ligya clark breviario sobre o corpo

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    cinho que apaziguou a terra, terra que seraberta um dia por outras mos, para quesejas embrulhado como um presente den-

    tro de uma caixa forrada de cetim e assimpossas aspirar com sossego o mido calordo seu ventre, vulco que se abre numhausto e se fecha como mandbula de ba-leia, pronta para lhe engolir e para lhe incor-porar. As minhas mos tm milhes de anos.So como crateras de terra gretada pelopassar de estaes milenares, com rios cor-rendo dentro, quase na superfcie, veias ondecorre o sangue projetado pelo corao quealimenta todo o meu corpo de oxignio,veias entumecidas, fibrosas, em relevo, els-

    tico e macias como o prprio balo cheiode ar. Veias que se as furssemos, elas pro-vavelmente estourariam como eles e sobra-ria uma carcaa de ossos revestida por umamembrana, papel de seda, verde, azul, ama-relo ou papel de embrulho, pardo, com chei-ro de sebo, gordura e po. Tive de apren-der a us-las muito cedo, pois elas erammuito mais sbias do que o resto do meucorpo. Havia nelas a sabedoria de milharesde anos, mos que cavaram, plantaram, car-regaram pedras, costuraram, que bateram emgestos de extrema violncia, que acariciaram

    em exaltaes supremas. Mos que oraram,que imploraram, que puxaram a corda daforca, que cometeram injustias das maiorese tiveram as maiores complacncias no amor olhos cegos que conhecem pelo tato oredescobrir da pele, dos plos, das gordu-ras, das asperezas, dos ossos, do conheci-mento do pnis, desde onde ele comea aviver at o impondervel do seu limite. Mi-nhas mos no passam de galhos, razesretorcidas, secas, bicho vegetal, animal ouanjo no momento do toque, turquesas nomomento do agarrar-se, alicate no momen-

    to do retirar-se. Mos olhos, mos cheias deolfato, mos que eram as nicas peas inte-ligentes do meu corpo, fora as vsceras deonde brotaram vmitos e haustos de intui-

    es para construir-se a realidade do meumundo. Mos que cavaram a minha perma-nncia no mundo, que abriram a minha pas-

    sagem atravs do novo nascimento depoisda letargia violenta e branda loucura que seestendera por 27 anos. Mos mgicas queno momento da crise da opo tiveram odesejo de, com uma faca, tirar todas as dife-renas dos dois mundos em conflagrao.Mas que tiveram tambm a sabedoria daespera e por um pequeno lapso de tempocompreenderam que, se elas podiam des-

    truir com tal desejo e violncia, poderiamtambm reconstruir este corpo compostode uma cabea alienada, de um corao frou-xo, de um sexo calado, rancoroso e surdo.Mos que andaram nesta ocasio pelo meucorpo, como um carrinho de mo, medin-do-o, analisando-o, afagando-o e trazendoat o meu conhecimento todas as necessi-dades deste corpo at ento inerte e mor-

    to. Mos que passaram pela minha sensuali-dade como um arado, desdobrando, revol-vendo, remexendo, mos que arrumaramminha cabea como uma grande gaveta emdesordem. Mos que redescobriram minhaface no contato do relevo, montanhas mgi-cas, terra rida e cabeluda, spera e macia

    como plaina plantada, ou charco onde pulu-lavam e coaxam sapos, cobras, lagartos, in-setos, larvas e vermes. Mos que se violen-

    taram pelo tremor durante a grande crise,que se ligaram na necessidade de parar osespasmos, nervos descontrolados, decom-postos, desnudos, dana macabra,desequilbrio total, pois tudo o que fora dei-xara de ser e ainda no era nada. Mos quese recusaram a entrar em contato com agua, se compraziam no lodo, no suor, nosangue que escapava dos poros, nesta me-

    tamorfose radical do ser que eu no era,

    ao ser que viria a ser. Mos que se esten-deram para o conhecimento de um Picasso,na avidez de uma procura, j na fase da cons-

    truo, que gastaram todos os livros de co-

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    nhecimento em arte, que passaram em cimade cada linha, de cada forma, de cada espa-o, de cada cor, absorvendo, engolindo, vo-

    mitando o excesso, mos que esboaram osprimeiros desenhos de escadas, que encon-

    traram uma soluo na contradio dos olhose do conhecimento da lgica, para exprimirum espao que nada tinha a ver com o es-pao em que elas viviam. Mos que se des-dobraram pelo avesso, luva da prpria for-ma, na gastura da procura, no o fazer, noo destruir. Mos que alimentavam minhaoralidade, unhas rodas at ao sabugo, a fome

