a tragÉdia grega (de lucia helena)
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A TRAGÉDIA GREGA
Lúcia Helena
Escrito inicialmente para integrar um ciclo de palestras sobre a evolução
do teatro, este texto destinava-se a um público heterogêneo. Daí seu caráter
introdutório, e a busca, proposital, de submetermos a informação e a discussão
teórica ao crivo da comunicabilidade. Quando do convite para a publicação,
optamos por manter o tom da comunicação original, tendo em vista a
inexistência desse tipo de trabalho, no que concerne à questão que nos coube
expor. Contudo, apesar deste objetivo para-didático, procuramos não nos
descuidar de um nível de rigor, de preocupação metodológica e de atualização
teórica que consideramos imprescindíveis.
Nosso texto tem em vista abordar a questão da tragédia grega em dois
níveis: primeiramente, busca esclarecer a que mundo, histórica e socialmente
nos referimos quando falamos em tragédia grega; em segundo lugar, a que
temas, autores e procedimentos específicos nos reportamos, quando falamos
de tragédia.
Em trabalho já traduzido, Jean-Pierre Vernant[1] observa que se pode
falar em três momentos fundamentais do mundo grego: o período micênico, a
invasão dórica, e a formação da pólis e do pensamento racional.
O primeiro momento - o período micênico – corresponde aos séculos
XVI a XII a.C. Nele se dá o florescimento de uma sociedade ligada às grandes
civilizações do Mediterrâneo oriental, e integrada ao mundo do oriente. Foi uma
época de apogeu do mundo palaciano e aristocrático, fundada no mito, e que
encontra na figura do rei divino a concentração dos poderes religiosos,
econômicos, militares, políticos e administrativas. O soberano absoluto
habitava o solar micênico, uma fortaleza cercada de muros, que tinha ao centro
a sala do trono. O solar situava-se numa região alta, de onde se fiscalizava o
espaço pleno que se estendia a seus pés. Até na arquitetura e na topografia da
casa real, se “escrevia” a forma típica desse poder. Ao lado da casa do
príncipe, ainda dentro da fortaleza, era costume construir-se a casa dos
familiares do rei, dos militares e dos altos dignitários do poder. É bem explícito
o papel militar desse solar micênico: sua função é defensiva, e vinculada á
proteção do teatro real. Ao rei divino chamavam ánax, e ele se apoiava numa
aristocracia guerreira. Tinha-se já a posse da escrita, apenas conhecida pelos
escribas a serviço do ánax, e destinada à constituição de seus arquivos e a
administração de seus bens.
O segundo momento - a invasão dórica - ocorre par volta do século XII
a.C., e se caracteriza por promover a destruição da estrutura palaciana. Diz
Vernant:
É todo esse conjunto que a invasão dórica destrói. Rompe, por longos
séculos, os vínculos da Grécia com o Oriente. Abatida Micenas, o mar deixa de
ser um caminho de passagem para tornar-se uma barreira. Isolado, voltado
para si mesmo, o continente grego retorna a uma forma de economia
puramente agrícola. O mundo homérico não conhece mais uma divisão do
trabalho comparável à do mundo micênico, nem o emprego numa escala tão
vasta da mão-de-obra servil. Ignora as múltiplas corporações de “homens da
ferramenta” agrupados nos arredores do palácio ou colocados nas aldeias para
aí executar as ordens reais.[2]
A partir desse momento, o termo ánax e o que ele designava
desaparece. Surge o basileus que, substituindo a idéia de uma única pessoa
que concentra poder absoluto, indica, no plural, um conjunto de figuras
proeminentes da hierarquia social. A escrita também desaparece, só
retornando por volta do século IX, através da influência dos fenícios. E, ao
reaparecer, não é mais privilégio do recesso de um palácio real, mas adquire a
função de divulgar os diversos aspectos da vida social. A famosa cerâmica
micênica, com pinturas do reino animal, cede lugar a uma pintura geométrica; a
idade do bronze cede lugar á do ferro, bem como o mundo dos mortos começa
a distanciar-se do dos vivos, através da instituição da cremação. Surge uma
delimitação de domínios, e prepara-se a semente da poesia de Homero,
“esta poesia épica que, no seio mesmo da religião, tende a afastar o mistério”.
[3]
O que mais caracteriza essa época é a dissolução do poder absoluto e a
instituição, até nos mitos que rememoram este tempo, de urna concepção do
poder dividida em quatro domínios: religioso, guerreiro, agrícola e mágico, este
último ligado às forças do fogo, e expressando a idade do ferro, que simboliza
a época, e o surgimento de uma força de artesãos. Na guerra, desaparece a
técnica do carro, típica do mundo micênico, e institui-se o culto do cavalo, visto
agora como animal bélico por excelência.
