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Revista Olhares Sociais / PPGCS / UFRB, Vol. 03. Nº. 02 – 2014/ pág. 3 A DIMENSÃO POLÍTICA DE UM DIÁLOGO INTELECTUAL: A PRESENÇA DAS IDEIAS DE KARL MANNHEIM NA OBRA DE FLORESTAN FERNANDES Thiago Mazucato 1 Resumo: Dentre as diversas formas de diálogos intelectuais destacamos uma delas, a que denominamos “presença de ideias”, para analisar uma importante característica da produção intelectual de Florestan Fernandes: um diálogo crítico com ideias, conceitos, teorias, métodos, concebidos ou elaborados por intelectuais de instituições localizadas em países europeus (principalmente França, Inglaterra e Alemanha) ou dos Estados Unidos. Ao se tornar figura proeminente das Ciências Sociais brasileiras, a partir da década de 1950, Florestan Fernandes enfrentou um desafio de ordem política e intelectual: paralelo ao movimento de consolidação das Ciências Sociais, em especial em países periféricos, tornava-se necessário não somente instrumentalizar a formação científica com os rigores teóricos e metodológicos, mas também delimitar a função social da ciência e legitimar o papel político e social dos próprios intelectuais. No enfrentamento deste desafio Florestan mobilizará a sociologia do conhecimento elaborada por Karl Mannheim, e também algumas de suas principais ideias e conceitos. Analisaremos este diálogo intelectual através de algumas obras de Florestan Fernandes produzidas entre 1950 e 1973 e que refletem também a relação destas com dois contextos políticos nacionais separados pelo golpe militar de 1964. Palavras-Chave: Florestan Fernandes, Karl Mannheim, Contextualismo, Circulação de Ideias. Abstract: Among several ways for intellectual dialogue we stress just one, what we call “ideas presence” to analyze the main features of Florestan Fernandes’ intellectual work: the critical dialogue ideas, concepts, theories and methods conceived or elaborated by academic institutions located in Europe (mainly France, United Kingdom and Germany) or the US. When he become a remarkable character in Brazilian Social Sciences, since the 50’s, Florestan Fernandes faced a political and academic challenge: alongside the consolidation of social sciences in peripheral Brazil there were the imperative of improve the methodological and theoretical ground for this institutionalization but also frame the political role of the social scientists. Facing this quest Fernandes would invoke the sociology of knowledge created by Karl Mannhein as well some of his mains ideas. We analyze some of this ideas elaborated between 1950 and 1973 and how these elaboration were connected with the political pre and post 1964 military coup context. Key-words: Florestan Fernandes, Karl Mannheim, Contextualism, Ideas circulation. 1 Thiago Mazucato é sociólogo e mestrando em Ciência Política pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência Política (PPGPol) da Universidade Federal de São Carlos, onde realiza suas pesquisas com apoio da CAPES. E-mail: [email protected]

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Revista Olhares Sociais / PPGCS / UFRB, Vol. 03. Nº. 02 – 2014/ pág. 3

A DIMENSÃO POLÍTICA DE UM DIÁLOGO INTELECTUAL: A

PRESENÇA DAS IDEIAS DE KARL MANNHEIM NA OBRA DE

FLORESTAN FERNANDES

Thiago Mazucato1

Resumo: Dentre as diversas formas de diálogos intelectuais destacamos uma delas, a

que denominamos “presença de ideias”, para analisar uma importante característica da

produção intelectual de Florestan Fernandes: um diálogo crítico com ideias, conceitos,

teorias, métodos, concebidos ou elaborados por intelectuais de instituições localizadas

em países europeus (principalmente França, Inglaterra e Alemanha) ou dos Estados

Unidos. Ao se tornar figura proeminente das Ciências Sociais brasileiras, a partir da

década de 1950, Florestan Fernandes enfrentou um desafio de ordem política e

intelectual: paralelo ao movimento de consolidação das Ciências Sociais, em especial

em países periféricos, tornava-se necessário não somente instrumentalizar a formação

científica com os rigores teóricos e metodológicos, mas também delimitar a função

social da ciência e legitimar o papel político e social dos próprios intelectuais. No

enfrentamento deste desafio Florestan mobilizará a sociologia do conhecimento

elaborada por Karl Mannheim, e também algumas de suas principais ideias e conceitos.

Analisaremos este diálogo intelectual através de algumas obras de Florestan Fernandes

produzidas entre 1950 e 1973 e que refletem também a relação destas com dois

contextos políticos nacionais separados pelo golpe militar de 1964.

Palavras-Chave: Florestan Fernandes, Karl Mannheim, Contextualismo, Circulação de

Ideias.

Abstract: Among several ways for intellectual dialogue we stress just one, what we call

“ideas presence” to analyze the main features of Florestan Fernandes’ intellectual work:

the critical dialogue ideas, concepts, theories and methods conceived or elaborated by

academic institutions located in Europe (mainly France, United Kingdom and Germany)

or the US. When he become a remarkable character in Brazilian Social Sciences, since

the 50’s, Florestan Fernandes faced a political and academic challenge: alongside the

consolidation of social sciences in peripheral Brazil there were the imperative of

improve the methodological and theoretical ground for this institutionalization but also

frame the political role of the social scientists. Facing this quest Fernandes would

invoke the sociology of knowledge created by Karl Mannhein as well some of his mains

ideas. We analyze some of this ideas elaborated between 1950 and 1973 and how these

elaboration were connected with the political pre and post 1964 military coup context.

