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Revista Olhares Sociais / PPGCS / UFRB, Vol. 03. Nº. 02 – 2014/ pág. 3
A DIMENSÃO POLÍTICA DE UM DIÁLOGO INTELECTUAL: A
PRESENÇA DAS IDEIAS DE KARL MANNHEIM NA OBRA DE
FLORESTAN FERNANDES
Thiago Mazucato1
Resumo: Dentre as diversas formas de diálogos intelectuais destacamos uma delas, a
que denominamos “presença de ideias”, para analisar uma importante característica da
produção intelectual de Florestan Fernandes: um diálogo crítico com ideias, conceitos,
teorias, métodos, concebidos ou elaborados por intelectuais de instituições localizadas
em países europeus (principalmente França, Inglaterra e Alemanha) ou dos Estados
Unidos. Ao se tornar figura proeminente das Ciências Sociais brasileiras, a partir da
década de 1950, Florestan Fernandes enfrentou um desafio de ordem política e
intelectual: paralelo ao movimento de consolidação das Ciências Sociais, em especial
em países periféricos, tornava-se necessário não somente instrumentalizar a formação
científica com os rigores teóricos e metodológicos, mas também delimitar a função
social da ciência e legitimar o papel político e social dos próprios intelectuais. No
enfrentamento deste desafio Florestan mobilizará a sociologia do conhecimento
elaborada por Karl Mannheim, e também algumas de suas principais ideias e conceitos.
Analisaremos este diálogo intelectual através de algumas obras de Florestan Fernandes
produzidas entre 1950 e 1973 e que refletem também a relação destas com dois
contextos políticos nacionais separados pelo golpe militar de 1964.
Palavras-Chave: Florestan Fernandes, Karl Mannheim, Contextualismo, Circulação de
Ideias.
Abstract: Among several ways for intellectual dialogue we stress just one, what we call
“ideas presence” to analyze the main features of Florestan Fernandes’ intellectual work:
the critical dialogue ideas, concepts, theories and methods conceived or elaborated by
academic institutions located in Europe (mainly France, United Kingdom and Germany)
or the US. When he become a remarkable character in Brazilian Social Sciences, since
the 50’s, Florestan Fernandes faced a political and academic challenge: alongside the
consolidation of social sciences in peripheral Brazil there were the imperative of
improve the methodological and theoretical ground for this institutionalization but also
frame the political role of the social scientists. Facing this quest Fernandes would
invoke the sociology of knowledge created by Karl Mannhein as well some of his mains
ideas. We analyze some of this ideas elaborated between 1950 and 1973 and how these
elaboration were connected with the political pre and post 1964 military coup context.
Key-words: Florestan Fernandes, Karl Mannheim, Contextualism, Ideas circulation.
1 Thiago Mazucato é sociólogo e mestrando em Ciência Política pelo Programa de Pós-Graduação em
Ciência Política (PPGPol) da Universidade Federal de São Carlos, onde realiza suas pesquisas com apoio
da CAPES. E-mail: [email protected]
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Um breve esboço do debate intelectual no Brasil de 1950 a 1973
As Ciências Sociais no Brasil já possuíam uma tradição de praticamente meio
século quando, na década de 1950, logo após a redemocratização que se iniciara com o
fim do Estado Novo de Getúlio Vargas em 1945, um intenso debate intelectual
transcendeu os muros da universidade e alcançou a esfera pública através de palestras,
comícios, campanhas, discussões nos jornais. O país vivenciava um forte momento de
modernização, a qual continuava a ser conduzida pelo Estado, tendo na figura do
presidente Juscelino Kubitschek um exemplo claro do que a literatura especializada
definiu como desenvolvimentismo.
Se a tradição de pensamento político e social vinha transformando os intelectuais
em figuras de destaque desde os finais do século XIX, neste momento
desenvolvimentista da história política brasileira os próprios intelectuais se projetariam,
por disporem de virtu (capacidade de interpretação da realidade) e de fortuna (o
contexto político amplamente favorável), no centro dos debates políticos, convertendo
as suas próprias obras acadêmicas em verdadeiras posições políticas em disputa com as
demais interpretações da realidade, seja para tornar-se a posição política majoritária
(com o maior número de adesões dos movimentos sociais e da população em geral), seja
para tornar-se a posição política oficial adota pelo Estado.
Assim vimos consolidar-se ao menos três grandes “posições” intelectuais com
grande poder de disputa política (da população e dos movimentos sociais, e também do
Estado): a primeira delas poderíamos chamar de “escola paulista de sociologia”2, que se
forjaria a partir de meados dos anos 1930 ligados à Faculdade de Filosofia, Ciências e
Letras da Universidade de São Paulo e também à Escola Livre de Sociologia e Política
2 Cf. Lahuerta (2005), Berlinck (2006), Mota (2008), Arruda (2010).
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de São Paulo, tendo em Florestan Fernandes a figura do seu principal líder na década de
1950; a segunda delas poderíamos designar como “cepalinos”3, que se forjara a partir da
fundação, em 1948, da Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL),
vinculada à organização das Nações Unidas (ONU), o qual teve como seu principal líder
no Brasil o economista Celso Furtado; e, finalmente, a terceira poderíamos denominar
como “isebianos”4, cujo grupo surgira no começo da década de 1950, mas que em 1955
seria formalizado por um decreto federal com a criação do Instituto Superior de
Estudos Brasileiros (ISEB), com sede no Rio de Janeiro (então capital federal) e tendo
como uma de suas figuras principais o sociólogo Guerreiro Ramos.
