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A FONTE GREGA

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A fonte grega da Simone Weil reúne ensaios, artigos e comentários a mais de dez autores gregos. Publicado pela Cotovia.

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Page 1: A Fonte Grega

A FONTE GREGA

Page 2: A Fonte Grega

Título original: La Source Grecque

© Éditions Gallimard 1953

© Edições Cotovia, Lda., Lisboa, 2006

Todos os direitos reservados.

ISBN 972-795-137-6

Page 3: A Fonte Grega

Simone Weil

A Fonte Grega

Estudos sobre o pensamentoe o espírito da Grécia

Tradução de Filipe Jarro

Livros Cotovia

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Índice

PRIMEIRA PARTE

1. A Ilíada, ou o poema da força 9

2. Zeus e Prometeu 41

3. Lamentos de Electra e Reconhecimento de Orestes 45

4. Antígona 57

5. Primavera de Meleagro 63

SEGUNDA PARTE

PLATÃO 67

Deus em Platão 69

Sobre o Teeteto 127

Sobre o Fedro 129

Sobre o Fedro e o Banquete 131

Extractos do Fedro 135

Sobre a República 139

HERACLITO

Fragmentos 143

Deus em Heraclito 155

Notas sobre Cleanto, Ferecides, Anaximandro e Filolau 159

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ORIGEM DOS TEXTOS: “A Ilíada, ou o poema da força” foi escrito em 1939-40 e teriasido publicado na Nouvelle Revue, não fosse a ofensiva alemã; não pôde ser publicado emParis, que estava ocupada, mas foi-o em Marselha, nos Cahiers du Sud (Novembro de1940), sob o nome de Emile Novis, anagrama de Simone Weil. É republicado na mesmapublicação (n.º 284, 1947), depois da guerra, sob o nome verdadeiro da autora.

O fragmento “Zeus e Prometeu” terá sido provavelmente escrito em 1942-43;“Lamentos de Electra e reconhecimento de Orestes” em 1942.

“Antígona” foi publicado antes da guerra (16 de Maio de 1936) numa publicaçãoraríssima (Entre nous, chronique de Rosières).

A tradução de “Primavera” de Meleagro foi encontrada num dos cadernos que aautora deixou em Nova Iorque, quando partiu para Londres em 1942.

“Deus em Platão” e os restantes textos sobre Platão, bem como a tradução dos frag-mentos de Heraclito e a nota “Deus em Heraclito” pertencem aos cadernos redigidos emMarselha e em Nova Iorque entre o final de 1940 e Novembro de 1942.

As notas sobre Cleanto, Ferecides, Anaximandro e Filolao foram escritas em Lon-dres em 1943.

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PRIMEIRA PARTE

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A ILÍADA, OU O POEMA DA FORÇA

O verdadeiro herói, o verdadeiro objecto, o centro da Ilíada, é a força. A força que é manipulada pelos homens, aforça que submete os homens, a força perante a qual a carnedos homens se retrai. Nela a alma humana surge incessante-mente alterada pelas suas relações com a força; arrastada, cei-fada pela força da qual julga dispor, curvada sob o constran-gimento da força que suporta. Aqueles que sonharam que aforça, graças ao progresso, pertencia ao passado, puderam verneste poema um documento; aqueles que sabem discernir aforça, hoje como outrora, no centro de qualquer históriahumana, lá encontram o mais belo, o mais puro dos espelhos.

A força, é o que torna quem lhe é submetido numa coisa.Quando é exercida até ao extremo, faz do homem uma coisano sentido mais literal, porque faz dele um cadáver. Haviaalguém e, num instante, não há ninguém. É um quadro que aIlíada não se cansa de nos apresentar.

… os cavalos

Faziam soar os carros vazios nos caminhos da guerra

Enlutados de seus condutores sem mácula. Eles em terra

Jaziam, mais caros aos abutres que às esposas.1

O herói é uma coisa arrastada atrás de um carro pela poeira:

… Em volta, os cabelos

Negros e esparsos, e toda a cabeça na poeira

1 A tradução dos excertos citados é nova. Cada linha traduz um versogrego, as transposições e encavalamentos são reproduzidos escrupulosa-mente; a ordem das palavras gregas dentro de cada verso é respeitadatanto quanto possível. (Nota de S. Weil)

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Jazia, outrora encantadora; agora Zeus aos seus inimigos

Deixara que a aviltassem em sua terra mãe.

A amargura deste quadro saboreamo-la pura, sem quenenhuma ficção reconfortante o venha alterar, nenhumaimortalidade consoladora, nenhuma baça auréola de glóriaou de pátria.

Fora dos membros voou a sua alma, até Hades,

Chorando a sua sorte, abandonando virilidade e juventude.

Mais pungente ainda, de tal modo o contraste é doloro-so, é a súbita evocação, logo apagada, de um outro mundo,o mundo remoto, precário e comovente da paz, da família,esse mundo onde cada homem é para aqueles que o rodeiamaquilo que conta mais.

Gritava às servas de belos cabelos casa fora

Que junto ao lume dispusessem um tripé, para que houvesse

Para Heitor um banho quente ao regressar do combate.

Ingénua! Não sabia que longe dos banhos quentes,

O braço de Aquiles o vergara, por causa de Atena de olhos verdes.

Estava de facto longe dos banhos quentes, o infeliz. Nãoera o único. Quase toda a Ilíada se passa longe dos banhosquentes. Quase toda a vida humana sempre se passou longedos banhos quentes.

A força que mata é uma forma sumária, grosseira, daforça. Muito mais variada nos seus métodos, mais sur-preendente nos seus efeitos, é a outra força, a que nãomata; ou seja, a que não mata ainda. Vai matar certamen-te, ou vai matar talvez, ou talvez esteja apenas suspensasobre o ser que a todo o instante pode matar; em todocaso, transforma o homem em pedra. Do poder de trans-

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formar um homem em coisa fazendo-o morrer procedeoutro poder, e bem mais prodigioso, o de fazer uma coisade um homem que continua vivo. Está vivo, tem umaalma; é, no entanto, uma coisa. Ser tão estranho, essa coisaque tem uma alma; estranho estado para a alma. Quemdirá quanto deve ela constantemente, para a ele se confor-mar, torcer-se e dobrar-se sobre si própria? Não é feitapara habitar uma coisa; quando a isso é forçada, tudo nelasofre violência.

