados por um especialista devidamente paramentado com luvas e máscara. Diante daeventualidade de ser acusado de destruir obras de arte, o oficial de Justiça capitulou e as duascaixas foram lacradas sem que ninguém, exceto Alvaro, soubesse o que havia dentro delas.

Nos outros endereços, as equipes de busca enfrentavam problema semelhante. No apartamento deSandra, a ex­mulher de Alvaro, foi possível fazer um levantamento exato do que havia. Lá, as obrasse encontravam em um armário trancado com cadeado. Eram seis e meia da tarde quando as peçascomeçaram a ser listadas: um total de 38, sendo catorze quadros e uma escultura, protegidos porembalagens acrílicas, e 23 desenhos acondicionados em pastas plásticas. Todas foram lacradas emcaixas de papelão, conforme a ordem judicial, e deveriam permanecer no local. O mesmo se deu nacasa e na empresa de Alessandra, a filha de Alvaro e Sandra. Por volta das nove da noite, osadvogados, de mãos abanando, deixaram os endereços.

Apesar da missão frustrada, pelo menos a decisão de manter o material a salvo confortou osadvogados de Eduardo Clark. No final de dezembro, porém, o juiz levantou a interdição e devolveua propriedade a Alvaro, Sandra e Alessandra. Os advogados recorreram. Em março, umdesembargador revogou a decisão e autorizou a apreensão das obras. Quando mais uma vez sepreparava a operação, uma contraordem judicial suspendeu tudo novamente. Em abril, novadecisão judicial estabeleceu que o trio não poderia vender os bens certificados. Não se sabe, porém,o que Alvaro, Sandra e Alessandra fizeram das obras. Ninguém garante que elas ainda estejam nosmesmos endereços ou que não tenham sido passadas para a frente antes das últimas decisõesjudiciais.

A briga familiar e o vaivém da Justiça em torno do espólio de Lygia Clark são exemplos do descasoque cerca a produção de muitos artistas de peso no Brasil. Difícil imaginar peças de Mondrian ouCalder, por exemplo, circulando de armários para salas, sendo embaladas em caixas de papelão elacradas, e então deslacradas e outra vez manuseadas, sem que a família e a Justiça se entendam.Em 2009, praticamente todo o acervo de outro grande artista, Hélio Oiticica, contemporâneo eamigo de Lygia, foi danificado num incêndio acidental na casa de um dos herdeiros, que comautorização judicial o havia retirado da Fundação Hélio Oiticica, vinculada à Prefeitura do Rio.

Eduardo Clark entrou com a primeira ação contra o irmão já em 2008, alegando apropriaçãoindébita de obras. Desistiu do processo após um acordo familiar. No ano passado, voltou à carga –afirmando ter descoberto que continuava sendo lesado.

Em meados de março me encontrei com ele. Eduardo vive com a terceira mulher, Cristiane, e avira­lata Soraya, num bucólico condomínio de classe média­alta no bairro do Itanhangá, no Rio. Acasa é cercada por uma espaçosa e acolhedora varanda com vista para a piscina e o jardim, cujamanutenção, por falta de recursos, é feita pelo casal.

Acomodado numa poltrona, Eduardo Clark, um homem bronzeado, de cabeleira farta e expressãorelaxada, um legítimo representante da geração que viveu o desbunde dos anos 70, deu sua versãoda história. Não sem antes fazer considerações demolidoras sobre o irmão. “O Alvaro é um ladrão.

08/06/2015 A guerra dos Clark | piauí_105 [revista piauí] pra quem tem um clique a mais

http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao­105/anais­das­artes­plasticas/a­guerra­dos­clark 5/16

Sempre foi. Roubava até no jogo de pôquer quando era jovem”, disse, com uma falta de cerimôniadesconcertante. E foialém. “Ele é meio psicopata, não tem remorso. Isso tudo é acentuado pelo fatode beber e fumar maconha o dia inteiro. O acervo da minha mãe está sob a responsabilidade de umalcoólatra, um cafajeste, um desequilibrado. Essa é a verdade.”

Feita a introdução sobre o caráter do irmão, seu pensamento retrocedeu ao dia 25 de abril de 1988,quando Alvaro lhe telefonou anunciando a morte de Lygia, vítima de um fulminante ataquecardíaco. Após o enterro, os três irmãos – Elizabeth ainda era viva –, com seus respectivoscônjuges, se reuniram na casa da mãe para discutir a herança. Lygia morava num apartamentoespaçoso em Copacabana, na esquina da Prado Júnior com a avenida Atlântica. Foi feita umapartilha informal, cada filho escolheu as obras que queria. Nem lhes passou pela cabeçaprovidenciar um inventário.

Eduardo conta que nesse mesmo dia, efetuada a divisão, Alvaro apareceu na sala com uma pastaportentosa – disse serem desenhos preparatórios, sem valor pecuniário, que ele mandaria paraavaliação. Os estudos poderiam constar de uma futura associação que pensavam criar parapreservar a memória da mãe. Segundo Eduardo, como ninguém contestou, o irmão ficou com omaterial, prometendo trazê­lo de volta. Foi a última vez que Eduardo viu aquela pasta.

Passados alguns dias da morte da artista, o apartamento foi posto à venda. Antes que os corretoresentrassem, Paulo Herkenhoff, então curador do Museu de Arte Moderna, o MAM, no Rio deJaneiro, e o crítico de arte Luciano Figueiredo, amigo de Lygia de longa data, receberamautorização da família para levar ao museu alguns trabalhos – além de cadernos, diários, escritos eoutros objetos pessoais que haviam sido desprezados pelos herdeiros. A ideia era catalogá­los,estudá­los e, futuramente, expô­los.

