9.1. especificidade e ontologia.res

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Fundamentos Epistemológicos da Medicina 5.3 Especificidade Científica Luiz Salvador de Miranda Sá Jr. Não há conhecimento ou procedimento científico sem especificidade. Como exigência de cientificidade a especificidades se apresenta com duas dimensões e devem ser ambas consideradas neste estudo. As duas dimensões conceituais da especificidade são: uma ontológica e outra, gnosiológica. Do ponto de vista ontológico: o objeto deve estar bem especificado, bem definido e ser objetivo o objetivável. O ponto de vista gnosiológico da especificidade significa que esse objeto deve poder ser estudado objetivamente e isto ser comunicável (cognoscibilidade objetiva e comunicabilidade). Especificidade é como se denomina a qualidade daquilo que é específico. Específico é o que se diz de algo que é próprio de uma espécie. Espécie é a entidade singular e mais elementar de um conjunto; se refere à natureza dos indivíduos de um conjunto homogêneo. Espécimem é um indivíduo de uma espécie. A especificidade factual inclui objetividade como característica essencial da ciência e indicador de cientificidade, se refere às propriedades específicas do objeto da ciência (o que lhe assegura caráter específico, porque a especificidade 1

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epistemologia médica e gnosiologia da medicina

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Fundamentos Epistemológicos da Medicina

5.3 Especificidade Científica Luiz Salvador de Miranda Sá Jr.

Não há conhecimento ou procedimento científico sem especificidade.

Como exigência de cientificidade a especificidades se apresenta com duas

dimensões e devem ser ambas consideradas neste estudo. As duas dimensões

conceituais da especificidade são: uma ontológica e outra, gnosiológica.

Do ponto de vista ontológico: o objeto deve estar bem especificado, bem definido

e ser objetivo o objetivável.

O ponto de vista gnosiológico da especificidade significa que esse objeto deve

poder ser estudado objetivamente e isto ser comunicável (cognoscibilidade

objetiva e comunicabilidade).

Especificidade é como se denomina a qualidade daquilo que é específico.

Específico é o que se diz de algo que é próprio de uma espécie.

Espécie é a entidade singular e mais elementar de um conjunto; se refere à natureza dos indivíduos de um conjunto homogêneo.

Espécimem é um indivíduo de uma espécie.

A especificidade factual inclui objetividade como característica essencial da

ciência e indicador de cientificidade, se refere às propriedades específicas do

objeto da ciência (o que lhe assegura caráter específico, porque a especificidade

1

de um conhecimento ou atividade científica é assegurada unicamente por seu

objeto).

Quando empregada como indicador de cientificidade, a avaliação da

especificidade inclui em sua conceituação dois aspectos essenciais inter-

complementares e inseparáveis:

a) qualquer atividade científica deve ter seu objeto bem delimitado e claramente

definido (aspecto ontológico) e

b) tal objeto da atividade científica deve poder ser estudado objetivamente

(aspecto gnosiológico).

A expressão objetividade contém dois sentidos distintos mas inter-complementares:

O primeiro, referente ao indivíduo que exerce a prática científica, de quem se deve

esperar isenção e o máximo de neutralidade ou imparcialidade em seu trabalho, o

que deve caracterizar o observador ou experimentador científico.

Em segundo lugar, trata-se da objetividade como atributo da coisa observada, do

objeto que independe do observador, a objetividade como qualidade daquilo que é

objetivo, do que existe objetivamente, e cuja existência independe do desejo ou de

qualquer outra manifestação do observador. Neste segundo sentido, a

objetividade consiste em autonomia da coisa objetiva em relação à consciência de

quem a contempla ou estuda. Em filosofia da ciência, sobretudo em teoria do

conhecimento, denomina-se objeto ao termo do conhecimento, à coisa

intencionalmente conhecida e capaz de ser matéria de um juízo. Do ponto de vista

da teoria do objeto, parte integrante da ontologia, interessam à filosofia da ciência

duas categorias de objetos: os objetos reais, os objetos ideais. Os objetos

ideais (as idéias) são inespaciais e intemporais, pois não existem no espaço ou

no tempo; correspondem aos objetos das ciências formais, como lógica, a

matemática; enquanto os objetos reais (os objetos e fenômenos da realidade,

existem independentes do sujeito) são dotados de realidade e, portanto, dotados

2

de espacialidade e temporalidade, correspondendo aos objetos das ciências

factuais.

A despeito de muitas objeções possíveis, pode-se dizer que algo é objetivo, quando

é determinado por si mesmo, tem existência independente do observador. O

conceito de realidade objetiva significa tudo que tem existência real fora da

mente de quem a contempla ou estuda; o ser concreto; o ente objetivo; tudo o que

existe no espaço e no tempo, independentemente da imaginação ou de outra

manifestação subjetiva.

Existe convergência e identidade entre os conceitos de realidade objetiva, realidade

concreta e realidade material. Em filosofia do conhecimento, a noção de real se opõe à

de ideal (o que só tem existência como dado subjetivo de alguém).

As noções de idéia, abstração e subjetividade apontam para a direção oposta da

realidade objetiva: a realidade subjetiva, que não existe a não ser como

narrativa, senão para quem a experimenta.

Embora as expressões realismo, materialismo e objetivismo (não se inventou concretismo, a não ser na arte) tenham a mesma origem etimológica, significam doutrinas filosóficas bastante diferentes e se enquadram em estruturas ideológicas freqüentemente conflitantes. Disso, pode-se inferir que aqui as expressões realismo (e materialismo) e idealismo têm significados inteiramente diferentes daqueles com que se usam estas palavras ma linguagem comum. O sentido moral com que se empregam, especialmente os conceitos de idealismo e materialismo não existe na filosofia do conhecimento.

Do ponto de vista ontológico, avalia-se a cientificidade do objeto de uma ciência

factual (ou o conhecimento da realidade tido como científico) a partir de dois

dados essenciais:

a) sua objetividade e

b) sua cognoscibilidade.

3

Para isto, não pode existir conhecimento científico, investigação científica ou

procedimento científico sem objeto, com objeto mal definido ou indefinido; como

não pode haver ciência cujo objeto não possa ser estudado objetivamente. O

objeto de uma ciência ou de um procedimento científico deve ser objetivo ou

possível de ser objetivado (como acontece com os fenômenos e processos

psíquicos que se objetivam na conduta e, assim, pode ser estudados

indiretamente).

No primeiro sentido mencionado, a objetividade talvez seja o elemento mais

essencial da isenção do cientista em seu trabalho, daquilo que se denomina

perspectiva crítica da ciência. Perspectiva que, nunca será demais repetir, é

precisamente no objeto que se corporifica e se materializa a atividade científica.

Ademais, é a partir da cognoscibilidade objetiva deste objeto, da possibilidade

deste objeto ser estudado objetivamente, que se estrutura a metodologia científica

(mas não deve ser confundida como neutralidade política e moral da ciência, que é sua

perversão). Uma técnica pode ser e, até, costuma ser definida por seu método;

mas uma ciência se define sempre por seu objeto.

No segundo sentido da objetividade, a objetividade do objeto do conhecimento se

expressa por sua existência objetiva, por sua existência independente do

observador. Por isto, é da maior pertinência avaliar-se aqui algumas das questões

ontológicas acerca do objeto da Medicina e da psiquiatria, especificamente do

objeto das ciências médicas sobre o qual se apóia a Medicina e a psiquiatria.

Quando se considera a exigência ontológica e gnosiológica da especificidade, que

é expressa pela possibilidade de estudo objetivo daquele segmento da realidade,

é preciso que não se confunda realidade e concreção, nem abstração e irrealidade

porque cada um destes conceitos tem significação precisa e se refere a uma coisa

bem definida.

Nunca é ocioso repetir, também, que a realidade material se compõe de coisas

(objetos materiais) e construtos (objetos ideais tais como fenômenos, juízos,

4

fatos e acontecimentos). E não pode haver ciência ou conhecimento científico cujo

objeto seja incognoscível ou que não possa ser estudado e conhecido

objetivamente.

A Medicina tem como objeto as relações recíprocas que se estabelecem entre o

ser humano (uma coisa) e a enfermidade (um construto), o meio físico (outra

coisa) e o meio social (outro construto); levando em conta as inter-relações

mútuas que se estabelecem, de um lado, entre o indivíduo e o meio físico e, de

outro lado, entre a pessoa e o meio social. Este caráter hibrido de seu objeto

talvez seja o fundamento da maior parte dos problema ontológicos com os quais

se depara que pratica ou tem a Medicina como objeto de estudo. Esta concepção

totalizante da Medicina mostra a impossibilidade dela ser avaliada desde qualquer

ponto de vista reducionista; seja biológico-individual, psicológico-individual,

ambiental-social ou ambiental-natural. Porque cada um destes ângulos de

avaliação é uma vertente inseparável das demais na totalidade da Medicina. E não parece ter sentido denominar a isto Medicina Integral porque, se não for integral, não é nem deveria ser considerada como

Medicina. O que se denomina medicina integral ou medicina geral e o estudo ou

prática da medicina como uma atividade total, como uma unidade que transcende

a soma de suas especialidades.

Tanto na Psicologia Social, quanto na Psiquiatria Social nota-se grande dificuldade

para delimitar conceitualmente seus objetos, distinguindo-se das ciências

limítrofes, notadamente da Psicologia Geral, da Sociologia, da Antropologia, e este

talvez seja o principal obstáculo para sua afirmação como disciplinas científicas.

Antes de entrar na consideração de questões ontológicas mais gerais de todas as

ciências ou da mais específicas que interessam à Medicina e aos médicos, vale a

pena levantar, ainda que superficialmente, o sujeito do conhecimento e os

objetivos da Medicina, por causa da relação existente entre estes e seu objeto.

Principalmente, porque as divergências acerca destas relações constituem, senão

5

os mais importantes, ao menos os primeiros com os quais se depara quem se

inicia no estudo da teoria do conhecimento médico.

O Sujeito do Conhecimento

Todo conhecimento presume a existência de um sujeito e de um objeto daquele

processo cognitivo (quem conhece e o quê é conhecido). A noção se objeto do

conhecimento (aquilo que é conhecido) só faz sentido porque se completa na noção

que lhe é simétrica e complementar de sujeito do conhecimento (aquele que elabora e

processa o conhecimento). Isto sucede, seja conhecimento comum, seja no

conhecimento científico ou no conhecimento filosófico.

O sujeito do conhecimento, a pessoa que conhece (que em Filosofia se denomina

ser cognoscente) é a pessoa que conhece, a consciência que elabora o saber, a

subjetividade que se completa na objetividade. A participação ativa de quem está

conhecendo no processo cognitivo, seus interesses, desejos, tendências e

preferências devem ser consideradas influências na participação que, por objetiva

que tente ser, tendem a comprometer a pretendida objetividade.

Assim como a objetividade tem sentido de não-tendenciosidade e liberdade frente

ao processo de conhecer, a subjetividade sempre inclui uma conotação de

compromisso, de envolvimento, de participação do agente. A possibilidade de

conhecer do sujeito depende da possibilidade de se fazer conhecer por ele (que

caracteriza o objeto). Isto é, a possibilidade de conhecer do sujeito cognoscente,

em princípio, está subordinada às características do objeto do conhecimento.

Alguns objetos (os objetos ideais) estão sujeitos unicamente à razão. Outros,

como sucede aos objetos muito pequenos, as dimensões microscópicas do objeto,

deixam-no fora do alcance das possibilidades do sujeito, a menos, que utilize um

recurso óptico para ampliar suas possibilidades senso-perceptivas ou algum

equipamento de detecção para estender qualitativamente sua capacidade

perceptiva. A qualidade e o êxito do processo de conhecer dependem, pois, de

fatores objetivos (ligados ao objeto e independentes do sujeito) e subjetivos

6

(ligados ao sujeito e mais ou menos independentes do objeto do processo

cognitivo.

O conhecimento depende da integridade dos recursos fisiológicos, da experiência

existencial, do presente, passado e aspirações de futuro; preconceitos, interesses

e desejos do sujeito. Este envolvimento é característico do conhecimento vulgar

(que é, por definição muito vulnerável a ele) e, por isto, a metodologia científica,

exige procedimentos e recursos destinados a afastar a tendenciosidade. Tais

procedimentos constituem o núcleo da metodologia científica de investigação do

mundo. Sem perder de vista que os fatores relacionados ao objeto não são mais

ou menos importantes que os subjetivos. No plano subjetivo, os conhecimentos

que estão sendo elaborados não sofrem influência apenas dos fatores cognitivos,

mas dos afetivos e, ambos, tanto conscientes quanto inconscientes.

A influência da dimensão inconsciente, por exemplo, pode ser tida como

verdadeira e presente, ainda que não possa ser operacionalizada o empiricamente

demonstrada com os recursos metodológicos e técnicos de que se dispõe hoje.

Entretanto, a impossibilidade de operacionalizar empiricamente o conceito de

inconsciente não parece ter nada a ver com a realidade ou irrealidade da

inconsciência, mas com uma limitação do processo que usamos para estudá-la. O

simples fato de não se poder comprovar a realidade do conteúdo de um conceito

não significa que ele seja irreal. Só que sua realidade não foi comprovada. A

subjetividade, que pode ser tida como o principal atributo do sujeito, é o conceito

complementar ao de objetividade e diz respeito às manifestações da vida interior

de quem experimenta (ou vivencia) uma experiência existencial consciente ou

inconsciente. Objetividade e subjetividade são extremo apenas aparentemente

oposto de uma mesma totalidade.

Incontáveis condições podem exercer papel diretor e tendencioso na subjetividade

de quem conduz um procedimento de investigação científica; ainda que se

possam mencionar como principais os seguintes: estado das estruturas e funções

7

neuro-psicológicas; interesses materiais (prêmios, salários, contratos, aumentar a

venda de um produto, garantir contratos de investigação); orgulho e vaidade

(prestígio, influência, renome ou apenas a precisão de publicar alguma coisa por

imposição da carreira acadêmica) e, por fim, a paixão (tanto paixão pelo objeto de

estudo ou o interesse afetivo em um resultado predeterminado, quanto paixão por

si mesmo e sua produção).

No entanto, é preciso destacar que a influência da subjetividade do investigador

não se revela apenas como fator negativo para a investigação e a intervenção

científicas. Também se reconhecem entre os fatores subjetivos do processo de

conhecer algumas condições bastante positivas, indispensáveis mesmo.

Tenacidade, persistência, laboriosidade, inteligência, conhecimento prévio e

interesse, entre outras, podem ser condições subjetivas positivas importantes para

o resultado de um trabalho, ainda que não exista por si só, mas como atributos de

uma pessoa determinada.

Inter-subjetividade na Ciência

A subjetividade e a inter-sujetividade são inafastáveis da atividade científica, por

que a ciência é uma abstração, um construto subjetivo que se materializa na

atividade, inclusive ou principalmente mental, dos cientistas e em sua interação.

A troca de informações e a colaboração interpessoal, a discussão, a refutação

sistemática, a crítica (que inclui a auto-crítica) são manifestações intersubjetivas

indispensáveis ao desenvolvimento da atividade científica. As questões

relacionadas com a inter-subjetividade exercem influência na teoria do

conhecimento científico e são núcleo da comunicação do conhecimento e seu

desenvolvimento. Os fenômenos psicossociais e muitas das manifestações de

enfermidade, principalmente das enfermidades psiquiátricas, não podem ser

constatadas diretamente pelo observador (carecem de objetividade) e só podem

ser conhecidas por ele, desde que relatadas pelo paciente (fenômeno inter-

subjetivo).

8

Na atividade científica, importa refletir nas elaborações subjetivas de quem a

realiza, além de pensar no reflexo destas interações nas relações entre o sujeito e

o objeto do conhecimento e das interações entre o sujeito cognoscente e seus

eventuais interações. Nas ciências da natureza, o conhecimento se dá pela

relação entre a subjetividade e a realidade objetiva, precisando ser validadas.

Tem-se como certo que as representações subjetivas só podem ser consideradas

válidas se seu processo de validação tiver sido objetivo, se resultarem de

proposições validadas de maneira aceitável pela ciência naquele momento de seu

desenvolvimento.

Com relação à influência da objetividade e da subjetividade, existem três

tendências extremadas em filosofia da ciência: o objetivismo (que nega ou

subestima toda contribuição da subjetividade); o subjetivismo (que faz o mesmo com

relação ao que for objetivo) e a eclética que é a síntese dialética destas duas (que

trabalha com ambas as vertentes desta dicotomia, sem se deixar levar por

nenhuma delas).

Os aspectos intersubjetivos devem merecer a maior atenção por parte de quem se

preocupa em estudar a ciência filosofia do conhecimento científico. Dentre os

aspectos intersubjetivos, destacam-se os problemas da cooperação e da

comunicação científica.

Regis de Morais<$Fop. cit. p. 90.> aponta para as seguintes situações em que a

subjetividade do pesquisador influi no resultado do trabalho científico:

1. necessidade de pré-estruturas cognitivas para a adquirir novos conhecimentos;

2. necessidade de certa cultura, inclusive de conhecimentos anterior por parte do

sujeito para uma aproximação adequada dos novos fenômenos;

3. capacidade lógica para relacionar inteligentemente os dados;

9

4. necessidade de participação (engajamento, interesse, motivação) no que estiver

sendo investigado,

As relações entre o sujeito e o objeto, a objetividade e a subjetividade e o

desdobramento teórico e práticos destas relações, depende dos objetivos da ação.

É bastante diferente quando alguém pretende fazer um bom trabalho e, depois,

deseja receber por ele, do que alguém que tem o dinheiro como objetivo principal

e trabalha para atingi-lo. No primeiro caso, o trabalho é fim e, no segundo, se

reduz a um meio.

OBJETIVOS DA MEDICINA

Os objetivos ideais da Medicina como instituição social (porque existem os

pessoais de cada um de seus praticantes) dependem essencialmente de sua

identidade. Como a instituição sanitária a Medicina sintetiza diversas identidades e

qualquer uma delas pode ser confundida com ela.

Veja-se.

Na atividade social medica coexistem diversas identidades sócio-institucionais,

das quais se destacam as seguintes:

1. a identidade sócio-econômica ou laboral,

2. a identidade técnico-científica e

3. a identidade sócio-cultural, que inclui a ética.

A dimensão laboral é a que mais se destaca à primeira vista – a medicina

profissão dos médicos. A segunda vertente da identidade da Medicina, sua

dimensão técnica e científica, é a que será considerada prioritariamente no estudo

que se segue, ainda que as demais também sejam levadas em conta, ao menos

de passagem. Até porque, estas duas identidades da Medicina se superpõem, se

misturam sendo bastante comum que não possam ser diferenciadas nas situações

10

concretas senão por um exercício lógico de abstração. Contudo, ao logo de seus

muitos séculos de existência, tem sido a identidade ética que assume a primazia

sobre as demais.

Todas as culturas modernas reconhecem a Medicina como uma ocupação

especial e credora de responsabilidade social relativamente grande, como a

prática social humana reconhecida como valiosa e uma aplicação científica com

significativo compromisso ético, o que a situa como uma atividade profissional

responsável e uma atividade científica acreditada. Grande parte deste crédito

decorre da conduta de seus profissionais considerados individualmente; mas, ao

menos em parte, há de resultar do reconhecimento público de seus objetivos

institucionais.

As pessoas enfermas sempre estiveram na fonte dos propósitos da Medicina.

Desde sua origem mais remota, o principal objetivo da Medicina tem sido o

doente. Restaurar-lhe a saúde e abolir seu sofrimento foram os objetivos básicos.

Desde muito remotamente, o tratamento é considerado como sinônimo da

Medicina.

Nas as sociedades modernas, todas as dimensões da Medicina (destacando-se a

profissional e a técnico-científica) convergem para buscar como objetivo geral e

principal ajudar os enfermos através da consecução das seguintes metas

específicas:

a) conhecer os enfermos e reconhecer as enfermidades, seus condicionantes e

seus mecanismos de interação mútua;

b) prescrever e aplicar procedimentos destinados a evitar que as pessoas

enfermem;

c) desenvolver os recursos capazes de evitar a evolução das enfermidades e

desenvolver meios para cuidar e, se possível, curar os que enfermaram;

d) aliviar o sofrimento dos que padecem uma moléstia e 11

e) exercer esforços para reabilitar as pessoas afetadas por incapacidade e

invalidez determinadas por enfermidades ou traumatismos.

Em resumo: conhecer as enfermidades e os enfermos, prevenir as enfermidades e

promover a saúde, tratar e reabilitar os enfermos. Estes são os objetivos

fundamentais da Medicina em todas as culturas conhecidas.

Destes objetivos, o mais antigo e aquele que está mais profundamente encerrado

na consciência social é o tratar (curar). Desde seu início na magia, a Medicina tem

sido reconhecida como a ciência e arte de curar. Curar com o sentido de tratar.

Este tem sido sempre o objetivo mais importante da Medicina, ao qual, mais

recentemente se acrescentou o propósito de prevenir. Mas, deve-se ressaltar que,

enquanto curar é uma tarefa médica específica (ainda que não exclusiva), prevenir

tem alcance muitíssimo mais amplo e abrange muitas atividades.

Estes objetivos médicos essenciais que foram listados acima se integram em duas

práticas sanitárias distintas (geralmente realizadas por organismos sociais

diferentes): a Medicina Curativa Individual e a Medicina Preventiva Social

(conjunto indissociável de procedimentos sanitários englobados na Higiene e

Saúde Pública, na Medicina Preventiva e Social e na Saúde Coletiva). Mas,

também podem compor uma perspectiva mais abrangente e monista, sendo tidas

como um processo sanitário único que integre os procedimento de assistência

individual e os procedimentos de intervenção na coletividade; um conjunto de

intervenções que se dê como uma unidade integrada, ativa, positiva e preventiva.

Na primeira opção, imagina-se uma diferença essencial entre estas duas práticas

e suas teorias de suporte; na segunda, ambas são reconhecidas como dimensões

de uma mesma totalidade, a unidade dos aspectos preventivos e curativos na

inteireza da Medicina.

O que configura a essência da Medicina Preventiva: prevenção primária (promover a

saúde e evitar enfermidades), prevenção secundária (diagnosticar as patologias

12

com precisão e tratar o enfermo com eficácia o mais brevemente possível) e

prevenção terciária (reabilitar os prejudicados pela enfermidade).

QUESTÕES ONTOLÓGICAS GERAIS DO CONHECIMENTO MÉDICO

A ontologia ou teoria do objeto pode ser definida como o capítulo da filosofia que

formula e desenvolve a o conhecimento sistemático do objeto material que estiver

sendo estudado em uma dada atividade cognitiva. Caracterizar bem um objeto

material de cogitação filosófica ou científica. A ontologia não estuda construtos, só

objetos concretos, materiais. Com resquício de sua origem na Metafísica, a

ontologia também pode ser definida, em sentido mais estrito, como o estudo do

ser; ou, ainda, o estudo dos entes ou a investigação sistemática do ser que estiver

sendo considerado em uma determinada investigação.

Caso se aprofunde o estudo desta disciplina filosófica, pode-se constatar que a

ontologia tanto pode ser dirigida para o estudo do serem geral (muito a gosto dos

filósofos idealistas), quanto para o estudo dos seres particulares ou, mesmo, os entes

específicos que constituem os objetos específicos de cada atividade cognitiva, os

entes específicos de cada estudo científico. De um ponto de vista estritamente

científico-natural do estudo filosófico da ciência, o momento ontológico consiste

teoria que permite caracterizar e definir o objeto de um estudo e circunscrever

seus limites o mais exatamente que for possível, distinguindo-o o mais

precisamente de tudo o mais que existe. A investigação ontológica de uma ciência

consiste na caracterização de seu objeto de investigação. Qual fração do mundo é

estudada por aquela ciência? Quais as coisas (seres ou entes) estão abrangidas

por ela?

Em filosofia, denomina-se ente, àquilo que é, em qualquer dos significados do

termo ser.Ou pode ser entendido como uma coisa existente, real. A partir de um

ponto de vista científico-natural, pode-se entender ente como uma unidade

existencial dotada de entidade definível por si mesma, dotado de status existencial

13

próprio, e de uma identidade social reconhecível por suas próprias características.

O termo apareceu da Filosofia de Heidegger, que usava o termo ente para

significar o ser que existe objetivamente, o ser concreto, uma coisa real, uma parte da

realidade. Donde se depreende a que o conceito de ente, embora tenha surgido

de um ponto de vista realista, com significado voltado para a realidade, também

pode ser empregado como conceito idealista (embora isto não seja correto, ao

contrário).

Como os filósofos idealistas religiosos necessita muito levar em conta a presença

suprema de uma divindade em suas cogitações e o conceito de ser se presta muito

para isto, servem-se dos conceitos de ser e de ente (devidamente idealizado) para

representá-la. Entretanto, em uma perspectiva ontológica e materialista do

conhecimento e por fidelidade a seu significado original, a noção de ente

corresponde a de entidade, coisa existente, parte da realidade. Desde que esse

mesmo enfoque científico-natural seja aplicado às cogitações da filosofia da

ciência, pode-se considerar a ontologia como o ramo da filosofia que estuda o ser, o

ente, o objeto que focaliza o estudo de uma ciência ou atividade científica; o ente

natural social ou humano que é objeto de estudo científico e este estudo

ontológico pode ser aplicado a qualquer tipo de investigação.

No caso presente, a perspectiva ontológica está dirigida para o objeto das ciências

médicas, em geral, e para a Medicina, em particular. Em Medicina, a noção de

ente (objeto de estudo) pode ser aplicada a dois elementos de seu objeto: o

enfermo, ente humano afetado pela enfermidade, e a enfermidade, a entidade

clínica que, afetando a pessoa, lhe confere a condição de enfermo. Pois,

enfermidade e enfermo são categorias patológicas inseparáveis. Não se pode

cogitar de uma sem considerar a outra. A enfermidade e o enfermo configuram a

dupla face do objeto da Medicina.

Para facilitar o entendimento da noção de ontologia e os conceitos derivados dela,

pode-se afirmar que a avaliação ontológica do conhecimento científico sobre

14

alguma coisa se refere ao o quê é o objeto daquela atividade cognitiva. Em filosofia

da ciência, ontologia é o estudo do ente estudado em uma atividade científica. As

questões ontológicas específicas de cada área do conhecimento científico dizem

respeito ao objeto de cada ciência em particular. A ontologia de uma ciência

encerra o estudo do objeto daquela ciência, enquanto objeto do conhecimento

científico.

Ao lado destas questões ontológicas específicas de cada ciência considerada

individualmente, existem algumas questões ontológicas que interessam a todas as

manifestações do conhecimento, embora sejam mais importantes para o

conhecimento científico. As questões ontológicas relacionadas com a

epistemologia ou teoria do conhecimento, dizem respeito ao objeto do saber: o

conhecimento-resultado. O que é o conhecimento? Como se define? Como se

estrutura?

A ontologia é o capítulo da filosofia que estuda o objeto (originalmente, do ser ou

do ente). A avaliação ontológica de um processo cognitivo é o estudo de seu

objeto que deve ser iniciado com sua delimitação. O objeto de uma ciência

qualquer deve circunscrever uma área específica e especificada de

conhecimentos definidos acerca daquela fração particular e bem delimitada do

mundo. As ciências factuais têm seus objetos na natureza, no homem ou na

sociedade.

A investigação ontológica, no sentido de caracterização científica do objeto

daquela atividade cognitiva, é sempre um momento fundamental de cada ciência,

ainda que isto nem sempre seja sabido por quem a cultiva ou nela represente um

papel. As ciências se definem sempre pelo seu objeto e cada ciência deve ter

objeto definido ao mesmo tempo que se define por este objeto. Todas. Ainda que

algumas áreas especializadas no interior de uma ciência possam, eventualmente,

serem definidas por um método, uma técnica ou, mesmo, uma filigrana técnico-

científico (como um procedimento técnico particular). Já as profissões, a despeito

15

de sua base científica, eventualmente, podem ser definidas pelo método ou pela

técnica que utilize ou mesmo por um determinado procedimento técnico.

As ciências podem ser classificadas do ponto de vista da natureza de seus

objetos. Por isto, na dependência de seu objeto de estudo, existem ciências

naturais, ciências humanas e ciências naturais. A natureza, com sentido de

universo material, abrangendo seus aspectos concretos e abstratos, objetivos e

subjetivos, se organiza em estratos diferentes de estruturação que apresentam

níveis diversos de complexidade; não sendo possível transpor os achados

referentes aos objetos e fenômenos de um estrato ou de nível para outro diverso,

ainda que se refiram a coisas ou acontecimentos que pareçam semelhantes ou

análogos, embora situados em estratos diversos da natureza.

Conhecer os estratos qualitativamente diferentes da natureza é importante porque

as leis naturais específicas, aquelas que regem determinados conjuntos de

objetos ou fenômenos da natureza, não podem ser transpostas para outros

objetos e outros fenômenos, sobretudo quando se situam em níveis diferentes da

estrutura da organização natural.

Com muito maior razão ainda, muito menos é viável transpor conhecimentos ou

métodos pertinentes às ciências da sociedade para as ciência humanas ou para

as ciências da natureza. Cada nível de organização do mundo está sujeito às suas

próprias leis que não são válidas em outro estrato que não aquele. As leis que

regem um determinado nível da natureza não são aplicáveis a outro nível da

organização natural, quanto mais a outro nível da estrutura do mundo, como a

sociedade e o pensamento.

Não são somente as ciências definidas e reconhecidas universalmente como

atividades científicas particulares que precisam ter definido seu objeto. Cada

investigação científica, por mais desprentenciosa e limitada que for, necessita ter

bem definido seu objeto de trabalho, antes de serem cogitados dos métodos. O

mesmo acontece com cada procedimento ou cada instrumento para o qual se

16

pretenda status de cientificidade. A definição do objeto de uma atividade,

instrumento ou procedimento (que deve ser a mais completa possível no momento

em que se dê) consiste no primeiro momento de declaração de sua cientificidade.

Antes de avaliar os aspectos ontológicos específicos das ciências médicas e, em

especial, da psicopatologia, por causa de sua influência na psiquiatria, deve-se

repassar, ainda que rapidamente, algumas questões ontológicas mais gerais,

porque alcançam todo conhecimento, tais como:

a) Se o mundo objetivo é real ou irreal;

b) e, sendo real, se o mundo objetivo mantém uma relação de primariedade ou de

secundariedade em relação à atividade mental, a subjetividade.

Não se deve supor que estas são apenas perguntas retóricas, elaboradas apenas

para consagrar respostas previamente conhecidas no curso de uma

argumentação ou explanação planejada. Trata-se de questões muito importantes,

fundamentais mesmo, cujas respostas irão influir em todo desenvolvimento que se

suceder a elas.

Esta questão essencial da filosofia e da ciência se consubstancia nas seguintes

perguntas: o mundo objetivo existe, é real ? A primeira e mais abrangente questão

teórica com que os seres humanos se defrontam quando pretendem conhecer o

mundo, reside em saber se este mundo é real (como crêem os realistas e

materialistas), ou uma ilusão dos sentidos (como querem os idealistas e os

fenomenistas mais extremados). Existe um mundo real? Uma realidade além de

nossas subjetividades?

E, existindo uma realidade, será uma realidade objetiva ou consistirá apenas em

uma ilusão da subjetividade? Uma realidade subjetiva. Existirá uma dimensão

objetiva e outra subjetiva da realidade? Ou existirão ambas? Estas indagações

podem parecer inúteis para os mais desavisados ou despreocupados com isto,

mas existe quem negue realidade ao mundo objetivo, de uma realidade externa a

17

nós. Os solipsistas, por exemplo, numa posição subjetivista radicalmente

extremada, negam realidade a todo o mundo objetivo; para eles, existe apenas a

subjetividade e os sentidos de quem pensa no mundo real e se convence de sua

realidade.

A doutrina solipsista (sustentada por BERKELEY e, mais radicalmente, de forma

absolutamente exagerada, por FICHTE) confundia as coisas e as percepções.

BERKELEYdizia: “ser é ser percebido”. Por isto, esta opinião torna a idéia do

conhecimento uma fatuidade e a ciência, uma completa impossibilidade. Pois

unicamente a divindade poderia conhecer. Se alguém é solipsista, há de negar

realidade ao doente e à doença, como parte de sua negação de todo o universo,

considerado, no todo ou em parte, como resultante de experiências sensoriais

ilusórias. Para os solipsistas, toda preocupação ontológica é denominada

ontologicismo, como se fora um reducionismo, uma preocupação desmedida com o

objeto; o que é bastante natural neles, vez que não aceitam a objetividade, a

existência objetiva de qualquer coisa. Devendo-se afirmar que o solipsismo

metodológico não é sempre tão radical, nem alcança a todos os objetos. Sabe-se,

por exemplo, que na natureza, as coisas em geral constituem uma realidade difícil

de ser negada porque sua objetividade é quase agressiva. Como negar um monte,

um rio, um cachorro, um estômago ou a função renal?

Já as ciências sociais e as ciências humanas lidam com realidades que são, ao

menos em grande parte, criações humanas, exigem ao menos um sujeito e

possuem alto grau de abstração. Ora, nestas condições, para os objetivistas

extremados, estas realidades são negadas. A psicologia, a psicopatologia e

grande parte da psiquiatria são alcançadas nesta situação.

Este fenômeno cognitivo mostra-se particularmente interessante quando aplicado

ao terreno da identificação das enfermidades ou entidades clínicas em psiquiatria;

principalmente pelos que negam a existência objetiva da enfermidade psiquiátrica

18

ou uma delimitação definida entre a normalidade e a patologia como facetas da

existência humana.

O solipsismo, em sua forma pura, pode estar fora de moda e, hoje, talvez não

exista senão como expressão de excentricidade para conversas eruditas para

chamar atenção no barzinho da moda. Contudo, tem muitos sucessores, nos quais

se atenuou a negação delirante do mundo, como os já mencionados

nominalismos, medieval e moderno, por exemplo, que negam realidade às

coisas e às possibilidades de conhecê-las diretamente. Mas, isto será encarado

logo adiante neste trabalho, quando se promover ao levantamento das questões

gnoseológicas. A modalidade contemporânea do solipisismo se denomina

conceitualismo, verbalismo ou positivismo lógico.

A partir dos pressupostos que dirigem este trabalho, em última análise e a

despeito de sua diversidade, o mundo material, com tudo que ele contém, deve

ser considerado como o objeto do conhecimento científico. A ciências existem

para estudar o mundo. O mundo todo através de cada aspecto particular dele.

Cada ciência se incumbe da investigação de um aspecto particular do universo da

realidade. O que vem sendo chamado realidade objetiva, mundo real ou.dos objetos

materiais.

Isto posto, tenta-se esquematizar o que se supõe saber ou o que se sabe sobre a

natureza e realidade do mundo objetivo. Desde que se considere todo o mundo

real (objetivo) como o objeto do conhecimento científico, torna-se muito importante

ao menos esboçar sua conceituação ou sua definição. Porque existem diversas

opiniões sobre o que seria a natureza essencial do aqui denominado muitas vezes

como mundo objetivo, porque está fora do sujeito cognoscente.

As diferentes opiniões sobre o mundo objetivo, se revelam nas respostas dadas às

seguintes perguntas que podem ser formuladas sobre ele:

19

1) sendo real o mundo, ele seria um universo composto só por objetos reais e

objetivos ( fossem naturais ou sociais)?

2) Ou seria um mundo povoado apenas por idéias ou outros conteúdos

subjetivos?

3) ou seria um mundo só de palavras? ou, quem sabe,

4) ou seria um mundo onde coexistissem as realidades naturais e sociais, as

idéias e as palavras? Por exemplo, onde as realidades naturais

determinassem as palavras e as idéias e que todas elas coexistissem na

realidade natural e cultural?

A partir destas questões e das possíveis respostas que provocarem, podem ser

situadas duas posições distintas acerca do conceito filosófico de realidade e de

sua relação com a subjetividade.

Tais posições são:

1. os que têm uma visão parcial e fragmentária da questão do conhecimento do

mundo e

2. os que têm uma perspectiva abrangente e globalizante (dialética, pode-se dizer)

da realidade objetiva.

Estas conclusões são possíveis porque as respostas afirmativas a qualquer uma

das três primeiras indagações configuram uma posição parcial, uma visão do

mundo reducionista. A quarta questão, quando respondida afirmativamente, indica

uma posição global, uma visão dialética do mundo e do conhecimento.

No primeiro grupo, dentre muitos outros, destacam-se os solipsistas, os

condutistas e os nominalistas pelo significado que estas posições doutrinárias

parciais sobre o conhecimento têm na filosofia da ciência atual. Pois. esta

tendências filosóficas têm exercido notável influência nas teorias da psicologia e

da Medicina.20

Para os solipsistas, extremistas do subjetivismo, o mundo seria composto

apenas de idéias que se reduzem a existir na subjetividade do observador, sendo

incomunicável para os demais.

Para os condutistas, o extremo contrário ao sliopsismo, correspondente ao

objetivismo positivista clássico, o mundo (ao menos o mundo reconhecível pela

ciência) se limita às realidades naturais (um mundo de coisas), servindo as

palavras apenas como um exercício sempre insuficiente de revelá-las.