O terceiro momento - o da pólis e do pensamento racional ocorre par volta do
século VIII e VII a.C. Suas principais características coincidem com o
surgimento do pensamento filosófico e a valorização do elemento racional.
Acerca desse momento, Vernant destaca como configuração básica da pólis o
novo uso que agora se faz da palavra: instrumento de comunicação e força de
persuasão, e da qual os gregos farão urna deusa - Peithó. Será também dada
plena publicidade às manifestações sociais. Ou seja: a pólis começa a existir
na medida em que também existe um domínio público das instituições.
Se, na sociedade micênica, valorizava-se o domínio do privado, do secreto, do
universo do mito e do poder absoluto; no momento da pólis e da racionalidade
valorizam-se as práticas abertas, a democratização e a divulgação das
instituições. Inicia-se a prática dos cultos oficiais da cidade, que passam a
divergir dos processos religiosas antigos.
Surge um racionalismo político que se opõe aos antigos processos religiosos
de governo, mas sem excluí-los radicalmente. É neste terceiro momento do
mundo grego que se tecem as condições favoráveis ao aparecimento e à
recepção do trágico, visto aqui como o debate entre duas dikés (justiça) : a de
um mundo mítico que agoniza e a de um mundo racionalizante que emana da
pólis.
l. O TRÁGICO COMO GÊNERO LITERÁRIO
Partimos do pressuposto de que os gêneros literários não são normas fixas e
atemporais, mas esquemas que respondem tanto temática quanto
formalmente, ao horizonte de expectativas de uma dada época e de uma dada
cultura.[4]
A tragédia, como gênero responde à situação mesma de um tempo, o
mundo grego do século V aC., em crise de valores. Um mundo que se
apresenta como uma tensão, um choque de forças entre visões não só opostas
mas inconciliáveis. O mundo do trágico pode então ser visto como um debate
cujo cerne reside numa ambigüidade. A tragédia é a tematização de uma nova
concepção da própria função da palavra poética, não mais equivalente, como
nos tempos míticos, à revelação da verdade absoluta. A palavra trágica preside
à concepção de que é típico do poético uma zona de opacidade (zona
mimética) em que a palavra é, simultaneamente, pseudós e alethea (engano e
verdade).
1.1. O trágico grego: duas possíveis origens
No capítulo IV da Poética [5], Aristóteles informa que a tragédia nasceu de um
princípio improvisado: dos solistas do ditirambo. Da interpretação dessa
afirmativa criou-se toda uma teoria da origem do trágico, baseada numa versão
mítica, e de explicação etimológica, que hoje cremos questionável. De trágos
(bode) e õidé (ode, canção), sua origem estaria no canto a Dionísio, deus do
vinho e da fertilidade, cuja celebração se correlacionava ao êxtase lírico do
ditirambo, que era um canto fervoroso, acompanhado de um coro dançante,
originalmente composto de 50 coreutas que se apresentavam em evoluções,
usando máscaras de sátiros. Mais tarde, ter-se-ia deslocado do próprio coro
um elemento, o corifeu, que com ele passaria a dialogar. A contradição de que
a tragédia derivaria de coisas distintas - dos ditirambos e dos autos satirescos -
é contornada por esse tipo de versão, a partir da idéia de que Dionísio era
concebido como o deus da máscara e da metamorfose. Ainda que seja bela
essa concepção mítica da origem da tragédia, ela não nos responde com
segurança acerca da ambigüidade – o mundo que se apresenta na tensão
entre duas ordens opostas e inconciliáveis - que caracteriza o trágico.
ambigüidade a que se refere Nietzsche, ao dizer que no mundo trágico há dois
universos simultâneos: o traço dionisíaco e o apolíneo, diversos, mas ambos
presentes.