Quando morreu, Lygia dizia ter abandonado a arte havia mais de uma década. Ela mesma decretarao fim de sua vida artística e anunciara a dedicação a uma nova atividade. Mesmo sem formaçãoprofissional especializada, a partir dos anos 70 passou a tratar de pacientes com distúrbiospsicológicos. Desenvolvera uma técnica terapêutica a partir de materiais confeccionados por ela, oschamados “objetos relacionais”. Eram máscaras, pedras, sacos, óculos e uma série de outras peçascom as quais seus pacientes interagiam. Lygia não admitia que esses objetos fossem apreciadoscomo obras artísticas. Para ela, não passavam de instrumentos terapêuticos. A despeito de seudesejo, muitos críticos continuam a se debruçar com curiosidade estética sobre essa “artesensorial”.

Assim que as peças retiradas do apartamento de Lygia chegaram ao MAM, Herkenhoff e Figueiredose puseram a discutir a melhor forma de trabalhar aquele acervo. Antes de expô­lo, era precisocompreender como ela o utilizava. Concluíram que a pessoa indicada para levar adiante essapesquisa seria Lula Wanderley, um psiquiatra pernambucano que trabalhara por muito tempo comLygia Clark, e durante anos também fora assistente da psiquiatra Nise da Silveira.

A doutora Nise, que chegou a ser aluna de Carl Jung nos anos 50, era radicalmente contrária àstécnicas convencionais e em geral agressivas de tratamento das doenças mentais. Julgava que oconfinamento em hospícios era análogo à experiência dos campos de concentração. Opunha­setambém a eletrochoques e recursos similares ministrados a rodo, muitas vezes como punição aospacientes. Para combater essa cultura médica, Nise da Silveira passou a desenvolver no hospital

08/06/2015 A guerra dos Clark | piauí_105 [revista piauí] pra quem tem um clique a mais

http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao­105/anais­das­artes­plasticas/a­guerra­dos­clark 6/16

psiquiátrico do Engenho de Dentro, no subúrbio carioca, um novo tipo de tratamento, conhecidocomo terapia ocupacional.

Em 1957, num congresso de psiquiatria em Zurique, na Suíça, Nise apresentou pinturas emodelagens de seus pacientes esquizofrênicos, uma mostra que teve grande repercussão no meiomédico. Ela já havia criado em 1952 o Museu de Imagens do Inconsciente, onde eram expostasobras dos internos do hospital. Por meio da manifestação artística, ela dizia ser possívelcompreender o universo do esquizofrênico.

Muitos desses trabalhos revelaram considerável valor estético, o que levou a psiquiatra a se unir aoamigo e crítico de arte Mário Pedrosa em torno de um livro com as obras dos internos. LulaWanderley trabalhava com a dupla. “Nise observava os trabalhos pelo lado sensorial, o Mário pelolado artístico, e eu ficava segurando as obras enquanto eles discutiam quais seriam publicadas”,contou Wanderley, rindo. “Foram meses de trabalho e eu acabei compreendendo os benefíciosterapêuticos de unir a arte ao tratamento psiquiátrico.”

Lula Wanderley é um homem de voz e temperamento suaves. Num começo de noite, em marçopassado, nos encontramos numa livraria em Botafogo. Ele vinha do trabalho – um projeto comdoentes mentais, no Espaço Aberto ao Tempo, também no Engenho de Dentro. Wanderley trata depacientes acometidos de doenças mentais graves, como esquizofrenia, catatonia, depressãoprofunda e outros terrores da mente. Sua aproximação com Lygia Clark se deu justamente em razãode suas técnicas terapêuticas. Ao tomar conhecimento de que a artista desenvolvia um trabalhoalternativo, ele, curioso, pediu para se submeter à prática.

A técnica de Lygia Clark, sem base científica, é de difícil definição. Os pacientes, com os olhosvendados, deitavam num colchão de plástico recheado com bolinhas de isopor. Sobre seus corpos,Lygia dispunha os objetos relacionais – pedras, pequenas esculturas, máscaras, teias feitas detecido e o que ela considerasse útil para a terapia. Cada um reagia de um modo. “Era uma espéciede vivência corporal. Vinham sonhos arcaicos, lembranças, sensações de medo ou prazer”, explicouWanderley. “Era como se o corpo revelasse, através de suas reações, o que estava registrado noinconsciente e não era comunicado de forma verbal.” Depois de um tempo, Lygia pediu aWanderley que abandonasse o tratamento e a ajudasse com sua técnica, o que ele fez até o final davida da artista. Hoje ele emprega algumas dessas técnicas no atendimento a seus pacientes.

As lembranças que tem de Lygia são de uma mulher forte e exuberante, embora franzina decompleição. Diz que seu apartamento, na Prado Júnior, era de extremo bom gosto. Ela haviapintado um dragão chinês no teto da sala e pusera uma rede embaixo, para que pudesse seradmirado. A casa costumava encher de amigos, ainda que o temperamento da anfitriã fossebastante inconstante. A artista não tolerava, por exemplo, que comentassem tragédias. Certa vez oamigo e escultor Sergio Camargo resolveu desfiar as mágoas. Mal abriu a boca – “Lygia, você nãosabe o que me aconteceu” –, e ela, com um cigarro nos lábios, reagiu: “Sergio, ponha­se daqui parafora. Não me fale em desgraça. Saia e só volte quando estiver bem”, contou Lula Wanderley, àsgargalhadas. Em outra ocasião, um amigo levou um frango para o jantar. Assim que o provou, Lygiasentenciou: “Este frango está podre. Você o roubou de algum trabalho de macumba.” O jantaracabou ali.

Ao receber o convite de Herkenhoff para ajudar na catalogação do acervo da artista no MAM,

08/06/2015 A guerra dos Clark | piauí_105 [revista piauí] pra quem tem um clique a mais

http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao­105/anais­das­artes­plasticas/a­guerra­dos­clark 7/16

Wanderley titubeou. “Éramos muito ligados e temia que fosse uma experiência dolorosa.” Acabouconcordando e, durante quatro anos, analisou e organizou todos os escritos e objetos relacionaisutilizados na prática terapêutica, para que o público pudesse conhecer essa outra faceta da artista.