Já para os nominalistas, cujas posições se confundem, ora com os solipsistas,

ora com os condutistas (em sua visão parcial e mecânica do mundo), ora com os

neopositivistas, o mundo (ou, ao menos, o mundo do conhecimento) seria um

mundo unicamente habitado por palavras com significações meramente

convencionais, destinadas a simular, ao invés de reproduzir, refletir, representar

ou simbolizar a realidade objetiva. Estas visões contraditórias do mundo,

conduzem a concepções de naturezas muito diferentes e conflituosas sobre o

conhecimento.

O condutismo por causa de seu enfoque reducionista e objetivista, (com um lado

positivo, que foi ter permitido a primeira abordagem científica da psicologia,

segundo as exigências da gnosiologia moderna). O nominalismo não é apenas um

nome que evoca a lembraça de uma tendência da filosofia medieval., rebatizado

de neopositivismo e empirismo, está vivo e influi muito na teoria da psicopatologia

norte-americana, principalmente nos trabalhos de nosografia que costumam

confundir com nosologia.

Numa terceira vertente deste problema ontológico, situada no vértice das

doutrinas parciais, está a posição dialética ou integral, abraçada aqui neste

trabalho. Esta posição, aqui chamada dialética, considera o mundo em que

vivemos um mundo de coisas objetivas, porque existem independentes do homem

ou de sua consciência; apesar de que podem ser refletidas de modo regularmente

eficiente e eficaz na subjetividade de quem o estuda e isto permite que possam

21

ser comunicados a outrem pelas palavras. Existe um mundo objetivo e cada um

de nós constitui uma parte dele. Existe um mundo real objetivo, um mundo de

objetos do conhecimento em relação ao ser cognoscente (subjetivo) que o

conhece. O mundo real objetivo inclui tudo o que existe ao alcance dos sentidos

ou do intelecto, inclusive os outros sujeitos que estiverem sendo conhecidos como

objetos; e um mundo interior, o mundo das idéias do sujeito daquele

conhecimento.

A comunicação intersubjetiva intermediando as relações cognitivas, afetivas e

práticas dos homens com as coisas do mundo. Por isto, se sustenta aqui que

ambos estes fenômenos, as coisas objetivas e as idéias que as refletem, são

representadas ou simbolizadas pelas palavras que se referem a elas. As palavras

(como muitas outras ações) são os recursos pelos quais os conteúdos mentais

são objetivados e materializados. E, embora as coisas precedam as idéias e

estas, as palavras, todas habitam e convivem no mundo sendo inseparáveis na

unidade do conceito.

Neste modo particular de ver o mundo e o conhecimento, a coisa objetiva, que é o

objeto do conhecimento objetivo, deve ser considerada primária em relação à idéia

que suscita na mente e à palavra que a simboliza. A coisa que está sendo

conhecida é primária e a idéia e a palavra são secundárias. Conseqüentemente, a

idéia que reflete o objeto cognoscente, deve ser definida como um acontecimento

ou sinal secundário à coisa objetiva que é o objeto primário; e a palavra que

simboliza a ambos é o dado ou sinal terciário, o seu símbolo verbal. Mesmo

quando a coisa a conhecer é um fenômenos ou processo abstrato ou mítico, ele

se só se torna conhecido depois de objetivado verbalmente. Neste caso, a coisa a

conhecer é a idéia objetivada. E o conhecimento do mito se confunde com o

conhecimento da sua narrativa.

O nominalismo, ou conceitualismo, foi uma corrente filosófica medieval que

afirmava a existência real unicamente das coisas isoladas e suas qualidades

22

individuais e isto apenas, porque nós as convencionamos como tais. O aspecto

positivo do nominalismo (no que ele divergia dos que se denominavam realistas)

era sua negação dos universais. Os realistas afirmavam que os conceitos gerais

(brancura, bondade) existiam em algum lugar do mundo.

Os nominalistas, ao contrario, afirmavam que os conceitos gerais (então,

chamados universais) destas coisas, eram criados por nosso pensamento, eram

apenas palavras, nomes; não existiriam independentemente e não refletiriam as

propriedades e qualidades daqueles objetos ou fenômenos aos quais se referem,

tendo significado unicamente arbitrário e convencionado.

Os nominalistas e os realistas escolásticos conflitavam (e, provavelmente, cada

um deles haveria de ter alguma razão) muito radicalmente. Contudo não se deve

imaginar que os chamados realistas medievais fossem adeptos da tendência

filosófica atualmente denominada realismo (ou materialismo, o oposto de

idealismo). Não. Os filósofos católicos que se denominavam realistas na Idade

Média eram idealistas. A não ser no nome, não tinham nada de realismo. Apenas,

por influência platônica e escolástica, acreditavam na realidade, na existência real

dos universais (propriedades das coisas, com brancura, grandeza, inteligência).

Julgavam que a brancura de todas as coisas brancas existiam realmente como

essência delas

O lado negativo do nominalismo foi o fomento da identificação entre abstração (ou

subjetividade) e irrealidade. O que deu lugar ao aparecimento de diversas

doutrinas.

Entre outras, as doutrinas do rótulo e do veredito para o diagnóstico

psiquiátrico são variantes do nominalismo que, na Idade Média, era combatido

pelo realismo por sustentar exatamente o contrário. Muitas concepções

modernas sobre a psicopatologia, sobretudo as de identidade neopositivista e

empirista, como o operacionalismo, que orientaram a organização do DSM-III e da

CID/10 são sobrevivências atuais do nominalismo medieval. Diferentemente dos

23

nominalistas medievais, os neopositivistas e os empiristas não negam a existência

do mundo real; apenas afirmam ser impossível conhecê-lo além daquilo que

convencionamos saber sobre ele.

Muitas doutrinas idealistas deveriam ser denominadas verbalistas. Porque

superestimam o significado das palavras. A doutrina do rótulo, por exemplo,

nega caráter objetivo às enfermidades, especialmente, às enfermidades

psiquiátricas; sustenta não existirem os chamados doentes senão porque alguns

indivíduos foram assim rotulados; não tivessem sido e seriam sadios. Não

entendem que a noção de enfermidade é um juízo de valor relativo.

Os adeptos da doutrina do veredito também negam as doenças psiquiátricas,

tendo todos os enfermos por mentalmente sadios; a sociedade (o Estado ou a

cultura), a família ou outra instituição condena um de seus membros a bode expiatório

de suas dificuldades de adaptação e o condenado por este veredito passa a ser tido

e tratado como doente. A condição de doente, neste caso, não seria expressão de

uma situação real, mas produto de uma condenação imposta ao paciente. Ambas

as doutrinas, a do rótulo e a do veredito, expressam o ponto de vista nominalista

com relação à realidade ou à cognoscibilidade da patologia. Aida que seja

impossível diferenciar os são adeptos da teoria do rótulo porque negam as

enfermidades mentais dos que são negam as enfermidades mentais porque são

adeptos da teoria do rótulo.

O subjetivismo, como contido nas idéias de BERKELEY, de FICHT e o de

HUME, em seus aspectos originais e mais radicais, que negava a existência da

realidade objetiva, praticamente já não existe e não se reflete diretamente na

filosofia de hoje. Já algumas tendências neopositivistas, como o empirismo e o

pragmatismo, estão exercendo grande influência na psicopatologia do século

vinte, principalmente, na nosologia e na nosografia. A tendência subjetivista

moderna que mais se aproxima de suas matrizes originais (por via da supremacia

do inconsciente, é o freudismo ou psicoanálise

24

Os empirismos (inclusive o empirismo lógico) e o pragmatismo são tendências

filosóficas idealistas modernas que revivem na atualidade diversos pontos de vista

do nominalismo medieval e o conciliam com o positivismo, ao menos nos aspectos

que foram mencionados acima, porque tais aspectos refletem particularmente os

mesmos interesses ideológicos e se enquadram nos mesmos interesses sociais.

O pragmatismo e o empirismo abandonam o antigo conceito de verdade que

considera verdadeiro o que for consoante com a realidade (a concordância do

pensamento com o ser) e valoriza a atividade e a pragmaticidade, a utilidade do

conhecimento. Para eles, a verdade deixa de ser considerado como um valor

teórico e passa a ser tida uma expressão que possa ser tida como útil.

Quando alguém diz, por exemplo: "tal quadro clínico é compatível com o diagnóstico de

demência vascular”, está colocando uma diferença entre o fenômeno real (o quadro

clínico observado no doente) e a expressão que o denomina (o diagnóstico) e

estabelecendo um abismo inexistente entre a coisa e sua denominação, o material

e o ideal.

Transportado para outra situação, este estilo de ver e nominar as coisas no

mundo, principalmente as patologias, produziria frases assim: "este ser vivente, coerente com a designação de pessoa, tem características compatíveis com o significado atribuído à

palavra mulher” ou “aquela coisa em tudo igual a um vegetal, com características análogas às

contidas no significado do termo repolho”; ou, alguém se apresentando: sou alguém que

atende a todas as características da identidade de Fulano de Tal... e quantos outros

disparates análogos que serviriam para produzir apenas divertimento, na

dependência do tempo, da paciência e da imaginação disponíveis.

O realismo metafísico, adotado pelos escolásticos medievais em seu conflito

com os nominalistas, é a corrente da filosofia que defende que as coisas existiriam

fora e independentemente da consciência do sujeito, enquanto o realismo

gnosiológico pretende que o conhecimento possa reproduzir ou refletir a realidade

e, neste caso contradita simultaneamente o nominalismo e o solipsismo.

25

Estas questões gnosiológicas gerais foram melhor vistas na primeira parte deste

capítulo, quando se tratou da construção do conhecimento e, em especial, do

conhecimento científico. Adiante, cuidar-se-á de circunscrever os elementos

conceituais mais essenciais do objeto da Psicologia, os fenômenos psíquicos.

Princípios Básicos da Ontologia Científica

Quando se estuda a ontologia geral das ciências (a ciência do objeto científico) de

um ponto de vista materialista, é necessário definir que seu objeto (o objeto da

ciência ou de todas as ciências reunidas) é o mundo material, o mundo da

realidade. O mundo da natureza (objeto das ciências biológicas), o mundo da

sociedade (objeto das ciências sociais), o mundo dos seres humanos (objeto das

ciências antropológicas) e o mundo das idéias (objetos das ciências formais), o

que configura as três grandes áreas das ciências factuais e a área das ciências

formais em que se distribuem as ciências.

Mario BUNGE, <$FBunge, M., Ciência e Desenvolvimento, Belo Horizonte, Ed.

Itatiaia/EDUSP, 1980, pp. 96 e 97.> um filósofo argentino que estudou com muito

brilho as implicações filosóficas da ciência e a dimensão filosóficas das ciências,

propõe que devam ser empregados alguns princípios fundamentais para que se

possa entender o que há de essencial na ontologia (ou metafísica) da investigação

científica em todos os momentos da história da ciência, em todas as áreas do

conhecimento científico e em todos os lugares do mundo.

Tais princípios, com algumas poucas modificações introduzidas aqui, são os

seguintes:

1. Existe um mundo exterior ao sujeito que conhece e este mundo existe, ao

menos em grande parte, independente deste sujeito.

2. O mundo é composto de coisas reais (concretas) que constituem o mundo dos

objetos de investigação científica na natureza, na sociedade e no homem (ser

natural e social).

26

3. As formas são propriedades das coisas (não existem independentes delas).

4. Os componentes do mundo se agrupam em sistemas ou em grupos de coisas

que interagem entre si e obedecem às mesmas leis.

5. Todo sistema (natural, social, lógico ou psicológico), exceto o universo, interage

em alguns aspectos com outros sistemas e está isolado de outros em outros

aspectos.

6. Todas as coisas mudam com o passar do tempo (e estas mudanças podem ser

quantitativas ou qualitativas).

7. Nada provém de nada e coisa alguma se reduz a nada.

8. Todas as coisas obedecem a leis (expressões de relações invariáveis entre

suas propriedades) que são apropriadas para cada nível de organização da

natureza ou da sociedade.

9. Há diversos tipos de lei que dependem da natureza dos objetos ou dos

fenômenos e de seu nível de organização.

10. Há diversos níveis de organização das coisas no mundo (e cada um destes

níveis de organização obedece às suas próprias leis).

ONTOLOGIA MÉDICA

A ontologia médica é o ramo da ontologia filosófica que se refere especificamente

ao estudo sistemático objeto do conhecimento médico, sua definição como objeto

do conhecimento científico. A ontologia médica promove o estudo sistemático do

objeto da Medicina e de seu conhecimento.

A Medicina pode ser definida como atividade profissional que objetiva o bem-estar

humano e a busca do conhecimento sobre a saúde e a enfermidade, atuando

através da aplicação de um conjunto de procedimentos, habilidades e

conhecimentos que devem ser fundamentalmente científicos (mas não

27

necessariamente), que são resultantes do estudo sistemático de seu objeto. Nesta

definição se situam alguns aspectos particulares da ontologia médica que devem

ser clarificados.

A Medicina é uma profissão, isto é, trata-se de uma atividade social (humana,

técno-científico e econômica) que existe para atender necessidades de indivíduos

e coletividades.

A Medicina é uma encontro humano, uma ciência e uma atividade econômica

voltada prioritária ou exclusivamente para a enfermidade ou a saúde? Para o

doente ou para a doença? Para os indivíduos ou para as coletividades? Para o

tratamento ou para a profilaxia? Destinada a quem precisa assistência médica ou

a quem pode pagar por ela? A Medicina é tudo isto simultaneamente.

Cada uma destas questões bipolarizadas, quando respondidas defendendo-se

uma das assertivas como excludente da outra, redunda em um reducionismo e

resulta na impossibilidade de conhecer a verdadeira natureza da Medicina. Pois

elas são postas de maneira maniqueísta e não correspondem à realidade dos

fatos, tais como postos na prática concreta da investigação ou da clínica médicas.

Em todas essas questões é possível e desejável que se responda afirmativamente

a ambas as alternativas porque elas não são auto excludentes. A Medicina é uma

atividade voltada para a enfermidade e para o enfermo, para a saúde e para a

doença, para os indivíduos e para as coletividades, para o tratamento e para a

profilaxia, para quem necessita dela e para quem pode pagar por seus serviços.

Nenhuma destas respostas é incompatível com a verdade e nenhuma delas obriga

à exclusão de outra.

O objeto da Medicina é uma entidade dual (homem e enfermidade), cada uma

delas bastante complexa que se concretiza em quatro planos distintos e

complexos de relações recíprocas:

primeiro, nas relações entre o enfermo e sua enfermidade;

28

segundo, nas relações recíprocas que se estabelecem entre a pessoa enferma ou

ameaçada de enfermar e a pessoa que pode ajudá-lo (o médico);

em terceiro lugar, nas relações entre a patologia que afeta ou ameaça o enfermo e

as possibilidades dos recursos técnicos de intervenção disponíveis para prevenir e

diagnosticar a condição patológica, tratar e reabilitar o enfermo;

em quarto lugar, nas relações entre o enfermo (ou pessoa ameaçada de enfermar)

e o seu ambiente físico e social. Por tudo isto, a ontologia médica é, antes de tudo,

uma antropologia (porque implica em uma concepção do homem. Uma

antropologia metafísica (voltada para o objeto) e uma antropologia dialética

(voltada para suas relações).

Duas questões ontológicas essenciais da Medicina são: a primeira é a possível

relação existente entre o enfermo e a enfermidade (duplo objeto da Medicina), e a

segunda se refere à possível natureza específica da enfermidade considerada por

si mesma e de sua história natural.

Como se há de verificar adiante, quando se estudar a comprobabilidade como

característica fundamental de cientificidade, existem dois procedimentos

metodológicos básicos para o processo de conhecer o mundo. Estudar as coisas

(sua características e atributos, sua origem suas finalidades) e estudar as relações

das coisas (a maneira pela qual estas coisas se inserem no mundo e interagem

com as demais). Estas duas atitudes metodológicas básicas de modo algum são

antagônicas ou auto excludentes. É perfeitamente possível incluir as duas no

desenvolvimento do mesmo processo cognitivo. Esta perspectiva integradora e

totalizante, aliás, parece muito mais compatível com a designação de dialética.

Antes de tudo, por sua primazia ontológica, há de se caracterizar o que é vida, por

causa de antiga ralação deste assunto com a Medicina e com os médicos.

29

A Vida

A vida é um mistério que pode ser definido, ainda que imperfeitamente, mas de

um ponto de vista materialista e prático, como uma forma especial de movimento

da matéria, qualitativamente superior aos fenômenos físicos e químicos da matéria

orgânica. Cada organismo vivo pode ser caracterizado como um sistema aberto

(dotado de unidade, totalidade e interatividade), auto-organizador (capaz de

modular seu funcionamento, inclusive seu metabolismo, em função de suas

necessidades de adaptação), auto-reparador (capaz de regeneração automática

de suas estruturas), capaz de autopoiese (direção e limites de seu crescimento) e

de reprodutibilidade (geração de organismos iguais). E, igualmente caracterizado

pela degeneração de suas estruturas e de morrer.

Existem duas concepções básicas sobre a origem da vida e de sua diversidade: o

criacionismo e o naturalismo evolucionista. A variante vitalista do

criacionismo supõe a existência de um princípio vital eterno capaz de assumir

cada uma das formas de vida existentes e ser sua característica essencial.

Quando se estuda a vida, é possível diferenciar a vida individual da atividade vital

que a anima e lhe é anterior, existindo em seus ascendentes e que prossegue em

seus descendentes. Enquanto vitalidade, a existência de cada ser vivo é extensão

da vida ou das vidas que lhe deram origem. Por isso, é impossível determinar

quando começou a vida de um ser vivo (inclusive uma pessoa), embora seja

relativamente fácil determinar onde ela termina. Isto porque é impossível precisar

o momento do início da vida de um ser vivo (animal ou vegetal) por que ela já

existia nos gametas que o originaram, na vida dos produtores destes gametas e

em todos seus antepassados.

A rigor, a vida de cada um dos seres vivos se iniciou com a vida de seu primeiro

antepassado mais remoto, muito provavelmente uma estrutura extremamente

simples, um ser vivo unicelular, originado em uma a grande matriz primitiva ou de

30

muitas outras que teriam surgido. Cada ser vivo é, de certa maneira, uma

extensão da vida de todos e de cada um dos seus incontáveis antepassados.

Também não se pode entender a vida dissociada do conceito de organismo e

este, separado do meio ambiente. Os seres vivos, inclusive o seres humanos,

mantêm constante interação com o ambiente do qual dependem e as

perturbações desta interação sempre significam um fator de risco para a saúde e

para a sobrevivência.

A vida humana, entendida como vida pessoal, resulta de uma interação

permanentemente e dinâmica entre as estruturas biológicas, o ambiente físico e o

meio social que se mantêm em permanente interação através do organismo; pois,

cada organismo humano corporifica uma vida individual, a vida de um ser humano

específico, na vida de uma pessoa. Neste plano se situa antiga responsabilidade

médica não com vida genérica, mas com a vida de cada pessoa.

O ser humano deve ser entendido como vivente de dois mundos: o mundo da

natureza e o mundo da cultura. O entendimento do organismo humano como um

sistema integrado no ambiente e de sua existência pessoal como uma

organização integrada no meio social é cientificamente correto, mas insuficiente,

suscitando grande número de indagações sobretudo éticas.

Com este sentido biológico, não se diferencia a vida de um humano da vida de

qualquer outro ser animado e isto é completamente insatisfatório para a Medicina

Os humanos parecem qualitativamente diversificados em relação aos demais

viventes e tal diferença se assenta, principalmente em sua eticidade.

Nem se pode identificar o início de uma vida humana com a fecundação,

pretextando sua relativa autonomia biológica individual. Exatamente porque isto

equivaleria e reduzir o ser humano ao seu arcabouço biológico, a sua estrutura

organísmica. (O que não tem sentido hoje, nem mesmo frente ao conceito de

morte cerebral, quanto mais diante da complexa realidade bio-psicos-social).

31

Interação e Adaptação

Como é típico dos sistemas vivos, os organismos biológicos são dotados da

possibilidade de promover a interação entre seus componentes e de mobilizar

recursos adaptativos internos e externos para assegurar sua integridade e seu

funcionamento. A adaptabilidade (interna e externa) é uma das características

mais importantes e essenciais de todos os seres vivos.

Reprodução, Regeneração e Degeneração

A reprodução (ou auto-reprodução), entendida como capacidade de um organismo

produzir outros seres da mesma espécie, também constitui atributo essencial dos

organismos viventes. Variam os mecanismos reprodutivos, a partir de dois que

são fundamentais: a reprodução sexuada e a assexuada.

Entende-se por regeneração a capacidade que têm os seres vivos de reconstituir

estruturas e funções lesadas, prejudicadas ou suprimidas. Esta função também

não é idêntica em todas as estruturas, todas as espécies ou todos os espécimes.

Degeneração

Entropia e Autopoiese

Viver e Conviver

Viver e Sobreviver

Quando se enfoca a questão da necessidade da vida, de como o viver ou seguir

vivendo; a vida como um estado particular da matéria altamente organizada e

diferenciada, a matéria viva. Devendo-se destacar que estes dois aspectos da

questão (a vitalidade e a sobrevivência|) mobilizam grande interesse,

especialmente do ponto de vista médico. Prolongar a própria vida é uma

necessidade impressa no patrimônio instintivo de todos os seres vivos conhecidos.

32

A necessidade de sobreviver, de se manter vivo, de se evadir ou de vencer as

ameaças à vida é uma característica comum a todos os seres vivos. Tanto, que é

descrita como uma propriedade da matéria viva. A necessidade de sobreviver se

evidencia em dois planos distintos: o plano individual (ontológico) e o plano da

espécie (filológico). Para um ser vivo, a necessidade de sobreviver impõe

sobreviver como ser individual, prolongando a própria vida; e sobreviver como

espécie e como estirpe, através dos descendentes por meios da reprodução.

A origem, a manutenção e o prolongamento da vida humana dependem de

incontáveis fatores individuais e sociais.

Expectativa de vida é um índice epidemiológico que expressa o período de

tempo que se espera que uma pessoa, com certa idade, viva caso se mantenham

os índices de mortalidade vigentes.

As pessoas estão morrendo cada vez mais velhas. E, dento de limites razoáveis,

quanto mais velhas, maior é sua expectativa de viver mais. O progresso da

civilização se expressa, inclusive, por aumento significativo da média de vida das

pessoas e, conseqüentemente, o aumento relativo do número de pessoas idosas

na população, fenômenos conhecido como envelhecimento populacional que

produz implicações em muitas áreas da vida social, destacando-se as implicações

médicas.

Entre as implicações médicas, destacam-se a necessidade de pessoal habilitado e

serviços capacitados para atender a este tipo de clientela que, por sua própria

condição, mobiliza mais recursos que os jovens. Além do que, aumenta o número

de aposentados e estes vivem muito mais. Como os sucessivos governos

dissiparam os recursos da previdência social, os aposentados de hoje pagam a

conta desta conduta.

Além disto, o crescimento indisciplinado das metrópoles cria imensas áreas de

moradia em condições extremamente precárias (e não apenas nas favelas e nos

conjuntos habitacionais mais pobres). A proletarização da assim chamada classe 33

média também faz crescer a montanha de pobreza (trabalhadores e funcionários

públicos que até há vinte anos se inscreviam na classe média, hoje são favelados

e muitas vezes se situam abaixo do nível de miséria).

Desde a origem da Medicina, os médicos são identificados pela população como

curadores naturais dos interesses humanos dos enfermos e guardiões da vida.

Estes compromissos se incorporaram de tal maneira à sua identidade e ao seu

papel profissional que provocam muita frustração quando são desobedecidos ou

desrespeitados.

Vida e Qualidade de Vida

A qualidade de vida se refere à vida como é vivida. A vida como mais do que

sobrevida, como possibilidade mínima de atingir seus objetivos e ter atendidas

suas necessidades mínimas; de existir com decoro (no antigo sentido hipocrático

desta expressão). A noção de vida como vitalidade se completa no conceito de vida

como qualidade de vida<D>, como vida decorosa ou bem estar. Como atributo da

existência pessoal, o que deu um sentido bastante diferente à noção de existir, de

sobreviver, de seguir vivendo. As noção de vida humana inclui hoje uma série de

condições que estão relacionadas à satisfação ou à frustração das necessidades

individuais e sociais do vivente humano, encarado (também neste aspecto) como

qualitativamente diferente dos demais seres vivos. O compromisso essencial que

os médicos mantêm tradicionalmente com a vida humana foi ampliado para conter

de novo a velha concepção hipocrática de vida digna de ser vivida, de vida

decorosa.

A noção de qualidade de vida está interligada com a noção de personalidade e com a

idéia de síntese das necessidades individuais (primárias e superiores) e sociais.

É bem verdadeiro que as noções mencionadas acima de vida média e expectativa de

vida ao nascer são cada vez mais significativas em nossa civilização, porque indicam

a qualidade de vida da população. Entretanto mais que tudo, é necessário levar

34

em conta a possibilidade de uma vida digna e decorosa (como queriam os

hipocráticos). A vida dos animais praticamente se resume à sobrevivência. Não é

(ou não deve ser) assim com os seres humanos, a despeito da realidade de

miséria e abandono em que sobrevive um contingente extremamente significativo

de nossa população.

Também mudou o procedimento para identificação da vida, quando a constatação

da morte cerebral substituiu o antigo critério de parada cárdio-respiratória como

marco clínico do fim da vida e do diagnóstico de morte. Neste caso, a troca de

critérios não corresponde apenas a uma necessidade pragmática (facilitar e

viabilizar transplantes) mas a aplicação do compromisso ético que exige valorizar

mais o vivo que o morto.

Não obstante esta situação social real, hoje, existe entre os praticantes e

pensadores da Medicina uma preocupação cada vez mais ampla e mais

significativa, que se estende para muito além do conceito simples de vida ou de

sobrevivência das funções vitais de uma pessoa; trata-se de institucionalizar o

conceito de qualidade de vida como instrumento operacional de avaliação

clínica.

Não basta que o paciente sobreviva a uma enfermidade durante um certo tempo,

cada vez mais se considera que seja necessário que disponha de possibilidades

mínimas de exercer sua vida com dignidade; não apenas de sobreviver, mas de

desfrutar a vida. Neste sentido, viver é mais que unicamente sobreviver.

Entretanto, não se pode condicionar a vida à exigência de plenitude da vida ou a

completo bem-estar.

A qualidade de vida se expressa pelo nível de bem-estar e o nível de bem-estar se

difine pela satisfação das necessidades individuais e sociais; a partir das

necessidades chamadas necessidades sociais básicas (alimentação, moradia,

vestuário, trabalho, lazer, transporte e acesso a serviços de saúde e de educação,

35

além de necessidades civis (autonomia e liberdade de expressão, participação

social, propriedade, dignidade, auto-realização e acesso aos recursos de busca da

felicidade pessoal).

A definição da qualidade de vida mínima entre os direitos sociais inalienáveis da

cidadania é um importante conceito para estabelecer os deveres estatais e um

passo importante para o desenvolvimento da civilização.

Entretanto, não basta que se escreva isto como direito nos diplomas legais, é

preciso que isto fique impresso na consciência social (afinal, a constituição já diz

que a saúde é direito de todos). A lei é letra morta se não corresponder ao desejo

da maioria da população ou dos interesses hegemônicos.

Mas a vida também tem uma dimensão ética e a vida humana uma dimensão ética

especialíssima. Desde sua origem, os médicos somos zeladores da vida. Todo

médico é um guardião da vida e do bem estar de seus pacientes e, por extensão,

das comunidades confiadas ao seu cuidado quando desempenha uma atividade

social.

Sob qualquer ponto de vista, do religioso ao materialista, toda ética da Medicina se

fundamenta em um princípio fundamental: o princípio da beneficência, que

significa não fazer mal. Principalmente aos seus pacientes. A menos que se trate

da escolha ineludível entre dois males, quando deve-se escolher o menor. Ou

quando o mal menor (como um remédio, por exemplo) for indispensável para se

contrapor ao mal maior (a enfermidade). Entretanto, deve-se advertir que esta

escolha nem sempre é fácil, principalmente na vertigem dos acontecimentos

dramáticos. os médicos experientes bem sabem o quanto a experiência dos erros

anteriores os ajudam a evitar outros no futuro. E o quanto a consciência de

princípios diretores da conduta podem auxiliar a evitar os primeiros.

Pois, os remmédios têm esta curiosa contradição, são males que podem trazer o

bem. Pois, afinal, a diferença entre um remédio e um veneno é, freqüentemente,

simplesmente uma questão de dose ou de oportunidade.36

Uma característica universal da atividade médica, em todos os momentos

históricos, em todas as culturas é a identificação do médico como guardião da

vida<D>, como defensor dos interesses dos doentes, como promotor de bem-estar

do povo e, portanto, um agente de permanente compromisso com a melhoria da

qualidade da vida das pessoas e das comunidades. E isto não pode ser

interpretado mais ou menos ingenuamente como uma sobrevivência de seu status

sacerdotal original que os médicos possuíram por muitos séculos.

Proteger a vida não é privilégio sacerdotal, é dever de todas as pessoas e

compromisso ético com valor de princípio para todo médico que se preza; é uma

herança da melhor tradição médica de todos os tempos.

Morte. No mesmo plano se coloca a questão das relações entre a vida e a morte.

A morte é inevitável para quem vive. Todo ser que vive tem na morte seu destino.

A Medicina existe para adiar a morte, enquanto for possível garantir vida digna aos

seres humanos. Às pessoas.

Os conceitos de aborto, eutanásia e distanásia exigem a atenção do médico e

cobram dele uma decisão em muitos casos de sua clínica.

Aborto é a expulsão prematura do conteúdo do útero grávido de concepto ainda

inviável, isto é, antes da vigésima oitava semana da gestação. Quando a

interrupção da gestação se dá depois deste momento, quando o concepto pode

ser considerado viável, denomina-se parto prematuro.

Eutanásia (do grego, eu=bom + tanos=morte); morte boa, morte fácil; morte sem

dor ou sofrimento; consiste em abreviar a vida de alguém já sem esperanças de

sobreviver com o mínimo de qualidade de vida. O elemento conceitual mais

importante do conceito de eutanásia é que a autoria da decisão deve ser do

agente da eutanásia (que pode não ser médico) e assume a responsabilidade de

decidir quando alguém deve morrer ou, noutros termos, deixar de viver; a outra

qualidade essencial deste conceito é a incapacidade do enfermo decidir. Sá há

37

eutanásia se o paciente estiver incapaz; estando capaz, ou se trata de suicídio

assistido ou de homicídio.

Suicídio assistido. quando o paciente, desfrutando da integridade de sua

capacidade de decidir, decide morrer

Distanásia (do grego, dis=perturbação, dificuldade + tanos=morte); morte

perturbada, morte dificultada, quando se aplicam recursos da tecnologia médica

para ampliar a sobrevivência de alguém que não pode desfrutar a ménima

qualidade de vida e nem tem a possibilidade de vir a tê-lo. A distanásia se

configura quando são empregados recursos técnicos artificiais para manter a vida,

sem que haja ou possa haver qualquer esperança de sobrevivência digna.

No caso da eutanásia e do suicídio assistidas trata-se de duas situações,

qualitativamente diferentes, e configuram dois problemas éticos que exigem

soluções diferentes, apesar dos opositores radicais da eutanásia considerá-las

como idênticas, exigindo, ambas, as mesmas soluções.

Indivíduo, Pessoa e Sujeito

O conceito de ser humano é amplo e abrange duas noções específicas, muito

usadas por todos para referir componentes da sociedade humana e,

freqüentemente, são confundidas como se fossem uma única noção, apesar de

corresponder a coisas perfeitamente diferenciáveis: a noção de indivíduo e a idéia

de pessoa. Os conceitos de indivíduo e pessoa podem parecer idênticos, porque na

linguagem comum têm significados iguais e costumam ser usados como

sinônimos; mas são termos científicos diferentes e correspondem a dois sentidos

sócio-antropológicos e a duas realidades psicossociais distintas e definidas. O

conceito de pessoa é bastante mais amplo e contém o de indivíduo. A vida do

indivíduo começa bem antes da vida da pessoa, do início da edificação da

identidade pessoal e pode terminar bem depois (como no caso da justamente

denominada sobrevida dos descerebrados).

38

Esta distinção entre vida individual e vida pessoal parece ser um dos pontos mais

candentes da ética contemporânea. Os direitos civís, os direitos políticos e os

direitos humanos (antes chamados direitos individuais) se caracterizam como

direitos pessoais, direitos das pessoas, das personalidades.

Na linguagem científica, costuma-se denominar indivíduo a um ser diferenciado dos

demais por ter vida separada ou algumas características que o assinalem como

um ser singular; uma unidade funcional específica em relação às demais de sua

espécie. A unidade e a totalidade são as características essenciais da

individualidade. Qualquer coisa ou qualquer ser, de qualquer modalidade,

qualidade ou espécie pode ser encarado como um indivíduo. No indivíduo

coexistem e se confundem os atributos de singularidade e individualidade.

A individualidade de um ser se consubstancia em características que o

diferenciam dos outros da mesma espécie, fazendo-o, de certa forma, um ser

único em sua singularidade. Por isto, pode-se usar o termo individualidade com

sentido amplo para objetos indivisíveis (um planeta no sistema solar, uma galáxia

no universo, uma estrela na galáxia, uma laranja na laranjeira, uma formiga no

formigueiro).

Em ciência, a expressão indivíduo não tem conotação moral positiva ou negativa.

Na linguagem comum, sobretudo na imprensa de má-qualidade, a palavra indivíduo

tem conotação pejorativa, indicando depreciação. Mas, este sentido pejorativo

está inteiramente ausente do sentido com que esta palavra é usada como termo

científico nas ciências naturais e psicossociais. Já pessoa é uma noção que

transcende o conceito de indivíduo e existe para designar a entidade individual

humana completa, inclusive sua personalidade (o que inclui todos seus atributos

biológicos anatômicos e fisiológicos, psicológicos e sociais). Os traços

característicos da noção de pessoa são a personalidade e a dignidade.

A concepção de pessoa ultrapassa em todos os planos o conceito de indivíduo. Mas

esta diferença constitui, principalmente, uma diferença ética. Muito mais que uma 39

diferença antropológica ou, mais precisamente, uma diferença psicológica ou

psicossocial.

Não sendo possível que seja um diferença apenas verbal, convencionada, ideal e

sem qualquer implicação na realidade.

O termo indivíduo permite apontar qualquer ser singular em uma coletividade,

apenas um componente específico de uma coletividade, um elemento singular que

faz parte de um todo, seja a sociedade, a tribo, a manada, o cardume, a floresta, a

colônia ou qualquer outro conjunto. O indivíduo é o elemento mais simples de uma

coletividade, ainda que seja um conjunto inanimado; enquanto a pessoa é o

componente mais elementar da humanidade.

Pode se denominar pessoa ao indivíduo humano (o que se faz muito). Ainda que o

emprego da expressão indivíduo humano permita designar apenas suas

propriedades biológico-individuais, excluindo qualquer característica psicológica

ou sócio-cultural. Já a expressão pessoa humana, porque é absolutamente

pleonástica, deve ser evitada; pois, denuncia desconhecimento do significado dos

termos empregados; posto que, por mais tolerante que seja sua apreciação, não

há possibilidade de existir pessoa que não seja humana ou ser humano vivo que

não seja pessoa.<$FA maior amplitude que o termo pessoa possui é a de um

coletivo humano bem determinado e legalmente individualizado, a pessoa jurídica ou

personalidade jurídica, conceito metafórico que complementa o de pessoa física e

estes termos, sim, devem ser adjetivados.>

A Pessoa e o Sujeito

Se a pessoa pode ser definida como um indivíduo com personalidade e dignidade,

o conceito de sujeito pode ser definido como pessoa no exercício de sua vontade,

na direção de sua vida social e na construção de sua biografia. A voluntariedade

(não importando se é denominada vontade, volição, conação ou intencionalidade)

40

é a marca característica ou essencial de algo que poderia ser denominado de

sujeiticidade.

Um neologismo necessário que cabe muito bem nesta situação e em muitas

outras que devem ser cogitadas no estudo desta matéria.

Personalidade e Sujeiticidade

A noção de pessoa inclui uma referência à sua condição de ser social, um indivíduo

socializado, uma personalidade detentora de qualidade que, como se viu

anteriormente, a identificam, personalizam e dignificam. A dignidade da pessoa

tem sido um atributo sempre reconhecido nos homens de todos os tempos

civilizados e é um dado essencial não só da civilização, mas do humanismo. A

rigor, a personalidade constitui-se das características que configuram uma pessoa;

das qualidades que caracterizam uma pessoa e se diferencia da individualidade.

A noção de personalidade ultrapassa em muito o conceito de individualidade da

mesma maneira que o conceito de pessoa é muito mais amplo que o de indivíduo.

Analogamente, pode-se estabelecer a mesma relação com os conceitos de

personalidade e sujeiticidade (como se está denominando aqui a qualidade a

característica ou essencial do sujeito).

Conceito de Personalidade

A despeito de tudo, a noção de personalidade não tem conceituação pacífica e

universalmente que seja aceita por todos os estudiosos desta matéria.

Principalmente porque esta noção é muito mais antropológica e política do que

psicológica. E por isto, muito sujeita a contaminação ideológica e às influências da

visão do mundo que quem a emprega. O que não deve causar admiração a

ninguém. Poucos conceitos são tão submetidos as pressões ideológicas como

este. Nem tão influenciados pela visão de mundo.

