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1 PREFACIO A EDICAO PORTUGUESA O mito é urna presenga constante na vida: deixou de pertencer a esfera exclusiva dos deu- ses e dos heróis e passou a impregnar o nosso quotidiano. Se a deusa Afrodite e o herói Hera- cles, tal como os seus equivalentes ñas culturas ditas «primitivas», véem as suas historias rotu- ladas como mitos ou se as aventuras e actos de coragem merecerá, por vezes, o mesmo epíteto, a verdade é que é vulgar os meios de comuni-cagáo de massas utilizarem o vocábulo refe-rindo um jogador de futébol, urna actriz de cinema ou um político. Marilyn Monroe, Elvis Presley, Miojc Jaegger, Ensebio ou, até, Marx sao os heróis desta mitología. Mas o aconte-cimento, simples recordagao de urna narrativa heroica, também pode ser assim qualificado. Ε o mito é, entao, equivalente a faganha, acto corajoso ou atitude invulgar. Inicialmente historia de um ser divino, o mito banalizou-se e desceu á rúa, ao nivel de todos nos. Mas, nao o esquegamos, o mito, na origem, fala grego. Do μύΖος grego ao mito dos nossos dias o percurso é longo e demorado, mas riño contra- ditório, e passa por um vasto conjunto de pro-dugdes do imaginario humano. Surge na Grecia, reaparece em Roma, mas também entre os Celtas ou entre os Bosquímanos, na Asia como na América, na África ou na Oceünia. As «historios» da mitología, com roupagens diversas, brotam em todas as culturas. O mito é universal. A mitología pode ser encarada segundo duas perspectivas: 1) a apresentagáo de um corpus mítico, ou 2) o estudo dos mitos. Como «ciencia dos mitos», a mitología surge ja na Grecia antiga como urna necessidade de meditacáo — e de interrogando— sobre as historias dos deu- ses e dos heróis e é particularmente desenvolvida com a exegese das epopeias, cuja autoría é atribuida a um poeta de nome Homero, a Ilíada e a Odisseia. Mito como poetizagáo da historia e identificagáo dos deuses com monarcas cujos feitos levaram os seus contemporáneos a conferirem-lhes urna dimensao sobre--humana (como pensavam Evémero e os seus seguidores) ou mito como urna forma diferente, velada, de dizer as verdades fundamentáis e de apresentar o real (como defenderá as teorías alegóricas e simbólicas)? As posigdes teóricas estáo, assim, definidas desde a Anti-guidade e vdo chegar até aos nossos dios, acentuadas pela meditagáo de autores cristáos me-dievais e de autores renascentistas. O interesse pelas civilizagóes distantes da Europa origina que o objecto da mitología, primitivamente limitado a área mediterráritcu, se alargue. No século xrx, Max Müller e os seus companheiros da «escola da mitología comparada» estudam o fenómeno mítico segundo urna perspectiva comparativista, levando a metodología a um extremo de exploragáo. Já no século xx, Gilbert Murray, Jane Harrison e F. M. Cornford, entre outros, opóem-se ao pan-comparativismo e real-gam a importancia do ritual na formagáo ecompreensáo dos mitos («escola antropológica inglesa»). Nesta segunda metade do século xx, podemos dizer que se impóem tres linhas funda- mentáis de investigagáo mitológica1: funcionalismo, simbolismo e estruturalismo. Para os funcionalistas, com B. Malinowski em primeiro plano, o conhecimento do mito parte do estudo in loco das culturas indígenas do océano Pacífico, onde o mito é um elemento vivo e actual, isto é, que funciona dentro do sistema social em que se integra. A designagáo muito genérica de simbolismo incluí os trabalhos de todos aqueles que consideram que o mito tem um sentido que está para além do imediatamente expresso e o objectivo da investigagáo é, precisamente, atingir esse significado profundo, oculto. E. Cassirer, S. Freud, C. G. Jung, K. Kerényi, M. Eliade, P. Ricouer, G. Gusdorf ou G. Durand sao alguns dos autores que tém de comum o admitirem o símbolo, tautegórico, que se afirma a si próprio e que, ao contrario do signo, implica a intervengáo de reacgóes fundamentáis, como a actividade e o querer. Quando se pensa em estruturalismo, o nome de Claude Lévi-Strauss é o que normalmente ocorre. De facto, ele tem dedicado a sua investigagáo ao estudo do mito, propondo um método original de análise. Embora numa linha diferente, Georges Dumézil, que nao pode rejei-tar o «rótulo» de estruturalista, langa a ciencia dos mitos para espagos novos e mais profundos: o esquema indo-europeu da tripartigáo funcional é a grande descóberta da «nova mito-logia comparada»2 e os resultados obtidos — por G. Dumézil e pelos seus numerosos discípulos— demonstram a validade da análise. Podemos ainda acrescentar a este conjunto crítico, e a par de posigoes nao enquadradas, a intervengdo de urna

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PREFACIO A EDICAO PORTUGUESA O mito é urna presenga constante na vida: deixou de pertencer a esfera exclusiva dos deu-

ses e dos heróis e passou a impregnar o nosso quotidiano. Se a deusa Afrodite e o herói Hera-cles, tal como os seus equivalentes ñas culturas ditas «primitivas», véem as suas historias rotu-ladas como mitos ou se as aventuras e actos de coragem merecerá, por vezes, o mesmo epíteto, a verdade é que é vulgar os meios de comuni-cagáo de massas utilizarem o vocábulo refe-rindo um jogador de futébol, urna actriz de cinema ou um político. Marilyn Monroe, Elvis Presley, Miojc Jaegger, Ensebio ou, até, Marx sao os heróis desta mitología. Mas o aconte-cimento, simples recordagao de urna narrativa heroica, também pode ser assim qualificado. Ε o mito é, entao, equivalente a faganha, acto corajoso ou atitude invulgar. Inicialmente historia de um ser divino, o mito banalizou-se e desceu á rúa, ao nivel de todos nos. Mas, nao o esquegamos, o mito, na origem, fala grego.

Do μύΖος grego ao mito dos nossos dias o percurso é longo e demorado, mas riño contra-ditório, e passa por um vasto conjunto de pro-dugdes do imaginario humano. Surge na Grecia, reaparece em Roma, mas também entre os Celtas ou entre os Bosquímanos, na Asia como na América, na África ou na Oceünia. As «historios» da mitología, com roupagens diversas, brotam em todas as culturas. O mito é universal.

A mitología pode ser encarada segundo duas perspectivas: 1) a apresentagáo de um corpus mítico, ou 2) o estudo dos mitos. Como «ciencia dos mitos», a mitología surge ja na Grecia antiga como urna necessidade de meditacáo — e de interrogando— sobre as historias dos deu-ses e dos heróis e é particularmente desenvolvida com a exegese das epopeias, cuja autoría é atribuida a um poeta de nome Homero, a Ilíada e a Odisseia. Mito como poetizagáo da historia e identificagáo dos deuses com monarcas cujos feitos levaram os seus contemporáneos a conferirem-lhes urna dimensao sobre--humana (como pensavam Evémero e os seus seguidores) ou mito como urna forma diferente, velada, de dizer as verdades fundamentáis e de apresentar o real (como defenderá as teorías alegóricas e simbólicas)? As posigdes teóricas estáo, assim, definidas desde a Anti-guidade e vdo chegar até aos nossos dios, acentuadas pela meditagáo de autores cristáos me-dievais e de autores renascentistas. O interesse pelas civilizagóes distantes da Europa origina que o objecto da mitología, primitivamente limitado a área mediterráritcu, se alargue. No século xrx, Max Müller e os seus companheiros da «escola da mitología comparada» estudam o fenómeno mítico segundo urna perspectiva comparativista, levando a metodología a um extremo de exploragáo. Já no século xx, Gilbert Murray, Jane Harrison e F. M. Cornford, entre outros, opóem-se ao pan-comparativismo e real-gam a importancia do ritual na formagáo ecompreensáo dos mitos («escola antropológica inglesa»).

Nesta segunda metade do século xx, podemos dizer que se impóem tres linhas funda-mentáis de investigagáo mitológica1: funcionalismo, simbolismo e estruturalismo. Para os funcionalistas, com B. Malinowski em primeiro plano, o conhecimento do mito parte do estudo in loco das culturas indígenas do océano Pacífico, onde o mito é um elemento vivo e actual, isto é, que funciona dentro do sistema social em que se integra. A designagáo muito genérica de simbolismo incluí os trabalhos de todos aqueles que consideram que o mito tem um sentido que está para além do imediatamente expresso e o objectivo da investigagáo é, precisamente, atingir esse significado profundo, oculto. E. Cassirer, S. Freud, C. G. Jung, K. Kerényi, M. Eliade, P. Ricouer, G. Gusdorf ou G. Durand sao alguns dos autores que tém de comum o admitirem o símbolo, tautegórico, que se afirma a si próprio e que, ao contrario do signo, implica a intervengáo de reacgóes fundamentáis, como a actividade e o querer. Quando se pensa em estruturalismo, o nome de Claude Lévi-Strauss é o que normalmente ocorre. De facto, ele tem dedicado a sua investigagáo ao estudo do mito, propondo um método original de análise. Embora numa linha diferente, Georges Dumézil, que nao pode rejei-tar o «rótulo» de estruturalista, langa a ciencia dos mitos para espagos novos e mais profundos: o esquema indo-europeu da tripartigáo funcional é a grande descóberta da «nova mito-logia comparada»2 e os resultados obtidos — por G. Dumézil e pelos seus numerosos discípulos— demonstram a validade da análise. Podemos ainda acrescentar a este conjunto crítico, e a par de posigoes nao enquadradas, a intervengdo de urna

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linha que designaremos por semiótica. Em 1973, realizou-se, na Universidade de Urbino, um congresso sobre o mito grego3, onde se evidenciaram as tendencias contemporáneas da investigagáo mitológica e onde se afirmaram as potencialidades da análise semiótica. Na década de 80, parece de realgar o de-senvolvimento do simbolismo, com o acentuar da componente explorativa do Imaginario*.

Enquanto conjunto de mitos, a mitología é um corpus variado, heterogéneo e complexo. A mitología grega —conjunto de narrativas dos feitos dos deuses e dos heróis da Grecia antíga — é um exemplo suficiente para demonstrar a afirmagáo. Das aventuras amorosas de Zeus e dos ciúmes de Hera aos feitos de Hermes, Hefesto, Deméter, Apolo, Afrodite ou Ares, das faganhas dos heróis da Guerra de Tróia — Aqui-les, Ulisses, Heítor, Príamo, Helena, París, Ajax,

4 A grande obra de referencia desta tendencia continua a ser Les Structures anthropologiques de l'Ima-ginaire, París, Bordas, 1958, de Giltaert Durand. Néstor, Agamémnon, Menelau, etc. — aos feitos de Teseu ou de Heracles e passando, naturalmente, por Deucaliáo e Pirra ou Édipo, Antígona e Electra, o campo é vasto e foi, em todas as épocas, fonte de inspiragáo para escritores e artistas plásticos e, ao mesmo tempo, referente para o quotidiano. Á semelhanga da mitología grega, a romana também foi divulgada, embora, em muitos momentos, tenha imperado a ideia de que esta nao passa de urna nacionalizagáo daquela. A mitología romana é, por isso, muí-, tas vezes apresentada como urna simples subs-tituigáo nominal da grega: os deuses e heróis romanos seriam os gregos com nomes diferentes. G. Dumézil demonstrou que os Romanos também tinham urna mitología original, que se \deveria procurar, principalmente na historia. Sem negar a influencia grega, nao nos esque-gamos que muitas das semelhangas entre os deuses gregos e romanos, por exemplo, resul-tam da origem indo-europeia comum\ O livro I de Tito Lívio é o exemplo probante da existencia de urna mitología romana, que é eminentemente histórica e heroica.

Ponto de partida do interesse pela mitología, a «mitología grega» tem servido de exemplo e de referente para o estudo de outras mitologías, desde a do Egipto e da Mesopotámia á dos Germanos, dos Maoris, dos Astéeos. A ela re-correu Freud para baptizar o complexo básico do psiquismo humano (o complexo de Édipo) ou a NASA para designar um dos seus projectos fundamentáis de exploragáo espacial (Apolo).

5 Parentesco que, por exemplo, aproxima, do ponto de vista lingüístico, os nomes de Zeus e de Júpiter, nos quais existe um elemento inicial comum.

l Mesmo a nossa vida quotidiana está repleta de elementos que remetem para a mitología

antiga ou que a ela recorrem, para nao referir já a procura, por parte dos artistas, de urna visáo poética e maravilhosa da vida e dos seres. O conhecimento da mitología grega é, assim, essencial como ponto de partida para urna abordagem geral da problemática de todo o universo mítico.

Esta obra, cuja tradugáo se propóe ao lei-tor de língua portuguesa —e que vem enriquecer substancialmente a pobre bibliografía nacional sobre temática mitológica—, é urna introdugáo á mitología grega. Quem se interessa pelas «historias» dos deuses e dos heróis encontrará aquí nao só urna apresentagáo linear dessas historias, como, também, o equaciona-mento geral da ciencia dos mitos, da própria mitología grega e, nalguns casos, até da sua interpretagáo. Obra simples, escrita em lingua-gem despretensiosa, A Mitología Grega, da autoría de Pierre Grimal, professor titular da Uni-versidade de París IV e um dos mais distintos classicistas franceses, é urna leitura necessária e um marco obrigatório para todos aqueles que procuram, no mito, urna resposta para as suas interrogagóes.

Procuramos, nesta tradugáo, permanecer o mais possível fiéis ao espirito do Autor, ten-tando transmitir a sua linguagem, fluente e nao demasiado erudita. Como obra de divulgacáo que é, A Mitología Grega nao tem lugar para notas ao texto, necessárias numa leitura mais exigente; também a tradugáo as dispensou, era-bora nao hesitemos em remeter o Leitor inte

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ressado para outra obra do mesmo Autor, mais profunda e mais completa: Dictionaire de la Mythologie Grecque et Romaine6. Na ortografía dos nomes próprios, sempre sujeita a polémica, seguiu-se a ligáo do Prof. Rebelo Gongal-ves, expressa no seu Vocabulario da Língua Portuguesa7. O vocábulo demonio é utilizado no texto num dos sentidos do grego δαίμων (fr. démonj, isto é, referindo um genio ou espirito sobrenatural, urna divindade menos importante que os deuses principáis.

Víctor Jabouille INTRODUCAO O MITO NO PENSAMENTO DOS GREGOS ANTIGOS Dá-se o nome de «mitologia» grega ao conjunto das narrativas maravilhosas e das lendas

de todo o género que os textos e os monumentos figurados demonstram que se propagaram nos países de língua grega, entre o século ix ou viii antes da nossa era, época a que se re-portam os poemas homéricos, e o fim do «paganismo», tres ou quatro séculos depois de Jesús Cristo. Trata-se de urna materia imensa, difícilmente definível, com origens e características bastante diversas, que se pensa ter desem-penhado e desempenhar ainda, na historia espiritual do mundo, um papel considerável.