Vernant nos adverte que o problema da origem do trágico é, num certo sentido,
uma falsa questão. É válido falarmos em antecedentes do trágico, mas não
propriamente em sua origem. O universo mitológico a que a tragédia se refere
não é vivido por ela como um ritual, mas como um novo tipo de fenômeno. A
citação
a seguir, de um outro livro de Vernant - Mito e tragédia na Grécia antiga é bem
esclarecedora:
Um exemplo: a máscara sublinharia o parentesco da tragédia com as
mascaradas rituais. Mas, por sua natureza, por sua função, a máscara trágica é
coisa bem diferente de um travestimento religioso. É uma máscara humana,
não um disfarce animal. Seu papel é estético, não mais ritual. A máscara, entre
outras coisas, pode servir para sublinhar a distância, a diferenciação entre os
dois elementos que ocupam a cena trágica, elementos opostos mas, ao mesmo
tempo, estreitamente solidários. De um lado, o coro; a princípio, ao que parece,
não mascarado, mas apenas disfarçado, a personagem coletiva, encamada por
um colégio de cidadãos; de outro lado, a personagem trágica, vivida por um
ator profissional, individualizada por sua máscara em relação ao grupo
anônimo do coro. Essa individualização, de forma alguma, faz do portador da
máscara um sujeito psicológico, uma “pessoa” individual. Ao contrário, a
máscara integra a personagem trágica numa categoria social e religiosa bem
definida; a dos heróis.[6]
1.2. O surgimento da tragédia grega
Informa Albin Lesky que, num dos três primeiros anos da Olimpíada de 536/5-
533/2, nas festas chamadas dionisíacas urbanas, comemoradas na primavera,
sob o reinado de Psístrato, foi representada, pela primeira vez, uma tragédia.
Seu autor era Téspis, e contou com o patrocínio do Estado. Segundo Lesky, é
a partir dessa época que
fixa-se a ligação entre o drama trágico e as dionisíacas urbanas (...) e em cada
certame teatral é representada uma tetralogia, ou seja, três tragédias e o
drama satírico que as acompanha. O rápido crescimento da produção
dramática no século V fez com que, entre 436 e 426, também se introduzisse
um concurso de tragédias.[7]
Ao antigo ditirambo dionisíaco são introduzidas transformações, por Téspis:
cria o primeiro ator ou respondedor do coro/corifeu. Mais adiante, Ésquilo
introduzirá o segundo ator (deuteragonista) e Sófocles o terceiro (tritagonista),
conforme atesta Aristóteles na Poética.[8]
1.3. Características do gênero
Era comum o uso da máscara, referência feita tanto por Lesky[9] quanto por
Vernant, tendo cada um deles explicado este uso de maneira diferente. O
primeiro vê nela a essência da representação dramática: a metamorfose;
enquanto o segundo a focaliza como um instrumento de distanciamento, usado
para pôr em questão a personagem heróica.
A distinção coro/herói trágico: o primeiro representando a coletividade dos
cidadãos, e o segundo os valores religiosos, aristocráticos e individualistas que
o século V a.C. está questionando.
A duplicação lirismo/forma dialogada: de um lado, o coro se apresenta como
parte lírica; de outro, a fala das personagens trágicas, que é dialogada e
apresenta métrica mais próxima da prosa.
O sentido trágico da responsabilidade, isto é: a ação humana é posta em
questão, e constitui objeto de reflexão.
A articulação humano/divino: a tragédia apresenta, em debate, dois mundos: o
pensamento jurídico-social que emerge no século V a.C., e as tradições míticas
e heróicas. Diz Vernant: “O domínio próprio da tragédia situa-se nessa zona
fronteiriça onde os atos humanos vêm articular-se com as potências divinas”.
[10]
O choque do ethos e do dáimon: Na tragédia, a personagem trágica se,debate
entre duas ordens de fenômenos: pretende guiar-se por seu próprio caráter
(ethos), mas está pré-determinada por um dáimon (destino). É próprio do
trágico não optar, mas revelar a consciência trágica dessa ambigüidade.
Os acontecimentos aterrorizantes: o trágico se nutre de situações de intensa
dramaticidade. Um acontecimento aterrorizante tem que estar em jogo, para se
conseguir o clima trágico. Assim, os interditos do mundo cultural grego são
mobilizados: o regicídio, o parricídio, o incesto.
Principais oposições temáticas do trágico: poder, saber e querer são três dos
temas em que se insere a tensão trágica, em que se tematizam relações de
violência.
A personagem trágica. O herói: poder e violência
A personagem trágica remonta ao heroísmo. Através dela fala-nos o mundo
aristocrático dos reis divinos (ánax) e dos basileus, assim como através dela
este mesmo mundo é questionado.
A personagem trágica será um vulto proeminente da sociedade, no qual se
concentra uma gama considerável de poder político, religioso, econômico.
Tomemos alguns exemplos, deixando de lado, propositalmente, Édipo-rei, que
será objeto de um exame subseqüente. De início, vejamos Prometeu
acorrentado, de Ésquilo. Prometeu comete o crime de trair o pacto com os seus
iguais, os deuses, roubando o fogo de Zeus e dando-o aos homens. Nessa
tragédia, a grande questão é a do poder: a quem cabe, em que medida, e o
quanto é justo aplicá-lo. Em Antígona, de Sófocles, a heroína se defronta com
o poder de Creonte, seu tio, que no momento ocupa o trono, pela ausência de
Édipo. Creonte publica um decreto no qual impede de se oferecerem honras
fúnebres a Polinice, um dos filhos de Édipo, considerado por seu tio um traidor.