Key-words: Florestan Fernandes, Karl Mannheim, Contextualism, Ideas circulation.

1 Thiago Mazucato é sociólogo e mestrando em Ciência Política pelo Programa de Pós-Graduação em

Ciência Política (PPGPol) da Universidade Federal de São Carlos, onde realiza suas pesquisas com apoio

da CAPES. E-mail: [email protected]

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Um breve esboço do debate intelectual no Brasil de 1950 a 1973

As Ciências Sociais no Brasil já possuíam uma tradição de praticamente meio

século quando, na década de 1950, logo após a redemocratização que se iniciara com o

fim do Estado Novo de Getúlio Vargas em 1945, um intenso debate intelectual

transcendeu os muros da universidade e alcançou a esfera pública através de palestras,

comícios, campanhas, discussões nos jornais. O país vivenciava um forte momento de

modernização, a qual continuava a ser conduzida pelo Estado, tendo na figura do

presidente Juscelino Kubitschek um exemplo claro do que a literatura especializada

definiu como desenvolvimentismo.

Se a tradição de pensamento político e social vinha transformando os intelectuais

em figuras de destaque desde os finais do século XIX, neste momento

desenvolvimentista da história política brasileira os próprios intelectuais se projetariam,

por disporem de virtu (capacidade de interpretação da realidade) e de fortuna (o

contexto político amplamente favorável), no centro dos debates políticos, convertendo

as suas próprias obras acadêmicas em verdadeiras posições políticas em disputa com as

demais interpretações da realidade, seja para tornar-se a posição política majoritária

(com o maior número de adesões dos movimentos sociais e da população em geral), seja

para tornar-se a posição política oficial adota pelo Estado.

Assim vimos consolidar-se ao menos três grandes “posições” intelectuais com

grande poder de disputa política (da população e dos movimentos sociais, e também do

Estado): a primeira delas poderíamos chamar de “escola paulista de sociologia”2, que se

forjaria a partir de meados dos anos 1930 ligados à Faculdade de Filosofia, Ciências e

Letras da Universidade de São Paulo e também à Escola Livre de Sociologia e Política

2 Cf. Lahuerta (2005), Berlinck (2006), Mota (2008), Arruda (2010).

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de São Paulo, tendo em Florestan Fernandes a figura do seu principal líder na década de

1950; a segunda delas poderíamos designar como “cepalinos”3, que se forjara a partir da

fundação, em 1948, da Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL),

vinculada à organização das Nações Unidas (ONU), o qual teve como seu principal líder

no Brasil o economista Celso Furtado; e, finalmente, a terceira poderíamos denominar

como “isebianos”4, cujo grupo surgira no começo da década de 1950, mas que em 1955

seria formalizado por um decreto federal com a criação do Instituto Superior de

Estudos Brasileiros (ISEB), com sede no Rio de Janeiro (então capital federal) e tendo

como uma de suas figuras principais o sociólogo Guerreiro Ramos.

Estas foram as três principais “posições” intelectuais que ganharam fôlego do

começo da década de 1950 até 1964 e que lideravam os debates e disputas públicas pela

interpretação da realidade nacional. Certamente existiram outras posições intelectuais,

como os “católicos” e os “militares”, muitos deles representando posições mais

conservadoras no debate deste período (Pécaut: 1991), todavia, nossa intenção ao

mencionar tais instituições e posições intelectuais visa a uma contextualização inicial do

período maior que pretendemos abordar neste trabalho (1950-1973).

Com o golpe militar de 1964 e a instauração de uma nova ditadura no país temos

então um momento de inflexão dentro daquele período maior a que pretendemos nos

debruçar (1950-1973), no qual podemos distinguir um primeiro momento que durou

quase duas décadas (1945-1964), em que o país vivenciou um regime político

democrático, e um segundo momento, que durou quase uma década (1964-1973) em

que o país passou a vivenciar um regime político ditatorial. Neste segundo momento os

temas relacionados à natureza do Estado, da democracia e do autoritarismo, da

3 Cf. Fonseca (2000) e Cepêda (2008). 4 Cf. Lamounier (1978), Toledo (1998), Weffort (2006), Bariani (2015).

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representação e da participação política, assumiram um protagonismo nos debates

intelectuais que antes fora ocupado pela temática desenvolvimentista. As instituições

intelectuais do momento anterior foram aniquiladas ou dissolvidas, e os seus principais

líderes foram expulsos do país, caracterizando um momento em que a intelectualidade

brasileira vivera no exílio.

Cada uma das três posições intelectuais que mencionamos anteriormente fora

influenciada por teorias políticas, sociológicas e econômicas europeias e norte-

americanas, e o mesmo pode ser dito quanto às suas principais lideranças intelectuais.

Dentre estas influências poderíamos citar o pensamento econômico de Keynes, o

pensamento econômico e político de Karl Marx, a filosofia existencialista francesa, as

sociologias norte-americana, francesa e alemã.

Quando verticalizamos a análise e focalizamos na trajetória e na obra de

Florestan Fernandes notamos, por sua vez, um diálogo com todas estas tradições de

pensamento mencionadas anteriormente, porém, como ressalta Ianni (1991), neste caso

a “presença” das teses de Karl Mannheim encontra uma acolhida especial em seus

trabalhos deste período que pretendemos analisar.