Estas foram as três principais “posições” intelectuais que ganharam fôlego do
começo da década de 1950 até 1964 e que lideravam os debates e disputas públicas pela
interpretação da realidade nacional. Certamente existiram outras posições intelectuais,
como os “católicos” e os “militares”, muitos deles representando posições mais
conservadoras no debate deste período (Pécaut: 1991), todavia, nossa intenção ao
mencionar tais instituições e posições intelectuais visa a uma contextualização inicial do
período maior que pretendemos abordar neste trabalho (1950-1973).
Com o golpe militar de 1964 e a instauração de uma nova ditadura no país temos
então um momento de inflexão dentro daquele período maior a que pretendemos nos
debruçar (1950-1973), no qual podemos distinguir um primeiro momento que durou
quase duas décadas (1945-1964), em que o país vivenciou um regime político
democrático, e um segundo momento, que durou quase uma década (1964-1973) em
que o país passou a vivenciar um regime político ditatorial. Neste segundo momento os
temas relacionados à natureza do Estado, da democracia e do autoritarismo, da
3 Cf. Fonseca (2000) e Cepêda (2008). 4 Cf. Lamounier (1978), Toledo (1998), Weffort (2006), Bariani (2015).
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representação e da participação política, assumiram um protagonismo nos debates
intelectuais que antes fora ocupado pela temática desenvolvimentista. As instituições
intelectuais do momento anterior foram aniquiladas ou dissolvidas, e os seus principais
líderes foram expulsos do país, caracterizando um momento em que a intelectualidade
brasileira vivera no exílio.
Cada uma das três posições intelectuais que mencionamos anteriormente fora
influenciada por teorias políticas, sociológicas e econômicas europeias e norte-
americanas, e o mesmo pode ser dito quanto às suas principais lideranças intelectuais.
Dentre estas influências poderíamos citar o pensamento econômico de Keynes, o
pensamento econômico e político de Karl Marx, a filosofia existencialista francesa, as
sociologias norte-americana, francesa e alemã.
Quando verticalizamos a análise e focalizamos na trajetória e na obra de
Florestan Fernandes notamos, por sua vez, um diálogo com todas estas tradições de
pensamento mencionadas anteriormente, porém, como ressalta Ianni (1991), neste caso
a “presença” das teses de Karl Mannheim encontra uma acolhida especial em seus
trabalhos deste período que pretendemos analisar.
Os principais aspectos da obra de Karl Mannheim presentes no debate intelectual
brasileiro de 1950 a 1973
Uma das características marcantes da trajetória – biográfica e intelectual – de
Karl Mannheim pode ser resumida na ideia de exílio. Bastante representativo é o fato de
ter vivido os seus primeiros 27 anos de vida na Hungria, até ser expulso deste país por
um regime político de extrema direita e migrar para a Alemanha, exatamente no
momento em que finalizava sua formação no doutorado em Filosofia; de ter vivido
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durante os próximos 13 anos na Alemanha, período em que se transformara numa figura
proeminente da Sociologia com reconhecimento internacional, até que, aos 40 anos de
idade, vivencia uma nova experiência de ser expulso de um país – agora da Alemanha –
pelo regime político nazista; e finalmente o fato de ter vivido os seus últimos 14 anos na
Inglaterra, vindo a falecer em 1947 aos 54 anos de idade, deixando uma produção
intelectual que dialogou diretamente com a Política, somados todos estes fatos, os
mesmos nos evidenciam as suas dolorosas experiências de vida com os regimes
políticos ultraconservadores e as suas experiências intelectuais de transição da Filosofia
para a Sociologia e desta para a Política5.
Estas experiências de transição – nas trajetórias de vida e intelectual – deixariam
traços marcantes em sua obra. Não teremos espaço suficiente para analisar toda a sua
reflexão inicial sobre a epistemologia e a natureza dos objetos das ciências históricas e
culturais, mais vinculadas à Filosofia, e também a sua primeira produção sociológica
dos anos 19206. Contudo, a partir de sua obra Ideologia e Utopia, publicada em 19297 e
que praticamente sistematizou o campo da Sociologia do Conhecimento, já temos
alguns dos principais temas da produção intelectual de Karl Mannheim que esteve
presente no debate intelectual brasileiro dos anos 1950 a 1973: a questão da função
social da ciência e o papel dos intelectuais.
