a tragédia grega e seu contexto (jorge piquet)

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  • A TRAGDIA GREGA E SEU CONTEXTO*

    * * Jorge Ferro Piqu

    Normalmente encaramos uma tragdia grega como um livro sobre o qual nos debruamos intelectualmente com o objetivo de extrair alguma compreenso sobre como os gregos sentiam o trgico em suas vidas e como o expresssavam artisticamente.

    Essa tem sido a principal abordagem ao longo desses ltimos sculos e foi dessa maneira que a civilizao ocidental incorporou e transformou essa forma artstica nica criada pelos gregos.

    No entanto, claro que no era assim para os prprios gregos. Justamente no sculo V a.C., o momento de maior relevo do teatro tico, que comeamos a perceber o surgimento de uma cultura verdadeiramente letrada na Grcia antiga, com a elaborao e venda de livros, mas este importante fenmeno se d ainda de forma incipiente. Mantm-se na verdade uma permanente tenso entre o oral e o escrito e que pode ser sentida mesmo no sculo seguinte na obra de Plato, em que a escrita apresentada com certa desconfiana.

    * Este artigo foi baseado na conferncia "Tragdia grega: ambiente e formas" apresentada no Curso de Extenso Universitria "A arte trgica", realizada em 15 de setembro de 1997. A verso integral em hipertexto com imagens ilustrativas pode ser encontrada em http://www.hu-manas.ufpr.br/defi/tragedia/pique.htm

    ** Universidade Federal do Paran (e-mail: [email protected], URL: www.hu-manas.ufpr.br/delin/classic/jpique.htm)

    Letras, Curitiba, n. 49, p. 201-219. 1998. Editora da UFPR 201

  • PIQU, J. F. A tragdia grega e seu contexto

    Aos poucos, entretanto, a experincia da leitura de tragdias se consolida e clebre a passagem em que Aristteles declara que possvel alcanar tambm o efeito trgico ao apenas 1er uma pea, sem uma performance pblica. Embora pudssemos dizer que deveria ser certamente mais prazeroso apenas 1er tragdias de Esquilo, Sfocles e Eurpides do que ir ao teatro para assistir s peas que eram encenadas no sculo IV a.C., poca de Aristteles, nenhuma das quais chegou at ns, certamente por suas poucas qualidades artsticas.

    Hoje, para ns, a possibilidade mais comum de contato com as tragdias gregas atravs de sua transcrio em um livro e em geral em traduo para as lnguas europias modernas. Infelizmente no Brasil ainda no temos a nossa disposio montagens regulares e sistemticas do teatro grego que poderiam sem dvida abrir novas possibilidades de encontro com o trgico assim como era percebido pelos gregos.1

    Mas, apesar dessas poucas montagens esparsas, o que vemos em cena ainda est muito distante do fenmeno trgico como era experimentado em Atenas no sculo V a.C.

    Ser portanto o objetivo deste artigo fornecer alguns dados obtidos pelas investigaes recentes sobre o ambiente geral da performance teatral trgica, ambiente em seu sentido mais amplo, isto , sua insero social e cultural e suas condies materiais de existncia, e que em geral no esto acessveis de forma imediata a um leitor ou mesmo espectador contemporneo, de modo a termos uma viso mais ampla sobre este tema e podermos, a partir da, ir adiante no questionamento propriamente do contedo trgico, o que pretendemos fazer em um prximo artigo.

    Os festivais dionisacos

    0 ambiente mais geral onde se insere o teatro trgico tico o da comunidade, especificamente o da cidade, e o da religio, na forma social de sua expresso.

    A religio grega pode ser abordada por dois aspectos mais exteriores. De um lado, o lugar sagrado, onde o contato com os deuses se realiza atravs de sacrifcios, de outro, a festa, quando em determinados dias do ano, aos quais acrescentada a noite anterior, se d uma quebra do ritmo cotidiano. Assim, se o templo acentua o espao da comunidade, a festa acentua a sua temporalidade.

    1 No caso das comdias gregas a situao ainda pior, sendo um acontecimento raro a sua encenao no palco.

    202 Letras, Curitiba, n. 49, p. 201-219. 1998. Editora da UFPR

  • PIQU, J. F. A tragdia grega e seu contexto

    Era nas festas, heorta, que a religio viva, verdadeiramente praticada, se concentrava. Durante as festividades religiosas o trabalho especfico, seja produtivo ou no, cessa, a distribuio social de papis torna-se mais frouxa e h um clima de descontrao generalizado. Mas no s isso. Novos papis so criados momentaneamente, novos grupos se associam e separam-se. E um momento especial e que de diferentes formas destacado do cotidiano. Segundo Burkert2 "[...] o contraste em relao ao habitual pode exprimir-se no prazer e na alegria, nos adornos e na beleza, mas tambm na ameaa e na morte".

    A tragdia grega era na verdade parte de uma das principais festividades religiosas anuais que se realizavam em Atenas, as Grandes Dionsias Urbanas.

    Atenas, como as demais cidades gregas, tinha o seu calendrio anual recortado por inmeras e diferentes festas. Na verdade cada cidade grega tinha a sua sucesso particular de festivais religiosos e portanto o seu prprio calendrio. Mais ainda, havia festas exclusivas apenas de determinada tribo dentro de uma cidade. Seu nmero era muito grande, e o calendrio melhor conhecido por ns o tico. Em Atenas, presumimos que seriam por volta de 60 dias dedicados exclusivamente a festividades religiosas durante o ano. Portanto, poderamos dizer que se vive "normalmente" de uma festa at a outra. Estas so to significativas que em geral os prprios nomes dos meses ligam-se s festividades mais importantes realizadas naquele perodo de tempo. No ms Anthesterin, por exemplo, se realizava a festa das Antestrias, a festa das flores e do vinho novo, no incio da primavera.

    A festa na qual eram apresentadas as tragdias gregas era em homenagem ao deus Dioniso.

