ridenti - intelectuais e modernidade

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  • 7/25/2019 Ridenti - Intelectuais e Modernidade

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    Marcelo Ridenti

    Intelectuais e modernidade:Marshall Berman e seu pblico brasileiro

    O desafio proposto neste artigo abrir pistas para pensar os intelectuaisna sociedade brasileira dos anos 1980 em diante1. Para tanto, ser analisadaa recepo no Brasil do livro de Marshall Berman Tudoque slido desman-cha no ar, a aventura da modernidade, publicado pela editora Companhiadas Letras em 1986. Trata-se de retomar uma interpretao esboada porocasio dos 150 anos doManifesto Comunista(RIDENTI, 1998). Investigara repercusso desse livro de Berman uma porta de entrada para pensar oentrelaamento entre o campo intelectual e a indstria cultural no Brasil,bem como as relaes entre o mercado e o pensamento de esquerda.

    Modernidade e intelectuais em Tudo que slido desmancha no ar

    O ttulo Tudo que slido desmancha no arfoi tirado de uma clebre

    formulao doManifesto do Partido Comunista, escrito em 1848 por Marxe Engels (1996). A citao no gratuita: o Manifesto seria uma formulaogenial e criativa sobre a modernidade, entendida como um emaranhadocontraditrio de experincias de vida compartilhadas pelas pessoas em todoo mundo contemporneo. O Fausto de Goethe vem em primeiro lugar nosumrio, mas o Manifesto Comunistavinha em primeiro lugar na minhacabea, segundo Berman (2001, p. 114-115).

    1

    Este texto foi apresentado na mesa-redonda Intelectuais e modernidade, parte do Seminrio Inter-nacional Tradies e Modernidades, realizado na Universidade Federal Fluminense, em Niteri, de 1a 4 de setembro de 2009. Tambm integraram a mesa: Maria Alice Resende e Marshall Berman.

    Revista Brasileira de Cincia Poltica, n 3. Braslia, janeiro-julho de 2010, pp. 289-316.

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    Marshall Berman questiona a dualidade entre modernizao e moder-nismo. A modernidade ocorreria simultaneamente na economia e na po-ltica, bem como nas artes, na cultura e na sensibilidade. OManifestoseria

    a primeira grande obra de arte modernista, arqutipo de todos os vriosmanifestos modernistas que viriam depois dele. Por trs da questo explcitada luta de classes, haveria noManifestoum aspecto menos evidente, pormmais profundo e atual: a tenso entre a viso slida e a viso diluidora deMarx sobre a vida moderna (BERMAN, 1986, p. 89). Anunciava-se o desen-volvimento ilimitado da produo econmica e tambm cultural, liberandoa capacidade e o esforo humanos para o desenvolvimento: para a mudanapermanente, para a perptua sublevao e renovao de todos os modos de

    vida pessoal e social, nos termos de Berman (1986, p. 93).Acontece que a sociedade burguesa no pode cumprir sua promessa de

    abundncia para todos, pois os bens produzidos coletivamente so apropriadosprivadamente por poucos. Assim, sucedem-se as crises de superproduo demercadorias que no encontram compradores, gerando as condies para quea aparente solidez da sociedade capitalista tambm se desmanche no ar.

    Para Berman, contudo, as crises no capitalismo no levariam necessa-riamente sua destruio; nem haveria uma classe que pudesse controlaras potncias infernais da modernidade, acionadas pelo capitalismo. Ascrises seriam inesperadas fontes de fora e resistncia do capitalismo, quese reproduziria numa espiral sem fim de destruio e recriao econmica,poltica e cultural. A perene autodestruio inovadora envolveria as pessoasna revoluo permanente da modernidade:

    Para que as pessoas sobrevivam na sociedade moderna, qualquer que seja sua classe,

    suas personalidades necessitam assumir a fluidez e a forma aberta dessa sociedade.

    Homens e mulheres modernos precisam aprender a aspirar mudana: no apenas

    estar aptos mudana em sua vida pessoal e social, mas ir efetivamente em busca das

    mudanas, procur-las de maneira ativa, levando-as adiante. Precisam aprender (...)

    a se deliciar na mobilidade, a se empenhar na renovao, a olhar sempre na direo de

    futuros desenvolvimentos em suas condies de vida e em suas relaes com outros

    seres humanos (BERMAN, 1986, p. 94).