Os principais aspectos da obra de Karl Mannheim presentes no debate intelectual

brasileiro de 1950 a 1973

Uma das características marcantes da trajetória – biográfica e intelectual – de

Karl Mannheim pode ser resumida na ideia de exílio. Bastante representativo é o fato de

ter vivido os seus primeiros 27 anos de vida na Hungria, até ser expulso deste país por

um regime político de extrema direita e migrar para a Alemanha, exatamente no

momento em que finalizava sua formação no doutorado em Filosofia; de ter vivido

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durante os próximos 13 anos na Alemanha, período em que se transformara numa figura

proeminente da Sociologia com reconhecimento internacional, até que, aos 40 anos de

idade, vivencia uma nova experiência de ser expulso de um país – agora da Alemanha –

pelo regime político nazista; e finalmente o fato de ter vivido os seus últimos 14 anos na

Inglaterra, vindo a falecer em 1947 aos 54 anos de idade, deixando uma produção

intelectual que dialogou diretamente com a Política, somados todos estes fatos, os

mesmos nos evidenciam as suas dolorosas experiências de vida com os regimes

políticos ultraconservadores e as suas experiências intelectuais de transição da Filosofia

para a Sociologia e desta para a Política5.

Estas experiências de transição – nas trajetórias de vida e intelectual – deixariam

traços marcantes em sua obra. Não teremos espaço suficiente para analisar toda a sua

reflexão inicial sobre a epistemologia e a natureza dos objetos das ciências históricas e

culturais, mais vinculadas à Filosofia, e também a sua primeira produção sociológica

dos anos 19206. Contudo, a partir de sua obra Ideologia e Utopia, publicada em 19297 e

que praticamente sistematizou o campo da Sociologia do Conhecimento, já temos

alguns dos principais temas da produção intelectual de Karl Mannheim que esteve

presente no debate intelectual brasileiro dos anos 1950 a 1973: a questão da função

social da ciência e o papel dos intelectuais.

A sua Sociologia do Conhecimento representava uma possibilidade de síntese

racional dos processos sociais, econômicos e políticos. Se às ciências em geral cabiam

as tarefas de explicação racional dos diversos fenômenos do mundo, em particular à

ciência sociológica, através de suas vertentes aplicadas, caberiam os desafios

gigantescos de oferecer estas mesmas explicações racionais para os fenômenos sociais

5 Cf. Foracchi (1982), Kettler et al (1995), Wolff (2011), Mazucato (2014). 6 Cf. Mazucato (2015). 7 Neste estudo utilizamos a edição brasileira de 1972 (Mannheim: 1972a).

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num mundo que caminhava a passos largos para o irracionalismo (seja a produção

desenfreada na esfera econômica ou as fórmulas totalitárias na esfera política). Diante

de um cenário com intensas mudanças culturais, sociais, econômicas e políticas a tarefa

da ciência sociológica tornava-se não apenas importante, mas acima de tudo necessária,

para que a própria sociedade evitasse caminhos que a levassem a situações de ruptura da

estabilidade/solidariedade e para a instabilidade/destruição.

Para além da importância social atribuída à ciência sociológica, um grande

desafio intelectual se impunha para Mannheim. Ao mesmo tempo em que era necessário

evitar que a sociedade adquirisse uma configuração que inviabilizasse a sua própria

existência, uma outra condição se fazia necessária, a saber, evitar também as soluções

teleológicas, como aquelas propugnadas pelo positivismo de Comte ou pelo

materialismo histórico-dialético de Marx. A Sociologia do Conhecimento oferecia, para

Mannheim, algumas ferramentas que permitiriam evitar os dois caminhos que ele

julgava serem prejudiciais à estabilidade da vida social democrática.

Quais eram estas ferramentas da Sociologia do Conhecimento que permitiriam

uma síntese intelectual da realidade social? Para Mannheim o primeiro passo consistiria

justamente em compreender a verdadeira configuração das forças intelectuais que

pensam e agem socialmente. Neste sentido ele parte de um pressuposto que supera a

teoria do conhecimento transcendental ao dizer que os indivíduos não pensam

isoladamente, mas sim o fazem coletivamente. Isto representa mais do que admitir,

como fizera Durkheim, que as categorias de pensamento são coletivas, exteriores e

anteriores aos indivíduos. Mannheim pretende ir além desta análise descritiva,

avançando compreensivamente para a dinâmica de como as próprias categorias de

pensamento são forjadas socialmente. Em termos mais práticos, apenas para

exemplificar, não bastaria admitir que o nazismo se tornou a ideologia dominante da

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Alemanha a partir de 1933 porque tais categorias de pensamento que a sustentam já

estavam dadas anteriormente. Seria preciso compreender o movimento dos diversos

grupos sociais, a favor e contra estas categorias, e também a maneira como a própria

dinâmica das disputas ideológicas8 se configuravam e reconfiguravam – uma vez que a

dinâmica destas disputas pressupunha que, dado um movimento de um dos grupos

sociais, poderia haver um reposicionamento de todos os demais grupos, atuando como

fator ou força que empurra a história para frente rumo a uma nova configuração.

Mannheim ressignifica dois conceitos existentes há muito tempo: o primeiro

deles é o conceito e ideologia (que surgira no século XVIII na obra do filósofo francês

Destutt de Tracy, sofrera modificação no início do século XIX por Napoleão Bonaparte,

e uma nova ressignificação na segunda metade do século XIX por Karl Marx), e o

segundo é o conceito de utopia (que surgira no século IV a.C. na Grécia Antiga, fora

retomado no começo do século XVI por Thomas More e novamente na segunda metade

do século XIX por Karl Marx e Friedrich Engels)9.