Todos os povos, num momento da sua evo-lucáo, tiveram lendas, isto é, narrativas ma-ravilhosas as quais acrescentaram, durante al-gum tempo, a fé — pelo menos em certo grau. A maior parte das vezes, as lendas, porque fa-zem mtervir forgas ou seres considerados como superiores aos humanos, pertencem ao dominio da religiáo. Apresentam-se, entao, como um sis-tema, mais ou menos coerente, de explicacao do mundo, sendo criador cada um dos gestos do herói de quem se cantam os feitos e acarretando eonsequéncias que se repercutem no universo inteiro. Pertencem a este tipo os grandes poemas épico-religiosos da literatura indiana. Noutros países, é o elemento épico que predomina. Sem dúvida que os deuses nao estáo ausentes da narrativa, onde a sua acgáo é sensível, mas a génese do mundo nao é, por isso, posta em dúvida. O herói contenta-se em dar grandes golpes com a espada, em inventar artimanhas memoráveis, em realizar viagens a países maravilhosos e, se ultrapassa a medida humana, permanece da mesma esséncia que a humanidade. A este tipo pertencem todos os ciclos lendários dos Celtas, que nos sao dados a conhecer pelos romances galeses, por exemplo. Noutros lugares, ainda, as narrativas do mito acataaram por perder quase todo o carácter maravilhoso e dissimulam-se sob a aparén-cia da historia. Os Romanos, eni particular, parecem ter integrado, desse modo, ñas suas mais antigás crónicas, verdadeiras gestas len-dárias: o heroísmo de Horacio Cocles defen-dendo a ponte do Tibre contra os invasores nao é, diz-se, senáo a última encarnagao de um demonio cegó de um olho, cuja estatua, colocada sobre as margens do rio, teria perdido o seu significado primitivo e serviu, finalmente, para forjar na íntegra um episodio da luta (em parte histórica) entre Romanos e Estruscos.

O mito, na Grecia, participa em todas estas natorezas. Tanto se colora de historia, e serve de título de nobreza as cidades ou as familias, como se desenvolve em epopeia ou como vem apoiar ou explicar as crengas e os ritos da reli-giáo. Nao lhe é estranha nenhuma das fungóés que, noutros locáis, reveste a lenda. Mas o mitoé ainda outra coisa. A palavra grega que serve para o designar ígááss) aplica-se a toda a historia que se conta tal como ao assunto de urna tragedia ou de urna comedia ou, ainda, a urna fábula de Esopo. O mito op6e-se ao logos, como a fantasía á razáo, a palavra que conta á que demonstra. Logos e mythos sao as duas meta-des da linguagem, duas fungóes igualmente fundamentáis da vida do espirito. O loaos, sendo um raciocinio, pretende convencer; origina, no auditor, a necessidade dé estabelecer um juízo. O logos é verdadeiro, se é justo e conforme á «lógica»; é falso, se dissimula qualquer artima-nha secreta (um «sofisma»). Mas o mito nao tem outro fim senáo ele próprio. Acreditamos nele ou nao, a nosso bel-prazer, por um acto de fé, se o achamos «belo» ou verosímil, ou, simplesmente, se desejamos acreditar nele. O mito, assim, atrai á sua volta toda a parte do irracional no pensamento humano: é, pela sua própria natureza, aparentado á arte, em todas as suas criagóes.

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Ε é essa, talvez, a característica mais surpreendente do mito grego: ve-rificamosque ele está integrado em todas as actividades do espirito. Nao há nenhum dominio do helenismo, tanto na plástica como na literatura, que nao tenha constantemente recorrido a ele. Para um grego, o mito nao conhece nenhuma fronteira. Insinua-se por todo o lado. É táo essencial ao seu pensamento como o ar ou o Sol á sua própria vida.

As primeiras epopeias hoje conhecidas em língua grega, que sao a Ilíada e a Odisseia, sao já «mitos», no sentido alargado. Sao caracterizadas pela mistura constante do humano e do sobre-humano Os heróis da Ilíada tém por antepassados, isto é, por pais, urna ou mais divindades e, ao mesmo tempo, sao considerados como antepassados das familias nobres his-tóricas. Aquiles é filho de Tétis, deusa do mar, e o seu destino está determinado por oráculos que existiram desde sempre. Helena, motivo da Guerra de Tróia, é filha de Zeus, e é a von-tade de Afrodite, a deusa do amor, que a leva a deixar seu marido e sua filha quando o troiano Páris foi procurá-la a Esparta. Deuses e deusas combatem nos dois campos: Apolo, protector de Páris, ofendido pela outra parte na pessoa de um dos seus sacerdotes, cuja filha, Criseide, fora raptada pelos Aqueus, semeia a peste no exército destes. Posídon, Atena, Ares intervém na luta. Ε as faganhas de Aquiles testemunham, sem dúvida, o valor pessoal do herói, mas também, a protecgáo divina, que nao o abandona em nenhum momento.

Verifica-se o mesmo na Odisseia. A descendencia de Ulisses nao está, sem dúvida, táo bem atestada —a tradigáo que faz dele o bastardo de Autólico, filho de Hermes, nao é a única conhecida—, mas a deusa Atena constitui-se como sua protectora, e é ela, finalmente, que o salva da cólera e do rancor do deus do mar, Posídon. A epopeia grega tem por esséncia magnificar os debates dos homens e, pelo mito, alargá-los as dimensóes do universo. As suas narrativas, tomadas á letra, testemunham urna fé religiosa: Zeus e as divindades do Olimpo intervém materialmente nos assuntos humanos; é preciso honrá-los com sacrificios, apaziguar os seus ressentimentos, conciliar-se com eles por todos os meios. Mas já a interpretagáo do mito tende a ultrapassar esta limitada materialidade. Quando Zeus pesa, numa balanca, os «destinos» (as Moiras) de Aquiles e de Pátro-clo, que se defrontam em combate singular sob as muralhas de Tróia, é difícil admitir que os Gregos da época clássica tenham acreditado realmente na balanca gigantesca, de que um prato toca o céu e o outro mergulha ñas trevas infernáis, mesmo se Esquilo, numa sua tragedia perdida, acredita poder apresentar materialmente este pesar de almas. O mito nao é es-partilhado nos seus termos. Ele esboga urna imagem, um símbolo, se quisermos, de urna ;realidade que seria, de outro modo, inefável. É muito provável que aos próprios olhos do poeta o episodio fosse apenas um meio de ex-pressáo, urna forma de revelagáo, que ajuda a concebe'r o misterio do mundo, mas que nao poderia ser tomada á letra.

Do mesmo modo, os santuarios dedicados as divindades ofereciam, nos seus frontóes, um episodio característico da lenda do deus ou da deusa a quem era dedicado o templo. Sobre o f rontáo leste do Pártenon, está representado o nascimento miraculoso de Atena; a oeste, a luta entre Posídon e Atena, que reclamavam, cada um, a posse da Ática. Estas imagens en-carnam, de modo total e melhor do que o poderia fazer urna análise apoiada ñas palavras, o sentimento que os Atenienses tinham da sua cidade e deles próprios: Atenas saindo da ca-beca do senhor todo-poderoso, nascida sem máe, como o povo ático «saiu do solo» (au-tóctone, dizia-se entáo), mas descendendo, todavía, da Prudencia (Métis), á qual, outrora, se tinha unido seu pai. Deméter e Core, a Terra e a Vegetagáo, aguardam serenamente o anuncio do nascimento miraculoso. Ε em breve, sobre a térra banhada com dádivas do mar, impregnada com sal e vento marinho de Posídon, a deusa fará crescer a oliveira, a mais lenta, a mais sabia, a mais brilhante de todas as árvores. O mito de Atena, mesmo já nao acreditando na sua verdade literal, nao propóe um menor número de especulagóes infinitas e fá-lo como urna inspiragáo cujo poder, depois de tantos séculos, ainda nao está esgotado.

Reserva de pensamento, o mito acabou por viver urna vida própria, a meio caminho entre a razáo e a fé ou o jogo. Nele teve a sua fonte toda a meditagáo dos Gregos e, depois deles, a dos seus distantes herdeiros; foi nele que procuraram os seus temas os poetas trágicos e os líricos as suas imagens. Prometeu, Édipo, Orestes, foram, em primeiro lugar, heróis da lenda. As imagens

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de Aquiles e de Ulisses, a loucura de Ajax, infinitamente reproduzidas em vasos: jarros para vinho, tagas, recipientes de toda a especie, misturavam o mito á vida quo-tidiana e tornavam-no familiar. Em casa como no teatro, essas figuras sao companheiros que impregnam o pensamento, ocupam a imagina-gao, dominam as concepgóes moráis. Nao há, até áos filósofos, quando o raciocinio atingiu o seu limite, quem nao tenha recorrido a ele como um modo de conhecimento susceptível de libertar o desconhecido. Assim, Platáo, no Fédon, no Fedro, no Banquete, na República, noutras obras ainda, prolonga o seu pensamento através de mitos que inventa. Nao é, sem dúvida, excessiva sustentar que esta gene-rahzagáo do mito e esta libertagáo dos seus poderes foram um dos contributos fundamentais —talvez mesmo o contributo mais essen-cial— do helenismo ao pensamento humano. Gracas a ele, o sagrado perdeu os seus terrores; abriu-se á reflexáo toda urna zona da alma; gragas a ele, a poesía pode transformar-se em sabedoria.

CAPÍTULO I MITOS Ε MITOLOGÍA O trabalho dos escritores e dos sabios antigos que utilizaram os dados lendários ou que os

recolheram para eles próprios nao é suficiente para mascarar a espantosa diversidade, ver incoeréncia, que testemunham. Homero, Hesíodo, Píndaro, Esquilo dáo, é ver-dade, a impressáo de se ref erirem a um sistema mítico bem definido, no qual os deuses e os heróis apresentam caracteres fixados urna vez por todas e parecem pos-suir urna lenda com episodios conhecidos. Mas essa é urna impressáo engañadora, que resulta sobretudo do facto de os poetas (Hesíodo, enquanto autor da Teogonia, deve ser deixado de lado) procederem quase únicamente por alusóes e nao exporem de modo didáctico as genealogías divinas ou as narrativas a que se referem. Mas, mesmo nestas condigóes, urna análise atenta é suficiente para revelar as diferengas ou as contradigóes entre os autores e, por vezes, até na obra de um mesmo autor. A unidade nao é introduzida senáo de um modo facticio e secundario. Os mitos nao nascem como um conjunto organizado a maneíra de um sistema filosófico, teológico ou científico. Crescem ao acaso, como as plantas, e compete ao mitólogo encontrar neles familias, especies e variedades.

Sobre um assunto aparentemente táo essencial como o nascimento de Zeus, o maior dos deuses, exis-tem as mais diversas tradigóes. A mais conhecida sitúa o local do nascimento no monte Ida, em Creta; mas, na mesma ilha, o monte Dicte reivindicava a mesma honra e, ao sul do Peloponeso, existe ainda, nao longe de Messene, urna fonte denominada Clepsidra, junto da qual teria nascido a crianga divina.

Existem tantos santuarios quantas as lendas diferentes, as quais nao se tornaram contraditórias senáo a mitología grega no dia em que se decidiu identificar o Zeus cretense, demonio de Ida ou de Dicte, com o Zeus messénio do monte Itome. A contradigáo existe apenas no interior de urna «mitología» pan-helénica. Mas é evidente que a constituicáo de urna tal mitología nao é de modo algum primitiva e resulta já de urna reflexáo sobre o mito.

As dificuldades que se deparam sao, por vezes, mais incómodas de resolver, porque resultam do facto de a lenda se ter desenvolvido ao longo de épocas e estratos sociais ou históricos diferentes. As genealogías dos Atridas falam-nos dos senhores de Micenas, dos senhores de Tirinte e dos senhores de Argos, e é. por vezes, difícil distinguir estes reinos. Tudo se clarifica se pensarmos que o grande desenvolvimento de Tirinte e de Micenas nao é contemporáneo do de Argos. Urna lenda de Micenas, em que intervinha um «rei» local, torna-se incompreensível numa época em que a suserania já nao era a de Micenas, mas, sim, a de Argos. Ó narrador fazia, espontáneamente, a trans-posigáo necessária, mas certos elementos, típicamente locáis, permaneciam e originavam a confusáo. É ainda o que se passa em todo um conjunto de lendas tes-sálicas, que tém lendas paralelas no Peloponeso. Coró-nis, a amada de Zeus e máe do deus da medicina, Asclépio, é apontada, normalmente, como sendo filha do tessálio Flégias. Mas, ao mesmo tempo, as lendas dizem-nos que este Flégias era, na realidade, um habitante de Epidauro. no Peloponeso, e que isso explica que o culto de Asclépio tenha florescido em Epidauro. Estas variantes reflectem, na realidade, um tempo em que um mesmo povo ocupava um territorio que se estendia da Tessália até Epidauro —ou, se preferir-mos, que emigrou da Tessália para o Peloponeso, explicando as duas hipóteses os factos—, antes de ser

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submergido por vagas de invasores que lhe retiraram o sentimento da sua unidade. Esta unidade ancestral nao sobreviveu senáo na comunidade das lendas e dos nomes dos lugares. A similltude do Flégias epidáurio e do Flégias tessálio corresponde á das duas Larissa, a cidade tessálica e a cidadela de Argos.

Verifica-se que ρ mito nao é urna realidade inde-pendente, mas que evolui com as condigóés históricas e étnicas e, por vezes, conserva testemunhos imprevistos sobre estados de outro modo esquecidos. A este respeito revela-se como um meio de investigagáo precioso e, se nao acreditarmos de um modo táo ingenuo como há um século ou dois que a lenda é sempre urna deformagáo da historia, sabemos hoje ínterrogá-la e, desse modo, fazé-la mostrar o que retém do tempo e do meio em que surgiu. Os mitólogos modernos sao mais sensíveis que os seus predecessores longín-quos á variante rara e reveladora. Desconfiam dos mitos demasiado perfeitos: a sua coeréncia trai as modificagóes e o trabalho secundario de que foram objecto.

O trabalho sobre os mitos comegou cedo e, a maior parte das vezes, o que encontramos nos textos é o resultado de urna longa evolugáo. As «fontes» clássicas da mitología estáo, geralmente, neste caso. Já nos fináis do século vi antes da nossa era, o milésio Hecateu tinha escrito mais de quatro livros de Genealogías, de que possuímos apenas alguns fragmentos, mas cuja doutrina permaneceu ñas obras dos seus sucessores. Ela domina as especulagóes dos primeiros historiadores —Acusilau de Argos e Ferecides de Atenas—, que recolheram as lendas, consideradas como o «primeiro capítulo» da historia nacional. É¡, sem dúvida, a Feígcldes de Atenas que se deve a primeira elaboragáo dos mitos relativos ás origens áticas e a constituicáo de urna lista «canónica» dos reis da sua regiáo, na qual se unem intimamente antigos demonios do solo (como Erictónio e o seu duplo Erecteu) e personagens verdaderamente históricas. Mas nao se limitou apenas ás tradigóes da sua regiáo e vemo-lo preocupado em conciliar entre elas as lendas argivas, que surgem já, e a justo título, como fundamentáis para o conhecimento da «Idade Media» grega. Ferecides, sob esta perspectiva, foi o percursor de um outro escritor, cuja importancia se revelou considerável: He-lánico de Mitilene. Também este se debrugou sobre as crónicas argivas, e a sua Cronología das Sacerdotisas de Hera (a grande deusa de Argos) recolheu tradigóes sagradas muito importantes, de que a maior parte, infelizmente, desapareceu. É sobre Helánico que recai a honra de ter sido o primeiro a referir a cidade de Roma, que considera como urna cidade grega, fundada após a grande dispersáo que sucedeu ao «regresso» dos vencedores de Tróia. A tendencia fundamental de todos estes trabamos e todas estas recolhas, que se situam entre o século vi e o fim do ν antes da nossa era, é o desejo de fixar urna «cronología» dos acontecimentos, tanto históricos como lendários. A dis-tingáo entre as duas ordens de acontecimentos —dis-tincáo moderna e, por vezes, muito fugaz, porque a lenda pode nao ser senáo urna interpretacáo da historia e nao existe nenhum criterio que permita estabe-lecer a separacáo com seguranca— ainda nao se entrevé. Ε a classificagáo dos acontecimentos permanece principalmente temporal. Trata-se de determinar as concomitancias em relagáo a pontos fixos, que se su-póem conhecidos, como, por exemplo, a tomada de Tróia ou a fundacáo dos jogos olímpicos. O quadro mais adoptado é o que fornecem as «geracóes», e veri-fica-se um esforco para integrar nelas os acontecimentos e as personagens. Naturalmente, surgem dificul-dades. As aventuras de Heracles, nomeadamente, que se desenrolam num universo que se acreditaría vazio — a lenda, sob a sua forma mais antiga, nao conhece o encontró de Heracles com qualquer dos outros heróis maiores—, colocam problemas de concordancia particularmente delicados, porque a tradicáo nomeia os filhos de Heracles e mostra-os empenhados num ou noutro dos grandes empreendimentos colectivos, ao mesmo tempo que os filhos de Teseu, por exemplo. Como é que as coisas se passaram para que Teseu e o grande herói argivo nao se tivessem encontrado? Ao genio inventivo grego nunca faltaram recursos e será explicado que a actividade de Teseu se desen-volveu durante o caüveiro de Heracles na Lidia, junto de ónfale, e que, inversamente, Teseu se encontrava nos Infernos, prisioneiro de Plutáo, durante toda a última parte da vida de Heracles. Há. assim, episodios necessários no interior das «biografías» lendárias. Estes episodios nao sao, naturalmente, primitivos; sao introduzidos para se obterem concordancias cronológicas necessárias. Sao, por vezes, geracóes inteiras de «duplos» que é

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preciso intercalar para evitar as sobrevivencias ou as longevidades impossíveis. A muito elevada idade de Néstor, um dos combatentes dos Aqueus em Tróia, explica-se únicamente porque Néstor figura como comparsa no ciclo de Heracles. Crianga ainda no momento em que o herói combatía Neleu e os seus filhos, em Pilo, na Messénia, Néstor deve estar vivo aquando da expedigáo aqueia: eis o motivo por que se lhe concede a vida de tres geragóes de homens, o que, de urna só vez, faz dele um anciáo encanecido, um sabio escutado no conselho e sugere a imaginagáo urna figura tornada tradicional. Sobre este ponto, a cronología foi criadora, e captamos ao vivo o nascimento de um episodio.