Lygia Clark iniciou sua vida artística relativamente tarde, aos 27 anos.Filha de uma tradicionalfamília mineira, tinha 18 anos quando se casou com um próspero engenheiro e se mudou para oRio. Levava a vida que se esperava de uma mulher de classe média­alta da sua época. Em 1947,começou a ter aulas com o pintor e paisagista Roberto Burle Marx, dando curso ao gosto pelodesenho que alimentava desde criança, até então sem pretensões. Mudou­se para Paris em 1950,com os filhos ainda pequenos, na companhia do marido (o casamento, já em crise, terminariaoficialmente três anos depois). Lá estudou com Fernand Léger, entre outros, fez a sua primeiraexposição individual no Institut Endoplastique, e voltou ao Rio em 1952. Nessa época, entregue àpintura com intensidade avassaladora, costumava ter crises de choro, dizendo aos gritos que nãotinha nada de novo para oferecer ao universo das artes plásticas, que tudo já havia sido imaginado eexecutado por gerações anteriores.

A carreira de Lygia Clark, na verdade, estava apenas começando. E a geração a que pertenceuprotagonizou um dos capítulos mais importantes da arte brasileira moderna. O concretismo, doqual participaram nomes como Hélio Oiticica, Lygia Pape, Franz Weissmann e Amilcar de Castro,entre outros, foi um guarda­chuva amplo que abrigou adeptos da linguagem geométrica e nãofigurativa, que procuravam pensar seus trabalhos a partir da nova ordem espacial pregada pelaBauhaus, do neoplasticismo de Mondrian, das vertentes construtivistas que vicejaram na Europa naprimeira metade do século XX.

Numa década marcada pela euforia desenvolvimentista e pela promessa de uma modernidadetangível – que a construção de Brasília sintetizava tão bem –, o movimento concreto veio desafiar ageração de Candido Portinari, Di Cavalcanti e Lasar Segall, figurões que ainda dominavam oambiente das artes plásticas no país, e cuja obra se prendia à ideia de brasilidade e busca de umaidentidade nacional.

Na sua expressão mais radical, a arte concreta pretendia fazer de cada artista um projetista visual ede cada obra um protótipo (nada de gesto único, pincelada, traço irreprodutível, abaixo oromantismo da criação). Foi essa a cara que o movimento adquiriu em São Paulo, em grandemedida por influência do designer, artista e arquiteto suíço Max Bill, oriundo da Bauhaus epremiado na 1ª Bienal de São Paulo, em 1951.

Em 1956, por iniciativa dos irmãos Augusto e Haroldo de Campos e de Décio Pignatari, armou­se a1ª Exposição Nacional de Arte Concreta. E então eclodiram as diferenças entre os grupos paulista ecarioca. Escrevendo sobre a exposição, o crítico Mário Pedrosa observou que os paulistas eram maisteóricos e dogmáticos, enquanto os cariocas eram mais intuitivos e empíricos. O grupo de São Pauloacusava o carioca de distorcer ou afrouxar as diretrizes do movimento, a ponto de WaldemarCordeiro dizer que esses últimos não eram verdadeiramente concretos, uma vez que “até marrom”usavam em seus trabalhos.

As divergências evoluíram para uma dissidência. Em 1959, coube a Ferreira Gullar escrever oManifesto Neoconcreto, inspirado na sugestão de Lygia Clark de fazer uma nova exposição dogrupo carioca. No texto, os artistas afirmam: “Não concebemos a obra de arte nem como máquina

08/06/2015 A guerra dos Clark | piauí_105 [revista piauí] pra quem tem um clique a mais

http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao­105/anais­das­artes­plasticas/a­guerra­dos­clark 8/16

nem como objeto.” E restauram o direito de cidadania de uma arte ligada “a uma significaçãoexistencial, emotiva e afetiva”. “Se tivéssemos que buscar um símile para a obra de arte”, diz omanifesto, iríamos encontrá­lo “nos organismos vivos”.

O crítico Ronaldo Brito dedicou parte de sua vida intelectual à compreensão do neoconcretismo.Professor do programa de pós­graduação em história social da cultura, ele me recebeu em sua salaapertada, abarrotada de livros, no 5º andar do Departamento de História da puccarioca. Espremidoentre sua mesa e uma estante, Brito discorreu sobre a passagem da arte concreta para oneoconcretismo. O objetivo final do concretismo seria a inserção da arte no cotidiano industrial, nopuro design. E foi justamente contra esse caráter anti­subjetivo que o grupo liderado por LygiaClark se rebelou.

O concretismo, no entanto, explicou o crítico, permaneceria como a base do trabalho do grupo.Continuaram utilizando os mesmos materiais: ferro, metal, alumínio. Mas as obras daí resultantessão completamente distintas. Ganharam formas orgânicas, arredondadas ou recortadas, como nasesculturas de Amilcar de Castro, feitas com ferro corroído. A questão central não era mais aorganização do campo visual, mas a relação entre corpo e espaço.

Na série Bichos, dessa época, Lygia usa planos de alumínio articulados por dobradiças que secombinam pela ação do espectador, que passa a participar da obra, em vez de simplesmentecontemplá­la. A artista, que já havia abolido a moldura de seus quadros, dali em diante semprecaminharia como se testasse os limites da arte, radicalizando­a – e acabou por dissolvê­la nos anos70, quando passa a chamar o que faz de terapia. “Ela ansiava por uma relação corpórea doespectador com a arte”, disse Brito.

O artista plástico e escritor Nuno Ramos escreveu, num ensaio publicado pela piauí, que obrascomo Bichos e Caminhando (trabalho de 1964, em que a autora se propõe a abrir com uma tesouraum anel de Moebius) “fazem de Lygia Clark, para sempre, uma espécie de bruxa fundadora da artebrasileira contemporânea, em seus dilemas e riquezas”. Esses trabalhos, prossegue, “são abertosdemais, instáveis demais, inquietos demais – tudo, depois deles, parece possível, e a energia dessadisponibilidade ainda ecoa em todos nós, artistas brasileiros contemporâneos”.

