a especificidade do meio cinemático segundo berys gaut

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  • 7/25/2019 A Especificidade Do Meio Cinemtico Segundo Berys Gaut

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    Prescries e Descobertas:

    A Especificidade do Meio Cinemtico Segundo Berys GautSRGIO DIAS BRANCO

    InXIII Colquio de Outono: Esttica, Cultura Material e Dilogos Intersemiticos, org. Ana GabrielaMacedo, Carlos Mendes de Sousa, e Vtor Moura (Vila Nova de Famalico: Edies Hmus, 2012), pp.115-25. [3280 palavras]

    Em A Philosophy of Cinematic Art,1Berys Gaut reavalia a questo da especificidade do

    meio (medium) na arte, entre outros tpicos. Contra Nel Carroll, Gaut defende trs

    afirmaes a favor de tal especificidade como verdadeiras e, por isso, aplicveis ao

    cinema ou arte cinemtica (que, alm daquilo que vulgarmente, e de modo limitado,

    chamamos de cinema, inclui tambm sries de televiso e jogos de vdeo, por exemplo).

    Vou concentra-me apenas na ltima, mas vale a pena enunciar as trs, dada a sua

    ligao. A primeira que algumas avaliaes correctas referem-se a propriedades

    distintivas do meio no qual as obras de arte ocorrem. A segunda que explicaes

    correctas de algumas propriedades artsticas de obras de arte referem-se a propriedadesdistintivas do meio no qual estas obras ocorrem. A terceira articulada pelo filsofo da

    seguinte forma:para que um meio constitua uma forma de arte deve instanciar

    propriedades artsticas que so distintas daquelas que so instanciadas por outros meios.

    Analisarei esta afirmao e os argumentos apresentados no livro para a defender como

    verdadeira. Procedo primeiro ao esclarecimento dos termos utilizados na frase,

    avanando depois para uma crtica s razes apresentas por Gaut. Por fim, proponho

    uma outra via de resgatar a especificidade do cinema que descritiva em vez de

    prescritiva e que est aberta a inesperadas descobertas sobre os seus meios.

    1.ALGUMAS DEFINIES PRELIMINARES

    essencial esclarecer os seguintes termos que Gaut utiliza: meio, forma de arte,

    propriedades artsticas, e instanciao. Verdade seja dita, o filsofo apenas parcialmente

    o faz. Talvez por considerar que so evidentes.

    Por meiodesignamos geralmente o meio artstico que, muitas vezes, identificado

    com os materiais fsicos de que uma obra de arte feita. Gaut no aceita esta definio e

    1. Berys Gaut, A Philosophy of Cinematic Art(Cambridge: Cambridge University Press, 2010).

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    segue Richard Wollheim2na distino entre material e meio. Nem todos os materiais de

    que se faz a arte so fsicos. Como Gaut refere, alguns so simblicos, como os signos

    lexicais utilizados na literatura que podem ser lidos em formato impresso ou digital. Ummeio para Gaut um conjunto de prticas de organizao do material. Um meio pode

    incorporar outros meios. o que ele chama ninho de meios(media nest). O meio das

    imagens inclui pinturas, fotografias, impresses, e imagens em movimento (vulgo

    cinema) e estas ltimas podem ser fotoqumicas, digitais, ou analgicas. Por causa

    desta estrutura em ninho, Gaut diz-nos que temos de especificar em que nvel estamos a

    fazer afirmaes sobre o meio. Neste caso, parece que as suas afirmaes nos remetem

    para o segundo nvel, das imagens em movimento, sendo o primeiro o estrato geral das

    imagens. De qualquer modo, podemos discutir um filme falando de imagens emmovimento fotogrficas, se for esse o caso, ou de modo mais lato, de imagens visuais.

    Como diferenciar meiode forma de arte? A comunicao telefnica um meio que

    pode ser usado em arte, mas no uma forma de arte. Uma forma artstica ser portanto

    um determinado uso do meio (ou meios, conforme o nvel da estrutura em ninho em que

    estamos a pensar). Os meios tm de ser usados de uma forma particular para dar origem a

    formas artsticas. As formas de arte implicam utilizaes dos meios que produzem obras

    que so consideradas como fazendo parte do campo dos produtos da actividade artstica.