Um homem desarmado e nu na direcção do qual estávirada uma arma torna-se cadáver antes de ter sido atingido.Por instantes, ainda congemina, age, espera:

Pensava, imóvel. O outro aproxima-se, transido,

Ansioso por tocar os seus joelhos. Queria em seu coração

Escapar da mala morte, do negro destino…

E com um braço cingia-lhe os joelhos suplicando,

Com o outro agarrava a pontiaguda lança…

Mas depressa compreendeu que a arma não se irá des-viar, e, respirando ainda, já é só matéria; ainda pensante jánada pode pensar:

Assim falou esse filho tão brilhante de Príamo

Em termos suplicantes. Responderam-lhe palavras inflexíveis:

...........................................................................................

Disse; ao outro desfalecem coração e joelhos;

Larga a lança e cai sentado, mãos erguidas,

As duas mãos. Aquiles desembainha o agudo sabre,

Golpeia a clavícula, ao longo do pescoço; por inteiro

Mergulha o sabre de dois gumes. Ele, rosto em terra,

Jaz estendido, e o sangue negro corre humedecendo a terra.

Quando, fora de qualquer combate, um estrangeirofraco e sem armas suplica um guerreiro, não é por isso con-

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denado à morte; mas um momento de impaciência porparte do guerreiro seria suficiente para lhe tirar a vida. É osuficiente para que a sua carne perca a principal proprie-dade da carne viva. Um pedaço de carne viva manifesta avida sobretudo pelo sobressalto; uma pata de rã, sob o cho-que eléctrico, salta; o aspecto próximo ou o contacto deuma coisa horrível ou aterrorizadora faz saltar qualquerassociação de carne, nervos e músculos. Mas esse suplican-te não se sobressalta, não estremece; não tem licença paratal; os seus lábios vão tocar o objecto para ele mais carre-gado de horror:

Ninguém viu entrar o grande Príamo. Deteve-se,

Cingiu os joelhos de Aquiles, beijou-lhe as mãos,

Terríveis, assassinas, que tantos filhos lhe tinham massacrado.

O espectáculo de um homem reduzido a este grau deinfelicidade gela mais ou menos como gela o aspecto de umcadáver:

Como quando a desgraça colhe alguém, quando em sua terra

Matou, e que chega à morada de outro,

De algum rico; um arrepio ganha aqueles que o vêem;

Assim estremeceu Aquiles ao ver o divino Príamo.

Também os outros estremeceram, olhando uns para os outros.

Mas é apenas um momento, e cedo a própria presençado infeliz é esquecida:

Disse. O outro, pensando no pai, quis chorá-lo;

Pegando-lhe no braço, empurrou um pouco o ancião.

Ambos se recordavam, um de Heitor assassino,

E caía em lágrimas aos pés de Aquiles, contra o chão;

Mas Aquiles, esse, chorava o pai, e também por vezes

Pátroclo; e os soluços enchiam a morada.

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Não é por insensibilidade que Aquiles, num gesto, ati-rou ao chão o ancião agarrado aos seus joelhos; as palavrasde Príamo lembrando o seu velho pai comoveram-no até àslágrimas. Simplesmente, acha-se tão livre nas suas atitudes,nos seus movimentos, como se aquilo que estivesse a tocar osseus joelhos fosse um objecto inerte, e não um suplicante. Osseres humanos à nossa volta têm, só pela sua presença, umpoder, e que só a eles pertence, de parar, reprimir, alterarcada um dos movimentos que o nosso corpo esboça; umtranseunte não nos faz desviar do caminho numa estrada damesma maneira que uma tabuleta, não nos levantamos, nãoandamos, não nos sentamos no nosso quarto da mesmamaneira quando estamos sós e quando temos um visitante.Mas essa influência indefinível da presença humana não éexercida pelos homens a quem um movimento de impaciên-cia pode retirar a vida antes mesmo que um pensamentotenha tido tempo de os condenar à morte. À sua frente, osoutros movem-se como se não estivessem ali; e eles, por suavez, no perigo em que se encontram de num instante seremreduzidos a nada, imitam o nada. Empurrados caem, caídosficam em terra, enquanto o acaso não leva a que ao espíritode algum venha o pensamento de os erguer de novo. Maspor fim erguidos, honrados com palavras cordatas, que nãose atrevam a tomar a sério essa ressurreição, a ousar expri-mir um desejo; uma voz irritada de seguida os remeteria aosilêncio:

Disse, e o ancião tremeu e obedeceu.

Ao menos os suplicantes, uma vez satisfeitos, voltam aser homens como os outros. Mas há seres mais infelizes que,sem morrer, se tornaram coisas para toda a vida. Não há nosseus dias nenhum jogo, nenhum vazio, nenhum campo livrepara nada que venha deles próprios. Não são homens quevivem mais duramente que outros, colocados socialmente

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mais abaixo que outros; são uma outra espécie humana, umcompromisso entre o homem e o cadáver. Que um ser huma-no seja uma coisa, existe aí, do ponto de vista lógico, umacontradição; mas quando o impossível se tornou uma reali-dade, a contradição na alma torna-se ruptura. Essa coisaaspira a todo o instante a ser um homem, uma mulher, e emnenhum instante o consegue. É uma morte que se estira aolongo de uma vida; uma vida que a morte congelou muitoantes de a suprimir.

A virgem, filha de um padre, sofrerá esse destino:

Não a devolverei. Antes a terá a velhice levado,

Em Argos, nossa morada, longe da sua terra,

Correndo para o tear, vindo para a minha cama.