    testemunhada, onde o alimento faltou, nocomeo, de uma maneira quase integral.Mos que no cigarro compensavam a faltado alimento atrasado, da avidez do presen-

    te, da voracidade da vida. Mos que nuncaforam terminadas na sua forma definitiva,mos de criana que pula corda, joga ama-relinha, tira melecas do nariz, mos que pas-searam pelo sexo procura de uma respos-

    ta, que acariciaram sutis annimos na ex-pectativa de um dia preencher aquele vazio,que fugiram medrosas num apelo ou ordem

    para apanhar bolos, mos que tremeram desusto na hora da escrita, mos que cuida-vam dos bichos soltos, que arrancavam vio-lentamente flores carnvoras que traziam obucho cheio de insetos condenados, quecolhiam devagar e cuidadosamente florespara serem cheiradas com uma tal intensi-dade como se as incorporasse. Mos quecavam agora meu tmulo, depois de cons-

    truir meu bero, que desnudam as mentirasditas, pensadas, vividas, que ligam a mim oobjeto, que o afasta do seu uso, instituindo-o na sua potica, que nunca passam a pgi-na de um livro escrito, mas que escrevem edescrevem crculos sem lgebras ou mate-mticas, que ensinam e propem um cami-nhando, que corta este caminhando, en-golindo-o at a imanncia do ato. Que apren-deram a tricotar aos seis anos de idade, a

    Arquitetura biolgicaArquitetura biolgicaArquitetura biolgicaArquitetura biolgicaArquitetura biolgica,

    1968, plstico, dimensesvariveisCol. Famlia ClarkFoto: cortesia Associao Cultural

    O Mundo de Lygia Clark

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    jogar xadrez e pacincia, a ajeitar os traves-seiros debaixo da branca paina da cabeado av recostado, dialogando, brincando,

    contando toda a mitologia que a elas, aosseis anos, parecia um mundo natural e fan-

    tstico; que jogavam os escravos de J, quese agarravam em galhos de rvores, nos pn-dulos do balano, da gangorra para depoisacariciarem os seios da Diana Caadora, es-

    ttua-lustre da sala. Que levavam o peque-no bico do no-seio boca da boneca, quedesnudavam o corpo num confronto diantedos primos do sexo oposto, apostando que

    teria algum significado entre as relaes dos

    vazios e cheios. Mos que foram cosidas jun-tamente com uma camisola feita nesta po-ca para a prima que nascera. Mos que bus-caram os seios da surda-muda e os coloca-ram na boca, escutando o bater precipitadodo seu corao. Mos que abriram portes,que procuravam se evadir com o corpo tododa priso de menina limpa com lao de fitana cabea. Mos que beliscaram de dio ame, que arranharam, jogaram objetos nocho com fria e frenesi para depois, anjode sopro, acariciar um animal perdido. Para

    mais tarde, pegando num machado, dece-par a cabea de um pinto doente e guardarpara sempre da lembrana cncava do seupalmo, a dureza e o peso da arma contra afragilidade do alvo. Que se entrelaarammuitas e muitas vezes numa prece implo-rando perdo pelo pecado que cometeram,ao roubar um santinho colorido, incorpora-do e engolido pela sensualidade desponta-da. Sero mos de gente? No. Bichos soelas na sua forma, na sua pujana, no seu

    nervosismo, na sua prematura velhice, na suasabedoria no ato de criar, acariciar, sentir omundo pela forma, pelo tato, conhecimen-

    to que vai muito alm dos olhos. Marcada

    no antes do depois, j traziam nas palmastodos os distrbios nervosos que se deramno seu tempo, cruzes, redemoinhos, pon-

    tos, constelao de astros, espaos mltiplos,tempo dos atos, certa, forma no-forma.

    II. A boca que se abre num espasmo, dei-xando escapar o grito que anuncia o nasci-mento, no ato de deglutir uma alma, que sefecha voraz no seu cheio correspondenteque o bico do seio, dando imediata fun-o guelra-garganta no ato do engolir, doestmago ao duodeno, dos intestinos quese ondulam como cobras ao nus que ex-pele o alimento digerido mas que no temo poder de expelir o ar expressivo e signifi-cativo que, habitando o corpo, lhe emprestaa identidade do ser. O ato de engolir, espas-mo do peixe fora do seu elemento, mar, pla-centa, tero, oceano csmico envolvente,sono ou morte. Fole que impulsiona o arpara dentro das entranhas, pulmo que dsentido ao corre-corre frentico da vida queformiga num caminhando dirigido desdeas pequeninas veias at as mais importantes,veias de retorno onde a vlvula se abre, oleo-sa, e onde as dobradias so invisveis, chu-