    Dioniso era um deus ligado a diversas festividades. Na tica, que nos interessa mais de perto, havia os seguintes tipos de festivais dionisacos :

    - as Lenias: as festas dos tonis de vinho, aproximadamente em janei-ro;

    - as Antestrias: o mais antigo dos festivais dionisacos e por isso tambm chamados de "Velhas Dionsias", aproximadamente em fevereiro, quando os barris eram abertos e se experimentava o vinho novo;

    - as Oscofrias: o festival da colheita das uvas, realizado aproximada-mente em outubro, quando havia uma corrida de rapazes levando ramos de parreiras.

    2 BURKERT, W. Religio grega na poca clssica e arcaica. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 1993. p. 207.

    3 Ibid., p. 318-322; HARVEY, P. Dicionrio Oxford de literatura clssica. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1987. p. 231.

    202 Letras, Curitiba, n. 49, p. 201-219. 1998. Editora da UFPR

  • PIQU, J. F. A tragdia grega e seu contexto

    Para ns, mais importante um determinado conjunto de festividades em honra a Dioniso, as Dionsias, que se dividiam em urbanas e rurais, e especifi-camente a primeira delas.

    As Dionsias Urbanas ocorriam em dois momentos no calendrio. Primeiramente na primavera, logo aps as Antestrias, em fins de maro, quando o vinho do ltimo ano estava maduro, pronto para beber, fazendo-se portanto a abertura dos barris. O sentimento geral era de que a terra estava acordando para uma nova vida, indicando uma continuidade da temtica do "florescimento" que marcava esse ms. Mas havia tambm uma Dionsia Urbana no inverno, para marcar o fim do trabalho anual e que, em Atenas, ocorria no incio de janeiro.

    J as Dionsias Rurais eram de menor proporo e aconteciam em dezembro, inverno portanto, nos distritos rurais da tica. Nelas, um kmos, isto , um bando de folies, carregando um falo de grandes propores, cantava canes para Dioniso, as chamadas "canes flicas". Nos intervalos, o lder divertia os espectadores com vulgaridades, na forma de monlogo ou dilogo. Muitos autores consideram que foi justamente o kmos uma das origens do coro, um dos aspectos mais particulares do drama grego, tanto na tragdia como na comdia.

    As Dionsias Urbanas ou Grandes Dionsias tinham a seguinte forma.4

    Iniciavam-se por uma procisso que escoltava uma antiga imagem de Dioniso ao longo da estrada que conduzia cidade de Eleutria e regressava depois ao altar do deus, em Atenas, onde um bode era sacrificado em meio a danas e canes. Uma virgem conduzia a procisso atravs do caminho, adornada com ornamentos dourados, portando a cesta sagrada, cheia de bolos e flores. Os outros participantes da procisso conduziam presentes rurais (uvas, figos, vinho etc.) e o animal a ser sacrificado. Um falo era carregado no alto.

    Neste cortejo ritual5 j podemos perceber a forma fundamental da constituio de grupos. Da massa amorfa so destacados os participantes ativos que se dirigem para um objetivo, mas a interao com o outro grupo que se forma simultaneamente ao longo do caminho, ou seja, os espectadores, to importante quanto o prprio objetivo pelo qual se forma o cortejo. O objetivo da pomp naturalmente um santurio no qual ter lugar o sacrifcio, mas o prprio caminho tambm tem significado, "sagrado". Em algumas outras procisses religiosas so apresentadas j dramatizaes de carter mimtico da partida, o abandono do santurio, prefigurando no ritual a futura forma dramtica.

    4 AMOURETTI, M. C.; RUZ, F. O mundo grego antigo. Lisboa: Dom Quixote, 1993. p. 167-170.

    5 Cf. gr. pomp. Existe o termo equivalente latino pompa, com o mesmo significado.

    202 Letras, Curitiba, n. 49, p. 201-219. 1998. Editora da UFPR

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    Dentro do grupo dos participantes ativos, por sua vez, existem papis bem definidos, como a portadora do cesto, ou os portadores do falo, no caso das Grandes Dionsias. Em outras procisses temos a portadora da gua, o portador do fogo, das taas etc. Os participantes indicam o seu estatuto particular no apenas pelo vesturio festivo, mas tambm pelas coroas, faixas de l e pelos ramos que levam nas mos. Esse uso de sinais exteriores dos papis a serem exercidos no ritual ser sem dvida apropriado mais tarde pelo teatro.6

    Torna-se claro ento como as procisses, hinos e danas de carter festivo-religioso prefiguravam de certo modo as formas que o teatro grego mais tarde assumiria. O divertido kmos e a solene pomp so a contrapartida puramente ritual dos coros cmicos e trgicos do teatro grego.

    Observemos tambm uma outra semelhana entre o ritual de Dioniso e a tragdia. A forma como o festival dionisaco acontecia na tica era bem diferente de suas manifestaes orientais, nas quais era observada violncia selvagem e exttica, alm de serem realizadas no inverno e noite. Ocorreu portanto j no nvel do ritual a passagem de uma simplicidade rude e s vezes brutal graa, dignidade e refinamento que sero tambm caractersticas da tragdia tica.

    Vejamos agora algo sobre o prprio deus homenageado nas Grandes Dionsias. Dioniso um deus que est associado ao fruto carnudo e suculento, como a uva ou o figo. Nesse sentido se ope a Demter, deusa dos cereais, do trigo, da cevada. Se por um lado a fruta nos d essa sensao de prazer imediato, o gro pouco saboroso, mas os dois tipos de alimentos se completam, pois o gro que sustenta, ele que simboliza a civilizao, o plantio e portanto o esforo humano.8 O fruto carnudo e doce, ao contrrio, coletado diretamente e portanto uma ddiva da natureza. Dioniso ento esse deus do contato direto, sem esforo, com o prazer.