A jovem mulher, a jovem mãe, esposa do príncipe, so-frê-lo-á:

E talvez um dia em Argos irás tecer o pano para outro

E levarás a água da Mésia ou do Hípere,

Contra tua vontade, sob a pressão doutra necessidade.

A criança herdeira do ceptro real sofrê-lo-á:

Elas irão certamente em porões de navios,

E eu com elas; tu, meu filho, ou comigo

Seguir-me-ás e farás trabalhos aviltantes,

Penando frente a um dono sem doçura…

Tal destino, aos olhos da mãe, é tão temível para a suacriança quanto a própria morte; o cônjuge deseja ter pereci-do antes de ver a sua mulher escravizada; o pai quer lançartodas as calamidades do céu sobre o exército que impõe àsua filha esse destino. Mas naqueles sobre os quais ele seabate, um destino tão brutal apaga as maldições, as revoltas,

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as comparações, as meditações sobre o futuro e o passado,quase a recordação. Não compete ao escravo ser fiel à suacidade e aos seus mortos.

É quando sofre ou morre um dos que lhe fizeram perdertudo, devastaram a sua cidade, massacraram os seus à suafrente, é então que o escravo chora. Porque não? Só entãoapenas as lágrimas lhe são permitidas. São-lhe mesmo im-postas. Mas na servidão, não estão as lágrimas prontas paracorrer logo que possam, impunemente?

Disse chorando, e as mulheres mais gemiam,

A pretexto de Pátroclo, cada uma de seu tormento.

Em nenhum momento o escravo tem licença para expri-mir seja o que for, a não ser aquilo que pode agradar aodono. É por isso que, se numa vida tão morna um sentimen-to pode despontar e animá-lo um pouco, só pode ser o doamor do dono; qualquer outro caminho está vedado ao domde amar, assim como para um cavalo os varais, as rédeas, ofreio barram todos os caminhos excepto um. E se por mila-gre surge a esperança de voltar a ser um dia, por favor,alguém, a que grau não irá chegar o reconhecimento e oamor por homens que um passado ainda tão próximo deve-ria levar a inspirar horror:

Meu esposo, a quem fui oferecida por pai e mãe respeitados,

Vi-o frente à minha cidade varado pelo agudo bronze.

Meus três irmãos, vindos à luz de uma só mãe,

Tão caros! encontraram o dia fatal.

Mas não me deixaste, quando meu marido pelo rápido Aquiles

Foi morto, e destruída a cidade do divino Mines,

Verter lágrimas; prometeste que o divino Aquiles

Me tomaria por mulher legítima e em seus navios me levaria

A Fta, celebrar o casamento entre os Mirmidões.

Assim sem descanso te choro, tu que sempre foste doce.

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Não se pode perder mais do que aquilo que perde oescravo; perde toda a vida interior. Só reencontra um poucodessa vida quando surge a possibilidade de mudar de desti-no. É esse o império da força: um império que vai tão longecomo o da natureza. Também a natureza, quando entram emjogo as necessidades vitais, apaga qualquer vida interior emesmo a dor de uma mãe:

Porque até Níobe de belos cabelos quis comer,

Ela em casa de quem doze filhos pereceram,

Seis filhas e seis filhos na flor da idade.

Eles, Apolo matou-os com seu arco de prata

Na sua fúria contra Níobe; elas, Artémis que ama as flechas.

Pois que se quis igualar a Leto de belas faces,

Dizendo “tem dois filhos; eu dei à luz muitos mais”.

E esses dois, apenas dois, todos mataram.

Eles nove dias jazeram na morte; ninguém veio

Enterrá-los. As pessoas tornaram-se pedras pelo querer de Zeus.

E eles ao sexto dia foram sepultados pelos deuses do céu.

Mas quis comer, quando se cansou das lágrimas.

Nunca se exprimiu com tanta amargura a miséria dohomem, que o torna até incapaz de sentir a sua própriamiséria.

A força manipulada por outro impera sobre a almacomo a fome extrema, quando consiste num poder per-pétuo de vida e de morte. E é um império tão frio, tãoduro como se fosse exercido pela matéria inerte. O homemque em toda a parte é o mais fraco está no meio das cida-des tão só, mais só, que o homem perdido no meio de umdeserto.

Dois tonéis estão dispostos à beira de Zeus,

Onde estão as suas dádivas, malas num, boas noutro…

Aquele a quem faz dádivas funestas, expõe ao ultraje;

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A medonha necessidade afugenta-o pelas terras divinas;

Errante, não recebe estima dos homens nem dos deuses.

Assim impiedosamente a força esmaga, assim impiedo-samente inebria quem a possui, ou crê possuí-la. Ninguém apossui verdadeiramente. Os homens não estão divididos, naIlíada, em vencidos, escravos, suplicantes de um lado, e ven-cedores, chefes, do outro; não se encontra nela um sóhomem que nalgum momento não se veja obrigado a vergarsob a força. Os soldados, embora livres e armados, tambémsofrem ordens e insultos:

O homem do povo que visse e apanhasse a gritar,

Com o ceptro lhe bateria e repreenderia:

“Miserável, tem-te quieto, escuta os outros quando falam,

Teus superiores. Não tens coragem nem força,

Nada vales no combate, e nada na assembleia…”

Tersites paga caro palavras no entanto perfeitamenterazoáveis, e que se parecem com as que Aquiles pronuncia.

Bateu-lhe, ele curvou-se, as lágrimas correram premidas,

Um tumor sangrento formou-se-lhe nas costas

Sob o ceptro dourado; sentou-se e teve medo.

Na dor e no estupor enxugou as lágrimas.

Os outros, em sua mágoa, divertiram-se e riram.

Mas o próprio Aquiles, esse herói orgulhoso, invicto, é--nos mostrado, desde o início do poema, chorando de humi-lhação e de dor impotente, depois que raptaram à sua frentea mulher que queria para esposa, sem que ele ousasse opor-se.