Mannheim utiliza estes dois conceitos em sua sociologia do conhecimento com a

finalidade de compreender a configuração das forças ideacionais num determinado

momento histórico. Com isto seria possível apreender os principais tipos de forças

ideacionais: aquelas de natureza conservadora, que visam à preservação da realidade

atual; aquelas de natureza reacionária, que buscam a volta a uma realidade anterior; e

ainda as de natureza progressista, que buscam a superação da realidade atual sem voltar

para uma realidade anterior, ou seja, empurrando a história para a frente. Num primeiro

nível analítico Mannheim considera como ideológicos todos os conteúdos ideacionais

8 Ressaltamos que, neste primeiro nível analítico, Mannheim considera como ideológico toda manifestação ideacional com poder de orientar a ação social dos indivíduos. Veremos a seguir que a Sociologia do Conhecimento de Karl Mannheim permite avançar para outros dois níveis analíticos. Cf. Mazucato (2015). 9 Cf. Rodrigues (2005).

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que orientam a ação social dos indivíduos, para, num segundo nível analítico classificar

como ideológicas somente as forças ideacionais que buscam preservar a realidade atual

e como utópicas as forças ideacionais que buscam romper com a realidade atual. Num

terceiro nível analítico Mannheim esboça o seu modelo mais avançado, em que separa

as forças ideacionais utópicas em dois grupos, as reacionárias e as progressistas.

Não seria pouca coisa se a ciência sociológica conseguisse oferecer um

diagnóstico fidedigno da realidade social, principalmente permitindo uma compreensão

da dinâmica das forças ideacionais que orientam as ações sociais dos indivíduos e dos

grupos. Contudo havia aqui uma questão política implícita: apenas os intelectuais

treinados para a análise sociológica estariam capacitados para elaborar tais

diagnósticos. Este pressuposto implicaria não somente no reconhecimento da função

social da ciência, mas também no status adquirido pelo papel dos intelectuais na

sociedade daquela época – categoria a que o próprio Mannheim pertencia.

Uma vez que consideramos a ciência sociológica como responsável por sínteses

sociais que permitem um diagnóstico científico da realidade, e os intelectuais como os

agentes sociais capacitados para realizar tais diagnósticos, estão dadas todas as

condições para o passo seguinte: a partir de bons diagnósticos seria possível a

elaboração de prognósticos para a intervenção racional na realidade. Este tema já estava

presente no final da agenda intelectual de Mannheim na Alemanha, sendo predominante

em sua produção inglesa a partir de 1933 (cf. Mannheim: 1972b).

A dimensão política da presença das ideias de Karl Mannheim na obra de

Florestan Fernandes

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Para se compreender a natureza que a “presença” das ideias de Karl Mannheim

assume na obra de Florestan Fernandes entre os anos 1950 e 1973 podemos nos utilizar

de um recurso metodológico que busque compreender as relações entre o texto (a obra)

e o contexto (intelectual e político)10. Neste sentido podemos compreender que, no

plano internacional, este momento da história a que nos debruçamos correspondeu ao

período pós Segunda Guerra Mundial, com a bipolarização política do mundo – agora

cindido entre os regimes capitalista e socialista –, com uma forte tendência para a

planificação econômica (inclusive em países com orientação mais liberal) e de forte

intervenção dos Estados Unidos nos demais países da América Latina.

Por sua vez, no plano nacional o Brasil passou por dois momentos de sua

história política: desde 1945 experimentava um regime político democrático que duraria

até 1964, momento em que o golpe militar – amplamente apoiado pelos Estados Unidos

– inauguraria o mais duro período ditatorial nacional. Apesar de todas as diferenças,

estes dois períodos tinham em comum a presença uma forte tendência de intervenção do

Estado na economia e na sociedade.

Não é por acaso que Mota (1986: 286-97), ao ensaiar uma periodização das

Ciências Sociais na América Latina aponta que de 1945 e 1964 houve um predomínio

das ideologias desenvolvimentistas e que, de 1964 a 1969 os cientistas sociais latino-

americanos elaboraram as suas revisões radicais e, por fim, de 1969 a 1973 surgiram as

grandes teorias da dependência. Carlos Guilherme Mota está apontando para um

repertório de época ou, ainda, para uma gramática política da época, ao identificar a

presença constante de determinados temas na agenda do debate intelectual latino-

americano.

10 Cf. Skinner (2002), Brandão (2007), Pocock (2013).

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Ainda seguindo estes passos, diríamos que Ianni (1989: 7-83) faz um balanço

mais verticalizado sobre o debate sociológico brasileiro do mesmo período,

identificando três grandes temas: a crise de transição (em relação ao sistema econômico

nacional, que deixou de ser predominantemente agrário e começou a caminhar rumo à

modernidade industrial), uma reinterpretação da história social do país (através da qual

as grandes teses produzidas desde o final do século XIX até os anos 1930 são

revisitadas sob uma nova perspectiva teórico-metodológica), e, por fim, a tese da

revolução burguesa nacional.

Todos estes temas apontados por Mota e por Ianni estarão presentes na produção

intelectual de Florestan deste período, perpassando por diversas de suas obras, como é o

caso de seus manuais teórico-metodológicos11, que buscavam oferecer ferramentas

científicas para a compreensão do processo de modernização nacional, e também

algumas indicações da aplicação de tais conhecimentos para o cenário atual, e suas

obras sobre a questão raciail no Brasil12, as quais, ao mesmo tempo em que discutiam

com algumas das grandes interpretações históricas já produzidas no país, colocavam a

sociedade como foco das análises do processo de modernização nacional.