A sua Sociologia do Conhecimento representava uma possibilidade de síntese
racional dos processos sociais, econômicos e políticos. Se às ciências em geral cabiam
as tarefas de explicação racional dos diversos fenômenos do mundo, em particular à
ciência sociológica, através de suas vertentes aplicadas, caberiam os desafios
gigantescos de oferecer estas mesmas explicações racionais para os fenômenos sociais
5 Cf. Foracchi (1982), Kettler et al (1995), Wolff (2011), Mazucato (2014). 6 Cf. Mazucato (2015). 7 Neste estudo utilizamos a edição brasileira de 1972 (Mannheim: 1972a).
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num mundo que caminhava a passos largos para o irracionalismo (seja a produção
desenfreada na esfera econômica ou as fórmulas totalitárias na esfera política). Diante
de um cenário com intensas mudanças culturais, sociais, econômicas e políticas a tarefa
da ciência sociológica tornava-se não apenas importante, mas acima de tudo necessária,
para que a própria sociedade evitasse caminhos que a levassem a situações de ruptura da
estabilidade/solidariedade e para a instabilidade/destruição.
Para além da importância social atribuída à ciência sociológica, um grande
desafio intelectual se impunha para Mannheim. Ao mesmo tempo em que era necessário
evitar que a sociedade adquirisse uma configuração que inviabilizasse a sua própria
existência, uma outra condição se fazia necessária, a saber, evitar também as soluções
teleológicas, como aquelas propugnadas pelo positivismo de Comte ou pelo
materialismo histórico-dialético de Marx. A Sociologia do Conhecimento oferecia, para
Mannheim, algumas ferramentas que permitiriam evitar os dois caminhos que ele
julgava serem prejudiciais à estabilidade da vida social democrática.
Quais eram estas ferramentas da Sociologia do Conhecimento que permitiriam
uma síntese intelectual da realidade social? Para Mannheim o primeiro passo consistiria
justamente em compreender a verdadeira configuração das forças intelectuais que
pensam e agem socialmente. Neste sentido ele parte de um pressuposto que supera a
teoria do conhecimento transcendental ao dizer que os indivíduos não pensam
isoladamente, mas sim o fazem coletivamente. Isto representa mais do que admitir,
como fizera Durkheim, que as categorias de pensamento são coletivas, exteriores e
anteriores aos indivíduos. Mannheim pretende ir além desta análise descritiva,
avançando compreensivamente para a dinâmica de como as próprias categorias de
pensamento são forjadas socialmente. Em termos mais práticos, apenas para
exemplificar, não bastaria admitir que o nazismo se tornou a ideologia dominante da
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Alemanha a partir de 1933 porque tais categorias de pensamento que a sustentam já
estavam dadas anteriormente. Seria preciso compreender o movimento dos diversos
grupos sociais, a favor e contra estas categorias, e também a maneira como a própria
dinâmica das disputas ideológicas8 se configuravam e reconfiguravam – uma vez que a
dinâmica destas disputas pressupunha que, dado um movimento de um dos grupos
sociais, poderia haver um reposicionamento de todos os demais grupos, atuando como
fator ou força que empurra a história para frente rumo a uma nova configuração.
Mannheim ressignifica dois conceitos existentes há muito tempo: o primeiro
deles é o conceito e ideologia (que surgira no século XVIII na obra do filósofo francês
Destutt de Tracy, sofrera modificação no início do século XIX por Napoleão Bonaparte,
e uma nova ressignificação na segunda metade do século XIX por Karl Marx), e o
segundo é o conceito de utopia (que surgira no século IV a.C. na Grécia Antiga, fora
retomado no começo do século XVI por Thomas More e novamente na segunda metade
do século XIX por Karl Marx e Friedrich Engels)9.
Mannheim utiliza estes dois conceitos em sua sociologia do conhecimento com a
finalidade de compreender a configuração das forças ideacionais num determinado
momento histórico. Com isto seria possível apreender os principais tipos de forças
ideacionais: aquelas de natureza conservadora, que visam à preservação da realidade
atual; aquelas de natureza reacionária, que buscam a volta a uma realidade anterior; e
ainda as de natureza progressista, que buscam a superação da realidade atual sem voltar
para uma realidade anterior, ou seja, empurrando a história para a frente. Num primeiro
nível analítico Mannheim considera como ideológicos todos os conteúdos ideacionais
8 Ressaltamos que, neste primeiro nível analítico, Mannheim considera como ideológico toda manifestação ideacional com poder de orientar a ação social dos indivíduos. Veremos a seguir que a Sociologia do Conhecimento de Karl Mannheim permite avançar para outros dois níveis analíticos. Cf. Mazucato (2015). 9 Cf. Rodrigues (2005).
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que orientam a ação social dos indivíduos, para, num segundo nível analítico classificar
como ideológicas somente as forças ideacionais que buscam preservar a realidade atual
e como utópicas as forças ideacionais que buscam romper com a realidade atual. Num
terceiro nível analítico Mannheim esboça o seu modelo mais avançado, em que separa
as forças ideacionais utópicas em dois grupos, as reacionárias e as progressistas.