…Mas Aquiles

Chorando sentou-se à parte, longe dos seus,

À beira das ondas que embranqueciam, de olhar posto no mar cor de vinho.

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Agamémnon humilhou Aquiles deliberadamente, paramostrar que é ele quem manda:

… Assim, saberás

Que posso mais que tu, e todos hesitarão

Em tratar-me de igual para igual, e em desafiar-me.

Mas uns dias depois é a vez do chefe supremo chorar,ser forçado a rebaixar-se, a suplicar, e tem a dor de o fazerem vão.

A vergonha do medo também não é poupada a nenhumdos combatentes. Os heróis tremem como os outros. Bastaum desafio de Heitor para que fiquem consternados todosos Gregos sem nenhuma excepção, excepto Aquiles e osseus, que estão ausentes:

Disse, e todos se calaram e guardaram silêncio;

Tinham vergonha de recusar, e medo de aceitar.

Mas logo que Ájax avança, o medo muda de lado:

Os Troianos, um arrepio de terror desfaleceu-lhes os membros;

Ao próprio Heitor saltou o coração do peito;

Mas não podia já tremer, nem refugiar-se …

Dois dias mais tarde, é a vez de Ájax sentir o terror:

Zeus pai, lá de cima, fez crescer o medo dentro de Ájax.

Pára, varado, cobre as costas com o escudo de sete peles,

Treme, olha para a multidão apavorado, como um animal…

O próprio Aquiles chega uma vez a tremer e a gemer demedo, na frente de um rio, é certo, não na frente de umhomem. À excepção de Aquiles, absolutamente todos nossão mostrados vencidos em algum momento. O valor contri-

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bui menos para determinar a vitória do que o destino cego,representado pela balança de ouro de Zeus:

Nesse instante Zeus pai abriu a balança de ouro.

Nela pousou duas sortes da morte que tudo ceifa,

Uma para os Troianos domadores de cavalos, outra para os Gregos

[escudados em bronze.

Ergueu-a, foi o dia fatal dos Gregos que caíu.

A força de ser cego, o destino estabelece uma espécie dejustiça, cega também, que pune os homens armados, com ocastigo do talião; a Ilíada formulou-o muito antes do Evan-gelho, e quase nos mesmos termos:

Ares é imparcial, mata aqueles que matam.

Se todos se destinam à nascença a sofrer a violência, aessa verdade o império das circunstâncias fecha os espíritosdos homens. O forte nunca é absolutamente forte, nem ofraco absolutamente fraco, mas ambos ignoram-no. Não jul-gam pertencer à mesma espécie; nem o fraco se vê comosemelhante ao forte, nem é olhado como tal. Aquele quepossui a força caminha num meio não resistente, sem quenada na matéria humana à sua volta seja de molde a suscitar,entre o impulso e o acto, esse curto intervalo onde se aloja opensamento. Aí onde não cabe o pensamento, não cabem ajustiça ou a prudência. É por isso que estes homens armadosagem duramente e loucamente. A arma enterra-se num ini-migo desarmado a seus pés; triunfam sobre um moribundodescrevendo-lhe os ultrajes que o seu corpo irá sofrer; Aqui-les degola doze adolescentes troianos na fogueira de Pátro-clo tão naturalmente como cortamos flores para umacampa. Ao fazer uso do seu poder, não desconfiam nuncaque as consequências dos seus actos irão vergá-los quandochegar a sua vez. Quando se pode com uma palavra fazer

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calar, tremer, obedecer um ancião, será que se pensa que asmaldições de um padre têm importância para os adivinhos?Será que se evita raptar a mulher amada por Aquiles, quan-do se sabe que ambos, ela e ele, terão de obedecer? Será queAquiles, quando desfruta da fuga dos miseráveis Gregos,pode imaginar que essa fuga, que irá durar e terminar deacordo com a sua vontade, vai fazer perder a vida ao seuamigo e a ele próprio? É deste modo que aqueles a quem aforça é entregue pelo destino, por com ela contarem de-mais, perecem.

Não podem não perecer. Porque não consideram a suaprópria força como uma quantidade limitada, nem as suasrelações com os outros como um equilíbrio entre forças desi-guais. Visto que os outros homens não impõem aos seusmovimentos esse tempo de espera que é a única origem donosso respeito para com os nossos semelhantes, concluemque o destino lhes deu plenos direitos, e nenhuns aos seusinferiores. Vão, por isso, além da força de que dispõem. Vãoinevitavelmente além dela, não sabendo que tem limites.São, então, sem apelo entregues ao acaso, e as coisas já nãolhes obedecem. Às vezes o acaso serve-os; outras vezes pre-judica-os; ei-los nus, expostos à desgraça, sem a armadura depotência que protegia a sua alma, sem mais nada agora queos separe das lágrimas.

Esse castigo de um rigor geométrico, que pune automa-ticamente o abuso da força, foi o primeiro objecto da medi-tação nos Gregos. Constitui a alma da epopeia; sob o nomede Nemésis, é o motor das tragédias de Ésquilo; os Pitagóri-cos, Sócrates, Platão, partiram daí para pensar o homem e ouniverso. A noção tornou-se familiar por toda a parte ondeo helenismo penetrou. Talvez seja esta noção grega que sub-siste, sob o nome de karma, em países do Oriente impreg-nados de budismo; mas o Ocidente perdeu-a e já nem sequertem, em nenhuma das suas línguas, palavra que a exprima;as ideias de limite, de medida, de equilíbrio, que deveriam

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determinar a condução da vida, já só têm um uso servil natécnica. Só somos geómetras perante a matéria; os Gregosforam primeiro geómetras na aprendizagem da virtude.