41

Para uns, a personalidade encerra tudo o que existe na pessoa (ainda que não

sejam atributos caracteristicamente pessoais). Por isto, há quem lhe atribua a

soma de todos os traços morfológicos, fisiológicos e psicossociais d de um ser

humano. Empregam o conceito de personalidade como equivalente ao de

individualidade humana.

Outros, que confundem personalidade com sujeiticidade, pretendem-na como a

soma de todas as características psicológicas humanas e as condutas estáveis de

interação social.

Para alguns, a personalidade constitui-se da soma dos atributos psicológicos

estáveis.

Para muitos, a personalidade constitui-se das características psicológicas

notadamente humanas: a afetividade superior e a vontade.

E, por fim, há quem conceitue a personalidade como síntese dos traços

psicológicos caracteristicamente humanos e das características estáveis da forma

de uma pessoa se relacionar com as demais, com a sociedade e consigo mesma.

Englobando tudo o que é tipicamente humano (ainda que desenvolvida a partir de

características animais herdadas ao longo da trajetória evolutiva). Nesta última

perspectiva, mais consentânea com a opinião do autor deste trabalho, a

personalidade não se reduz mera soma de características, mas uma síntese de

atributos psicossociais situados na fronteira entre o psiquismo e a cultura. O

intelecto, a imaginação criadora, a atenção voluntária, a memória racional e

intencional, a afetividade superior representada pelos sentimentos, a vontade e a

capacidade de trabalho, além da possibilidade de comunicação e sociabilidade

seriam os elementos mais significativos da personalidade. Não havendo a menor

importância se ela é estudada de maneira analítica (pelos seus traços) ou sintética

(pelos tipos).

42

A noção de sujeito(caracterizada pela vontade e pela atividade voluntária) está

encerrada no conceito de pessoa, a concepção de pessoa está contida na noção de

indivíduo. Toda pessoa é um indivíduo, ainda que nem todo indivíduo seja uma

pessoa.

Além disto, a concepção de pessoa está indissoluvelmente associada à de

Homem, à concepção de ser humano (antropologia).

Todas as concepções de pessoa que podem ser identificadas em nossa cultura, e

mais as noções de de personalidade e de sujeito constituem o momento de

convergência das ciências humanas (psicológicas e antropológicas), das ciências

naturais (biologia e fisiologia) e das ciências da sociedade (sociologia, história).

Não é possível situar restritamente o eixo principal destas noções (ou de qualquer

uma delas) em quaisquer uma destas áreas particulares do conhecimento

científico. Não é possível, por exemplo, afirmar que a personalidade é uma

instância individual socialmente condicionada, ou se é uma instância social

individualmente limitada.

Dignidade Humana

A noção de dignidade humana, atributo moral associado a todo ser humano, é

importantíssima conquista ético-moral da civilização e elemento fundamental do

conceito de pessoa e sua diferenciação de indivíduo. Ao contrário da

honorabilidade, atributo pessoal que depende da conduta de quem a ostenta, a

dignidade é um valor atribuído pelos demais. Naquilo que é essencialmente ético,

considera-se a noção de pessoa como carregada pela idéia de dignidade humana

individual, mesmo quando em confronto com os interesses coletivos, o que

fundamenta a necessidade social que leva à codificação dos direitos civís e dos

direitos humanos. Enquanto o indivíduo é um componente eticamente neutro da

coletividade, a pessoa é o elemento da humanidade, premissa e resultado da

perspectiva ética.

43

Nestes termos, considera-se que a dignidade humana é apanágio das pessoas,

independente de sua origem, de sua conduta ou de seu destino. Todo ser humano

é merecedor de tratamento digno. Não importa se é rico ou pobre, não importa se

é um criminoso ou um santo, um cidadão prestante ou um criminoso. Ao menos

como princípio, todos os seres humanos são detentores de dignidade. Por isto,

existem as noções de direitos humanos e de garantias sociais.

No plano filosófico, o compromisso com a dignidade do outro é uma dimensão do

humanismo, qualquer que for o alcance que se atribua a esta expressão; no

âmbito da psicologia, deve resultar do auto-respeito, porque aqui, como em

situações análogas, a agressão a um, ameaça a todos, e os sentimentos que se

cultiva por si mesmo são dados importantes daqueles que se dedica aos demais.

Este compromisso faz da Medicina uma profissão especial por causa de seu

objeto.

O ser humano atual é o resultado de um longo processo evolutivo cujo início está

perdido no tempo, e cujas etapas intermediárias e mecanismos internos ainda não

estão muito bem estabelecidos. Nesse processo do desenvolvimento, tudo indica

que o surgimento da condição humana foi resultante da evolução das dimensões

biológica e psicossocial que, aliás, podem ser consideradas como processos

integrados de uma única totalidade que é completamente inviável sem qualquer

um deles. A dimensão biológico-individual e a dimensão psicossociocultural são

inseparáveis em cada ser humano concreto e tal divisão da totalidade humana só

pode resultar de um exercício artificial de análise.

O reconhecimento da dignidade humana é o ponto mais alto da evolução ética da

humanidade e foi sempre um pilar ético da Medicina. O processo de humanização,

ao conduzir o homem à consciência de si, da humanidade e da natureza,

possibilita-lhe entender suas relações com os demais, e indica que o ser humano

deve ser considerado muito mais, que um mecanismo natural de elevada

complexidade e excepcional rendimento, garante aos seres humanos a condição

44

de absoluta originalidade e dignidade face aos demais seres vivos. No início este

respeito foi obtido configurando-se a vida humana como atributo especial das

divindades.

Nos estudos científicos de qualquer ciência, ao menos em tese, os seres humanos

podem ser considerados como indivíduos ou como pessoas na dependência da

situação específica dessa escolha. No entanto, os fatores individuais e pessoais

hão de ser considerados, sempre, como estratos que traduzem níveis diferentes

de organização existencial e evolutiva, nem sempre distinguíveis na unidade do

humano No entanto, pode-se notar entre estes dois conceitos um elemento

diferencial claramente qualitativo.

A dignidade de seu objeto e a particularidade de sua situação de enfermidade (o

homem enfermo e com sua sobrevivência ameaçada, o ser humano sofredor)

emprestam ao exercício da Medicina e das atividades sanitárias correlatas ou

análogas, um caráter absolutamente único em sua singularidade. Muito mais ética

que técnica (ainda que, por causa disto, não deva ser menos técnica do que a

realidade lhe possibilita). Por isto, enquanto procedimento social e relação inter-

pessoal, a Medicina é uma atividade social que se distingue muito mais por sua

ética do que por sua técnica (embora esta não possa nem deva ser subestimada).

Considerando-se as três dimensões da Medicina: a ética, a técnica e a mercantil,

esta deve ser sua seqüência de prioridades.

O significado social de uma profissão sofre muita influência do valor que se atribui

ao seu objeto. A dignidade de seu objeto e sua posição singularíssima na relação

com seus clientes fazem com que as profissões incumbidas da saúde devam ser

consideradas como sendo completamente diferentes das outras atividades

profissionais. Mais que os agentes de quaisquer outras profissões, os profissionais

de saúde (e, em geral, os médicos, muito mais que os outros) lidam com três

elementos essenciais para as pessoas: sua vida, sua saúde e sua dignidade.

45

A dignidade humana não existe no éter, ela se materializa na identidade e na

personalidade de alguém real, em uma pessoa concreta. Qualquer pessoa e todas

as pessoas. A dignidade humana não deve ser considerada como apenas um

atributo genérico de todos os seres humanos, mas deve ser concretizada,

realmente, em cada ser humano individualmente como caracteriza e atributo

essencial seu.

Por isto, considera-se o altruísmo como um atributo essencial de todas as

profissões (ver o capítulo sobre os fundamentos sócio-antropológicos), mas é

particularmente importante na Medicina. Quem não gosta de gente, não deve ser

médico. Porque, a filantropia (gostar de gente, no sentido original da expressão) é

a primeira qualidade que se exige dele.

E o egoísmo (preocupação primária e particular com os próprios interesses) na

atividade do profissional de saúde, mais do que em qualquer outro, talvez seja o

fator que mais o desqualifique. O descaso com os pacientes, a falta de interesse

humano e o desinteresse tem sido impropriamente confundido com neutralidade

profissional, com não envolvimento, quando não é. O envolvimento pessoal do

profissional com o cliente (com sentido reprovável) se dá quando ele perde a

objetividade em seu desempenho técnico ou coloca outros interesses (ainda que

seja o seu próprio) acima dos interesses do paciente.

Enfermidade e Enfermo

O conhecimento das enfermidades e as relações recíprocas que as patologias

mantêm com as pessoas afetadas por elas, é objetivo cognitivo basilar da

Medicina e das ciências médicas. A Medicina existe como atividade social porque

existem pessoas que sofrem com as enfermidades, existe como atividade

científica porque estas enfermidades podem ser estudadas, conhecidas e

reconhecidas; a Medicina existe como atividade humana porque os enfermos

podem ser curados, cuidados e consolados.

46

Não se deve tentar separar os conceitos de doença e de doente, senão como um

exercício intelectual, porque são conceitos que se referem a duas coisas

completamente inseparáveis na realidade.

A despeito disto, é bastante comum que se encontre quem, pretendendo estudar

ou exercer Medicina, preocupe-se exclusivamente (ou quase exclusivamente) com

um destes aspectos inter-complementares: a doença (os doencistas) ou o doente

(os doentistas). Sendo que cada uma destas vertentes reducionistas incorre em

erro, dificulta o desenvolvimento teórico e prático da Medicina, enquanto prejudica

os enfermos.

Enfermidade e enfermo são as duas dimensões essenciais do objeto da Medicina

e constituem duas categorias completamente inter-complementares (chamadas

dialéticas, por que não pode existir uma, sem a outra).

Recorde-se que não existe enfermo sem enfermidade nem enfermidade sem

enfermo. Toda tentativa de pretender separar estes dois fenômenos reais resulta

em uma distorção de seu entendimento e uma perturbação de seu conhecimento.

Enfermidade é um conceito bastante amplo com o qual se designa

genericamente qualquer moléstia, patologia, doença ou condição de incapacidade

mórbida, invalidez ou sofrimento; neste sentido assim amplo. A enfermidade pode

atingir indivíduos vivos.

O termo enfermidade pode muito bem ser substituído pela expressão patologiaem

todas sua situações de emprego, porque enfermidade e patologia se referem a

uma condição individual caracterizada por um dano. O conceito de enfermidade

contém, pois, um juízo negativo de valor que se aplica a um acontecimento vital ou

existencial danoso. As enfermidades podem se apresentar como uma entidade

específica, algo novo na vida da pessoa, uma estrutura patológica definida (uma

manifestação qualitativamente nova), ou como uma variação danosa da

funcionalidade orgânica os psicológica (transtorno quantitativo).

47

O dano constitui o elemento basilar de todos os conceitos que se referem ao

objeto da medicina em todas as partes do mundo.

Na linguagem vulgar, ao menos no idioma português tal como é falado no Brasil,

se empregam também as expressões moléstia e doença com este sentido genérico e

inespecífico. Mas, isto que não é incorreto na linguagem comum, não deve ser

praticado na terminologia científica.

Doença é uma enfermidade ou uma condição patológica identificável e

reconhecível por suas manifestações clínicas, por sua etiopatogenia e por seu

prognóstico que é conhecida ou sentida pelo doente. A consciência da doença é

sua característica mais importante e que lhe possibilita assumir o papel de doente.

Moléstia é mal-estar, o incômodo, a perturbação subjetiva, o sofrimento

determinados por uma condição patológica. Também podem ser identificadas

patologias por dano negativo, caracterizadas por faltar uma estrutura ou parte

dela, ou haver prejuízo funcional identificável em relação ao modelo humano;

estas condições patológicas podem ser congênitas (deficiências) ou adquiridas

(mutilações, desfigurações).

Enfermo é a designação que se atribui ao ser que padece uma enfermidade,

uma moléstia qualquer; quem está afetado por alguma condição clínica

correspondente a uma patologia diagnosticável, correspondente a uma das três

classes de patologia (prejuízo funcional ou estrutural, doença ou sofrimento

inadequado). Enfermo é o indivíduo no qual se manifesta uma perturbação

perceptível de seu sistema vital, a pessoa que padece uma enfermidade de

qualquer natureza.

Noções como doença, enfermidade, moléstia, condição patológica, invalidez,

transtorno, distúrbio, desordem não se definem por si, são construtos, conceitos

valorativos caracterizados pelo dano que ocasionam às pessoas (ou outros

48

organismos individuais) afetadas. Dano este que pode ser estrutural ou funcional,

com ou sem sofrimento, com maior ou menor prejuízo pessoal ou social.

A pessoa enferma, no entanto, não pode nem deve ser concebida como um ser

reduzido a portador de enfermidade; ou um indivíduo afetado por um agente

patogênico e sujeito à sua ação prejudicial; mas, o enfermo deve ser entendido

sempre como um ser humano que sofre uma doença, uma pessoa prejudicada por

uma patologia, alguém que padece uma moléstia que, por isto, merece ajuda e

tem direito a ser cuidado com competência e desvelo pelos demais membros da

sociedade, principalmente pelo pessoal da saúde e pelos agentes Estado.

Durante muito tempo, discutiu-se se o objeto da Medicina seria a doença ou o

doente. Esta discussão é inútil, pois, doente e doença são fenômenos

absolutamente interdependentes e inter-complementares, inexistindo um sem o

outro; a enfermidade é um estado, uma qualidade do enfermo. Não pode haver

doente sem doença, nem doença sem doente. Estes dois fenômenos e suas

relações constituem o cerne do objeto da Medicina. Não obstante, existe quem

defenda (e pratique) os reducionismos extremados: os doencistas que se

preocupam e se ocupam apenas com as doenças e os doentistas, preocupados e

ocupados só com os doentes.

Da definição do objeto da Medicina, ressaltam quatro aspectos ontológicos que

são complementares e importantes:

= a) a vastidão e complexidade do objeto da Medicina abrange as pessoas

enfermas, os seres humanos e suas enfermidades (o que envolve um conjunto de

ciências e um sistema de técnicas de intervenção na realidade); e

= b) que o estudo da ontologia médica envolve, preliminarmente, a circunscrição

de diversos conceitos, referentes a diversos fenômenos que se entrelaçam em seu

objeto (tais como organismo, ser humano, pessoa, patologia, saúde, enfermidade

e enfermo, ambiente e sociedade, prevenção, diagnóstico, tratamento e

reabilitação);49

= c) que o objeto da Medicina integra simultaneamente a pessoa e a sociedade, o

organismo e o meio, a patologia e a saúde, o doente e a doença que constituem o

núcleo do objeto da Medicina;

= d) toda doença humana é uma doença pessoal e um fenômeno ecológico, além

de patológico (e a principal característica da patologia é o dano que ocasiona).

Em um plano mais amplo, com relação estes dois aspectos da identidade do

objeto da Medicina, o doente e a doença, existem mais duas tendências extremas:

a tecnicista, voltada para a doença, e a humanista, dirigida para doente.

Ser Humano e Humanismo

O principal objeto da Medicina é o ser humano enfermo, o ser humano que sofre

uma enfermidade ou padece suas conseqüências objetivas e subjetivas. A pessoa

enferma constitui o objeto essencial da Medicina que, absolutamente, não existiria

sem ele. Embora, como já se mencionou anteriormente, os conceitos de

enfermidade e enfermo se integrem numa totalidade apenas separável por um

processo analítico, a Medicina se originou da necessidade de minorar ou curar a

dor e as demais vissicitudes experimentadas pelo ser humano vitimado por uma

condição de enfermidade que lhe causa algum dano ou se constitui em uma

ameaça para sua integridade, sua felicidade ou sua dignidade. A pessoa enferma

ou ameaçada de morte foi sempre o motivo e o objetivo da ação social e técnica

dos médicos em todas os lugares, em todos os momentos da história de todas as

culturas.

A dor do enfermo parece ter sido a condição mais importante, dentre as que

determinaram o aparecimento do médico e só depois, da medicina e do interesse

pela enfermidade.

O ser humano, concebido como pessoa, não pode ser reduzido ao organismo ou

a uma interação mecânica entre o organismo (entendido como indivíduo passivo e

passivamente plasmado por estímulos do meio físico ou do meio social.

50

A pessoa, entendida como personalidade e credor de dignidade, sujeito de seu

próprio destino e agente copartícipe do processo histórico-social, além de um

agente do desenvolvimento da cultura material e espiritual, é um ser

biopsicossocial qualitativamente diferenciado das outras espécies vivas, sobretudo

por causa das relações especiais que mantém com a meio físico e com a

sociedade (o meio social).

O ser humano enfermo ou ameaçado de enfermidade é dado essencial do objeto

da Medicina e só esquematicamente pode ser tido como um organismo humano

ao qual se acrescentam elementos de sua existência social e características

psicológicas. Neste esquema, o conceito de organismo deve estar absolutamente

vinculado ao de ambiente, assim como o conceito de pessoa é interdependente do

conceito de sociedade. A pessoa é moldada pela interação entre seus aspectos

biológico-individuais e sociais.

No entanto, o conceito de organismo está muito identificado com a noção de

sistema vivo e, por isto, com a dimensão biológica da existência humana, estando

muito longe de representar o conceito bastante amplo de ser humano, enquanto

ser de natureza bio-psico-social, construtor de cultura, sujeito do processo

histórico-social e de seu destino pessoal; um ser considerado único em dignidade

e em personalidade e essencialmente caracterizado, exatamente, por esta

singularidade que lhe dá sua personalidade e sua dignidade humana. Estas são

as características da pessoa.

O conceito de organismo tem sido considerado pelos positivistas mais ou menos

estritamente como mecanismo biológico, máquina animada, abrange apenas a

dimensão biológica do homem, seus aspectos biológico-individuais, no máximo,

integrados no meio físico, sem qualquer referência à sua integração no meio social

ou aos seus mecanismos psíquicos.

O conceito ampliado de organismo, descomprometido dos preconceitos

positivistas, pode (e talvez deva) conter o de psiquismo. E muitos o utilizam assim,

51

entendendo o psiquismo como parte integrante do organismo, principalmente

porque recusam separar o corpo do psiquismo como fazem os dualistas, que

primeiro separam o corpo da alma e, depois, apartam a mente do corpo, como se

fossem duas realidades essencialmente diferentes.

Por isto, ao menos em sentido bastante amplo e sob influência da doutrina

filosófica monista, a referência ao organismo humano pode (e talvez deva) incluir a

noção de psiquismo e, portanto, abranger as noções de ambiente físico e meio

social como contextos obrigatórios dos seres humanos.

O objeto da Medicina deve ser entendido como uma díade com duas faces

completamente inter-complementares: a pessoa afetada (ou em risco de ser

afetada) por uma patologia e a patologia que afeta (ou é potencialmente capaz de

afetar) às pessoas, comprometendo seu bem-estar, seu desempenho e sua

realização pessoal e social.

A condição vital especial dos seres humanos é muito difícil de ser

precisada,<$FDificuldade que se torna insuperável caso se adote um modelo

animal para referir o ser humano, como fazem os positivistas naturalistas que

infestam a psiquiatria contemporânea.> mas pode-se dizer que se caracteriza por

sua consciência, seu intelecto, sua capacidade verbal, sua aptidão para amar e

sua possibilidade de transformar deliberadamente o mundo; condições estas que

são, simultaneamente premissa e resultado de sua história e de suas relações

sociais. Aparentemente o corpo humano não se diferencia por algum elemento

qualitativo, ao contrário de sua condição psicológica e social.

Estas características de ser social e histórico, de pessoa e de sujeito, além de um

organismo vivo, fazem do homem um ser especial, simultaneamente agente,

produto e habitante de três mundos: o mundo da sociedade, o mundo biológico e o

mundo psicológico (nascido da confluência e da contradição dos dois anteriores).

Síntese desta tríplice identidade, o ser humano se caracteriza por sua inteligência,

por sua capacidade de comunicação, por sua capacidade de transformar o mundo

52

deliberadamente e por sua capacidade de se relacionar através de sentimentos;

mas, se caracteriza, sobretudo por sua dignidade e senso do futuro.

O conceito de dignidade humana, pelo alcance de seu significado que

assumiu em nossa civilização, tornou-se de em uma categoria ética em um

princípio civilizatório e em uma diretriz para as condutas de relação entre os seres

humanos nas sociedades (quaisquer que sejam).

A dignidade humana é uma categoria ética que pode ser edificada a partir de dois

fundamentos diferentes. Um, primeiro, o fundamento mágico-religioso, pretende

que a dignidade humana seja derivada de uma dotação divina, um presente ou

uma ordem de uma divindade. Um segundo, o fundamento científico-natural,

pretende que a ética seja uma construção histórico-social e política, e sua

evolução, um fator de desenvolvimento pessoal e uma necessidade da vida em

sociedade. Neste segundo sentido, a dignidade humana deve ser entendida como

uma decorrência natural da liberdade e da igualdade que diferenciam

essencialmente os seres humanos dos outros animais e caracteriza a essência do

ideal humano que se consubstancia no humanismo.

A atitude e as condutas humanistas são um dever essencial dos médicos, mais do

que todos os outros agentes sociais.

Humanismo é a doutrina política e filosófica que se revela por um conjunto de

valores e comportamentos que revelam o respeito devido aos seres humanos em

face de sua dignidade e dos direitos que sua condição humana o faz detentor.

Para os humanistas, os seres humanos são o que há de mais importante no

universo; para eles, o ser humano é a referência obrigatória mais importante para

tudo o que existe. Os direitos humanos, inerentes à condição humana que são

construídos a partir da convicção de que os seres humanos são iguais em direitos

e dignidade. Só. No mais, costumam ser desiguais. Ainda que se possa prever (ou

sonhar) que esta construção cultural continue a se desenvolver dirigida pelo

humanismo e pelo humanitarismo.

53

O humanismo é uma atitude essencialmente ética e, por isto, antagônico a todo

fanatismo, intolerância, exploração, alienação e reificação (de res, rei=coisa,

objeto). Embora as religiões tenham uma propensão natural para o humanismo,

ao menos como parte de seus objetivos sociais, o humanismo não é

obrigatoriamente uma prática religiosa, mas necessariamente ética. A despeito do

que preguem, muitas crenças e práticas religiosas só podem ser reconhecidas

como desumanas e desumanizadoras.

Nas biociências contemporâneas, assiste-se ao aparecimento de uma nova

tendência anti-humanista que considera a conduta animal como modelo conceitual

para referir os seres humanos. De tal maneira que, qualquer conceito que não seja

atribuível aos ratos de laboratório não pode ser usado nos seres humanos. Por

esta ideologia, ignoram-se fenômenos essencialmente humanos como

sentimentos, psicomotricidade (motricidade voluntária) e se confunde cognição e

intelecto, cinesia e atividade (com o sentido de praxia, conjunto de atos

voluntários), afetividade e sentimentos.

Tudo que é humano me diz respeito, dizia Terêncio, filósofo romano tido como iniciador

da tendência humanista na Filosofia.

O humanismo é uma característica essencial de qualquer processo que mereça a

designação de civilizador. Porque se deve entender a civilização como um tipo de

sistema social na qual cada pessoa seja potencialmente amiga natural dos demais

e não ameaça potencial, um inimigo predador. A civilização, neste sentido, de

sistema social construído para se opor à selvageria, na qual o homem é o lobo do

homem. O homem urbanizado e, por isto, civilizado se opõe ao estado de

selvageria tribal. O conteúdo de humanismo parece ser o indicador mais

importante do grau de civilização de um povo.

54

Organismo

O organismo vivente pode ser definido estritamente como um sistema biológico,

aberto, auto-organizador e mais ou menos organizado; auto reprodutivo e auto

reparador; que pode ser integrado em uma única célula ou em um sistema celular

de variada complexidade; mas, em qualquer caso, capaz de manter sua existência

individual como um sistema, unitário e individualizado que necessita estar

completamente integrado em seu meio do qual retira o que necessita para atender

às suas necessidades.

Em geral, os organismos vivos (objetos de estudo da biologia) podem ser divididos

em duas grandes categorias:

organismos vegetais (objeto de estudo da botânica) e

organismos animais (objetos de estudo da zoologia).

embora o termo possa ser usado para qualquer tipo de organização, mesmo

inanimada (quando trai a influência chamada naturalista nas ciências sociais).

Neste texto, a noção de organismo se refere ao organismo humano e engloba as

atividades comportamentais subjetivas (o psiquismo).

Embora a noção de organismo seja restrito à dimensão biológica, o ser humano

não pode ser reduzido a um organismo, a uma máquina viva. Por isto, é a relação

entre o ser humano (e não só seu organismo) com a patologia que constitui o

objeto da Medicina, embora o termo organismo humano possa ter sua significação

ampliada para conter o psiquismo e, com isto, pretender equivaler a ser humano.

O Todo e as Partes

As questões doutrinárias que dão ênfase à totalidade e à integração no estudo dos

sistemas estão em oposição às que situam a ênfase nas partes e na

desarticulação da totalidade sistêmica (inclusive pessoal) têm desempenhado a

55

maior importância na discussão da ontologia médica naquilo que respeita a noção

de organismo.

Os médicos da Antigüidade, como Hipócrates que parece ter sido sua maior

expressão, faziam ênfase na totalidade. Defendiam que a saúde consistia na

integração orgânica e na interação harmônica do organismo com o meio (físico e

social). Consideravam o corpo um microcosmo integrado em um macrocosmo. A

enfermidade seria a ruptura desta unidade, a perturbação desta integração.

Consideravam o mundo (e tudo que existia nele) composto por diferentes

combinações de quatro elementos básicos, a saber: terra, fogo, ar e água; e

explicavam o organismo como sendo formado por quatro humores (daí, a

designação de teoria humoral ou humorista) correspondentes a este elementos,

que seriam os seguintes: bile negra, bile amarela, sangue e fleuma. Esta teoria

persistiu até o fim da Idade Média.

Estava completamente errada, mas o princípio da ênfase na totalidade e da

integração dor organismo no universo, só foi contestado pelo surgimento do

dualismo cartesiano, em pleno Renascimento.

A separação do homem e a comunidade, do corpo e da mente, e de cada

estrutura corporal ou psicológica marcou a teoria médica das Idades Moderna e

Contemporânea, conduzindo a uma concepção mecanicista do organismo como

uma máquina. O que é falso.

Ordem e Desordem no Organismo

A noção de funções orgânicas que fundamenta em grande parte a existência da

fisiologia, impõe os conceitos de ordem funcional e desordem ou perturbação

deste estado fisiológico. Neste caso, a patologia seria reconhecida como uma

desorganização estrutural ou funcional do organismo. Esta concepção leva a um

entendimento da doença como expressão da desordem e da saúde como ordem.

56

Existe uma posição sectária que identifica esta doutrina médica com a sociologia

da ordem ou do conflito, conduzindo a um raciocínio bastante curioso, além de

risível.

Organismo e Ambiente

O organismo tem sido concebido como uma estrutura viva complexa em, interação

com o ambiente, com funções diferenciadas e capaz de reproduzir; ou, como um

quimiossistema semi-aberto e auto-controlado que tira do meio-ambiente a

matéria e a energia que necessita para suas reações, sintetizam os demais

elementos que precisam (especialmente as proteínas, reproduzem-se, mutam e

evoluem é um conceito muito difundido. <$FBrito Cunha, A.A., O Conceito de

Organismo, in Bunge, M., Epistemologia, Ed. TAQueiroz/EDUSP, S.Paulo, 1987,

p. 94.> É impossível pensar a Medicina sem ter uma clara noção de organismo e

de organismo humano, em particular.

Pode-se afirmar que é impossível pensar em organismo sem considerar sua

completa dependência do meio de onde retira matéria (e, freqüentemente,

energia) para assegurar a satisfação de suas necessidades.

Em praticamente todas as enfermidades bem conhecidas, as condições do

organismo e as condições ambientais, desempenham papel crucial em seu

aparecimento e em sua evolução. Não obstante o conhecimento que se tem disto,

nem sempre é possível identificar a importância relativa que cada um destes pólos

do processo patológico desempenha no seu resultado final: a emergência das

manifestações clínicas e a evolução da entidade mórbida.

As questões relacionadas com a importância relativa de cada um destes pólos na

etiopatogenia, na clínica e na evolução das enfermidades exigem discussão atenta

e exercem influência muito além de seus limites óbvios que se expressam, por

exemplo, nas questões sobre o significado da agressão e a vulnerabilidade do

terreno onde ela se assestasse.

57

Grande parte da explicação de uma patologia consiste na verificação de que seria

a participação relativa nela dos fatores individuais, do organismo enfermo, e qual a

influência dos fatores ambientais extra-organismo. Esta relação entre os seres

vivos e seu ambiente natural situa o núcleo da perspectiva ecológica do

conhecimento.

Em patologia geral, o organismo se denomina terreno, como em o terreno da

enfermidade (e não apenas os elementos constitucionais do organismo).

Quanto a esta tendência existem três grandes tendências da patologia (inclusive

na psicopatologia). Duas radicais, os internistas (que sustentam a exclusividade

ou predominância de fatores internos); e os externistas (que pretendem a

exclusividade ou predominância dos fatores externos). A terceira, uma posição

dialética ou eclética., sustenta a síntese dos fatores internos e externos no

funcionamento do organismo).

Adaptação

A não ser de um ponto de vista mecanicista, os organismos vivos não podem, nem

devem ser confundidos com as máquina ou outros artefatos mecânicos. Além de

sua característica dinâmica, os organismos vivos possuem as qualidades de

procriação e de adaptação (um instrumento de auto-regulação).

A adaptação consiste na modificação auto-regulada da estrutura física, dos

padrões funcionais e comportamentais de um organismo individual ou social para

se ajustar às exigências do meio. A adaptação é um processo natural que decorre

da adaptabilidade orgânica. deve ser diferenciada da sensibilização, mudança

das condições estruturais ou funcionais provocada por estímulos danosos.

A adaptabilidade manifesta o processo de integração dinâmica do organismo para

atender às exigência de seu meio interno ou externo.

58

Terreno e Agressão

Terreno e agressão são duas categorias essenciais para o entendimento do

conceito de enfermidade. A influência relativa do terreno (o organismo) ou da

agressão (os agentes patogênicos do meio) no desenvolvimento das

enfermidades e no destino dos enfermos, é um dos aspectos mais importantes no

estudo ontológico da Medicina. A avaliação ponderada destes dois aspectos na

estrutura da enfermidade aponta para duas possibilidades de enfermar

conseqüentes a estes dois elementos que podem ser considerados como

essenciais de toda enfermidade.

Aqui se denomina terreno à estrutura viva (dimensão biológica ou psicológica do

organismo) sobre a qual se desenvolve uma enfermidade (como resultado de uma

agressão, uma degeneração ou resulte de uma desregulação).

Com relação à influência relativa destes dois elementos na gênese e na evolução

das enfermidades, pode haver três posições clássicas básicas: á primeira

assentada na crença da participação dominante do terreno, a organísmica

(vitalista, constitucionalista, hereditária); e a segunda, que presume o predomínio

dos fatores agressivos do meio (ecológica, ambientalista).

Quando se formula uma teoria sobre a enfermidade, pode-se situar a ênfase no

terreno (no organismo, na predisposição ou em seus elementos particulares de

vulnerabilidade geral ou específica), ou se pode atribuir maior responsabilidade à

agressão. Além de, naturalmente, haver a possibilidade de se considerar os dois

pontos-de-vista opostos como complementares (e não auto-excludentes), o que

parece bem mais razoável.

Terreno é a base organísmica e constitucional sobre a qual se desenvolvem as

enfermidades;

agressão é a ação dos fatores externos ou internos potencialmente danosos

para o organismo.

59

A influência relativa de cada um destes componentes do processo de saúde

doença é muito variável em cada caso e em cada momento de cada um deles.

Existem enfermidades que são devidas quase que exclusivamente a um destes

dois componentes. Não obstante, ambos devem ter seu papel quando se promove

uma avaliação cuidadosa de um acontecimento patológico.

Esta discussão motiva muitos e antigos conflitos teóricos e, na história da

Medicina, parece sempre haver quem se disponha a defender um dos extremos

desta antinomia. No entanto, esta querela parece ser uma das muitas que, a

despeito do muito barulho que provoca, na verdade, é completamente ociosa.

Estes pontos de vista são complementares e, na maior parte dos casos concretos,

coexistem desempenhando cada um a sua parte no processo patológico. Terreno

e agressão são conceitos explicativos das enfermidades e cada um deles, em

cada caso desempenha papel relativamente diferente. Contudo, os organicistas

tendem a supervalorizar (ou exclusivizar) o terreno. Enquanto os psicologicistas e

sociologicistas fazem o contrário.

Prevenção

A rigor, até há época bastante recente da história da Medicina, a expressão

prevenção se referia apenas à profilaxia do aparecimento de uma enfermidade,

quando alguma providência técnica conseguiu impedir a incidência de uma

enfermidade. Mais tarde, já neste século, o termo evoluiu para o significado de

Medicina Preventiva, com sentido bem mais amplo que o inicial, referindo-se à

prevenção de qualquer etapa do processo mórbido: a ocorrência, a evolução, e os

impedimento ocasionados ao enfermo. A noção de Medicina Preventiva se

fundamenta na confiança na previsão científica e põe ênfase na ação

antecipadora das medidas técnicas frente à ameaça de agressão, do

desenvolvimento da agressão consumada ou suas conseqüências danosas para

as pessoas afetadas por alguma enfermidade.

60

Hoje, prevenção deixou de ser apenas profilaxia e passou a significar atitude

permanente de evitar o aparecimento, a evolução ou a incapacidade. E, com isto,

deixou de ter sentido a antiga antinomia prevenção x tratamento, higiene ou clínica

que tanto prejudicou a Medicina.

A Medicina Preventiva, que se iniciou simplesmente na profilaxia do aparecimento

das enfermidades (chamada, hoje, prevenção primária), finda por ser uma prática

integral que se concretiza em toda um complexo de ações sanitárias que objetiva:

= prevenir o surgimento (prevenção primária, prevenção da ocorrência ou

profilaxia das patologias),

= prevenção da evolução (prevenção secundária, diagnóstico e tratamento)

de uma patologia ou

= prevenção da invalidez (prevenção terciária ou reabilitação da invalidez)

decorrente de uma condição patológica.

O que se denomina atitude preventiva constitui o núcleo de toda atividade

sanitária moderna e deve ser uma marca essencial de todas as agências de saúde

a serviço da população. Isto significa que o eixo principal da atividade médica está

se deslocando do tratamento para a prevenção, da ação individual para as

medidas coletivas.

Recentemente, inclui-se no conceito de prevenção primária a noção de promoção

da saúde, de incremento das condições de vida e da satisfação das necessidades

biológicas e sociais, de melhoria do bem-estar. Nesta perspectiva, promover a

saúde seria resultante de qualquer procedimento ou intervenção individual ou

social que ampliasse os níveis de satisfação das necessidades, os níevis de bem-

estar.

A Medicina Preventiva é a sucessora legítima da Higiene e Saúde Pública.

61

O primeiro conceito de Medicina Preventiva, se define como prática de intervenção

individual e social que se destina a aplicar técnicas destinadas a concretizar

profilaxia, prevenção primária a prevenção da ocorrência; a prevenção secundária

ou prevenção da evolução das enfermidades; e a prevenção terciária ou

prevenção da incapacidade e a invalidez. Mais recentemente, a noção e as

práticas de promoção da saúde ou incremento do bem-estar individual e social

foram incluídos na prevenção primária.

O capítulo da Medicina que se destina especificamente a prevenir a evolução de

uma enfermidade é a terapêutica (ou procedimentos de tratamento) que depende

basicamente do diagnóstico; pois um, erro diagnóstico induz um erro terapêutico.

Sem diagnósticos bem feitos não existe ou pode existir terapêutica eficaz.

Tratamento ou Terapêutica

A terapêutica é o objetivo mais importante da Medicina; nenhum dos seus outros

propósitos lhe é superior; nenhum aspecto da ontologia médica existe senão como

função da terapêutica. A terapêutica é o fecho da teoria e da prática da Medicina

que, desde tempos imemoriais, é denominada arte de curar ou atividade que cura

doentes por meios especiais. É o procedimento médico que objetiva curar uma pessoa

que apresente um sintoma ou uma síndrome, ou que esteja afetada por uma

entidade patológica mais ou menos complexa que lhe ocasione desconforto,

sofrimento, perturbe seu desempenho pessoal ou ameace sua integridade pessoal

ou sua vida.

Qualquer que for o paciente, qualquer que for a condição patológica a ser tratada

e qualquer que for o tipo de técnica terapêutica a ser empregada, tal tratamento

deve representar um ou uma combinação qualquer do seguintes elementos: a)

supressão do agente patogênico ou bloqueio de sua ação; b) b restauração

funcional; c) reconstrução ou transformação estrutural; d) reposição, substituição

ou mimetização; e) estimulação ou f) inibição funcional.

62

Não foi atôa que a atividade dos médicos foi chamada durante muitos séculos de

arte de curar.

Desde muito antes de <MS>HIPOCRÁTES<D>, provavelmente desde suas raízes

xamânicas na Pré-História, a terapêutica era considerada objetivo essencial e

inseparável da Medicina e a principal razão para a existência dos médicos. Desde

sua origem como atividade social reconhecida, a Medicina se apresentava e se

justificava como Arte de Curar. Considerada como prática curativa individual, tuda

na medicina deve convergir para o objetivo final e mais importante: curar. A cura é

o principal fundamento e a principal justificativa para a existência dos médicos e

da Medicina.