    te, impulso, sacudidela, nervos que coman-

    dam para o crebro toda a sensao do sersendo que foi plantado na vida, no ato do

    transplante, apndice arrancado do troncoprincipal, enxertado na vida, depois de terfurado o grande tnel da vagina, subterr-neo vivo, esgarado num rictus de alegria,alvio e violncia. Gosmas que antes nela secolavam superpostas em camadas so agoraexpelidas no esforo da sobrevivncia, abrin-do passagem para o ar que a penetra, secantedo cu da boca, nadador apressado numacorrida competitiva, mergulhando na gargan-

    ta entre tendes, virgens mastros de ban-deira agora hasteados desfraldando os pul-mes que se deixam folhear em lminas sol-

    tas, envolvidos pelo espao do mundo ex-

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    terior. Boca que fornalha, boca do fornoonde o combustvel varia desde o ar at oaprendizado da palavra, verbo, incio da ex-

    presso da comunicao. Boca onde brotao grito, som que foi modulado, cultivado at formulao do alfabeto, som que ao sairdela, penetra o ouvido e impulsiona a res-posta, o improprio, ou o suspiro do fim,vlvula que vacila no seu ritmo, num desva-rio de pndulo desregulado fora do seu com-passo, at o aquietar do ante-ser que foiexpelido na ltima parcela do ar que o habi-

    tava, encerrando o ciclo do comeo ao fim.Cratera, buraco onde entra a bola de golfeque a se aquieta, onde dorme a larva, tocado bicho que espreita, vagina proprietria dopnis, crie que acoita a dor, ouvido-tnelcondutor do som, umbigo-cicatriz marca re-gistrada do passado uterino da dependnciada guerra do ato do separar-se, fossas nasaisque tomaram para si a rdea da cavalgadado ar que agora penetra no compasso doritmo vital. Boca, antro da lngua, pea so-bressalente que impulsiona desde o ar at apalavra comprimida, cobra no ato do amor,que procura o avesso no parceiro, perdiguei-ro do faro preso por forte corrente de ten-ses que no a deixam submergir no outro.

    A boca que devora para o estmago, para ocrebro, para o amor. A boca que vomita oalimento, a palavra no improprio, o escar-ro no arroto, o canto que som e toda es-cala musical derivada da descoberta. Boca,fronteira onde se esconde a palavra, o dese-

    jo, a fome, que se fecha nesta defesa, arapucaonde o pssaro capturado, rede onde opeixe cercado, curral emparedado pelacerca, roda de gente que completa um cr-culo, anel de compromisso que cerca o dedo.Boca que o abrao da realidade, que comeo espao do mundo, que expele o tdio no

    bocejar que modulado e nela expresso,que passa do certificado do bem-estar aoprocesso da dor aliviada. Sustentada pelosmaxilares, paredes da fbrica da engrena-

    gem dos dentes que irrompem como vul-ces explosivos na medida da sua apario.Dentes, entes inseparveis, geminados na sua

    aproximao, pea nica subdividida em par-celas, trilho por onde o alimento passa, es-magado no contrair do estmago, pntanoagora inundado de gua pronto para afog-los na falta da identidade da mistura. Boloalimentar annimo na sua diferenciao, abs-

    trato no seu aproveitamento, desde o ele-mento gordura ao arranhar das unhas, ge-latinosa consistncia da fruta que so os olhosbanhados em calda, ao fio do cabelo, linhaque costura a fisionomia emoldurando-a, aoplo do sexo, estopa enroscada elstica cheiade eletricidade, ao plo ano dos clios esobrancelhas, patas autnomas de insetos,superpostas em finas camadas, suco das gln-dulas, frutos que se embriagam na sua ma-

    turidade ou passas secas j sem especificaodos hormnios. Boca inventiva que mordebeijando, caranguejo cujos tentculos se fun-dem no parceiro, boca de esqueleto cujaestrutura a armadura sem uso, casca docaramujo cujo vazio expressa a vida que ohabitou. Boca que sopra, chamin da fbrica,de fogo, de vulco, de navio, conseqnciado forno que a alimenta e a faz soltar rugi-

    dos de feras, boca de fera, corao em car-ne viva, impulsionado pela fome. Boca degente-fera que arromba cofres, quebra vi-draas, mata quando h o encontro, ou sedestri quando no h o que roubar. Boca-bico, de mamadeira, de pssaro que se abrena ginstica do bal, da cobra cuja lngua saiem flecha, dos roedores sorridentes cujosdentes se debruam na anedota. A boca dafbula que conta histrias, a boca da histria

    j desdentada, a boca da criana esponja quese embebeda, do bbado, labirinto onde aidentidade se perde, do orador, linha passa-

    da entre cada dente na tentativa da ordemda imagem, da puta onde o palavro adqui-re o brilho frentico do ouro, do homem darua, onde nasce a anedota que corrige a his-