Antígona se defronta, na defesa do direito de sangue, na defesa da lei não
escrita, contra o decreto de seu tio. Como se pode claramente ver, Antígona
representa uma forma de justiça (diké) fundada na tradição, enquanto Creonte
põe à luz, em que pese sua tirania, uma nova figura jurídica, um novo direito
(uma nova diké), o da polis. Em Medéia, do mesmo modo, misturem-se
poder/violência/direito. Com vistas ao amor de Jasão, Medéia não hesita em
trair violentamente os seus e em violar o direito da tradição, roubando o velo de
ouro do altar sagrado de Ares, bem como assassinando cruelmente Pélias. Do
mesmo modo, o helênico Jasão, com vistas ao trono, justifica racionalmente o
abandono de Medéia e de seus filhos, sempre em nome de exercer uma
melhor paternidade, mas sempre a partir de uma violência de meios, cuja
justificativa é a de um “fim nobre”.
O herói: sua hybris.
A hybris consiste numa desmedida, num desequilíbrio interno ao caráter do
herói.
Segundo Vernant, ela é um valor negativo que, de acordo com a racionalidade
do século V a.C., sempre em busca do equilíbrio e da mediania, se refere à
desmedida do individualismo (que o século repudia) representado e defendido
pela aristocracia.
Essa desmedida implica, sob outro prisma, o próprio desequilíbrio provocado
pela situação ambígua do herói, oscilando entre duas dikés, sem alcançar o
equilíbrio. Pela hybris, pode-se ver que o mundo trágico não fala da síntese
entre dois contrários, mas da ironia trágica de uma perene ambigüidade.
A hybris de Prometeu é romper provocadoramente o pacto com seus iguais,
enquanto a de Zeus é a punição impiedosa, o violento individualismo que
impede ao homem uma participação
nos níveis de poder.
A hybris de Antígona é a de manter a phylia apenas para com seus irmãos, não
sendo todavia capaz de ver nada além do direito de família e sangue, que ela
representa. Creonte, também revela sua hybris: fala em nome do povo, edita
leis escritas em nome da proteção deste, mas age como um tirano, fazendo de
seu decreto também um álibi, que encobre sua intransigência.
Medéia e Jasão marcham ao desencontro um do outro, também em nome de
um hybris: ela, a do amor, doentio, regido pelas forças da morte, pelas quais
acaba por matar os filhos; ele, a do poder, pela qual faz sucumbir todos os
demais valores da convivência humana.
O herói: a falha trágica
A personagem trágica está em erro, do qual não tem consciência, e quase
sempre motivada por essa hybris (a desmedida inconsciente que a impulsiona),
que funciona como força motriz. Ao mesmo tempo, muitas vezes a hybris se
mistura ao desígnio do dáimon (a força que a impulsiona, mas que advém de
uma “determinação dos deuses”).
Na figura de Édipo, por exemplo, aliada à hybris (ele tem orgulho de seu saber,
confia demasiado em si mesmo) surge a força dos deuses que, por oráculo e
maldição, lhe pré-determinam casar com a própria mãe e matar o pai, ou seja:
praticar o incesto e o parricídio.
O herói e a catarse: emissor e espectador
É nesse embate da hybris típica do herói, que existe sem que ele saiba,
configurando o seu ethos, com o dáimon (a parte que lhe cabe por
determinação dos deuses, externa ao herói e ao seu controle) e a falha trágica
(o erro em que ele incorre, sem culpa consciente), que o espectador vai sendo
provocado, à medida que a tensão progride em direção ao clímax, a sentir o
terror e a piedade que, segundo Aristóteles, seriam desencadeadores da
catarse. Evidentemente, aliam-se também à catarse a questão complexa da
mímese, que exigiria considerações mais profundas, incompatíveis com a
comunicação que agora lhes é apresentada. Todavia, fica indicado o problema.
A fábula trágica (ou mito) e a unidade de ação:
Segundo Aristóteles o mito ou fábula é o principal elemento do gênero trágico.
Fundamentalmente, é pela maneira como se estrutura a fábula que o trágico se
distingue do épico. Se no épico podemos ter um grande número de aventuras
dispersas do herói, se podemos acrescentar episódios, porque tudo se
adiciona; no trágico, ao contrário existe estreita subordinação entre as partes.