Atualmente, ainda que o significado relativo da terapêutica tenha mudado bastante

e não seja mais considerada como a única prática médica, seus fundamentos

permanecem. E, desde a Antigüidade Clássica, com a Medicina hipocrática,

pretende-se que a terapêutica praticada pelos médicos seja regida pelos seguintes

princípios diretores:

a) princípio do oposto e do semelhante (o tratamento mais comum é pelos

contrários (alopatiaou antipatia<D>), mas também se justificava o tratamento pelos

semelhantes (homeopatia<D>);<$FA homeopatia hipocrática não devce ser

confundida com a homeopatia hannemaniana que é completamente diversa, como

se há de ver a seguir.>

b) princípio da prudência ou da previdência (ter dobrada cautela com a novidade,

com a medida terapêutica pouco conhecida);

c) princípio do fazer bem feito (todo procedimento deve ser o mais útil e belo

possível e, por isto, menos incômodo, dispendioso, inestético ou doloroso para o

paciente);

63

d) princípio de atacar antes as causas que (e tratar o mais precocemente possível)

as conseqüências das enfermidades (originalmente situado entre os princípios

éticos e não entre os técnicos);

e) princípio da ação educativa do médico (necessidade de instruir o paciente para

que ele possa cuidar de si, o que, para Platão, diferenciava a Medicina da

Veterinária e se dava em três planos, a ilustração médica do doente - instruir o

doente sobre a doença - a persuasão verbal e a adequação biográfica);

f) individuação do tratamento (o remédio, a dose e a oportunidade);

g) princípio holístico (considerar o organismo uma totalidade e uma parte da

natureza, devendo a terapêutica vir sempre em auxílio da tendência natural de

compensação ou auto-reparação).

A ilustração (no sentido de instrução, educação) do paciente pelo médico era a

explicação do diagnóstico, das circunstâncias em que aparecia a doença, como

poderia ser tratada e evitada, quando fosse o caso. Hoje, se denominaria educação

para saúde. Pela persuasão verbal, o médico argumenta contra as objeções do

doente e lhe explica o que parece obscuro, enquanto busca convencê-lo do acerto

do diagnóstico e da correção da terapêutica proposta, porque os médicos gregos

sabiam que qualquer tratamento vale muito pouco ou nada, enquanto o paciente

não estiver convencido de sua eficácia.

Por adequação biográfica, se entendia o papel pedagógico do médico;

acompanhar a experiência pessoal do paciente, ensinando-o a mudar seus

hábitos a evitar tal conduta ou a praticar outra, em benefício de sua saúde.

À época de HIPÓCRATES, diferentemente de hoje, denominava-se alopática à

terapêutica que empregava como remédios tudo o que for oposto às

manifestações do agente morbígeno (fosse calor, frio, seco, úmido de acordo com

a concepção hipocrática de etiologia) ao qual se atribui a enfermidade que se

64

pretendia combater. Por exemplo, se uma enfermidade fosse atribuída ao frio,

devia ser tratada com remédios quentes.

A homeopatia, ao contrário, se praticava com o emprego de um agente

terapêutico de natureza idêntica àquele que se supunha causador da enfermidade.

Por exemplo, se uma enfermidade era atribuída à umidade, era tratada com

agentes terapêuticos úmidos ou molhados.

A homeopatia, tal como foi concebida por Hanemann e é entendida hoje, como

emprego de fármacos que, nas pessoas sadias, induzem sintomas idênticos aos

que buscava combater, foi concebida muitos séculos após, no Iluminismo e foi

reação ao excesso de sangrias, purgativos e terapêuticas tóxicas (arsênico e

mercúrio) muito comuns na época, principalmente, depois do aparecimento da

sífilis.

A homeopatia hanemaniana se resumia a uma escola de terapêutica. Se hoje se

apresenta como um tipo diferente de Medicina é porque conserva as mesmas

concepções patogênicas e as mesmas teorias de enfermidade que existiam na

época de seu surgimento e que são consideradas obsoletas atualmente.

Os procedimentos terapêuticos costumam ser genericamente classificados em

três categorias, os procedimentos terapêuticos clínicos, os procedimentos

terapêuticos cirúrgicos e os procedimentos psicoterapêuticos psicoterápicos. Esta

divisão, apesar de superada em teoria e pela prática científica mais refinada, ainda

parece útil e, por isto, não foi abandonada. Contudo, deve-se vincar a necessidade

das medidas terapêuticas (quaisquer que forem) estarem o mais próximas que for

possível da natureza.

Aspecto curioso das terapêuticas, é que desde a origem da Medicina, trata-se um

mal com outro mal. Os procedimentos terapêuticos, em geral, resultam de se

provocar intencionalmente uma lesão corporal (como na cirurgia, na radioterapia),

uma doença (vacinas, antibióticos ou outros agentes biológicos, a malarioterapia,

65

as convulsões induzidas), uma intoxicação (agentes quimioterápicos) ou uma

neurose (transferência, dependência) para combater a enfermidade original. Por

isto, pode-se afirmar que não existem terapêuticas inócuas ou sem risco. Desde

muito remotamente, para os médicos, a escolha de um processo terapêutico

consiste, sempre, em escolher o mal menor; o procedimento com melhor relação

custo/benefício.

Tratamento e Cura

O emprego da terapêutica se radica na opinião de que as enfermidades são

condicionadas por fatores naturais e podem ser curadas ou terem seus efeitos

desagradáveis minorados pela ação de outros fatores naturais.

A noção de cura tem sido usada com dois sentidos distintos:

a) o primeiro significado era o de sinônimo de tratamento, qualquer tratamento

definido, ou seja, o emprego de medidas sistemáticas para tratar um enfermo

(cura antibiótica, cura hidroterápica, curativo) e

b) só mais recentemente incorporou o sentido de sanação, de restauração da

saúdede desaparecimento de uma enfermidade ou de algum de seus elementos, o

desaparecimento do mal-estar, do sofrimento, do padecimento.

Discussão interessante é a que se produz no estudo das seguintes alternativas: se

a enfermidade cura por si mesma? se é curada pelos médicos? se é curada pela

natureza e os médicos, no máximo ajudam? ou se os doentes curam a despeito

dos médicos?

Terapêutica Defensiva e de Ataque

Todo procedimento terapêutico da Medicina se vale do emprego de forças naturais

ou seus substitutos para reforçar as defesas do organismos contra o agente

patogênico ou os agentes patógenos de uma enfermidade e ou combater direta ou

indiretamente o fator de agressão. Isto caracteriza cada uma delas como de

66

defesa, de ataque ou mista (quando se serve de ambas). Na prática a seqüência

de prioridade terapêutica terapêutica é a seguinte: causa, mecanismos produtores

de danos, intensidade de síndromes e sintomas, queixas.

A falsa dicotomia que pretende levar a uma opção artificial pela defesa ou pelo

ataque na terapêutica é mais uma destas propostas sem sentido (mas, na qual,

muitos embarcam como se fosse coisa séria. Não há o que escolher. As duas são

necessárias e úteis. Devendo cada uma delas ser empregada sempre que as

circunstâncias assim o exigirem.

Reabilitação

Reabilitação é o esforço de restauração da capacidade prejudicada de alguém

afetado por um impedimento decorrente de uma patologia. Quando a enfermidade

(ou o traumatismo) causa danos mais ou menos incapacitantes; e estes danos não

desaparecem ou são compensados pelo tratamento do doente, exige-se a

mobilização de procedimentos reabilitadores. Os procedimentos de rehabilitação

implicam no emprego coordenado de esforços multi-profissionais para restaurar a

saúde e a capacidade (principal, mas não exclusivamente) laboral de uma pessoa

que tenha sido incapacitado ou prejudicado por uma enfermidade física ou mental

ou por um traumatismo corporal ou psicológico.

Quando se trata de estudar reabilitação, é preciso diferenciar entre os conceitos

de impedimento, deficiência e incapacidade.<$FUNICEF, A Deficiência Infantil:

sua prevenção e sua reabilitação (1980), p. 19.>

Impedimento é um dano psicológico, fisiológico ou anatômico, permanente ou

transitório, ou uma anormalidade de estrutura ou função que prejudique o

desempenho da pessoa afetada.

Deficiência é qualquer defeito estrutural ou restrição ou prejuízo na execução

de uma atividade que seja resultante de um impedimento (considerando-se como

padrão o modelo humano).

67

Incapacidade é uma deficiência que imponha uma desvantagem que impede

ou prejudica seu desempenho.

O processo de reabilitação envolve todos os procedimentos capazes de promover

a recuperação estrutural ou funcional que haja sido prejudicada ou danificada pela

patologia, mas se destina também a minimizar seus efeitos incapacitantes. O

resultado da reabilitação, o conhecimento de o quanto o paciente foi reabilitado, se

resume na identificação das funções ou habilidades recuperadas total ou

parcialmente.

Na prática, como se pretende na conceituação de Medina Preventiva e Social,

todos estes aspectos (profilaxia, cura e reabilitação) se integram completamente

não podendo ser diferenciados senão conceitualmente. Afinal, quando se promove

a reabilitação social de um alcoolista, se está simultaneamente fazendo o

tratamento dos transtornos de adaptação de seus familiares, enquanto se

promove a profilaxia de transtornos que poderiam ser causados em seus filhos. A

impossibilidade de se contabilizar estes resultados é uma antiga constatação. Ha

muito tempo se sabe que é possível contabilizar todos os prejuízos causados por

um buraco no calçamento de uma rua pouco iluminada. Dispondo de meios para

isto, pode-se registrar minuciosamente todos os danos materiais e pessoais

ocasionados por ele; todos os acidentes que aquele buraco causou e quais as

suas conseqüências. Entretanto, se aquele buraco no calçamento for considerado,

jamais se poderá saber com certeza quais os prejuízos e danos que evitou. Isto só

poderá ser estimado, comparando com os danos registrados quando ele estava

aberto. Esta é uma característica das atividades preventivas em todas as áreas de

política social. E talvez por isto, não sejam estimadas pelos políticos demagogos.

TEORIAS SOBRE A ENFERMIDADE

A enfermidade é um fenômeno danoso fundamentalmente relacionado à

existência dos seres vivos, à integridade de sua estrutura ou a eficácia de sua

funcionalidade. Todo ser vivo está sujeito a enfermar. Desde que existe a vida na

68

terra, os seres vivos estão sujeitos à influências que lhes determinam sofrimento,

prejuízos estruturais, perturbações funcionais e perturbações de seu desempenho.

A enfermabilidade se caracteriza pela possibilidade de aparecerem fenômenos

que se manifestam por transtornos que afetam a integridade das estruturas vivas

ou comprometem sua funcionalidade de modo a lhes ocasionar algum dano

objetivo ou subjetivo. Tais perturbações, não raro, determinam sofrimento e

alterações no desempenho pessoal e social; todas, contudo, se caracterizam por

causar algum tipo de dano às estruturas afetadas por elas ou ao seu

funcionamento. Do que se pode depreeender que as enfermidades, mesmo as

chamadas estruturais, são juízos de valor sobre acontecimento naturais ou

psicossociais danoso ou resultante de um dano.

O conceito genérico de enfermidade (que compreende todas as formas

possíveis de patologia) se caracteriza exatamente pela existência destes danos

que chegam a se confundir com a própria noção de enfermidade. Neste sentido

genérico do termo enfermidade, ele equivale ao de patologia.

Principalmente no Brasil, há quem prefira empregar a palavra doença para esta

acepção genérica de patologia e isto não está errado no senso comum, nem

parece condenável na literatura médica. Contudo, neste texto, preferiu-se o uso de

enfermidade, com este sentido ampliado, como será justificado adiante.

A necessidade de conhecer para ter a impressão de controlar, é uma

característica humana. Sempre que se defrontam com alguma coisa

desconhecida, os seres humanos tratam de construir uma teoria explicativa sobre

ela, pois o perigo desconhecido parece mais assustador que o risco que se

conhece. De certa maneira, o conhecimento que o ser humano desenvolve sobre

as coisas se elabora e se aperfeiçoa neste processo de testar e retestar tais

teorias, comprovando ou desmentindo cada um de seus elementos teóricos. O ser

humano tem a necessidade de explicar o que se passa com ele (por isto, a

explicação é um componente indispensável do processo de conhecer). Quando

69

ele não conhece a explicação, trata de inventar uma. O mesmo processo se dá

quando se trata de estudar e conhecer as enfermidades e o tratamento dos

enfermos afetados por elas.

O conhecimento sobre as enfermidades foi elaborado a partir da verificação que

buscasse comprovar a correção ou a falsidade de cada uma das proposições que

compõem uma dada teoria sobre a enfermidade. Pois, este procedimento lógico é

o que se emprega para conhecer sua explicação.

Teoria ou sistema teórico é um sistema lógico estruturado para tentar explicar um

certo tipo de fenômenos ou uma determinada porção do mundo. As teorias podem

ter todos os níveis possíveis de abrangência (desde explicar um único tipo de

fen6omeno ou objeto ou abranger tudo o que existe na natureza). Em uma teoria

muito ampla, pode estar incluído tudo o que se conhece, ainda que não se possa

comprovar ou demonstrar; contudo, o que for desconhecido ou inexplicado deve

ser coberto por hipóteses ou outras conjecturas tidas como comprováveis ou

demonstráveis.

Uma linha de pesquisa é exatamente tudo o que ainda não foi comprovado em

uma teoria. Portanto, uma linha de pesquisa deve ser retirada de uma teoria na

qual restam hipóteses e outras proposições ainda não confirmadas pela

verificação científica. Por esta razão, não convém denominar de linha de pesquisa a

uma orientação ou campo de investigação.

Existem três elementos explicativos essenciais para explicar as enfermidades:

suas causas, seu mecanismos patogênicos e seus prognósticos. E, também, os

tratamentos mais viáveis para enfrentá-las com êxito favorável. Como acontece na

maiorias dos objetos de investigação científica, a explicação parece ser a chave (e

o objetivo) das teorias sobre as enfermidades. Pois, a explicação é uma

concepção teórica que permite estabelecer uma possível vinculação lógica entre

um objeto ou acontecimento e suas causas, conseqüências e mecanismos

internos.

70

No início da prática da Medicina científica, se imaginava que devia haver uma

única modalidade de explicação para todas as enfermidades. Depois, descobriu-

se que isto não era verdadeiro; que cada tipo de enfermidade pode ter uma

explicação diferente. E que a explicação das enfermidades pode abranger um

número muito grande de fatores patogênicos mais ou menos integrados ou

concomitantes. Ainda que possa haver patologia monocausal.

Teorias Sobrenaturais

O pensamento humano parece ter apresentado três estágios sucessivos em sua

evolução histórica. Primeiro, coincidindo com a hominização, teria havido uma

fase de pensamento associativo simples (semelhante ao que existe nos

animais superiores); depois, teria aparecido a fase do pensamento mágico

(quando ele imagina soluções para coisas que desconhece e passa acreditar em

sua imaginação como fonte de verdade) e, finalmente, teria emergido a fase do

pensamento lógico (quando o ser humano adquire a capacidade de estabelecer

conexões lógicas entre as informações para poder concluir inteligentemente,

descobrindo novas informações a partir das preexistentes).

Sob o império do pensamento mágico, em épocas muito primitivas de seu

desenvolvimento, as primeira teorias criadas pelos homens para explicar tudo o

que existia, inclusive as enfermidades foram propostas em tempos muito antigos,

em plena pré-história, quando o pensamento mágico fez nascer muitas

explicações sobrenaturais para tudo o que existia; principalmente para o

sofrimento, sobretudo o sofrimento imposto pelas enfermidades. As explicações

sobrenaturais derivaram de fenômenos individuais como o medo e o sofrimento e

cada povo construiu seus sistemas supersticiosos de explicação na medida de

suas possibilidades e de sua realidade.

Entre os povos primitivos, todas as explicações inventadas sobre todas as coisas

têm estrutura sobrenatural e decorrem diretamente do pensamento mágico. Nas

comunidades primitivas, coisas como magia, encantamento, mito, lenda e

71

conhecimento da realidade se confundem de tal maneira que se torna impossível

traçar qualquer limite entre estes conceitos. Para o homem primitivo não havia

qualquer diferença essencial entre o real e o irreal, o natural e o sobrenatural, o

possível e o impossível, o verdadeiro e o mítico. Mesmo a diferença entre a coisa

real e seu nome, sempre foi muito difícil de ser constatada pela mentalidades

primitivas. Tais diferenciações só vieram a surgir muito mais tarde, quando mudou

a realidade social e, só então, apareceram os conceitos para designar esta

diferenciação. Para as mentalidades primitivas, tudo é explicado mais ou menos

magicamente por meio do pensamento mágico que impede a identificação da

irracionalidade como obstáculo ao saber.

Há quem acredite que também na evolução do pensamento a ontogênese imita a

filogênese e o desenvolvimento individual, de certa maneira, repete a evolução da

espécie.

As primeiras teorias explicativas sobrenaturais sobre todas a coisas (e não apenas

sobre as enfermidades) surgiram muito tempo antes de terem aparecido as

religiões, mesmo as mais primitivas. A temerosidade e a credulidade nos

indivíduos foram, aparentemente, muito anteriores aos artefatos culturais que

fazem aparecer os medos e, com eles, as crenças mágico-sobrenaturais.

Nos primeiros momento da cultura, sob a égide das explicações sobrenaturais

construídas para explicar as enfermidades, pretendia-se que as patologias

humanas fossem ocasionadas pelas seguintes causas possíveis:

perda da alma;

intrusão de outro espírito que competia pelo corpo com a alma da pessoa podendo

expulsá-la, destruí-la ou controlá-la (como os fenômenos denominados possessão

espiritual, encosto);

ação sobrenatural de um objeto danoso preparado magicamente para fazer algum mal a

alguém ou alguma coisa (geralmente um feitiço);

72

poder maléfico do desejo ou do olhar de alguém (mau-olhado, praga, mau desejo);

transgressão de um tabu (tabus são proibições rituais que obrigam certas pessoas,

membros de um dos gêneros ou grupo de idade, componentes de certas

ocupações ou outras atividades sociais, famílias, clãs, tribos) a fazer ou não fazer

alguma coisa.

Cada uma destas explicações sobrevive até hoje na consciência ingênua.

Os tratamentos eram conseqüentes e compatíveis com estas crenças etiológicas e

consistiam em contra-medidas capazes de combater ou compensar o efeito

maléfico (como os contra-feitiços). Com o aparecimento sucessivo do animismo e

do politeísmo (como instrumentos ideológicos encadeados) surgiu a crença das

patologias causadas por castigos de infrações religiosas, provações impostas

pelos deuses para provar os mortais ou resultados de caprichos de alguma

divindade.

Mais tarde, com o surgimento das divindades e das religiões, <$FComo se pode

ver no último capítulo deste trabalho.> surgiram as seguintes explicações

sobrenaturais mágico-religiosas:

desejo de uma divindade (por capricho ou encomenda),

provação divina (prova de fé e dedicação que uma divindade submetia a devoção

de um crente) e

castigo infligido ou mandado inflingir por uma divindade, por causa da desobediência a

uma norma religiosa, por ação ou omissão (o castigo do pecado, preço da

desobediência).

Todas estas teorias sobrenaturais sobre a enfermidade, independentemente do

momento de seu surgimento e de sua origem cultural, persistem a despeito de sua

obsolescência, como matéria de fé para muita gente até os dias atuais. A elas se

somam todas as teorias, de origem científico natural, mas tornadas obsoletas

73

pelos mais variados motivos, principalmente por ineficácia e ineficiência (por não

terem sido comprovadas como verdadeiras ou por terem sido comprovadas como

falsas).

Teorias Científico-Naturais Clássicas e Medievais

Sabe-se que as primeiras teorias naturais sobre a enfermidade surgiram como

uma reação do espírito racionalista contra as explicações sobrenaturais das

doenças e outras mazelas das quais as pessoas padeciam. As teorias naturais

sobre as enfermidades nasceram nos templos egípcios de Imhotep (sua divindade

especializada no tratamento dos enfermos). Provavelmente, terá sido a teoria do

uchedu a primeira hipótese de explicação natural das enfermidades.

Teoria do Uchedu

Os médicos gregos estavam familiarizados com a teoria egípcia do uchedu

(introdução no corpo do agente patogênico responsável pela putrefação) que já

era uma teoria natural. Antes de Hipócrates, já HERÁCLITO de Éfeso (cerca de

544 a cerca de 483, antes de nossa era) e PARMÊNIDES de Eléia (segunda

metade do século VI ao início do século V, antes da nossa era) já sustentavam o

caráter natural das enfermidades e propunham diferentes modelos etiológicos ara

explicar a origem das enfermidades.

A primeira teoria genérica específica e natural sobre a enfermidade se referia à

introdução no corpo de um agente patogênico e foi formulada pelos médicos

sacerdotes egípcios. Os adeptos desta teoria consideravam o uchedu (ou whdw)

como o princípio etiológico básico de todas as enfermidades que consistia no

seguinte: o uchedu existia na natureza e era consumido junto com os alimentos e

aderia ao bolo fecal no intestino; absorvido, passa ao sangue e determina todas as

formas de corrupção do organismo. O conceito se continuou modernamente com a

noção de Patologia Exotóxica, que guarda analogia com ele.

74

Seguiu-se a teoria humoral da enfermidade que coincidiu com o aparecimento da

Medicina científica na Grécia da Idade Clássica.

Quando o Império Romano ruiu, floresciam nele principalmente três grupos de

doutrinas médicas racionais em três Escolas Médicas, todas de nítida influência

grega. Denomina-se uma Escola Médica a um conjunto de médicos que seguem

as idéias de um mestre, que deve ser sua figura de maior expressão, e mantêm

um vínculo com o fundador, ainda que suas opiniões sejam modificadas com o

tempo. assim, cada Escola tem uma única doutrina que pode ser unitária ou

pluralista, mas em qualquer caso, constituindo um todo harmônico, como sistema

téorico de explicação das doenças e intervenção sobre as pessoas afetadas por

elas.

Com a Idade Média, ressurgiu o predomínio da explicações mágico-sobrenaturais

sobre as enfermidades. Não que ela jamais tivessem desaparecido ou que a

concepção natural tivesse conseguido convencer a maior parte das pessoas. Não.

No fim da Idade Clássica, a concepção científico-natural era dominante entre os

mais cultos, nos grupos intelectualmente diferenciados da sociedade, na elite

intelectual. Na Idade Média européia, a elite intelectual se resumiu à elite do

padroado católico que dominou os instrumentos de conhecimento e monopolizou o

saber por quase dez séculos, impondo suas superstições a todas as pessoas;

perseguindo, prendendo, torturando e matando a todos os que se dispunham a

resistir e a defender a liberdade de pensamento.

A história das concepções médicas se confunde com a história das ciências. Cada

momento do desenvolvimento científico e técnico foi assinalado por uma dimensão

do desenvolvimento da Medicina e das concepções acerca da saúde e da

enfermidade.

Unicismo e Pluralismo Patologico

O unicismo e o pluralismo doutrinários são estes dois grandes tipos diferentes de

teorias construídas para explicar as enfermidades e que fundamentavam toda 75

intervenção terapêutica sobre elas. Estes dois tipos de doutrinas diferenciam-se

em tantos níveis quantos são os que se atribuem às enfermidades, Desta maneira,

pode-se identificar as modalidades nosológica, etiológica, patogênica e terapêutica

do unicismo e do pluralismo.

O unicismo nosológico consiste basicamente na convicção de que todas as

enfermidades têm uma mesma natureza ou são uma única entidade patológica.

Existiria uma enfermidade única que apenas se manifestaria com formas

diferentes nas pessoas, o que resume o ponto mais radical do unicismo

nosológico.

No outro extremo, situa-se o pluralismo nosológico que presupõe a existência de

muitas enfermidades diferentes (entidades nosológicas específicas) e grupos de

entidades (tipos particulares de patologias).

O unicismo etiológico é um tipo de teoria sobre a enfermidade que sustenta a

existência de uma única causa para todas as enfermidades. As diferenças clínicas

seriam determinadas pelas condições individuais ou por variações quantitativas do

agente (quantidade, tempo de exposição, virulência).

No outro extremo, o pluralismo etiológico sustenta a possibilidade das diferentes

enfermidades serem causadas por causas diferentes ou, mesmo, um única

enfermidade poder ser condicionada por numerosos agentes causais

(multicausalidade e fatores de enfermidade).

A disputa entre Parmênides e Heráclito representa um bom exemplo do conflito

teórico entre o unicismo e o pluralismo etiológico na Grécia clássica. Parmênides,

defendia o unicismo porque acreditava que cada doença teria uma única causa; no

ponto de vista oposto, situava-se Heráclito, adepto do pluralismo, sustentava que

as doenças poderiam ter várias causas porque muitas coisas e condições

poderiam resultar en enfermidades. Mais tarde, esta teoria evoluiu para a noção

de multicausalidade integrada (ou multi-fatorialidade), pela qual cada enfermidade

76

seria condicionada pela interação de fatores causais mais ou menos numerosos e

que a enfermidade, como tudo o que havia, era um processo em permanente

transformação.

O unicismo patogênico defende um único mecanismo para todas as enfermidades

(seja humoral, hereditário, psicógeno ou outro qualquer). Já para os defensores do

pluralismo patogênico pode haver muitos mecanismos possíveis de enfermar e que,

um mesmo caso de enfermidade, poderia apresentar diversos deles atuando

simultaneamente.

O unicismo terapêutico consiste no emprego de um único remédio para cada doença

ou doente. O unicismo terapêutico frente às doenças é uma conseqüência natural

naqueles que admitem o unicismo nosológogico defendam a unicidade

terapêutica: pois, se todos os doentes padecem a mesma enfermidade, por qual

razão deveriam se submeter a tratamentos diferentes. Para outros, como os

homeopatas hanemmanianos ortodoxos, cada doente teria uma única doença;

para eles, o unicismo significa usar um único remédio em cada doente.

Dogmatismo, Empirismo e Ecletismo

Do ponto de vista teórico-metodológico, que se traduzia em atitudes opostas frente

ao conhecimento científico e diante das tarefas específicamente médicas (como

diagnosticar enfermidades e tratar enfermos), os médicos gregos se dividiam em

duas escolas médicas principais:

a primeira, a dos dogmáticos que incluía estudiosos das teorias que empregavam

para explicar os diagnósticos e justificar as terapêuticas (ainda que suas

explicações residissem longe da verdade, como se veio a saber depois); e,

em segundo ligar, os empíricos (ou práticos) que se interessavam apenas pelos

resultados do tratamento, sem qualquer preocupação com suas possíveis

explicações ou teorias explicativas.

77

Em geral, os dogmáticos eram unicistas (como acontece até hoje) e conservavam

teorias etio-patogênicas muito estritas, tendendo a acreditar em um único fator

patogênico, o que, geralmente, encerrava uma visão reducionista e super-

simplificada da natureza, do organismo e da enfermidade; também

freqüentemente sustentavam a exist6encia de um único mecanismo para todas as

enfermidades. O que, naturalmente, havia de se refletir em seus procedimentos

diagnósticos e nas medidas terapêuticas que adotavam para tratar os doentes.

Mais tarde, o termo dogmáticos passou a se referir a um tipo de médico que

aceitava unicamente as explicações teóricas de sua escola e passaram a ser

denominados ecléticos, os médicos que combinavam teorias explicativas sobre as

enfermidades de diferentes procedências doutrinárias.

Ecletismo é uma doutrina sobre a obtenção de conhecimento que valoriza as

informações por elas mesmas, independentemente de sua procedência. O

ecletismo consiste na postura intelectual oposta ao dogmatismo e ao sectarismo.

Se é verdade que havia médicos dogmáticos nos dois campos, havia muitos que

combinavam as duas hipóteses em sua prática profissional e técnica.

A maior parte do médicos não se filiavam a uma das escolas existentes. Ao

contrário, em sua prática, buscavam conciliar e harmonizá-las, aproveitando de

cada uma o que parecia melhor para ser aplicado em cada caso clínico concreto.

A maioria destas escolas medicas foram sendo adaptadas ao longo do tempo, na

medida em que avançava o conhecimento médico; e, muitas delas, têm

sucessoras na Medicina contemporânea, ainda que não conservem as mesmas

designações ou mantenham os mesmos procedimentos exteriores característicos,

conservam o mesmo tipo de padrão de pensamento, de atitude cognitiva.

Humorismo e Ambientalismo

Na Grécia, como decorrência da concepção científico-natural da saúde e da

doença, surgiu a primeira doutrina da patologia geral já marcada pela contradição 78

entre os fatores corporais e ambientais na gênese das enfermidades. Já naquela

época foram propostas duas teorias nas quais se opunham duas ordens

contraditórias de fatores etio-patogênicos.

Uma, biológica, o humoralismo ou humorismo, que tinha a doença como resultado de

desequilíbrio dos humores corporais (sangue, linfa ou fleuma, bile amarela e bile

negra).

Outra, ambientalista, hoje se diria ecológica que situava a responsabilidade sobre a

enfermidade fora do enfermo; a doença seria resultante do desequilíbrio dos

elementos naturais mais importantes – água, ar, terra e fogo (e seus

correspondentes fatores patológicos e terapêuticos - calor e frio, secura e

umidade). O conceito de resfriado se originou aí, também bilioso, fleumático, sangüíneo.

Teoria dos Humores

A teoria humoral sobre a enfermidade se assenta sobre dois postulados básicos:

a) o corpo humano está formado por uma combinação de humores (líquidos)

diferentes e limitados: sangue, flegma (secreção, exudato), bile amarela e bile

negra; e b) o estado de saúde resultaria da combinação harmoniosa destes

elementos, a enfermidade, ao contrário, qualquer que for sua causa, se expressa

sempre como um estado de desequilíbrio destes humores.

A teoria humoral assenta nitidamente a natureza da enfermidade em um

mecanismo interno do organismo. É, portanto, uma teoria endogênica e

identificada com quem pretende a hegemonia do terreno na origem das

enfermidades.

A teoria humoral da enfermidade era compatível com a teoria sobre a natureza da

qual ela se originou.

Os antigos sábios gregos imaginavam que tudo o que havia na natureza fosse

resultado de diferentes combinações de quatro elementos naturais básicos: terra,

ar, água e fogo. A vida natural era resultado da integração harmônica destes dois 79

pares de fenômenos. Portanto, era bastante natural que aplicasse esta mesma

suposição explicativa para o funcionamento do organismo humano e para explicar

as enfermidades que se davam nele.

No ponto de vista oposto aos adeptos da teoria humoral (ou humorista), estavam

os ambientalistas, que explicavam as enfermidades a partir do meio.

A Teoria Ambientalista

Os ambientalistas davam importância aos fatores patogênicos externos provindos

do ambiente. A rigor, a teoria ambientalista não negava ou se contrapunha a teoria

humoral; não discutiam que as enfermidades pudessem ser originadas do

desequilíbrio dos humores (sangue, linfa, bile negra e bile amarela), apenas punha

a tônica nas relações do organismo com o ambiente natural representado pelos

considerados quatro princípios fundamentais (terra, ar, água e fogo). Uma

concepção exógena, portanto da enfermidade.

O ambientalismo se contrapunha ao humorismo clássico, endógeno, que

privilegiava ou exclusivizava as relações dos humores como manifestações

internas do organismo e dava ênfase aos fatores exteriores ao organismo.

Outras Teorias Greco-Romanas

Muitos médicos greco-romanos (sobretudo em Roma) ainda que acreditassem em

uma matriz individual da patologia, recusavam a doutrina da patologia humoral e

propunham outras doutrinas patológicas, como, por exemplo, a solidista, (ou

metodista) entendia que as enfermidades seriam resultantes do estreitamento ou

lassidão dos tubos do organismo (poros, veias, artérias); a atomista, que cria a

doença provocada por corpúsculos tão pequenos que invisíveis penetravam no

corpo pelos poros; a escola pneumática (modalidade do vitalismo) sustentava que a

enfermidade era produto de um desequilíbrio da pneum (princípio vital ou essência

da vida era o ar que se revelava no pulso que era confundida com a alma).

Escola Metodista

80

Antiga Escola Médica de origem grega que teria sido fundada por TÉMISON DE

LAODICÉIAque, segundo a doutrina solidista e atomista explicava todas as

patologias por estados de desequilíbrio entre a rigidez (tensão) e o relaxamento

dos poros e dos tubos do organismo. Esta escola se situa como precursora de

todas as teorias patogênicas que se basearam na ação nefasta da tensão, da

irritação e do estresse.

Na prática, despeito de qualquer possível contribuição teórica, a maior

contribuição metodista para a Patologia resultou de seus estudos para diferenciar

as patologias agudas das crônicas, desenvolvendo procedimentos muito valiosos

para orientar a terapêutica dos doentes que sofriam enfermidades prolongadas.

A terapêutica metodista era baseada na ação dos contrários: sangrias,

sanguessugas, ventosas e escarificações eram empregadas para relaxar;

aplicações frias e substâncias adstringentes eram receitadas para enrijecer.

Desenvolveram procedimentos terapêuticos cíclicos, à base de aplicações

sucessivas de agentes terapêuticos com ações opostas como calor e frio,

excitantes e calmantes, que são empregadas até hoje quando se necessita

estimular processos defensivos ou moduladores orgânicos inibidos. Sua super-

simplificação da patologia e o desprezo por considerações anatômicas ou

fisiológicas, embora muitos de seus cultores tenham merecido justa fama de bons

e eficientes terapeutas, tendo exercido grande influência na Medicina de todos os

tempos, mais intensamente na Idade Média e no Renascimento.

Escola Pneumatista

Escola de Medicina fundada por ATENAU que foi obscurecido por seu seguidor e

sucessor GALENO se denomina pneumatista. Mantinha uma atitude crítica em

relação à super-simplificação teórica do metodistas qie reduziam toda a fisiologia à

tensão e relaxação dos corpos sólidos (poros e, mais tarde, fibras). Os

pneumatistas, ao contrário, atribuíam grande importância ao ar (pneuma) que

denominavam princípio vital (sopro vital) e que tinham por responsável pela

81

vitalidade e pela saúde. Julgavam que a saúde era resultado da tensão adequada

do pneuma; e que esta se manifestava no pulso. Por isto atribuíam grande valor

semiológico ao seu exame.

Os médicos pneumatistas atribuíam grande importâncias às construções teóricas

sobre a natureza e a causa (etiopatogenia) das doenças e diagnosticavam as

enfermidades a partir da avaliação dos seguintes fatores: aitia (causa

extrínseca), diatesis (estado atual do curso da moléstia), nosos (discrasia),

patos (perturbação funcional), symptoma (resultado da perturbação).

Na terapêutica, os médicos antigos empregavam, de preferência meios naturais e

sempre muito moderadamente, usando a técnica dos contrários (alopatia) ou dos

iguais (homeopatia), conforme o remédio fosse da mesma natureza ou de

natureza diferente da causa que era atribuída à enfermidade (calor e frio, secura e

umidade, para os ambientalistas e sangue, linfa, bile amarela e bile negra, para os

humoristas). Para muitos historiadores, o pneumatismo foi substituída pelo

galenismo. Mas, na verdade, Galeno foi seu seguidor, porque era muito

influenciado pela religião pagã de quem era fervoroso crente, ainda que tenha feito

importante modificação em suas doutrinas.

As doutrinas humoral e ambientalista persistiram ao longo de toda Idade Média e,

a despeito de muitos contestadores, foram empregadas por quase todos os

médicos para explicar as enfermidades até o Renascimento (se bem que a maioria

deles adotava uma postura eclética).

O último grande médico medieval foi PARACELSO (1493-1541) que misturava

elementos naturais e sobrenaturais em suas teorias sobre a enfermidade e influiu

nas demais teorias que surgiram depois dele. Mas foi o predecessor dos grandes

médicos do renascimento que começaram a romper com o círculo de ferro da

opressão clerical e abriram caminho para retomado do desenvolvimento científico.

Teoria de Enfermidade em Paracelso

82

Nos fundamentos de sua teoria sobre a enfermidade, reconhecia as seguintes

causas de doenças: as estrelas, o meio-ambiente físico, a natureza do organismo,

o espírito e a vontade divina. A despeito deste misticismo, quando descrevia a

origem dos casos mórbidos, em geral os atribuía à formação de depósitos nos

tubos orgânicos (os tártaros) que se manifestava como cálculo ou coágulos

calcificados ou endurecidos. De sua obra, se pode inferir seis princípios

patogênicos: a enfermidade é uma entidade concreta, a enfermidade é exógena,

as entidades patológicas podem ser definidas em termos químicos, a entidade

patológica é sempre um processo específico, localizado e caracterizado por

alterações anatomopatológicas. Paracelso conseguia sintetizar as concepções

sobrenaturais mais primitivas (feitiços, horóscopos e diversas formas de magia),

com as teorias de raíz religiosa católica, com a medicina clássica e abriu caminho

para a observação sistemática dos doentes e a experimentação clínica que se

impôs a partir de sua época.

Teorias Modernas

Ao longo dos séculos XVII, XVII e XVIII surgiram na Europa e no Novo Mundo

muitas teorias sobre a enfermidades, destinadas a se opor à teoria humoral,

dentre as quais se destacam a iatroquímica, a iatrofísica e o animismo (ou

vitalismo). Isto, sem mencionar as incontáveis teorias sobre as enfermidades

baseadas nas concepções orientais sobre o mundo, a natureza e o homem.