O desenrolar da guerra, na Ilíada, consiste simplesmenteneste jogo de báscula. O vencedor do momento sente-seinvencível, mesmo que algumas horas antes tenha sofridouma derrota; esquece-se de utilizar a vitória como uma coisaque vai passar. No final do primeiro dia de combate que aIlíada relata, os Gregos vitoriosos poderiam certamente obtero objecto dos seus esforços, ou seja Helena e as suas rique-zas; pelo menos se supusermos, como Homero, que o exér-cito grego tinha razão ao crer que Helena estava em Tróia.Os padres egípcios, que o saberiam, afirmaram mais tarde aHeródoto que ela se encontrava no Egipto. Em qualquercaso, nessa noite, os Gregos já não a querem:

“Não se aceitem agora nem os pertences de Páris,

Nem Helena; todos vêem, mesmo o mais ignorante,

Que Tróia está agora à beira do seu fim.”

Disse. E todos os Aqueus o aclamaram.

Aquilo que eles querem é nada menos que tudo. Todasas riquezas de Tróia por despojos, todos os palácios, os tem-plos e as casas por cinzas, todas as mulheres e todas as crian-ças por escravos, todos os homens por cadáveres. Esquecemum detalhe; é que nem tudo está em seu poder; porque nãoestão dentro de Tróia. Talvez amanhã lá estejam; talvez não.

Heitor, no próprio dia, deixa-se levar pelo mesmo esque-cimento:

Porque isto sei em minhas entranhas e no coração;

Virá o dia em que perecerá a santa Ílion,

E Príamo, e a nação de Príamo de boa lança.

Mas não penso tanto na dor dos Troianos que se avizinha,

Em Hécuba, no rei Príamo,

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Em meus irmãos tão numerosos e bravos,

Que cairão em terra com os golpes do inimigo,

Antes em ti, quando um dos Gregos couraçado de bronze

Te arrastará em lágrimas, roubando-te a liberdade.

............................................................................................

Mas eu, que morra e que a terra me encubra

Antes que te ouça gritar, que te veja arrastada!

O que não daria ele nessa altura para afastar os horroresque julga inevitáveis? Mas só em vão pode oferecer aquilo queoferece. Dois dias depois, os Gregos fogem miseravelmente, eo próprio Agamémnon gostaria de poder embarcar. Heitor,que, cedendo pouco, obteria então facilmente a partida doinimigo, nem sequer lhe permite partir de mãos vazias:

Façam-se fogueiras por toda a parte, e que o luzeiro suba aos céus

Com receio que de noite os Gregos de longos cabelos

Para fugir se atirem ao grande dorso dos mares…

Que cada um reflita nisto em sua casa,

.......................................................... para que o mundo inteiro receie

Levar até aos Troianos domadores de cavalos a guerra que faz chorar.

Realizou-se o seu desejo; os Gregos ficam; e no diaseguinte, ao meio-dia, fazem de Heitor e dos seus um objec-to lamentável:

Eles, pela planície fugiam como vacas

Que um leão afugenta, na calada da noite…

Assim os perseguia o poderoso Atrida Agamémnon,

Matando o último continuamente; eles, fugiam.

No decorrer da tarde Heitor retoma a vantagem, depoisvolta a recuar, de seguida põe os Gregos em debandada, e éentão travado por Pátroclo e pelas suas tropas frescas. Pá-troclo, aproveitando a vantagem para além das suas forças,

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acaba por se achar desprotegido, sem armadura e ferido,perante a espada Heitor e, ao fim da tarde, Heitor vitoriosoacolhe com duras críticas o conselho prudente de Poli-damas:

“Agora que recebi do matreiro filho de Cronos

A glória junto aos navios, impelindo os Gregos ao mar,

Imbecil! Não dês tais conselhos frente ao povo.

Nenhum Troiano te dará ouvidos; não o permitirei.”

Assim falou Heitor, e os Troianos aclamaram-no…

No dia seguinte Heitor está perdido. Aquiles fê-lo recuarem toda a extensão da planície e vai matá-lo. Sempre foi omais forte dos dois em combate; mais ainda após váriassemanas de descanso, levado pela vingança e a vitória, con-tra um inimigo esgotado! Eis Heitor sozinho frente aos mu-ros de Tróia, completamente só, esperando a morte e ten-tando convencer a sua alma a enfrentá-la.

Ai! se passasse para lá da porta e da muralha,

Polidamante primeiro me encheria de vergonha…

Agora que por loucura minha perdi os meus,

Temo os Troianos e as Troianas de longos véus

E ouvir dizer por menos bravos que eu:

“Heitor, muito confiante em sua força, deixou o país perdido.”

Se no entanto eu pousasse o meu escudo arqueado,

A minha boa máscara, e, encostando a lança à muralha,

Me dirigisse para o ilustre Aquiles, ao seu encontro?...

Mas porque me dá o coração estes conselhos?

Não me chegarei a ele; não teria piedade,

Nem deferência; matar-me-ia, posto assim a nu

Como uma mulher…

Heitor não escapa a nenhuma das dores e das vergonhasque são o quinhão dos infelizes. Só, despido de todo o pres-

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tígio da força, a coragem que o manteve fora dos muros nãoo preserva da fuga:

Heitor, quando o viu, foi tomado por tremores. Não conseguiu

Ali permanecer…

… Não é por uma ovelha ou por uma pele de vaca,

Recompensas habituais da corrida, que eles se esforçam;

Correm por uma vida, a vida de Heitor domador de cavalos.

Ferido de morte, ainda aumenta o triunfo do vencedorcom súplicas vãs:

Imploro-te pela tua vida, pelos teus joelhos, pelos teus pais…

Mas os ouvintes da Ilíada sabiam que a morte de Heitoriria dar uma curta alegria a Aquiles, e a morte de Aquilesuma curta alegria aos Troianos, e o aniquilamento de Tróiauma curta alegria aos Aqueus.

Assim a violência esmaga aqueles que toca. Acaba porparecer exterior àquele que a manipula como àquele que asofre; nasce então a ideia de um destino sob o qual carras-cos e vítimas são igualmente inocentes, os vencedores e osvencidos irmãos na mesma miséria. O vencido é causa dedesgraça para o vencedor, assim como o vencedor para ovencido.