    O filsofo no esclarece o que quer dizer porpropriedades artsticas. Parece claro,

    no entanto, que esta noo est ligada forma artstica j que o uso do meio que podegerar uma forma deste tipo um uso artstico que consubstanciado em determinadas

    propriedades. Gaut compromete-se com uma posio que, atravs da anlise destes

    atributos artsticos, delimita aquilo que conta como um feito artstico no domnio de

    uma determinada forma digamos, aquilo que cinemticono cinema.

    Por ltimo, instanciao um conceito que se relaciona de modo claro com os

    termos anteriores. Cada obra de uma forma de arte instancia certas propriedades

    artsticas. Noutras palavras, uma obra fornece um exemplo daquilo que uma forma

    artstica tem de distinto.

    2.OS ARGUMENTOS DE GAUT

    Recordemos a afirmao que Gaut defende como verdadeira:para que um meio

    constitua uma forma de arte deve instanciar propriedades artsticas que so distintas

    daquelas que so instanciadas por outros meios. Esta assero pode ser especificada

    desta forma se a quisermos analisar no campo do cinema:para que um meio constitua a

    2

    2. Richard Wollheim, Painting as an Art(Princeton: Princeton University Press, 1987), p. 23.

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    forma de arte cinemtica deve instanciar propriedades artsticas que so distintas

    daquelas que so instanciadas por outros meios. Quer isto dizer que as obras de arte

    cinemticas possuem certas qualidades que obras de outras formas artsticas nopossuem e que no so passveis de ser confundidas. Os argumentos que ele apresenta

    para defender estas declaraes no so muito persuasivos.

    A definio de meio que o filsofo apresenta no to inclusiva na esfera da arte

    como poderia ser. No inclui os meios que no so nem fsicos nem simblicos, mas

    conceptuais como so as caractersticas de um gnero que um filme trabalha ou

    expande. nesse sentido que Stanley Cavell fala no gnero como meio.3Adicionalmente,

    o que digno de nota a ligao que Gaut estabelece entre meio e arte. Pressupondo que

    os materiais individualizam o meio, ele pretende demonstrar que a arte cinemtica, ouarte das imagens em movimento, se funda nas caractersticas do meio cinemtico. Isto

    pressupe, no exactamente um ninho de meios, com um dentro de outro e um adjacente

    ao outro, mas um afunilamento dos diversos meios do cinema num nico meio.

    Na verdade, falar de meio em vez de meiosparece incorrecto, mesmo tento em

    conta o conceito de ninho de meios. No cinema, h uma pluralidade de meios que a

    obra activa tendo em conta o seu projecto artstico, sem falarmos apenas num meio

    essencialque seria o da imagem em movimento (e das diversas imagens dentro dela). No

    contexto da discusso da capacidade do cinema em filosofar, filsofos como Paisley

    Livingston4tm procurado despir a arte do cinema at ficarem somente os seuselementos exclusivos. Esta posio , no limite, semelhante de Gaut. Isto leva

    Livingston a rejeitar o meio verbal como elemento expressivo cinematogrfico, na

    medida em que pode ser usado para expressar ideias filosficas que deviam passar para

    o espectador atravs de elementos como a montagem ou a mise-en-scne. Esta

    abordagem, que procura elementos mnimos e gerais da forma, esbarra contra a

    diversidade do cinema e no tem em conta a possvel unidade particular de cada obra de

    cinema. Como Stephen Mulhall aponta, os dilogos podem ser considerados elementos

    cinematogrficos.5Num filme de David Mamet como State and Main(State & Main,

    2000), os dilogos so uma parte fundamental do projecto artstico da obra no campo

    do cinema. No um caso destes que Livingston tem em mente, mas como o prprio

    admite,6aquilo que ele diz tem consequncias mais alargadas que transcendem a relao

    entre cinema e filosofia como prticas. Um filme como State and Mainno uma obra

    de cinema apesar dos dilogos, mas tambmpor causadeles especificamente, devido

    3

    3. Ver, e.g., Stanley Cavell, Pursuits of Happiness: The Hollywood Comedy of Remarriage(Cambridge,MA: Harvard University Press, 1981).