Mas seria, sobretudo, num conjunto de obras publicadas entre 1960 e 197313,

que Florestan não somente estabeleceria um diálogo crítico com as interpretações

históricas já produzidas no país, como também inserir-se-ia na agenda dos grandes

debates intelectuais latino-americanos e mundiais. O processo de modernização

11 Fundamentos Empíricos da Explicação Sociológica (Fernandes: 1959); Ensaios de Sociologia Geral e Aplicada, publicado originalmente em 1960 (Fernandes: 1976a); e Elementos de Sociologia Teórica (Fernandes: 1970). 12 Principalmente Brancos e Negros em São Paulo, publicado originalmente em 1959 (Bastide & Fernandes: 1971), A integração do negro na sociedade de classes, publicado originalmente em 1964 (Fernandes: 2008) e O negro no mundo dos brancos, publicado originalmente em 1972 (Fernandes: 2007). 13 Referimo-nos aqui às obras Mudanças Sociais no Brasil (1960), A Sociologia numa Era de Revolução Social (1962), Sociedade de Classes e Subdesenvolvimento (1968) e Capitalismo Dependente e Classes Sociais na América Latina (1973).

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nacional, compreendido em seus aspectos econômicos, sociais, políticos e culturais,

seria analisado em obras como Mudanças Sociais no Brasil (Fernandes: 1960),

composta por uma série de ensaios produzidos nas décadas de 1940 e 1950, nos quais

questões como o desenvolvimento, a industrialização e a modernização destacam-se na

primeira parte da obra14. Com exemplo podemos citar um trecho do início do livro:

Onde o desenvolvimento intenso acaba se convertendo em alvo coletivo, os

desequilíbrios daí resultantes são agravados pela tendência à importação

prematura ou antecipada de técnicas, instituições e valores sociais. Ela

promove, inquestionavelmente, vários “progressos”, desejados ardentemente

por todos os países “pobres” ou “atrasados” do mundo. Mas produzem efeitos

reativos imperceptíveis, que desgastam as possibilidades de desenvolvimento

social. Nesta área, as atitudes e as motivações mais consistentes estimulam a

valorização de ideais de conforto, de segurança e de emprego do ócio que

fomentam a dissipação dos recursos, aumentam a improdutividade e aceleram

a elevação rápida do nível médio de vida. Só os países que puderam associar

esses alvos coletivos à planificação social conseguiram êxito marcante na

aceleração do desenvolvimento social. É que, nessas condições, puderam

eliminar os efeitos inconscientes e negativos da mudança cultural antecipada.

(Fernandes, 1960: 46)

Numa outra passagem desta obra podemos identificar uma incorporação da tese

mannheimiana da sociologia enquanto instrumento científico capaz de promover a

síntese dos processos sociais, já apontando para a função social da ciência (em

particular das ciências sociais):

No nível da atuação propriamente dita, porém, o homem carecerá de recursos

intelectuais novos para perceber como essas forças se manifestam, para

explicar a influência delas na preservação ou na alteração da ordem social, e

para agir com eficácia sobre as condições ou os efeitos delas, suscetíveis de

serem controlados de forma deliberada e racional. Tais recursos são

fornecidos pelas ciências sociais. Daí o interesse que o fomento do ensino e

da pesquisa dessas ciências apresenta para o desenvolvimento de uma cidade,

que se converteu em metrópole sob o signo da civilização baseada na

tecnologia científica. (Fernandes, 1960: 282)

14 Constituem exemplos disto a introdução, intitulada Atitudes e Motivações Desfavoráveis ao Desenvolvimento (escrita em 1959), o Capítulo I – Obstáculos Extra-Econômicos à Industrialização no Brasil (escrito em 1959), o Capítulo II – Existe uma Crise da Democracia no Brasil? (escrito em 1954), o Capítulo IV – Relações Culturais entre o Brasil e a Europa (escrito em 1954) e o Capítulo V – Relações Culturais entre o Brasil, o Ocidente e o Oriente (escrito em 1959). Já em relação à segunda parte da obra (Aspectos da Evolução Social de São Paulo, com capítulos escritos entre 1948 e 1959) e a terceira parte (Aspectos da Interação com o Índio e com o Negro, com capítulos escritos entre 1942 e 1951), suas temáticas vinculam-se mais aos estudos antropológicos ou aos estudos da questão racional no Brasil.

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Notamos neste trecho, de forma bastante sutil, a presença da teoria

mannheimiana da ideologia e da utopia, enquanto categorias de pensamento (estruturas

cognitivas sociais que perpassam as mentes individuais) e de ação (formas de

pensamento que orientam a ação social dos indivíduos e dos grupos)15, ao apontar para

as forças que proporcionam a preservação ou a alteração da ordem social atual.

Já em A Sociologia numa Era de Revolução Social, publicada em 1962, obra que

veio à tona num momento de intensa instabilidade política e social no Brasil, Florestan

discute uma série de temas perpassados por duas grandes questões: a função social da

ciência (no caso a ciência social) e o papel do intelectual (neste caso o cientista social).