    No entanto, a oposio e complementao mais conhecida entre Apoio e Dioniso. Embora Apoio nos poemas homricos tenha tambm um carter violento (so suas flechas que na Ilada dizimam os aqueus a pedido de seu sacerdote Crises9), por estar associado msica e poesia atravs da lira (que na verdade revela a violncia original do arco e da flecha), Apoio acabou

    6 O monumento clssico que permite uma visualizao completa de uma grande pomp o friso das Panatenias no Partenon.

    7 ELI ADE, M. Histria das crenas e das idias religiosas. Tomo I, v. 1-2. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1978. p. 202.

    8 J Homero identificava os grupos humanos civilizados por serem "comedores de po". 9 HOMRE. Iliade. Paris: Les Belles Lettres, 1936,1, v. 30-45.

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  • PIQU, J. F. A tragdia grega e seu contexto

    tornando-se o deus por excelncia da simetria da forma, da grave determinao, da seriedade de tom, caractersticas que hoje chamamos apolneas.10

    Dioniso parece ser uma outra vertente de um mesmo princpio. Tambm est associado poesia e msica como Apoio, mas seu instrumento a "flauta". Aqui cabe uma pequena observao esclarecedora. O termo grego que em geral traduzido por "flauta" auls. Este instrumento duplo de sopro provavelmente teria um som mais prximo ao obo ou gaita de foles escocesa, nada re-lacionado portanto sonoridade suave das nossas flautas atuais e mais apro-priado aos xtases dionisacos.

    Desde cedo Dioniso foi associado idia de irregularidade, seja no ritmo ou na linguagem, a princpio, e, conseqentemente, nos prprios sentimentos. Essa ciclotimia se reflete bem na falta de restries que encontramos na poesia coral dionisaca executada nos sacrifcios ofertados nas festas a esse deus. Em geral assumiam a forma de um hino em celebrao das ddivas de Dioniso. Nesse hino a msica era executada no modo frigio, reforando um dos mitos de uma origem no-grega do deus, que teria vindo da Frigia. Hoje, no entanto, sabemos que o culto de Dioniso muito antigo na Grcia, remontando poca micnica.11

    O verso utilizado era o ditirambo e o hino assumia a forma de uma dana coral acompanhada de gestos e movimentos ilustrativos. Essa dana mimtica denominava-se rchesis.

    As caractersticas especiais de Dioniso acabaram por atrair outros seres a princpio de origem heterognea, tais como os stiros, possuidores de carac-tersticas animalescas e que representariam foras vigorosas da natureza, paixes e emoes da mente humana. Em geral so representados como co-vardes, sensuais, livres e bem-humorados e com um pnis em permanente ereo. Havia tambm os Silenos, stiros velhos, bbados e lascivos. J as Bacantes ou Mnades eram entidades femininas, s vezes ninfas, s vezes mulheres mortais, que tomavam parte no cortejo de Dioniso com os cabelos soltos e enfeites florais e cuja forma de contato com a divindade era o xtase, o entusiasmo. Vemos igualmente associados a Dioniso os Centauros, repre-sentantes tambm da fora e do vigor natural e amantes da embriagus e finalmente Pan, deus da vida rural.

    Esse conjunto de seres configuraria na imaginao grega algo que recorrente em vrias culturas de diferentes formas, ou seja, esse sentimento de que h algo pulsante e incontrolvel no mundo, mas que tambm uma manifestao de uma dimenso superior ao homem, algo que se por um lado

    10 ELIADE, op. cit., p. 257. 11 Na antiga Grcia havia outros centros de culto dionisaco alm de Atenas, tais como

    Tebas, Corinto e Naxos.

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  • PIQU, J. F. A tragdia grega e seu contexto

    pode ser fonte de alegria e libertao, por outro pode ser tambm perigoso e mesmo mortal. Algo por fira que representa um mistrio.

    Importante detalhe para ns nos cultos a Dioniso o uso da mscara por seus seguidores. Dioniso, na sua relao com os homens, quer mais do que orao e sacrifcio, quer a pessoa inteira ao seu servio, e por meio do xtase a eleva acima de todas as misrias do mundo. A mscara representa o elemento de transformao, de perda de identidade e nela por seu turno que se baseia tambm a essncia da representao dramtica, dando ao teatro grego uma peculiaridade no encontrada nos demais gneros e que foi mantida at os dias de hoje.

    Ser justamente nesse ambiente religioso e festivo que ser introduzido a posteriori o teatro.

    Isso ocorreu em Atenas no sculo VI a. C. sob a tirania de Pisstrato. Cabe aqui uma pequena explicao histrica. O regime tirnico foi ao mesmo tempo uma emanao da aristocracia e uma reao contra ela. O poder estava nas mos de famlias clebres que o administravam ou atravs de um regime monrquico ou de um regime oligrquico. O poder podia ser transmitido ou hereditariamente ou de forma eletiva, mas sempre estava nas mos da aristocracia. Com o surgimento de uma srie de crises no seio da aristocracia ocorriam casos em que um aristocrata tomava o poder indevidamente, apoiado por outros aristocratas e/ou por um grupo de cidados. Pisstrato foi um desses tiranos "populares". Na verdade tomou e perdeu o poder trs vezes na segunda metade do sculo VI a.C.12 Foi justamente durante o ltimo perodo de tirania que Pisstrato, preocu-pado com o apoio ^popular, estabeleceu a regulamentao das representaes teatrais em Atenas. 3

    Antes disso o teatro tinha um carter privado e voluntrio. Temos notcia que eram j apresentadas "peas" em Atenas desde 558 a.C., associadas a Tspis, o primeiro autor de que temos notcias.14 Mas foi Pisstrato quem determinou que fossem encenadas em uma das festas mais populares, justamente as Grandes Dionsias Urbanas, em fins de maro. Pisstrato com isso estava fazendo uso da religio contra a aristocracia, reorganizando as festas tradicionais e especial-mente dando patrocnio estatal ao culto mais popular no momento, o de Dioniso e de sua festa mais importante, as Dionsias Urbanas.