O envolvimento de Lygia com seu trabalho foi tão intenso que embananou seus vínculos familiarese praticamente arruinou sua vida financeira. Eduardo Clark contou que, na separação, a mãerecebeu dezenas de imóveis do marido, que seriam sua fonte de renda. Para sustentar sua arte, elafoi vendendo um por um. Acabou por se desfazer até de um piano que adorava – e lhe permitiainventar melodias logo esquecidas.

A Lygia só restaria o amplo apartamento dos pais, na Prado Júnior, onde morava com os filhos. Lá,instalara seu ateliê num quarto grande, verdadeira oficina. “Ela dispunha de máquinas para serrarcompensado, serrar chapas de alumínio e fazer dobradiças, além de bisturis e pistolas de pintura”,lembrou o caçula. A força dispendida na confecção das esculturas resultou numa deformidade dosmembros superiores. “Um braço parecia uma garra de caranguejo, arqueado, duro, musculoso; ooutro permaneceu fino, feminino”, contou o filho.

08/06/2015 A guerra dos Clark | piauí_105 [revista piauí] pra quem tem um clique a mais

http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao­105/anais­das­artes­plasticas/a­guerra­dos­clark 9/16

Com pouco dinheiro e sem muita disponibilidade para cuidar das crianças no dia a dia, Lygiaenviou os filhos para a casa de seus pais, em Belo Horizonte. A primeira a viajar foi Elizabeth, quetinha com Alvaro um relacionamento particularmente conturbado – uma vez ele chegou a atirar umcinzeiro na cabeça dela. Logo foi a vez de Alvaro ir viver com os avós. Como tinha o temperamentorebelde, mandaram­no para um rígido colégio interno. O último a trocar o Rio por Minas foiEduardo. O abandono materno, ele confessa, deixou marcas nos três irmãos. “Foi tudo muitotraumático. Além de estarmos longe da nossa mãe, ainda sofríamos com o estigma de sermos filhosde pais separados.”

Ao completar 14 anos, no início dos anos 60, Eduardo voltou a morar com a mãe. Suas lembrançasdesse tempo não são muito felizes. Um dia mãe e filho foram ao cinema. O protagonista do filmeera um psiquiatra que tratava de criminosos no corredor da morte. Um deles era um pedófilo,assassino de crianças. Assustado, Eduardo diz que caiu no sono como maneira de se proteger. Epôs­sea roncar. “Minha mãe não se comoveu. Simplesmente levantou­se e foi procurar um assentode onde pudesse assistir ao filme sem ser incomodada.”

Eduardo foi o único dos filhos a trabalhar com ela no ateliê. “Lembro­me dos talhos profundos emseus dedos, provocados pela régua de metal e pelo bisturi que usava para cortar as placas e ocompensado. Dos vômitos matinais, de cor negra, por causa do uso de tinta automotiva”, contou,como se ela travasse uma batalha cotidiana.

Um dos momentos que o marcaram, no entanto, foi quando a mãe recebeu o prêmio de melhorescultura nacional da 6ª Bienal de São Paulo, em 1961. “Quando ela ganhou o troféu, tratou logo deexibi­lo ao pai, em Belo Horizonte”, disse. Ele era um sujeito conservador e pragmático, quedesdenhava da arte da filha. “Meu avô dizia que aquilo não era arte, que qualquer funileiro podiafazer o que ela fazia. Ela foi lá só para esfregar o prêmio na cara dele. Depois virou as costas e saiu.”

Em 1973, o crítico Ronaldo Brito começava sua carreira assinando uma coluna no jornal Opinião.Foi quando conheceu Lygia Clark. “Nessa época, ela dizia que não era mais artista e não admitia serchamada como tal. Para ela, essa era uma fase encerrada”, contou. “O que a interessava era seutrabalho como terapeuta.” Na década de 60, ela obtivera reconhecimento internacional. Oconceituado crítico e curador inglês Guy Brett, entusiasta dos neoconcretistas brasileiros,promoveu exposições de alguns desses artistas na galeria Whitechapel, em Londres. Nos anos 70,porém, apesar do sucesso obtido na década anterior, as obras de Lygia Clark haviam praticamentecaído no esquecimento.

Quando Brito decidiu escrever sobre o movimento neoconcreto, teve dificuldades em encontrar asobras da artista. “As pessoas tiravam esculturas de Lygia Clark debaixo da cama, do fundo de umarmário, para serem fotografadas”, recordou. “Naquela época, o neoconcretismo não valia maisnada. Não tinha nenhuma dimensão pública.” O livro de Brito – Neoconcretismo: Vértice eRuptura do Projeto Construtivo Brasileiro – foi lançado no início dos anos 80, pela Funarte. Anosdepois – Lygia já havia morrido –, acabou se transformando numa referência internacional sobre omovimento.

No inverno europeu de 1997, a arte de Lygia Clark voltou à cena mundial, com uma enormeretrospectiva de sua obra organizada pela Fundació Antoni Tàpies, de Barcelona. A exposiçãoabrangia o início de sua carreira, nos anos 50, até a fase dos objetos relacionais. Foi um sucesso de

08/06/2015 A guerra dos Clark | piauí_105 [revista piauí] pra quem tem um clique a mais

http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao­105/anais­das­artes­plasticas/a­guerra­dos­clark 10/16

público e de crítica. Em seguida, a mostra seguiu para Marselha, na França, onde permaneceu porum ano. Depois foi para o Porto, Bruxelas e Rio. “Quem sempre achou que arte brasileira era umacoisa meio Carmem Miranda, espalhafatosa, se surpreendeu ao ver o preto e branco, ominimalismo, a contemporaneidade de Lygia”, explicou Ronaldo Brito.