Não seria pouca coisa se a ciência sociológica conseguisse oferecer um
diagnóstico fidedigno da realidade social, principalmente permitindo uma compreensão
da dinâmica das forças ideacionais que orientam as ações sociais dos indivíduos e dos
grupos. Contudo havia aqui uma questão política implícita: apenas os intelectuais
treinados para a análise sociológica estariam capacitados para elaborar tais
diagnósticos. Este pressuposto implicaria não somente no reconhecimento da função
social da ciência, mas também no status adquirido pelo papel dos intelectuais na
sociedade daquela época – categoria a que o próprio Mannheim pertencia.
Uma vez que consideramos a ciência sociológica como responsável por sínteses
sociais que permitem um diagnóstico científico da realidade, e os intelectuais como os
agentes sociais capacitados para realizar tais diagnósticos, estão dadas todas as
condições para o passo seguinte: a partir de bons diagnósticos seria possível a
elaboração de prognósticos para a intervenção racional na realidade. Este tema já estava
presente no final da agenda intelectual de Mannheim na Alemanha, sendo predominante
em sua produção inglesa a partir de 1933 (cf. Mannheim: 1972b).
A dimensão política da presença das ideias de Karl Mannheim na obra de
Florestan Fernandes
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Para se compreender a natureza que a “presença” das ideias de Karl Mannheim
assume na obra de Florestan Fernandes entre os anos 1950 e 1973 podemos nos utilizar
de um recurso metodológico que busque compreender as relações entre o texto (a obra)
e o contexto (intelectual e político)10. Neste sentido podemos compreender que, no
plano internacional, este momento da história a que nos debruçamos correspondeu ao
período pós Segunda Guerra Mundial, com a bipolarização política do mundo – agora
cindido entre os regimes capitalista e socialista –, com uma forte tendência para a
planificação econômica (inclusive em países com orientação mais liberal) e de forte
intervenção dos Estados Unidos nos demais países da América Latina.
Por sua vez, no plano nacional o Brasil passou por dois momentos de sua
história política: desde 1945 experimentava um regime político democrático que duraria
até 1964, momento em que o golpe militar – amplamente apoiado pelos Estados Unidos
– inauguraria o mais duro período ditatorial nacional. Apesar de todas as diferenças,
estes dois períodos tinham em comum a presença uma forte tendência de intervenção do
Estado na economia e na sociedade.
Não é por acaso que Mota (1986: 286-97), ao ensaiar uma periodização das
Ciências Sociais na América Latina aponta que de 1945 e 1964 houve um predomínio
das ideologias desenvolvimentistas e que, de 1964 a 1969 os cientistas sociais latino-
americanos elaboraram as suas revisões radicais e, por fim, de 1969 a 1973 surgiram as
grandes teorias da dependência. Carlos Guilherme Mota está apontando para um
repertório de época ou, ainda, para uma gramática política da época, ao identificar a
presença constante de determinados temas na agenda do debate intelectual latino-
americano.
10 Cf. Skinner (2002), Brandão (2007), Pocock (2013).
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Ainda seguindo estes passos, diríamos que Ianni (1989: 7-83) faz um balanço
mais verticalizado sobre o debate sociológico brasileiro do mesmo período,
identificando três grandes temas: a crise de transição (em relação ao sistema econômico
nacional, que deixou de ser predominantemente agrário e começou a caminhar rumo à
modernidade industrial), uma reinterpretação da história social do país (através da qual
as grandes teses produzidas desde o final do século XIX até os anos 1930 são
revisitadas sob uma nova perspectiva teórico-metodológica), e, por fim, a tese da
revolução burguesa nacional.
Todos estes temas apontados por Mota e por Ianni estarão presentes na produção
intelectual de Florestan deste período, perpassando por diversas de suas obras, como é o
caso de seus manuais teórico-metodológicos11, que buscavam oferecer ferramentas
científicas para a compreensão do processo de modernização nacional, e também
algumas indicações da aplicação de tais conhecimentos para o cenário atual, e suas
obras sobre a questão raciail no Brasil12, as quais, ao mesmo tempo em que discutiam
com algumas das grandes interpretações históricas já produzidas no país, colocavam a
sociedade como foco das análises do processo de modernização nacional.
Mas seria, sobretudo, num conjunto de obras publicadas entre 1960 e 197313,
que Florestan não somente estabeleceria um diálogo crítico com as interpretações
históricas já produzidas no país, como também inserir-se-ia na agenda dos grandes
debates intelectuais latino-americanos e mundiais. O processo de modernização
11 Fundamentos Empíricos da Explicação Sociológica (Fernandes: 1959); Ensaios de Sociologia Geral e Aplicada, publicado originalmente em 1960 (Fernandes: 1976a); e Elementos de Sociologia Teórica (Fernandes: 1970). 12 Principalmente Brancos e Negros em São Paulo, publicado originalmente em 1959 (Bastide & Fernandes: 1971), A integração do negro na sociedade de classes, publicado originalmente em 1964 (Fernandes: 2008) e O negro no mundo dos brancos, publicado originalmente em 1972 (Fernandes: 2007). 13 Referimo-nos aqui às obras Mudanças Sociais no Brasil (1960), A Sociologia numa Era de Revolução Social (1962), Sociedade de Classes e Subdesenvolvimento (1968) e Capitalismo Dependente e Classes Sociais na América Latina (1973).