Com o inicio da idade clássica, os grandes quadros das lendas fixam-se e as incoeréncias que subsistiam permanecem. Considera-se a historia dos tempos len-dários como definitivamente adquirida e a preocupa-gáo principal é conhecé-la melhor. A partir do sé-culo ni a. O, surgem as «coleccóes», de que, por vezes, chegaram até nos os resumos, sob o nome, abusivamente utilizado, do seu primeiro autor. Algumas des-sas recomas eram especializadas num determinado tipo de lendas. Eratóstenes de Cirene, por exemplo, escre-via, na segunda metade do século πι a. C, um livro de Transformagoes em Astros (Catasterismoi), em que reuniu os exemplos conhecidos de historias em que o herói ou a heroína estavam. no fim da sua historia, colocados entre as constelagóes. Este trabalho será continuado durante toda a Antiguidade e encontrare-mos, assim, manuais de aventuras amorosas (o de Parténio de Niceia, contemporáneo de Virgilio, chegou até nos), recolhas de Metamorfoses — o grego Nicandro; que escreveu no século u a. C, servirá de modelo directo ao longo poema que Ovidio publicará sob esse título no tempo de Augusto. Mas os mitógrafos seráo, por vezes, mais ambiciosos e alguns esforgar-se-áo por abarcar a totalidade das tradigóes lendárias. A mais importante tentativa deste tipo é a obra conhecida sob o nome de Biblioteca de Apolodoro. Apolodoro era um gramático e um «filósofo» ateniense do sé-culo II da nossa era, que consagrou a sua vida á exe-gese dos poetas antigos. A Biblioteca que lhe é atribuida nao é obra sua, mas é, sem dúvida, um resumo escrito no século primeiro da nossa era. Encontramos nessa obra urna mitología ordenada, partindo da criagáo das coisas e dos deuses, e descendo, em seguida, por geragóes, até aos derradeiros períodos da lenda, isto é, até aos tempos que se seguem á tomada de Tróia. A mitología nao é mais do que um «cadáverembalsamado», pura materia de erudigáo afastada das suas fontes vivas.

A par das grandes recomas canónicas, cujo objec-tivo essencial é introduzir urna unidade facticia e mortal, encontramos, assim, outras fontes, trabalhos concebidos segundo um espirito absolutamente oposto e muito mais de acordó com as preocupacóes modernas. A mais preciosa para nos é a Descricáo da Grecia, de Pausanias, que conservou a recordacáo de um número considerável de lendas locáis, excluidas das grandes sínteses. mas que constituem outras tantas variantes raras e mantidas vivas no folclore. A obra de Pausanias, tal como foi conservada, nao cobre, infelizmente, a totalidade das regióes gregas, e para algu-mas délas subsiste a nossa ignorancia. Conseguimos eolmatá-la, melhor ou pior, gracas a indicacóes dispersas reunidas pelos comentadores dos poetas e coñudas nos escolios, que sao as notas colocadas pelos editores antigos ñas obras clássicas. Este trabalho de erudicáo paciente exerceu-se principalmente a propósito dos poemas homéricos e continuou mesmo após o fim do paganismo. Os sabios bizantinos Iohannes e Isaac Tzetzes deixaram-nos urna verdadeira mina de f actos que remontam. por vezes, a urna muito recuada antiguidade.

Tal é, o seu conjunto, a mitología grega: materia com origens bastante diversas, fragmentos muitas vezes mal reunidos em sínteses facticias, em que o trabalho lento dos sabios, dos escritores e dos poetas acrescentou ou elirmnou, segundo a sua disposigáo de momento, mas em que ainda se distinguem, por vezes, os dados primitivos da imaginagáo e da piedade populares. O erudito e o espontáneo, o verdadeiro e o artificial estáo ai intimamente misturados. O mérito da ciencia moderna é o ter iniciado urna análise que está longe de ter terminado, mas que permite já com-preender melhor o verdadeiro significado e dimensáo de um modo de pensamento essencial ao espirito humano.

Se considerármete agora a mitología «clássica», nao já na sua formagáo e evolugáo, mas como um todo fixo sob urna forma «canónica», verificamos que todos os mitos que ela nos propóe

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nao tém o mesmo valor nem a mesma forma. Uns sao narrativas que dizem respeito á criagáo do mundo e ao «nascimento» dos deuses. É para estes, e apenas para estes, que convém reservar o termo de mito no seu sentido estrito. Seráo aqui designados como «mitos teogónicos» ou «cosmogónicos», segundo o caso. Estas narrativas foram reunidas sobretudo por Hesíodo, mas sao, naturalmente, bastante anteriores e representan! contributos, dos quais uns sao puramente gregos e outros provém das religióes orientáis, ver pré-helénicas. Seria, por isso, erróneo considerá-los como dados primitivos. Sao, na maior parte dos casos, concepcóes bastante evoluídas, que se formaram nos meios sacerdotais e foram. pouco a pouco, enriquecidas com elementos filosóficos, sob a forma de símbolos difícilmente dissimulados. Estes mitos nao deixaram de estar vivos, mesmo em plena época clássica e, ató, posteriormente. Continuaram a servir de suporte ás crengas religiosas e, como veremos, as religióes de salvagáo integraram-nos nos seus misterios.

A par dos mitos propriamente ditos, encontramos os «ciclos» divinos e heroicos. Estes ciclos constituem series de episodios ou historias em que a única unidade é fomecida pela identidade da personagem que é o herói. Diferentemente dos «mitos», estas narrativas nao possuem nenhuma significagáo canónica. Quando Heracles suporta o céu sobre os seus ombros. apenas prova, com isso, a sua forga física. Nem o céu nem o universo ficam, por isso, «marcados» para sempre. Pouco importa que o herói destas narrativas seja um deus (Hermes, Afrodite, o próprio Zeus) ou um mortal semidivinizado. Nenhuma lenda relativa a urna di-vindade reveste, por isso mesmo, urna dünensáo teológica. Hermes rouba bois e arrasta-os pela cauda para evitar que os tragos denunciem o esconderijo onde os dissimulou. É um tema folclórico muito conhecido e que nao apresenta nenhum significado religioso especial.

O carácter essencial do mito é o seu fracciona-mento. O ciclo nao nasce todo formado; é o resultado de urna longa evolugáo no decurso da qual se iusta-póem, melhor ou pior, episodios primitivos indepen-dentes e se integram num todo. É o caso, por exemplo, das aventuras de Heracles, que existiram durante muito tempo sem um elo recíproco. Cada um dos grandes «trabalhos» está ligado a um local ou a um santuario; nem é mesmo certo que, na sua origem, o herói tenha sido sempre o próprio Heracles. £i pro-vável que este tenha confiscado em seu proveito episodios preexistentes. O leáo morto por Alcátoo ao servigo do rei de Mégara recorda estranhamente o do Citéron, de que Heracles desembaragou o rei Tés-pio. O processo é evidente para as extensóes ociden-tais mais recentes do ciclo heráclida: os viajantes gregos e, em seguida, os romanos conheceram Heracles nos países itálicos, gauleses, e até na própria Ger-mánia. Deste modo, o jogo das assimilacóes com as divindades indígenas acabou por integrar no ciclo elementos que, na origem, lhe eram estranhos. Ε o próprio Heracles grego tem, também, características que pertencem aos semitas (ou semitizados) Gilgamés e Melcarte e, ainda, a outros deuses cuja recordacáo está hoje perdida.

O terceiro tipo de narrativa lendária é, por vezes, designado sob o nome de «novela». Como o precedente, está localizado em situacóes determinadas; tal como o anterior, nao reveste valor cósmico ou simbólico, mas, enquanto o ciclo está agrupado ao redor de urna única figura, a unidade da «novela» é puramente literaria e define-se pela da intriga. Assim, a Guerra de Tróia nao é um ciclo de Helena oú um ciclo de Aquiles ou, sequer, um ciclo dos Priámidas. É a historia de urna longa aventura, com episodios complexos e personagens diversas. O poema homérico conhecido sob o nome de Ilíada nao desenvolve senáo urna pequeña parte déla, a que está concentrada em torno da cólera de Aquiles; o resto é apenas recordado por alusáo: os dez anos do cerco, o saque das cidades asiáticas, a expedigáo falhada urna primeira vez. o desembarque infeliz na Mísia, a nova expedigáo, os ventos que se recusam a soprar e que é preciso conciliar pelo sacrificio de urna virgem e, depois da morte de Heitor, a de Aquiles, a de Páris, a tomada da cidade, a luta dos presságios e a dos adivinhos. Tudo isto ultrapassa infinitamente o quadro da obra literaria. Nao é mesmo certo que cada um destes episodios tenha sido o objecto de rapsodias distintas. A «Guerra de Tróia» é um tema livre, ao qual se acrescentavam todos os prolongamentos, todos os seguimentos que se desejavam, com total fantasia. Estamos a meio caminho entre a novela lendária e a ficgáo de um romancista e de um poeta: há um momento em

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que a aventura de Helena foi tida como verdadeira. Os heróis do romance nunca recebem um culto. Ora Helena, sabemo-lo, é urna divindade «deposta», divindade lunar ligada, sem dúvida, á religiáo das populacóes pré-helé-nicas do Peloponeso. Existia um «túmulo de Helena», um «túmulo de Menelau», um «túmulo de Aquiles», onde Alexandre devia, um día, oferecer sacrificios. Aos oíros dos Gregos, tudo isto é historia verdadeira, mesrcwj sem a imaginagáo dos poetas que os tinham ornamentado com floreados literarios. Os heróis das novelas literarias podem prestar-se a todas as fantasías; nunca se identificam com elas, por mais genial e por maior que seja a obra que os utiliza.

Se formos, por fim, um pouco mais longe na análise, o que encontraremos já nao sao os conjuntos lendários, mas simples narrativas «elementares», ane-dotas etnológicas, isto é, destinadas a explicar álgum pormenor surpreendente do real: urna anomalía num ritual religioso, um costume, a forma singular de um rochedo. a consonancia de um nome próprio. Assim, num templo, em Chipre, encontrava-se urna estatua de urna mulher inclinada para a frente — testemunho de um ritual esquecido, figurante de qualquer magia simpática da fecundidade. Contava-se, para explicar esta atitude nao usual da estatua, que era o corpo meta-morfoseado em pedra de urna jovem curiosa surpreen-dida pelos deuses no momento em que olhava pela janela, e sobre este tema tecia-se urna historia de amor. Esta é a lenda de Anaxárete, cuja crueldade tinha causado a morte do seu apaixonado e que nao tinha experimentado outro desejo senáo o de ver, pela janela, passar o cortejo fúnebre da vítima. Coracáo de pedra, Anaxárete tornou-se estatua, e o seu corpo, assim imortalizado, foi colocado no templo de Afrodite.

Muitas narrativas análogas dizem respeito a nomes de lugares e estáo fundamentadas em jogos etimológicos. A imaginagáo popular nunca faltava a invengáo necessária para os explicar. As variagóes no nome dos rios —é um fenómeno bem conhecido dos geógrafos o de cada curso de agua apresentar denominagóes diversas segundo as populagóes instaladas ñas suas margens— fomecem, em particular, urna materia ines-gotável. Ε passa-se o mesmo com os desenhos das constelacóes, com o movimento de um planeta, em que se descobrem atraccóes ou odios que tém a sua origem numa aventura que aconteceu outrora a seres posteriormente transformados em estrelas.

A materia mítica pode, pois, classificar-se num certo número de categorías que permitem cómodamente a análise. Nao sejamos, todavía, ingenuos ao ponto de levar semelhantes classificacóes a fronteiras incertas. O mito cosmogónico pode degradarse em ciclo ou em novela; a lenda etiológica integra-se num ou noutro com extrema facilidade. Urna mesma lenda pode, segundo a fantasía ou as exigencias espirituais de cada um, tomar a forma de um romance ou a de urna revelacáo mística. Esta plasticidade do mito é inerente á sua natureza: nao é urna característica adquirida tardíamente, mas urna propriedade fundamental do μithoς , activo desde o período mais longín-quo da historia das lendas.

Como para todos os seres vivos, as dissecagóes anatómicas nao seráo capazes de fazer esquecer que a realidade última da mitología reside, nao nos mem-bros dispersos, mas num organismo com pulsacóes e com metamorfoses incessant

CAPÍTULO II OS GRANDES MITOS TEOGÓNICOS Todos os povos, num determinado momento da sua historia, sentiram necessidade de

explicar o miando. Os Gregos, a procura, como tantos outros, de um principio motor no seio do Ser, acreditaram descobri-lo no Amor. No principio, havia a Noite (Nyx) e, ao lado, o Erebo, que é seu irmáo. Sao as duas faces das Trevas do Mundo: Noite, no alto, e obscuridade nos Infernos. Estas duas entidades coexistem no seio do Caos, que é o Vazio — nao o vazio inexistente e negativo dos físicos e dos sabios, mas um Vazio que é todo ele poder e «matriz» do mundo, vazio por inorganizacáo e nao por privacáo, vazio porque é indescritível e nao porque nao é nada. Pouco a pouco, a Noite e o Erebo separam-se nele. Erebo desee e liberta a Noite, que se toma, ela prdpria, oca e fica urna esfera imensa, de que as duas metades se separam como o desabrochar de um ovo: é o nascimento de Eros (o Amor), enquanto as duas metades da concha

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se tornam urna a abobada do Céu e a outra o disco, mais achatado, da Terra. O Céu e a Terra (Urano e Geia) possuem urna realidade material. Amor é urna f orea da natureza espiritual e é ele que assegura a coesáo universal nascente. Urano deita-se sobre Geia e da sua uniáo comecam as geragóes divinas.