Depois desse reconhecimento, a família mudaria a forma de se relacionar com o trabalho da artista.A preocupação com a questão bem objetiva do dinheiro por parte dos herdeiros era muitas vezesprejudicial à divulgação da obra.

A primeira evidência disso se deu no relançamento do livro de Ronaldo Brito, pela Cosac Naify.Quando, em 1999, a editora decidiu reeditar a obra, foi imediatamente procurada por Alvaro Clark,interessado em discutir o pagamento de direitos de uso de imagem. Segundo Brito, Alvaro passou afazer reivindicações descabidas. “Pelo que a editora me disse à época, ele pedia um valor abusivopela reprodução de fotos das obras.” A Cosac não concordou com o montante, entrou na Justiça eganhou a causa. “É comum e justo os familiares cobrarem pelo uso de imagem”, explicou Brito. “Sóque esses valores têm um parâmetro internacional, sobretudo quando se trata da reprodução emlivros de estudo.”

De lá para cá, o relacionamento da família com o mercado de arte esteve quase quepermanentemente envolvido em disputas judiciais. Os curadores de museus são os primeiros que seressentem das investidas de Alvaro. Uma das confusões ocorreu em 2000, numa mostra coletivados trabalhos dos neoconcretos, no museu do Paço Imperial, no Centro do Rio. Era um evento depeso: pela primeira vez, em décadas, o público teria contato com o conjunto do trabalho dessesartistas, muitos deles desconhecidos das novas gerações. Os organizadores prepararam um catálogoinformativo com fotos dos autores e suas obras. A família Clark exigiu uma soma tão disparatadapara a cessão do uso de imagem que o museu desistiu de reproduzir o trabalho de Lygia. Ao lado dafoto da artista, havia uma reprodução coberta por uma tarja preta.

Em 2001, com o propósito de proteger e administrar os direitos referentes à obra da artista, osherdeiros criaram a associação O Mundo de Lygia Clark, cujo título foi emprestado de um filme queEduardo dirigiu em 1973. A Alvaro coube a presidência; a Eduardo, a vice­presidência. Os doisfilhos da primogênita falecida também integrariam a associação. A iniciativa foi considerada bem­vinda, pois as peças haviam ficado abandonadas por muito tempo e era fundamental que seprocedesse ao levantamento do acervo. Também havia um grande problema a ser resolvido: como aartista não assinava seus trabalhos, seria necessário criar uma certificação que garantisse aautenticidade das peças tanto aos futuros compradores como aos detentores de algum trabalho deLygia.

Kissla Clark, a neta mais velha da artista, é filha do primeiro casamento de Alvaro (ele está noterceiro). Ao contrário da avó, pequena e morena, ela é uma mulher alta, loura, de grandes olhosverdes. Como a avó, porém, também é dona de uma personalidade exuberante.

Sua relação com o pai é conflituosa. As poucas tentativas de reconciliação resultaram em brigas eduras trocas de acusações. Ela não aprova as exigências que ele faz para que se divulgue a obra daavó. “Ele tem que entender que Lygia é do mundo. Não é propriedade dele”, reclamou, numa tarderecente, durante uma conversa na Gávea, no ensolarado apartamento que divide com o marido etrês gatos. “Isso é um desserviço para a cultura do país e um desrespeito às novas gerações, que não

08/06/2015 A guerra dos Clark | piauí_105 [revista piauí] pra quem tem um clique a mais

http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao­105/anais­das­artes­plasticas/a­guerra­dos­clark 11/16

conhecem o trabalho dela”, argumentou.

Ela reconhece, porém, que a associação O Mundo de Lygia Clark teve um papel importante nosprimórdios da sua atuação. “A certificação das obras limpou o mercado de muitas falsificações”,falou. “A partir daí, no entanto, a associação, por causa do comportamento mesquinho do meu pai,acabou sendo vista como uma turma de encrenqueiros que tinha como único objetivo tirarvantagem em cima do trabalho da minha avó.”

Em 2004, a entidade decidiu recuperar as peças que a família havia cedido ao MAM por ocasião damorte da artista. A briga foi parar na Justiça. Era a primeira causa que o advogado Gustavo Martinsde Almeida, especializado em direitos autorais, representava contra Alvaro Clark e a associação.Numa tarde de março, em seu escritório, Martins rememorou o caso, dispondo sobre a mesa, comoum aide­mémoire, uma pilha de documentos.

Tudo começou quando Alvaro requisitou a Paulo Herkenhoff, então curador do MAM, a devoluçãode todas as peças e documentos retirados da casa da artista. “Eram diários, escritos e alguns objetosrelacionais”, contou o advogado. Não haveria nada de absurdo no pedido, não viesse eleacompanhado de uma multa e da exigência de um pagamento retroativo, referente ao aluguel decada dia em que os objetos ficaram sob custódia do museu. “Era uma coisa tão estapafúrdia que nofinal a associação acabou fazendo um acordo”, contou Martins. “As obras foram devolvidas semnenhum ônus para o MAM.”

Na perspectiva do museu, os documentos eram fundamentais para preservar a memória da artista.Para os herdeiros, uma fonte de dinheiro. Entre o material havia cadernos nos quais Lygiaregistrava a autorização de que fossem feitas até seis versões de cada escultura. A última seria depropriedade dos herdeiros. Para se chegar a essa sexta e derradeira versão, porém, primeiro eranecessário saber quantas versões de cada uma já haviam sido executadas. Não se pode ultrapassar onúmero estipulado pelo artista: além desse limite, a peça vira cópia e perde valor. E mais: se omercado suspeitar que estão sendo produzidas obras fora do número estabelecido, a reputação doartista no mercado pode despencar. Como a associação exigia que proprietários de trabalhos deLygia certificassem as peças, seria possível aferir quantas estavam no mercado e quantas versõeshaviam sido feitas de cada uma. “Essa certificação é muito importante”, disse o advogado GustavoMartins. “O que eu questiono é a forma como ela é feita.” Na França, por exemplo, existe umsindicato com especialistas que atestam a veracidade de cada obra após estudos pormenorizados.No caso da associação O Mundo de Lygia Clark, quem atesta a autenticidade é Alvaro, a ex­mulhere a filha deles.