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nacional, compreendido em seus aspectos econômicos, sociais, políticos e culturais,
seria analisado em obras como Mudanças Sociais no Brasil (Fernandes: 1960),
composta por uma série de ensaios produzidos nas décadas de 1940 e 1950, nos quais
questões como o desenvolvimento, a industrialização e a modernização destacam-se na
primeira parte da obra14. Com exemplo podemos citar um trecho do início do livro:
Onde o desenvolvimento intenso acaba se convertendo em alvo coletivo, os
desequilíbrios daí resultantes são agravados pela tendência à importação
prematura ou antecipada de técnicas, instituições e valores sociais. Ela
promove, inquestionavelmente, vários “progressos”, desejados ardentemente
por todos os países “pobres” ou “atrasados” do mundo. Mas produzem efeitos
reativos imperceptíveis, que desgastam as possibilidades de desenvolvimento
social. Nesta área, as atitudes e as motivações mais consistentes estimulam a
valorização de ideais de conforto, de segurança e de emprego do ócio que
fomentam a dissipação dos recursos, aumentam a improdutividade e aceleram
a elevação rápida do nível médio de vida. Só os países que puderam associar
esses alvos coletivos à planificação social conseguiram êxito marcante na
aceleração do desenvolvimento social. É que, nessas condições, puderam
eliminar os efeitos inconscientes e negativos da mudança cultural antecipada.
(Fernandes, 1960: 46)
Numa outra passagem desta obra podemos identificar uma incorporação da tese
mannheimiana da sociologia enquanto instrumento científico capaz de promover a
síntese dos processos sociais, já apontando para a função social da ciência (em
particular das ciências sociais):
No nível da atuação propriamente dita, porém, o homem carecerá de recursos
intelectuais novos para perceber como essas forças se manifestam, para
explicar a influência delas na preservação ou na alteração da ordem social, e
para agir com eficácia sobre as condições ou os efeitos delas, suscetíveis de
serem controlados de forma deliberada e racional. Tais recursos são
fornecidos pelas ciências sociais. Daí o interesse que o fomento do ensino e
da pesquisa dessas ciências apresenta para o desenvolvimento de uma cidade,
que se converteu em metrópole sob o signo da civilização baseada na
tecnologia científica. (Fernandes, 1960: 282)
14 Constituem exemplos disto a introdução, intitulada Atitudes e Motivações Desfavoráveis ao Desenvolvimento (escrita em 1959), o Capítulo I – Obstáculos Extra-Econômicos à Industrialização no Brasil (escrito em 1959), o Capítulo II – Existe uma Crise da Democracia no Brasil? (escrito em 1954), o Capítulo IV – Relações Culturais entre o Brasil e a Europa (escrito em 1954) e o Capítulo V – Relações Culturais entre o Brasil, o Ocidente e o Oriente (escrito em 1959). Já em relação à segunda parte da obra (Aspectos da Evolução Social de São Paulo, com capítulos escritos entre 1948 e 1959) e a terceira parte (Aspectos da Interação com o Índio e com o Negro, com capítulos escritos entre 1942 e 1951), suas temáticas vinculam-se mais aos estudos antropológicos ou aos estudos da questão racional no Brasil.
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Notamos neste trecho, de forma bastante sutil, a presença da teoria
mannheimiana da ideologia e da utopia, enquanto categorias de pensamento (estruturas
cognitivas sociais que perpassam as mentes individuais) e de ação (formas de
pensamento que orientam a ação social dos indivíduos e dos grupos)15, ao apontar para
as forças que proporcionam a preservação ou a alteração da ordem social atual.
Já em A Sociologia numa Era de Revolução Social, publicada em 1962, obra que
veio à tona num momento de intensa instabilidade política e social no Brasil, Florestan
discute uma série de temas perpassados por duas grandes questões: a função social da
ciência (no caso a ciência social) e o papel do intelectual (neste caso o cientista social).
Seja através de um debate com as tradições de interpretação histórica nacional de
momentos anteriores, ou ainda com os grandes intelectuais brasileiros e internacionais
sobre temas presente no debate intelectual atual, Florestan tenta conciliar uma “ética da
neutralidade científica” com uma “ética da responsabilidade social do intelectual”,
questão que poderia, também, ser ilustrada na oposição entre o “intelectual neutro” e o
“intelectual engajado”:
Em suma, parece-me que o cientista social deve atender às expectativas que o
inserem nos processos de autoconsciência da realidade social. Mas, ao fazê-
lo, não pode nem deve negligenciar outras obrigações a que está sujeito e que
decorrem da própria natureza do conhecimento científico, bem como da
quantidade dos papeis intelectuais que tem de desempenhar socialmente.