O mito ou fábula trágica se apresenta uno, ou é unificado na ação. É a isto que
chamamos unidade de ação. Examinando Medéia podemos ver bem este
princípio. Em Medéia articulam-se as histórias de Jasão, de Ino e de Medéia:
mas tudo isso não vem sob a forma de episódios dispersos, e sim como uma
totalidade articulada com vistas a um clímax, em que nada é expletivo. A
história de Ino aparece, no texto de Eurípides, entretecida com o mito de
Medéia e Jasão, no momento em que, no altar do deus Ares, doado ao pai de
Medéia por Frixo, está o Velo de Ouro, que Jasão vai buscar para recuperar o
trono de Aeson, seu pai. Explicando toda a força mágica de Medéia está o fato
de que ela é filha do Titã Eetes, e, portanto, neta do sol. Todos esses mitos
eram do conhecimento do mundo grego, e com eles dialogava, como acervo
cultural e religioso, o espectador da tragédia.
Em Édipo-rei, a ação também se passa toda no presente, e qualquer referência
ao passado, que irá pouco a pouco ligando o herói à história de Laios, é feita
por um personagem cuja fala é necessária, e não vem, jamais, à guisa de
desvio episódico.
O trágico como um sistema semiológico pleno
Se observarmos a Poética, e consideramos os seis elementos que Aristóteles
indica como fundadores do gênero trágico, em sua articulação, podemos
concluir que a tragédia não diz respeito apenas a um texto literário. Ela conjuga
outros sistemas de signos, desde a gestualidade da representação, o tom de
voz, a vestimenta típica, até o caráter de espetáculo, de cenografia e
sonoplastia que comporta.
2. ÉDIPO-REI: A QUESTÃO DA AMBIGUIDADE NA TRAGÉDIA GREGA
Édipo-rei [11] é uma tragédia na qual se tematiza a relação do homem com um
enigma: - Quem sou eu? Esta é a pergunta que ressoa todo o tempo e para a
qual Édipo, o decifrador de enigmas, tem dificuldade de encontrar uma
resposta. A tematização desta ambigüidade – sei / não sei quem sou - é o eixo
central em torno da qual gira a peça.
O texto começa no presente da vida do herói, já sagrado rei de Tebas, casado
com Jocasta, e pai de quatro filhos deste matrimônio. Embora o texto não
apresente mudanças de cenário, nem subdivisões indicadoras de atos ou
cenas, e embora todo o desenrolar trágico se passe, de preferência, num giro
do sol, há a possibilidade de o apreendermos em três seqüências, a título de
viabilizar uma aproximação analítica, ainda que embrionária. As seqüências
são : a abertura das peripécias por que vai passar o herói; o desenrolar destas,
e o fechamento das mesmas, que coincide com o desvendamento do enigma
de sua verdadeira origem. Ou seja, em linguagem aristotélica: coincide com o
reconhecimento (a passagem da ignorância ao saber).
No primeiro momento - a abertura das peripécias – aparece o diálogo de Édipo
com o sacerdote, que lhe suplica, em nome do povo, tomar medidas para
solucionar um enigma: qual a causa da peste que assola o reino, e o que fazer
para saná-la.[12] Édipo, crêem todos, é o único a poder dar a resposta
adequada, pois é tido como o maior decifrador de enigmas do reino.[13] E isto
porque já se havia posto a Édipo, antes de tornar-se rei de Tebas, o enigma da
Esfinge (flash-back que surge na fala do sacerdote), que ele solucionara, e que
o conduzira ao trono e ao leito deixados vagos pela morte de Laios, antigo rei e
marido de Jocasta.
É dessa relação entre enigma solucionado e enigma a solucionar que principia
a estrutura de tensão da peça. Tensão que se vai acirrando, no desenrolar das
peripécias, próxima seqüência, de acordo com a segmentação que
propusemos para o texto.
E a tensão se agrava porque, quanto mais se indaga sobre a causa da peste
(que, segundo o oráculo, consiste em ter sido deixado impune o assassino de
Laios - Cf, p. 61), mais se adensa uma outra questão, correlata à primeira:
Édipo soube resolver a pergunta da Esfinge (cuja resposta era : o homem),
mas não sabe responder ao enigma cuja solução responderia à pergunta
implícita: - quem é Édipo? Ou seja: Édipo não sabe responder ao que lhe está
muito próximo, em si mesmo, Édipo não sabe quem é Édipo.
Já dissemos, em outro momento, que é típico do trágico tematizar uma crise. O
próprio gênero nasce (conforme a interpretação de Vernant, que estamos
privilegiando) do embate das tradições da antiga Grécia com a visão de mundo
racional que se anuncia ao homem na passagem do século VI ao V a-C.
O novo gênero que surge tematiza, então, urna ambigüidade: o homem grego,
agora em crise, não é mais o que fora, nora totalmente o deixou de ser. Por
outro lado, ele também não é ainda o que se anuncia, embora não possa
deixar de entrever uma mudança na estrutura social, pelo próprio fato de estar
convivendo com um novo mundo em que se destaca a figura da pólis e do
cidadão.