    Segundo os poucos dados que temos, a primeira representao de uma tragdia dentro das Dionsias Urbanas foi aproximadamente entre 536 e 533 a.C.

    12 Nos perodos de 561-555 a.C., 544-538 a.C. e 534-533 a.C. cf. HARVEY, p. 384. 13 AMOURETTI ; ROUZ, op. cit., p. 254. 14 HAIGH, A. E. The tragic drama of the greeks. New York: Dover Publications, 1968.

    p. 26.

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  • PIQU, J. F. A tragdia grega e seu contexto

    Temos poucos dados tambm sobre os autores dessa primeira fase do teatro grego. Aps Tspis temos notcia de Qurilo, que teria composto aproximada-mente 160 tragdias, e de Frnico, discpulo de Tspis, cuja primeira vitria se deu entre 511 e 508 a.C. Mas os grandes nomes da tragdia grega se situam no sculo V a.C. e so sem dvida Esquilo, Sfocles e Eurpides. Infelizmente chegaram at ns apenas cerca de 10% de sua produo total. Sete tragdias de Esquilo, sete de Sfocles e 18 de Eurpides.

    J nas Dionsias Rurais eram reapresentadas para o pblico do interior da tica as peas que haviam sido produzidas nas Dionsias Urbanas. A princpio, as peas apresentadas nas Dionsias Urbanas no podiam ser reapre-sentadas em Atenas, mas a partir da morte de Esquilo em 456 a.C., devido ao seu enorme prestgio, suas peas foram remontadas, provavelmente por seu filho. Alguns autores na verdade consideram que "Prometeu acorrentado" no teria sido de sua autoria, mas sim desse filho, que a teria montado usando o nome prestigioso do pai.

    Portanto o teatro trgico grego tem uma dupla ambientao: religiosa, por um lado, j que se insere no calendrio festivo-religioso, mas, conjun-tamente, poltica, pois tambm uma festa estatal. Cabe cidade, polis, se incumbir dos preparativos para a sua realizao.

    Com o desenvolvimento do gnero teatral, que praticamente tornou-se o gnero literrio mais importante na Grcia durante o sculo V a.C., as Grandes Dionsias atraem um pblico cada vez maior. E a prpria cidade, Atenas, que se rene em peso para assistir anualmente, em um momento especial do calendrio religioso, tragdias e comdias. E portanto para a plis que as peas sero direcionadas. Mas no s. Aos poucos, estrangeiros tambm participaro, mui-tos vindos de outras cidades gregas, alguns vindos mesmo de outros pases, exclusivamente para assistir s representaes teatrais. O teatro ateniense passa a ser cada vez mais o rosto mais atrativo que a cidade mostra de si mesma, smbolo de sua importncia cultural diante de seus vizinhos e, de certa forma, parte da poltica hegemnica ateniense na rea do Mediterrneo oriental a partir das vitrias contra as invases persas.15

    Aps a regulamentao instituda por Pisstrato, as Grandes Dionsias ou Dionsias Urbanas passaram a ser um conjunto de manifestaes religiosas, polticas e poticas com uma programao definida.16

    O festival se estendia por seis dias, dos dias 10 a 15 do ms Elafebolin, o que corresponde em nosso calendrio a finais de maro e incios de abril.

    15 HAIGH, op. cit., p. 171-178. 16 Ibid., p. 167-168.

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  • PIQU, J. F. A tragdia grega e seu contexto

    Durante esses dias alm das atividades propriamente religiosas acon-teciam quatro tipos de apresentaes artsticas na forma de concursos: ditiram-bos, comdia, drama satrico e tragdia. Destas, as trs primeiras tm um vnculo claro com Dioniso, j para a tragdia a relao no to bvia.

    No primeiro dia do festival, dia 10, um grande cortejo conduzido pelo arconte-rei e protegido pelos efebos, jovens de 16 a 18 anos, acompanha a esttua de madeira de Dioniso Eleutrio, o Libertador, que trazida para a cidade. noite essa esttua ser levada ao teatro luz de tochas. Deste cortejo participam todos os concorrentes nas diversas modalidades poticas. Durante todo este primeiro dia um grande sacrifcio de inmeros animais, uma hecatombe, ali-menta animados banquetes por toda a cidade.

    Nos dias 11 e 12 temos o concurso de ditirambos, que eram cantados em louvor a Dioniso em coros de homens e crianas. No passado, na realidade ou atravs de uma simulao, esses coros de origem muito antiga acompanhariam um rito de sacrifcio dionisaco com dilacerao e consumo das carnes da vtima viva e do seu sangue ainda quente.

    Na noite do dia 12 para o dia 13 havia um grande kmos, procisso irreverente de folies com faloforia, isto , o transporte do falo, na qual apareciam figuras disfaradas e mascaradas, em geral de stiros ou de animais. Seu argumento era em geral rudimentar. Havia uma entrada em cena tumultuada, uma discusso por motivo ftil e um discurso-bufo final. O kmos foi na verdade um espcie de embrio da comdia.

    No dia seguinte, havia justamente o concurso de comdias. Nelas temos retomado o argumento simples do kmos em uma forma mais elaborada nas suas trs partes principais: prodo, entrada tumultuosa do coro, evocando eventual-mente uma cena conhecida, agn, disputa entre as personagens, e parbase, quando o coro dirige-se diretamente ao pblico, solicitando-o como testemunha. No entanto, a comdia diferenciava-se do kmos primitivo por j no apresentar com tanta freqncia Dioniso e seu cortejo.