Existem outras versees desta lenda. Dizia-se, por vezes, qua a Terra tinha saído directamente do Vazio e que tinha engendrado ela própria, com o único auxilio de Eros, nascido em segundo lugar no Mundo, a abóboda do Céu. Por outro lado, o Caos gerou a Noite, que, por sua vez, deu nascimento ao Éter, que é a luz bri-lhante, o f ogo mais puro, e ao Dia, que ilumina os moríais. Mas, qualquer que seja a variante, é sempre Eros o animador e o elemento motor do Universo no seu inicio.

A uniáo de Urano cbm Geia revelou-se fecunda. Déla nasceram duas vezes seis Titas e Titánides. Os seis Titas íforam Océano, Ceu, Crio, Hiperíon, Jápeto e Crono; as seis Titánides, Tia, Reia, Témis, Mnemósine, Febe e Tétis. Sao seres divinos, mas, ao mesmo tempo, for-gas elementares, de que algumas conservaram até ao fim o seu carácter quase exclusivamente naturalista. Océano é o mais célebre de todos. É a personificacáo da agua que rodeia o Mundo, e sobre a qual flutua o disco terrestre. Nao é urna entidade «geográfica», é urna forca cósmica; a sua concepeáo nasceu num tempo em que se pensava que a térra habitada era urna ilha imensa, colocada no centro de um rio que a cercava. Tinha-se a impressáo de encontrar esta agua primordial a Ocidente, no país ver-melho das «filhas da noite», para além daquilo a que se chamará, mais tarde, as Colunas de Hércules; encontravam-na na Etiopia, nesse mar Eritreu, que tanto é o nosso mar Verme-Iho como o golfo Pérsico; locahzavam-na, tam-bém, para norte, nos recónditos do Erídano, sinuosa linha de agua que, a norte dos territorios conhecidos da Europa, avangava de Oriente para Ocidente e onde as geracóes posteriores quiseram reconhecer o curso do Danubio, o do Pó, o do Ródano ou o do Reno. Mas, antes destas determinagóes geográficas incertas, o Océano já existia. Agua primordial, é o pai dos rios, que sao alimentados por ele gragas a cañáis subterráneos ou que dele derivam de modo misterioso, como o Nilo, cujo segredo está escondido ñas profundezas das areias da Etiopia. Océano, o mais velho dos Titas, é «casado» com Tétis, a mais jovem das Titánides, que personifica a forga feminina do Mar. Nao nos devenios espantar por encontrar um duplo símbolo do Mar: toda a fecundidade é dupla. Só, urna potencia feminina pode amadurecer e atrair o semen do macho. Tétis habita longe, para oeste; agasta-se, por vezes, com Océano, mas ohega o momento da reconciliagáo e a ordem do mundo está salva, apesar dos caprichos ine-rentes á natureza das mulheres.

Ao lado da Agua primordial, eis o Fogo astral: Hiperíon (cujo nome significa: O-que-vai--por-cima) une-se a Tia, a divina, e nascem tres criangas: Helio, o Sol, e duas filhas, Setene, a Lúa, e Eos, que é a Aurora. Em seguida, Hiperíon e Tia desaparecem da lenda, depois de terem, de algum modo, estabelecido a ligagáo entre as geragóes divinas. Crio nao escolheu a esposa entre as Titánides e encqntrá-lo-emos na posteridade de Ponto. O seu irmáo Ceu uniu-se a Febe, a Brilhante, e foi o pai de Leto, que desempenhou um papel multo importante na geragáo dos Olímpicos. Jápeto, rompendo também com a tradigáo que atribuía aos Titas

urna Titánide em casamento, desposou Clímene, urna das filhas de Océano e Tétis, e os seus quatro filhos, Atlas, Menécio, Prometeu e Epi-meteu, seráo os intermediarios entre os deuses e os homens. É a Jápeto que remonta, indirectamente, a criagáo dos mortais.

Entre as Titánides, merectem particular aten-gáo duas: Témis e Mnemósine. A primeira é, por excelencia, o poder da Ordem do mundo': Témis é a Lei, o equilibrio eterno. A sua irmá Mnemósine é o poder do Espirito, a Memoria que garante a vitória do espirito sobre a materia instantánea e fundamenta toda a inteligencia. Elas nao se uniram aos Titas, mas fo-ram, de algum modo, reservadas para Zeus e para a geragáo dos Olímpicos. É que os Titas sao forcas brutais, elementos nos quais o espiritual ainda nao é pressentido senáo no estado rudimentar. É singular e significativo que as duas potencias em que se prefigura o espirito sejam de natureza feminina — talvez porque o espirito recusa a violencia e discorda de toda a accáo imediata; talvez porque a maturagáo é lenta; talvez porque, simplesmente, encontramos nessas crengas o reflexo de um

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estado social —bem conhecido noutros locáis— em que as mulheres sao as depositarías dos segre-dos e das crengas comuns da tribo.

De todos os Titas, o mais importante para o desenvolvimento do mundo foi Crono, o mais jovem, o que gerou os Olímpicos.

A uniáo de Urano e de Geia nao tinha limitado os seus frutos aos Titas e as Titánides. Depois deles, nasceram os Ciclopes: Arges, Es-téropes e Brontes, que representan!, evidente-mente (os seus nomes provam-no), o claráo do relámpago, as nuvens da tempestade e o estrondo do trováo. Em seguida, nasceram os monstros com cem Dragos (os Hecatonqui-ros), gigantescos e violentos, que se chamavam Coto, Briareu e Gies. Todas estas criangas cau-savam horror a Urano, que nao lhes permitia que vissem a luz e os obrigava a permanecer ñas profundezas da Terra. Geia quis libertá-los e tentou conspirar com eles contra Urano. Ne-nhum concordou, excepto o mais jovem dos Titas, Crono, que odiava o pai. Geia deu-lhe, entáo, urna pequeña foice de ago muito agu-gado, e quando, urna noite, Urano se aproxi-mou de Geia, envolvendo-a toda, Crono, com um golpe da sua foice, cortou os testículos ao pai e langou-os para longe. O sangue da ferida caiu sobre a Terra e, urna vez mais, fecundou-a. Foi assim que nasceram novos monstros: as Erí-nias, os Gigantes e as Melíades, que sao as ninfas dos freixos.

Crono ficou, deste modo, como o único a reinar sobre um universo de que se delineavam os primeiros esbogos. Mas era violento e trans-portava consigo a maldigáo do seu crime. Longe de libertar os seus irmáos monstruosos, apres-sou-se, depois de os ter tirado do ventre de sua máe, a langá-los de novo ñas trevas infernáis, para o fundo do Tártaro, o que indispós Geia contra ele. Como esta lhe tinha predito que ele seria, um dia, destronado por um dos filhos, tratou de devorar todos os que lhe dava a titánide Reía, de quem tinha feito sua esposa. Foi assim que gerou e, sucessivamente, devorou tres filhas —Héstia, Deméter e Hera— e dois filhos — Hades e Posídon. Mas quando o mais novo dos filhos, o pequeño Zeus, estava prestes a nascer, Reia quis evitar que tivesse a mesma sorte dos irmáos e fugiu secretamente. Com a cumplicidade de Geia, encontrou asilo em Creta, onde deu á luz. Tomando, entáo, urna pedra, envolveu-a em faixas, deu-lhe o aspecto de urna crianca recém-nascida e ofereceu-a a Crono. Engañado pela aparéncia, Crono devo-rou aquilo que tomava pelo seu filho, e Zeus foi salvo. O oráculo de Geia iría cumprir-se.

Reia protegeu a infancia do pequeño deus, mantendo-o escondido numa caverna de Creta, onde o confiou as Ninfas e aos Curetes. Os Curetes eram demonios turbulentos, que ti-nham inventado o uso das armas de bronze e passavam o tempo a dangar, entrechocando langas e escudos. Reia pensou que o tumulto que eles faziam era adequado para cobrir os vagidos do recém-nascido e impedir que Crono descobrisse a fraude de que tinha sido vítima. A crianga divina bebeu o leite da cabra Amal-teia e comeu o mel que as abelhas do monte Ida destilaram propositadamente para ela. Quando a cabra que o alimentava morreu, Zeus con-servou a sua pele, com que fez urna couraga, a égide (ou «pele de cabra»), que agita no céu de tempestade.

Tendo crescido, Zeus sonhou em destronar o pai. Conseguiu, astuciosamente, fazé-lo absor-ver urna droga, que obrigou Crono a vomitar as criangas que tinha devorado. Zeus, encontrando assim os seus irmáos, declarou guerra a Crono. Os Titas tomaram o partido de seu irmáo. A guerra durou dez anos, até ao dia em que Geia revelou a Zeus que obteria a Vitoria se chamasse em seu auxilio os monstros que Crono mantinha encerrados no Tártaro. Foi deste modo que, com a ajuda dos Ciclopes, dos Hecatonquiros e dos Gigantes, os filhos de Crono conseguiram destronar o pai: Crono e os Titas foram agrilhoados e foram substituir no Tártaro os outros filhos de Urano. Foi assim a Titanomaquia, ou Guerra dos Titas, que afas-tou do poder a geragáo primordial e nele insta-lou os primeiros Olímpicos.

Conclui-se que o essencial das lendas teogó-nicas consiste numa serie de «substituicóes», cada geragáo sucedendo, pela violencia, á que a tinha precedido no poder sobre o mundo. Ε verifica-se, por duas vezes, que é o mais jovem dos deuses, o que, em cada geragáo, nasceu em último lugar, que conquista a proe-minéncia: Crono, o mais novo dos Titas, e Zeus, o mais novo dos «Crónidas». É opiniáo geral reconhecer neste facto o vestigio de um estado social no qual a sucessáo pertencia ao mais jovem dos filhos; mas nenhuma cidade grega exemplifica tal facto no

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plano histórico e é muito possível que o esquema sucessoral sobre o qual se construíram estes mitos provenha de urna zona nao helénica. O carácter claramente astral do mito de Urano e a mutilacáo fecundante infligida por Crono ao pai sugerem, pelo menos por estes episodios, origens asiáticas. Mitos análogos, conhecidos pelos textos hití-ticos de Hattuusa, na Anatólia Central, encon-tram-se desde a Cilícia até á Siria, e sabe-se que lagos apertados sempre uniram estas regióes da bacia do Egeu. Parece, assim, que os mitos propriamente «gregos» nao comegaram senáo a mitología grega com o aparecimento de Zeus, mas —conse-quéncia talvez mais importante— daí resulta também que esta dupla sucessáo das geragóes divinas nao representa necessariamente, como por vezes se eré, a recordacáo da substituigáo de crengas preexistentes por urna religiáo conquistadora. Isso pode ser verdadeiro para Zeus vencedor de Crono; nao o seria para Crono «assassino» de Urano. A mutilagáo de Urano é um acto ritual de fecundidade, pelo qual Crono «liberta» as fontes da vida cósmica, e é sobre este rito, real ou simbolizado pela imagem, que se desenvolveu o mito. A subida ao poder dos Olímpicos passa-se de outro modo.

As divindades substituidas por Zeus e pelos seus irmáos parecem, em certa medida, repre-sentar um sistema religioso anterior á entrada na Grecia dos conquistadores «arianos». Estas divindades nao foram suprimidas; elas continuaran! a viver ñas lendas e, pelo menos em certos locáis, mesmo a receber um culto. Mas surgem como potencias secundarias, depostas, cujo carácter monstruoso repugna ao pensa-mento grego. Muitas sugerem associagóes com o mar. é provável que os Heeatonquiros, os gigantes com cem bragos, sejam, por exemplo, apenas a transposigáo mítica dos polvos, animáis que aparecem táo frequentemente na mais antiga cerámica do Egeu. Mas há mais. Subli-nhámos já a importancia de Océano entre os filhos de Urano e Geia. Urna serie de lendas paralelas, mais ou menos bem ajustadas á genealogía «canónica», dá-nos a conhecer um outro filho da Terra, nascido sem a intervengáo de nenhum poder masculino, a que se chama Ponto, a Onda marítima. Geia uniu-se a ele e deu-lhe toda urna posteridade, entre a qual se encontram, precisamente, um grande número de demonios secundarios, nos quais parece legítimo reconhecer divindades anteriores á vinda dos primeiros Helenos. Estao todos próximos das forgas e dos fenómenos da natureza, o que nao é, geralmente, o caso dos Olímpicos. Todos, ou quase todos, sao seres monstruosos, com forma dupla, que se encontram como figurantes nos mitos mais recentes.

O filho mais velho de Ponto e Geia foi o «velho do mar», Nereu. Unido a Dóris, urna das filhas de Océano, gerou as Nereides, «filhas das vagas». Nereu é velho; é sabio e conhece todos os segredos e todas as profecías. Mas tem repugnancia em revelar o seu saber e, para escapar aos indiscretos, usa voluntariamente o poder que tem de se metamor-fosear. O aspecto de Nereu recorda o de Pro-teu, que é apresentado já na Odisseia e que é um demonio do mar situado ñas aguas egipcias. Na época grega clássica, Nereu nao é mais do que um servidor de Posídon com a fungáo de guardar os rebanhos de focas que perten-cem íao grande deus.

O segundo filho de Ponto é Taumas, que desposou Electra, urna outra filha de Océano, que lhe deu filhas: iris, a mensageira dos deu-ses, personificagáo do Arco-iris, e as Harpías, denominadas Aelo e Ocípete (a Borrasca e A-que-voa-depressa), as quais se acrescenta, por vezes, Celeno (a Obscura). Sao os genios da Tempestade, impetuosos como a borrasca que se abate sobre o mar e arrasa tudo na sua passagem. As Harpías sao essencialmente rapaces. Mulheres aladas, possuem garras agugadas, e a sua morada está situada no coracáo do mar Jónio, ñas ilhas Estrófades.

O terceiro filho de Ponto é Pórcis, que habita na regiáo da Capadócia, na costa ocidental da Grecia. Sao descendentes dele as Greias, que sao as «velhas do mar», denominadas Enio, Pefredo e Dínon. Viviam nos confins do Oci-dente, numa regiáo onde nunca brilha o sol. Eram as irmás das tres Górgonas, Esteno, Eu-ríale e Medusa, das quais apenas a última era mortal. As Górgonas apresentavam um aspecto aterrador. A sua cábeca estava rodeada de serpentee, armadas com poderosas presas, semelhantes as do javali, as suas máos eram de bronze e as asas de ouro permitiam-lhes voar. Os olhos brilhavam e saía deles um olhar táo penetrante que quem o visse era transformado em pedra. Objecto de horror, tinham sido relegadas para os confins do mundo, na noite, e nao havia ninguém táo Corajoso que fosse capaz de as abordar. Só

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Posídon se unirá a Medusa e a engravidara. Os filhos desta uniáo eram Pegaso, o Cávalo Alado, e Crisaor, O-ser--com-espada-de-ouro, que foi, por sua vez, o pai de Gérion, o gigante com tres corpos que Heracles matará, e da Víbora, Equidna. Esta Equidna unir-se-á, por seu lado, ao mais hor-rível dos monstros, Tifón, que ameagou suplantar o próprio Zeus; ela deu-lhe varios filhos: o Cao Monstruoso, Orto, o Cao dos Infernos, Cerbero, a Hidra de Lema e a Quimera, que foi inimiga de Belerofonte. De Orto e de Equidna nasceram a Esfinge tebana e o Leáo de Némia. A imaginacáo grega dava, assim, urna descendencia aos seres de pesadelo sobre os quais Heracles havia de triunfar.