O Museu de Arte Contemporânea, mac, em Niterói, é um dos últimos projetos monumentais doarquiteto Oscar Niemeyer, morto em 2012, aos 104 anos. O prédio redondo e envidraçado dá aimpressão de uma nave espacial pousada sobre a Baía de Guanabara. Entre outras, ele abriga umadas maiores coleções particulares de artistas brasileiros modernos e contemporâneos, depropriedade do empresário João Sattamini. O colecionador começou a adquirir obras de artistasbrasileiros dos anos 50 e 60, mal tinham entrado em cena. Dono, provavelmente, do maior acervode Lygia Clark do país, Sattamini – e com ele o MAC – tem com Alvaro Clark e a associação umarelação para lá de conturbada.

Luiz Guilherme Vergara, curador do museu desde sua abertura, em 1996, é um homem simpático e

08/06/2015 A guerra dos Clark | piauí_105 [revista piauí] pra quem tem um clique a mais

http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao­105/anais­das­artes­plasticas/a­guerra­dos­clark 12/16

inquieto. Estava em sua sala de trabalho, atordoado com uma série de problemas, num final detarde de março. O ar­condicionado do museu pifara e a entrada do público havia sido vetada, dadoo calorão naquele finalzinho de verão. Essa, no entanto, talvez fosse sua menor dificuldade. Omuseu transpirava decadência: carpete sujo e rasgado, paredes com vazamentos, pinturadesgastada, instalações elétricas arruinadas, quase ninguém circulando. Sattamini ameaçou levarseu acervo para outra instituição disposta a abrigá­lo em condições melhores. Diante da promessada prefeitura de reformar o local, concordou em esperar mais um pouco.

O abandono do prédio, porém, nada tem a ver com as desavenças entre Sattamini e os Clark. Abriga começou em 2006, quando uma exposição com obras de Lygia seria montada paracomemorar os dez anos do MAC. “Eu tive uma ótima conversa com a Sandra e a Alessandra, ecombinamos que faríamos uma longa linha do tempo com a história da artista”, contou Vergara.“Estava tudo preparado quando, na véspera da abertura, a associação O Mundo de Lygia Clarkexigiu que pagássemos pelas fotos que estariam expostas.” Como os valores eram muito altos, omuseu se recusou. A linha do tempo precisou ser coberta por uma enorme tarja preta. O visitantepodia ver as obras expostas, mas não tinha como entender a trajetória da artista. “Foi umaindignidade”, reclamou Vergara. “Eles haviam concordado com tudo e mudaram de ideia na últimahora.”

Alvaro voltou a entrar em conflito com o macno final do ano passado, quando tentou, sem sucesso,embargar a mostra “Lygia Clark: Tudo que é Concreto se Desmancha no Ar”.

Por trás dos episódios há um problema maior. A associação não reconhece a coleção de Sattaminiporque as obras não foram certificadas. O colecionador se recusa a submeter seu acervo à expertisedo grupo. Afirma que não paira dúvida sobre sua autenticidade. Visitei Sattamini na cobertura emque mora, no Jardim Botânico, com uma vista estupenda para as montanhas. Na sala, não háparede ou móvel sem obras de arte. Perguntei­lhe por que se recusava a providenciar a certificaçãodos trabalhos de Lygia Clark. “A associação e o Alvaro não têm gabarito para fazer essa avaliação.Eu sei que as obras são verdadeiras, independentemente do julgamento da família”, disse. Ele asadquiriu ainda nos anos 60, de marchands qualificados, segundo falou, sem especificar quem eram.“Eu não estou nem aí para esses certificados da associação. Se não quiserem aceitar minhas obrascomo verdadeiras, problema deles”, desconversou.

Sem o documento, no entanto, a coleção de Sattamini perde boa parte de seu prestígio. No anopassado, o Museum of Modern Art, o MoMA, em Nova York, organizou a mais completaretrospectiva de Lygia Clark das últimas décadas. A exposição foi um sucesso, com um andar inteirodedicado à artista, apresentando também os objetos relacionais. As peças do colecionador nãopuderam ser expostas.

Em 2013, o MoMA enviou cartas a diversos colecionadores, inclusive a ele, pedindo a cessão dasobras para a mostra. Sattamini obviamente concordou. Para o MAC também seria muito prestigiosoter parte do acervo emprestado ao MoMA. Pouco tempo depois, os curadores americanos,constrangidos, comunicaram ao MAC e ao colecionador que não poderiam exibir as obras.

A exigência para excluir as peças partiu de Alvaro Clark. Segundo Eduardo, o irmão ameaçouprocessar a instituição americana se o acervo de Sattamini integrasse a retrospectiva. Alvaro chegoua dizer que pediria indenização ao MoMA, caso as obras de sua mãe se desvalorizassem por teremsido apresentadas ao lado de trabalhos falsificados. “Vencemos os tubarões do MoMA”, declarouAlvaro num e­mail que enviou a seu advogado em Nova York.

08/06/2015 A guerra dos Clark | piauí_105 [revista piauí] pra quem tem um clique a mais

http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao­105/anais­das­artes­plasticas/a­guerra­dos­clark 13/16

Expor uma obra no Museum of Modern Art é o sonho de todo artista contemporâneo: dificilmenteoutra instituição confere tanto prestígio. Dedicar uma exposição a um só artista é o maior atestadode reconhecimento que o museu pode outorgar. No livro O Tubarão de 12 Milhões de Dólares: ACuriosa Economia da Arte Contemporânea, o canadense Don Thompson faz uma irônica ereveladora radiografia mundial do mercado da arte, mostrando como a marca – do ponto de vistado consumidor – serve para definir o valor de um artista. “Quando o MoMAexpõe a obra de umartista, ele compartilha uma marca, acrescentando à obra uma aura que o mundo artístico chamade procedência. A marca MoMAoferece tranquilidade ao comprador. Uma obra de arte que foiexposta no MoMAou fez parte do seu acervo tem um preço maior devido a sua procedência”,explica Thompson em seu livro.