O novo homem grego encontra-se num limiar: convive nele a recusa de um
passado que ainda ecoa, e a adoção de um presente do qual ainda não tem
clareza.
Essa ambigüidade é um fenômeno gerador de tensão. A tragédia é a
tematização, na linguagem, dessa própria tensão ambígua.
A estrutura da Tragédia (tanto temática quanto formalmente), bem como sua
recepção, repousa na criação de um sentido ambíguo, duplo e simultâneo. E é
com este duplo sentido que joga o dramaturgo para expressar um mundo
dilacerado pelas contradições.
2.1. O nome Édipo e o nome de Édipo
Em Édipo-rei, o próprio personagem, em sua denominação, porta a
ambigüidade que o caracteriza em seu saber/ignorar quem verdadeiramente
ele é. Édipo é, simultaneamente, o ilustre (Cf. p. 58) e o de pés inchados (Cf, p.
113-4). É, de início, o rei poderoso e amado pelo povo e, no término, o banido
de Tebas, assassino e incestuoso, que não soube trilhar seu próprio caminho,
a salvo.
A etimologia do nome Édipo, em grego, pode prestar-se a uma dupla
significação: oidos + pous (inchados + pés) e oida + pous (sabe ver + pés). No
primeiro caso, aquele que tem os pés inchados e, no segundo, o que se
sustenta em si mesmo porque sabe ver. Com o desenrolar da peça, vê-se que
a proposta de Sófocles não é optar por um ou por outro significado, mas
recuperar os dois. Édipo, deste modo, concentra em si um duplo homem. Ele é
o próprio paradigma do homem trágico: um ser ambíguo.
2.2. A palavra trágica como pseudós e alethea
Indo um pouco além em nossa interpretação, podemos ver que é próprio da
palavra trágica (ou seja: aquela que se inaugura com o gênero dramático) esse
estado de ambigüidade. Ela é a palavra da crise.
A ambigüidade que caracteriza o trágico tem uma função específica: indica que
há zonas de opacidade na comunicação entre os homens: a comunicação
humana, no mundo do trágico, está sempre ameaçada da incomunicabilidade,
e de conduzir o herói ao erro e ao equívoco. E é isto que leva Vernant a afirmar
que a “mensagem trágica só é compreendida quando se admite a ambigüidade
dos valores da comunicação humana”.[14] Quando as personagens trágicas
falam, acabam por dizer, também, algo que está latente no que manifestam.
Alguns exemplos interessantes disso podem ser encontrados nas falas de
Édipo (p. 67), quando ele diz que é uma pessoa alheia ao que ocorreu com
Laios, embora já esteja sobre ele lançada a suspeita do oráculo, que falara
num mal ali nascido e agasalhado (o próprio Édipo, como se saberá mais
adiante). Também se pode indicar um outro momento (p. 69) da fala de Édipo,
em que ele se diz interessado em descobrir o assassino de Laios, como se
este fora seu próprio pai. A partir destes exemplos (e de outros, que podem ser
recolhidos em profusão), pode-se melhor compreender o que queremos dizer
quando afirmamos que a tragédia tematiza uma complexa relação entre:
ser/parecer; realidade/ficção; comunicação/incomunicabilidade;
pseudós/alethea.
Instaura-se no texto trágico um discurso claro e um secreto, que o próprio
Édipo se mostra incapaz de decifrar. Em tudo o que ele diz, há algo de latente
e algo de manifesto: ao querer dizer, diz sem querer; sem o saber, diz o que
não sabe e o que pensa saber. Encontram-se atadas em seu discurso, duas
falas, distintas: a de seu ethos e a de seu dáimon: quer descobrir o culpado,
sem saber que ele próprio o é.
2.3. A estrutura de peripécia e reconhecimento
Aristóteles assinala que em Édipo-rei encontram unidos os dois elementos que
compõem a fabulação trágica (para ele o fundamental elemento da tragédia):
peripécia e reconhecimento, porque, nesta peça, um coincide com o outro.
Quando a personagem proceder ao reconhecimento, este não será outro senão
o de si mesmo.
Vejamos, de acordo com as três seqüências em quê nos propusemos a
subdividir o texto, como este se processa.
- na abertura das peripécias, Édipo é apresentado como estrangeiro (vindo de
Corinto), decifrador de enigmas; salvador de Tebas, justiceiro.
- durante o desenrolar de ação, Édipo vai-se tomando ambíguo, duplo, opaco.