O último descendente de Ponto foi urna fi-lha, Euríbia. Ela desposou o tita Crio e a sua posteridade foi astral. O seu filho mais velho desposou a Aurora (Eos), que lhe deu como filhos os Ventos, a Estrela da Manhá (Héos-phoros) e, por fim, todos os Astros. O segundo filho foi o gigante Palas, marido de Estige (Styx). Nao gerou senáo forgas simbólicas: o Chime, a Vitoria, o Poder e a Violencia. Mas o terceiro filho de Crio e de Euríbia, unido a Asteria, filha de Ceu e de Febe, tornou-se o pai da deusa infernal Hécate, com tripla forma.

A geragáo pré-olímpica —isto é, todas as divindades que nao se ligam directamente a Crono, mas que derivam dos Titas e das ou-tras unióes de Geia— c'ompreende, pois, todos os monstros que a lenda conhece e que desem-penharáo um papel nos ciclos divinos e heroicos, tal como ñas «novelas». Mas compreende, também e sobretudo, divindades puramente «naturalistas»: o Sol, a Lúa, a Aurora, os Astros, os Ventos, e os genios dos fenómenos na-turais, como a Tempestade e a Trovoada. É, com efeito, a esta geragáo primordial que pertencem os Ciclopes, filhos de Urano, que é preciso distinguir dos Ciclopes construtores, que sao urna populagáo mítica, vinda da Licia para se colocar ao servigo dos reís de Argos, a quem se atribuíam construgóes aparentemente sobre-humanas, feitas com blocos enormes, ainda visíveis em Micenas ou em Tirinte. Os Ciclopes «uranianos», por seu lado, sao apenas tres: Brontes, Estéreopes e Auges, e já referimos a sua relagáo evidente com a Trovoada. Sendo também um deus do céu, Zeus tomá-los-á, mais tarde, ao seu servigo, e eles seráo enearregados de «forjar» os raios. Urna tradigáo quer mesmo que tenham sido eles a dar ao recém-chegado estas armas, que primitivamente nao possuía. A pouco e pouco, os Ciclopes seráo considerados os fabricantes das armas divinas: o arco de Apolo, a couraga de Atena, etc., que fabricavam sob a direcgáo de Hefesto, o deus-artífice da nova geragáo. Mas é provável que tal nao passe de urna criagáo tar-día, datando de um período nao anterior á época alexandrina. A sua actividade, nesse momento, iocaliza-se sob os vulcóes da Sicilia; é o fogo da sua forja que ilumina, de noite, o cume do Stromboli ou do Etna, o ronco dos seus foles, o martelar das suas bigornas que ecoam nessas paragens. Mas as lendas mais antigás explicam de modo diferente os fenómenos vulcánicos. Atribuem essas martifesta-góes aos Gigantes, aprisionados no interior da Terra, depois da sua revolta contra Zeus, no termo da Gigantomaquia.

Geia, depois da vitória de Zeus, nao ficou satisfeita, tal como nao tinha ficado depois da de Crono. Estava descontente com o tratamento infligido pelos vencedores aos Titas, que eram seus filhos, e quis libertá-los da prisáo. Recor-reu, para isso, aos Gigantes, que tinham nas-cido déla própria e do sangue de Urano. Estes Gigantes nao eram imortais, mas só podiam ser mortos pelos golpes de um deus desferidos ao mesmo tempo dos de um mortal. Sao seres enormes, com urna forga invencível e com urna grande audacia. Possuem urna cabeleira e urna barba hirsutas e as suas pernas sao serpentes. Situa-se o local do seu nascimento na quase ilha trácia de Palene. Mal saíram da térra,comegaram a brandir árvores em chamas e a lapidar o céu com golpes de rochedos. Foi en-táo que intervieram os Olímpicos. Zeus arma-se com o raio, Atena com a égide e a langa, Dio-niso brande o tirso; cada divindade intervém com a sua arma favorita. Ε como é necessário que um mortal ajude os deuses na luta, recor-reram a Heracles. Esta intervengáo de Heracles é singular. Ela é contraria a toda a cronología, visto que o nascimento de Heracles é bastante posterior á criagáo do homem e ao diluvio de Deucaliáo, que marcOu o fim da primeira geragáo mortal. Tal trai, sem dúvida, o carácter artificial e recente da Gigantomaquia, a menos que se queira considerar que este Heracles nao é, ainda, senáo o prototipo do herói de que a lenda se apoderará posteriormente. Se ja como for, iniciou-se a luta entre os deuses e os Gigan-

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tes. Heracles intervém sobretodo com as suas flechas, que atingem os Gigantes no momento em que um deus os abate. Os Gigantes disper-saram-se, e o mundo inteiro ficou juncado com destrogos e com projécteis. Foi assim que Encelado foi esmagado pela Sicilia, sob a qual o encerrou a deusa Atena. A ilha de Nisiros, lan-gada por Posídon, esmagou Polibotes. O folclore atribuiu a este episodio da lenda um grande número de pormenores topográficos, um pouco como, no monte de Saint-Michel e noutros locáis, se evoca Gargántua a propósito da forma de urna montanha ou de urna ilhota.

Zeus, antes de conquistar, sem contestagáo, o poder, tinha ainda de sofrer urna prova: a luta contra Tifón (ou Tifeu). Segundo as fon-tes, Tifón era um filho de Hera, que a deusa tinha concebido sem o auxilio de qualquer ser masculino, ou, entáo, era um filho da Terra, filho que ela tinha tido do Tártaro. Tifón era maior do que os Gigantes e, muitas vezes, a sua cabega tocava as estrelas. No lugar de dedos, ñas máos, tinha cem cabecas de dragáo. A partir da cintura e até aos pés, o seu corpo estava rodeado de víboras. Era alado e os seus olhos langavam chamas. Quando os deuses vi-ram este monstro atacar o céu, fugiram para o Egipto e dissimularam-se no deserto, onde to-maram a forma de animáis. Apolo tornou-se um milhafre, Hermes, um ibis, Ares, um peixe, Dioniso, um bode, Hefesto, um boi, etc. Expli-cava-se, assim, o culto prestado pelos Egipcios a divindades simbolizadas por animáis* Zeus e Atena, entretanto, ficaram sos perante Tifón. Zeus e Tifón iniciaram, nos confins do Egipto e da Arabia Petreia, um combate corpo a corpo. Tifón ficou por cima e apoderou-se da harpé ('άρπη, a «fouce») com que estava armado o deus. Cortou os tendóes dos bragos e das per-nas de Zeus, levou aos ombros o corpo naquele momento inerte e encerrou-o numa caverna, na Cilícia; dissimulou, por outro lado, os «ñervos» de Zeus numa pele de urso e confiou-a a um dragáo. Mas Hermes e o deus Pá conseguiram roubar esses tendóes e colocá-los no seu lugar sem Tifón se aperceber. Zeus reencontrou deste modo o seu vigor e o combate recomegou. Du-rou muito tempo, e os seus episodios decorre-ram no mundo inteiro, até ao momento em que Zeus esmagou o seu adversario sob o Etna, na Sicilia, e reduziu-o á impotencia.

Tifón foi o ultimo adversario de Zeus. As faganhas dos dois Aloídas, dois gigantes filhos de Posídon, que sobrepuseram montanha sobre montanha para escalarem o Olimpo e ofende-rem, com o seu amor, Ártemis e Hera, nao constituíram um perigo real para o equilibrio do mundo. Foi suficiente o lancamento de um raio para Zeus os precipitar nos Infernos. Daí para a frente, a autoridade do soberano dos deuses permanecen incontestada. A idade dos monstros estava ultrapassada. Aqueles que o mundo conhecerá posteriormente seráo os descendentes um pouco degenerados dos seres pri-mordiais, filhos da Terra. Eles seráo apenas um pouco perigosos para os moríais e é a Heracles que Zeus confiará o encargo de os abater.

Ficava por explicar, no universo, a presenca dos homens. A sua criagáo nao é atribuida á linha de Crono, mas á descendencia de um outro Tita, Jápeto, e de sua mulher, a oceánide Clímene. Jápeto teve quatro filhos: Atlas, Me-nécio~ Prometeu e Epimeteu. Os dois primeiros sao gigantes brutais e «sem medida». Atlas ge-rou demonios astrais e é dele que sao originarias duas constelacóes, as Híades e as Pléiades. A ele próprio, depois da Giganíomaquia, na qual participou contra os deuses, foi imposto um castigo severo. Recebeu a missáo de suportar, sobre os ombros, a abobada do Céu, no local em que ele se inclina para o Océano, no extremo ocidental do mundo. Per seu, no re-gresso, após ter morto a górgona Medusa, transformou-o em pedra, mostrando-lhe a face do monstro. Atlas tornou-se a montanha que limita a térra habitada a sul das Colunas de Hércules e marca o principio do grande Océano.

Diz-se, por vezes, que, dos quatro filhos de Jápeto, foi Prometeu quem criou os moríais, modelando-os com argila. Na verdade, esía ira digáo nao é umversalmente aceite. Na Teogonia de Hesíodo, Prometeu ainda nao é considerado senáo como o benfeitor dos homens; por eles, tenta, varias vezes, engañar Zeus. Urna primeira vez foi quando, no decurso de um sacrificio solene, Prometeu tinha dividido um boi em duas partes: de um lado, sob a pele, a carne e as entranhas, rece-bertas pelo ventre do animal; do outro lado, os ossos, despojados da carne, mas dissimulados sob urna bela gordura branca. Tinha, em seguida, dito a Zeus para escolher a sua parte; o resto devia pertencer aos homens. Zeus escolheu a gordura branca, mas, quando se

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apercebeu que nao escondía senáo ossos, foi tomado por um grande furor contra Prometeu e, também, contra os mortais. Para punir estes, recusou-se a dar-lhes o fogo. Prometeu, entáo, subiu ao céu e roubou sementes de fogo á «roda do Sol» e, em seguida, trouxe-as para a Terra, escondidas num tronco oco. A vinganga de Zeus foi, desta vez, exemplar. Prometeu foi agrilhoado ao Cáucaso por cor-rentes de ago e urna águia, nascida de Equidna, a víbora monstruosa, devorava-lhe o fígado, sempre renascente. O suplicio durou até ao día em que Heracles, com urna flecha, abateu a águia e libertou o gigante das suas grilhetas. Mas como Zeus tinha jurado pela Estige que Prometeu permaneceria eternamente ligado á montanha, decidiu-se que o juramento seria mantido se o gigante, libertado, usasse um anel de ago no qual seria encastoado um pedago de rochedo. A punigáo dos mortais foi ainda mais severa, porque foi irremediável. Zeus pe-diu a Hefesto e á deusa Atena para criarem um ser ainda desconhecido, que os deuses or ele, um deus ou um demiurgo pensa global-mente o universo. As potencias sobrenaturais sao, elas também, arrastadas num devir de que nao sao totalmente senhoras. Nenhuma das suas decisóes é irrevogável. Ácima da sua von-tade plana urna Forca das Coisas, a que se chama, por vezes, Destino, e que actúa por in-tencóes e juramentos. Será só mais tarde, no tempo dos filósofos, que o homem se elevará até á nogáo de urna criagáo reflexiva, conforme a um plano racional, mas teremos, entáo, dei-xado o plano do mito.

Verifica-se, também, que, sobre o ponto mais preciso que é a criagáo do homem, esta nogáo conserva urna certa indeterminagáo. Exis-tem lendas que explicam a ¡criagáo de tal ho-mem particular, de tal raga, mas supóem todas a preexistencia de outros homens e de outras ragas, de que nao nos damos conta. É como se, mesmo no plano do mito, o pensamento grego nao tivesse podido obrigar-se a admitir a equivalencia de todos os homens e nunca tivesse saído do seu particularismo. Há urna criagáo «tessálica», resumida no mito de Deu-caliáo e Pirra. Mas há também urna criagáo argiva, que conhece um «primeiro homem» chamado Foroneu, filho do rio ínaco e da ninfa Mélia (cujo nome recorda o do freixo). Este Foroneu origina urna descendencia na qual figura Argo, epónimo do territorio argivo; também ai se encontra um Pelasgo, epónimo do povo dos Pelasgos, um Aqueu, distinto do filho de Xuto, urna Messene, epónima de Messénia, e um Ftio, a quem a Ftia, na Tessália, parecía dever o seu nome. Mais do que urna cosmogonía, as tradigóes locáis oferecem-nos genealo gias múltiplas, ñas quais vemos a raga humana sair, pouco a pouco e como por acaso, da das Ninfas, dos ríos e das Dríades, que sao os espí-ritos femininos ligados á vida das árvores. Nao há, entre os deuses e os mortais, a verdadeira solugáo de continuidade que supóe urna criagáo ex nihilo. Podemos defender, até um certo ponto, que aos olhos dos Gregos o humano é «divino degradado» —o que explica que, tan-tas vezes, o mito possa apresentar o processo inverso e mostrar-nos homens adquirindo, pela sua própria forga, as honras de divindade.

A lenda de Prometeu, por fim, que representa, talvez, a melhor aproximagáo de um mito criacional, súblinha, de modo curioso, que os homens nasceram á margem da vontade de Zeus. Sem que haja entre ele e os monstros verdadeiro antagonismo, o deus nao é, na ori-gem e na esséncia, «pai dos homens». É um senhor que encontra o humano no seu imperio e que se acomoda a ele melhor ou pior. Zeus tem necessidade dos homens; em relagáo aos Olímpicos, aqueles representam um ramo colateral, primos infelizes, é certo, mas gozando, no palco do universo, de urna especie de igual-dade essencial em face das divindades, mais poderosas e melhor dotadas. Todos se subme-tem igualmente perante o Destino. Em face de urna tal concepgáo do mundo, sonhamos com urna cidade onde os homens seriam os escra-vos e os deuses os homens livres: diferenga acidental de condigáo e de poder, mas simili-tude de natureza.

CAPÍTULO III O CICLO DOS OLÍMPICOS Á revolugáo celeste provocada por Zeus tinha instalado no poder a geragáo dos Crónidas,

os filhos de Crono, dos quais o novo senhor era o mais jovem. Os tres primeiros da linha-gem tinham tido tres filhas: Héstia, Deméter e Hera; em seguida, vieram tres filhos: Hades, Posídon e Zeus. Deste modo, a geragáo dos Crónidas, simétricamente distribuida como o tinha sido a dos

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Titas, filhos de Urano, nao atingía, em número, senáo metade desta. Mas, desde o principio, cada um deles possuía os seus atributos e o seu dominio fixado pelo Destino. Isso é incontestável para as tres deusas: Héstia presidia ao lar; imóvel, no Olimpo, como a lareira na residencia dos homens, obteve de Zeus urna virgindade eterna. A sua irmá mais nova, Deméter, presidia á térra cultivada. Nao se confundía cóm Geia, a máe primordial, que com-preende no seu seio também as montanhas e os desertes como as regióes mais aprazíveis. Deméter, também ela máe fecunda, está sobretodo ligada aos mitos do trigo, tal como o veremos, e o seu culto tem por locáis de eleigáo as planicies férteis onde eresce o cereal. Hera é a divindade do casamento. É a esposa de Zeus; todos os anos é comemorada com festas esta uniáo divina. Ornamentava-se a estatua da deusa com os adornos de urna jovem noiva e a imagem era conduzida em procissáo através da cidade até um santuario onde estava preparado o leito nupcial. Assim se encontravam renovados o poder fecundante do casal e, por seu intermedio, o de toda a natureza.

Os atributos dos tres filhos de Crono, Hades, Posídon e Zeus, nao Ihes pertencem, diz-se, desde o inicio, mas teriam resultado de urna tiragem a sorte. Depois da Vitoria sobre os Titas, os tres irmáos teriam partilhado á sorte os tres dominios do mundo. Zeus obteve o céu; Posídon, o mar; Hades, o imperio subterráneo e o reino dos mortos. Mas, já no decurso da luta contra os Titas, cada um deles tinha rebebido dos Ciclopes urna arma em relagáo com a sua fungáo futura: Zeus, o raio; Hades, um capacete mágico que deixava invisível quem o colocasse (símbolo da morte); Posídon, um tridente que lhe servia para agitar a térra e as ondas. No seio do ciclo, vemo-lo, unem-se urna narrativa com ambicáo histórica e urna especie de descricáo imánente, que nao se impediu de estar em contradicáo aparente com a descrigáo Cronológica dos factos, como, por exemplo, no caso da intervengáo de Heracles na Giganto-maquia, anterior á data geralmente fixada para o nascimento do herói.