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    tria, do poeta onde predominam os vaziossobre os cheios. Boca escondida pelos bigo-des, sobretudo da sensibilidade, pelas bar-

    bas, cobertor que no respeita o vero, pelolbio leporino, falso arremate da costura vis-

    ta pelo avesso. Boca do mudo, instrumentosem manuseio, liquidao do som expresso,caderno de msica sem pauta, o compassono silncio, cheio de significado. A boca davagina, cuja entrada o emaranhado do xi-

    to, arrolhada no seu avesso pelo hmen, portaarrombada pela forma que a complementa.Caverna que convida a um abrigo potico,onde o silncio vem cheio de propostas e aescurido o esquecimento da autonomiado um.

    III. Meus ps so peas mgicas pois na me-dida em que os vejo, me vem conscinciade que a minha imagem invisvel e esta,eu a percebo. Objetos rasantes que afloram superfcie da terra, suas razes, embora in-visveis, esto plantadas na sua sola, razesestas que se ramificam pelas pernas, tronco,cabea, e so revertidas numa volta e revol-

    ta dentro do corpo, nervos telegrficos queas fazem retornar sua origem, numa batidasurda de cdigo morse. Catalisador sensual,nos d a dimenso do sensorial, toque decampainha no alto ou no baixo, comprimin-do-nos o ventre, dando-nos o alarme dosentir. A sensao do solo abrasado pelo sol,da umidade do lodo, da frescura do verde-clorofila da erva, da argila, do estrume, do

    triturar da areia que cede sob eles na medi-da do passo, do lquido que os afoga nomacio e no veludo. O caminhar no fim da

    tarde, os olhos perdidos na distncia, so oencontro do vazio pleno na sua existncia,parada no tempo, distncia comida pelos ps,asas do corpo, trem que submergido pelo

    tnel, asas de avio que cortam a distnciacomo uma faca, rodas de coche vagarosas,de carro de boi tangentes. De aro de bici-cleta, de borracha abrasante dos pneus, de

    batidas de remos que cavam a gua comoventre aberto por afiada lmina. Toda avivncia do ser transportado, da mquina

    na sua dinmica, rodas gigantes que giramsobre o redondo, mquina de carne que ogesto tritura, batedeira de vitaminas, ventila-dores de p, de assento, ar refrigerado, aporta que se abre e se fecha, o trem quepassa veloz. Cascos de cavalo cujo p fei-

    to de um s dedo, esse revestido por enor-me unha, ps de galinha, mo espalmada,aberta horizontal e chata, o gesto no ociscar, o espasmo no o agarrar-se. H umadistncia to grande entre eles e os meusolhos que eles mais parecem peas autno-mas, seres vindos de outros planetas, espa-o chato na sua rasura, dedos annimos, quese tornam visveis s no ato do corte dasunhas. A criana coloca na boca, arco docorpo que procura uma unidade sem princ-pio nem fim, o engolimos como objeto in-dependente e nesta incorporao nos fun-dimos numa s pea, sem comeo nem fim,experincia primeira da continuidade. A pri-meira brincadeira na infncia, um par, uniodas solas dos ps, o ritmo da roda, primeiroensaio da mquina primeira, da sociabilida-de, do ato de fazer amor, do dar-se o abra-

    o, do eu preciso de um parceiro, da fbricada engrenagem das rodas, do movimento,do ato e da ao. No jogo de pular amareli-nha, o pulo num p s, esforo da sobrevi-vncia da idia, do equilbrio na mutilaodo prprio corpo, do aleijo, do anjo quebusca o equilbrio na forma plana das asas,na busca da vivncia do rabo j incorpora-do, gancho que substitui os ps, ponto deinterrogao sobre o alto e o baixo. Corri-da pea distncia, o p que se nega, que seentrega, que se anula, que renasce comopea falida mas ainda no credirio, que traz

    na sua sola uma fbrica do rir-se e a sensua-lidade do distanciado quando h a aproxi-mao. Ps, base da coluna que o corpo,coluna drica, barroca, jnica, desde a mais