    4. Paisley Livingston, Cinema, Philosophy, Bergman: On Film as Philosophy (Nova Iorque: OxfordUniversity Press, 2009), cap. 1.

    5. Stephen Mulhall, On Film, 2. ed. (Londres: Routledge, 2008), p. 150.6. Livingston, Cinema, Philosophy, Bergman, p. 20.

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    criatividade no uso da linguagem e ao ritmo imprimido pela velocidade das trocas de

    palavras. Qualquer elemento de um filme parte integral de uma obra de cinema que

    uma totalidade.Ainda que utilize a designao especificidade do meio(medium specificity), como

    comum na filosofia da arte, Gaut prefere falar daquilo que distintoem vez daquilo que

    especfico. Esta nuance importante. O distinto aquilo que reconhecidamente

    diferente de outras formas semelhantes. O especfico aquilo que particular a uma

    determinada forma. nesta linha de pensamento que se enquadra o conceito de

    propriedades diferenciais que o filsofo desenvolve. Tais propriedades diferenciam um

    grupo de outro, a classe-alvo (CA) da classe-contraste (CC). O carcter nicode uma

    forma artstica seria o extremo desta relao: s haveria um meio CA e todos os outros

    seriam CC. Ou seja, para Gaut, as propriedades que diferenciam um meio no so

    necessariamente nicas, mas explicam algo acerca do meio. Neste sentido, ele rejeita a

    noo de exclusividade, concordando que os artistas no tm de explorar apenaso que

    nico numa forma de arte. Porm, esta declarao presume a existncia de elementos

    nicos a cada forma, ideia que Carroll rejeita por considerar que estes elementos so

    imputados forma artstica quando no so mais do que componentes de uma certa

    maneira de concretizar a forma artstica uma entre muitas. sem surpresa, portanto,

    que Gaut defende que os artista devem semprefazer o que nico forma em que

    trabalham, sendo livres de explorar outras caractersticas que so partilhadas com outrosmeios. Esta uma afirmao prescritiva.

    Figs. 1a-b: My Dinner with Andr.

    4

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    Para entendermos melhor o tipo de prescrio que esta afirmao envolve,

    afastemo-nos da discusso abstracta das ideias e analisemos os exemplos concretos que

    Gaut utiliza. O primeiro surge na discusso da primeira afirmao (algumas avaliaescorrectas referem-se a propriedades distintivas do meio no qual as obras de arte

    cinemticas ocorrem). Gaut recupera um exemplo usado por Murray Smith numa crtica

    ao total desinteresse pela questo do meio artstico advogado por Carroll: My Dinner

    with Andr(OMeu Jantar com Andr, 1981), realizado por Louis Malle, que mostra

    uma conversa entre Wallace Shawn e Andr Gregory num restaurante. Gaut pega no

    ponto de partida do ensaio de Smith:7muitos espectadores consideram que o filme no

    muito cinemtico. Gaut defende que o que interessante no filme a conversa, as duas

    personagens, e o arco narrativo da sua interaco, mas tudo isso podia ter sidoencenado num palco e filmado sem pretenses artsticas. Para ele, o filme no

    cinemtico porque no usa de uma forma interessante dispositivos cinemticos distintos

    como a montagem, o enquadramento, e o movimento da cmara. O uso destes

    dispositivos no filme procura o simples registo ou gravao da conversao. Smith

    introduz uma ideia complementar que Gaut no refere, mas que decisiva: aquilo a que

    chamamos cinemticotem a ver com prticas historicamente validadas.8Tal

    designao est relacionada com certas tradies artsticas no campo do cinema. A

    concluso que fica por enunciar a que Carroll articula na resposta a Smith: a expresso

    cinemtico adquire diferentes significados conforme a pessoa que a utiliza.9 uma coisapara um realista (que pensa no cinema de ric Rohmer), outra para um montagista