Um único filho teve, para uma vida curta; e esse,

Envelhece longe dos meus cuidados, porque distante da pátria

Fico perante Tróia magoando-te, a ti e aos teus filhos.

Um uso moderado da força, que permitiria sair daengrenagem, exigiria uma virtude mais do que humana, tãorara como a constante dignidade na fraqueza. De resto, a

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moderação também não está isenta de perigo; porque oprestígio, que constitui mais que três quartos da força, éfeito sobretudo da magnífica indiferença do forte pelo fraco,indiferença tão contagiosa que se transmite àqueles que sãoo seu objecto. Mas não é habitual ver um pensamento polí-tico aconselhar o excesso. A tentação do excesso é que équase irresistível. Por vezes certas palavras razoáveis sãopronunciadas na Ilíada; as de Tersites são-no ao mais altograu. As de Aquiles irritado são-no também:

Nada tem o valor da minha vida, nem todos os bens que se diz

Existirem em Ílion, a cidade tão próspera…

Podem-se conquistar os bois, as gordas ovelhas…

Mas uma vida humana, quando se foi, já não se reconquista.

Mas as palavras sensatas caem no vazio. Se um inferior aspronunciar, é punido e cala-se; se for um chefe, a elas depoisnão conforma os seus actos. E se necessário existe sempre umDeus para aconselhar a insensatez. Por fim, a própria ideia deque se pode querer escapar a essa ocupação que o destinoreparte, a de matar e morrer, desaparece do espírito:

… nós a quem Zeus

Desde novos obrigou, até à velhive, a penar

Em dolorosas guerras, todos perecendo até ao último.

Já estes combatentes, como os de Craonne tanto tempodepois, se sentiam “todos condenados”.

Caíram nesta situação pela armadilha mais simples. Àpartida, o seu coração é leve como quando se tem para si umaforça e contra si o vazio. As suas armas estão nas suas mãos;o inimigo está ausente. Excepto quando se tem a alma assom-brada pela fama do inimigo, é-se sempre muito mais forteque um ausente. Um ausente não impõe o jugo da necessida-de. Nenhuma necessidade surge ainda no espírito dos que

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assim se vão, e é por isso que se vão como se fossem para umjogo, como para uma licença longe das obrigações diárias.

Para onde foram as nossas gabarolices, nós tão bravos,

Essas que em Lemnos vaidosamente declamáveis,

Fartando-vos da carne dos bois de chifres direitos,

Bebendo por taças que transbordavam de vinho?

Que a cem ou duzentos desses Troianos cada um

Faria frente no combate; e eis que um deles é demais para nós!

Mesmo depois de experimentada, a guerra não deixaimediatamente de parecer um jogo. A necessidade própriada guerra é terrível, muito diferente daquela ligada aos tra-balhos da paz; a alma só se lhe submete quando já não lhepode fugir; e enquanto lhe consegue fugir passa dias des-providos de necessidade, dias de jogo, de sonho, arbitráriose irreais. O perigo é então uma abstracção, as vidas que sãodestruídas são como brinquedos quebrados por uma crian-ça e são do mesmo modo indiferentes; o heroísmo é umapose de teatro e está maculado pela gabarolice. Se, ainda porcima, por instantes um afluxo de vida vem multiplicar apotência de agir, julgamo-nos irresistíveis em virtude de umaajuda divina que garante contra a derrota e a morte. A guer-ra então é fácil e amada vilmente.

Mas para a maior parte este estado não dura. Chega umdia em que o medo, a derrota, a morte dos companheirosamados verga a alma do combatente à necessidade. A guer-ra cessa então de ser um jogo ou um sonho; o guerreirocompreende por fim que ela existe realmente. É uma reali-dade dura, duríssima demais para poder ser suportada,porque encerra a morte. O pensamento da morte não podeser suportado senão por rasgos, logo que se sente que amorte é de facto possível. É certo que qualquer homemestá destinado a morrer, e que um soldado pode envelhecernos combates; mas para aqueles cuja alma está sob o jugo

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da guerra, a relação entre a morte e o futuro não é a mesmaque para os outros homens. Para os outros a morte é umlimite ao futuro imposto com antecedência; para eles é opróprio futuro, o futuro que lhes é atribuído pela sua pro-fissão. Que homens tenham por futuro a morte, é algo con-tra natura. Logo que a prática da guerra tornou sensível apossibilidade de morte que cada minuto encerra, o pensa-mento torna-se incapaz de passar de um dia ao dia seguin-te sem atravessar a imagem da morte. O espírito sofreentão uma tensão que só suporta por pouco tempo; mascada nova aurora traz a mesma necessidade; os dias acres-centados aos dias fazem anos. A alma é violentada todos osdias. Todas as manhãs a alma mutila-se de toda a aspiração,porque o pensamento não pode viajar no tempo sem pas-sar pela morte. Assim, a guerra apaga qualquer ideia deobjectivo, mesmo a ideia dos objectivos da guerra. Apaga opróprio pensamento de pôr termo à guerra. A possibilida-de de uma situação assim tão violenta é inconcebívelenquanto não a vivemos; o fim é inconcebível quando nelanos encontramos. Por isso nada se faz que conduza a essefim. Os braços não podem deixar de segurar e de manipu-lar armas na presença de um inimigo armado; o espíritodeveria congeminar para encontrar uma saída; perdeu qual-quer capacidade de congeminar o quer que seja nesse senti-do. Está inteiramente ocupado em violentar-se. Sempre,entre os homens, quer se trate de servidão ou de guerra, asdesgraças intoleráveis duram pelo seu próprio peso e pare-cem, assim vistas de fora, fáceis de carregar; duram porqueretiram os recursos necessários para delas sair.