À medida que continua o processo de decifração do enigma (- quem matou
Laios?), as certezas de Édipo vão-se preenchendo de dúvidas e de
contradições. O que antes era tomado como verdade, vai sendo povoado pela
névoa da dúvida; o diálogo com Tirésias é o primeiro movimento em direção a
essa capacidade. (Cf. p. 72 a 80)
E assim o herói, durante o desenrolar das peripécias, revela-se ele próprio um
enigma: parece ser algo e, simultaneamente, o seu contrário.
- no término das peripécias, Édipo surge como nativo de Tebas, mau decifrador
de enigmas, causador de dano a Tebas (incestuoso e regicida) e assassino de
seu próprio pai, Laios. (Cf. p. 125 e 129)
2.4. A técnica do processamento jurídico: as falas das personagens são
réplicas (dão provas e contra-provas)
Sem que se possa confundi-la com um debate jurídico, a tragédia, contudo, ao
pôr em debate as duas dikés, opera, nos diálogos, como se eles fossem
réplicas de um "debate jurídico" no qual se torna extremamente difícil discernir
a verdade e a culpa. Um exemplo desse "debate" é o diálogo de Édipo e
Jocasta.
2.5. Édipo: paradigma do homem trágico
Se a tragédia representa, em seu ágon, um direito que ainda não se podia
suficientemente fundar,[15] o herói experimenta, na aspereza de sua ipseidade,
a ameaça da solidão de sua individualidade, a todo momento contraposta à
experiência (malograda) da cidadania e da coletividade.
Se havia um enigma a esclarecer - e era verdadeiramente um duplo enigma,
uma vez que a pergunta sobre o assassino de Laios "desdobrava-se" e
"dobrava-se" sobre outra oculta - este é esclarecido. Mas é exatamente aí,
quando Édipo é lançado ao contato com o nada, com a dimensão mais ínfima
de si mesmo, assassino, parricida e incestuoso, é aí que ele de novo se ergue,
na dignidade da infâmia em que se vê colhido: é aí que ele adquire uma visão
que não possuía - a de lhe ser possível descobrir sua própria identidade.
Contraditoriamente, o símbolo dessa mais verdadeira e ampla forma de ver, é o
próprio ato de cegar-se. Pagando com os próprios olhos, mergulhando na
obscuridade da cegueira voluntária, Édipo indica uma outra zona, nada opaca,
em que o homem se ilumina da consciência responsável de traçar seu próprio
destino. Ser trágico implica, neste caso, abdicar da experiência de um único
sentido (em Édipo e na própria cultura grega daquele tempo, pelo privilégio do
ver), que conduziria a uma verdade absoluta, em prol de experimentar a
ambigüidade que há no cerne de uma nova ordem que começa por relativizar o
absoluto.
3. ESQUILO, SÓFOCLES E EURÍPIDES
3.1. Esquilo foi o primeiro tragediógrafo famoso da Grécia. É o autor, dentre
outros textos, de Orestéia, Coéforas e Eumênides. Consta ter vivido entre 525
e 436 a.C. Suas peças falam muito mais da relação com a comunidade e os
dispositivos de poder, do que propriamente do indivíduo. Nele estamos muito
mais próximos de um discurso que lida com o mito e as tradições, do que em
Sófocles e Eurípides.
O seu Prometeu acorrentado (embora haja contestação de autoria, julgamos
haver uma base suficientemente assentada para crer que o texto seja de
Ésquilo) é um bom exemplo disso. A peça discute, nuclearmente, o poder, e a
oposição humano/divino. O poder e seus desdobramentos: o poder do poder,
da palavra, da verdade, do direito. Quem dispõe da verdade? Como manejá-la?
Até que ponto punir ou conceder? - parecem ser as questões que afloram da
oposição entre Zeus e Prometeu.
Todo o texto gira em tomo do castigo que Zeus inflige a Prometeu, pela
ousadia de dar o fogo de Zeus aos homens. Metáfora do poder, do
conhecimento, o fogo é privilégio dos deuses, ou algo que deve ser repartido
entre deuses e homens? A peça é tecida na discussão dessa questão, e
termina com uma imprecação do punido Prometeu, que não admite ser
culpado.
Há no texto a mesma questão da ambigüidade, que foi apontada como centro
da problemática trágica. Só que a estruturação da peça de Ésquilo não repousa
no mesmo jogo hábil de simetrias e enigmas que caracterizou o procedimento
de Édipo-rei.
O poder é aqui objeto de duplo sentido, na duplicidade de interpretações de
como ele deve ser aplicado e a quem deve pertencer. Por Zeus, Vulcano,
Mercúrio, ele é visto como um direito dos deuses, através da posse do fogo;
para Prometeu, é um direito também do homem.