Seja através de um debate com as tradições de interpretação histórica nacional de

momentos anteriores, ou ainda com os grandes intelectuais brasileiros e internacionais

sobre temas presente no debate intelectual atual, Florestan tenta conciliar uma “ética da

neutralidade científica” com uma “ética da responsabilidade social do intelectual”,

questão que poderia, também, ser ilustrada na oposição entre o “intelectual neutro” e o

“intelectual engajado”:

Em suma, parece-me que o cientista social deve atender às expectativas que o

inserem nos processos de autoconsciência da realidade social. Mas, ao fazê-

lo, não pode nem deve negligenciar outras obrigações a que está sujeito e que

decorrem da própria natureza do conhecimento científico, bem como da

quantidade dos papeis intelectuais que tem de desempenhar socialmente.

(Florestan, 1976b: 77)

De um lado, tem de tomar posição em face do desafio científico. De outro,

tem de procurar respostas para a necessidade premente de ajustarem-se a

natureza humana, as instituições sociais e a organização da sociedade a

mecanismos democráticos e racionais de controle dos problemas sociais pelo

homem. (Florestan, 1976b: 85)

Desse ângulo, as obrigações práticas do sociólogo distinguem-se apenas em

grau e em magnitude das obrigações que pesam sobre os demais cidadãos

brasileiros. Porque é capaz de “enxergar melhor certas coisas”, cabe-lhe

incentivar o interesse, o apreço e a lealdade por comportamentos sociais que

respondem produtivamente às exigências da situação. O sociólogo aparece,

15 Cf. Mazucato (2013; 2014).

Revista Olhares Sociais / PPGCS / UFRB, Vol. 03. Nº. 02 – 2014/ pág. 16

assim, como uma espécie de elemento de vanguarda na consciência dos

problemas sociais, não podendo elidir-se dos pesados encargos decorrentes,

mesmo sob o preço do sacrifício de alguns projetos de estudo pessoalmente

importantes. (Fernandes, 1976b: 87)

Mesmo que a orientação marxista venha ganhando cada vez mais espaços nas

obras de Florestan, a presença das teses de Mannheim ainda é bastante significativa.

Podemos identifica-la, principalmente, nas discussões empreendidas por Florestan sobre

as técnicas de controle racional dos processos sociais e sobre as técnicas de

planejamento econômico, social e político:

Ele [o planejamento] ainda não promoveu, como acreditam certos

especialistas (entre os quais se salienta Mannheim), um alargamento

apreciável das áreas nas quais o conflito pode ser definitivamente substituído

pela cooperação. Mas, em todas as nações em que vem sendo explorado com

sucesso, ele se tornou um fator social básico do aumento da riqueza, do

conforto, da segurança e da democratização da cultura ou do poder.

(Fernandes, 1976b: 38)

Mannheim não trepidou, mesmo, em cunhar uma noção como a de

“planejamento experimental”, que descreve as condições ideais daquilo que

poderíamos chamar de “planejamento social completo e perfeito”. Quer

concordemos ou não com suas ideias, uma coisa é patente: a ciência lida com

valores, inclusive no terreno da praxis. (Fernandes, 1976b: 137-8)

As barreiras opostas ao desenvolvimento rápido mas equilibrado são tão

variadas, complexas e fortes, nos “países subdesenvolvidos”, que todos eles

aprenderam que é impraticável combater a estagnação econômica, a

dependência social e o atraso cultural sem combinar o planejamento a uma

política de integração nacional. (Fernandes, 1976b: 236)

Por fim, vale ressaltar a discussão que Florestan empreende com os

representantes do que poderíamos denominar como teorias desenvolvimentistas, os

quais, como salientam Mota (1986) e Ianni (1989), encontram-se no centro da agenda

intelectual e política daquele período. A tese defendida por Florestan, a este respeito,

somente aceita o desenvolvimento numa perspectiva integral, ou seja, em que os

aspectos econômicos, sociais, culturais e políticos sejam, todos eles, simultaneamente

contemplados:

Revista Olhares Sociais / PPGCS / UFRB, Vol. 03. Nº. 02 – 2014/ pág. 17

Isso engendra uma grave anomalia pois os assuntos de interesse para a

coletividade como um todo são vistos e decididos à luz das concepções, dos

interesses e das iniciativas de ralas minorias, ansiosas sobretudo em manter

sua estabilidade na estrutura de poder. Por altruístas que fossem, tais

minorias nunca poderiam levar em conta a variedade e o alcance das

inovações possíveis. Entre os vários caminhos para “acelerar o crescimento

econômico” e “intensificar o progresso social” elas preferem, naturalmente,

as soluções que consultam à preservação dissimulada do status quo. Em

termos de potencialidades, para não falar-se em equidade social, esse estado

de coisas representa a destruição sistemática das principais vias de

consolidação do padrão civilizatório que pretendemos transplantar para o

Brasil. (Fernandes, 1976b: 89-90)

Em Sociedade de Classes e Subdesenvolvimento, que vem à publico em 1968,

momento em que o Brasil já experimentava o endurecimento da ditadura militar, a

filiação marxista de Florestan é nitidamente predominante, mas ainda encontramos

traços da presença das ideias de Karl Mannheim, principalmente em suas reflexões

sobre A “Revolução Brasileira” e os Intelectuais (papel político dos intelectuais), em O

Desenvolvimento como Problema Nacional (técnicas de planejamento democrático) e

em Crescimento Econômico e Instabilidade Política no Brasil (argumento das forças

intelectuais pela preservação ou alteração da ordem social).