Passagens de primeira classe, almoços e jantares nos melhores restaurantes de Nova York,participação na escolha das fotos do catálogo, comissão sobre as vendas na loja do museu foramfichinha – as exigências dos Clark ao MoMAeram extensas. Pesados mesmo foram osconstrangimentos sobre os curadores. Alvaro interferiu até na seleção de especialistas brasileirosque poderiam ou não prestar assessoria à exposição.

Lula Wanderley foi um dos que estiveram no MoMAa pedido do curador da mostra, Luis Pérez­Oramas, um venezuelano radicado nos Estados Unidos, responsável por mostras de artistas latino­americanos. Dada sua experiência com os pacientes, seus e de Lygia, Wanderley foi convidado aparticipar da organização dos objetos relacionais. Não pôde ficar para o vernissage. “O LuisOramas, muito sem graça, me chamou de lado e disse que o Alvaro não me queria lá”, contouWanderley. “Acho que ele tem um pouco de ciúme por causa da relação de amizade que eu tinhacom a Lygia. Na verdade, só no fim da vida ela se interessou pelos filhos.”

As dificuldades criadas por Alvaro Clark acabam por atemorizar o mercado expositor. Kissla Clarkcontou que depois do MoMAa retrospectiva iria para Miami. “Cancelaram por medo que meupaicriasse confusão”, disse ela. O crítico de arte Rodrigo Naves, um dos mais respeitados do país, temeos efeitos do comportamento da família, que pode acabar prejudicando a difusão da obra de LygiaClark no exterior. “Existem excelentes artistas do mesmo calibre dela pelo mundo. Por que ummuseu se sujeitaria a expor um artista cuja família cria tantos problemas?”, questionou ele.

O Museu de Arte do Rio, o MAR, inaugurado em março de 2013, rapidamente ganhou relevância nocenário carioca. Seu curador é Paulo Herkenhoff, aquele com quem Alvaro Clark e a associação seindispuseram no passado. Um dos mantenedores do museu é a Fundação Roberto Marinho. Aofinal da retrospectiva do MoMA, cogitou­se levar a exposição para o mar. Hugo Barreto, secretário­geral da fundação, marcou um encontro com os irmãos Clark num restaurante no Leblon.

Eduardo se envergonha ao lembrar aquele dia. “Para começar, Alvaro pediu uma garrafa dechampanhe. Derrubou a bebida sobre o prato de queijo e despejou de volta na taça. Ao final,quando deixávamos o restaurante, deu um pontapé no traseiro do Hugo, tentando ser informal, eainda escreveu um e­mail para ele cujo cabeçalho era ‘chute no traseiro’”, contou. Ninguémcomentou nada com a família, mas Eduardo acredita que o comportamento do irmão tenha sido apá de cal a selar a desistência do museu quanto à retrospectiva. Paulo Herkenhoffnão quis falar à

08/06/2015 A guerra dos Clark | piauí_105 [revista piauí] pra quem tem um clique a mais

http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao­105/anais­das­artes­plasticas/a­guerra­dos­clark 14/16

piauí. A assessoria de imprensa do museu justificou o desinteresse da instituição sob o pretexto deque já havia outras exposições programadas.

Por ora, as questões familiares não afetaram o preço das obras. A Sotheby’s –que compõe, com aChristie’s, a dobradinha de ouro das casas leiloeiras do mundo – vem há algum tempo vendendocom sucesso obras de Lygia Clark e de outros neoconcretistas brasileiros, cujo reconhecimento – epreço – no mercado internacional tem aumentado. O diretor do departamento de arte latino­americana da Sotheby’s, Axel Stein, contou que nos leilões da última década os valores passaram demenos de 100 mil dólares para mais de 2 milhões de dólares. Segundo ele, a brasileira atingiu omesmo patamar de artistas conhecidas, como Frida Kahlo e Leonora Carrington.

Outra mudança significativa, segundo Stein, é a procedência dos compradores. “Há quinze anos,quando os trabalhos dela foram introduzidos em nossos leilões, a maioria dos compradores eramcolecionadores particulares brasileiros”, contou. “Hoje, o mercado de arte está globalizado e oresultado é que aumentou o número de compradores internacionais de olho no trabalho dela, deLondres a Los Angeles.” A marca Sotheby’s vale para um artista quase tanto quanto a de museuscomo o MoMAe o Guggenheim em Nova York, ou a Tate, de Londres. Em seu livro, Don Thompsonexplica que, na arte contemporânea, proceder da Sotheby’s ou da Christie’s é o componente quemais valor agrega a uma obra. São casas que “indicam status, qualidade e lances dados porcelebridades riquíssimas”.

Robert Lacey, em seu livro Sotheby’s – Bidding for Class, registra que “as pessoas dão lances parater classe, para ter seu gosto chancelado”. O fato é que o mercado de arte brasileiro está sevalorizando no mundo. Representante da Sotheby’s no Brasil, Kátia Mindlin Leite Barbosa disseque os neoconcretistas – de um modo geral –, além de artistas contemporâneos, como BeatrizMilhazes e Adriana Varejão, estão ganhando força entre compradores internacionais. Já nomescomo Di Cavalcanti e Portinari costumam despertar maior interesse de colecionadores brasileiros.

Com essa explosão nos preços da obra de Lygia Clark, Eduardo tem motivos para reclamar suaparcela. Segundo ele, as obras retiradas do MAM – que deveriam estar na associação – foram pararna casa de seu irmão, ou da ex­mulher e da filha deles.