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    delicada arquitetura mais violenta e slidamassa, de granito, de alabastro, de mrmo-re, de gelatina, de seda ou de lixa, em que

    ora predominam os cheios, ora os vazios.Base encravada num solo gretado, sola deboi. Numa louca e fresca vargem, sola decarneiro. Em pedregulhos arquitetnicos,cascos de bode em sinuosos e verdejantescaminhos de folhas, escritura oriental quearremata a barriga das larvas e dos louva-a-deus. Centopia, a magia da automatizaoda engrenagem do ritmo obsessivo. Ps quepularam a cerca para roubar a manga do vi-zinho, que correram espavoridos, quesoergueram uma diminuta arquitetura degalho em galho at o cimo do cu. Que seaproximaram do outro par, de sexo opos-

    to, pisando-o numa linguagem muda, apazi-guando-o e incorporando-o nos seus ner-vos, possuindo-o. Dedos que se esgararamem espasmos para que por entre eles a ni-cotina escapasse, que criaram crostas dedefesa em sua superfcie em forma de cou-raas doloridas, que foram devorados pou-co a pouco pela unha calcificada, cascoroingrato que perdeu o sentido do seu cami-nho. Ps que durante a grande crise come-ram voltas e voltas de caminhandos, nega-

    ram-se a transportar meu corpo, que se aqui-etaram no tremor do descontrole nervoso,entocados na caverna dos cobertores, quese recusaram o meu transportar ao chuvei-ro, onde a gua convidava linguagem dascoisas simples e quotidianas. Que se apare-lha ao lado do outro, para no caminhar en-contrar o significado do par. Ps quesoerguem a barriga grvida no movimentoda larva que trabalha o vulco, da fervura napanela, da onda macia que cobre o peitorilda forma, da bolha de sabo que escapa docanudo, do ar que enche o balo, dos dedos

    que se calam na luva. Desde o comeo, elej traz em si toda a caligrafia da existnciaque o precedeu. Cicatrizes, pregas, rugas,guerras, cataclismos e vulces. Contraponto

    da luta pela sobrevivncia da verticalidade.O n do fio que costura, da corda que amar-ra, da corda que enforca, do cabresto que

    puxa, do chiclete preso entre dentes, da basedo quadrado, princpio da escala numricaanunciada pelo passo. Passo que o pr-prio ritmo, a pausa na msica, o espao en-

    tre a bola que salta e o cho ou do p que achuta, do piscar do gs non, da paisagemque foge diante da janela do trem ou doautomvel, do intervalo do gesto, da ora-o que ultrapassa o entendimento, da somadas parcelas, da flexo dos joelhos, da fuma-a que sobe, da vida que surge vertical doventre da terra. Do passo surdo na madru-gada, do correr alegre da meninada, da ca-dncia do enterro, do compasso do exerc-cio, do batuque da dana. Ps estirados nacama, da gente que dorme ao defunto queacorda. Horizontal, ele ainda aponta para oalto numa linguagem muda e adquire pelaprimeira vez o sentido das mos postas paraa orao, o adeus dos ps ao tronco dacabea, esta abaixo do seu espao, desmoro-nada, degolada, agora espao rasante e chatono contraponto do sono ou da morte.

    IV. O aproximar-se, a no comunicao, odesejo expresso por meio de gestos, o apa-ziguamento do mesmo atravs do ato doamor, o silncio que se segue, o instante doato que se faz objeto, tal o intervalo criadopela impotncia da expresso da comunica-o da palavra. O encontro, a percepo dointeresse mtuo revelado, a atrao da pele,at onde ela ou em si e no do interiorpercebido, no falado ou expresso, onde asabedoria do corpo, ultrapassando o seuprprio meio de aproximao at a promes-sa do psiquismo sugerido mas nunca com-pletado? A revelao das coisas e objetos na

    identificao pura do o percebido, na vi-so primeira do objeto como meio de co-municao? Da pureza reportada infnciacontra o automatismo da palavra, expres-

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    so. Do ser que se deixa reportar datasem data da percepo pura do momento.Do ser criana que bane todos os comple-

    mentos, desde a racionalizao at a dialticaque surgiria conseqentemente numa ex-presso falada, buscando a razo do com-portamento, a razo da aproximao, do di-logo e da procura do incio da formulaoda origem. Palavra, verbo, ncora que segu-ra, cabo que afasta, gesto que aproxima e

    tambm afasta no o querer e no banimentoda solido. O gesto que deglute o ato naimanncia do seu significado. O ato que sesupera sem explicaes, mos que se entre-laam vidas procura de um sentido a dois,

    travesso que liga duas ou mais palavras,corrente que prende a tenso por forte faro,olfato que complementa e perfuma o ins-