Aos seis primeiros Olímpicos filhos de Crono vieram juntar-se outras divindades, que forma-ram com eles o «conselho» dos grandes deuses. A maior parte sao filhos e filhas de Zeus, o que, por vezes, vale a este o epíteto de «pai dos deuses». A tradicáo tardía, desenvolvida sóbretudo em Roma sob a influencia etrusca, conhece doze grandes deuses (iguais em número, por conse-quéncia, aos doze Titas), mas a lista estabe-lece-se com dificuldade e variou, sem dúvida, ao longo dos tempos. As divindades nascidas de Zeus e que formam, na época classica, a «segunda geragáo» dos Olímpicos, sao as se-guintes: Afrodite^ Apolo, Ártemis, Hefesto, Atena, Ares, Hermes e Dioniso. Tal número dá, com os seis Crónidas, um total de doze divindades. Entre estas, Dioniso é ignorado por Homero; é, diz-se erradamente, um recém-che-gado ao Olimpo, embora o seu nome surja desde os tempos micénicos, visto que figura ñas inscrigóes a que se chama «linear Β». O silencio de Homero explica-se por outras razóes. Seja como for, para chegar ao total de doze, é preciso excluir Hades e Posídon, porque o seu dominio nao é o da regiáo superior. Mas há outras divindades que permanecem fora da lista canónica. Refiram-se, naturalmente, Persé-fone, filha de Deméter e de Zeus, mas esposa de Hades, retida pelo marido nos Infernos; ex-clui-se, também, a esposa de Posídon, Anfitrite, filha de Nereu e de Dóris, e, por mais forte ra-záo, urna grande quantidade de outros filhos divinos de Zeus: Hebe, que simboliza a juven-tude dos deuses, Ilitia, demonio do parto, as Horas, que sao os poderes que presidem ás estacóes, as Musas, das quais depende toda a actividade desinteressada do espirito, as Carites (as Gragas), que vigiam, todos os anos, a renovagáo da natureza e personificam a alegría do mundo — todas estas divindades apenas ro-deiam os grandes deuses, figuram no seu cortejo como acompanhantes, mas nao participam nos seus privilegios.

As atribuigóes dos novos Olímpicos nao sao menos definidas que as dos seus antepassados. Apolo preside á adivinhagáo, a cura das doen-gas, mas também a sua propagagáo e á música— conduz o coro das Musas e toca urna lira de ouro. Adivinha-se, por detrás destas fun-góes diversas, o poder incantatório dos «cantos mágicos» e talvez resida ai o principio da sua personalidade múltipla. Paz-se dele, muitas vezes, um deus solar e, sem dúvida, esta ideia encontra justificagáo num ou noutro dos seus atributos, neste ou naquele epíteto do seu ritual. Mas esta natureza solar nao lhe é essen-cial. Apolo relaciona-se, sem dúvida, pela sua máe, Leto, directamente com os Titas astrais, com Ceu e com Febe, mas, vimo-lo, o Sol (Helio) é

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um demonio distinto no interior da mitología. Possui as suas lendas próprias e até ao fim ser-lhe-á aplicado o epíteto de «Tita», porque é considerado como o filho de Hiperíon. Nunca semelhante denominagáo poderia convir a Apolo, que é essencialmente um Olímpico e que possui urna natureza infinitamente mais complexa.

No momento em que Leto deu á luz Apolo, na ilha de Délos, cisnes sagrados deram, a voar, sete voltas á ilha, porque era o sétimo día do mes. Em seguida, os cisnes levaram-no para a sua regiáo, junto ao Océano, entre os Hiperbo-reus, que vivem sob um céu sempre puro. Ai permaneceu um ano, reCebendo as homenagens dos habitantes e, em meados do Veráo, regres-sou á Grecia, entre festejos e cánticos. Todos os anos, em Delfos, celebrava-se a chegada do deus. Foi em Delfos, com efeito, que Apolo se estabeleceu no momento do seu regresso. Teve, primeiro, de matar, com as suas flechas, um dragáo, denominado Pitón, que guardava, na montanha, um velho oráculo de Témis e que se entregava a mil depradacóes na regiáo. Em recordagáo da sua Vitoria, instituiu os jogos a que chamou «píticos». Apoderando-se do oráculo de Témis, fé-lo seu e consagrou no santuario urna trípode — aquela em que se sentava a sacerdotiza encarregada de transmitir as suas respostas aos homens.

Apolo, que é o mais helo dos deuses, grande, notável pelos caracóis dos seus cábelos, negros com reflexos levemente azulados, conheceu numerosos amores, mas muito poucos foram par-tilhados. A ninfa Dafne, filha do deus do rio Peneu, na Tessália, nao correspondeu aos seus dése jos, fugiu para a montanha e, como Apolo a perseguisse, suplicou ao pai que a metamor-foseasse. Peneu fez déla um loureiro, a árvore por excelencia de Apolo. Um outro infortunio do deus é a historia dos seus amores com Coró-nis, que foi a máe de Asclépio, mas que, aínda quando transportava a crianga no ventre, en-ganou o seu amante e entregou-se a um mortal de nome fsquis. Apolo matou Corónis com urna flacha e arrancou o pequeño Asclépio das en-tranhas da máe no momento em que era incendiada a pira fúnebre.

Com Cassandra, a filha de Príamo, Apolo nao foi mais feliz. Para a seduzir, tinha prometido ensinar-lhe a adivinhagáo. Cassandra acei-tou, mas, quando foi instruida, nao quis ceder aos desejos de Apolo. Este, por despeito, es-carrou-lhe na boca, e desse modo privou-a nao da sua ciencia, mas do dom da persuasáo. Ε a pobre Cassandra bem podía fazer as profecías mais verídicas que ninguém a escutava.

Apolo nao limitou os seus amores as mulhe-res. Amou também alguns jovens. Os mais cé-lebres dos seus amantes sao Hiacinto e Cipa-risso, cujas mortes, ou, melhor, metamorfoses (o primeiro transíormou-se num jacinto e o segundo num cipreste), o afligiram profundamente. É verosímil que por detrás destas duas lendas se dissimulem recordacóes de cultos anteriores á chegada dos Helenos —cultos pro-vavelmente «egeus»—, absorvidos por Apolo.

Conta-se, por fim, que, por duas vezes, Apolo sofreu urna prova e teve de se colocar ao servigo dos mortais. A primeira vez foi no seguimiento de urna conspiragáo, que tinha preparado com Posídon, Hera e Atena, para ligarem Zeus com cadeias de ferro e, depois, para o suspenderem no céu. A conspiragáo gorou-se; como punigáo, Apolo e Posídon foram obríga-dos a trabalhar para o rei de Tróia, Laomedonte, e construíram as muralhas da cidade. Terminado o trabalho, as duas divindades reclamaran! ao rei o salario ajustado, mas Laomedonte recusou e ameagou cortar-lhes as orelhas e vendé-los como esctavos. A segunda prova do deus consistiu em servir Admeto, o rei de Fe-res, na Tessália. Zeus impós tal castigo porque Apolo, com as suas flechas, tinha morto os Ciclopes, que tinham dado a Zeus o raio de que este se servirá para matar Asclépio, o filho de Apolo, culpado de ter ressuscitado cadáveres. É assim que Apolo foi, durante um ano, o boeiro de Admeto. Durante o período em que guardou os rébanhos, eles prosperaram de um modo miraculoso; os vitelos nasciam aos pares e, de um modo geral, foi a abundancia no reino de Admeto. Diz-se mesmo que este se tomou amante do deus.

Ártemis, a irmá, é a réplica feminina de Apolo. Como ele, está armada com o arco, com que envía as mulheres —nomeadamente áque-las que estáo prestes a dar á luz — as flechas da morte súbita. Ártemis permaneceu eternamente virgem; passava o tempo a cagar, percorrendo as montanhas acompanhada pelos seus caes. Tal como Apolo, possui atributos de deus solar, Ártemis esteve, desde a Antiguidade, identificada com a Lúa. Note-se, todavía, que ela nao

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duplica pura e simplesmente a figura de Selene. Ártemis nao se limita a simbolizar um astro; ela é, também, a «dama das feras», a potencia misteriosa que preside á fecundidade animal ñas florestas e, como tal, encontramos nela tragos que tinham primitivamente, sem dúvida alguma, pertencido á grande deusa cretense. É singular —mas explicável por esta origem complexa— que a virgem Ártemis seja invocada no momento do parto e que as jovens máes a considerem como protectora nesse momento de perigo e, simultáneamente, como po-dendo ser funesta. Contava-se que este poder de Ártemis se tinha revelado desde o seu pró-prio nascimento. A máe, Leto, tinha sido pos-suida por Zeus e estava prestes a dar á luz os gémeos divinos que transportava, quando Hera, a esposa legítima de Zeus, cruelmente ciumenta da jovem, proibiu a todos os lugares da Terra que lhe dessem asilo naquele momento. Leto errou sem esperanga, expulsa de todos os lugares. Por fim, Délos, que era urna ilha também errante, estéril, táo pobre que nao tinha nada a temer de ninguém, consentiu em acolhé-la. Ε a pobre mulher deu a luz os seus filhos ao pé de urna palmeira, a única árvore em toda a ilha. Ártemis foi a primeira a nascer e, inme-diatamente, ocupou-se em acabar o parto da sua própria máe, ajudando-a a dar á luz Apolo, o segundo dos gémeos.

Hefesto domina o fogo. Ele nao é o fogo, mas o senhor das artes da forja e do trabalho dos metáis. Considera-se, geralmente, que é filho de Zeus, mas diz-se, também, por vezes, que Hera o pos no mundo sozinha, sem o auxilio de qualquer principio masculino, por des-peito pelo nascimento de Atena, saída da cábeca de Zeus. Hefesto é um demonio coxo. A litada diz-nos a razáo desta deformidade. Como Hera discutisse com Zeus por causa de Heracles, Hefesto tomou o partido da máe. Zeus, entáo, se-gurou-o por um pé e langou-o do alto do Olimpo. Hefesto precipitou-se durante todo um dia; á noite, encontrou a Terra na ilha de Lemnos, onde caiu, respirando com dificuldade. Como era imortal, nao morreu, mas ficou eternamente coxo. A lenda mostra-nos Hefesto como um artífice divino, sempre pronto, com a ajudá dos Ciclopes ferreiros, a executar qualquer trabalho, jóias, armas, a pedido dos outros deuses. Mas o episodio mais célebre do seu ciclo é a desdita conjugal com Afrodite.

Hefesto, físicamente disforme, tinha a fama de se ter unido a mulheres de grande beleza. Tanto lhe é atribuida como esposa Caris, a Graca por excelencia, como Aglaia, a mais jovem das Carites. Mas Zeus acabou por lhe dar em casamento Afrodite, a mais bela das deu-sas. Afrodite, porém, nao tardou a apaixonar-sel por Ares, e o Sol, que tudo vé, surpreendeu, urri dia, os dois amantes juntos. Foi contar a aventura ao marido; este nao disse nada, mas pre-parou urna rede invisível, que estendeu á volta do leito da esposa. No momento oportuno, a rede fechou-se, imobilizando os dois culpados e impedindo-lhes qualquer movimento. Hefesto, entáo, convocou todos os deuses para o espectáculo. Logo que foi libertada, Afrodite, com vergonha, fugiu, e todos os deuses foram tomados por um riso imparável.

Considera-se, murtas vezes, que Afrodite, a companheira infiel, é filha de Zeus e de Dione, urna das divindades da geragáo primordial. Urna outra tradigáo, bastante divulgada, fá-la nascer de Urano. Ela teria sido Concebida quando o sangue do deus, depois da sua mutilagáo, caiu no mar. Afrodite seria, assim, a mulher «nas-cida das ondas», epíteto que lhe aplicam fre-quentemente os poetas. Assim que saiu da espuma do mar, foi levada pelos Zéfiros, primeiro para Citera, depois para a costa de Chipre, que sao as suas regióes de predilecgáo e onde pos-suía, na época histórica, santuarios particularmente célebres. Ai, ela foi acolhida pelas Horas (ou Estagóes), que a vestiram, ornamentaran! e conduziram até á morada dos imortais.

Afrodite reúne, ñas suas lendas, elementos muito diversos. Na origem, surge, sem dúvida alguma, como urna potencia terrível, que sub-mete todo o universo as suas leis. É o demonio da fecundidade feminina e, por urna analogía evidente, o da fecundidade na natureza. O mais célebre dos seus mitos, os seus amores com Adonis, é, sob este ponto de vista, o mais revélador, e indica-nos, ao mesmo tempo, a origem de oertos cultos assimilados pela deusa.

Conta-se, com efeito, que o rei da Siria, Teia, tinha urna filia, Mirra, ou Esmirna, que a cólera de Afrodite levou a desejar o incesto com o pai. Com a ajuda da ama, Esmirna con-seguiu engañar Teia e unir-se a ele durante doze noites. Mas, na décima segunda noite, Teia descobriu o seu crime e perseguiu-a para a matar. Esmirna invocou os deuses, que a transformaran! num

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arbusto, a árvore da mirra. Dez meses depois, a casca abriu-se e saiu déla urna crianga, que recebeu o nome de Adonis. Afrodite, sensível a beleza da crianga, recolheu-a e confiou-a a Perséfone para que esta a educasse secretamente, na sombra dos Infernos. Mas a rainha dos mortos apaixonou-se, por seu lado, pelo belo Adonis, e nao quis entregá-lo de novo a Afrodite. A disputa foi arbitrada por Zeus e foi decidido que Adonis viveria um tergo do ano com Afrodite, um tergo com Perséfone e um tergo com quem quisesse. Mas Adonis passou dois tergos do ano junto de Afrodite e somente um tergo no reino dos mortos. Durante algum tempo, a situagáo manteve-se assim, mas, um dia, Ares, com ciúmés, langou contra o jovem um javali monstruoso, que o feriu de morte com um golpe das suas presas. Do sangue de Adonis ferido nasceram as anémonas. Afrodite, em memoria do seu amante, fundou urna festa fúnebre, que as mulheres sirias celebravam, todos os anos, na Primavera. Plantavam, em vasos, sementes, que regavam com agua quente para que crescessem mais depressa. Chama-va-se a essas plantagóes os «jardins de Adonis». As plantas assim forgadas nao tardavam em morrer e as mulheres lamentavam a sorte do jovem amado por Afrodite. Ao mesmo tempo, o rio Adonis, que corre em Biblo, ficava com um tom vermelho, como se tivesse sido colorido pelo sangue do herói. As origens semíticas desta lenda sao evidentes: o nome de Adonis aparenta-se com a raíz semítica que significa o Senhor e a regiáo onde ela se localiza demonstra suficientemente que Afrodite deve certas das suas características, e as mais essenciais, á grande deusa siria.