O que está em causa é a pergunta pela posição que cabe ao homem, no seu
relacionamento com os deuses e o conhecimento, até então visto como de
origem e pertinência apenas divina. Marcando à anterioridade de Ésquilo em
face de S6fcoles, o homem não é aqui personagem, e o poder supremo de
Zeus se faz sentir sobre Prometeu, como punição exemplar que dê lições aos
homens.
3. 2. Sófocles (497/6 - 406/5 AC). Autor de cerca de 130 dramas, a maior parte
deles tragédias, foi o mais célebre dos tragediógrafos gregos. Dessa intensa
produção conservaram-se 7 peças completas: As Traquínias, Antígona, Ájax,
Édipo-rei, Electra, Filoctetes, Édipo em Colona. Com ele o drama se torna mais
complexo, além de receber modificações, como o aumento do número de
atores em cena, de personagens secundárias e de coreutas.
Cremos que sua tragédia Édipo-rei, comentada anteriormente, mostra-nos bem
a sua principal contribuição à dramaturgia grega: o adensamento das questões
psicológicas e a discussão das complexas razões que regem os atos humanos
em seu inevitável confronto com o destino e a sociedade.
3.3. Eurípides foi o último tragediógrafo grego, tendo provavelmente vivido
entre 480 e 406 a.C. Diferentemente de Ésquilo e Sófocles, ele introduz no
teatro um maior traço de realismo social, também passando a dar mais voz a
personagens de classes sociais menos elevadas, como amas e preceptores,
que antes
ou não apareciam ou participavam em nível de pequena importância. Em
Medéia, por exemplo, a fala da ama põe em questão o papel que cabe à
mulher, na vida social e no casamento.
Em Medéia discutem-se duas visões de mundo, que apenas têm em comum a
força da desmedida (hybris). De um lado, Jasão e sua desmedida ânsia de
poder; de outro, Medéia, desgovernada pela potência extremada de um amor
destrutivo e violento. Nesta tragédia a força do dáimon, no sentido de força
inapelável que conduz ou induz o destino humano, perdeu sensivelmente o
relevo que desempenhara em Sófocles e, mais ainda, em Ésquilo.
Aristóteles, no capítulo XV da Poética, menciona o fato de que Eurípides lança
mão do recurso ao deus ex-machina, que quase indica a transformação do
destino num acaso, pelo aparecimento dos deuses como algo "fora da
engrenagem".
Medéia explícita urna questão interessante: o próprio conceito de direito
helênico: ela, uma bárbara que habita a Hélade, é repudiada de seus direitos
de esposa, por Jasão. Ele, criado pelo Centauro Quíron nas artes que
compunham a educação de um verdadeiro grego, expõe-lhe, por sofismas, as
razões que justificam seu abandono e repúdio. Na luta pelo que considera seu
direito, mas guiada pelo ódio de um amor desmedido, não é à ordem dos
deuses olímpicos que Medéia recorre, mas ao próprio poder mágico e titânico
do qual ela descende, nesta que é do Sol. Não há mais, nesta peça, o conflito
entre o humano e o divino, tão nítido em Prometeu e Édipo. Em Medéia, são
dois espaços humanos em questão: a tradição helênica e os valores
alienígenas que com ela convivem e conflitam. Nesta peça talvez aflore mais
claramente o "debate jurídico" entre as duas dikés que, para Vernant,
caracteriza o trágico.
(Fonte:)
BIBLIOGRAFIA:
1. ARISTÓTELES. Poética. Trad. pref., introd., com. e apênd. De Eudoro de
Sousa. Porto Alegre, Globo.
2. BENJAMIN, Walter. Il dramma barocco tedesco.Torino. Einaudi. 1971.
3. HELENA, Lúcia. Medéia: o lugar da crise. In: Revista Tempo Brasileiro,
57:17-24. Rio. abr.-jun. 1979.
4. JAUSS, Hans Robert. Littérature médiévale et théorie des genres. In;
Poétique,1. Paris, Seuil, 1970
5. LESKY, Albin. A tragédia grega. Trad. J.Guinsburg, Gerald Gerson de Souza
e Alberto Guzik. São Paulo, Perspectiva, 1971.
6. Prometeu acorrentado/Ésquilo; Édipo-rei/Sófocles; Medéia/Eurípides. Trad.
de Alberto Guzik, Geir Campos, Miroel Silveira e Júnia Gonçalves. São Paulo,
Abril Cultural, 1980.
7. VERNANT, Jean-Pierre. Mito e tragédia na Grécia antiga. São Paulo, Duas
cidades, 1977.
8. __________. As origens do pensamento grego. 3. ed. São Paulo. Difel,
1981.