    tante do ato, fruta madura, sem razo apa-rente no seu existir, que no se pergunta,que se exprime s no seu existir. O aproxi-mar-se sem o compromisso do tempo, semdata, sem o conceito do futuro, onde preva-lece a sabedoria do estar-sendo. O precrioque dignifica o presente, que rompe com oconceito da continuidade. O ponto da tape-aria que procura o parceiro no fio mais pr-ximo, na escala de uma continuidade vinda

    da origem, a escolha sem regras, o jogo quese abre diante de dois parceiros, cmplicesdiretos da mesma regra, no no sentido com-petitivo mas no da complementao do seusignificado. A alegria do descobrimento domomento percebido, vivido na imanncia dacomunicao to primitiva quanto primria,

    to autntica quanto viva, trazendo em si umsentido nunca antes percebido, dois seressurdos e mudos, num mundo da dialticacontraditria. A potica da substncia do ato,limpa de toda a representao da linguagem.O aproximar-se, o afastar-se, o reaproximar-

    se na medida do desejo, o fluxo e refluxodo mar que cobre a areia, subterrneo daorigem celular, profundidade que ultrapassao ritmo exterior embora se exprima atravs

    dele, que ultrapassa o sentido da beleza pls-tica, bero de uma potica orgnica e biol-gica, cosmognica na sua nica razo de ser.

    Olhos no mar, percepo do ritmo, poticaprojetada a dois, identificada na comunica-o do momento vivido, na razo da apro-ximao, do entendimento da cumplicidadeda emoo, da libido gerada desta mesmacumplicidade. O ritmo da msica que despeo ambiente de toda a sonoridade real, queabstrai o momento deglutindo-o, que amar-ra dois seres por laos invisveis, que propi-cia o entendimento fora de tempo sem com-promissos de datas, que abre perspectivasdentro do absoluto, bocarra que se abrepara, deglutindo, reduzir toda a tendnciada autonomia do ser no um e jog-lo naescala do par, na complementao perfeitados vazios e cheios que se procuram na pe-netrao do desejo incontido que supera adiferenciao dos sexos. O ouvido que seabre para a palavra que no se formula masque invadido pela lngua que o modela noseu interior, a sonoridade da concha onde

    todos os sons irreconhecveis tomam corpoe se materializam atravs dos nervos, numavibrao magntica que sobe flor da pelecomo trepadeira, procurando no o outro

    o suporte do seu existir. A boca que tentase exprimir e no consegue, que se trans-forma em linguagem nela mesma, fazendocom a lngua o vocabulrio do entendimen-

    to, desde a carcia do tato mordida da rai-va, da frustrao ou da provocao. A bocaque treme por no poder se exprimir peloverbo, que tenta articular a palavra num es-foro terrvel e no consegue na impotnciada no sabedoria mas tambm do conheci-mento do que nela estaria inscrito, toma umarealidade nunca antes insuspeitada: de peasobressalente a pea vital, corao do cor-

    po de onde partem todas as potencialidadesdo comando na opo do momento. Polvono ramificar-se, tentativa de abarcamento dosignificado do ser. Boca que se abre e fecha

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    sem que o som se exprima, que engole denovo o significado pronto a ser expresso,peixe que no espasmo perde a conscincia

    do seu habitat e agoniza na percepo doum espao onde o no reconhecimento oinduz ao ritmo frentico da destruio. Aboca que adquire a voracidade da boca-guel-ra do bicho que nasce e procura o seu aves-so na lngua do outro, no pnis, no mamilo ese satisfaz numa oralidade brutal, virgem eprimeira. As mos que complementam odesejo, que sugerem a aproximao efetiva

    tomam a importncia do gesto atpico docego que descobre o mundo atravs do tato.Mos que se transformam em linguagem pura

    sem dialtica, que no complementam masque impem uma realidade que busca nooutro a certeza da identificao de dois se-res no fundo iguais, embora aparentementediferentes, pois o que articulam com a bocano passa de sons dilacerantes na impotn-cia do no exprimir. Mos que sobem e des-cem pelos relevos da arquitetura do corpo,que encontram nos cheios e vazios acomplementao perfeita do par. Mos queproduzem e transmitem o formigamento dosnervos, comeando na superfcie at atingir

    a cratera no seu fundo-forma ainda amorfano comear da cristalizao da porra. Mosque traduzem no gesto toda a formulaodo momento integral, que afasta para a apro-ximao, que foge para aprisionar, que bus-ca atravs do balano da rede um ritmo to-