No entanto, a alma sujeita à guerra grita por liberta-ção; mas a própria libertação revela-se-lhe sob uma formatrágica, extrema, sob a forma da destruição. Um fimmoderado, razoável, deixaria a nu, para o pensamento,uma desgraça tão violenta que nem como recordação podeser suportada. O terror, a dor, o esgotamento, os massa-

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cres, os companheiros destruídos, não se julgue que todasessas coisas possam deixar de morder a alma se a embria-guez da força não tiver vindo afogá-las. A ideia de que umesforço sem limites só teria trazido um lucro nulo ou limi-tado dói:

O quê? Deixar Príamo, os Troianos, gabarem-se

Da Argiva Helena, por quem tantos Gregos

Frente a Tróia morreram longe da terra mãe?...

O quê? Desejas que a cidade de Tróia de largas ruas

Aqui a deixemos, por quem sofremos tantas desgraças?

O que importa Helena para Ulisses? O que importa mes-mo Tróia, cheia de riquezas que não compensarão a ruína deÍtaca? Tróia e Helena importam apenas como causas do san-gue e das lágrimas dos Gregos; é ao tornarmo-nos donosdelas que podemos tornar-nos donos de recordações terrí-veis. A alma, obrigada pela existência de um inimigo a des-truir em si aquilo que a natureza lá tinha deixado, julgapoder sarar apenas pela destruição do inimigo. Ao mesmotempo, a morte dos companheiros bem-amados suscita umasombria emulação de morrer:

Ah, morrer já, se o meu amigo teve

De sucumbir sem meu socorro! Longe da pátria

Pereceu, e não me teve para afastar a morte…

Agora parto em busca do assassino de tão querida cabeça,

Heitor; a morte, irei recebê-la quando

Zeus a quiser mandar, e todos os outros deuses.

O mesmo desespero leva então a perecer e a matar:

Sei bem que o meu destino é de aqui morrer,

Longe de meu pai e minha mãe amados; mas no entanto

Não cessarei antes que os Troianos recebam toda a guerra.

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O homem habitado por esta dupla necessidade de mortepertence, enquanto não se tornar outro, a uma raça diferen-te da raça dos vivos.

Que eco poderá encontrar, em tais corações, a tímida aspira-ção da vida, quando o vencido suplica que lhe permitam voltar aver o dia? Já a posse das armas por um lado, a privação das armaspor outro, tiram a uma vida ameaçada quase toda a importância;e como poderia, aquele que em si destruíu o pensamento deque ver a luz é suave, respeitá-lo nesse lamento humilde e vão?

Estou a teus pés, Aquiles; tem respeito, tem piedade;

Estou aqui como um suplicante, oh filho de Zeus, digno de respeito.

Porque em tua casa comi pela primeira vez o pão de Deméter,

Nesse dia em que me capturaste no meu pomar bem tratado.

E vendeste-me, enviando-me para longe do meu pai e dos meus,

Para a santa Lemnos; por mim ofereceram-te uma hecatombe.

Fui comprado pelo triplo; hoje esta aurora é para mim

A décima-segunda, desde que regressei a Ílion,

Depois de tantas dores. Eis-me novamente em tuas mãos

Por um destino funesto. Devo ser odioso para Deus pai,

Se assim a ti me entrega novamente; para pouca vida

Minha mãe me deu à luz, Laótoe, filha do ancião Altos…

Que resposta recebe esta fraca esperança!

Então, amigo, morre tu também! Porque tanto te lamentas?

Também ele morreu, Pátroclo, e valia bem mais que tu.

E eu, nâo vês como sou alto e belo?

Sou de nobre raça, tenho por mãe uma deusa;

E sobre mim também estão a morte e o duro destino.

Será a aurora, ou a noite, ou o meio do dia,

Quando também, pelas armas, me arrancarão a vida…

É necessário, para respeitar a vida em outrem quandonos tivemos de mutilar de qualquer aspiração de viver, um

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esforço de generosidade que despedaça o coração. Não sepode imaginar nenhum dos guerreiros de Homero capazde tal esforço, a não ser talvez aquele que de certa maneirase encontra no centro do poema, Pátroclo, que “soube sersuave com todos”, e na Ilíada não comete nada de brutal oude cruel. Mas quantos homens conhecemos, em váriosmilhares de anos de história, que demonstraram tão divinagenerosidade? Não sei se se poderão nomear dois ou três.Sem essa generosidade, o soldado vencedor é como umacalamidade da natureza; possuído pela guerra, não é maisque um escravo, embora de um modo muito diverso, tor-nado em coisa, e as palavras são sem poder sobre ele, comosobre a matéria. Os dois, ao contacto da força, sofrem o seuefeito infalível, que é o de tornar surdos ou mudos aquelesque toca.

Tal é a natureza da força. O poder que possui detransformar os homens em coisas é duplo e exerce-se dedois lados; petrifica diferentemente, mas igualmente, asalmas daqueles que a sofrem e daqueles que a manipulam.Esta propriedade atinge o grau mais elevado no meio dasarmas, a partir do momento em que uma batalha seorienta para uma decisão. As batalhas não se decidementre homens que calculam, combinam, tomam uma reso-lução e a executam, mas entre homens despidos dessasfaculdades, transformados, caídos ao nível quer da maté-ria inerte que é só passividade, quer das forças cegas quesão apenas impulso. É esse o último segredo da guerra, ea Ilíada exprime-o com as suas comparações, onde guer-reiros surgem como iguais ao incêndio, à inundação, aovento, aos animais ferozes, a qualquer causa cega dedesastre, sejam animais medrosos, árvores, água, areia,tudo aquilo que é movido pela violência das forças exte-riores. Gregos e Troianos, de um dia para o outro, por

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vezes de uma hora para a outra, sofrem alternadamenteuma e a outra transmutação:

Como vacas assaltadas por um leão que quer matar,

Num prado pantanoso e vasto pastando

Aos milhares…; todas tremem; assim então os Aqueus

Em pânico foram afugentados por Heitor e Zeus pai,

Todos…

Como quando o fogo destruidor cai no espesso de um bosque;

Por todo o lado o leva o vento; então os troncos,

Arrancados, caem debaixo do fogo violento;

Assim o Atrida Agamémnon fazia cair as cabeças

Dos Troianos que fugiam…

A arte da guerra é apenas a arte de provocar tais trans-formações, e o material, os métodos, a própria morte infligi-da ao inimigo são simples meios para tal; o seu verdadeiroobjecto é a alma dos combatentes. Mas estas transformaçõesconstituem sempre um mistério, e os deuses são os autores,eles que movem a imaginação dos homens. Seja como for,esta dupla propriedade de petrificação é essencial à força, euma alma colocada em contacto com a força só por umaespécie de milagre consegue dela escapar. Tais milagres sãoraros e breves.