    O eixo de Tudo que slido desmancha no ar o desenvolvimento do

    indivduo moderno e a modernidade como processo subjetivo de autode-

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    senvolvimento ilimitado, que teriam sido abordados pela primeira vez noManifesto. A contemporaneidade da obra de Marx estaria mais nas perguntasformuladas do que nas respostas apresentadas. No seria o caso de indicar

    um caminho que permita sair das contradies da vida moderna, e simum caminho mais seguro e mais profundo que nos coloque exatamente nocerne dessas contradies (BERMAN, 1986, p. 125). Caberia mergulharna modernidade, sem a iluso de que suas contradies seriam abolidaspor uma revoluo, que supostamente daria lugar harmonia social: Se asociedade burguesa realmente o turbilho que Marx pensa que , comopode ele esperar que todas as suas correntes fluam numa nica direo, deharmonia e integrao pacfica?, pergunta Berman (1986, p. 111).

    Uma eventual sociedade comunista s aprofundaria a experincia da mo-dernidade, que seria reposta num fluxo perptuo. A atualidade doManifestoestaria em sua primeira parte, que analisa o homem desacomodado e despidodo halo de qualquer iluso metafsica, tpico da modernidade, levado a viveros dilemas do mundo assustador. Marx e Engels equacionariam

    as polaridades que iro moldar e animar a cultura do modernismo do sculo seguinte:

    o tema dos desejos e impulsos insaciveis, da revoluo permanente, do desenvol-

    vimento infinito, da perptua criao e renovao em todas as esferas de vida; e sua

    anttese radical, o tema do niilismo, da destruio insacivel, do estilhaamento e

    triturao da vida, do corao das trevas, do horror (BERMAN, 1986, p. 100).

    Nenhum personagem literrio caracterizaria melhor os dilemas damodernidade que o Fausto, de Goethe, confrontado com a tragdia dodesenvolvimento. No toa que o primeiro captulo de Tudo que slidodesmancha no ar seja dedicado a esse personagem, portador de um dese-

    jo de desenvolvimento que envolve a afinidade entre o ideal cultural doautodesenvolvimento e o efetivo movimento social na direo do desen-volvimento econmico. Desenvolvimento que ganharia cores trgicas, poisrepresentaria um altssimo custo para o ser humano, conforme Berman(1986, p. 41-42).

    Fausto viveria uma ciso existencial que marcaria os intelectuais ao longodos sculos XIX e XX, especialmente aqueles dos pases subdesenvolvidos,como a Alemanha do tempo de Goethe, a Rssia do sculo XIX, depois osintelectuais do Terceiro Mundo no sculo XX. Eles seriam portadores de

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    cultura de vanguarda em sociedades atrasadas, experimentaram a cisofustica com invulgar intensidade. Esses intelectuais sofreriam de umaangstia interior que geraria aes e criaes revolucionrias, mas tambm

    caminhos pelas sombrias alamedas da futilidade e do desespero (BERMAN,1986, p. 44-45).

    Ento, os intelectuais ganham especial relevo na modernidade, encar-nando-a talvez como nenhuma outra categoria social. Eis o elo para pensara modernidade e os intelectuais na sociedade brasileira, particularmente apartir do momento em que o livro de Berman foi publicado no Brasil, nofinal de 1986, quando o pas retomava o processo democrtico, aps 21 anosde regime militar. Naquele tempo, soava como algo verossmel falar em ciso

    fustica nos meios intelectuais; o tema das aventuras na modernidade e nomarxismo pareciam atuais e relevantes, embora j num contexto diferentedos anos imediatamente anteriores, de combate ditadura. Os meios in-telectualizados de esquerda brasileiros estavam abertos, por exemplo, paraleituras inovadoras da obra de Marx, como aquela de Berman.

    A recepo do mercado brasileiro a Tudo que

    slido desmancha no ar

    O livro Tudo que slido desmancha no ar, de Marshall Berman, foi pu-blicado em Nova York, em 1982, e teve repercusso na intelectualidade deesquerda norte-americana e europia2. A verso brasileira surgiu em 1986,lanado por uma editora criada na poca, com grande ambio intelectuale mercadolgica, a Companhia das Letras. Foi um sucesso no apenas decrtica, mas sobretudo de pblico.