Iatroquímica

Originada das proposições de Paracelso. Explica todas as enfermidades como

resultados de reações químicas no interior do organismo. Emanações gasosas de

cloro, enxofre e mercurio (como queria Paracelso); ação de gases patogênicos, o

archeus, produzidos pelos alimentos ou introduzidos no corpo pela respiração ou

outros meios (tal como proposto por Helmont, 1578-1644); acidez ou alcalinidade

do meio interno (como pretendia Silvius, 1614-1672); água, terra, sal, enxofre e

spiritus(com o sentido de fluido etéreo, gasoso, como propunha Willis, 1622-1675).

83

Atualmente, a iatroquímica se refere às aplicações dos conhecimentos da química

à Medicina para explicar os fenômenos de saúde e doença.

Iatromecânica ou Iatrofísica

Doutrina que considera o organismo como uma máquina e pretende explicar seu

funcionamento e disfunções por meios físicos. A mecânica forneceria as leis das

partes sólidas e a hidráulica as explicações para o que acontecia no meio líquido.

Atualmente, se considera a iatrofísica como as aplicações dos conhecimentos da

física à Medicina.

Animismo ou Vitalismo

Consideravam, como os antigos animatistas, a enfermidade como produto da

modificação de um princípio vital, anima (alma), que daria vida ao organismo. Nas

enfermidades produzidas por agentes externos, a doença resultaria do confronto

da alma do doente, com a alma do agente etiológico. Esta teoria sempre foi a

preferida pelos religiosos e místicos que tendiam a ser dualistas e metafísicos.

Os adeptos destas três escolas disputavam muito entre si. No entanto, é bastante

provável que cada uma delas tenha uma parte da razão.

Em meados do século XVIII surgiram algumas teorias em oposição à teoria

humoral, para explicar a enfermidade; delas, destacam-se a teoria da irritabilidade,

a patologia neural, a patologia tensional.

Teoria da Irritação

Foi uma versão atualizada do solidismo que considera a enfermidade como

produto da irritação produzida pela energia ativa da substância viva. Pode-se

sustentar que a teoria do estresse é uma versão moderna da teoria da irritação.

Estresse, como se há de verificar adiante, é a resposta do organismo ou do

psiquismo a um estímulo agressivo ou irritante capaz de comprometer a

integridade orgânica ou psicológica; estruturas diferentes reagem diferentemente

aos mesmos agentes estressógenos.

84

Novo Solidismo, a Patologia Neural

De inspiração animista, buscando nexos entre a atividade cerebral e a alma, a

patologia neural que explicava a enfermidade por espasmo da matéria nervosa. A

palavra neurose foi criada por Cullen para denominar as patologias deste ponto de

vista. (No início, o termo neurose era aplicável a qualquer condição patológica,

fossem os sintomas corporais ou comportamentais, mas sempre atribuíveis a um

mecanismo nervoso.

Brownismo

Baseado na excitabilidade orgânica (estenia), atribui todas as enfermidades a

estados de debilitação e falta de estimulação (astenia) do organismo que deviam

ser tratados com estimulantes como o ópio. Seus adeptos recusavam o conceito

de enfermidades específicas. Imaginavam uma única enfermidade com diferentes

maneiras de exteriorização em função dos locais de menor resistência do corpo.

Homeopatia Hahnemanniana

Criada por Samuel Hahnemann (1755-1843), de certa maneira, como uma reação

aos abusos da terapêutica das sangrias e dos agentes tóxicos (como arsênico e

bismuto). Não é uma nova teoria sobre a doença, pois não se opunha à teoria

humoral, ao contrário. Opunha-se à terapêutica alopáticae se propõe a tratar

homeopaticamente.

Com o sentido que tinham na literatura hipocrática, homeopatia e alopatia

significam tratar um doente com o agente igual ou contrário àquele que teria

causado a enfermidade. Por exemplo, dar água a alguém cuja enfermidade fosse

causado por ela; ou tratar com calor, uma doença atribuída ao fogo.

A homeopatia hahnemanniana se fundamenta nos seguintes princípios essenciais:

a) Similia similibus curantur (o semelhante cura o semelhante).

85

Deve-se tratar um sintoma, síndrome ou enfermidade com uma agente

farmacológico que reproduzisse quando aplicado a uma pessoa sadia.

b) Potencialização ou dinamização em diluições sucessivas e a memóri das

moléculas de água.

Baseia-se na crença em que as moléculas da água guardam a lembrança das

propriedades farmacológicas de um fármaco que se choque contra elas. Até que

praticamente não reste no preparado qualquer vestígio da substância original.

Pretende que as moléculas da água fervida adquiram e conservem as

propriedades terapêuticas das noxas (agentes patogênicos) e não as patogenas.

c) Usar um remédio único para cada caso

O unicismo terapêutico em oposição à polifarmácia muito empregada pelos

alopatas (mas que, recentemente, tem sido adotada por muitos homeopatas

contemporâneos.

Todas estas teorias têm sido submetidas ao crivo da experiência. Nenhuma delas

foi comprovada verdadeira, embora algumas de suas partes tenham resistido às

sucessivas tentativas de prová-las falsas (método experimental hipotético-dedutivo

das ciências factuais), permanecendo com crédito.

TEORIAS CONTEMPORÂNEAS

Levantam-se aqui, somente de passagem, as teorias sobre as enfermidades

surgidas no último século e que colocam questões com as quais os médicos e

estudantes de Medicina estão mais familiarizados. Quem necessitar estudar mais

profundamente este tema vai ter que buscar outras fontes especializadas,

<$FDestacando-se O Concepto de Enfermedad de Ruy Perez Tamayo.> nas

quais deve encontrar, não apenas mais pormenores, mas informações mais

importantes e mais completas acerca das teorias contemporâneas de

enfermidade.

86

Conceitos Ontológico e Fisiológico de Enfermidade

Importante contradição na estrutura das terias sobre as enfermidades, é a

caracterização da enfermidade como um fenômeno ontológico (ou categorial que

se refere a um ser reconhecível, exatamente o objeto de estudo da Medicina) o

uma dimensão de um estado fisiológico.

Conceito Ontológico de Enfermidade

A enfermidade como uma coisa, como algo reconhecível por si mesmo e cada

uma delas sujeitas às suas próprias leis do desenvolvimento. O conceito

ontológico de enfermidade se presta muito bem para categorizar aquelas

enfermidades que apresentam com danos estruturais e características factuais

bem definidas, reconhecíveis e definíveis; as entidades nosológicas. Também

pode ser denominado categorial.

Conceito Fisiológico da Enfermidade

A concepção fisiológica nega o conceito de enfermidades específica e tem cada

enfermidade como um estado mais ou menos indiferenciado do organismo ante

uma agressão. Este conceito, embora apresentado como oposto ao conceito

ontológico, na verdade, lhe é complementar. Se adapta muito bem àquelas

patologias funcionais e aos resultados das patologias do desenvolvimento.

Os conceitos ontológicos se referem a categorias conceituais patológicas que

encerram os seguintes significados: a) ser um conceito definido por um elemento

essencial que seja quantitativa ou qualitativamente diferenciável dos demais; b)

ser um objeto ou fenômeno definido por suas próprias características (sejam estas

essenciais ou não e que possa ser reconhecido através delas); c) ser um objeto ou

fenômeno, ou um conjunto de objetos ou de fenômenos, cujos limites sejam

87

definidos por eles mesmos, pela presença ou ausência daquelas suas próprias

características.

Os conceitos fisiológicos de enfermidade se materializam em variações

dimensionais de condições orgânicas ou psíquicas: a enfermidade como variação

funcional para aquém ou para além da normalidade.

Dimensão é a denominação que se empresta a todo plano, grau ou direção em que

se possa efetuar uma investigação ou executar uma ação; sentido em que se

mede uma extensão para avaliá-la; número mínimo de variáveis necessárias à

descrição analítica de um conjunto; entre outros sentidos.

A conceituação chamada funcional ou fisiológica de enfermidade se presta para

mencionar condições patológicas que se situem em pontos diferentes de um

continuum funcional, sem que se possa reconhecer qualquer distinção qualitativa

entre elas.

História Natural de uma Enfermidade

Surgida no início do século dezenove se baseava nas relação entre o parasito e o

organismo parasitado para explicar as enfermidades. Neste caso, os sintomas

produzidos neste processo não seriam mais que manifestações da reação do

organismo à agressão do agente patogênico. As noções básicas desta teoria são

a de agente, hospedeiro e a relação especial que se estabelece entre os dois e o

conhecimento da enfermidade como um processo com causalidade,

manifestações clínicas e uma evolução previsível empregando-se os recursos da

previsão científica.

Teoria do Estresse

A teoria do estresse é, em última análise, a versão atualizada da teoria da irritação

elaborada por Broussais há quase dois séculos. No início, importando da

metalurgia por Selye, o conceito de estresse se referia apenas ao dano causado

pela tensão decorrente da ação prolongada de estímulos que venciam a 88

capacidade de resistência do material ou de adaptação do organismo, as

agressões agudas (os traumatismos físicos, químicos, biológicos e psicológicos)

escapavam a esta noção. Atualmente, consoante as doutrinas vigentes na

psiquiatria norte-americana, o conceito de estresse se refere à ação danosa de

estímulos cuja intensidade ou duração sejam suficientes para produzir uma reação

psíquica ou somática que possa ser tida como patológica. Inclui fenômenos

agudos sub-agudos e crônicos (o que não parece muito correto).

Na psicopatologia atual, uma reação ao estresse é a resposta do indivíduo a um

estímulo nocivo que pode assumir a forma de uma reação psicológica (inclusive as

comportamentais), anatômica ou fisiológica ou uma combinação delas.

O estresse pode agir como agente causal, desencadeador ou agravador de

manifestações psiquiátricas ou doenças somáticas. Mas não é propriamente um

fator etiológico, mas patogênico; um mecanismo pelo qual o agente etiológico atua

para produzir o quadro clínico.

Hereditariedade e Degeneração

Nos termos da terminologia médica francesa dos séculos dezoito e dezenove, as

doenças podiam ser herdadas ou degenerações. Uma degeneração, aqui, quer

dizer unicamente uma condição patológica constatada em um indivíduo e que não

aparecera antes em qualquer de seus ascendentes. Hoje, se diria, adquirida. Só

isto, nada mais. Quando foi proposta, a expressão técnica não detinha qualquer

conotação de valor (que só veio a ser atribuída bem depois, já neste século. Não

deve horrorizar ninguém que conheça sua história. Nem deve ser interpretada nos

textos antigos com seu sentido atual.

O conceito de degeneração ainda é empregado com um mecanismo patogênico

caracterizado pelo aparecimento de substâncias estranhas ou pelo acúmulo

excessivo de substâncias normais nos tecidos, o que induz um prejuízo funcional.

Pode significar, ainda, a perda dos caracteres distintivos de uma espécie, raça ou

89

linhagem; ou pode se referir a condutas notavelmente desviadas das normas

estabelecidas ou das características pessoais.

De qualquer maneira, está perfeitamente adequada pensar hoje em dois modelos

de enfermidade, o hereditário (genético e cromossômico) e o adquirido.

Outras Teorias de Enfermidade

Atualmente, também se admitem muitos outros modelos teóricos para explicar as

enfermidades específicas. Como, para exemplificar, podem ser citadas as

seguintes teorias:

infecciosa (mecanismo causado pela ação de agentes vivos, bacterianos ou virais

que determinam lesões estruturais ou causam danos funcionais nos organismos

afetados);

imunológica não bacteriana (imunossupressão, imunodeficiência, perturbações por

auto-imunidade);

metabólica, endotóxica e exotóxica;

degenerativa;

sócio-psicógena (ação danosa de psicotraumatismos agudos ou rônicos capazes

de se comportarem como agentes estressores).

Teoria Multi-Fatorial e Bio-Psicossocial

No presente, existem muitas razões que levam a crer que a etiologia das

enfermidades devem ser consideradas como multi-fatoriais e biopsíquico-sociais.

Isto significa que são muitos os fatores potencialmente causadores de

enfermidades. Ainda que, em certos casos específicos pode haver somente um ou

um fator ou um conjunto mais ou menos restrito de fatores exercer papel

predominante. E que tais fatores podem ser de natureza física, química, biológica

ou psico-social.

90

Cada um destes níveis da organização do mundo possui sua próprias leis que

refletem suas regras de funcionamento, devendo-se repetir incansavelmente que o

que se descobre acerca de um destes níveis não deve ser transposto para outro.

Considerando-se o nível de enfermabilidade, os mecanismos patogênicos podem

ser: funcionais (inclusive as psicógenos) ou estruturais. Com os seguintes sub-

classes do estrato biológico: o nível tissular, o nível celular, o nível molecular, o

nível atômico e o nível sub-atômico.

Ciclos Vitais

A noção de ciclos vitais também está profundamente arraigada no conceito de

organismo, com o sentido de períodos cíclicos (diários ou circadianos, lunares,

mensais, sazonais) que correspondem a determinados estados do organismo

relacionados com certos períodos de ciclos da natureza. Os ciclos biológicos

parecem revelar um importante modo dos seres vivos se relacionarem com a

natureza. Prova disto parece ser a estreita relação que existe entre os ciclos vitais

e os ciclos naturais (geológicos, astronômicos).

OUTROS ASPECTOS IMPORTANTES DA ONTOLOGIA MÉDICA

@FIRSTPAR = Além dos aspectos ontológicos já vistos até aqui, neste capítulo do

conhecimento propedêutico em Medicina, existem outros, como as teorias acerca

da enfermidade, que devem ser ao menos conhecidas porque se dedica a estudar

o assunto. Pois, nenhum diagnóstico médico pode ser construído com alguma

fundamentação científica, a não ser que o processo diagnosticador seja uma

tentativa de comprovar a veracidade ou a falsidade de uma determinada teoria

sobre aquele caso clínico.

Saúde e Enfermidade

Durante muitos séculos, considerou-se a saúde como ausência de enfermidade

(ainda que entre os séculos dezoito e dezenove, o conceito de enfermidade (ou da 91

patologia) tenha se apoiado para conter não apenas as doenças e as lesões

corporais mais ou menos invalidantes, para alcanças os casos de sofrimento

inadequado, desproporcionado às circunstâncias. Em época relativamente recente

(em meados deste século), o conceito começou a a ser criticado por seu caráter

negativo (ausência de doença, invalidez ou moléstia) e se adotou uma definição positiva,

ainda que empregando um conceito indefinido: saúde é bem-estar.

Considerando as relações recíprocas entre os conceitos (e as situações ou

condições reais) de saúde e de patologia, pode-se dizer que embora a saúde

possa ser definida como algo mais que a mera ausência de doença ou invalidez, a

patologia não pode ser entendida como a ausência de saúde, pois caso se fizesse isto,

implicaria em declarar que saúde e doença são estados antinômicos, pólos

opostos e inconciliáveis e esta tese seria indefensável. Porque, ao menos na

maior parte das enfermidades chamadas funcionais e nas perturbações do

desenvolvimento, existe uma gradação, uma continuidade entre a saúde e a

patologia, impossível de ser deslindada senão por uma convenção. Ainda que as

duas condições sejam claramente distinguíveis, seus limites costumam ser

indefinidos e indefiníveis por si mesmos.

Caso saúde e doença fossem conceitos antinômicos que correspondessem a

realidades antagônicas (que se excluíssem mutuamente), não podendo existir

uma se existisse a outra, alguém estaria totalmente doente ou completamente

saudável. Isto é, alguém estaria completamente enfermo ou inteiramente

saudável. O que, deve-se convir, é ainda muito mais exagerado que a pretensão

de experimentar completo bem-estar contida na definição de saúde da OMS.

Saúde,

A definição cientificamente aceitável de saúde não é uma tarefa fácil, nem

pacífica. Ao contrário, situa muitos obstáculos teóricos e ideológicos. A

Organização Mundial de Saúde, tem uma definição para saúde que é adotada em

92

todo o mundo como oficial. Contudo, mesmo esta não está isenta de críticas, nem

tem a pretensão de ser definitiva ou imutável.

A Saúde é definida pela Organização Mundial da Saúde como estado de perfeito bem-

estar físico, mental e social, e não apenas ausência de doença, deficiência ou invalidez.

Vale a pena grifar esta última parte da definição original, freqüentemente omitida

quando ela é enunciada, com prejuízo claro do seu significado essencial e sua

inteira redução à utopia.

E mais ainda, deve-se destacar a segunda parte da definição de saúde da OMS,

porque se trata da dimensão da saúde de interesse médico. E porque é comum

alguém sofrer grave enfermidade, como uma neoplasia ainda assintomática, sem

qualquer perturbação de seu bem estar, porque não tem qualquer consciência de

seu estado. Não está saudável, não tem saúde porque padece uma patologia.

Apenas desfrutar bem-estar não significa ter saúde, ser saudável; não é garantia

de sanidade.

Do ponto de vista médico saúde é, se bem que não apenas, ausência de doença

ou invalidez.

Noutro plano, é necessário destacar que o conceito de saúde pode ser apreciado

desde uma perspectiva individual ou social, tanto do ponto de vista de seus fatores

determinantes, quanto de suas conseqüências. No entanto, como se há de ver, a

patologia é sempre um fenômeno individual.

Embora criticável, a definição positiva de saúde como bem-estar, e não negativa,

ausência de doença ou invalidez, é socialmente útil, ainda que mais difícil de ser

operacionalizada do que a de patologia. Embora a definição de patologia seja

indispensável à Medicina que não existiria sem ela. Talvez, por isto, se não é fácil

93

ou possível definir saúde a contento geral, o conceito de patologia, estruturado

pelos médicos, é mais ou menos universal há muitos séculos.

Nesta definição de saúde da Organização Mundial de Saúde, parece que estão

implícitas algumas características conceituais que merecem ser explicitadas e, se

não discutidas, ao menos levantadas para discussão:

= a) o estado de saúde deve ser entendido como resultado de uma organização

dinâmica, um processo ou um desenvolvimento e não como uma manifestação

estática e cristalizada da existência do ser vivo;

= b) ao menos, nos organismos mais diferenciados, a caracterização do estado de

saúde exige a ausência de quaisquer condições patológicas como doença,

deficiência ou invalidez;

= c) o estado de saúde humana não pode ser resumido à ausência de doença ou

invalidez, mas decorre essencialmente da satisfação das necessidades que se

manifestam nos planos biológico, psicológico e social da existência dos seres

humanos;

= d) com isto, o conceito de saúde deixa de ser atribuível a perturbações das

condições individuais e suas relações com o meio físico (terreno exclusivo dos

médicos), e passam a interessar como expressão da adaptação ao meio social (o

que interessa a muitas outras atividades sociais).

Enquanto do ponto de vista médico-social, a primeira parte da definição de saúde

(perfeito bem-estar físico, mental e social) constitui o foco principal de atenção, do ponto

de vista médico-clínico, o interesse está dirigido principalmente para a segunda

parte (e não apenas ausência de doença, deficiência ou invalidez), sem que haja qualquer

contradição essencial neta diferença. Porque, na perspectiva clínica, saúde é

ausência de doença ou invalidez, ainda que não o seja exclusivamente.

94

Neste sentido estrito, mas essencial e estritamente médico, o estado de saúde

pode e deve ser entendido como um fenômeno oposto ao patológico, como

ausência de enfermidade ou incapacidade, um acontecimento não-patológico;

embora nem toda condição ou situação não-patológica possa ou deva ser

considerada uma condição ou situação de saúde ou, muito menos, saudável.

Em que pese o caráter evidentemente avançado desta definição de saúde,

quando foi adotada pela OMS, por sua ênfase no atributo positivo bem-estar, ao

invés do negativo - ausência de doença ou invalidez, não falta quem a critique hoje com

numerosos motivos e bastante razão. Por isto, é bastante razoável que tais

críticas seja expostas, ao menos para fomentar discussão.

Contudo, deve-se ressaltar que, com esta nova perspectiva, a instituição da saúde

deixou de ser apenas uma responsabilidade individual para se transformar,

também, em um processo social (os serviços de saúde, os sistemas de saúde).

Não que tenha deixado de ser uma condição individual, porque isto jamais

aconteceu, mas que passou a ser, também, além de individual, uma questão

social.

Críticas à Definição de Saúde da OMS

A definição de saúde, tal como foi proclamada pela Assembléia Geral da

Organização Mundial de Saúde em 1948 e como está sendo empregada como

instrumento delimitador da prática sanitária em todo mundo, tem sido objeto de

algumas críticas mais ou menos pertinentes. Dentre outras críticas, em função de

seu significado e importância, podem ser destacadas as seguintes:

Em primeiro lugar, a definição de saúde, proclamada pela Organização Mundial da

Saúde e ainda vigente, pode ser criticada por três razões significativas: em

primeiro lugar, por seu caráter utópico; em segundo lugar, por sua imprecisão que

compromete sua cientificidade e, em terceiro lugar, por ser inoperacionalizável.

95

De um lado, em uma perspectiva mais restrita, o conceito de bem-estar pode ser

uma noção subjetiva, significando sentir-se bem, não ter queixas, não apresentar

sofrimento ou exteriorizar qualquer prejuízo de desempenho pessoal ou social

(inclusive e talvez principalmente, a nível familiar e laboral).

De um ponto de vista mais amplo, mas rigorosamente correto, a condição

denominada bem-estar pode significar um estado de satisfação das necessidades ou como

quer a definição estudada perfeito bem-estar ou completo bem-estar (dependendo da

tradução). Neste caso, se coloca o caráter utópico desta definição porque para

que houvesse perfeito (ou completo) bem-estar, o que caracterizaria a pessoa

saudável, o estado de saúde, deveria necessariamente haver a satisfação integral

de todas as necessidades da pessoa que estivesse sendo avaliada. No caso de

bem-estar físico, mental e social, todas estas dimensões da existência humana

estariam envolvidas. Isto é, para ser considerado saudável, uma pessoas teria que

estar desfrutar perfeito bem-estar físico, psíquico e social.

No ser humano, desfrutar completo bem-estar é, no mínimo, algo impossível

mesmo de se cogitar como uma utopia distante na qual as pessoas em geral (ou

alguma pessoa em particular) possa ter satisfeitas todas suas necessidades em

todos os plenos de sua existência (o biológico, o psicológico e o social). Porque,

sempre que o homem vê satisfeitas suas necessidades de um momento; no

seguinte, cria outras; existindo indefinidamente em estado de necessidade e não

de bem-estar. E isto não se trata de uma padrão de comportamento restrito aos

indivíduos singulares. Também coletividades humanas se comportam assim,

mantendo-se permanentemente insatisfeitas (o que também induz seu progresso),

com necessidades crescentemente mais amplas e mais sofisticadas.

Do ponto de vista social e político, as condições de bem-estar das coletividades

humanas são determinadas pelo grau de desenvolvimento econômico-social e

podem ser avaliadas por indicadores econômicos (como renda média, distribuição

96

de renda) e, outros, especificamente sanitários (como expectativa de vida,

mortalidade infantil, gastos sociais com a saúde).

Diante disto, portanto, pode-se constatar que a exigência de completo bem-estar se

trata de uma condição claramente inatingível, ao menos no seres humanos; por

isto, parece bem melhor referir relativo bem-estar como caracterização de saúde e,

conseqüentemente, de sanidade. Ter como exigência característica essencial e

definidora da saúde humana que ela dependa do completo bem-estar de uma

pessoa configura uma realidade inviável, impossível de ser concretizada, algo

inatingível, um mito. E, sem dúvida que isto merece alguma correção.

Além de poder ser definido como um animal que pensa (Homo sapiens), um animal

que fala (Homo loquens), um animal que trabalha (Homo faber), o ser humano também

poderia ser definido, sem qualquer ofensa à verdade, como um animal insatisfeito

(Homo insatisfactus) graças a sua tendência de estar sempre insaciado, sempre

precisando de alguma coisa, sempre substituindo uma necessidade atingida por

outro objetivo a alcançar.

Esta característica humana de inquietação e insatisfação essencial que se revela

na denominada ansiedade existencial, pela qual ninguém tem tanto do que quer

para que tenha bastante, é o elemento que faz da completa ou perfeita satisfação

um objetivo inatingível.

Além disto, há quem, como acontece com GILBERTO MACEDO. <$FMacedo, G.,

Aculturação e Doença, Ed. Departamento Estadual de Cultura, Maceó, s/d.>

considere que a expressão estado implica em um caráter estático, razão pela qual

se deveria substituí-la por desenvolvimento ou processo, bio-psico-social que se

manifesta como bem-estar.

Em terceiro lugar, seria talvez o caso de uma definição de saúde, para ser

completa, mencionar ao menos a socialização, a flexibilidade comportamental e as

possibilidades adaptativas como características da saúde; e, por via de

97

conseqüência, sua ausência ou prejuízo ponderável deveriam ser considerados

como indícios importantes ou expressões de patologia, de enfermidade. Porque as

antinomias sociabilidade/insociabilidade e flexibilidade/rigidez,

adaptabilidade/inadaptabilidade retratam a contradição entre saúde e não saúde

em muitas, senão todas, situações. E porque as condições ou situações de saúde

se manifestam sempre por comportamentos adaptativos positivos e saudáveis

nestas três áreas.

Por fim, pode-se criticar nesta definição de saúde a ausência às necessárias

referências ao prejuízo dos rendimentos pessoais e do desempenho social como

resultantes da de qualquer patologia e, por isto, indicadores de saúde.

Conceito de Patológico

Como aconteceu com a maior parte dos conceitos das ciências humanas e

sociais, os conceitos científicos se originaram em conceitos do conhecimento

vulgar e sempre sofreram muito a influência desta gênese. Até meados deste

século, costumava-se definir saúde como ausência de enfermidade (incluindo

doença, sofrimento inadequado e invalidez), que era o senso comum do problema;

bastava que alguém não estivesse padecendo uma enfermidade ou vitimado por

alguma incapacidade patológica para ser considerado saudável. Em contrapartida,

por esta época, se definia enfermidade (inclusive doença e invalidez) como

ausência de saúde. A isto se denominava o entendimento antinômico da

enfermidade e da saúde.

Quando se entendia saúde e patologia como conceitos antinômicos. Podia-se

pensar em saúde como ausência de patologia e patologia como estado de não-

saúde. Atualmente, isto já não é possível. A patologia é um juízo de valor que se

atribui ao transtorno de uma condição vital, trata-se da qualidade de algum

acometimento que afete a um ser vivo e que é considerado danoso para sua

estrutura ou funcionalidade.

98

Aqui, os termos patologia e enfermidade (ambos como designação bastante

genérica) estão sendo empregados como sinônimos.

Condição Patológica é como se designa genericamente, neste trabalho, qualquer

moléstia ou perturbação da estrutural ou funcional que seja capaz de ocasionar a

alguém: a) ameaça à sobrevivência, b) algum sofrimento e ou c) transtorno do

rendimento pessoal (seja físico ou psicológico) ou do desempenho social (familiar,

laboral, cívico-político). Enfim, a característica mais essencial da patologia é o

dano que acarreta.

O termo condição patológica, está sendo empregado aqui com seu sentido genérico

mais amplo de qualquer afecção mórbida, de qualquer transtorno da saúde,

qualquer enfermidade seja qual for sua origem ou extensão, qualquer que for sua

classe, sua dinâmica patogênica ou suas repercussões, qualquer que for sua

evolução, qualquer que for sua resposta à terapêutica ou sua forma de finalizar.

Patologia com o sentido de qualquer alteração patológica que afete danosamente

um sistema natural vivo; uma afecção mórbida; moléstia, perturbação ou alteração

da sanidade.

A noção de condição patológica ou entidade patológica pode substituir, sem qualquer

desvantagem e, até, com bastante vantagem, os conceitos ampliados de doença,

moléstia ou enfermidade que são usados para designar genericamente alguma

condição que não é sadia, hígida. Patologia, como expressão clínica de um

transtorno mórbido, com igual sentido inespecífico de disorder em inglês (aqui

traduzido como transtorno e não como distúrbio ou desordem porque em português

estas duas últimas expressões têm uma clara conotação de perturbação da ordem

pública.

Já em trabalho anterior, O Diagnóstico Psiquiátrico, o autor argumenta em favor das

razões que o induzem a traduzir disorder como transtorno, moléstia ou patologia,

até por fidelidade ao espírito do significado.

99

Patologia, patológico e outros termos análogos são expressões muito utilizadas em

Medicina e significantes que costumam ser empregados com uma certa

diversidade de significados. Os diferentes sentidos médicos atribuíveis à

expressão patologia e seus derivados podem ser sintetizados em dois níveis

principais:

a) como o mecanismo de ação do agente patogênico, a natureza da enfermidade

e a estrutura do conteúdo mórbido ou

b) como a forma de sua expressão, seu quadro clínico.

Em função destes dois significados, é comum que se use a palavra patologiacom os

dois sentidos em um mesmo enunciado:

a) como contração da expressão fisiopatologia, como sinônimo de patogenia,

expressando o mecanismo de ação dos fatores morbígenos e

b) expressando a forma do quadro clínico.

Assim, é possível encontrar uma frase como “a etiopatologia de uma patologia”, quando

a palavra estará sendo utilizada com seus dois sentidos: o primeiro, mais estrito e

o segundo, mais amplo.

Mesmo o conceito de patologia, quando empregado como componente de uma

estrutura mórbida, não é uniforme e não reúne apenas elementos idênticos em

sua forma e conteúdo. Há muito se sabe que o conceito de patologia abrange,

pelo menos, três níveis diversos de significação que correspondem a três grupos

de condições patológicas reais qualitativamente distintos daquilo que chamamos

patologia e que são listados adiante, quando se tratar das classes da patologia.

Desde Letamendi, podem ser identificadas três qualidades distintas de patologia,

três modalidades qualitativamente diferentes de condições patológicas, de

entidades mórbidas.

100

Esta realidade heterogênea, inclusive qualitativamente, das manifestações

patológicas humanas impede que sua conceituação se dê de maneira aceitável

para todas as situações a que se refere. No interior do conceito de patologia

humana<D>, existem três noções bem diferenciadas pelo tipo de dano que

ocasionam e que correspondem a, pelos menos, três grupos de condições clínicas

qualitativamente descontínuas entre si que podem ser denominadas de qualidades

ou classes de patologias e que são inferidas do tipo predominante de dano que

apresentam para a pessoa.

A decomposição do conceito de patologia em suas três significações,

correspondentes a três classes qualitativamente diferentes de fenômenos,

corresponde à diferenciação essencial dos fenômenos patológicos como dados da

realidade.

Um componente significativo desta diferenciação da patologia em três categorias

qualitativamente caracterizadas é o tipo de dano que cada uma dela ocasiona no

enfermo: as patologias que determinam algum dano negativo, as patologias que

ocasionam dano positivo e as patologias nas quais o dano ao enfermo é apenas

sentido como experiência subjetiva e, por isto, somente podem ser constatadas

indiretamente ou por meio da comunicação do enfermo.

Eis porque é possível afirmar que ignorar a diferenciação essencial existente entre

os grupos distintos de fenômenos patológicos, as classes de patologia, redunda

em algumas dificuldades para o avanço da psicopatologia e da psiquiatria que se

refletem, principalmente, na incompreensão dos limites do patológico e em

dificuldades de diagnosticar.

Adiante, quando se especificarem as características de cada uma destas classes

de fenômenos patológicos, á de se verificar que elas se diferencial por

ocasionarem danos negativos, danos positivos ou danos sentidos.

101

Estrutura da Enfermidade

As enfermidades são sempre resultantes da interação de três elementos: a

agressão, a resistência/ vulnerabilidade do organismo e os fatores

desencadeantes, atenuadores ou agravantes. Sabendo-se que este processo

patogênico pode afetar qualquer nível da organização das estruturas biológicas.

Classicamente, o organismo se organiza em cinco graus de complexidade

crescente e perfeitamente caracterizáveis que vão do sub-atômico ao tissular ou

anatômico; podendo-se acrescentar o nível psicológico que se confunde com o

psicossocial.

As patologias podem alcançar e comprometer qualquer nível da organização dos

organismos vivos

o tissular,

o celular,

o molecular,

o atômico,

o sub-atômico e

o psicológico.

Destes, alguns são ligados ao terreno (a estrutura do organismo e suas

características funcionais) e outros aos agentes agressores externos ou internos.

Como já foi mencionado sempre houve que alimentasse uma espécie de

preferência para explicar a origem dos acontecimentos patológicos, situando-a o

organismo ou no ambiente. Estas tendências configuram o divisor de águas entre

as mais importantes escolas de patologia: as que explicam a enfermidade pelos

fatores internos do organismo e os que a explicam como resultado da ação de

fatores exteriores.

102

O conceito de história natural da enfermidade é um elemento essencial para

entender o mecanismo de saúde doença e a estrutura da personalidade. O

modelo empregado é o das doenças infecciosas e empregados os conceitos de

agente, hospedeiro, ambiente e evolução clínica da enfermidade (período

assintomático, período de estado e período de resolução). As enfermidades

podem findar com a morte, a cura ou deixar alguma seqüela física ou psicológica.

Condições Patológicas Benéficas

Ao contrário do que se acredita, nem sempre uma patologia é um fator

completamente maléfico ou pernicioso em todos os aspectos da existência

pessoal; embora, inequivocamente, seja o dano que ocasione a mais importante

característica de uma patologia e todas as patologias devam trazer consigo algum

malefício. Mas, este malefício pode redundar em um benefício mais importante.

Muitas patologias podem ter algum efeito terapêutico e, por isto, são usadas para

tratar doenças piores que elas. A maior parte das terapêuticas biológicas têm esta

característica, da qual a vacina é o exemplo mais típico.

As cirurgias não são mais que lesões tissulares controladas e deliberadamente

infligidas com propósitos terapêuticos ou reabilitadores. A neurose de

transferência é outro exemplo muito referido para esta situação. Os emprego

terapêutico dos agentes farmacológicos, em geral, são intoxicações deliberadas

das quais se pretende tirar alguma vantagem curativa para o paciente.

Malarioterapia é uma maneira de tratar sífilis inoculando no paciente o agente

transmissor da malária. Porque a hipertermia das crises maláricas pode extinguir o

agente da sífilis, o Treponnema palidum, do organismo por causa de sua

sensibilidade à temperatura.

Caráter Individual das Enfermidades

O conceito de enfermidade, como o de saúde, só é atribuível a indivíduos, Não

deve ser usado para designar coletividades, senão como metáfora.

103

É bastante comum que se empreguem conceitos como doença, enfermidade,

moléstia para referir fenômenos coletivos como crime, desemprego, prostituição e

muitos outros. É bem verdade que isto acontece, principalmente, na linguagem

comum, mas já está alcançando a comunicação dos cientistas e contaminando a

terminologia médica.

Isto é um erro que deve ser evitado.

Saúde e doença, higidez e patologia são conceitos que devem ser empregados

exclusivamente para referir indivíduos, ainda que entendidos como unidades bio-

psico-sociais.

A atribuição dos conceitos genéricos de saúde e patologia a categorias plurais,

sejam grupos ou comunidades, Estados ou nações, se faz apenas como metáfora,

como analogia ou como licença poética. Afinal, seria um contra-senso tão grande

quanto afirmar que uma cidade ou um grupo tivesse febre ou diarréia, dizer que

tem neurose, ambivalência afetiva ou esquizofrenia. Mesmo no caso em que uma

coletividade seja inteiramente composta por pessoas doentes, não se pode nem

se lhe deve atribuir a condição de coletividade enferma<D>, de uma patologia social; a

não ser para exercitar uma figura de linguagem. De fato, uma comunidade de doentes

não pode ser entendida como uma comunidade doente<D>, posto que os componentes

individuais da comunidade é que estão enfermos e não o sistema social batizado

com esta designação.

A noção de patologia social ou coletividade patológica é uma ideologia a

serviço da desinformação que pretende justificar a existência de distorções e

injustiças em um sistema social.

Enfermidade Somática e Enfermidade Psiqui’trica

Convém destacar comparativamente as características mais importantes de cada

uma destas modalidades de patologia.

104

O Tratado de Patologia Médica de von BERGMANN divide os fenômenos pelos quais

se manifesta a enfermidade humana em dois grupos, do ponto-de-vista de quem

os experimenta: os objetivos e os subjetivos; e ambos em orgânicos, funcionais e

psicológicos, (do ponto de vista da natureza de suas manifestações clínicas).

As patologias físicas se caracterizam por particularidades que devem ser

destacadas, e conhecidas por todos os que pretendem lidar com elas como

atividades profissional ao longo de toda sua vida.

Características das Enfermidades Somáticas

O estudo ontológico da Medicina e de seus ramos precisa envolver as

características mais essenciais de seu objeto e sua dimensão gnosiológica que

permite que sejam reconhecidas as enfermidades: o diagnóstico médico. O

diagnóstico médico se refere ao reconhecimento de todas as enfermidades

humanas, de todas as fontes de sofrimento, de todas as manifestações de

prejuízo para suas aptidões, para suas capacidades, para sua adaptação.

No entanto, aqui, neste item, se privilegia a caracterização das patologia físicas,

sem que isto signifique qualquer compromisso com qualquer reducionismo, seja

dualista ou organicista.