(Florestan, 1976b: 77)
De um lado, tem de tomar posição em face do desafio científico. De outro,
tem de procurar respostas para a necessidade premente de ajustarem-se a
natureza humana, as instituições sociais e a organização da sociedade a
mecanismos democráticos e racionais de controle dos problemas sociais pelo
homem. (Florestan, 1976b: 85)
Desse ângulo, as obrigações práticas do sociólogo distinguem-se apenas em
grau e em magnitude das obrigações que pesam sobre os demais cidadãos
brasileiros. Porque é capaz de “enxergar melhor certas coisas”, cabe-lhe
incentivar o interesse, o apreço e a lealdade por comportamentos sociais que
respondem produtivamente às exigências da situação. O sociólogo aparece,
15 Cf. Mazucato (2013; 2014).
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assim, como uma espécie de elemento de vanguarda na consciência dos
problemas sociais, não podendo elidir-se dos pesados encargos decorrentes,
mesmo sob o preço do sacrifício de alguns projetos de estudo pessoalmente
importantes. (Fernandes, 1976b: 87)
Mesmo que a orientação marxista venha ganhando cada vez mais espaços nas
obras de Florestan, a presença das teses de Mannheim ainda é bastante significativa.
Podemos identifica-la, principalmente, nas discussões empreendidas por Florestan sobre
as técnicas de controle racional dos processos sociais e sobre as técnicas de
planejamento econômico, social e político:
Ele [o planejamento] ainda não promoveu, como acreditam certos
especialistas (entre os quais se salienta Mannheim), um alargamento
apreciável das áreas nas quais o conflito pode ser definitivamente substituído
pela cooperação. Mas, em todas as nações em que vem sendo explorado com
sucesso, ele se tornou um fator social básico do aumento da riqueza, do
conforto, da segurança e da democratização da cultura ou do poder.
(Fernandes, 1976b: 38)
Mannheim não trepidou, mesmo, em cunhar uma noção como a de
“planejamento experimental”, que descreve as condições ideais daquilo que
poderíamos chamar de “planejamento social completo e perfeito”. Quer
concordemos ou não com suas ideias, uma coisa é patente: a ciência lida com
valores, inclusive no terreno da praxis. (Fernandes, 1976b: 137-8)
As barreiras opostas ao desenvolvimento rápido mas equilibrado são tão
variadas, complexas e fortes, nos “países subdesenvolvidos”, que todos eles
aprenderam que é impraticável combater a estagnação econômica, a
dependência social e o atraso cultural sem combinar o planejamento a uma
política de integração nacional. (Fernandes, 1976b: 236)
Por fim, vale ressaltar a discussão que Florestan empreende com os
representantes do que poderíamos denominar como teorias desenvolvimentistas, os
quais, como salientam Mota (1986) e Ianni (1989), encontram-se no centro da agenda
intelectual e política daquele período. A tese defendida por Florestan, a este respeito,
somente aceita o desenvolvimento numa perspectiva integral, ou seja, em que os
aspectos econômicos, sociais, culturais e políticos sejam, todos eles, simultaneamente
contemplados:
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Isso engendra uma grave anomalia pois os assuntos de interesse para a
coletividade como um todo são vistos e decididos à luz das concepções, dos
interesses e das iniciativas de ralas minorias, ansiosas sobretudo em manter
sua estabilidade na estrutura de poder. Por altruístas que fossem, tais
minorias nunca poderiam levar em conta a variedade e o alcance das
inovações possíveis. Entre os vários caminhos para “acelerar o crescimento
econômico” e “intensificar o progresso social” elas preferem, naturalmente,
as soluções que consultam à preservação dissimulada do status quo. Em
termos de potencialidades, para não falar-se em equidade social, esse estado
de coisas representa a destruição sistemática das principais vias de
consolidação do padrão civilizatório que pretendemos transplantar para o
Brasil. (Fernandes, 1976b: 89-90)
Em Sociedade de Classes e Subdesenvolvimento, que vem à publico em 1968,
momento em que o Brasil já experimentava o endurecimento da ditadura militar, a
filiação marxista de Florestan é nitidamente predominante, mas ainda encontramos
traços da presença das ideias de Karl Mannheim, principalmente em suas reflexões
sobre A “Revolução Brasileira” e os Intelectuais (papel político dos intelectuais), em O
Desenvolvimento como Problema Nacional (técnicas de planejamento democrático) e
em Crescimento Econômico e Instabilidade Política no Brasil (argumento das forças
intelectuais pela preservação ou alteração da ordem social).