A ligeireza daqueles que manipulam sem respeito oshomens e as coisas que têm, ou julgam ter, à sua mercê, odesespero que força o soldado a destruir, o esmagamento doescravo e do vencido, os massacres, tudo contribui para umquadro uniforme de horror cujo único herói é a força. Oresultado seria uma morna monotonia se não houvesse,espalhados aqui e ali, momentos luminosos, momentos bre-ves e divinos em que os homens têm uma alma. A alma queassim desperta, durante alguns instantes, para logo depois seperder sob o império da força, essa alma desperta pura eintacta; não surge nela nenhum sentimento ambíguo, com-

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plicado ou turvo; só cabem nela a coragem e o amor. Porvezes um homem encontra assim a sua alma deliberandoconsigo, quando tenta, como Heitor frente a Tróia, sem aajuda dos deuses ou dos homens, enfrentar o destino sozi-nho. Os outros momentos em que os homens encontram asua alma são aqueles em que amam; quase nenhuma formapura de amor entre os homens está ausente da Ilíada.

A tradição da hospitalidade, mesmo após várias gera-ções, sobrepõe-se à cegueira do combate:

Sou então para ti um hóspede amado no seio de Argos…

Evitemos as lanças um do outro, mesmo na refrega.

O amor do filho pelos pais, do pai, da mãe pelo filho, éconstantemente referido de maneira curta e comovente:

Respondeu ela, Tétis, derramando lágrimas:

“Nasceste-me para uma curta vida, meu filho, se assim falas...”

Assim o amor fraterno:

Meus três irmãos, que uma só mãe me dera à luz,

Tão queridos…

O amor conjugal, condenado à desgraça, é de uma pure-za surpreendente. O esposo, evocando as humilhações daescravidão que esperam a mulher amada, omite aquela cujasimples recordação sujaria de antemão essa ternura. Nadatão simples como as palavras dirigidas pela esposa àqueleque vai morrer:

… Melhor seria para mim,

Se te perder, estar debaixo de terra; não terei

Outro recurso, quando encontrares o teu destino,

Só terei dores…

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Não menos comoventes são as palavras dirigidas aoesposo morto:

Meu esposo, morreste antes de tempo, tão jovem; e eu, tua viúva,

Deixas-me só em minha casa; o nosso filho ainda tão pequeno

Que tivemos tu e eu, infeliz. E não penso

Que se torne crescido algum dia…

..............................................................................................................

Porque ao morrer não me estendeste as mãos de tua cama,

Não disseste uma palavra sábia, que para sempre

Nela pudesse pensar ao verter lágrimas.

A mais bela amizade, a amizade entre companheiros decombate, é tema para os últimos cantos:

… Mas Aquiles

Chorava, pensando no bem amado companheiro;

Não o tomou o sono, que tudo doma; virava-se e voltava a virar-se…

Mas o triunfo mais puro do amor, a graça suprema dasguerras, é a amizade que sobe ao coração dos inimigos mor-tais. Faz desaparecer a fome de vingança pelo filho morto,pelo amigo morto, apaga com um milagre ainda maior a dis-tância entre benfeitor e suplicante, entre vencedor e vencido:

Mas quando foi estancado o prazer de beber e de comer,

Então o Dardânida Príamo pôs-se a admirar Aquiles,

Quanto era alto e belo; tinha o rosto de um deus.

E por sua vez o Dardânida Príamo foi admirado por Aquiles

Que olhava para o seu belo rosto e escutava as suas palavras.

E quando se saciaram da contemplação um do outro…

Estes momentos de graça são raros na Ilíada, mas sãosuficientes para fazer sentir com extremo pesar aquilo que aviolência faz e fará perecer.

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No entanto, uma tal acumulação de violências seria friasem um tom de incurável amargura que se faz continua-mente sentir, embora indicado frequentemente numa sópalavra, muitas vezes mesmo por uma divisão do verso emduas linhas. É por isso que a Ilíada é uma coisa única, poresta amargura que procede da ternura, e que se estende atodos os humanos, igual como o brilho do sol. O tomnunca deixa de estar impregnado de amargura, tambémnunca se rebaixa até ao lamento. A justiça e o amor, quepouco lugar podem ter neste quadro de extremos e deinjustas violências, banham-no com a sua luz sem nuncaaflorarem a não ser pelo tom. Nada de precioso, destinadoa perecer ou não, é desprezado, a miséria de todos é expos-ta sem fingimento nem desdém, nenhum homem é postoacima ou abaixo da condição comum a todos os homens,tudo aquilo que é destruído é lamentado. Vencedores evencidos estão igualmente próximos, são, com igual direi-to, semelhantes ao poeta e ao ouvinte. Se existe uma dife-rença, é a de a desgraça dos inimigos ser talvez sentida maispenosamente.

Assim ali caiu, adormecido num sono de bronze,

O infeliz, longe da esposa, defendendo os seus…

Que tom para evocar o destino do adolescente vendidopor Aquiles em Lemnos!

Onze dias alegrou o coração junto àqueles que amava,

Regressando de Lemnos; no décimo-segundo novamente

Às mãos de Aquiles Deus o entregou, ele que tinha

De o enviar a Hades, apesar de não querer partir.

E o destino de Euforbo, aquele que só viu um dia de guerra:

O sangue banha os seus cabelos com os cabelos das Graças parecidos…

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