    Os dias 14 e 15, os dois ltimos dias do festival, eram reservados aos concursos trgicos. Neles, cada autor apresentava trs tragdias, a chamada trilogia, e finalizava com um drama satrico, chamado tambm de drama silnico. Todo o conjunto das 4 peas constitua a tetraloga. A trilogia em seus princpios apresentava unidade temtica. Apenas uma trilogia temtica chegou at ns, a "Orestia", ou a "Trilogia de Orestes", de squilo. Nela, a primeira tragdia representava o regresso e morte de Agammnon nas mos da esposa, Clitmemnestra; na segunda, seu filho, Orestes, o vinga matando a prpria me; e na ltima Orestes inocentado do matricdio pela interveno da deusa Atena. Apesar da grandiosidade deste trptico, a trilogia de mesmo tema praticamente

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  • PIQU, J. F. A tragdia grega e seu contexto

    no foi mais usada por Sfocles e Eurpides, sendo cada uma das tragdias em cada trilogia uma unidade em si. O elemento mais importante do drama satrico, e que lhe dava nome, era o coro de stiros que representava sob a forma de danas acrobticas o aspecto exterior da mana, a loucura decorrente da possesso divina. Esses dramas satricos eram algo semelhantes s tragdias na forma, mas aproveitavam os detalhes grotescos das lendas antigas no seu contedo. Uma das nossas mais importantes lacunas em relao ao teatro grego deve-se ao fato de apenas um drama satrico ter chegado completo at ns pela tradio, os "Ciclopes" de Eurpides, alm de um fragmento extenso dos "Icneutas" de Sfocles.

    E interessante essa composio de tragdias e drama satrico em uma unidade maior, da qual em geral temos apenas a poro trgica. Muitos autores associam a tragdia ao sacrifcio de um animal. Como vimos, nas Grandes Dionsias era sacrificado um bode a Dioniso e bode em grego trgos. Em geral a morte de animais na caa ou em sacrifcios estava associada a sentimentos de culpa pelo sangue derramado que em tudo igual ao do prprio caador ou sacrificador. O animal abatido precisa ser apaziguado de certa forma para que no perturbe o seu matador. Em geral uma srie de rituais ou atitudes tem essa funo. Pois bem, se a trilogia trgica o momento do sacrifcio, do derrama-mento de sangue, da matana, deve haver alguma compensao em cena. Burkert , portanto, considera natural que s tragdias sucedesse um drama satrico, pois os bodes seriam trazidos de novo ao palco, agora vivos, na verdade transbordantes de vida e energia, revertendo os maus fluidos atravs da ressur-reio e assim fechando um ciclo. J do ponto de vista do espectador, depois de uma seqncia de trs tragdias, h uma grande quantidade de tenso natural-mente acumulada e que teria seu momento de liberao atravs do drama satrico.

    Seria importante que enfatizssemos o carter competitivo das repre-sentaes teatrais. Esse carter, na verdade, como sabemos desde Nietzsche, uma das foras motrizes da cultura grega. Como diz Burkert18, " surpreendente a quantidade de coisas que entre os gregos se podem tornar objeto de com-petio: esporte e beleza corporal, artesanato e arte, canto e dana, teatro e disputa." O enfrentamento, a competio pblica (agn), parece atrair irresis-tivelmente os gregos e todas as suas festas apresentam algum tipo de competio. No devemos nos esquecer que a civilizao grega tem um carter fortemente pblico. Desde os poemas homricos, os heris tm o seu status definido pelos feitos que realizam publicamente, diante de iguais. Os Jogos Olmpicos, cujo

    17 BURKERT, op. cit., p. 374. 18 Ibid., p. 234.

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  • PIQU, J. F. A tragdia grega e seu contexto

    primeiro registro de 776 a.C., so o exemplo mximo dessa compulso competitiva em festivais religiosos, neste caso, em homenagem a Zeus e de carter pan-helnico, nos quais no s atletas de vrias cidades gregas com-petiam nas diversas provas, mas tambm poetas e oradores.

    O esprito agonal tambm marcar a tragdia grega, no s pelo fato exterior da competio entre os prprios tragedigrafos, mas incorporado como uma de suas partes mais essenciais, a cena de enfrentamento. Assim, impor-tante sabermos que os autores apresentam suas peas desejando muito vencer e isso acabava por estabelecer um forte vnculo entre o criador e o pblico para o qual ele cria.

    Esse pblico em geral amplo, pois todos participam, estrangeiros, metecos, isto , estrangeiros residentes em Atenas, mulheres e talvez mesmo escravos.19 Os espetculos se sucediam ininterruptamente da manh at o meio da tarde. A luz solar um elemento constitutivo do teatro grego que nossas encenaes modernas em geral no apresentam, constrangidas pelo palco italiano. O ambiente durante a encenao provavelmente era o de qualquer festival, com agitao e tumulto devido ao pblico muito grande, e provavel-mente havia consumo de comida devido longa durao. O que nos faz lembrar um pouco o tipo de pblico que Shakespeare teve em suas peas.

    Esse enorme pblico era devido ao grande acontecimento que eram as representaes teatrais. Em primeiro lugar era a grande festa de Dioniso, que por si s era motivo de atrao, e alm disso havia o carter nico de cada apresentao, que durante muito tempo no voltaria a ser exibida, a curiosidade geral para saber como seria tratado um tema j conhecido por todos, e o simples prazer das pessoas que se renem para uma atividade em comum.

    E nesse ambiente de festa religiosa, festa do esprito e da coletividade, que as tragdias eram apresentadas e por isso tiveram um grande papel na formao de esprito "nacional" de Atenas.

    Mas como dissemos, a sua organizao e funcionamento cabia cidade dentro do ano religioso. Especificamente a responsabilidade da organizao era do arconte-epnimo. A comunidade ateniense mantinha ainda uma antiga diviso em tribos. A partir do regime democrtico, das antigas quatro tribos tradicionais foram formadas dez novas. De cada tribo era escolhido um arconte,

    19 Existem dvidas ainda sobre a constituio do pblico teatral na Atenas no sculo V a.C. Alguns autores defenderam mesmo que as mulheres no teriam lugar na platia. Particularmente no concordamos com essa posio, pois muitas falas trgicas importantes no teriam sentido se no fossem dirigidas a uma parcela feminina do pblico. Este o caso, por exemplo, da clebre fala de Media sobre a condio feminina: "De todos os que tm vida e tm noo,/ns, mulheres, somos o ser mais infeliz". In: EURPIDES. Media. Trad, de Jaa Torrano. So Paulo: Hucitec, 1991, p. 230-231.