Se em Mudanças Sociais no Brasil (1960) Florestan dizia que as conquistas do
regime democrático eram sólidas no país, em Sociedade de Classes e
Subdesenvolvimento (1968) inicia o prefácio “(...) manifestando o meu inconformismo
diante da ruptura com as pequenas e superficiais conquistas do regime democrático em
nosso País” (Fernandes, 1968: 7). Também reitera e radicaliza a sua posição em defesa
da necessidade do engajamento dos intelectuais nas questões públicas nacionais:
A vantagem indiscutível do “engajamento” aparece, pois, na relação do
sujeito-investigador com as tendências de mudança emergentes na sociedade
inclusiva. O cientista escrupulosamente “neutro” pode ser tão revolucionário
quanto o cientista abertamente “comprometido”. Contudo, o primeiro não
desenvolve a sensibilidade para os problemas de investigação que se impõem
em termos de atualidade ou de necessidade histórica. O segundo, ao
contrário, está continuamente imerso no fluxo dos acontecimentos que
possuem significado fundamental para a coletividade – tanto na superação do
passado, quanto na construção do presente e do futuro. Nesse sentido,
especificamente estratégico (e que não afeta o teor positivo do conhecimento
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sociológico), sempre estive atento à torrente histórica, pois sei que a
Sociologia não mereceria ser cultivada se não nos ajudasse a compreender, a
explicar e a transformar o mundo em que vivemos. A sociedade é tão
suscetível de aperfeiçoamentos quanto qualquer outra realidade, produzida
pelos homens. O sociólogo que reduz a Sociologia a uma arma do
pensamento conservador ou a um instrumento de defesa da ordem social
vigente ignora as implicações práticas da ciência, que alteram, em cada
instante, a capacidade de ação racional inovadora do agente humano,
orientado pelo pensamento científico. (Florestan, 1968: 15-6)
Reforça suas críticas ao desenvolvimentismo economicista, que deixa de
considerar a importância da mobilidade e da igualdade social e cultural, e também da
democracia. A este desenvolvimentismo Florestan atribui, em larga medida, a
responsabilidade pela instabilidade política no Brasil:
Em termos puramente genéticos, a instabilidade política não é causada pelo
crescimento econômico. Ela surge de desajustamentos estruturais crônicos,
que lançam raízes na distribuição extremamente desigual da renda, mas que
possuem origem social e natureza política. O crescimento econômico
contribui para mantar e agravar tais desajustamentos estruturais – mas não
porque ele existe: porque ele se desenrola numa escala deficiente e
insuficiente, quanto à sua intensidade, ao seu ritmo e ao seu padrão estrutural
(Fernandes, 1968: 144)
Sob esse aspecto, não são as forças econômicas que constroem o futuro no
presente que ameaçam o equilíbrio político da sociedade. Ao contrário, é o
desequilíbrio político da sociedade que ameaça aquelas forças econômicas,
reduzindo, solapando ou anulando suas potencialidades e funções sociais
construtivas. (Fernandes, 1968: 145)
Sobre os intelectuais, Florestan, em seu balanço sobre os últimos noventa anos
da história política do Brasil (1875-1965) dirá que “Nos vaivéns dos últimos noventa
anos, o único avanço realmente significativo e produtivo que demos se evidencia nas
tendências à valorização progressiva das técnicas democráticas de organização do
poder” (Fernandes, 1968: 185) e ainda que “(...) o intelectual deve ser o primeiro a
compreender a natureza real das exigências do estilo democrático de vida. Ele também
deve ser o primeiro a propagar essa verdade e o último a consentir em que ela seja traída
ou pervertida” (Fernandes, 1968: 187).
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Alguns anos depois Florestan publicará Capitalismo Dependente e
Classes Sociais na América Latina (1973). Como observado por Mota (1986), a agenda
intelectual latino-americana estava voltada, neste momento, para os debates sobre as
teorias da dependência. Florestan colocará as suas peças neste tabuleiro através de
diversos argumentos presentes nesta obra. Numa nota intitulada Explicação Prévia,
Florestan abre o livro afirmando que:
(...) o esforço de projetar a Sociologia no âmago dos processos de crise é,
intelectualmente, sempre compensador. (Fernandes, 2009: 18-9)
Ciência e ideologia não se separam, embora quando necessário caminhem
independentemente uma da outra. (Fernandes, 2009: 19)
Muito mais do que justificar a sua própria posição pessoal, esta explicação
prévia destina-se também a informar ao leitor qual será a tônica que o autor imprimirá
ao livro: a Ciência Social tem sim, uma função social, e também que o intelectual não
possui outra saída, na conjuntura nacional, a não ser engajar-se pela superação da
ordem social e política atual. Se nas três obras anteriores notamos a relevância atribuída
por Florestan ao diálogo latino-americano sobre os processos econômicos, políticos e
sociais, na presente obra ele se constitui no escopo central de suas análises, o que se
torna evidente num trecho logo no início do livro, ao afirmar que “O desafio latino-
americano, portanto, não é tanto produzir riqueza, mas como retê-la e distribuí-la, para
criar pelo menos uma verdadeira economia capitalista moderna” (Fernandes, 2009: 29).
Retomando sua posição crítica ao desenvolvimentismo economicista, Florestan dirá que:
A erupção do moderno imperialismo iniciou-se suavemente, através de
empresas corporativas norte-americanas ou europeias, que pareciam
corresponder aos padrões ou às aspirações de crescimento nacional
autossustentado, conscientemente almejado pelas burguesias latino-
americanas e suas elites no poder ou pelos governos. Por isso, elas foram
saudadas como uma contribuição efetiva para o “desarrollismo” ou o
“desenvolvimentismo”, recebendo apoio econômico e político irracional.