    (que pensa no cinema de Sergei M. Eisenstein), e ainda outra para algum com uma

    abordagem sinttica como V. F. Perkins10 j para no falar do cubismo, dadasmo,

    expressionismo, impressionismo, e surrealismo no cinema, entre outros movimentos

    artsticos. tambm discutvel que se possa falar de gravao e reproduo em relao

    s imagens de um filme. Como Cavell indica, as imagens de um filme so claramente

    distinguveis daquilo que filmam, como uma imagem de um evento, contrastando

    assim com os registos sonoros que podem ser indistinguveis do original por seremambos sons.11Alm dessa diferena, se My Dinner with Andrfosse apresentado num

    palco e filmado, o resultado seria muito diferente do que vemos no filme porque se

    perdia a sua dimenso documental. Esta vertente documental est bem patente nos

    5

    7. Murray Smith, My Dinner with Nol; or, Can We Forget the Medium?, Film Studies: AnInternational Review, n. 8 (2006).

    8. Smith, My Dinner with Nol, p. 146 (trad. minha).9. Nol Carroll, Engaging Critics, Film Studies: An International Review, n. 8 (2006), p. 163.10. Ver V. F. Perkins, Film As Film: Understanding and Judging Movies(Cambridge, MA: Da Capo

    Press, 1993).11. Cavell, The World Viewed: Reflections on the Ontology of Film, ed. aumentada (Cambridge, MA:

    Harvard University Press, 1979), p. 183. Para outro autor que apresenta a mesma ideia, ver Robert Bresson,Notas sobre o Cinematgrafo, trad. Pedro Mexia (Porto: Porto Editora, 2000), p. 62.

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    momentos iniciais quando Wallace percorre as ruas de Nova Iorque (fig. 1a) e se desloca

    de metro (fig. 1b). Estas cenas rodadas em exteriores urbanos contextualizam o

    posterior dilogo com Andr ao jantar e so complementadas com a voz-offdoprotagonista para transmitir os seus pensamentos. Gaut no comenta o filme em

    detalhe, por isso no possvel saber se ele considera este um uso interessante dos

    dispositivos cinematogrficos.

    Figs. 2a-b: My Dinner with Andr.

    O que Gaut quer dizer por uso interessante um uso distintivo, um uso que

    salientado como uso. Podemos, pelo contrrio, argumentar que a ausncia desta salincia

    na maior parte do filme no um defeito, como o filsofo sugere. antes uma qualidade

    qual ele est desatento, no apreciando o modo particular como estes elementos sousados em My Dinner with Andr. A verdade que havia diversas formas de enquadrar e

    montar a conversa entre os dois homens. Nos momentos finais, o fundo surge desfocado,

    tornando vago o ambiente que os circunda (figs. 2a-b). O filme vai progredindo

    visualmente medida que a troca de palavras entre os dois homens, que no se viam h

    muito tempo, se torna mais confortvel. Os dois protagonistas so desta maneira

    recortados da envolvente, o que resulta na anulao de outros possveis focos de ateno.

    Gaut utiliza este exemplo para defender que algumas das nossas afirmaes avaliativas

    sobre filmes referem-se a propriedades distintivas do meio cinemtico, mas a subtil

    singularidade deste filme como obra cinemtica escapa-lhe. Este tipo de exemplos cria um

    6

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    padro no livro e crucial na sua estratgia argumentativa. Por este motivo, ao discutir a

    terceira afirmao (para que um meio constitua a forma de arte cinemtica deve instanciar

    propriedades artsticas que so distintas daquelas que so instanciadas por outros meios), ofilsofo oferece outro exemplo que ele considera idntico: o film dart. Segundo a descrio

    imprecisa do livro, este gnero de filmes foi produzido entre 1908 e 1912 e nele grandes

    estrelas desse tempo, como Sarah Bernhardt, eram filmadas em planos gerais por uma

    cmara esttica. Gaut argumenta que, ao contrrio do que o seu nome indica, estas obras

    no so arte, mas apenas a gravao de uma obra de arte dramtica ou teatral. A questo

    da simples gravao j foi comentada atrs, mas mais frente h uma declarao mais

    explcita: estes filmes no adicionam qualquer valor artstico ao que pode ser conseguido

    ao estarmos num auditrio, a ver uma pea equivalente.12

    Figs. 3 e 4: Les Amours de la reine lisabeth.