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    que era uma espcie de ministro. Esses 10 arcontes organizavam durante um ano o conjunto da vida cotidiana e religiosa na cidade de Atenas. Um deles chamava-se arconte-rei, ou tambm arconte-epnimo, pois dava seu nome ao ano em curso. Era o arconte-epnimo que tinha a funo de escolher trs poetas trgicos dentre os autorizados a concorrer nos concursos.

    Os elementos fundamentais do drama grego, seja tragdia ou comdia, so o coro e os atores. O coro era em geral constitudo por 12 ou 15 pessoas que cantavam e danavam. Os atores eram em nmero mximo de trs. Tanto os participantes do coro como os atores eram sempre do sexo masculino. Mais adiante nos deteremos mais detalhadamente no coro e nos atores.

    Era do arconte-epnimo tambm a escolha de um cidado rico disposto a assumir o pagamento de um imposto voluntrio para financiar os custos da produo de todas as peas. Esse homem chamava-se corego e sua funo era a coregia.

    Os custos basicamente eram o oramento do coro mais o tocador de aulos, e das mscaras e trajes para o coro. Era responsvel tambm pelo pagamento do salrio do corifeu e dos atores, que so j semiprofissionais. O ator mais importante, o protagonista, era pago pela cidade.

    A coregia podia ser recusada, mas dava prestgio social, e muitos dos principais agentes polticos de Atenas, como Pricles, a assumiram.20

    O trabalho do autor uma vez composta a pea e a msica seria basi-camente de trabalhar como ensaiador do coro e dos atores durante os ensaios. Os autores trgicos do sculo V a.C., muito especialmente Frnico e squilo comearam suas carreiras como atores e atuaram em suas prprias peas.

    A princpio as peas eram representadas na Agora, onde eram montadas arquibancadas de madeira. Este lugar era a praa e mercado pblicos da cidade. L, ao ar livre, os camponeses vendiam seus produtos, os peixeiros e os padeiros tinham seus tabuleiros e os banqueiros e cambistas tinham suas mesas. A gora era o lugar por excelncia para encontros e conversas em geral. A partir da instaurao do regime democrtico em Atenas (508 a.C.), passou tambm a ser o local de encontro da Ecclesia, a Assemblia dos Cidados, principal rgo legislativo da cidade. Esta convivncia em um mesmo local das apresentaes teatrais e das deliberaes polticas durou pouco tempo. Um grave acidente em que se feriram espectadores no desabamento das arquibancadas provisrias teria sido o motivo para a mudana de local. No incio do sculo V a.C. os concursos teatrais se transferem para a Acropole, a parte alta da cidade, onde se concen-travam os principais templos. Na encosta suleste da Acrpole ficava o santurio de Dioniso e ali foi construdo o novo teatro, o Teatro de Dioniso. No incio, os

    20 "Os persas" de squilo, significativamente, teve a coregia de Pricles.

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    assentos para os espectadores foram toscamente escavados na prpria colina. J os lugares de honra eram de pedra e reservados a magistrados e aos sacerdotes de Dioniso. Somente ao final da obra, em aproximadamente 330 a.C., o teatro assumiu a forma que conhecemos, j todo em pedra. Sua capacidade total para alguns seria entre 14.000 e 18.000 espectadores, para outros, chegaria aos 27.000. Justamente por isso era usado no somente para representaes dramti-cas mas tambm para cerimnias de vrias espcies e at para reunies da Assemblia dos Cidados, retomando a comunidade espacial dessas duas im-portantes instituies atenienses que j tinha ocorrido no sculo anterior. Na verdade, esta relao vai bem alm de um simples compartilhamento de um local. Se no teatro as peas, direta ou indiretamente, falavam das questes polticas que envolviam a cidade, na assemblia, que se reunia no anfiteatro na Pnix, a 600 metros da Acropole e com capacidade para aproximadamente 20.000 cidados, os oradores, da tribuna, usavam de todos os recursos retricos e teatrais no convencimento em favor de suas teses. Assim a Assemblia era um outro palco na cidade e o Teatro um outro lugar da poltica.

    No final das representaes, os jurados, que eram designados por sorteio (lembremos que o sorteio para os gregos uma forma da manifestao da vontade divina) atribuem o prmio ao poeta vitorioso e ao melhor corego. Os atores tinham prmios especiais. Os vitoriosos tinham seus nomes gravados em pedra.21 squilo venceu 14 vezes, Sfocles, 24, sendo que nunca tirou um terceiro lugar. Eurpides, que teve maiores problemas de aceitao devido a seus temas mais polmicos, apenas cinco, sendo que "Media" tirou um humilhante terceiro lugar.

    Embora os prmios aos vencedores fossem de um valor considervel, autores e atores no viviam totalmente do teatro. Todos tinham seus prprios negcios, alm de eventualmente exercerem cargos pblicos como exigia a democracia ateniense. Somente muito mais tarde, no perodo helenstico, os atores se reuniram em uma associao verdadeiramente profissional, chamada de "Artistas de Dioniso", e foram tambm usados como correios diplomticos.

    Para termos uma idia do carter nacional do empreendimento teatral, depois da festa, no prprio teatro, acontecia uma sesso da Assemblia geral dos cidados para a crtica da organizao do festival. Era uma festa da cidade para a cidade e tambm para os visitantes e por isso era importante que tudo sasse bem. Outro indcio da importncia que era dada ao teatro na festa: a entrada era paga e o dinheiro recolhido era usado na conservao do teatro, mas, sob o regime de Pricles, o estado concedia ao cidado pobre 2 bolos, aproximada-mente um dia de trabalho, para que pudessem pagar a entrada e ir ao teatro.