Se em Mudanças Sociais no Brasil (1960) Florestan dizia que as conquistas do

regime democrático eram sólidas no país, em Sociedade de Classes e

Subdesenvolvimento (1968) inicia o prefácio “(...) manifestando o meu inconformismo

diante da ruptura com as pequenas e superficiais conquistas do regime democrático em

nosso País” (Fernandes, 1968: 7). Também reitera e radicaliza a sua posição em defesa

da necessidade do engajamento dos intelectuais nas questões públicas nacionais:

A vantagem indiscutível do “engajamento” aparece, pois, na relação do

sujeito-investigador com as tendências de mudança emergentes na sociedade

inclusiva. O cientista escrupulosamente “neutro” pode ser tão revolucionário

quanto o cientista abertamente “comprometido”. Contudo, o primeiro não

desenvolve a sensibilidade para os problemas de investigação que se impõem

em termos de atualidade ou de necessidade histórica. O segundo, ao

contrário, está continuamente imerso no fluxo dos acontecimentos que

possuem significado fundamental para a coletividade – tanto na superação do

passado, quanto na construção do presente e do futuro. Nesse sentido,

especificamente estratégico (e que não afeta o teor positivo do conhecimento

Revista Olhares Sociais / PPGCS / UFRB, Vol. 03. Nº. 02 – 2014/ pág. 18

sociológico), sempre estive atento à torrente histórica, pois sei que a

Sociologia não mereceria ser cultivada se não nos ajudasse a compreender, a

explicar e a transformar o mundo em que vivemos. A sociedade é tão

suscetível de aperfeiçoamentos quanto qualquer outra realidade, produzida

pelos homens. O sociólogo que reduz a Sociologia a uma arma do

pensamento conservador ou a um instrumento de defesa da ordem social

vigente ignora as implicações práticas da ciência, que alteram, em cada

instante, a capacidade de ação racional inovadora do agente humano,

orientado pelo pensamento científico. (Florestan, 1968: 15-6)

Reforça suas críticas ao desenvolvimentismo economicista, que deixa de

considerar a importância da mobilidade e da igualdade social e cultural, e também da

democracia. A este desenvolvimentismo Florestan atribui, em larga medida, a

responsabilidade pela instabilidade política no Brasil:

Em termos puramente genéticos, a instabilidade política não é causada pelo

crescimento econômico. Ela surge de desajustamentos estruturais crônicos,

que lançam raízes na distribuição extremamente desigual da renda, mas que

possuem origem social e natureza política. O crescimento econômico

contribui para mantar e agravar tais desajustamentos estruturais – mas não

porque ele existe: porque ele se desenrola numa escala deficiente e

insuficiente, quanto à sua intensidade, ao seu ritmo e ao seu padrão estrutural

(Fernandes, 1968: 144)

Sob esse aspecto, não são as forças econômicas que constroem o futuro no

presente que ameaçam o equilíbrio político da sociedade. Ao contrário, é o

desequilíbrio político da sociedade que ameaça aquelas forças econômicas,

reduzindo, solapando ou anulando suas potencialidades e funções sociais

construtivas. (Fernandes, 1968: 145)

Sobre os intelectuais, Florestan, em seu balanço sobre os últimos noventa anos

da história política do Brasil (1875-1965) dirá que “Nos vaivéns dos últimos noventa

anos, o único avanço realmente significativo e produtivo que demos se evidencia nas

tendências à valorização progressiva das técnicas democráticas de organização do

poder” (Fernandes, 1968: 185) e ainda que “(...) o intelectual deve ser o primeiro a

compreender a natureza real das exigências do estilo democrático de vida. Ele também

deve ser o primeiro a propagar essa verdade e o último a consentir em que ela seja traída

ou pervertida” (Fernandes, 1968: 187).

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Alguns anos depois Florestan publicará Capitalismo Dependente e

Classes Sociais na América Latina (1973). Como observado por Mota (1986), a agenda

intelectual latino-americana estava voltada, neste momento, para os debates sobre as

teorias da dependência. Florestan colocará as suas peças neste tabuleiro através de

diversos argumentos presentes nesta obra. Numa nota intitulada Explicação Prévia,

Florestan abre o livro afirmando que:

(...) o esforço de projetar a Sociologia no âmago dos processos de crise é,

intelectualmente, sempre compensador. (Fernandes, 2009: 18-9)

Ciência e ideologia não se separam, embora quando necessário caminhem

independentemente uma da outra. (Fernandes, 2009: 19)

Muito mais do que justificar a sua própria posição pessoal, esta explicação

prévia destina-se também a informar ao leitor qual será a tônica que o autor imprimirá

ao livro: a Ciência Social tem sim, uma função social, e também que o intelectual não

possui outra saída, na conjuntura nacional, a não ser engajar-se pela superação da

ordem social e política atual. Se nas três obras anteriores notamos a relevância atribuída

por Florestan ao diálogo latino-americano sobre os processos econômicos, políticos e

sociais, na presente obra ele se constitui no escopo central de suas análises, o que se

torna evidente num trecho logo no início do livro, ao afirmar que “O desafio latino-

americano, portanto, não é tanto produzir riqueza, mas como retê-la e distribuí-la, para

criar pelo menos uma verdadeira economia capitalista moderna” (Fernandes, 2009: 29).

Retomando sua posição crítica ao desenvolvimentismo economicista, Florestan dirá que:

A erupção do moderno imperialismo iniciou-se suavemente, através de

empresas corporativas norte-americanas ou europeias, que pareciam

corresponder aos padrões ou às aspirações de crescimento nacional

autossustentado, conscientemente almejado pelas burguesias latino-

americanas e suas elites no poder ou pelos governos. Por isso, elas foram

saudadas como uma contribuição efetiva para o “desarrollismo” ou o

“desenvolvimentismo”, recebendo apoio econômico e político irracional.