Pouco a pouco, os lagos de Afrodite com a végetagáo, o seu carácter de potencia primor-dial, caíram no esquecimento e as lendas do seu ciclo nao sao mais do que narrativa das suas aventuras amorosas. Amou Anquises, no monte Ida, fazendo-o acreditar que era urna mortal, filha do rei da Frigia, transportada para lá por Hermes e abandonada nos bosques. Deu--lhe um filho, Eneias, e fé-lo jurar que nunca revelaría o segredo deste amor. Da uniáo re-preensível de Afrodite com Ares nasceram dois filhos, Eros e Anteros (Amor e Amor Recíproco), que os artistas da época alexandrina representaram sob formas infantis, modelos directos dos nossos «anjinhos». A pintura de Pompeios popularizou cenas deste estilo: o Amor punido, o Amor ferido, ñas quais Eros aparecía como urna crianga travessa, amuada ou desolada, junto de urna Afrodite maternal. O Eros das cosmogonías está totalmente esque-cido; a máe e ele já nao sao as grandes figuras primordiais de outrora, mas ornamentos de boudoir.

A lenda, todavía, mantinha a recordagáo de urna Afrodite terrível. As suas maldigóes eram ¿célebres. Foi ela quem inspirou a Eos (a Aurora) um amor mexcedível por Orion, a fim de

a punir por ter cedido a Ares. Castigou o des-dém em que a tinham as mulheres de Lemnos mortificando-as com um odor insuportável, táo intenso que os maridos as abandonaran!, pre-ferindo cativas trácias. Afrodite puniu ainda as filhas de Cíniras, em Patos, inspirando*lhes o desejo de se prostituírem com estrangeiros. Mas é sobretudo nos momentos da Guerra de Tróia que brilhou o seu poder. Um dia, a Discordia lancou para o meio dos deuses urna maga destinada á mais bela das deusas. Tres de entre elas reivindicaram o premio. Zeus or-denou a Hermes que conduzisse as tres — Afrodite, Hera e Atena — ao monte Ida da Tróade, para ai serem julgadas pelo belo Páris, filho de Príamo. Perante ele, comegaram a disputa e ofereceram-lhe presentes. Hera prometeu ao juiz a realeza universal; Atena devia torná-lo invencível na guerra; Afrodite contentou-se em oferecer-lhe a máo de Helena, a mais bela de todas as mortais. Páris decidiu a favor de Afrodite e isso foi a origem da guerra entre os Gre-gos e os Troianos. No decurso dos combates, a deusa interveio a favor dos Troianos; salvou Páris no campo de batalha, protegeu Eneias atacado por Diomedes e até foi ferida nesse combate.

A deusa Atena faz um contraste total com Afrodite. Nos primeiros tempos do seu reinado, Zeus tinha desposado a oceánide Métis (cujo nome significa Prudencia, mas também Perfidia) e tinha-a engravidado. Geia e Urano reve-laram-lhe, entáo, que, se Métis tivesse urna filha, ela daría á luz, mais tarde, um filho que se tornaría o senhor do mundo. Assim o que-riam os Destinos. Zeus, sem hesitar, e para salvaguardar o seu poder, matou Métis. Quando chegou o momento do parto, ordenou a Hefesto que lhe rachasse a cabeca com um golpe de machado. Do seu cránio saiu urna jovem armada. Era a deusa Atena. O local do nasci-mento é a margem do lago Trítono, na Libia.

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Atena é urna deusa guerreira e o seu ciclo relata numerosas facanhas. A deusa represen-tou um papel importante na luta contra os Gigantes; matou Palas, esfolou-o, e fez urna couraga com a sua pele. Os seus atributos eram o escudo, a langa e a égide; sobre o escudo tinha a cabega de Medusa, que lhe tinha sido dada por Perseu, que transformava em pedra todos os que a olhavam. Mas, por um curioso contraste, Atena é também urna deusa da paz. É industriosa, protege as fiandeiras, os tece-loes, as bordadoras, e, se inventou o carro de guerra, também foi ela quem dotou a Ática com a oliveira e ensinou os homens a extraírem o azeite das azeitonas. De um modo geral, Atena intervém ñas lendas como o Espirito e a Razáo que dáo total eficacia aos esforgos da coragem. É ela quem arma Heracles, quem o apoia nos momentos difíceis. É ela também quem, finalmente, lhe assegura a imortalidade. Na Odis-seia, Atena intervém ¡constantemente a favor de Ulisses e inspira-lhe as decisóes mais prudentes e mais sabias.

Atena permaneceu virgem. Urna tradigáo ática, contudo, relata que ela teve um filho ñas seguintes condigóes: um día em que tinha ido visitar Hefesto á sua forja para lhe encomendar armas, o deus, abandonado por Afrodite, apaixonou-se por Atena. Ele disse-lho, mas ela nao quis escutá-lo e fugiu. Hefesto perseguiu-a e, embora fosse coxo, conseguiu alcangá-la; to-mou-a nos bracos e, fremente de desejo, molhou a deusa, que resistía. Com repugnancia, Atena limpou-se com um ñoco de algodáo, que lan-cou para o chao. Mas o semen do deus f ecundou a Terra e nasceu urna crianga, chamada Eric-tónio (em cujo nome se encontra o da lá e o da térra), que a deusa considerou como seu filho. Decidiu educá-lo, com o desconhecimento das outras divindades, e torná-lo imortal. Foi este Erictónio que ela fechou num cofre, confiado á guarda de Pandroso, urna das filhas do rei Cécrops. Aglauro, a irma de Pandroso, apesar da proibigáo de Atena, olhou para dentro do cofre. Nele, viu urna crianga que dormía e urna serpente enrolada á sua volta. Aterrorizadas, amaldigoadas por Atena, as jovens demasiado curiosas precipitaram-se do alto dos rochedos da Acrópole de Atenas. Mais tarde, Erictónio obtém o dominio da Ática e é dele que descende a estirpe dos reís de Atenas. Atena surge, assim, sobretudo como urna di-vindade da cidade dos Atenienses e é, sem dúvida, nesta fungáo de «políade» que é preciso procurar o principio da sua unidade e da do seu ciclo lendário. Nela reside a própria alma da cidade que honra, como o provam as velhas crengas relativas as propriedades mágicas de urna estatua de Atena denominada Paládio e que, sob urna forma ou sob outra, se mantive-ram através de toda a Antiguidade. Contava-se que, na sua infancia, a deusa tinha sido educada na Cirenaica, ñas margens do lago Trítono, onde tinha nascido, e que Zeus lhe tinha Saber dado como companheira para brincar a filha do deus Tritáo, epónimo e genio do lago. Esta jovem, que se chamava Palas, foi morta aci-dentalmente por Atena. Para dar urna indemni-zaeáo honrosa, a deusa talhou urna estatua a semelhanca da crianga, colocou-a junto de Zeus e prestou-lhe honras como a urna divindade. Esta estatua, denominada Paládio, permaneceu algum tempo no Olimpo, mas acabou por cair na térra na colina da Tróade chamada «colina de Ate» (ou colina do Erro). Este facto coin-cidiu com o momento em que Ilio, o antepas-sado dos Troianos, iniciara a construgáo da cidade de Tróia. A estatua entrou por si própria no templo de Atena, que ainda nao estava terminado, e ocupou o lugar ritual. Considerada como urna estatua miraculosa, foi objecto de um culto especial, e acreditava-se que a cidade permanecería invencível enquanto conservasse este ídolo. Mais tarde, depois de muitas aventuras, o Paládio, ou a imagem que se consi-derava como tal, acabou por ser conservada em Roma, na cápela sagrada das vestais. Ε também lá se admitía que a salvagáo da cidade estava ligada á estatua.

Hermes, o irmáo mais novo de Atena, é filho de Zeus e de Maia, que é a mais jovem das Pléiades. Nasceu na Arcadia, numa caverna do monte Cilene. Ao nascer, foi envolvido em fai-xas, como era entáo habitual fazer com os recém-nascidos, e foi colocado numa joeira, Como se se tratasse de um bergo. Mas a crianga, á forga de se mexer, descobriu o meio de se desligar e, sozinho, partiu para a Tessália, onde seu irmáo Apolo guardava os rebanhos de Admeto. Hermes, aproveitando a distracgáo do irmáo, roubou-lhe doze vacas, cem bezerras e um touro; depois, amarrando um ramo á cauda dos animáis para apagar os seus tragos á medida que caminhavam, conduziu todo este re-banho até Pilo, na Messénia. Ai, sacrificou duas bezerras e fez com elas doze porgóes, urna para cada urna das doze divindades. Em seguida, depois de ter dissimulado o

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saque, regressou á sua gruta para se deitar. Ao entrar, viu urna tartaruga; apoderou-se déla, esvaziou-a e esten-deu sobre a cavidade cordas fabricadas com os intestinos das vítimas que tinha acabado de sacrificar. Assim foi inventada a lira.

Apolo, entretanto, procurava os seus bens por todos os lados. Tendo descóberto tudo gra-gas aos seus poderes divinatórios, dirigiu-se ao monte Cilene e queixou-se a Maia. Maia, como única resposta, mostrou-lhe a crianga sossega-damente embrulhada ñas suas faixas. Apolo, entáo, recorreu a Zeus, que ordenou a Hermes que devolvesse os animáis roubados. Mas Apolo, que, na \ gruta de Cilene, tinha visto a lira, fez um acordó com Hermes, e em troca do instrumento deixou-lhe o rebanho.

Um pouco mais tarde, Hermes inventou a siringe (a flauta de Pá) e, de novo, vendeu a sua invengáo a Apolo em troca de um cajado de ouro. Pez, ainda, que o irmáo lhe ensi-sinasse a arte divinatória. Estes mitos de infancia tém por fim explicar as características ri-tuais do deus: o cajado de ouro é a vara mágica com que o deus adormece os olhos dos mortais. Esta vara serviu-lhe quando, para obedecer a Zeus, matou o vigilante Argo com cem olhos, guarda escomido por Hera para vigiar a be-zerra lo. Mensageiro dos deuses, Hermes está dotado com sandalias aladas, que o transportan! nos ares. Hermes tem como fungáo mais particular acompanhar até aos Infernos as almas dos mortos. Instalavam a sua imagem, sob a forma de um pilar grosseiramente talhado, nos cruzamentos das estradas e das rúas. É o companheiro e o guia dos viajantes; protege os pastores e os monumentos apresentam-no, por vezes, transportando um carneiro sobre o ombro, na atitude do «bom pastor». Hermes é célebre principalmente pelos seus ardis. É dele que o filho Autólico (o antepassado de Ulisses) herdou a habilidade para roubar. Viajante, inventivo para roubar os bens alheios, Hermes nao podía deixar de ser considerado como o deus do comercio.

Ares é filho de Zeus e de Hera. É o deus da guerra, satisfazendo-se com sangue e carnificinas. Apresenta-se com couraga, elmo, armado com escudo, langa e, também, com espada. Junto a ele estáo os quatro demonios que lhe servem de escudeiros: Deimo e Fobo (o Medo e o Terror), Éris (a Discordia) e Enio, um demonio feminino da guerra. As lendas de Ares nao sao muito numerosas. Prestava-se-lhe um culto particular em Tebas, onde possuíra outrora urna fonte, guardada por um dragáo, que era seu filho. Quando Cadmo, ido da Siria para a Gre-cia, quis tirar agua dessa fonte para celebrar um sacrificio, o dragáo tentou impedi-lo. Cadmo matou-o, mas, como expiagáo, teve de servir Ares como escravo durante sete anos. Ao expirar esse período os deuses celebraram o casamento do herói com Harmonía, a filha de Ares. É a esta uniáo que se atribuía a origem da familia real tebana.

Os Gregos, muitas vezes, compraziam-se, ao representar Ares, em mostrá-lo vencido: a sua forca brutal é contida ou engañada pelo valor mais inteligente de Heracles ou a sabedoria viril de Atena. É assim que, diante de Trola, a deusa actúa táo bem que ele é ferido por Dio-medes. Quando Heracles atacou Cieno, filho de Ares, este quis intervir e defrontou o heról. Mas Ares foi ferido na coxa e teve de abandonar o combate.

Em Atenas, havia um lugar que tinha o seu nome: o Areópago, ou a colina de Ares. Perto, corría urna fonte. Um día, Ares avistou nesse local o filho de Posídon, Halirrótio, que tentava violentar Alcipe, a filha que tinha tido de Aglauro. Para defender sua filha, Ares pre-cipitou-se sobre Halirrótio e matou-o. Posídon citou-o, entáo, perante um tribunal composto pelos Olímpicos e que funcionava na própria colina. Ares foi absolvido. Mas, em recordagáo, dá-se o nome de Areópago á colina onde, posteriormente, se reunía o tribunal encarregado de julgar os crimes de natureza religiosa.

Deméter, irmá de Zeus, filha de Crono e de Reia, possui urna lenda que é das mais belas e comoventes da mitología helénica. Contava-se que Zeus se tinha unido a ela e lhe tinha dado urna filna, chamada Perséfone, que crescia, feliz, entre as Ninfas e na companhia das outras filhas de Zeus. Um dia, colhia flores na planicie de Hene, na Sicilia — ou próximo de Eléusis, na Ática, ou, ainda, na planicie de Cnosso, em Creta, todos lugares onde se cultivava o trigo. No momento em que a jovem se debrucava para colher um narciso, a térra abriu-se e déla saiu um deus numa quadriga puxada por dragóes.Era Hade§, ρ irmáo de Zeus, que estava apai-xonado

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por Perséfone e, com a cumplicidade do irmáo, decidirá raptá-la. Perséfone foi levada para os Infernos, mas, ao desaparecer, soltou um grande grito. Deméter ouviu esse grito da filha e, com o coragáo cheio de angustia, come-cou a procurá-la. Nao é possível encontrar Perséfone. Durante nove dias e nove noites, a máe, sem comer, sem beber, sem se lavar, erra pelo mundo, com um arenóte aceso em cada máo. No décimo dia, encontrón a deusa Hécate, que também tinha ouvido o grito; tinha mesmo entrevisto o raptor, mas nao foi capaz de o re-conhecer, porque a sua cabeca estava rodeada de sombra. Por fim, o Sol, que vé tudo, contou a verdade á desolada máe. Irritada, a deusa decide nao voltar a subir ao céu nem a cum-prir as suas fungóes divinas enquanto nao lhe devolverem a filha. Tomou o aspecto de urna mulher idosa e foi para Eléusis. Ai, defronte do palacio do rei Céleo, juntavam-se todas as velhas do país, as quais convidaram Deméter a tomar lugar entre elas e a partilhar a sua refeigáo. Mas ela, na sua dor, nao quis aceitar nada. Urna das velhas, chamada Baubo, insis-tiu e, como Deméter persistiese em recusar qualquer reconforto, Baubo levantou as vestes e mostrou o traseiro á deusa. Deméter desatou a rir e quis, entáo, comer. Em seguida, colo-cou-se ao servigo da mulher de Céleo, a rainha Metanira, que a contratou como ama. Confia-ram-lhe o filho do rei, que se chamava, segundo as versees, Demofonte ou Triptólemo. Deméter tentou tornar a crianga imortal e, para isso, todas as noites, mergulhava-a num banho de chamas, até ao momento em que Metanira asurpreendeu nesta estranha atitude. Receando pelo filho, Metanira soltou um grito. Deméter deixou cair a crianga, que foi consumida, e re-velou quem era. Confiou, entáo, a Triptolemo, o segundo filho de Céleo, a missáo de percorrer o mundo ensinando aos homens a cultura do trigo. Ε Triptolemo partiu, num carro puxado por dragóes alados, do alto do qual espalhava graos de trigo.

Como o exilio voluntario de Deméter tor-nasse a térra estéril e perturbasse a ordem do mundo, Zeus deeidiu entregar-lhe a filha. Foi, pois, procurar Hades e ordenou-lhe que resti-tuísse Perséfone. Mas isso nao era possível. Com efeito, a jovem tinha interrompido o je-jum e, no jardim do rei dos Infernos, tinha comido um bago de roma. Perséfone, deste modo, tinha-se ligado definitivamente ao mundo infernal. Foi preciso chegar a um acordó. Deméter retomaría o seu lugar no Olimpo e Perséfone partilharia o seu tempo entre ela e os Infernos. É assim que, todas as Primaveras, Perséfone escapa-se do mundo subterráneo e sobe até á luz, com os primeiros rebentos que saem do solo, para se refugiar de novo entre as sombras no momento das sementeiras. Mas, enquanto ela está separada de Deméter, o solo fica estéril, e essa é a triste estagáo do Invernó.