    21 Essas listas de vencedores chamavam-se didaskalai.

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    O ncleo da tragdia

    Os elementos bsicos da tragdia eram: 1) Coro: composto por 12 ou 15 elementos, os coreutas. Aps entrarem

    na orquestra, a rea de dana no teatro, cantam e danam nesse espao. Estes danarinos-can tores eram em geral homens jovens que estavam a ponto de entrar para o servio militar aps alguns anos de treinamento. No eram portanto profissionais do teatro e da a importncia do tragedigrafo tambm como ensaiador do coro, muito embora os atenienses desde crianas fossem ensinados a cantar e danar.

    O coro trgico quase no participa da ao, limitando-se apenas a coment-la e expressar compaixo ou outros sentimentos pelas personagens. Algumas vezes tambm destaca o sentido religioso da ao e a intercala com preces. Por outro lado, simboliza o grupo - cidade ou exrcito - cuja sorte est ligada s personagens.22

    Os movimentos do coro possivelmente eram usados tambm artisti-camente pelo tragedigrafo, que era ao mesmo tempo coregrafo, para mostrar ao pblico as flutuaes de relaes de poder e as interaes entre os caracteres.

    De todos os elementos do teatro grego, o coro sem dvida o mais estranho para o pblico moderno. Foi na verdade o ncleo inicial do teatro grego, embora percebamos que sua funo se enfraquece aos poucos durante todo o sculo V a.C. e seguinte, na exata medida em que os atores no palco tornam-se cada vez mais o centro da ao. Na evoluo do teatro ocidental se transfomar posteriormente em mero interldio musical entre os atos e finalmente desapare-cer, sendo ressuscitado modernamente pela pera e sua filha bastarda, a comdia musical.

    2) Corifeu: um membro destacado do coro que pode cantar sozinho. Em geral tem 3 tipos de funes principais: a) exortar o coro ao, a comear o canto; b) antecipar, ou resumir, as palavras do coro; c) representar o coro, dialogando com os atores.

    3) Atores: representam deuses ou heris. So em nmero muito reduzido, comparando-se com o teatro atual. Na verdade, pode-se dizer que o teatro surge quando Tspis cria a figura do ator e ele passa a dialogar com o coro. Seu nmero sobe para dois e em seguida trs, mantendo-se nesse patamar, mas podemos observar que a estruturao dos dilogos nas tragdias tende a se concentrar em dois atores apenas, sendo raras as cenas que apresentam um verdadeiro dilogo

    22 Como exceo existiam coros trgicos muito ativos, como por exemplo o coro das Ernias n'As eumnides de Esquilo. Cf. ESQUILO. Oresteia. Trad, de Manuel de Oliveira Pulqurio. Lisboa: Edies 70, 1991.

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    a trs. no dilogo entre atores que se concentra quase a totalidade da ao dramtica.

    Os trs atores tinham nomes que revelam uma relao hierrquica: protagonista: primeiro ator 2 3

    deuteragonista: segundo ator tritagonista: terceiro ator. Uma questo interessante o fato de existirem vrios personagens

    infantis nas tragdias sobreviventes. Na verdade no sabemos com certeza se esses personagens eram interpretados por adultos ou crianas, mas uma pes-quisadora, Emma Griffiths , da Universidade de Bristol, aponta que os movimentos desses personagens em geral so orientados por deixas de outros atores, exatamente como se o autor estivesse procurando meios para evitar as dificuldades inerentes ao se trabalhar com crianas.

    O teatro de Dioniso: as condies da performance

    O thatron, ou seja, o auditrio, como vimos, era de grandes propores, o que significa que os espectadores nas ltimas filas ficavam a mais de 65 metros da rea de representao, e os mais prximos a 10 metros, em uma poca sem culos ou aparelhos de surdez. A conseqncia era que o estilo de interpretao utilizado pelos dramaturgos era mais declamatrio do que naturalista. Os atores deveriam declamar seus versos mais como oradores, uma vez que sutis nuances de voz provavelmente no seriam perceptveis pela audincia.

    No incio havia muito pouco cenrio, apenas uma tenda, skne25, onde os atores trocavam de roupa. O vesturio no parece ter sido de feitio natural. Os atores usavam roupes finamente decorados e botas, como os msicos e os sacerdotes. Usavam tambm mscaras de algum material leve, estas sim com feies mais naturais e que se ajustavam ao rosto do ator acompanhadas de perucas e com bocas abertas para facilitar a dico.

    E difcil dizer de que material eram feitas as mscaras. Como eram perecveis, nenhum exemplar chegou at ns e a nica informao que temos delas atravs das pinturas em vasos. Alguns especialistas defendem que seriam de madeira, como as mscaras no teatro N japons, outros que seriam de couro,

    23 Literalmente "primeiro enfrentador". 24 Cf. Didaskalia home page. 25 Cf. lat. sceiia, ingl. scene, port. cena.

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    como na Commedia dell'Arte, e outros finalmente de pedaos de [Dano e pasta de farinha, como muitas mscaras feitas para o carnaval de Veneza .

    Se por um lado as mscaras impediam o uso das expresses faciais por parte do ator, por outro facilitavam a caracterizao, pois ajudavam o pblico a identificar o sexo, idade e nvel social da personagem. Temos imagens em vasos de atores estudando suas mscaras para aperfeioar a interpretao, que sem dvida se concentrava mais na voz e nos gestos para expressar as emoes. Alguns autores consideram que estas condies materiais da interpretao teriam uma certa influncia na prpria estrutura das tragdias, que apresentam cenas curtas e limitadas, em geral, a monlogos e dilogos, uma vez que o pblico teria dificuldade de perceber quem estaria falando devido s mscaras que impediam a viso do movimento dos lbios. Como resultado, a tragdia grega tenderia a ter um carter em geral esttico e algumas vezes mesmo hiertico na sua apresentao. Havia sem dvida uma nfase maior na palavra, recitada ou cantada, do que na ao. E difcil para ns imaginarmos atores trgicos tendo algum tipo de movimento mais brusco em cena.