    tal onde ali se expressa toda a cosmogoniadesde Mozart at a bola impulsionada pelochute no dilogo do corpo com o espao.Mos que dialogam com outras mos pro-cura dos dedos que se entrelaam, engrena-gem da mquina primeira, orao que ultra-passa o entendimento, magia do ritual docorpo, mos que fazem amor primeiro e queneste gesto propem a opo na imannciado ato do amor. Mos que reconhecem a

    fruta madura banhada em calda nos olhosdo outro, a pedra calcinada nas unhas, nosdentes, o veludo da noite da pele, o

    emaranhamento do sexo no plo da estopa,a umidade dos hormnios na umidade dospntanos, mos que do a medida do dese-

    jo que pensamento, mos que no gestoultrapassam a verticalidade do parceiro me-dindo-o, que passeiam sobre o seu corpona entrega do alongar-se, de convulsionar-se, mos que se recolhem na sabedoria daparada, do intervalo, mos que silenciosa-mente se cumprimentam depois da posse,no reconhecimento do desejo cumprido. Ocorpo que passivo se entrega disltica, toma

    uma dinmica coerente com o momento.O corpo que se volta procura da percep-o do instante, que se esconde por detrsdas costas no momento da indagao, que securva como um arco sob a presso do outrocorpo, que se alonga na horizontalidade nomomento da posse, que se debrua sobre simesmo no momento da nusea da no per-cepo, que vomita improprios pela mmi-ca, que se curva no cumprimento da fatali-dade, que se transforma num trilho onde ooutro passa fumegante como uma mquina

    com o seu desejo sobre ele, que se trans-forma num vaso onde o parceiro vai buscara sua origem, momento pleno onde o atovai se concretizar em toda a imanncia daposse. O corpo que no ritual se pe de joe-lhos, expressando assim com toda a reve-rncia de que possudo pelo mistrio dooutro corpo que a ele se oferece: pnis quenum gesto soberbo de sociabilidade se trans-forma num brao estendido pelo prazer deencontrar o outro. O corpo que se trans-forma na prpria vagina, para receber estegesto de entendimento do conhecimento,abrigo potico, onde o silncio vem cheiode propostas e a escurido e o esquecimen-

    to da autonomia do um.

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    Lygia Clark: reedio

    Todo artista um suicida

    Felipe Scovino

    Dialogar com a obra de Lygia Clark teceruma rede que envolve trs instncias: me-mria, obra e uma terceira via resultante dasdobras que so geradas por esses momen-

    tos. Embaralhados, conectados, pulsando econversando incessantemente, esse corpo

    mostra-se to vivo e coerente, que suas de-limitaes so impossveis de ser traadas. Aproduo escrita de Lygia no um meiopara se entender aquela determinada obra. muito mais. prolongamento de sua prti-ca artstica; nesse sentido, so dois planos queno permitem qualquer hierarquizao oudemarcao de espao, mas sim potncia.

    A produo escrita de Lygia volumosa,mas ao mesmo tempo pontual sem sermera descrio de sua obra. Na prtica,essas duas potncias (escrita e obra) de-

    sencadeiam uma fora que no se configu-ra nem fora, nem dentro, mas em perma-nente dilogo, costurando um terreno eprovocando sensibilizaes, mobilidades einfinita criao de possibilidades de apreen-so de seu trabalho. A forma como a obraestava sendo vivida e arquivada por Lygiano separou espaos, pelo contrrio: quan-do essas potncias so combinadas, h umapossibilidade de ativao e multiplicao dosensorial por seu leitor/propositor.

    A questo do vazio e a fragmentao do

    corpo em Lygia so temas recorrentes quepodem ser observados desde os desenhosdas escadas de seu ateli em Paris no incioda dcada de 1950, passando pelos Espaos

    Modulados (1959), Bichos (1959-64),Trepantes(1964), sua fase denominada Nos-talgia do Corpo(1966), os macaces de O eue o tu(1967) e a descoberta pelo toque cegode si prprio no corpo do sexo oposto edesconhecido, at os arquivos de memriado corpo potencializados pela Estruturaodo Self(1976-82). Nesse campo de experi-mentao, o significado dos opostos trans-forma-se em afirmao ou em completude.A escrita de Lygia condiciona-se num mapahabitado por sua obra e memria: suas d-vidas, medos, amores, o parto que ela sim-bolizava toda vez que uma obra nascia ouera criada, a dificuldade financeira, as crisescom a famlia, a dificuldade do mundo daarte em entender sua obra... Todos essesfatores transformam-se em transitoriedadesforadas, silncios, brancos, brados, revoltasque podem ser identificados na fora estti-ca de sua obra. Alm de sua produo ditaplstica, Lygia construiu uma trajetria emque suas vivncias e experincias pessoais