    Les Amours de la reine lisabeth(Os Amores da Rainha Elizabeth, 1912), dirigido

    por Louis Mercanton e Henri Desfontaines, um dos mais conhecidos film dart da

    histria do cinema. Bernhardt interpreta a rainha Isabel I, apaixonada pelo Conde de

    7

    12. Gaut, A Philosophy of Cinematic Art, p. 304 (trad. minha).

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    Essex, Robert Devereux (Lou Tellegen). O filme opta, no pelo plano geral, mas pelo

    plano de conjunto, entre o geral e o mdio, que mostra diversas personagens na

    totalidade e um cenrio extenso. A composio do plano da execuo do conde (fig. 3)coloca-o no quadrante superior esquerdo, com um grupo de observadores poderosos em

    primeiro plano no quadrante inferior direito. O peso narrativo da execuo

    contraposto ao equilbrio da composio. O condenado concentra nele a ateno do

    espectador,ainda que o desconforto e a perturbao do grupo que assiste dificilmente

    passe despercebido. Este plano e o prximo, que mostra a rainha a visitar o corpo morto

    do seu amado, so separados por um interttulo. Os tons spia da tintagem do primeiro

    contrastam com o tom azulado da tintagem do segundo (fig. 4). A cena da visita ao

    cadver interior, ao contrrio da anterior, e o azul e a escurido sublinham amelancolia do momento. As personagens entram por uma porta afastada no centro do

    ecr. Primeiro, um guarda, e s depois a rainha, que se acerca lentamente do corpo que

    est deitado e elevado em primeiro plano direita. As marcas paralelas do pavimento

    convergem para a porta e acentuam a profundidade de campo, que empresta um efeito

    dramtico aproximao da rainha ao corpo a sua figura e a sua mgoa crescem em

    simultneo. Esta breve anlise de apenas dois planos de Les Amours de la reine lisabeth

    demonstra que as opes de um film dart no so artisticamente insignificantes.

    Menosprezar estas obras e fazer delas o exemplo supremo de um uso de meios que no

    constitui a arte cinemtica implica a negligncia de certas opes cinemticas, quepassam despercebidas ou so intencionalmente ignoradas.

    Mesmo que a descrio inicial de Gaut estivesse correcta, estes filmes mostrariam

    simplesmente o tipo de decises que os cineastas tomam, escolhendo o que filmar, onde e

    como colocar a cmara, e como juntar e tratar os planos em ps-produo. Escolher

    filmar em plano geral esttico uma escolha que pode ser considerada como cinemtica,

    no sentido lato, visto que a experincia de um filme e de uma pea diferem como as

    imagens num ecr da rodagem de um filme. O film dartrefora que a questo levantada

    pela terceira afirmao ontolgica, logo a resposta no pode ser avaliativa nem

    prescritiva,13mas descritiva do que (e pode ser) a arte cinemtica.

    3.PRESCREVER E DESCOBRIR

    Gaut rejeita a proposta de Carroll de que para identificar uma forma artstica basta

    apontar exemplos dessa forma, apresentando considerao o caso de algum que

    8

    13. A crtica de Carroll aos argumentos a favor da especificidade do meio chama a ateno para estaconfuso. Ao longo da histria da teoria do cinema, diversos crticos como Siegfried Kracauer e artistascomo Jean Epstein confundiram a tentativa de descrio do ser do cinema com uma atitute avaliativa eprescritiva face prtica cinemtica.