Esta lenda revestiu numerosas formas locáis e complicou-se com urna infinidade de epi-sodios. Veremos como acaba por servir de «suh porte» aos misterios que se celebravam em Eléusis, onde era representada para os iniciados urna versáo esotérica carregada de simbolismo.

Deméter estava ligada á cultura do trigo. Dioniso é o deus que personifica os poderes da vinha e do vinho. É o filho de Zeus e de Sémele, ela própria filha de Cadmo, o herói fundador de Tebas. Um dos seus epítetos místicos era «O-nascido-duas-vezes», o que era ex-pliado pela" historia do seu hascimento. Sémele, que tinha sido possuída por Zeus, foi ob-jecto do ciúme das suas irmás, que fingiram acreditar que ela se tinha entregue a um amante vulgar. Fizeram-no com tal realismo que a dúvida se instalou no coracáo da jovem, que quis ter a prova da divindade do seu amante. Sémele pediu que ele se mostrasse em toda a sua gloria, tal como se revelava a Hera. Zeus resistiu, mas teve de ceder e, quando apa-receu rodeado pelo raio e pelos relámpagos, Sémele morreu de comocáo. Zeus apressou-se a retirar a crianga que ela transportava no ventre e que nao estava senao no sexto m§s de gestagáo. Recolheu-a na coxa e, urna vez che-gado o fim do tempo, quáñdo saiu, o pequeño Dioniso estava perfectamente formado e sau-dável.

Zeus, contudo, ficou bastante embaragado por causa da educagao da crianga, porque te-mía os ciúmes de Hera. Confiou Dioniso em segredo a urna das irmas de Sémele, Inp^ que era casada com Átamas, o rei<le Orcómeno, na Beócia. Ordenara qué vestissem a crianga com roupa feminina para escapar as buscas de Hera. Mas esta nao foi engañada e enlouqueceu Ata-mas e Ino, que acabaram por se matar. Zeus, entao, levou o filho para bem longe da Grecia, para o país de Nisa, que os Gregos localizarn apenas de urna forma vaga, tanto na Asia como na Etiopia.

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Com efeito, parece que esse nome foi inventado para dar urna etimología ao do deus. Dioniso é o «Zeus de Nisa».

Nesse país distante e fabuloso a crianga foi educada pelas Ninfas, sob a forma de um ca-brito («cabrito» era também um dos epítetos rituais de Dioniso). Chegado á idade adulta, Dioniso descobriu a vinha e o vinho. Mas foi atacado de loucura, por vontade de Hera, e principiou urna corrida desordenada pelo mundo, Percorreu o Egipto e a Siria e chegou a Frigia, onde a deusa Gíbele (considerada como urna forma de Reia, a máe dos deuses) o purificou, q libertou da sua loucura e o iní-ciou nos seus próprios misterios. É entáo que comega, na vida do deus, o período das suas conquistas. Dioniso é, daí para o futuro, acom-panhado por um cortejo de demonios, tanto femininos como masculinos, que sao as Bacantes e os Bacantes. Juntam-se-lhe, igualmente, o velho Sueno, montado num burro, e os Sátiros, meio-homens, meio-cabras, que representám os espirites orgiásticos da térra e do vinho. Dioniso monta urna pantera e tem na máo um tirso —longa vara encimada por urna pinna e ornada com hera em grinaldas. É este o conquistador que, saído da Frigia, chega á Trácia. Licurgo, o rei do país, recebeu-o bastante mal e quis aprisioná-lo. Dioniso procurou ajuda junto da deusa marítima Tétis. Licurgo, para se vingar, capturou as Bacantes. Mas estas foram libertadas por urna forga misteriosa e o próprio Licurgo foi atacado de loucura. Pegou num machado e imaginava, no seu delirio, cortar cepas de vinha, enquanto, na realidade, se feria na perna e mutilava o próprio filho.Quando recuperou do seu desvario, aperce-beu-se que o reino fora atingido pela esterili-dade. O oráculo, consultado, revelou que a cólera de Dioniso só seria apaziguada com a morte do culpado. Ε Licurgo foi esquartejado pelos seus subditos.

Da Trácia, Dioniso passou á india, subme-tendo, com os seus encantamentos, tudo na sua passagem. Os pintores e os escultores da Anti-guidade deleitavam-se muitas vezes a retratar esta marcha triunfal do deus para Oriente, que nao deixa de fazer pensar ñas expedieóes de Alexandre.

Regressando vitorioso á Grecia, Dioniso apresentou-se na Beócia, que era a patria de sua máe. Mas o rei de Tebas, Penteu, inquie-tou-se com este culto novo que mergulhava as mulheres em crises medonhas, durante as quais percorriam os campos soltando gritos, como se tivessem perdido o juízo. Proibiu a celebracáo dessas «orgias». Mas, como antes acontecerá com Licurgo na Trácia, Penteu foi cruelmente punido por esta impiedade. Ao mesmo tempo que, no Citaron, espiava o comportamiento das Bacantes, sua própria máe, Agave, apoderou--se dele e, com outras mulheres, fé-lo em pe-dacos, pensando que se tratava de um leáo. Bacantes, a sua própria máe, Agave, apode-rou-se dele e, com outras mulheres, fé-lo em pedacos, pensando que se tratava de um leáo. Pouco a pouco, o culto de Dioniso propagou-se e as resistencias eram quebradas do mesmo modo. Em Argos, o deus enlouqueceu as filhas do rei Preto, que percorreram os campos, durante muito tempo, pensando que eram bezerras. Chegaram ao ponto de devorar os própriosfilhos. Urna vez submetido o continente, Dioniso embarcou para as ilhas. Os piratas que tinha contratado para o levarem a Naxo qui-seram vendé-lo como escravo na Asia; mas os remos transformaram-se em serpentes, o navio encheu-se de hera e ouvia-se por todo o lado ressoarem flautas e tambores invisíveis. Os piratas, desvairados, precipitaram-se para a agua, onde foram transformados em delfins.

Apenas restava ao deus percorrer um último dominio antes de subir ao céu. Decidiu descer aos Infernos e procurar sua máe, Sémele, para associar á sua gloria. E, finalmente, com ela, conquistou a imortalidade.

Vé-se que existe, contrariamente ao que verificamos no caso dos outros deuses da geragáo olímpica, urna lenda coerente, como que urna «biografía» de Dioniso, do nasciménto á apo-teose. Isto nao significa que Dioniso seja, como sé" ácreditou durante muito tempo, um recém--chegado ao panteáo helénico. Esta explicagáo é, dissemo-lo, insustentável hoje. É evidente, em contrapartida, que esta lenda tem urna ori-gem diferente das precedentes e que se impós aos Helenos quando já estava completamente formada. Todas as lendas de infancia foram desenvolvidas a partir do ritual; os episodios da conquista do mundo testemunham a recor-dagáo ainda viva da invasao do culto, através da Trácia, e das resistencias que provocou a sua difusáo.

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Adivinha-se toda urna religiáo por detrás deste «evangelho» e isso é suficiente para dar ao deus urna fisionomía bastante diferente daquela que apresentavam as outras divindades gregas.

Entre os Olímpicos, Zeus surge como o «moderador» e o senhor. O seu poder é, por vezes, ameagado por conspiracóes ou por rebelióes fomentadas por seres monstruosos, sombrías testemurihas de urna idade passada, mas nunca é abalado de um modo durável. Existe um ciclo mítico em torno dele. Recordamos já as circunstancias que rodearam o seu nascimento: a crianga dissimulada pela máe numa caverna de Creta, confiada as Ninfas do Ida, que a ali-mentaran! com leite e mel, enquanto, á volta dangavam os Curetes, que eram jovens guer-reiros, armados, agitando as suas langas e batendo no bronze do seu escudo com a espada. O barulho aterrador que faziam devia cobrir os gritos da crianga. Recordamos também as etapas da conquista do poder, que cons-tituem de modo visível um outro estrato do mito. Mas os episodios mais populares deste sao, sem dúvida alguma, as unioes do deus.

As esposas, legítimas e ilegítimas, de Zeus sao inumeráveis. A primeira em data foi Métis. Em seguida, veio Témis, que é a Lei personificada, ou, melhor, a Constancia do Mundo. Ela deu ao deus, em primeiro lugar, tres filhas, as Estagóes (ou as Horas, como as designa, impropriamente, a tradigáo), chamadas Irene (a Paz), Eunómia (a Disciplina) e Dice (a Justiga); depois, mais tres, que foram as Moi-ras (as Destinadas): Atropo, Láquesis e Cloto, as tres «fiadeiras», que fiam, nos Infernos, os destinos de cada ser humano. Esta uniáo com

Témis é, evidentemente, um mito filosófico, de pura intengáo simbólica. Mostra como Zeus, o todo-poderoso, é a encarnagao da ordem eterna e como o Destino, ao qual o deus obedece, nao limita em nada o seu poder, visto que o Destino é, em última análise, urna encarnagao dele próprio.

Zeus une-se, ainda, a titanide Dione, que, nalgumas versóes, é considerada como a máe de Afrodite; em seguida, a Mnemósine (Memoria), que lhe dá filhas: as nove Musas. Com a oceanide Eurínome, teve as tres Gragas

— Aglaia, Eufrósiné e Talia—, que sao, na origem, espíritos da vegetagáo e da Primavera. O casamento com Hera, irmá de Zeus, nao é senáo urna das suas unióes divinas. Mas foi

«definitivo», padráo e tipo de todos os casamentes humanos, e as outras unióes de Zeus — desta vez com mortais — surgiráo como infidelidades feitas a Hera. Recordamos a

uniáo com Deméter e o nascimento de Perséfone. Esta uniáo entre Zeus e outra das suas irmás parece nao ter provocado os ciúmes de Hera: lenda integrada no ciclo das duas deusas eleusínias, é estranha ao ciclo próprio de Zeus e simboliza simplesmente a acgáo fecundante da chuva celeste sobre a'térra.

Encara-se de modo diferente os amores com as mortais, que nao sao passíveis de interpre-tagao táo elementar. Estas lendas tém, geral-mente, por objectivo o estabelecer urna genealogía e apresentavam, na origem, um valor puramente local. A pretensáo corintia, segundo a qual o epónimo Corinto era «filho de Zeus», tinha-se tornado num motivo de troga no resto da Grecia. Mas cada urna das «ragas» helenasligava-se a um deus. Isso é verdade sobretudo para as cidades do Peloponeso: na Argólida, o antepassado das Atridas, Tántalo, era considerado filho de Zeus e de Pluto. Os Arcádios tinham, do mesmo modo, como antepassado Árcade, füho de Zeus e da ninfa Caliste-. Os Lacedemónios reclamavam ser descendentes de Zeus e da ninfa Taígete, divindade do monte Taígeto. Na Argólida, ainda, a alianca de Zeus tinha sido renovada diversas vezes: o herói Argo era filho de Zeus e da Níóbe argiva, tal como Pelasgo, antepassado do povo «pré--aqueu», era descendente dos Pelasgos. Mais tarde, depois da uniao de Zeus com Dánae, o nascimento de Perseu tinha estabelecido na Ar-góhda urna nova descendencia do deus. Em Tebas, Cadmo ligava-se a ele por Épafo e lo. Os Cretenses evocavam Europa e os tres filhos que ela tinha tido do deus: Minos, Sarpédon e Radamante. Na Ftiótida e na ilha de Egina, a raga de Peleu e a de Telamón sao originarias de Éaco, filho de Zeus e da ninfa Egina. Os próprios Troianos tinham como antepassados Dárdano, nascido dos amores de Zeus com a pléiade Electra. Estas genealogías aplicam-se, vemo-lo, as ragas mais antigás da Grecia, ou, melhor, as familias reais, de que exprimem os títulos de nobreza e justificam as pretensóes. É importante verificar que os epónimos das grandes divisóes étnicas dos Helenos —Aqueu, ion, Doro e Éolo—

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nao tenham Zeus por antepassado, mas descendam directamente de Deucaliáo e Pirra. O mais recente dos povos gregos, os Dorios, tinham, contudo, urna lenda particular: no tempo em que ainda estavam instalados no Norte da Grecia continental, oseu rei Egímio tinha recebido a ajuda de Heracles contra os Lápitas, seus vizinhos. Como pagamento, tinha dado ao herói um tergo do reino, mas Heracles tinha, apenas, pedido que reservasse a recompensa para os seus descen-dentes. Foi assim que o filho de Heracles, Hilo, se tornou epónimo de urna das tres tribos dóricas, sendo as outras duas designadas segundo Dimas e Panfilo, os dois filhos de Egímio. Re-sultava daí que pelo menos um tergo dos Dorios se ligava, por Hilo, a Heracles e aos Heráclidas e, portanto, a Zeus, pai de Heracles.

Muitas das unióes de Zeus com mortais ocorreram sob formas animáis: com Europa, o deus tomou o aspecto de um touro; com Leda, o de um cisne. Muitas das suas amantes, por outro lado, conheceram metamorfoses análogas: a ninfa Calisto transíormou-se numa ursa; lo, numa bezerra. É provável que, nestas aventuras, se tenha posto sob o nome de Zeus dos mitos mais antigos, nos quais a divindade se apresentava sob urna forma animal ou, mais geralmente, feiticista; assim se explicaría igualmente a «chuva de ouro» que fecunda Dánae na prisáo e que era considerada urna «encarnagao» do deus. Os Gregos pretendiam, mais simplesmente, que Zeus tivesse revestido estas formas mais improváveis para confundir a vigilancia de Hera ou, entáo, que esta tivesse punido as amantes do marido infligindo-lhes metamorfoses degradantes. Quanto a Dánae, os Gregos nao ignoravam que nenhuma fechadura, nenhuma prisáo resiste ao poder do ouro.

Seja como for, o ciclo de Zeus é, talvez, aquele que reúne nele o maior número de ele-mentos de origens diversas e revela as carnadasmais profundas da religiio helénica: o Zeus cretense nao é, certamente, idéntico, no seu principio, ao Zeus frigio. Os mitos ligados a cada urna destas personalidades justapuse-ram-se, nunca atingindo a coeréncia de urna teología.

CAPÍTULO IV OS GRANDES CICLOS HEROICOS Em contraste com a incoeréncia dos ciclos lendários relativos aos deuses, os ciclos heroi-

cos apresentam-se como narrativas de aventuras, ñas quais os episodios estáo mais cuida-dosamente reunidos e testemunham urna ela-bóragáo de carácter evidentemente literario, embora os poemas e as rapsodias épicas que os escolheram como temas nao tenham, de um modo geral, chegado até nos. As epopeias homéricas apenas constituem urna excepgáo, até porque esses poemas sao urna, «escolha» operada, numa data relativamente tardía, entre tradigóes de origens diversas. Mas nao possuí-mos senáo fragmentos insuficientes dos Cantos Cípricos ou da Pequeña Ilíada de Lesques, que tratavam episodios secundarios da aventura troiana. Existia, também, toda urna serie de «regressos», hoje perdidos, de que a Odisseia homérica nao é senáo o mais famoso. Com a apresentagáo dos principáis ciclos heroicos, en-contramos, em consequéncia, urna «materia mítica» mais afastada das suas origens religiosas; por outro lado, as lendas «etiológicas» é os elementos folclóricos estáo mais representados nelas, mas nao, muitas vezes, mascarados por desenvolvimientos puramente romanescos ou de tendencia moral e simbólica.