    transpareciam no cerne de suas preocupa-es artsticas e intelectuais. Questionada em1959 por uma jornalista sobre seu trabalhocomo artista plstica, Lygia responde: Todoartista um suicida. Por qu? Porque ele se

    joga inteiro, se arrisca a todos os compro-missos com a superfcie que vai trabalhar. Equando o faz, ele no tem a menor garantiade estar certo naquilo que tenta.1 Lygia no simplesmente uma artista plstica ou oproduto daquilo que esperam que uma ar-

    tista plstica faa. Sua posio de se assumircomo no-artista no poltica, mas pro-fundamente coerente com a trajetria queseu trabalho seguiu: descompromisso comrtulos, frmulas, comrcio ou o belo . Emseus textos, desvendamos uma intelectualcom posies instigantes sobre o modus

    operandido circuito de arte, a vida em Parisou no Rio, a mobilizao da vanguarda cario-ca nas dcadas de 1960 e 1970, sempre comimpressionante agudeza. Lygia era fundamen-

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    talmente uma pesquisadora, e seu objeto, ohomem. Suas tcnicas no eram apenas pls-

    tico, concha, borracha, pedra, gua, flor ou

    semente, mas o conjunto formado por suasaes e sua viso de mundo. As dobrasdessa relao eram o legado de Lygia ou oque absorvamos de suas proposies: aescoletivas que colocavam em xeque nossosdogmas comportamentais ou a relao sub-missa que temos com instituies ou situa-es. Como Clark afirmava, Isso um exer-ccio para a vida. Se a pessoa, depois de fa-zer essa srie de coisas que dou, consegueviver de uma maneira mais livre, usar o cor-po de uma maneira mais sensual, se expres-sar melhor, amar melhor... Isso no fundo meinteressa muito mais como resultado do quea prpria coisa em si que eu proponho avocs.2 As dobras so, portanto, prticasda experincia e memria (lembremosde Deleuze, quando afirma que pensar sempre experimentar, no interpretar, masexperimentar, e a experimentao sem-

    pre o atual, o nascente, o novo; a histriano experimentao, apenas o conjuntodas condies quase negativas que possibili-

    tam a experimentao de algo que escapa histria3 ) que atuam no mesmo espao.Ou, melhor, de um permanente e fronteiri-o em vias de romper. Na dcada de 1960,Lygia sofre um acidente de carro e fica hos-pitalizada. Ligada a um respirador artificial, aforma e o som daquele instrumento que lhesalvou a vida e a acompanhou durante dias revisitado tempos depois na experimen-

    tao da pulsao de Pedra e ar(1966), cujobalano, ao ser manipulado, faz refernciaao pulmo. Vida e obra se complementam.

    O impasse entre as foras do experimentaldirio, documentao e prtica artstica pas-sam a constituir uma nova linha de fora, umforaque deve ser dobrado na medida emque arremessa obra e vida numa redeindivisvel. sobre esses duplos e contras-

    tes, sobre essas linhas de fora e as possibi-lidades de desenvolver sua obra que identi-ficamos a relao intrnseca entre memria,obra e dobra em Lygia Clark no textoBrevirio sobre o corpo, publicado pela lti-ma vez em 1997 no catlogo Lygia Clark,organizado por Manuel Borja-Villel e edita-

    do pela Fundaci Antoni Tpies.

    Felipe Scovino doutor em histria e crtica da arte pelo

    Programa de Ps-Graduao em Artes Visuais (EBA/

    UFRJ) e curador da Associao Cultural O Mundo de

    Lygia Clark.

    NotasNotasNotasNotasNotas

    1 Dantas, Ismnia. Lygia explica sua pintura: todo artista

    um suicida. Dirio Carioca, Rio de Janeiro, 11 out. 1959.

    2 Clark, Lygia. In Scovino, Felipe e Clark, Alessandra (org.). O

    Mundo de Lygia Clark. Rio de Janeiro: Associao Cultu-

    ral O Mundo de Lygia Clark, 2004, s/p.3 Deleuze, Gilles. Conversaes. So Paulo: Editora 34, 1992:

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    Estruturao do selfEstruturao do selfEstruturao do selfEstruturao do selfEstruturao do self, 1976-82Lygia Clark realizando umasesso em seu consultrioe aplicando os objetosobjetosobjetosobjetosobjetosrelacionaisrelacionaisrelacionaisrelacionaisrelacionais

    Foto: cortesia Associao CulturalO Mundo de Lygia Clark

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