No final de março, a briga da família começou a virar caso de polícia.O advogado criminal deEduardo, Fernando Fernandes, contou que seu cliente teve acesso a e­mails de recibos depagamentos que a Alison Jacques Gallery enviou a Alvaro pela venda, em 11 de dezembro do anopassado, da obra Espaço Modulado, de 1958. Valor: 200 mil dólares, que foram transferidos paracontas fora do Brasil. Essa era uma das peças que não constavam da partilha informal efetuada logodepois da morte da artista.

As suspeitas de negócios irregulares não param aí. Em uma troca de e­mail entre a família,Alessandra, a filha de Alvaro, solicita que o pai e o tio parem de usar o nome dela na briga dos dois.E admite que, por causa do pai, sua empresa se transformou numa firma laranja da associação.“Aceitei um pedido de meu pai para que a minha empresa fosse laranja da associação cultural a fimde pagar menos impostos com funcionários usados exclusivamente pela vossa instituição.”

Investiga­se também uma solicitação que Alvaro fez a seu contador, Edirson Bezerra, em MatoGrosso, para providenciar “o nome de vinte compradores com os respectivos cpfs, com recibos no

08/06/2015 A guerra dos Clark | piauí_105 [revista piauí] pra quem tem um clique a mais

http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao­105/anais­das­artes­plasticas/a­guerra­dos­clark 15/16

valor de 30 mil reais, ao longo de 2014”. Para os advogados que atuam em defesa de Eduardo, aintenção de Alvaro seria transferir para compradores fictícios obras de arte que a Justiça haviamandado apreender na sua casa, de forma que pudesse alegar, caso tivesse que devolvê­las, que nãomais lhe pertenciam. Alvaro Clark se recusou a falar à piauí, apesar de pedidos insistentes. Disse,por meio de seu advogado, que o caso está na Justiça e que ele só se manifestará ao final doprocesso.

Nos autos judiciais, Alvaro faz acusações ao irmão. Afirma que Eduardo não tem dinheiro paraarcar com os custos do escritório de Sergio Bermudes, que estariam sendo bancados porcolecionadores interessados em obter certificados de autenticidade assim que ele assumir apresidência da associação, como pleiteiam os advogados. Para evitar que as expertises sejamdistribuídas “indevidamente”, Alvaro destruiu os certificados, fez uma foto dos documentosinutilizados e a anexou ao processo. Com isso, ninguém poderá certificar nenhuma obra sem suaautorização.

No passado, por duas vezes a associação teve problemas com Eduardo. Sob a alegação de queperdera certificados de suas obras, ele requisitou novos, e os obteve. Tempos depois, no entanto,uma galerista de São Paulo enviou à entidade uma obra acompanhada de um dos documentos quesupostamente haviam desaparecido. A associação se recusou a validar a obra, o que originou umgrande bafafá. Um amigo da família contou que pairava a suspeita de que Eduardo cedera umcertificado seu para qualificar uma obra falsa. Eduardo, por seu lado, diz que foi tudo uma tramado irmão. Alega que vendeu uma obra para a galerista Berenice Arvani com um certificado semvalidade porque sua ex­mulher tinha roubado todos os seus certificados. Mas afirma que toda aoperação de venda foi assinada em cartório. Logo depois, segundo ele, a galeria enviou a obra àassociação para que dessem o documento válido. “Era um guache pequeno que nem tinha comofalsificar, mas o Alvaro se aproveitou dessa história para me difamar.”

Nos autos, os advogados de Sandra Brito, ex­mulher de Alvaro, também fazem acusações aEduardo. Depois de aventar a hipótese de que ele seria “um bipolar ou um oportunista”, afirmamque “os motivos que levam Eduardo a vomitar mentiras, difamando os réus e, naturalmente,atingindo e prejudicando a obra e o nome da mãe, são evidentes: falta de dinheiro e excesso dedívidas”.

Para o crítico Ronaldo Brito, a briga em torno da obra de Lygia Clark ilustra um problema maisamplo: “Não temos um patrimônio público de arte brasileira. Com exceção do museu de IberêCamargo, em Porto Alegre, não temos onde ver nossos artistas”, disse ele. “Onde vamos ver umaboa coleção, bem cuidada, dos neoconcretistas, reunindo obras de Lygia Clark, Sergio Camargo,Hélio Oiticica, Lygia Pape, Amilcar de Castro? Onde temos um museu bom de Goeldi, Volpi,Guignard? Onde temos um bom museu que exponha as obras dos modernistas?”, lamentou.

Rodrigo Naves argumenta na mesma linha: “Precisaríamos ter uma fundação Lygia Clark paramostrar ao mundo a qualidade da obra, e não nos resignarmos a que façam isso por nósnasexposições do exterior.” E complementou: “Infelizmente os Clark não estão preocupados comisso. O que eles fazem é cafetinagem da mãe.”

O que se tem no mercado de artes plásticas brasileiro são boas coleções particulares, inacessíveis aopúblico. Para Ronaldo Brito, o Masp, principal museu de São Paulo, seria a prova cabal do descasodo país com as artes plásticas. “O Masp, dono de uma coleção deslumbrante, está totalmentelargado. Se não ligamos nem para o Masp, para o que mais vamos ligar?”, perguntou.

08/06/2015 A guerra dos Clark | piauí_105 [revista piauí] pra quem tem um clique a mais

http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao­105/anais­das­artes­plasticas/a­guerra­dos­clark 16/16

Um caso exemplar dessa indiferença brasileira em relação a seus artistas ocorreu há alguns anos. Ocolecionador paulistano Adolpho Leirner, possuidor de uma coleção admirável sobre oconstrutivismo brasileiro, ofereceu seu acervo a vários museus do país. Nenhum se interessou emcomprá­lo. Leirner acabou fechando negócio com o Museum of Fine Arts de Houston, nos EstadosUnidos, que adquiriu a coleção com o patrocínio de várias empresas. Dentre elas, a Petrobras.