(Fernandes, 2009: 31)
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A origem e a causa desta situação é apontada no fato de que:
Os países latino-americanos enfrentam duas realidades ásperas: 1) estruturas
econômicas, socioculturais e políticas internas que podem absorver as
transformações do capitalismo, mas que inibem a integração nacional e o
desenvolvimento autônomo; 2) dominação externa que estimula a
modernização e o crescimento, nos estágios mais avançados do capitalismo,
mas que impede a revolução nacional e uma autonomia real. (Fernandes,
2009: 34)
Isto caracterizaria a posição dos países latino-americanos não somente como
constituindo a periferia do mundo moderno, mas também como sendo dependentes dos
países considerados centrais em tal mundo. Florestan designaria esta situação pela
expressão situação heteronômica, uma combinação de interesses nacionais e
internacionais que conseguia alinhavar um arranjo harmônico entre a dependência
(externa) e o subdesenvolvimento (interno), arranjo este que beneficiava as burguesias
nacional e internacional. Neste ponto Florestan não acredita mais no planejamento
enquanto ferramenta para a superação da situação heteronômica dos países latino-
americanos, uma vez que tal ferramenta vinha sendo utilizada essencialmente como um
mecanismo de manutenção da ordem política e social vigente, e a única maneira – para
Florestan – de superar tal situação seria através de uma revolução contra a ordem:
Poucos são os grupos que tentam focalizar sistematicamente o que “está
falhando” e, em particular, se o capitalismo poderá resolver, nas condições de
dependência e subdesenvolvimento, os problemas nacionais com que se
defrontam os povos da América Latina. As ideologias e utopias
“desenvolvimentistas” preenchem as suas funções, dinamizando atitudes,
comportamentos e orientações de valor inspiradas em expectativas de
“revolução dentro da ordem” (isto é, em transições pelas quais o
desenvolvimento capitalista sempre reproduzia socialmente a dependência e
o subdesenvolvimento, embora em novos níveis socioeconômicos e
culturais). Mas nenhum grupo ou setor de classes chega a articular
contraideologias e contrautopias efetivamente calibradas sobre a “revolução
contra a ordem” em termos de criação de alternativas capitalistas (ou seja, de
um neocapitalismo capaz de vencer, a partir de dentro, as causas e os efeitos
do subdesenvolvimento, forjando padrões autônomos, autossustentados e
autopropelidos de desenvolvimento capitalista). (Fernandes, 2009: 89)
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Situando a contribuição de Karl Mannheim sobre o planejamento democrático
num campo “reformista”, Florestan, ao mesmo tempo em que admite a sua importância
crítica sobre os processos sociais e políticos capitalistas e socialistas, também acredita
que, especificamente para as situações heteronômicas dos países latino-americanos, tal
solução não seria viável, dado que neste caso seria necessário um rompimento com a
ordem social e política vigente que, em princípio, a teoria mannheimiana não previa16:
Os sociólogos representaram seus papeis intelectuais de uma maneira
iluminista e etnocêntrica. A problemática teórica, empírica e prática da
Sociologia estaria inserida na vinculação do conhecimento sociológico com o
controle racional da mudança social. No limite extremo de sua formulação,
essa visão aparece na célebre obra de Mannheim, Homem e sociedade numa
época de reconstrução social. Seria injusto arquivar-se essa contribuição, tão
importante na história do pensamento moderno (como o fazem alguns, que a
veem como uma manifestação frustrada da “sociologia burguesa
reformista”). (Fernandes, 2009: 139)
Colocadas estas questões, acreditamos ter contribuído para um importante
aspecto do pensamento político e social de Florestan Fernandes, através de uma das
várias formas possíveis de se enfrentar o assunto, ou seja, por meio de uma análise da
natureza de seu diálogo intelectual com as teses de Karl Mannheim. Ao fazê-lo,
procuramos não pensar nesse diálogo como algo mecânico – uma simples incorporação
de ideias e conceitos –, enfatizando, principalmente, as relações entre texto e contexto,
por um lado, e as performances de Florestan, dentro do próprio contexto intelectual e
político brasileiro, por outro lado.
Desta maneira acreditamos ter contribuído para clarear a forma como algumas
ideias de Mannheim (a função social da ciência, representada pelo papel político da
16 Este posicionamento não coincide com a interpretação do autor deste trabalho, que compreende a tentativa de Mannheim em edificar intelectualmente uma Terceira Posição (Mannheim: 1972b) como um exemplo clássico de busca pela superação da ordem social vigente, seja ela capitalista ou socialista, através do reconhecimento dos aspectos positivos que cada qual teria proporcionado, mas tentando avançar a História para um modelo teórico de planificação que se atentasse: (i) para a superação do padrão social e político vigente; (ii) pela finalidade de reconstrução dos países europeus após a Segunda Guerra Mundial e (iii) por uma vertente que considera o caráter democrático como essencial para qualquer forma de planificação.
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síntese que caberia à Sociologia do Conhecimento; o papel social e político da
intelligentsia; e também a questão da intervenção racional na realidade política,
econômica e social, com a sua teoria da Planificação Democrática) estiveram presentes
no debate intelectual brasileiro dos anos 1950 a 1973, através da sua presença (uma
forma de recepção crítica e adaptada ao cenário intelectual nacional), no pensamento
político e social de Florestan Fernandes, através de vários exemplos retirados de suas
obras publicadas durante este período.
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