Também, se deve recusar a tendência a confundir o corpo como o único objeto da

Medicina. Quando se faz, p.ex., menção a uma condição médica, ou o que é muito

mais divertido, uma doença médica, para referir a uma doença somática ou

corporal.<$FPorque a expressão illness (de ill=moléstia, mal, sofrimento é

traduzido como doença com o sentido literal dessa expressão, sofrimento,

padecimento.) O que pode fazer sentido na linguagem comum mas não é correto

em linguagem técnica da Medicina ou mesmo na linguagem educada de quem

sabe o que diz.>

Entretanto, as diferenças entre as patologias psiquiátricas e as corporais devem

ser conhecidas por quem as estude. O diagnóstico das patologias físicas é, em

105

geral, mais fácil que o diagnóstico psiquiátrico por causa das características das

enfermidades somáticas e orgânico-cerebrais.

As características das patologias corporais que tornam mais fácil sua identificação

são listadas a seguir. Podem ser destacadas três características essenciais das

patologias físicas que permitem ter bastante confiança em sua identificação e

tratamento:

= a) os sinais e sintomas das enfermidades somáticas, uma vez identificados e

descritos por um examinador, encontram razoável grau de concordância em sua

identificação em outros examinadores, avaliada em outras circunstâncias; e de

estabilidade quando se considera o grau de concordância de diagnósticos feitos pelo

mesmo examinador no mesmo paciente, examinado em momentos e situações

diferentes;

= b) as descrições fenomenológicas dos acontecimento patológicos de natureza

somática freqüentemente podem ser complementadas ou confirmadas por

indicadores biológicos, como radiografias, exames bioquímicos ou outros;

= c) as manifestações clínicas (sinais e sintomas) da patologia somática, em geral,

correspondem a alterações anatômicas ou fisiológicas mais ou menos definidas, r

localizáveis ou relacionáveis a uma estrutura topográfica ou função corporal;

= d) todas estas características permitem elaborar uma definição real daquela

patologia e é esta definição real que se confunde com seu diagnóstico.

Características das Enfermidades Psiquiátricas

@FIRSTPAR = Nas enfermidades psiquiátricas, por sua vez, o quadro é bastante

diferente em função de suas peculiaridades de suas manifestações clínicas,

podendo-se levantar muitas características que as diferenciam das patologias

corporais. Tais características das enfermidades psiquiátricas são:

106

= a) os sintomas das enfermidades psiquiátricas se manifestam como alterações

psicológicas e da conduta, muitas vezes difíceis de serem diferenciadas das

ocorrências não patológicas, principalmente por causa da grande margem de

variação da normalidade que existe nestas últimas e a extrema peculiaridade dos

comportamentos dos indivíduos humanos e sua grande margem de variação de

uma pessoa para outra e da mesma pessoa em circunstâncias diferentes;

= b) não se conhecem indicadores biológicos viáveis que sejam reconhecidos

como válidos para confirmar a ocorrência da maioria dos casos de enfermidade

psiquiátrica, isto é, as enfermidades psiquiátricas não se objetivam com facilidade;

= c) não há correspondência evidente entre as manifestações psicopatológicas e

alterações estruturais ou funcionais comprováveis, o que obscurece a identificação

da etiologia e o reconhecimento do mecanismo patogênico dos casos

psiquiátricos, ao contrário do que acontece na maioria das enfermidades

corporais;

= d) é raro que se possa passar da descrição à explicação no estudo clínico de

uma psicopatologia, raramente podendo-se construir uma definição real

comprovável da enfermidade psiquiátrica;

= e) as ocorrências psicopatológicas não implicam necessariamente em

sofrimento (no enfermo ou em outrem, nem sempre se manifestam por

comportamentos negativos, socialmente reprovados ou anti-sociais, ao contrário,

podem se manifestar (como acontece muito), como comportamentos altamente

aprovados (como em muitos pacientes com transtornos obsessivos-compulsivos,

por exemplo);

= f) é difícil estabelecer conexão temporal evidente entre o aparecimento das

manifestações clínicas psicopatológicas e um acontecimento ou situação a que se

possa atribuir sua etiologia.

107

Estas características específicas das entidades psicopatológicas originam as

dificuldades inerentes às condições clínicas que marcam muito

caracteristicamente as enfermidades psiquiátricas e, de certa forma, explicam as

dificuldades para sua definição, sobretudo quando são comparadas com as

enfermidades somáticas e as orgânico-cerebrais.

Deve-se ter presente que a referência a uma patologia “orgânica”consiste, na

verdade, em uma síntese da expressão orgãnico-cerebral. Na psiquiatria clássica,

indica uma referência a agressão, enfermidade ou lesão primária do encéfalo. Não

se refere a uma enfermidade orgânica no sentido de corporal. Nesta linguagem, as

estruturas corporais extra-cerebrais são denominadas de somáticas.

A expressão orgânico, pode ser empregada como sinônimo de estrutural, corporal

e como complementar de funcional.

Enfermabilidade

@A enfermabilidade, possibilidade de enfermar, é característica geral essencial de

todos os seres vivos, podendo o conceito ser estendido a todas as formas de

existência dotadas de organização estrutural dinâmica.

Todos os sistemas vivos estão sujeitos a enfermar, a apresentar uma patologia.

As condições de patologia devem ser reconhecidas como acidentes na existência

de quem as padece, ainda que possam ser condições transitórias ou

permanentes.

A vulnerabilidade à patologia, entendida como possibilidade de enfermar (no

sentido amplo e genérico de qualquer patologia) é chamada de enfermabilidade e

pode ser considerada como um atributo genérico da vida, uma característica

essencial dos seres vivos, como a reprodutibilidade da espécie e a auto-defesa da

vida e, por isto uma importante categoria do objeto da Medicina.

Algumas patologias manifestam a possibilidade do organismo responder ao

agente agressor ou perturbador com uma tentativa automática e dinâmica de 108

restabeler a homeostase comprometida, um exercício automático de

autoreparação. Noutras vezes, a patologia é um estado permanente, estável e

definitivo conseqüente à ação da noxa (agente nosogênico). As noções de

enfermidadee enfermabilidade só podem ser entendidas quando se define seu objeto, a

estrutura que passível de enfermar, de sofrer uma patologia.

A possibilidade de tornar-se enfermo, de apresentar alguma patologia

(enfermabilidade, no dizer de PEDRO LAIN-ENTRALGO, em El Estado de Enfermedad)

é, genericamente, uma propriedade <$FUma propriedade, no sentido aristotélico,

de ser característica essencial do ser em questão. > de quem tem saúde e,

especificamente, dos organismos ou sistemas biológicos.

De fato, todo organismo (ou, pode-se afirmar mais extensamente, todo sistema

vivo) está sujeito a enfermar e costuma apresentar enfermidades

(comprometimentos estruturais ou funcionais que perturbem seu desempenho e

lhe ocasionem algum dano). Muito embora, com o sentido de maior abrangência

que se pode atribuir a estes termos, há quem considere possível imaginar a

patologia e a vulnerabilidade à enfermidade como atributos de todas as estruturas

dinâmicas, como faz o próprio ENTRALGO. Na verdade, a enfermabilidade é uma

qualidade de todos os seres vivos, uma propriedade da matéria viva.

Há quem pense na patologia como expressão da perturbação de qualquer

estrutura dinâmica. O que parece resultar em um conceito exageradamente amplo

de enfermidade, moléstia, doença ou patologia; pois, conduziria (como, de fato,

conduz) a afirmar haver enfermidades de estruturas minerais, como as cristalinas

e nas organizações sociais.

O conceito de patologia social com o sentido de uma enfermidade de uma sociedade

ou coletividade, resulta dessa ideologia que pretende fazer crer as dificuldades da

sociedade como doenças e não, como são em realidade, problemas políticos.

109

Uma vez que se atribua enfermabilidade às estruturas cristalinas, poder-se-ia a

findar por atribuir o conceito de patologia à alteração de qualquer sistema físico

(como uma máquina), a qualquer sistema social (como uma organização

empresarial), a qualquer sistema lógico (como uma teoria). O que ultrapassa os

limites do absurdo.

A extensão de noções como doença.patologia, enfermidade (ou outros do mesmo

tipo) para mencionar desordens de quaisquer sistemas ou estruturas consiste num

erro. Ainda que não se deva imaginar isto para com as estruturas e sistemas

psicológicos.

Alcance dos Conceitos de Enfermidade e Enfermabilidade

Em verdade, aquilo que aqui está sendo chamado uma patologia, chame-se moléstia,

enfermidade, doença ou qualquer outra designação que possa ter alcance bem geral

de condição patologica, não é, não pode e nem deve ser entendida como um

transtorno da estabilidade estática ou dinâmica de qualquer organização ou

qualquer sistema não biológico, porque mesmo o senso comum tende a manter a

aplicação do conceito de patologia, moléstia ou enfermidade restrita às estruturas

vivas, aos sistemas biológicos.

De fato, desde do ponto de vista adotado aqui, os conceitos de patologia, patológico e

outros derivados ou análogos, como moléstia, enfermidade, mórbido, morbidez,

morbosidade, enfermabilidade, doença, devem ser aplicados restritamente às

perturbações da estrutura ou da dinâmica funcional dos sistemas vivos como

organismos individuais. Caso se procedesse de maneira diferente, e se

promovesse sua extensão a todos os sistemas e organizações, isto findaria por

comprometer sua comunicabilidade e obrigaria a criar um conceito novo para

expressar a perturbação de um sistema vivo, visto que ele seria indispensável

para a comunicação comum e, principalmente para a Medicina, a patologia geral

110

ou seus capítulos específicos. Porque não se pode imaginar incluir o diagnóstico e

tratamento médicos dos sistemas físicos, lógicos e sociais.

Considerando-se a patologia como ocorrência natural nos sistema vivos e restrita

a eles, podem-se identificar quatro níveis distintos de organização natural dos

sistemas vivos capazes de enfermar, e em cada um destes níveis, caracteriza-se

um tipo de enfermidade.

Os quatro tipos de estrutura que correspondem a quatro modalidades de sistemas

vivos capazes de enfermar:

a) perturbações patológicas funcionais ou estruturais das estruturas bióides, como

os vírus;

b) enfermidades dos vegetais (fitopatologia);

c) enfermidades dos animais (zoopatologia) e

d) enfermidades dos seres humanos (antropopatologia).

As patologias dos seres bióides e a fitopatologia parecem ser evidentes por si

mesmas como tipos essencialmente diferenciados de patologia. Contudo, talvez

fosse adequado empregar algum tempo para encarar as diferenças entre as

zoopatologias e as antropopatologias. Principalmente porque a concepção

reducionista biologicista supõe que ambas sejam idênticas.

Os fenômenos psicopatológicos, como tudo aquilo que é especificamente humano,

são acontecimentos simultaneamente naturais, sociais e, por isto, psicológicos.

Enfermidades que acometem os seres humanos, matam-nos, invalidam-nos ou

fazem-nos sofrer, e que podem ser referidas e explicadas como uma resposta

individual dos seus organismos individuais à ação danosa dos fatores

patogênicos, fizeram nascer a Medicina que se configura, desde sua origem mais

remota, como uma resposta social à patologia, que se expressa por sofrimento,

invalidez, ameaça à vida.111

A Medicina já era uma atividade social muitos séculos antes de estruturar uma

teoria social da saúde e da enfermidade. E este seu caráter social se ampliou

muitíssimo com sua transformação em instituição.

Como técnica e como atividade científica, a Medicina exige do médico uma teoria

cientificamente aceitável sobre as enfermidades.

A Medicina é uma profissão, é um exercício técnico (como aplicação científica) e é

uma atividade ética. Contudo, quando o significado do termo é ampliado, como

acontece muito na linguagem comum, ele pode se confundir com saúde, atividade

sanitária. E, com este sentido, também é uma instituição social.

O caráter individual e social da enfermidade, sua origem e conseqüências, faz que

a Medicina, por mais que seja praticada como atividade solitária na prática clínica

privada, seja sempre social; não só por envolver a pessoa enferma e sua rede de

relações, ou porque os fatores morbígenos são impossíveis explicar apenas como

individuais, mas porque corresponde a uma necessidade ao mesmo tempo

individual e coletiva, um procedimento a serviço de indivíduos, com implicação na

coletividade; uma necessidade social.

As perturbações patológicas que comprometem aptidões especificamente

humanas, como os sentimentos, inteligência, sociabilidade e, principalmente, as

aptidões simbólico-verbais, se manifestam como enfermidade essencialmente

humana, a enfermidade sócio-psicógena ou neurose humana, impossível de

acontecer em animais porque são de condições qualitativamente diversas de

qualquer patologia não humana, inclusive a neurose animal experimental.

Pois, as manifestações ansiosas típicas (ansiedade difusa, fobia, compulsão e

somatização) não parecem ter a mesma estrutura das manifestações histriônicas

(sejam exibições, conversões ou dissociações).

Muito menos os processos ansiosos esgotam todos os fenômenos neuróticos a

cujo conceito tradicionalmente estavam associados (insegurança, desconfiança,

112

desvalorização de si mesmo e muitos outros). Esta premissa põe em cheque

todas as tentativas de descrever ou explicar as enfermidades dos humanos (e

ainda mais as patologias psiquiátricas) a partir de um modelo animal. Porque as

experiências em animais podem, no máximo suscitar hipóteses a serem

investigadas; nunca explicações satisfatórias de todas as dimensões da

enfermidade humana.

Não obstante, também podem ocorrer outras formas de adoecer; como acontece

quando uma pessoa é atingida por enfermidades animais que são potencialmente

capazes de acometer também aos seres humanos (como as lesões traumáticas,

as infecções, em geral, as afecções carenciais, as neoplasias e muitas outras). No

entanto, mesmo nestas patologias (que podem, inclusive, ter sido contraída por

meio de vetores animais), a condição humana atribui características

qualitativamente novas à maneira animal de enfermar.

O tipo de enfermidade caracteristicamente humano de enfermar é a enfermidade

psicogênica produzida por acontecimentos ou situações patogênicas

especificamente humanas: as neuroses.

Quando os seres humanos padecem de enfermidades que também podem

acometer animais, estas se apresentam com características clínicas diversas de

sua apresentação original nos não humanos. As enfermidades que afetam

homens e animais ocasionam fenômenos diferentes nestes dois grupos de seres

enfermos porque a condição humana influi na forma de enfermar, principalmente

em sua maneira de evoluir. Fato este que se denomina hominização da patologia

biógena; da mesma maneira, a enfermabilidade, a vulnerabilidade ou a resistência

para a doença, herdada dos antepassados brutos dos homens, apresenta nestes

um conteúdo humano, qualitativamente diverso daquele que apresentava e

apresenta nos animais.

Uma lesão da pele produzida pela ação patogênica de um fungo, uma fratura ou

uma chaga de leishmaniose, são patologias que podem acometer homens e

113

animais, produzindo neles lesões estruturalmente muito semelhantes, se não,

idênticas. Contudo, como as enfermidades humanas são mais, muito mais

importantes que os danos estruturais ou funcionais que ocasionam, as noções

sobre as enfermidades incluem suas repercussões e reverberações psicológicas e

sociais.

Por isto, tais afecções se apresentam-se nos seres humanos, como enfermidades

com características inteiramente novas, em relação às que se manifestam nos

seres brutos; embora as lesões tissulares possam parecer (ou realmente, ser)

completamente idênticas do ponto de vista anatômico-estrutural e compartilhem

alguns sintomas funcionais idênticos. Isto acontece por que estas patologia têm

repercussões psicológicas e sociais que ultrapassam os limites da individualidade

em sua origem e em suas conseqüências.

Sabe-se que os animais não chegam a padecer espontaneamente de certas

patologias que costumam acometer os seres humanos, como arterioesclerose,

asma, hipertensão arterial, doenças reumáticas ou alérgicas e de outras

patologias que afetam os seres humanos. Para os criadores de animais, parece

certo que a obesidade e certos desvios de inclinação da conduta sexual só

acontecem em animais domesticados. Não existem quando eles vivem em seu

estado natural, em seu habitat.

Restando por descobrir se isto se deve a frustrações determinadas pelo estado de

cativeiro ou se seriam ocasionadas pela convivência com os humanos.

No entanto, apenas o homem padece e pode ter agravada sua patologia pelo

medo que as conseqüências de uma enfermidade (como costuma acontecer

quando se cultiva a expectativa tenebrosa de sua evolução) lhe desperta.

O ser humano também é o único ser vivo que pode enfermar a partir da

decodificação de uma mensagem simbólica que pode, inclusive ser criada por ele

próprio, como acontece nas patologia induzidas por auto ou pela hétero-sugestão

114

(como se dá nos casos de transtornos funcionais ou lesões estruturais induzidas

por sugestão hipnótica).

Definição de Enfermidade Humana

LAIN-ENTRALGO (em Antropologia Médica <$Fpp. 224 e 225)> formula três

definições complementares para patologia humana que são reproduzidas a seguir

por causa de sua importância para este estudo. Tais definições, apesar de

elaboradas a partir de diferentes pontos de vista , são inteiramente convergentes e

determinam uma configuração lógica da patologia bastante compatível com a idéia

que se tem dela atualmente.

Estas três definições complementares do que seria o essencial na patologia

humana se desenvolve em diferentes níveis definidores que são:

a) a enfermidade humana é um modo aflitivo e anômalo do viver pessoal,

refletindo uma alteração psicorgânica do corpo; alteração por causa da qual,

padecem as funções e ações vitais do indivíduo afetado e reação em virtude da

qual o enfermo retorna ao estado de saúde (enfermidade curável), morre

(enfermidade letal) ou fica com uma deficiência vital permanente (enfermidade

cicatricial).

b) a enfermidade humana é um modo aflitivo e anômalo de realização para a vida

do homem, que pode ser consciente ou inconscientemente determinada ou

condicionada por uma alteração patológica do corpo e alguma peculiaridade

nosógena do ambiente cósmico e social.

c) a enfermidade humana, mesmo naquilo que tem de estrutural e lesional

anatômico, reflete sempre a natureza biopsicossocial dos seres humanos, não

apenas do ponto de vista da originalidade de suas manifestações clínicas

(sintomas, curso), mas de sua etio-patogenia e, de forma muito importante, de

suas implicações existenciais e conseqüências sociais.

115

Sobretudo esta terceira definição aponta para o caráter qualitativamente distinto

das enfermidades humanas em relação aos fenômenos patológicos que

acometem os animais, ainda que suas histórias naturais sejam idênticas.

Diferença entre o Patológico e o Não-Patológico

Na Medicina, os fenômenos patológicos e não-patológicos apresentam, cada um

por sua vez, características que permitem que sejam diferenciados por

procedimentos práticos e teóricos a partir de características de sua realidade,

ainda que sua denominação e, principalmente, sua valoração, sejam construções

humanas.

A diferença entre o que é patológico e o que não o é quase sempre é obviamente

qualitativa nos comprometimentos patológicos estruturais e, por sua vez, quase

sempre quantitativa nas doenças ou moléstias chamadas sistêmicas ou funcionais

e nas perturbações do desenvolvimento.

No entanto, é importante que se tenha presente que a diferença verificada entre o

acontecimento patológico e o fenômeno não-patológico, decorre de uma

perspectiva rigorosamente médica. Em primeiro lugar, porque apenas se

consideram o patológico e o não patológico como duas qualidades diferentes de

duas categorias diversas, na medida em que estas diferenças se refletem na

saúde de alguém. O que, em última análise, é o interesse essencial da Medicina

A diferenciação entre o patológico e o não patológico haverá de ser ignorada,

pode ser desprezível ou, até, inexistir, quando observada a partir de um ponto de

vista comportamental, psicológico, antropológico, sociológico, geográfico,

matemático ou qualquer outro que não seja médico.

No entanto, sequer haveria Medicina se sua atividade não fosse edificada a partir

desta diferenciação, para ela essencial, do patológico e do que não é. Isto porque

a Medicina surgiu, se desenvolveu e tem sido sempre o domínio da atividade

social a quem a coletividade incumbe de evitar, afastar ou minorar a influência

116

deletéria que a patologia e os fatores patogênicos exercem sobre o seres

humanos e seus sistemas sociais.

A Medicina, desde sua origem na magia, sempre existiu para combater os danos

ocasionados pelas patologias principalmente no seres humanos. <$FEm geral, os

investimentos feitos na Veterinária objetivam minimizar ou afastar os efeitos

nefastos das enfermidades animais nos seres humanos.> Fora do âmbito dos

interesses da Medicina, é perfeitamente possível que nunca ou quase nunca seja

necessário ou importante identificar se uma determinada ocorrência pessoal

corresponde a uma patologia ou não corresponda a uma enfermidade.

Decidir se uma variação estrutural, funcional ou comportamental é patológica ou

não, é atividade não exclusiva, mas essencialmente médica. Pois, as noções de

patologia, enfermidade, enfermo não têm sentido ou mobilizam interesse fora da

atividade médica. No entanto, para o trabalho médico, cuja essência e principal

finalidade é a terapêutica, é absolutamente insuficiente saber que uma pessoa

apresenta uma patologia ou apenas conhecer sua denominação; porque, do ponto

de vista médico não basta reconhecer ou saber que alguém está enfermo, é

necessário saber qual a moléstia que o afeta e saber explicar esta patologia.

Para cumprir as finalidades essenciais da Medicina (prevenir, diagnosticar, tratar e

reabilitar), o médico precisa saber reconhecer a enfermidade que afeta o paciente;

deve conhecer sua explicação mais plausível, ter idéia de seus condicionantes,

mecanismos e evolução provável para utilizar, se puder, algum recurso técnico

para evitá-la, tratá-la ou minorar seus efeitos nefastos.

O reconhecimento da enfermidade, o diagnóstico médico, é o primeiro momento

de seu tratamento. Por isto, diagnosticar deve ser a preocupação fundamental do

médico. O bom diagnóstico é premissa básica de tratamento eficaz. O doentes

também se preocupam com o diagnóstico, mas com motivação diferente. Sabe-se

que as pessoas enfermas costumam se preocupar mais com o seu prognóstico

que com o diagnóstico. E, quando se preocupam com o diagnóstico e indagam por

117

ele, é pelo que ele tem de prognóstico ou de agente determinante de uma

terapêutica. Em geral, mesmo quando bem informados e instruídos, os pacientes

não se interessam pelo diagnóstico como elaboração cognitiva, como construção

lógica do conhecimento, mas com o que o diagnóstico significa como previsão do

futuro e da evolução da enfermidade e quais serão as medidas terapêuticas que

irão determinar, sobretudo seus custos (em dinheiro, em comodidade, em

incapacidade, em sofrimento, em sacrifício estético). O que demonstra que as

noções de prognóstico e terapêutica, implícitas no diagnóstico são diferentes para

o médico e para o paciente.

A diferenciação teórica e prática da patologia e da higidez, interessa a numerosos

ramos do conhecimento e influi em muitos campos da atividade, embora possa

interessar muito pouco ou nada para outros. Separar o patológico e o não-

patológico não interessa apenas a um doente, a quem sofre uma enfermidade,

seus amigos e familiares. Interessa sobretudo à psicologia e à psicopatologia ou à

Medicina; interessa também à sociologia, à fisiologia, à antropologia, à filosofia, ao

direito, à ciência política e a muitas outras dimensões do conhecimento científico e

de sua aplicações práticas, das quais se serve e para as quais contribui.

Os critérios e os procedimentos para distinguir e reconhecer os fenômenos

patológicos compõem o núcleo do interesse profissional dos médicos,

enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais, juristas, administradores, professores

e muitos outros. Interessa, igualmente, ao labor diário inúmeras pessoas comuns,

sendo certo que interfere, mais ou menos poderosamente, na vida daqueles que

são objeto de um diagnóstico psiquiátrico. Contudo, para muitas áreas de

interesse, o diagnóstico de uma entidade patológica pode não motivar qualquer

interesse especial.

O processo lógico de reconhecer uma enfermidade em um enfermo a partir de

suas características clínicas (sintomas, resultados dos exames e outros dados), é

exatamente o que se denomina diagnóstico médico, elemento característico do

118

chamado método clínico que vem tipificando a medicina desde o século dezoito.

E, em cada momento do conhecimento sobre uma enfermidade, seu diagnóstico

informa diferentemente sobre ela. Pode ser meramente descritivo ou explicativo.

O significado social da tarefa de diagnosticar, com o sentido específico de

distinguir, na teoria e na prática, o que é patológico daquilo que não o é, na

realidade do paciente que padece, parece ser tão evidente por si mesmo que

estas afirmativas parecem inúteis e redundantes.

Diferentemente do que acontece na Medicina Geral, onde o problema de

diferenciar o patológico do não-patológico é mais uma questão de sensibilidade

dos instrumentos diagnósticos, ainda que procedimentos clínicos; na Psiquiatria,

de uma maneira quase surrealista, a questão se inicia na necessidade de

comprovar a patologicidade dos fenômenos patológicos. E só depois se coloca a

questão da fiabilidade e da validade dos procedimentos diagnósticos, dos recursos

para se elaborar o diagnóstico específico daquele caso concreto no qual foi

aplicado o procedimento diagnosticador.

Contudo, tudo isto é muito dificultado porque existe uma atitude ideológica de

negar importância ao diagnóstico psiquiátrico, fenômeno que se dá mesmo entre

muitos que exercem legalmente a Medicina mas praticam ilegalmente a psicologia,

associada a uma tendência cética de afirmar o patológico em psiquiatria é uma

característica indistinguível por si mesma.

A delimitação entre o que é patológico e o não-patológico, mesmo que restrita

exclusivamente ao aspecto conceitual, não é pacífica. Ao contrário, provoca

numerosas e muito acirradas controvérsias em todos os lugares onde se trave

esta discussão, porque seu alcance se prolonga para muito além do terreno

técnico. Muito provavelmente, uma das razões pela qual a questão da patologia

psiquiátrica mobilize muito mais influências psicológicas, porque o medo da

insanidade mental em muitas culturas humanas (inclusive na nossa é é superado

pelo medo da morte); a segunda se refere às tensões ideológicas que esta

119

questão mobiliza. Estes dois componentes fornecem muito material para este

conflito.

No entanto, só raramente, tais conflitos se radicam exclusivamente na diversidade

de opiniões ou diferenças de convicções restritas a qualquer um destes dois

conceitos ou de suas relações recíprocas.

Freqüentemente, as discussões sobre o diagnóstico psiquiátrico, sequer se

referem ao objeto estudado de um paciente específico. Na prática, é muito mais

comum que as discussões sobre diagnóstico psiquiátrico ou enfermidade psíquica

se resumam a generalizações amplas, resultantes de idéias distantes do problema

específico, quase sempre se limitando a crenças ou opiniões sobre questões

análogas ou semelhantes. Contudo, não se deve desprezar a possibilidade de que

ao menos algumas destas discussões sejam ocasionadas por outros interesses,

alheios aos interesses do paciente e dos discutidores, resultando de preconceitos

e de conflitos teóricos sobre a visão do mundo e do homem. Pois, bem mais

comum, é que se originem em interesses mercantis contraditórios e na

concorrência, na disputa do mercado prestador de serviços terapêuticos.

Simplesmente isto e nada mais. Prosaico e simples, mas verdadeiro.

Qualidades ou Classes de Enfermidade

A noção de patologia não é uma categoria homogênea, apesar de tudo o que está

contido nela ocasionar algum tipo de dano para seu portador. De fato,

anteriormente já se afirmou que sob a designação geral de patologia se abrigam

três grandes tipos de fenômenos diferenciáveis pelo tipo de dano que ocasionam a

quem for afetado por eles. A divisão das ocorrências patológicas em classes, em

função do tipo de dano que acarretem, foi um passo muito valioso no

conhecimento das patologias como fenômenos naturais.

Ainda no século passado, LETAMENDI, <$FLetamendi, apud Lain-Entralgo, P., El

Estado de Enfermedad, Ed. Moneda e Credito, Madrid, 1968, pg. 49.> depois de

120

estudar cuidadosamente o significado da expressão enfermidade em numerososas

línguas, verificou que desde muito remotamente três sentidos complementares

estão abrangidos pelo conceito de patologia, correspondendo a três tipos de

condições patológicas humanas que correspondem ao tipo de dano que

ocasionam, como já se afirmou.

Estes três sentidos configuram três classes diferentes de fenômenos patológicos

que podem ser identificados nos seres humanos:

= a) Impedimentos causados por danos negativos defeito ou seqüela

estrutural, representados por deficiência funcional, seqüela de uma patologia

anterior, agenesia, deficiência, deformação congênita ou adquirida ou, ainda,

mutilação. Emprega-se com o mesmo sentido que têm as palavras asthmnéia, em

grego, infermitas,em latim e enfermity, em inglês. Em Psiquiatria, este tipo de

patologia se manifesta nos estados deficitários globais (deficiência ou retardo

mental) ou parciais (défites específicos e transtornos da personalidade, seqüelas

de lesões cerebrais), transitórios ou permanentes (incluindo os transtornos da

personalidade que possam ser considerados como estados deficitários

particulares da afetividade e da vontade).

= b) Estados patológicos dinâmicos ocasionados por danos positivos, que

podem ser descritos como desenvolvimentos ou processos ativos de desarmonia e

desequilíbrio entre as funções, estruturas ou faculdades do organismo vivo, (do qual se pode

prever a evolução e, ao menos, supor que haja uma etiopatogenia); aqui cabe

exatamente, com todo o rigor, o emprego da expressão doença em seu sentido

estrito; como o resultado da ruptura da homeostase organísmica que pode ser

devida a falência ou insuficiência da capacidade adaptativa, estando sempre

presente algum esforço de auto-reparação; tal estado mórbido pode ser transitório

ou permanente e mais ou menos invalidante. (Traduz o mesmo significado que a

palavra grega nosos, a latina, morbus e a inglesa, disease). Em Psiquiatria, este tipo de

patologia se manifesta nas doenças orgânico-cerebrais, nas doenças sintomáticas

121

e nas doenças exo-tóxicas, nas esquizopatias, nas timopatias e nas doenças

ansiosas de etiologia metabólica.

= c) Estados de dano sentido, de experiência subjetiva ou objetiva de mal-estar, tensão,

dor ou sofrimento desproporcionados às circunstâncias; o que inclui o sentir-se doente. (O

que corresponde exatamente ao significado das palavras pathos, em grego, dolentia,

em latim e illness, em inglês). Em Psiquiatria, este tipo de patologia corresponde

aos transtornos psicogênicos agudos ou crônicos; enfermidades tipicamente

humanas.

Esta contribuição de LETAMENDI, estabelecendo os limites das diferentes classes

de patologia, é importante e atual, principalmente porque esses devem ser

considerados como os grandes marcos definidores dos limites dos fenômenos e

processos patológicos e, simultaneamente, as três grandes classes de possíveis

de patologia, as três maneiras pelas quais uma enfermidade pode afetar uma

pessoa.

Conhecendo estes três tipos qualitativamente diferentes de estruturas patológicas,

torna-se relativamente muito mais fácil elaborar um diagnóstico clínico, facilitando

sobretudo o diagnóstico da patologia psiquiátrica. Posto que, todo diagnóstico

psiquiátrico deve situar o quadro diagnosticado em uma destas grandes categorias

do patológico. Além disto, facilita os procedimentos destinados a acompanhar os

efeitos da terapêutica e permite compreender melhor como se sente a pessoa

afetada pela patologia.

Porque, ao contrário do que parecem pensar os reducionistas do doentismo ou do

doencismo, não há qualquer contradição, incompatibilidade ou antagonismo entre

explicar a doença e compreender o doente que padece com ela. <$FEsta falsa

dicotomia, como muitíssimas outras que infestam nossa cultura, em seu pseudo-

anatagonismo, é mais uma expressão da estupidez humana que de sua

inteligência.>

122

No caso específico das patologias psiquiátricas existe ainda o caso das

perturbações da conduta social que podem ser consideradas como uma patologia

resultante de uma perturbação específica do desenvolvimento do psiquismo

(deficiência da capacidade de amar ou da capacidade de adquirir ou desenvolver

a socialização), mas pode representar uma forma particular de conduta

voluntariamente estruturada e, portanto, sem que se possa caracterizar como

patológica.

Perturbações da Conduta Social

Há quem acredite em uma quarta classe qualitativamente diferenciada de

condição patológica, esta especificamente humana. Os desvios da conduta social.

Desde a introdução da categoria diagnóstica loucura moral por PRITCHAR, foi

acrescentado mais um componente elementar deste conceito de patologia, que se

acrescentou aos três tipos patológicos genéricos identificados por LETAMENDI. O

conceito de desvio da conduta social foi denominado sucessivamente de loucura moral,

personalidade psicopática e sociopatia; hoje, denomina-se transtorno da conduta em crianças

e transtorno da personalidade, nos adultos.

A noção de desvio social ou desvio da conduta social, quando empregada para designar

uma patologia é extremamente controvertida porque, muito provavelmente,

incompatível com o conceito clássico de patologia.

Este conceito está incluído, inclusive, na caracterização como patológicas de

condutas de impor sofrimento a outrem, deliberada e intencionalmente, incluída

nos conceitos de personalidade psicopática, sociopatia e transtorno anti-social da

personalidade. No entanto, ao invés de considerar estes fenômenos como uma

nova grande categoria de patologia, parece muito mais correto e adequado,

considerá-los como deficiências específicas do desenvolvimento de duas funções

comportamentais especificamente humanas: a capacidade de experimentar

sentimentos e a vontade materializada na capacidade de executar atos

voluntários.123

Homem Fragmentado e Homem Integral

Desde os conflitos entre os hipocráticos e o cnídicos na Grécia, entre Celso e

Galeno em Roma e, na Idade Media, entre Paracelso e os escolásticos, trava-se

uma luta ideológica entre os adeptos de uma concepção integral e monista do

homem e os que sustentam uma visão fragmentária, iniciada divisão dualista:

corpo e alma.

Uma das deformações mais importantes da ontologia médica e que mais

repercutem na prática médica como atividade humana, científica e social, é a

concepção do homem fragmentado em seus componentes mais elementares

(aparelhos e sistema, tipos de patologia, situação social). Historicamente, a

Psicologia a Psicopatologia desempenharam importante papel na sintetização da

visão do homem no interior da Medicina.

Atualmente há uma tendência mundial predominante a sustentar a tese monista

da integralidade dop ser humano sadio ou enfermo. Isto, no entanto oferece um

defeito, como se trata de uma posição maciçamente, quase exclusiva, aqueles

que não concordam com ela, fingem aceitá-la e, apenas na prática concreta,

assumem sua divergência.

Uma das manifestações práticas que comprovam esta assertiva, é a ação dos

dualistas modernos que sustentam uma posição nominalmente holística, mas, na

verdade, dualista e espiritualista.

ONTOLOGIA DA PSICOLOGIA E DA PSICOPATOLOGIA

Já se viu como e porquê a definição do objeto é essencial para a ciência. De fato,

a caracterização do o-quê fazer ou a circunscrição dos limites de um campo de

interesse ou de trabalho constitui o passo fundamental que alicerça qualquer

atividade, de qualquer ação voluntária e inteligente, sobretudo de uma atividade

de investigação científica. Nas ciências factuais, a definição do objeto obriga, ao

menos, a uma clara circunscrição daquele segmento do campo da natureza, da

124

sociedade ou do homem que é o objeto das cogitações daquela atividade

científica; assim como se obriga que este objeto seja real.

Muito mais que qualquer outro ramo do conhecimento da natureza ou do homem,

a subjetividade humana sempre foi terreno fértil para o cultivo de todas as

ideologias e superstições. Não apenas hoje, mas ao longo da história, o estudo da

psicologia sempre foi dificultado pelas implicações ideológicas envolvidas no

conhecimento de seu objeto como fato real e cognoscível. O conhecimento da

psicologia, desde a definição de seu objeto, quer como estudo científico da

atividade psíquica, quer como investigação científica do comportamento, tende a

comprometer o domínio ideológico exercido através da superstição e a dificultar os

procedimentos de controle social implícito na ignorância ou na dominação

ideológica.

Até há um século, somente em raros momentos da história da humanidade, foi

possível mencionar, estudar ou discutir publicamente o caráter natural da atividade

psíquica, sem que isso impusesse um risco mais ou menos grave para quem o

ousasse. Porque a vida subjetiva era considerada a expressão ou um atributo da

alma e esta, objeto da teologia. E a teologia era considerada como propriedade da

religião oficial. A mesma religião que decidia o que era a verdade ou o erro, o justo

e o injusto, o pecado e a virtude.

Para entender isto, deve-se atentar a evolução do conceito de psicologia como

termo científico, desde sua origem até aos dias atuais.

Os antigos denominavam psicologia ao estudo das manifestações da subjetividade,

da vida interior. A mais antiga exposição sistemática que se conhece sobre os

fenômenos psíquicos, se deve a ARISTÓTELES (384-322 A.C), no livro “Sobre a

Alma”. A palavra psicologia está impregnada deste significado original que se

assemelha ao do senso-comum.

125

O emprego da expressão psicologia como termo científico, com o sentido de estudo

sistemático do comportamento, incluindo os fenômenos psíquicos e a conduta, foi feito pela

primeira vez por RUDOLF GOECKEL, em 1590. Após, foi usado por CASMANN,

em 1594, e por CHRISTIAN WOLFF, em 1532 e 1534. KANT voltou a utilizar a

expressão psicologia, com o mesmo significado, no final do século XVIII; e, desde

então, seu emprego se generalizou.