(Fernandes, 2009: 31)

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A origem e a causa desta situação é apontada no fato de que:

Os países latino-americanos enfrentam duas realidades ásperas: 1) estruturas

econômicas, socioculturais e políticas internas que podem absorver as

transformações do capitalismo, mas que inibem a integração nacional e o

desenvolvimento autônomo; 2) dominação externa que estimula a

modernização e o crescimento, nos estágios mais avançados do capitalismo,

mas que impede a revolução nacional e uma autonomia real. (Fernandes,

2009: 34)

Isto caracterizaria a posição dos países latino-americanos não somente como

constituindo a periferia do mundo moderno, mas também como sendo dependentes dos

países considerados centrais em tal mundo. Florestan designaria esta situação pela

expressão situação heteronômica, uma combinação de interesses nacionais e

internacionais que conseguia alinhavar um arranjo harmônico entre a dependência

(externa) e o subdesenvolvimento (interno), arranjo este que beneficiava as burguesias

nacional e internacional. Neste ponto Florestan não acredita mais no planejamento

enquanto ferramenta para a superação da situação heteronômica dos países latino-

americanos, uma vez que tal ferramenta vinha sendo utilizada essencialmente como um

mecanismo de manutenção da ordem política e social vigente, e a única maneira – para

Florestan – de superar tal situação seria através de uma revolução contra a ordem:

Poucos são os grupos que tentam focalizar sistematicamente o que “está

falhando” e, em particular, se o capitalismo poderá resolver, nas condições de

dependência e subdesenvolvimento, os problemas nacionais com que se

defrontam os povos da América Latina. As ideologias e utopias

“desenvolvimentistas” preenchem as suas funções, dinamizando atitudes,

comportamentos e orientações de valor inspiradas em expectativas de

“revolução dentro da ordem” (isto é, em transições pelas quais o

desenvolvimento capitalista sempre reproduzia socialmente a dependência e

o subdesenvolvimento, embora em novos níveis socioeconômicos e

culturais). Mas nenhum grupo ou setor de classes chega a articular

contraideologias e contrautopias efetivamente calibradas sobre a “revolução

contra a ordem” em termos de criação de alternativas capitalistas (ou seja, de

um neocapitalismo capaz de vencer, a partir de dentro, as causas e os efeitos

do subdesenvolvimento, forjando padrões autônomos, autossustentados e

autopropelidos de desenvolvimento capitalista). (Fernandes, 2009: 89)

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Situando a contribuição de Karl Mannheim sobre o planejamento democrático

num campo “reformista”, Florestan, ao mesmo tempo em que admite a sua importância

crítica sobre os processos sociais e políticos capitalistas e socialistas, também acredita

que, especificamente para as situações heteronômicas dos países latino-americanos, tal

solução não seria viável, dado que neste caso seria necessário um rompimento com a

ordem social e política vigente que, em princípio, a teoria mannheimiana não previa16:

Os sociólogos representaram seus papeis intelectuais de uma maneira

iluminista e etnocêntrica. A problemática teórica, empírica e prática da

Sociologia estaria inserida na vinculação do conhecimento sociológico com o

controle racional da mudança social. No limite extremo de sua formulação,

essa visão aparece na célebre obra de Mannheim, Homem e sociedade numa

época de reconstrução social. Seria injusto arquivar-se essa contribuição, tão

importante na história do pensamento moderno (como o fazem alguns, que a

veem como uma manifestação frustrada da “sociologia burguesa

reformista”). (Fernandes, 2009: 139)

Colocadas estas questões, acreditamos ter contribuído para um importante

aspecto do pensamento político e social de Florestan Fernandes, através de uma das

várias formas possíveis de se enfrentar o assunto, ou seja, por meio de uma análise da

natureza de seu diálogo intelectual com as teses de Karl Mannheim. Ao fazê-lo,

procuramos não pensar nesse diálogo como algo mecânico – uma simples incorporação

de ideias e conceitos –, enfatizando, principalmente, as relações entre texto e contexto,

por um lado, e as performances de Florestan, dentro do próprio contexto intelectual e

político brasileiro, por outro lado.

Desta maneira acreditamos ter contribuído para clarear a forma como algumas

ideias de Mannheim (a função social da ciência, representada pelo papel político da

16 Este posicionamento não coincide com a interpretação do autor deste trabalho, que compreende a tentativa de Mannheim em edificar intelectualmente uma Terceira Posição (Mannheim: 1972b) como um exemplo clássico de busca pela superação da ordem social vigente, seja ela capitalista ou socialista, através do reconhecimento dos aspectos positivos que cada qual teria proporcionado, mas tentando avançar a História para um modelo teórico de planificação que se atentasse: (i) para a superação do padrão social e político vigente; (ii) pela finalidade de reconstrução dos países europeus após a Segunda Guerra Mundial e (iii) por uma vertente que considera o caráter democrático como essencial para qualquer forma de planificação.

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síntese que caberia à Sociologia do Conhecimento; o papel social e político da

intelligentsia; e também a questão da intervenção racional na realidade política,

econômica e social, com a sua teoria da Planificação Democrática) estiveram presentes

no debate intelectual brasileiro dos anos 1950 a 1973, através da sua presença (uma

forma de recepção crítica e adaptada ao cenário intelectual nacional), no pensamento

político e social de Florestan Fernandes, através de vários exemplos retirados de suas

obras publicadas durante este período.

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