    A indumentria dos atores acima descrita era a dos atores no sculo V a.C. e no deve ser confundida com a indumentria do posterior palco romano, com sapatos de plataforma alta e mscaras pesadas com bocas como um megafone. As mscaras eram necessrias no somente para que os atores e membros do coro pudessem assumir papis femininos, mas tambm para per-mitir que um nmero reduzido de atores pudesse interpretar mltiplos papis.

    A linguagem utilizada, por sua vez, era a convencionada jDara o gnero e muito artificial, no variando de personagem para personagem.

    Alm do thatron, literalmente o "local de ver", havia a orquestra, literalmente, o "lugar de danar", em forma de grande crculo. Era a que o coro cantava e danava e, com raras excees, permanecia durante quase a totalidade da pea.

    No lado oposto, havia a skne, uma tenda que tinha inicialmente a funo de ser um lugar para a troca de roupa dos atores. Era uma estrutura provisria, que depois passou a ser construda em madeira apenas para as encenaes. As primeira tragdias, incluindo "Os persas", "Os sete contra Tebas", "As suplican-tes" e "Prometeu acorrentado", teriam sido encenadas na orquestra com atores e coro no mesmo nvel. Aos poucos a skne foi se incorporando s peas, e sua fachada, provavelmente pintada, usada como cenrio, mas talvez no antes de

    26 Cf. Didaskalia home page. 27 Se esta descrio da tragdia grega nos faz lembrar mais a pera que nosso moderno

    xatro naturalista, isso no por acaso. Na verdade a pera surgiu como uma tentativa consciente de reviver o antigo teatro grego.

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    460 a.C. Tinha apenas uma porta central, embora alguns autores proponham trs, e um telhado horizontal, onde personagens podiam aparecer, especialmente deuses. Em geral as cenas transcorriam em frente a palcios, templos etc., sem cenas interiores, como costumamos ver no teatro moderno. E isso no deixava de ser natural para os espectadores daquela cultura, uma vez que estavam acostumados a tratar seus negcios pblicos, civis ou religiosos, em ambiente externo, ao ar livre.

    Havia, de cada lado do palco, rampas conduzindo orquestra chamadas esodos. Os atores podiam descer e se juntar ao coro na orquestra, mas o coro no poderia subir ao palco.

    Outros acessrios teatrais eram um altar que poderia situar-se no palco ou na orquestra e uma grande plataforma baixa com rodas, o enkklema, que ao ser rolado para fora atravs da porta permitiria mostrar cenas interiores que no seriam visveis da platia, por exemplo, no caso de ser necessrio mostrar-se os corpos de pessoas mortas no interior da skne.

    Mais tarde havia tambm uma grua ou guindaste, a mechan , que era usada para elevar personagens em vo, deuses ou heris, como Belerofonte em seu cavalo Pgaso. Sua utilizao mais antiga teria sido em 431 a.C. quando Eurpides o empregou no final da tragdia Media. Seu uso se tornou uma prtica muito comum no sculo IV a.C. como um efeito especial que permitia um miraculoso e quase inacreditvel final feliz ao trazer nela um deus para dar a soluo a uma trama complicada.28

    As comdias de Aris tfanes f reqentemente fazem graa dessa parafernlia trgica, mas seu uso era aceito como mais uma das vrias con-venes do teatro grego.

    Esse conjunto de coro e atores, recitando, cantando e danando, em um teatro com milhares de pessoas, cidados e estrangeiros, luz do dia e dentro de um grande festival estatal em honra a Dioniso que durava 6 dias, infelizmente para ns est completamente perdido. Mas a beleza e profundidade dos textos que chegaram at ns j nos do uma idia do que essas representaes teriam provocado em seus privilegiados espectadores.

    mecanismo. 28 A expresso latina deus ex machina refere-se exatamente a esta prtica teatral e a esse

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    RESUMO

    Este artigo um levantamento geral das condies materiais e histricas do teatro ateniense, i.e., suas origens, organizao, performance e formas, tentando enfa-tizar sua inimitvel singularidade.

    Palavras-chave: tragdia, teatro, encenao.

    ABSTRACT

    This article is a survey of the material and historical conditions of Athenian theater, i.e., its origins, organization, performance and forms, triying to stress its inimitable uniqueness.

    Key words: tragedy, theater, performance.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    AMOURETTI, M.-C; RUZ, F. O mundo grego antigo. Lisboa: Dom Quixote, 1993. BURKERT, W. Religio grega na poca clssica e arcaica. Lisboa: Fundao Calouste

    Gulbenkian, 1993. ELIADE, M. Histria das crenas e das idias religiosas, Tomo I, v. 1 -2. Rio de Janeiro:

    J.Zahar, 1978. EURPIDES, Media, Trad, de Jaa Torrano. So Paulo: Hucitec, 1991. SQUILO. Oresteia, Trad, de Manuel de Oliveira Pulqurio. Lisboa: Edies 70, 1991. HAIGH, A. E. The tragic drama of the greeks. New York: Dover Publications, 1968. HARVEY, P. Dicionrio Oxford de literatura clssica. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1987. HOMRE. Iliade. Paris: Les Belles Lettres, 1936.

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    Sites na Internet

    Didaskalia URL: www.warwick.ac.uk/didaskalia/stagecraft/greek.html Theatre History in Europe: Architectural and Textual Resources Online URL: www.warwick.ac.uk/fac/arts/Theatre-S/THEATRON Perseus Project URL: medusa.perseus.tufts.edu

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