Atualmente, o vocábulo psicologia costuma ser usado com quatro significações

diferentes:

1 - no vocabulário quotidiano, como é utilizado pelas pessoas em geral em seu

dia-a-dia, tem o sentido de manifestação subjetiva do comportamento;

2 - pode ser empregado o termo como designação de uma profissão dos psicólogos<D>,

o que-fazer e a corporação dos profissionais psicólogos;

3 - como ciência, a Psicologia-ciência, ramo da atividade científica que estuda do

comportamento<D>, buscando as leis que regem as manifestações subjetivas (os

fenômenos psíquicos) e objetivas (a conduta); e, finalmente,

4 - estudo científico da conduta (restringindo-se às manifestações objetivas).

Cada um destes significados se refere a um sentido inteiramente diverso para a

palavra psicologia,e estes sentidos não devem ser confundidos. Porque, quando

estes significados são confundidos, o que acontece freqüentemente, isso dá

margem a muito desentendimento desnecessário e ocioso. Psicologia, no sentido

em que o vocábulo é utilizado no dia-a-dia, como mundo subjetivo, não suscita

explicação maior; refere-se às diversas expressões, aos diferentes conteúdos e à

dinâmica da vida subjetiva; constituindo-se de manifestações naturais e

aprendidas.

Mesmo aprioristicamente, qualquer pessoa, com alguma instrução, não tem

dificuldade para distinguir fenômenos psicológicos, como as sensações, os

126

sonhos, as recordações, dos demais aspectos da personalidade, do organismo, da

vida ou da natureza. O campo da atuação profissional dos psicólogos está definido

em lei, podendo seu âmbito diferir mais ou menos na legislação de cada país,

embora se saiba que utilizar a mesma palavra para coisas distintas, a profissão e

a ciência, dá margem a muita ambigüidade e confusão desnecessárias. No Brasil,

a legislação faculta aos profissionais da psicologia atuar privilegiadamente, tendo

como objeto as perturbações do desenvolvimento e ou do ajustamento, através da

utilização de meios e técnicas psicológicas. Mas não lhes atribui, nem lhes poderia

atribuir o monopólio da psicologia-ciência, como não atribui aos que se graduam

em matemática o monopólio da aritmética, da álgebra, da geometria.

No que diz respeito à Psicologia-ciência, estabelecer claramente a circunscrição

de seu objeto não é tão simples por diversas razões: a conotação ideológica

implícita, sua pequena tradição como disciplina científica (pouco mais de um

século), a herança do longo passado especulativo-supersticioso e subjetivista.

Como se define a Psicologia como estudo científico do comportamento, adiante

busca-se estudar os limites do objeto da Psicologia-ciência, iniciando-se pela

delimitação dos elementos descritivos contidos no conceito de comportamento.

Independente das denominações que assumam, existe duas abordagens

filosóficas opostas para encarar o estudo da psicologia: uma abordagem idealista-

subjetivista e uma abordagem materialista.

As abordagens idealistas da psicologia resultaram nas psicologias dualistas

chamadas genericamente mentalistas, caracterizadas por considerarem a mente

como algo separado do corpo, da estrutura somática do organismo. A psicologia

mentalista se resume a promover uma descrição dos fenômenos psíquicos e dos

estados anímicos, às vezes, buvcando alguma eventual relação com as condições

somáticas.

Por sua vez, as abordagens filosóficas naturalistas (ou materialistas) da psicologia

apresentou duas tendências principais: uma mecanicista (positivista, condutista ou

127

behavourista e neo-behavourista) e outra dinâmica ou dialética (na qual se situa a

psicobiologia). A psicologia comportamental, behavourista ou condutista já

representou um esfôrço de cientifização; tem como objetivo promover a descrição

e a predição de condutas observáveis. Num segundo momento da evolução da

abordagem materialista, a psicobiologia e a psicologia dialética representaram um

avanço em relação ao condutismo positivista, pois pretendem descrever, explicar

e prever (por meio da descoberta das leis específicas que regem os

comportamentos).

Enquanto as psicologias mentalistas adotam uma metodologia introspectiva e

subjetivista, utilizando conceitos não científicos porque se referem a coisas

inobserváveis (tais como alma, super-ego, inconsciente), as psicologias

naturalistas se atêm a uma gnosiologia realista e lida com os elementos

constatáveis sensorialmente na realidade (coisas reais). O ponto mais elevedo da

gnosiologia realista consiste em explicar os fenômenos estudados, como todod os

outros fenômenos naturais, por meio da descoberta das leis a que estiverem

submetidos.

Adiante, quando se tratar das relações entre a vida subjetiva e os fenômenos

objetivos, este tema deverá ser retomado.

Em resumo: do ponto de vista ontológico, existem três grandes grupos de escolas

de psicologia: as mentalistas (da psicologia clássica e psicoanálise), as

condutistas (e neo-condutistas) e as psicobiologistas que correspondem a três

maneiras basicamente diferentes de encarar o objeto da psicologia.

Uma apreciação muito importante sobre a ontologia da psicologia é feita no livro

de Mário Bunge sobre Epistemologia que deve ser leitura obrigatória por todos

que se interessam por este assunto.

128

Características Gerais dos Comportamentos Humanos

@FIRSTPAR = Os comportamentos humanos podem ser caracterizados por uma

série de atributos essenciais que permitem sua delimitação científica e, com isto, o

cumprimento do requisito de especificidade da ciência.

Algumas características são comuns a todas as manifestações comportamentais

humanas, sejam patológicas ou não; por isto, podem ser empregadas para

circunscrever os elementos tidos como essenciais deste conceito desde que se

lhe reconheçam ser essenciais.

Em dois trabalhos anteriores do autor (Fundamentos de Psicopatologia<D>, páginas 9 a

13 e também O Diagnóstico Psiquiátrico<D>, páginas 97 a 101), estas características

são propostas como passo inicial e fundamental para o estudo da Psicologia e da

Psicopatologia porque lhe parece muito difícil (senão impossível) estudar uma

coisa sem conhecer sua identidade ontológica.

As características mais gerais essenciais do comportamento humano podem ser

resumidas nas seguintes assertivas:

@DEF2 = a) Os fenômenos psíquicos (ou os fenômenos do comportamento) se

manifestam em uma pessoa real.

A psicologia estuda o comportamento real de pessoas reais, vivendo sua

existência no mundo real e em interação com seu ambiente físico e social. O

estudo “psicológico”de personagens de qualquer manifestação artística, de mitos ou

de lendas, é sempre inconclusivo e insuficiente como material de raciocínio

científico porque não atendem a esta exigência mínima para configurar o objeto de

investigação psicológica ou psicopatológica. Os personagens apenas ilustram

129

concepções de seus autores sobre o homem e sua existência no mundo, não tem

vida real ou existência objetiva.

Quando se diz que um personagem de literatura (ou de qualquer outro tipo de

manifestação artística) apresenta uma patologia, isto não significa que se trata de

uma pessoa real com uma patologia real também, mas sua representação.

O valioso acervo cultural e artístico representado pelos mitos, pelas lendas e pelas

obras de arte, tem servido como elemento inspirador de investigações e achados

significativos na Psicologia e em outras ciências mas, estes, não devem ser

confundidos com o conhecimento psicológico cientificamente elaborado, podendo,

no máximo, ilustrá-lo. Seus personagens não podem ser encarados como se

fossem pessoas e, por isto, examinados e diagnosticados.

b) A conduta é a dimensão o objetiva da atividade psicológica (da subjetividade) e

ambas se completam no comportamento.

A atividade psíquica, embora se constitua de manifestações subjetivas, é

condicionada pela existência objetiva e se expressa objetivamente na conduta. A

conduta é um fenômeno objetivo. Porque, tanto os conteúdos interiores, quanto

grande parte das ações independem do conhecimento, da vontade ou de qualquer

outro atributo subjetivo. Os comportamentos integram em uma unidade dialética

os fatores subjetivos (o psiquismo) e objetivos (a conduta).

Em sentido estrito, tal como esta sendo usado aqui, se denomina atividade ao

conjunto das condutas conscientes e voluntárias; e psiquismo a todas as

manifestações subjetivas do comportamento, entendido como unidade das

dimensöes objetivas e subjetivas da existência. Conduta e psiquismo, no entanto,

não são fenômenos isolados ou isoláveis. Embora não sendo idênticos, são

complementares e constituem um todo orgânico, separável apenas pela

abstração.

130

A capacidade de avaliar e redirecionar o comportamento ultrapassa os limites do

fenômeno fisiológico e a individualidade não pode ser reduzida a uma fração do

coletivo. Por isto, a Psicologia não pode ser reduzida à Fisiologia nem à

Sociologia, embora os fatores fisiológicos e sociais sejam os dois fundamentos

essenciais e necessários de toda manifestação psíquica.

O grau de consciência de uma pessoa é variável e depende das relações que se

estabelecem em sua atividade, pois, a consciência é premissa e resultado da

atividade.

Por isto, uma conduta só se torna atividade (conduta deliberada e consciente) ao

determinar e sofrer influência do auto-conhecimento. A conduta humana está

vinculada ao grau de consciência que a determina. Ao exercer sua atividade, o

homem desenvolve sua consciência, o que lhe permite aperfeiçoar sua conduta. O

desenvolvimento do psiquismo e da atividade se influenciam mutua e

constantemente.

O desenvolvimento psíquico determina transformação da conduta que não se

resume apenas a seus aspectos exteriores. Ao se transformarem, psiquismo e

conduta, possibilita-se, ao menos em tese, a transformação da pessoa.

Este processo de desenvolvimento do psiquismo pode ser entendido em termos

filogenéticos (o desenvolvimento da espécie) e ontogenéticos (do indivíduo), como

resultado de um processo biológico-individual ou social.

Considerando estas vertentes e procurando fugir a todas as falsas dicotomias

contidas nestes pontos de vista parciais, a conduta humana deve ser entendida

como radicada em dois pilares inseparáveis: uma matriz biológica em relação com

a atmosfera social. Por isto, o biológico, o social e o psicológico (resultantes deles)

são indispensáveis para entender a realidade humana.

A psicologia científica tem por superada a tese que pretende o psiquismo humano

reduzido a função fisiológica ou unicamente determinado por estímulos internos

131

(somáticos ou psíquicos). Igualmente, também se deve recusar as hipóteses que

pretendem o comportamento humano como resultante unicamente de

condicionamentos sociais. Pois, com esta suposição se erige a doutrina do

homem passivo e plasmável em função de condicionamentos advindos de

estímulos externos. Ao contrário destas posições, a Psicologia científica estuda o

ser humano em sua inteireza e o psiquismo em seu conjunto. Fundamentam-se no

reconhecimento da unidade dos fatores biológicos e sociais, da consciência e da

conduta, do psíquico e do somático, do subjetivo e do objetivo, do indivíduo e do

ambiente, da pessoa e da sociedade.

Objetividade e Objetivismo, Subjetividade e Subjetivismo em Psicologia

e Psicopatologia.

Quando se menciona um fato objetivo a referência diz respeito a algo que se

passa no espaço exterior em relação à consciência dessa pessoa. Quando se

refere uma experiência subjetiva, pretende-se falar sobre o que se processa na

consciência da pessoa: uma emoção, uma fantasia, uma lembrança.

A psicologia clássica era essencialmente subjetivista, subestimando a

objetividade como instrumento e requisito essencial para o conhecimento

científico. No sèculo XIX, com o desenvolvimento das ciências naturais, surgiu

uma corrente do pensamento - o positivismo - que se constituiu na mais vigorosa

antagonista do subjetivismo. O enfoque positivista negava qualquer importância à

introspecção. Ao recusar qualquer valor às manifestações subjetivas, enquanto

instrumentos de conhecimento científico, limitou o alcance de suas possibilidades

de conhecer e caiu em um desvio metodológico que pode ser denominado de

objetivista.

Diversas correntes do conhecimento psicológico e psicopatológico se pretendem

objetivas porque dão primazia à objetividade. E se fundamentam na precedência

tempora do objetivo e no fato do subjetivo se originar no objetivo. No entanto,

quando minimizam ou negam os procedimentos subjetivos, passam a ser

132

objetivistas. A melhor doutrina psicológica é aquela que defende que o psiquismo

não se destina a separar o interior do exterior, o mundo interno do externo, nem se

constitui em realidade independente da realidade interna e externa; mas que se

destina, sobretudo, a estabelecer a ligação da realidade interna com a externa, em

permanente interação.

Entende-se por objetividade, como exigência da ciência que se concretiza no

recurso de estudar o mundo e as coisas que nele existem a partir de sua realidade

concreta, objetiva, em tudo independente do observador. A este processo de

investigação, opõe-se formalmente a subjetividade que consiste em valorizar o

reflexo do fato estudado no interior de quem o estuda.

Denomina-se objetivismo ao emprego do processo objetivo como única e

exclusiva fonte de conhecimento. Em filosofia, Kant é um exemplo de objetivismo,

como oposição ao subjetivismo vigente à sua época. Em psicologia, os exemplos

mais marcados de objetivismo são as doutrinas positivistas e condutistas.

O subjetivismo consiste em valorizar unicamente o conteúdo da consciência do

observador, de seus processamentos internos, de seus fenômenos interiores para

buscar o conhecimento do fato psicológico. Um grande número de autores e

correntes psicológicas atuais e antigas (a psicologia clássica aristotélica, a

psicoanálise freudiana) exemplificam esta tendência.

O subjetivismo é historicamente decorrente do dualismo filosófico e da crença de

que os fenômenos psíquicos seriam a “sobrenaturais”. O objetivismo se originou,

fundamentalmente, de uma reação mecanicista às correntes subjetivistas.

A psicologia atual, livre dos preconceitos dualistas e liberada dos preconceitos

mecanicistas, fundada em uma concepção monista do homem e do universo,

tende a valorizar simultaneamente o objetivo e o subjetivo, enquanto instrumentos

133

de conhecimento, entendendo neles dois dados complementares e apenas

aparentemente opostos de uma mesma unidade dialética.

A tese do homem integral, consubstanciada na convicção da realidade

biopsícossocial do ser humano, que lastreia todas as doutrinas médicas

modernas, se concretiza na compreensão da indissolubilidade dos fatores

biológicos, psicológicos e sociais na unidade do ser humano sadio ou enfermo.

= c) O comportamento, através do psiquismo, promove a ligação entre o objetivo

e o subjetivo do individual e do social.

Na existência humana há traços e elementos individuais, mas a personalidade

guarda uma interação tão íntima com a sociedade que FRANCISCO C.

FONTANELLA insiste na impossibilidade de determinar se ela é uma instância

individual socialmente determinada ou uma instância social, determinada

individualmente. A personalidade se estrutura na relação do indivíduo com o

grupo.

No nível macro-social (onde predominam as relações formais e institucionalizadas)

destaca-se a ação dos fatores históricos, sócio- econômicos, sócio-culturais e

sócio-políticos; no nível micro-social (mudo do relacionamento inter-subjetivo e

afetivo), deve-se ressaltar a influência da tonalidade afetiva das relações infantis,

principalmente com os pais e irmãos. Toda a atividade psíquica está em íntima

vinculação com o organismo, por um lado; e, por outro, com as condições de vida

da pessoa. O psíquico pode ser considerado como resultado da interação do

ambiental-social no biológico-individual. O desenvolvimento e a elaboração da

subjetividade resultam, essencialmente, do funcionamento orgânico e da

experiência das relações da pessoa com o mundo. A interação dialética da

subjetividade e do mundo objetivo é característica essencial do psiquismo e deve

ter valor de princípio.

A compreensão integral do homem implica que ele seja entendido como

totalidade, uma totalidade simultaneamente, integrante da natureza e da 134

sociedade; tanto do ponto-de-vista da unidade inter-complementar dos fatores

subjetivos e objetivos, quanto da inseparabilidade dos fatores biológicos,

psicológicos e sociais na unidade do ser humano sadio ou enfermo.

O entendimento do homem como ser essencialmente bio-psico-social pode se dar

de duas maneira: uma, mecânica, que implica em uma superposição destes três

fatores, e outra, dialética, que supõe sua interação dinâmica em um sistema, o

sistema pessoal, simultaneamente sub-sistema elementar de um sistema natural e

de um sistema social.

= d) Os processos fisiológicos de excitação e inibição, enquanto fenômenos

nervosos mais elementares e ambos entendidos como processos funcionais

ativos, são o fundamento material da atividade psíquica.

= e) O comportamento, sobretudo através do psiquismo, traduz a relação dinâmica

entre a consciência e a inconsciência.

Grande parte dos conteúdos psíquicos não podem ser evocados, inexistindo para

a consciência mas influindo no comportamento. Os conteúdos evocáveis são denominados conscientes; os inevocáveis, inconscientes.

Face à grande confusão, ambigüidade e imprecisão que acontecem muitas vezes

no manejo destas palavras e de seus significados, mas também por causa de

seus significados como categorias psicológicas e psicopatológicas, importa

distinguir nestas significações as semelhanças e diferenças que existem entre os

termos consciente e inconsciente, consciência e inconsciência.

Na literatura da psicologia e da psicopatologia as palavras consciente e inconsciente

são usadas como adjetivos ou como substantivos. Seu sentido como substantivo

(o consciente, o inconsciente) refere um nível funcional capaz ou incapaz de

promover a evocação de certos conteúdos subjetivos, como se mencionou acima.

Contudo, o emprego destas palavras como substantivos induz ao falso

entendimento de um inconsciente “topológico”, um “lugar” na mente, onde 135

estariam “arquivados”, “armazenados” os elementos (idéias, lembranças, desejos,

tendências) inevocáveis. Por isto, talvez seja melhor utilizar a palavra inconsciência

(ou subconsciência) como substantivo que designa os processos e fenômenos

psíquicos inatualizáveis na consciência depois de terem sido conscientes; pois,

estas expressões são mais apropriadas para dar a noção de estágio funcional,

nível operacional.

@DEF2 = f) O comportamento, através dos processos psíquicos, enfeixa a

unidade entre o mediato e o imediato.

O ser humano se permite ter sua conduta tanto dirigida pelo passado, quanto para

o futuro, às vezes bem distante. A atividade psíquica, pela possibilidade de

substituir a experiência, promove a unidade dialética da temporalidade.

= g) Psiquismo e organismo constituem uma unidade que configura a totalidade do

ser humano.

O organismo (no seu sentido mais amplo do todo pessoal) resulta da unidade e

da identidade do psíquico e do somático, do instintivo e do adquirido.

Pode-se definir o instinto como energia interna que propulsiona a conduta

organizada e independente de aprendizado ou reflexão. Quase todos concordam

que o instinto tem uma matriz biológica herdada. Os instintos são formas de

exteriorização das necessidades naturais.

No ser humano, além de suas necessidades primárias (denominadas orgânicas,

biológicas ou naturais), no curso de sua evolução filogenética acrescentaram-se

diversas outras, chamadas superiores ou psicossociais que, juntamente com

outros atributos tidos como tipicamente humanos, caracterizam a condição

humana como uma etapa do processo evolutivo da vida. Pode-se afirmar que os

homens e os animais apresentam necessidades biológicas; apenas os seres

humanos, no entanto, exteriorizam necessidades primárias junto com outras,

decorrentes de sua prática social.

136

Até aqui, não há divergências significativas. A grande controvérsia deste tema

surge da seguinte indagação: “as necessidades primárias humanas seriam

idênticas em tudo (em sua natureza, sua essência e seu conteúdo, além de sua

forma e sua aparência) às necessidades animais ?

É característico que os autores de formação dualista respondam afirmativamente

a esta pergunta.

Os que julgam que algum atributo subjetivo isolado (como inteligência, linguagem,

capacidade de amar, trabalhar) é aquilo que define o ser humano e o distingue do

restante da série animal, tendem a aceitar que as necessidades primárias

humanas são essencialmente idênticas às necessidades animais. Aí se originaram

os conceitos de animal racional, animal que ama, animal que trabalha ou que fala

e outros semelhantes, para designar os seres humanos.

Os cientistas que cultivam a concepção integral do homem, contudo, recusam esta

resposta. Aqqui, a melhor doutrina parece ser aquela que nega tais super-

simplificações conceituais e afirma que não se pode entender o desenvolvimento

humano como crescimento mineral que se desse por justaposição. Menos ainda

se pode sustentar que tal justaposição seja devida a uma única qualidade isolada,

por mais importante que ela seja, como a linguagem, os sentimentos, a

inteligência, o trabalho. No curso da evolução, todo o organismo foi se

transformando e o ser humano não pode ser entendido como um macaco que se

diferencia dos demais apenas pelo aparecimento ou desenvolviemnto de um ou

alguns atributos, mas como um ser qualitativamente diferente, um novo ser.

O antropóide que originou a humanidade deu vida a uma nova espécie, näo

apenas diversa de si mas qualitativamente diferente. O surgimento da consciência

nos seres humanos é a marca desta transformação qualitativa, embora não seja -

ela própria - a transformação.

A convicção de que o psiquismo humano é a expressão mais elevada atividade da

matéria, constitui a base fundamental daquilo que se convencionou chamar de 137

humanismo que constitui uma das mais respeitáveis tendências doutrinárias

para explicar o homem e sua atividade.

Deste enfoque humanista, não se pode considerar que as condutas instintivas dos

seres humanos sejam, em sua essência, completamente idênticas às condutas

animais.

A consciência humana e as necessidades superiores (originadas ambas) na

experiência social, determinam comportamentos instintivos humanos diferenciados

em sua forma e em seu conteúdo das condutas instintivas dos animais (nos quais,

o adestramento ou outra forma de aprendizagem pode mudar apenas a forma).

No entanto, pode acontecer que a consciência ética e social de um indivíduo

qualquer se ache hipodesenvolvida. Tal condição de transtorno do

desenvolvimento psíquico vai caracterizar um estado deficitário que pode ser

global (quando todo o psiquismo for mais ou menos atingido), ou, parcial, quando

estiverem comprometidos unicamente os processos psíquicos superiores (a

afetividade e a vontade), permanecendo idene o restante do psiquismo.

Além das condições patológicas de caráter biológico nas quais o estado deficitário,

global ou parcial, possa se originar como uma perturbação biológena, podem ser

identificadas estados de desenvolvimentos patológicos da personalidade

decorrentes das condições psico-sociais, como aquelas originadas na alienação

social ou de perturbações afetivas.

Porque as deformações do sistema de relações sociais, tanto no nível macro-

social (socio-econômico, sócio-histórico, sócio-político, sócio-cultural), quanto no

nível micro-social (como a família nuclear ou outros pequenos grupos,

geralmente pares, cujas relações são determinadas pela afetividade) ou de orutros

níveis intermediários da organização socia (como a família extensa, as

comunidades, as associações, as instituições) são todas potencialmente capazes

de perturbar ou provocar interrupção ou atraso no desenvolvimento do psiquismo.

138

Tais estados deficitários predominantemente psico-sociais adquiridos, desde que

sejam globais, denominam-se pseudo-oligofrenias, quando parciais,

restringindo-se à afetividade e ou à vontade, podem ser chamados de pseudo-

psicopatias.

= h) O comportamento humano integra e sintetiza os aspectos individuais e

pessoais da existência.

A psicologia atual está fortemente vincada por duas opiniões opostas acerca do

homem: o indivíduo ou a pessoa. Para muitos estes dois conceitos podem parecer

idênticos, mas não são, as noções de indivíduo e de pessoa traduzem dois tipos

de significados essencialmente diferentes apesar de parecerem próximos.

Indivíduo é um ser que se distingue dos demais por ter vida separada por se

diferenciar dos demais por uma ou algumas características que o singularizam; a

individualidade é o que o diferencia um ser dos outros da mesma espécie;

caracteriza a singularidade e a totalidade de um ser. Uma determinada formiga é

um indivíduo no formigueiro, por exemplo. Pode-se até empregar o termo com

sentido amplo para designar objetos que se caracterizem por sua indivisibilidade

(um planeta no sistema solar, uma galáxia no universo, uma laranja na laranjeira.

Pessoa é a entidade sócio-cultural humana. A maior amplitude que o termo possui

é a de um coletivo humano bem determinado e legalmente individualizado, a

pessoa jurídica.

Numerosos enfoques psicológicos e filosóficos tendem a subestimar a

originalidade e a dignidade da condição humana, reduzindo o ser humano a uma

espécie ainda que superior de maquinismo ou massa plasmável, passiva e

moldável sob a influência de estímulos internos ou externos.

Historicamente, esta concepção se originou da oposição profana às doutrinas

religiosas criacionistas, idealistas em sua gênese e em seus desdobramentos.

Fortemente vincada de preconceitos mágicos, a explicação criacionista se

139

fundamenta na convicção em uma natureza superior do homem na crença em um

substrato anímico, sobrenatural, imaterial que o diferenciaria dos demais seres

vivos e que seria superior unicamente por causa de sua vinculação à divindade.

Por outro lado, nos dias atuais, a explicação mecânica e mecanicista do homem,

característica do condutismo positivista, que finda por ser rebaixadora de sua

dignidade, decorre de um certo tipo de organização social que se fundamenta na

exploração e conseqüente reificação (“coisificação”, de res, rei, do latim, coisa) das

pessoas e do desprezo pelos atributos humanos, sobretudo os éticos.

Do ponto de vista monista, é possível superar a contradição existente entre as

concepções idealista e mecanicista, quando se considera que os conceitos de

indivíduo e de pessoa não se excluem, sequer se opõem. A concepção de pessoa

transcende o conceito de indivíduo. Este, considerado apenas como uma parte do

todo, a sociedade, a tribo, a manada, o cardume; aquele, mesmo sem abstrair sua

condição de ser social, detentor de qualidade que, como se viu anteriormente, o

identificam, personalizam e dignificam...

Como já foi anteriormente referido, o surgimento da condição humana, resultante

da evolução biológica e social, ao conduzir o homem a tomar consciência de si

mesmo, da humanidade e da natureza e a entender as relações que se

estabeleciam entre ele e os demais, possibilitou que seja considerado mais, muito

mais que um mecanismo de elevada complexidade, garante aos seres humanos

uma condição de absoluta originalidade e dignidade face aos demais seres vivos.

Os fatores individuais e pessoais hão de ser considerados como estratos que

traduzem níveis diferentes de organização existencial e evolutiva, nem sempre

distinguíveis na unidade do humano, notando-se neles um elemento diferencial

claramente qualitativo.

= i) A adaptabilidade é um recurso auto-regulador geral do organismo, inclusive

do de suas manifestações subjetivas e de sua conduta.

140

A adaptabilidade é uma característica dos sistemas vivos, mais que dos

comportamentos de seres evoluídos e complexos. O organismo humano, incluindo

suas instâncias somática, cerebral e psicológica, pode modificar automaticamente

suas condições de funcionamento para se adaptar às exigências variáveis do meio

interno ou externo. A notável capacidade adaptativa do organismo, em particular a

plasticidade e adaptabilidade da dinâmica psíquica, provavelmente, talvez seja

uma das condições mais importantes para promover o seu desenvolvimento e a

sua evolução.

A adaptabilidade, enquanto atributo universal da matéria viva, objetiva manter o

equilíbrio interno frente às mudanças de seus meios interno e externo; neste

sentido a adaptabilidade é o recurso natural voltado para intermediar as relações

entre o organismo e o meio físico. Mais tarde, com a evolução, este processo se

modificou para atender novas exigências humanas e sociais.

O equilíbrio dinâmico que é o objetivo e o resultado desta capacidade que têm os

sistemas vivos de se modificarem, constante e dinamicamente, denomina-se

homeostase. Homeostase é o equilíbrio dinâmico que a matéria viva mantém em seu

interior e em suas relações com o meio físico. Noutro plano, diversos

comportamentos humanos estão voltados para garantir a homeostase entre a

pessoa e o sistema social do qual é um dos componentes.

A integridade dos processos e mecanismo da adaptabilidade é uma das

características mais importantes dos organismos sadios e sua ausência ou

perturbação, se constituem em preciosos indicadores de patologia. Por isto, não

ser referido no conceito de saúde patrocinado pela OMS, é um dos motivos mais

pertinentes das críticas que lhe são dirigidas.

= i) O comportamento humano integra a unidade do intencional (voluntário) e do

inintencional (involuntário).

141

Os comportamentos humanos podem ser voluntários e involuntários. Os voluntários

são características humanas importantes; pois talvez revelem o ponto mais alto de

seu desenvolvimento. A concretização dos projetos voluntários. No entanto, nem

toda conduta se constitui de atos voluntários ou resulta da intencionalidade

consciente reconhecível. Motivações inconscientes, atos instintivos, condutas

automatizadas ou propulsadas por estímulos inconscientes são ocorrências

comuns.

Embora não haja dúvidas acerca da existência desta dupla dimensão da

existência humana, a voluntária e a involuntária, ainda não está bem estabelecida

qual seria a relação entre os comportamentos conscientes e inconscientes,

voluntários e involuntários.

A existência interativa destes comportamentos deve ser considerada quando se

promove o estudo da psicologia. Por outro lado, sabe-se que os comportamentos

voluntários, em geral, demandam aprendizagem e suas perturbações tanto podem

refletir transtornos do processo de ensino-aprendizagem, quanto podem indicar

alterações estruturais dos componentes orgânicos sobre os quais a aprendizagem

se processa.

Reducionismos, Psicologia e Psiquiatria

Provavelmente, o mecanismo ideológico mais comum para distorcer o significado

do entendimento do objeto da psicologia e da psiquiatria seja o reducionismo que

pode ser definido como um abuso da redução que é um instrumento cognitivo

valioso e muito usado em ciência ou, mesmo, no senso comum. Com base neste

mecanismo ideológico reducionista, muitas reduções são criadas acerca da

subjetividade e sua relação com o mundo objetivo.

A redução é o procedimento lógico de reduzir o todo aos seus elementos mais

simples é muito empregado em matemática, estatística; é um recurso do

pensamento lógico que consiste em dar a alguns dados ou elementos uma forma

142

cômoda para facilitar a solução do problema. O desvio-padrão da média, por

exemplo, é uma forma de redução.

O abuso da redução como procedimento cognitivo, motivado quase sempre por

interesses ideológicos, se denomina reducionismo.

Sempre que se subdivide um todo complexo em suas expressões mais simples

(seus componentes mais elementares), está se praticando uma análise; quando

um dos elementos identificados na análise pode, de alguma maneira, representar

a totalidade analisada, isto se denomina redução. Contudo, não se deve confundir

a fragmentação (ou qualquer divisão da totalidade com análise; nem o emprego de

qualquer parte para representar o todo como redução.

Enquanto a redução é uma operação lógica, o reducionismo é uma contrafacção

que pode se originar na ignorância ou em motivações psicológicas ou ideológicas.

Em inglês, o termo reducionism permite as duas acepções, por isto, na maior parte

das vezes que se emprega o termo reducionism, a tradução deve ser redução.

O reducionismo é a absolutização da redução ou o exagero de seu emprego como

instrumento do conhecimento. Consistindo a redução na simplificação mais ou

menos completa do todo complexo e superiormente organizado, a algum de seus

componentes ou fenômenos elementares. De certa maneira, o reducionismo é

uma perversão da redução, enquanto instrumento adequado de conhecer.

É muito comum que os reducionismos sejam negados na formulação teórica do

problema ou de uma atividade cognitiva e, simultaneamente praticados no mesmo

contexto. É muito raro que um reducionista se diga reducionista. Não porque

sejam todos mentirosos, mas porque o reducionismo ideológico não é reconhecido

como tal por quem o pratica.

Existe um reducionismo que pode ser denominado neurótico, mas este foge às

intenções deste trabalho.

143

O exercício da redução foi um instrumento lógico bastante adequado que permitiu

avanços científicos consideráveis no campo da física, da química e da biologia,

mas os reducionismos talvez sejam os instrumentos ideológicos mais significativos

dentre os que dificultam o desenvolvimento teórico da psicopatologia, da

psicologia e da psiquiatria, na medida em que são enfoques deformadores do

estudo científico através da deformação havida no próprio objeto da psicologia, o

que se reflete, naturalmente, no objeto da psicopatologia.

Pode-se observar que qualquer uma das características do comportamento

humano pode ser ampliada exageradamente com a finalidade de ser empregado

para substituir a totalidade.

Em geral, a característica usada no procedimento reducionista representa algum

interesse prático ou ideológico de quem o elabora.

Os reducionismos são, já há bastante tempo, alguns dos grandes problemas

ontológicos e gnosiológicos que afetam o conhecimento da psicologia e da

psicopatologia porque, em geral, degradam a coisa reduzida a um de seus

atributos que é exclusivizado (ou, no máximo, em alguns deles), fazendo perder a

noção de sua totalidade e unidade, com isto, prejudicando a seu conhecimento.

Alguns dos reducionismos mais importantes na psicologia e na psiquiatria, que

ignoram a grande complexidade do seu objeto e buscam reduzi-lo a apenas uma

ou algumas de suas características, são:

objetivismo - reducionismo metodológico que exclui, a priori, o estudo da

atividade subjetiva na determinação dos comportamentos; dá importância

exclusiva aos fatores objetivos da realidade;

subjetivismo - reducionismo metodológico que minimiza ou nega influência aos

fatores objetivos no psiquismo, bastando-se da produção subjetiva;

144

organicismo - (também chamado bio-logicismo, fisicalismo ou fisiologicismo) -

que explica a atividade psíquica unicamente como resultante do funcionamento

orgânico;

sociologicismo - pretensão teórica de entender o fato psíquico somente a partir

da experiência social, das interações sociais, fazendo caso omisso da fisiologia e

da originalidade da dinâmica psíquica, ou subestimando-as; o reducionismo

culturalista ou o economicista são ainda mais restritos; algumas variedades do

sociologismo são o culturalismo, o economicismo e o historicismo (na

dependência do elemento da interação social que é supervalorado ou

exclusivizado);

psicologicismo - reducionismo resultante da tentativa de absolutizar a vertente

psicológica da existência humana, pretendendo que a atividade psíquica seja

desvinculada do restante do organismo ou da experiência social; existem duas

vertentes principais do psicologicismo, o conscientismo e o inconscientismo;

conscientismo - negação ou minimização do significado dos processos ou

motivações inconscientes;

inconscientismo - que sustenta a preponderância, mais ou menos absoluta, dos

conteúdos e motivos inconscientes;

voluntarismo - superestimação absoluta da atividade voluntária;

involuntarismo - reducionismo que minimiza e subestima o caráter consciente-

voluntário da atividade humana, considerando o homem como objeto passivo,

mais ou menos determinado exclusivamente por estímulos internos ou externos.

@MINOR HEADING = Cérebro e Mente

@FIRSTPAR = A questão referente às relações entre o cérebro e a mente são

essenciais no estudo da ontologia médica e, especialmente, da ontologia

psiquiátrica.

145

O cérebro (ou telencéfalo) é a porção mais volumosa e filogenéticamente mais

diferenciada do encéfalo.

O encéfalo é o órgão que rege o corpo e a mente. Para isto, necessita estar

permanentemente em contacto com o que se passa dentro e fora do corpo, mas

não se limita e refletir estes dados, processa mais ou menos flexível e

criativamente estas informações a serviço de suas funções. Realiza estas funções

através de uma rede integrada composta de milhões de neurônios interligados.

Os neurônios são as células nervosas e consistem de um elemento receptor, um

emissor e um centro processador de estímulos nervosos.

A transmissão de uma mensagem, pelos neurônios, integrados no tecido nervoso,

se dá por meio de um complexo sistema chamado sináptico. As sinapses são

estruturas anatomo-funcionais que pôem os neurônios em contacto com outros

através do intercambio de mensagens neuroquímicas.

A palavra mente está empregada aqui como sentido de espírito<D>, dimensão

subjetiva do comportamento, resultando da atividade cerebral, principalmente da

chamada atividade nervosa superior e das relações do her humano com o meio

social. A relações entre o corpo e a mente suscitam muita discordância entre os

estudiosos, podendo ser encontradas posições materialistas e idealistas, dualista

e monistas, como nas relações psicosomáticas que são vistas a seguir.

Além deste comprometimento idealista original de caráter histórico, palavras como

super-eg, mente, psique e psiquismo são considerados conceitos não científicos por

serem inobserváveis. Contudo, BUNGEparece ter bastante razão quando afirma

que, afastar simplesmente estes conceitos por não estarem amparados no

paradigma empirista das ciências naturais que são cultivados hoje em nossa

atividade científica, revelam mais preguiça e rotineirismo que espírito

científico.<$FBunge, M., Epistemologia, Ed. T.A.Queiroz, S.Paulo, 1987, p. 121.>

146

O mentalismo representa um momento superado na história da evolução do

pensamento científico sobre a psicologia. Contudo, não se pode omitir a

contribuição do estudo da mente na Psicologia..

Mente e Corpo

O problema das relações entre o psíquico e o somático é um dos aspectos mais

interessantes, importantes, controvertidos e ideologizados da psicologia científica.

E, também, uma das matérias controvertidas acerca do objeto da psicologia que

mais se refletem na Medicina e na psicopatologia. Especificamente, em Medicina

e em psiquiatria a maneira pela qual são entendidas as relações entre o corpo e a

mente são preciosos indicadores das concepções científicas e filosóficas mais

amplas que antecedem e presidem este entendimento.

Em diferentes momentos da história da ciência, diferentes correntes da psicologia

têm proposto soluções diversas para este problema. Tal diversidade de opinião

não indica apenas carência de fatos concretos e indiscutíveis; também reflete a

divergência entre concepções filosóficas e interesses ideológico-sociais

divergentes.