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    aponta para as grandes obras de Johann Sebastian Bach em CD e defende que o CD

    uma forma de arte. Mas questionvel que este seja um bom contra-argumento, porque

    se baseia num erro por parte do proponente que no distingue entre uma obra musical ea gravao sonora de uma obra musical. Seja como for, o mais importante o que Gaut

    defende e no o que ele nega: uma forma artstica cria efeitos e valores artsticos distintos

    que seriam impossveis ou muito difceis de conseguir sem utilizar determinado meio.

    atravs deste processo que um meio se torna numa forma de arte. O filsofo v portanto

    a formacomo um meioutilizado artisticamente. Quer dizer, a forma artstica um meio

    usado para fins artsticos. Isto parece semelhante ideia de Cavell, segundo a qual a

    madeira ou a pedra no seriam meios da escultura na ausncia da arte da escultura.14

    Todavia, para Cavell, falar da arte da escultura ou da arte do cinema falar de algo emaberto. As possibilidades estticas de uma arte, aquilo que define essa arte como arte,

    no so dadas a priori, mas vo sendo descobertas.15Apenas os exemplos dessa arte nos

    podem mostrar estas possibilidades, a posteriori. Uma forma artstica consubstancia-se

    assim num agrupamento de obras de arte e numa prtica que historicamente situada e

    mltipla. Da que a definio ontolgica do cinema que Carroll arrisca apresentar tenha

    origem na reflexo sobre obras concretas e tenha sido modificada ao longo dos anos por

    ser vulnervel a contra-exemplos: x uma obra da imagem em movimento se e apenas se

    for constituda por imagens destacadas e bidimensionais, que pertencem classe de

    coisas a partir das quais a impresso de movimento tecnicamente possvel, e se osexemplares performativos de xforem gerados por modelos que so eles prprios

    exemplares, sendo que estes exemplares performativos no so em si obras de arte.16Esta

    definio admite que a forma da imagem em movimento utilize diversos meios de vrios

    modos.

    Pelo contrrio, o conceito de arte cinemtica definido por Gaut depende da

    existncia e efectivao de certas maneiras de usar o meio, que o filsofo supe serem

    mais cinemticas do que outras. Por esta razo, ele no considera que os films dart

    sejam verdadeiras obras da arte cinemtica, mas tambm no explica o que podero ser.

    A especificidade da arte do cinema pode ser equacionada de outro modo: como aquilo

    que nos permite delimitar um domnio artstico, categorizar uma prtica artstica, tendo

    em conta a sua relao com obras anteriores, a sua insero na narrativa da histria

    desta arte e das histrias das artes17e a sua intencionalidade como objecto artstico

    9

    14. Cavell, Must We Say What Me Mean?: A Book of Essays , 2. ed. (Nova Iorque: CambridgeUniversity Press, 2002), p. 221.

    15. Cavell, The World Viewed: Reflections on the Ontology of Film, ed. aum. (Cambridge, MA:Harvard University Press, 1979), p. 32.

    16. Carroll, The Philosophy of Motion Pictures(Oxford: Blackwell, 2008), p. 73. Esta verso pode sercomparada com a que tinha sido proposta em Carroll, Defining the Moving Image, in Theorizing theMoving Image(Cambridge: Cambridge University Press, 1996), pp. 49-74.

    17. Ver Carroll, Identifying Art, in Beyond Aesthetics: Philosophical Essays(Nova Iorque:Cambridge University Press, 2001), pp. 75-100.

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    relacionada com a de outros objectos idnticos.18Isto significa que as obras e o uso que

    fazem dos meios vo redefinindoa arte cinemtica. O cinema constitudo por

    artefactos diversos, sem que nenhum tenha o privilgio de o definir por si s nemBronenosets Potyomkin(O Couraado Potemkin, 1925), nem My Dinner with Andr,

    nem Les Amours de la reine lisabeth.

    10

    18. Ver Jerrold Levinson, The Irreducible Historicality of the Concept of Art, in Contemplating Art:Essays in Aesthetics(Oxford: Oxford University Press, 2006), pp. 13-26.