Mais tarde, com o desenvolvimento do saber, surgiu uma concepção científico-

natural do mundo e foi neste momento que nasceu aquilo que hoje se chama

ciência<D>. Desde sua origem, as concepções científicas mantém uma insuperável

relação de antagonismo com a visão sobrenatural do mundo.

Com base neste antagonismo, se situam duas concepções filosóficas antagônicas

sobre o homem e a natureza: o dualismo e o monismo. E o monismo possa ser

materialista ou idealista. Dualismo e monismo são tendências cognitivas tidas

como filosóficas porque abrangem tudo o que existe no mundo, todos os domínios

do conhecimento; razão pela qual, como se poderá ver logo adiante, existe um

dualismo e um monismo em psicologia, como existe um dualismo e um monismo

em física ou em outras áreas do saber.

147

Os físicos dualistas sustentam a separação essencial entre a matéria e a energia,

enquanto os monistas sustentam a unidade existente estas duas categorias de

fenômenos físicos. Pretende que matéria e energia constituam uma totalidade.

Entre os adeptos do grupo das correntes de opinião genericamente denominadas

de dualistas, sustenta-se, aberta ou veladamente, uma separação essencial que

existiria entre o objetivo e o subjetivo, entre o cérebro e a mente, entre o psíquico

e o somático, entre o comportamental e o corporal, entre a idéia e a matéria.

Quem defende o dualismo como pressuposto filosófico considera o apenas o

homem e tudo que existe no universo dividido em duas partes: uma, natural e

material e, outra, sobrenatural, imaterial ou ideal. Por causa desta correlação entre

oposição entre matéria e idéia, a corrente dualista que pretende o mundo divididos

em idéia e matéria, sustentando o predomínio das idéias, chama-se idealismo;

pretende que as coisas e objetos materiais se originaram de idéias.

Como não há distinção entre o dualismo filosófico e o dualismo científico, aqui se

identificam ambas as posições doutrinárias. São dualistas as tendências

psicológicas que consideram os fenômenos psíquicos e somáticos como essencial

mente diferentes; defende uma visão dicotomizada do homem, separa corpo e

alma, matéria e espírito, ação e pensamento, desejo e conduta. Afirmam a

diversidade essencial do objetivo e do subjetivo. Imaginam que os fenômenos

psíquicos e somáticos apenas coexistem, de alguma maneira, no ser humano.

Em contraposição há a corrente monista que afirma a unidade do universo, do

homem, do corpo e do psiquismo. Defende que os fenômenos objetivos e

subjetivos têm uma essência comum, embora possam apresentar características

aparentemente diversas.

Na ciência, por exemplo, o monismo sustenta que a energia é uma forma peculiar

da matéria; em psicologia, pretende que a matéria precedeu as idéias e as

originou. As idéias são uma das expressões de uma forma extremamente

organizada da matéria, a matéria viva. O monista não distingue entre o ideal e o 148

material na unidade do humano; embora, quando sustente a precedência da

matéria, chamar-se monismo materialista e ser denominado monismo idealista

quanto sustenta a prioridade do espiritual ou ideal.

O termo materialismo é empregado aqui para designar as doutrinas que defendem

a precedência da matéria sobre o pensamento e o termo idealismo, o contrário,

comunica a convicção da precedência das idéias sobre a matéria. O materialismo

sustenta a realidade do mundo e a precedência da matéria sobre o pensamento,

da objetividade sobre a subjetividade.

Como não há defensores para o monismo idealista no panorama da ciência atual,

monismo e materialismo se confundem como expressões são sinônimas ou se

emprega, como aqui, monismo como equivalente a materialismo monista, embora

os dois termos guardem alguma diferença, como se vê.

Existem duas teorias baseadas no dualismo que pretendem explicar as relações

entre o psíquico e o somático:

a) a teoria do paralelismo psicofísico e

b) a teoria da correlação psicofísica.

E que, com idêntica finalidade, existem outras duas doutrinas que pretendem

explicar as relações entre o psíquico e o somático baseadas no monismo:

a) a teoria fisiológica e

b) a teoria da correlação psicofísica.

É preciso conhecer ao menos o que significa cada uma destas teorias sobre a

interação psicossomática.

Teoria do paralelismo psicofísico. O adeptos da teoria do paralelismo psicofísico

pretendem que os fenômenos psíquicos e somáticos têm características

essencialmente distintas, desenvolvem-se independentemente um do outro e não

149

se influenciam mutuamente, embora, eventual e mais ou menos casualmente,

possa haver alguma variação concomitante nos dois níveis: no corpo e no

psiquismo. Enfim, esta doutrina sustenta que as estruturas somáticas e psíquicas

dos seres humanos coexistiriam lado a lado sem que mantivessem qualquer

relação mais importante, como duas linhas paralelas. A teoria do paralelismo é

característica do idealismo filosófico e sua metodologia dualista (sobrenaturalista

ou não).

Na teoria do paralelismo psicofísico, entende-se que os fenômenos psíquicos e

somáticos contidos na atividade cerebral e na atividade mental ocorreriam como

que lado a lado e atuariam mais ou menos simultaneamente na mesma pessoa,

mas como fenômenos isolados, podendo haver uma certa concomitância de suas

variações funcionais, sem que isto, contudo, indicasse qualquer correlação causal;

como duas linhas paralelas que caminham juntas sem se tocarem.

A possível influência que o corpo exercesse sobre o psiquismo seria sempre

desimportante e secundária, nunca decisiva. Corpo e psiquismo, cérebro e mente

existiriam separada e independentemente; as manifestações psíquicas se

desenvolveriam junto às somáticas, como a sombra acompanha o caminhante,

sem chegar a influir sobre ele. Como se a pessoa vivesse, simultaneamente, duas

vidas, uma orgânica e outra psíquica, uma natural e outra sobrenatural.

Teoria da correlação psicofísica. Presume que os fenômenos psíquicos e

somáticos têm essências diversas; mas ambos poderiam se influenciar

mutuamente, havendo uma interação permanente entre os fatores psíquicos e

somáticos do indivíduo.

A teoria da correlação psicofísica é a face mais requintada do dualismo, quando

ficou impossível sustentar a teoria da correlação, após terem sido comprovadas as

mudanças que fatores psíquicos induziam nos somáticos e vice-versa.

Diferentemente da teoria do paralelismo, sustenta que pode haver mútua

influência e, por isto, haver correlação, entre o princípio somático e o psíquico.

150

Teoria fisiológica. Afirma, na essência, que os fenômenos psíquicos são única ou

principalmente funções do cérebro, podendo ser co-determinadas, de modo

secundário, por outras funções biológicas extra-cerebrais.

A teoria fisiológica foi a primeira doutrina materialista a se difundir. Corresponde à

oposição frontal, mas ingênua, ao pensamento dualista e ao espiritualismo

religioso; presume identidade ou analogia entre o funcionamento cerebral e a

fisiologia do corpo humano. Fundamenta todas as escolas psicopatológica

biologicistas e positivistas.

A teoria fisiológica representou um avanço sobre as teorias dualistas e as crenças

supersticiosas. Predominou na ciência dos séculos XVIII e XIX, declinando muito

no século atual; embora se lhe reconheça ter exercido um papel positivo na

superação do subjetivismo e da Psicologia especulativa, sua importância na

pesquisa em psicologia, para definir uma metodologia de pesquisa essencialmente

psicológica e permitir a inclusäo da Psicologia entre as ciências modernas.

Teoria da Identidade psicofísica. É fundamentalmente monista e dialética.

Sustenta que os fenômenos corporais e psicológicos são manifestações diferentes

de uma mesma totalidade indivisível: o ser humano; afirma que os fenômenos

psíquicos são essencialmente idênticas aos somáticos, embora possam parecer

diferentes.

Fundamenta-se na convicção da unidade do ser humano e representa a

superação definitiva do sobrenaturalismo supersticioso primitivo. Representa o

ponto de vista dialético na Psicologia. Para os monistas a consciência humana

representa uma propriedade muito peculiar da matéria extremamente organizada.

Alguns Aspectos Ontológicos da Psicopatologia

A questão ontológica mais geral da epistemologia reside na identificação e

definição do objeto de uma ciência. Antes de tudo, cada ciência deve

circunscrever, identificar e definir seu objeto de modo inequívoco. Embora as

151

questões ontológicas da psiquiatria se manifestem ou se reflitam em muitos outros

aspectos mais específicos, sua questão ontológica fundamental parece ser, por

analogia com todos os demais conhecimentos existentes, definir seu objeto.

Como acontece em muitas outras ciências humanas, a primeira tarefa da

psicopatologia é determinar se os fenômenos psicopatológicos, têm existência real

e fazem parte da realidade ou são invenções e ideologias. É necessário definir se

o doente e a doença psiquiátrica (dados inseparáveis em sua inter-

complementaridade) existem como realidades objetivas, objetos da realidade que

se refletem como conceitos no mundo subjetivo do conhecimento ou se o doente e

a doença são apenas conceitos construídos mais ou menos arbitrariamente, sem

correspondência com a realidade.

A primeira exigência epistemológica é ontológica, a especificidade se refere à

chamada objetividade científica. O que quer dizer que o objeto de uma ciência

deve ser real, ter parte da realidade, ser bem definido e possível de ser estudado

objetivamente. Aqui, trata-se de determinar a objetividade dos fenômenos

psicopatológicos.

Tendo em vista as exigências de objetividade da ciência, o reconhecimento do

status científico da psicologia só se tornou possível quando a perspectiva

comportamental a definiu como estudo do comportamento objetivado na conduta.

Definida a psicologia científica como estudo científico do comportamento

(compreendendo duas dimensões complementares, a subjetividade ou

consciência e a conduta objetiva), pode-se definir a Psicopatologia tanto como

uma psicologia do patológico quanto como uma patologia do psicológico.

Definir o comportamento como o objeto da psicologia é um exercício de redução,

porque na realidade, o comportamento, não é mais do que uma das dimensões da

existência humana; mas é um procedimento redutor inevitável, enquanto não se

disponha de um conceito sintetizador mais amplo e cientificamente aceitável.

Ainda que a abordagem comportamental seja um exercício de redução, pode não

152

ser reducionismo, ainda que isto possa parecer inevitável, para uns, e

impraticável, para outros.

Tudo isto, porque, quando se considera a amplitude que tem o objeto da

psicologia para os psicólogos autodenominados humanistas (como ROGERS e

FRANKL) ou os autodenominados profundos (como Jung), além de muitos dos

autodenominados dinâmicos (os diversos grupos de ascendência freudiana), a

atividade psicológica não pode deter o status de ciência se mantiver seus limites

assim alargados e imprecisos.

A única forma encontrada até este momento de atribuir status científico às

investigações da psicologia tem sido limitá-la a ser o estudo científico do

comportamento, ainda que se reconheça esta abordagem como provisória porque

insuficiente para explicar a totalidade. O que não significa que a atividade

psicológica possa ser reduzida a esta sua dimensão (os atos e processos

constatáveis e observáveis objetivamente.

Voltando ao tema central deste ponto, que é a ontologia psiquiátrica, pode-se dizer

que nos termos em que foi definida acima, a questão ontológica geral mais

importante do conhecimento se reflete na psicopatologia pela necessidade da

definição do tipo de relação existente entre o ser (aqui, especificamente na

psicopatologia, o fenômeno ou processo psicopatológico, por exemplo, ou

qualquer outro, se o tema fosse diferente) e a consciência (a subjetividade de

quem estuda, reconhece ou diagnostica, por exemplo).

Pode-se dizer que o mundo da realidade tem existência objetiva e que a

consciência, (com o sentido de subjetividade) de certa maneira, o reflete ou o

representa interiormente; devendo-se destacar a influência da capacidade de

enunciado verbal, a palavra ou conjunto de palavras, que são, simultaneamente,

símbolo da idéia e do objeto, como elemento material intermediador dessa

relação.

153

Deste ponto de vista, portanto, a consciência (com sentido ampliado de mundo

subjetivo) é considerada como secundária em relação ao mundo objetivo, o

mundo da realidade. A existência determina a consciência, dir-se-ia

sinteticamente.

A origem da maior parte das divergências sobre o patológico e o não-patológico

deve ser buscada no campo mercadológico, ideológico e psicológico, mais que

nos dados lógicos ou nas dificuldades científicas. Talvez por isto, o conflito real,

subjacente à discussão sobre a normalidade e a patologia, raramente venha à luz

dos argumentos ou da exposição, permanecendo oculto para quem não o saiba

reconhecer. Na medida em que os fenômenos psicopatológicos são

comportamentos anômalos, importa definir os elementos essenciais deste

conceito.

@DEF = Todos os comportamentos têm uma dimensão subjetiva (o psiquismo) e

outra objetiva (a conduta).

Os comportamentos são, ao mesmo tempo, fenômenos simultaneamente

biológicos, psicológicos e sociais (econômicos, políticos, históricos e culturais), por

isto têm caráter ideológico e sua interpretação se faz muito diferentemente dos

fenômenos naturais.

Por isto, sua avaliação, mesmo em termos da saúde e patologia, não pode ser

feita sem a influência (mais ou menos poderosa) da utilidade que lhes empreste a

sociedade e sem que se considere seu valor cultural intrínseco e o significado dos

valores éticos, estéticos e políticos (no sentido mais amplo da expressão, como

valores civis) que mobilizem. Por isto, aqui se emprega o termo comportamento

unicamente para designar atividades de seres humanos, enquanto termo conduta

pode referir os aspectos objetivos da atividade de homens e de animais.

154

GNOSEOLOGIA DA MEDICINA E O DIAGNÓSTICO MÉDICO

@FIRSTPAR = Procedimento médico que consiste no reconhecimento e na

identificação de uma condição patológica, qualquer que for sua classe (dano

negativo, dano positivo ou sofrimento inadequado) ou gênero de complexidade

estrutural (sintoma, síndrome, entidade clínica), através de suas características

mais elementares, principalmente seus antecedentes, sintomas e outros dados

aparentes. Sendo, portanto, o reconhecimento de uma patologia em alguém,

geralmente com o propósito imediato de fundamentar a terapêutica, mas podendo

ser outro (como em uma perícia médica ou em uma pesquisa científica).

Como estrutura cognitiva, o diagnóstico médico pode ser analítico-descritivo ou

sintético-explicativo; do ponto-de-vista da complexidade da patologia

diagnosticada, o diagnóstico médico pode se referir a um sintoma, uma síndrome

ou uma entidade nosológica.

Em psiquiatria, ao contrário do que sempre aconteceu no restante da Medicina,

diversas razões ideológicas induziram ao abandono ou à subestimação do

diagnóstico como instrumento médico (como se pode ver em outros trabalhos do

autor, como Fundamentos de Psicopatologia e O Diagnóstico Psiquiátrico).

Atualmente, com a superação dos modelos paradigmáticos psicológicos e políticos

para explicar as patologias psiquiátricas, poderia retornar a psiquiatria ao modelo

médico e à valorização do diagnóstico, não fosse a reavaliação positivista do

materialismo ingênuo.

Estrutura do Diagnóstico em Psiquiatria

Em psicologia e psiquiatria, sobretudo no procedimento diagnóstico, é

relativamente comum que se confundam fenômenos situados em diferentes

estratos da natureza ou que se estenda indevidamente a um certo plano de

acontecimentos naturais, conclusões que foram estabelecidas em outro; por

155

exemplo, quando se atribuem a grupos ou outros coletivos humanos os achados

de investigação com indivíduos.

O diagnóstico de uma condição patológica concreta em uma paciente real,

qualquer que for seu gênero (sintoma, síndrome, entidade clínica) ou classe

(patologia objetiva com dano negativo ou positivo ou patologia subjetiva com dano

sentido) não passa de uma síntese do conhecimento que se tem sobre aquele

fenômeno, podendo ser um conceito descritivo ou explicativo.

Esta questão apresenta um significado particular na psicopatologia quando há

uma tendência a explicar todos os fenômenos psicopatológicos como se tivessem

a mesma natureza ou como se apresentassem a mesma posição na estrutura da

natureza. Também se incorre freqüentemente no erro de confundir o diagnóstico

psiquiátrico que é um diagnóstico médico com o diagnóstico psicológico.

Como acontece com a confusão entre diagnóstico psiquiátrico e diagnóstico

médico; o diagnóstico psicoanalítico é um tipo particular de diagnóstico psicológico

e não um diagnóstico médico, ainda que possa ser exercido por alguém que

exerça a Medicina e seja formado nela. Mas, o erro mais comum no procedimento

diagnosticador, é o da super-simplificação diagnóstica, o diagnóstico mecânico, no

qual se misturam conceitos descritivos e explicativos, classes e gêneros de

patologias e muitas outras heterogeneidades lógicas. O que não deve ser

confundido com o diagnóstico sintético.

Guardadas estas ressalvas, o diagnóstico psiquiátrico deve atender às seguintes

exigências ontológicas mínimas que configuram os a caracterização dos

fenômenos psicopatológicos como objeto de cogitação científica:

@DEF2 = Diagnóstico do gênero ou grau de complexidade da patologia. Quando

se especifica se o quadro diagnosticado é uma entidade clínica, uma síndrome ou

um sintoma. A identificação do gênero da patologia deve ser o primeiro elemento

do processo diagnosticador em qualquer entidade clínica.

156

@DEF2 = Diagnóstico sindrômico. A seguir, após a identificação do gênero da

patologia que está sendo diagnosticada, o reconhecimento da psicopatologia se

completa na caracterização e intensidade das manifestações clínicas que

expressam aquela patologia; é comum que este momento do processo

diagnosticador inclua a designação da intensidade (leve, moderada ou grave) e do

perfil de evolução da patologia (aguda, sub-aguda ou crônica).

@DEF2 = Diagnóstico da qualidade ou classe da patologia. Determinado em

função do tipo de dano que ocasiona. Num primeiro plano deste momento do

processo diagnosticador, o diagnóstico deve incluir sempre a diferenciação da

classe de patologia que estiver em questão (entre as mesmas identificadas

genialmente por Letamendi no século passado e já mencionadas, como dano

negativo, dano positivo ou sofrimento inadequado) e sua complexidade estrutural

(se é um síntoma, uma síndrome ou uma entidade clínica).

O processo diagnóstico se completa no Diagnóstico Específico da patologia, na

identificação da entidade clínica que consiste em: a) Diagnóstico etiológico e b) a

identificação do mecanismo patogênico. O procedimento diagnóstico impõe a

obrigação de tentar categorizar as psicopatologias (os transtornos

psicopatológicos) em função das seguintes características: causalidade

predominante (biológica ou psicossocial), diagnóstico patogênico, prognóstico e

possibilidades terapêuticas.

a) Causalidade predominante: biológica ou psico-social.

b) Diagnóstico patogênico.

Em seguida, na construção do diagnóstico específico, deve-se tentar definir a

natureza de sua estrutura patológica, essencialmente se os mecanismos

patogênicos se dão a nível estrutural, funcional ou alcançam a ambos.

c) Prognóstico e diagnóstico do risco pessoal e social.

157

O diagnóstico de uma condição mórbida deve incluir uma previsão da evolução e

do risco pessoal ou social implícito nela.

d) O prognóstico implica, também, no reconhecimento das possibilidades de

resposta terapêutica aos procedimentos conhecidos e indicados para aquela

condição clínica.

e) Por fim, situa-se o diagnóstico nosológico

(ou o diagnóstico descritivo) em um sistema nosográfico de referência (como a

CID/10), para fins administrativos.

@MINOR HEADING = Aspectos Gnoseológicos Gerais

@FIRSTPAR = A gnoseologia estuda o conhecimento e a cognoscibilidade

(possibilidade de conhecer). A questão gnosiológica mais importante, do ponto de

vista da filosofia do conhecimento, é definição da possibilidade de conhecer o que

existe no universo, os fenômenos que acontecem na natureza, na sociedade e no

ser humano; a cognoscibilidade do mundo, das coisas que existem nele e daquilo

que acontece a essas coisas. Eis aí, desde a Antigüidade, uma das questões

centrais da filosofia e um dos fundamentos mais importantes da ciência. Fosse

incogniscível o mundo, a ciência seria uma fraude ou, no mínimo, um desperdício.

Existem muitas opiniões acerca da cognoscibilidade do mundo, do que existe e do

que acontece nele. Estas tendências se refletem nos processos de conhecer o

mundo, inclusive nas atitudes e procedimentos técnicos e científicos. É possível

levantar, como exemplos, algumas das atitudes gnosiológicas que podem influir

nas concepções científicas.

No passado medieval, existia o ceticismo absoluto, sustentando a completa

impossibilidade de se conhecer alguma coisa por conta das limitações dos

sentidos e do espírito humano. O que está apenas a um passo do solipsismo, que

afirma a absoluta impossibilidade de se conhecer a verdade sobre qualquer objeto

158

ou fenômeno. O que seria devido, principalmente, à limitação dos sentidos, à

imperfeição da comunicação e aos limites do pensamento.

No lado oposto, existe outra posição extremada, o dogmatismo cientificista que

sustenta (com algumas gradações) ser o conhecimento científico quase que

absoluto, geral e eterno. Entre os cientistas do século dezoito e dezenove,

sobretudo os que compartilhavam o otimismo cienticista, muitos o cultivaram.

Entre estas posições extremas, situam-se numerosos graus de ceticismo relativo,

inclusive o ceticismo organizado, que admitem diferentes graus de relatividade e

provisoriedade do conhecimento científico.

Na maior parte da vezes, as limitações e a provisoriedade do conhecimento real,

são devidas ao artefato metodológico inerente ao procedimento de investigação

aplicado nas ciências factuais, pelo qual se considera como verdadeiro tudo aquilo

que ainda não foi desmentido, a despeito dos esforços realizados para comprovar

sua falsidade.

Esta possibilidade metodológica do conhecimento científico nas ciências factuais

costuma ser denominado princípio da falsificabilidade ou da verificabilidade.

Aproximando-se do dogmatismo cientificista, existe quem creia na plena

cognoscibilidade, como uma utopia a ser perseguida perpetuamente.

O agnosticismo é uma atitude intelectual que pode significar a crença na absoluta

impossibilidade de conhecer, identificando-se com o ceticismo absoluto;

abrandado (como em KANT), nega a possibilidade de se conhecer a essência das

coisas (a coisa em si), admitindo o conhecimento apenas da sua aparência (a

coisa para nós). As numerosas formas de ceticismo relativo (como agnosticismo,

positivismo, fenomenalismo, relativismo, subjetivismo, probabilismo,

convencionalismo, pragmatismo, empirismo), negam a possibilidade de um

conhecimento perfeito e total, evidenciam diversas maneiras moderadas de

ceticismo.

159

Os conceitos de certeza e de verdade científica não são exclusivos dos adeptos

do dogmatismo, porque se pode sustentar a verdade científica como provisória e

incompleta. Ainda que se admita um ponto de vista agnóstico (mesmo moderado)

ou cético (mesmo relativo), os conceitos científicos de certeza e verdade

continuam a existir, ainda que detenham um caráter relativo.

Esta é uma amostra das opiniões e crenças sobre a cognoscibilidade do mundo

que mostram como seria laboriosa a investigação minuciosa do tema. Cada

opinião sobre a cognoscibilidade em geral, como manifestação de um padrão de

pensamento, tem seu equivalente relacionado à cognoscibilidade da doença

mental, do diagnóstico psiquiátrico e dos demais diagnósticos médicos.

Parece importante ter clara a natureza gnosiológica do ato diagnóstico como

processo cognitivo de reconhecimento de uma patologia. Neste ponto, torna-se

preciso optar por uma de duas opiniões: se o diagnóstico psiquiátrico, como

qualquer conceito ou categoria, reflete qualidades essenciais da patologia, e que

tal patologia é objetiva, existe por si mesma e independe do observador; ou se,

por outro lado, considera-se que a patologia é unicamente um conjunto de

atributos convencionados, de certa forma vazios de conteúdo e que não dizem

respeito à essencialidade do objeto ou fenômeno que pretende descrever,

resumindo-se a uma entidade lógica convencionada, criada pela consciência de

quem a produziu.

Entender esta opção gnoseológica exige uma revisão do conhecimento sobre as

relações entre o objeto, a idéia que o reflete e a palavra que simboliza a ambos.

Este ponto, que talvez seja o mais crítico e essencial da psicolingüística se

desenhou no capítulo sobre conceituação e descrição, encerra uma das maiores

polêmicas cognoscitivas; aparece na prática clínica, revela-se na exposição

psicopatológica, mas apenas muito raramente é claramente mencionada.

A questão da conoscibilidade das coisas do mundo está em completa

interdependência com os procedimentos empregados no processo de conhecer, a

160

metodologia e a metódica do conhecimento. Sobre isto DESCARTES escreveu

com muita propriedade: Os mortais são possuídos por uma curiosidade tão cega

que muitas vezes introduzem o espírito em vias desconhecidas, sem nenhuma

esperança racional, unicamente para correr o risco de aí encontrarem o que

procuram; com eles se passa o mesmo que com um homem ardende com um

desejo tão estúpido de encontrar um tesouro que erraria sem cessar pelas praças

públicas para ver se encontraria por acaso algum perdido por um viajante. ... Ora,

vale muito mais nunca pensar em procurar a verdade de qualquer coisa do que

fazê-lo sem método...Quanto ao método, entendo por tal, regras certas e fáceis

cuja observação exata fará que qualquer pessoa nunca tome nada de falso por

verdadeiro, e que, sem dispensar inutilmente o mínimo esforço de inteligência,

chegue, por um aumento natural e contínuo de ciência, ao verdadeiro

conhecimento de todo o que for capaz de conhecer.<$FDescartes, R., Regras

para a Direção do Espírito, Ed. Stampa, Lisboa, 1971, pp. 23 in Oliveira, A.M. et

alii, Primeira Filosofia Tópicos de Filosofia Geral, 8a. edição, Ed. Brasiliense,

S.Paulo, 1990>

@MINOR HEADING = Gnoseologia Psiquiátrica

@FIRSTPAR = Pelo que já se viu quando se tratou das questões ontológicas e

gnoseológicas mais gerais, o primeiro passo do estudo da nosologia, da

nosografia médicas e psiquiátricas deve ser conhecer se o fenômeno patológico, o

objeto genérico da de estudo, é uma realidade natural cogniscível, uma realidade

social cognoscível, uma realidade humana cognoscível, uma condição real na qual

se combinem estes três elementos, ou é uma invenção convencionada, um

artifício psicológico, um artefato do próprio conhecimento ou uma ilusão

ideológica.

Só após superar as questões ontológicas centrais da objetitividade da

Psicopatologia, pode-se passar a tratar das questões mais importantes do

momento gnosiológico, quando se deve equacionar a cognoscibilidade dos

161

fenômenos e processos psicopatológicos. A cognoscibilidade do mundo, em geral,

inclusive a cognoscibilidade do objeto da Psicopatologia, bem como das formas

comuns de conhecer, é tarefa da gnoseologia.

No que diz respeito à necessidade do estudo objetivo da subjetividade que se faz

em psicologia e Psicopatologia, como exigências fundamentais para sua

caracterização como ciências, esta exigência de objetividade é satisfeita, na

medida em que os dados do psiquismo se objetivam na conduta, possibilitando

seu estudo objetivo. Por isto, embora a noção de comportamento seja, por si,

insuficiente para albergar o psiquismo, a definição científica da psicologia só

parece ser possível em termos comportamentais.

A perspectiva comportamental, a despeito das criticas a que faça jus, parece ser a

única que permite um enfoque cientificamente objetivo da psicologia, ainda que

seja reconhecidamente insuficiente para explicar todos os processs psíquicos, a

totalidade da existência psicológica, quanto mais para permitir entender a

integridade da condição humana. Os dados fornecidos pela introspecção e pela

intuição (contida nos procedimentos compreensivos) podem propiciar hipóteses,

reforçar suposições ou convergir com os achados objetivos, mas são

absolutamente insuficientes para permitir conclusões científicas, por si só,

sobretudo conclusões explicativas.

Por isto, excluem-se das cogitações científicas, o subjetivismo, reducionismo que

resume o estudo psicológico à introspecção, comum à psicologia clássica e a

muitas tendências psicoanalíticas, quanto o objetivismo, que é a deformação

ideológica oposta ao subjetivismo que impregna muitas tendências condutistas e

neocondutistas, por seu mecanicismo e sua supersimplificação dos processos

psicológicos. entes fundamentalmente complexos e multicondicionados.

A instrospecção tem fornecido valiosa contribuiçäo às ciências do homem.

Durante séculos, a construção da psicologia se deveu unicamente à especulação

introspectiva. Mas, hoje, no campo específico da psicologia e da psiquiatria, a

162

ausência de instrumentos de observação e experimentais para a estudo da

subjetividade e sua objetivação, tem constituído obstáculo importante ao seu

reconhecimento como ciência. Porque os fenômenos psicológicos mais

essencialmente humanos (como a vontade e os sentimentos, por exemplo) säo de

difícil exploraçäo objetiva e impossíveis de serem quantificados, pelo menos com

os recursos disponíveis no momento. Caso um determinado fenômeno ou

conjunto de fenômenos só possa ser estudado pela introspecção, tal estudo não

deve ser considerado como atividade científica conclusiva, enquanto não for

confirmado por achados obtidos objetivamente.

Além disto, para a avaliação gnoseológica da dos fenômenos psiquiátricos é

necessário definir:

@DEF2 = se os fenômenos psicopatológicos são uma categoria específica da

patologia, correspondente a um fenômeno natural-humano e pessoal que se dê

simultaneamente nos dois mundos a que pertencem: o mundo dos fenômenos

naturais e o mundo dos fenômenos sociais;

@DEF2 = ou, noutra tendência possível, se os fenômenos psicopatológicos

pertencem unicamente a um destes mundo especificamente; isto é, se são

acontecimentos exclusivamente biológicos ou unicamente sociais;

@DEF2 = ou, ainda, se existem alguns fenômenos psicopatológicos que possam

ser considerados naturais e alguns outros, que devam ser tidos como

manifestações sociais (sócio-econômicos, sócio-políticos, sócio-históricos ou

sócio-culturais).

E, completando este processo cognitivo preliminar, como exigência da

gnosiologia,dever-se-á, ainda, verificar se existe uma descontinuidade constatável

entre os acontecimentos psicopatológicos e os que não são patológicos; depois,

também importa saber se tal descontinuidade, caso exista, se refere apenas a

diferenças quantitativas (unicamente variando em quantidade) ou se envolvem

elementos qualitativos (qualidade definida pela presença ou ausência de um 163

atributo de referência; e, por fim, se tal descontinuidade é um acontecimento real

ou convencionado em função dos interesses materiais, psicológicos ou ideológicos

de quem os identifica.

Os fenômenos psicopatológicos não são apenas fenômenos objetivos e reais,

naturais e ou sociais que acontecem em pessoas reais. São fenômenos subjetivos

representados por conceitos que refletem os elementos internos (como a noção da

patologia nos demais e em si mesmo) e constituem, conteúdos de representações

e de valores sócio-culturais e sócio-históricas de natureza coletiva que costumam

ser chamadas de representações sociais da enfermidade, quando se estruturam

mais ou menos espontaneamente como um artefato cultural (que prefiro chamar

representação cultural da patologia) ou teoria da doença, quando intencionalmente

organizada, resulte de procedimento científico e expresse o conhecimento

científico existente no momento.

Doutro ângulo, nãose pode omitir que os fenômenos psicopatológicos, qualquer

que for sua complexidade, duração, intensidade ou influência subjetiva ou objetiva

na vida de quem os experimenta, não podem ser reduzidos a enunciados verbais

sem conteúdo, a não ser sua significação convencional.

O estudo gnoseológico dos fenômenos da psiquiatria impõe que se atente para as

seguintes diretrizes operacionais principalmente na formulação do diagnóstico

psiquiátrico:

a) O acontecimento psicopatológico, mais que qualquer outra enfermidade

humana é um processo natural e sócio-cultural.

Na amplitude de seu significado, a ocorrência psicopatológica é, simultaneamente,

um acontecimento natural e um artefato cultural (entendido, por exemplo, como

castigo do pecado) e, ao mesmo tempo um dado subjetivo e, freqüentemente,

objetivo. Se bem que aos médicos e ao diagnóstico psiquiátrico interesse

essencialmente sua dimensão natural, esta se completa no sócio-antropológico-

político e econômico (a identificação das circunstâncias sociais do enfermo).164

b) Todo processo patológico fica completamente diagnosticado, quando

perfeitamente definido.

Só se pode reconhecer o que se conhece. Exigência fundamental da gnosiologia

psiquiátrica no procedimento diagnosticador, como elemento essencial de sua

definição, deve ser a especificação adequada de cada fenômeno psicopatológico

tanto em termos da complexidade da patologia, quanto em razão da classe de

psicopatologia. Porque, os fenômenos psicopatológicos não são unitários em

termo do grau de complexidade fenomênica e, muito menos, todos os

acontecimentos mórbidos pertencem à mesma qualidade (classe, gênero ou

espécie) de patologia.

c) O primeiro momento da definição de uma patologia consiste em identificar seu

gênero ou o seu grau de complexidade psicopatológica.

Aqui se denomina gênero ao grau de complexidade do fenômeno psicopatológico.

Os acontecimentos psicopatológicos (cujos gêneros possíveis são sintomas,

síndromes e entidades nosológicas, denominações que evidenciam o grau de

complexidade fenomênica da manifestação clínica identificada), bem como, os

acontecimentos estreitamente relacionados a eles como caraterizadores da

aparência das patologias (como curso, terminação, intensidade e resposta à

terapêutica) e sua origem devem ser definidos o mais precisamente possível. O

ideal seria que, em todos os casos, fosse possível uma definição essencial e

genética de cada termo que se referisse a cada fenômeno designado por ele. Ao

menos deve haver a preocupação de, em qualquer procedimento diagnóstico, a

designação de um fenômeno psicopatológico deve sempre se referir ao grau de

complexidade da patologia mencionada.

d) Quando a patologia identificada for uma entidade clínica, deve-se buscar

identificar a qualidade ou classe patológica a que pertence.

Quanto à classe da patologia, esta diz respeito ao tipo de dano que aquela

patologia acarreta à pessoa que a apresenta. O reconhecimento da síndrome e o 165

conhecimento do dano que ela ocasiona ao seu portador deve permitir designar a

qualidade ou classe da patologia a que pertence. Porque este momento de sua

caracterização consiste exatame ne em identificar o tipo de dano que acarreta ao

enfermo. Esta caracterização é importante, não apenas por razões heurísticas,

mas porque influi no tratamente e no prognóstico. Com as informações disponíveis

atualmente, é possível identificar três qualidades diferentes de fenômenos ou

processos patológicos: a) patologia por dano negastivo, que é um impedimento

por deformidade, deficiência ou déficite funcional, global ou específico

(deficiências mentais, demências déficites específicos do desenvolvimento,

inclusive os transtornos do desenvolvimento da personalidade); b) patologias por

dano positivo que são doenças (esquizofrenia, doença afetiva); c) patologias

apenas sentidas, que são as patologias especificamente humanas, caracterizadas

por sofrimento inadequado e perturbações da adaptabilidade aos acontecimentos

ou às situações (as neuroses).

e) O fecho do processo diagnosticador de uma entidade nosológica em Medicina,

inclusive em psiquiatria, consiste na sua identificação como espécie mórbida.

Além da classe e do gênero do fenômeno psicopatológico, uma definição

psicopatológica deve mencionar sobretudo a espécie mórbida que estiver sendo

definida (ou diagnosticada), o que implica em:

a) incluir informações específicas sobre a intensidade, duração e repercussão

existencial e social do fenômeno definido;

b) identificação dos fatores causais (etiológicos), das circunstâncias das quais

depende sua ação patogênica, e dos mecanismo pelos quais atuam estes fatores

etiológicos para produzir as manifestações mórbidas (a distinção dos fatores

patogênicos dos patoplásticos, dos predisponentes e desencadeadores, dos

agravadores e atenuadores);

166

c) incluir, de modo explícito ou implícito, informações sobre o prognóstico, o risco

(pessoal ou social) e de sua resposta aos agentes terapêuticos conhecidos e

potencialmente capazes de erradicar a patologia, minorar ou suprimir seus efeitos.

Por tudo isto, os diagnósticos descritivos, para serem completos, devem incluir

uma informação para cada uma destas necessidades de definição, enquanto os

diagnósticos sintéticos devem sintetizar, senão todas, ao menos as mais

importantes destas exigências de definição (classe, síndrome, etiopatogenia e

responsividade terapêutica) que estão necessariamente incluídas na designação-

diagnóstica.

A cognoscibilidade das enfermidades apresenta mais ou menos as mesmas

dificuldades que apresenta a cognoscibilidades de qualquer fenômeno humano,

sobretudo seus comportamentos, por sua conotação evidentemente sócio-cultural.

No entanto, como todos os outros conhecimentos, o conhecimento sobre os

acontecimentos psicopatológicos se desenvolve de maneira progressiva, seguindo

o itinerário apontado neste trabalho: evidenciação, descrição, conceituação,

explicação, definição; em espirais progressivamente mais ricas e mais completas

de informações essenciais sobre aquele objeto do conhecimento, que vão sendo

aperfeiçoadas ou substituídas, na medida em que se amplia e se aprofunda o

conhecimento sobre ele.

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