    Em menos de um ano, entre novembro de 1986 e setembro de 1987, fo-

    ram publicados 34.000 exemplares. At o fim dos anos 1990, chegou-se aototal de 58.500 exemplares em dezesseis reimpresses com tiragem mdiade dois mil exemplares. Em 2000 e 2001, saram a 17ae a 18areimpresso, de1.500 exemplares cada. A 19ateve 2.000 exemplares em 2003. Uma segundaedio veio em 2005, com uma reimpresso no ano seguinte, ambas de 1.500exemplares. As vendas do livro revigoraram-se com a edio de bolso, de

    2 Ver, por exemplo, o debate entre Berman e Perry Anderson pelas pginas da New Left Review, em1984. A crtica de Anderson ao livro de Berman foi publicada no Brasil antes mesmo do livro, na revista

    Novos Estudos CEBRAP (ANDERSON, 1986). A resposta de Berman foi reproduzida pela revista Presena(BERMAN, 1987). Esse texto reaparece com o ttulo Os sinais nas ruas, em Aventuras no marxismo(BERMAN, 2001, p. 172-191).

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    5.000 exemplares, em 2007, mais 1.000 na reimpresso de 2008. Ou seja,houve 16.000 cpias publicadas desde o ano 2000, o que atesta que o livrocontinua tendo pblico cativo na sociedade brasileira, aps o estouro de

    vendas em seu primeiro ano de edio3.Em suma, j circularam 74.500 exemplares dessa obra no Brasil, nmero

    por si s impressionante, ainda mais expressivo se considerarmos que, emgeral, os livros de cincias humanas saem no Brasil com tiragem de 2.000exemplares e raramente so reimpressos ou reeditados.

    Esses dados sobre a edio de Tudo que slido desmancha no arremetem,antes de tudo, ao tema intrincado da relao entre o mercado e as ideias deesquerda. Berman coloca assim sua posio a respeito:

    at mesmo as idias mais subversivas precisam manifestar-se atravs dos meios dis-

    ponveis no mercado. Na medida em que atraiam e insuflem pessoas, essas idias se

    expandiro e enriquecero o mercado, colaborando, pois, para incrementar o capital.

    Assim, se admitirmos que a viso de Marx adequada e precisa, teremos todas as razes

    para acreditar que a sociedade burguesa gerar um mercado para idias radicais. Esse

    sistema requer constante perturbao, distrbio, agitao; precisa ser permanente-

    mente empurrado e pressionado para manter a prpria elasticidade e capacidade de

    recuperao, para assenhorear-se de novas energias e assimil-las, para locomover-sena direo de novas alturas de atividade e crescimento. Isto quer dizer, porm, que

    todos os homens e movimentos que se proclamem inimigos do capitalismo talvez

    sejam exatamente a espcie de estimulantes que o capitalismo necessita. (...) Nesse

    clima, ento, intelectuais radicais encontram obstculos radicais: suas idias e movi-

    mentos correm o risco de desmanchar no mesmo ar moderno em que se decompe

    a ordem burguesa que eles tentam sobrepujar (BERMAN, 1986, p. 115).

    Para usar os termos do autor, como pensar o mercado para ideias radicais nasociedade brasileira? As relaes de intelectuais e artistas crticos da ordem esta-belecida no Brasil com o mercado vm de longa data. Por exemplo, conhecidaa importncia de dramaturgos, atores, msicos e outros artistas comunistas naconstituio da Rede Globo de Televiso, o grande empreendimento da indstriacultural que floresceu sob as asas da ditadura militar4.

    3 Esses e todos os dados sobre tiragens de livros que aparecem neste artigo foram gentilmente cedidos

    pela editora Companhia das Letras.4 Ver, por exemplo, A moderna tradio brasileira cultura brasileira e indstria cultural, de Renato Ortiz(1988).

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    O problema da relao dos intelectuais crticos com o mercado muitomais candente para os artistas, cuja produo se encontra no centro da in-dstria cultural. E isso vale no s para aqueles marxistas ou comunistas.

    A questo explicitada, por exemplo, pelos herdeiros do tropicalismo,como Caetano Veloso. Em seu livro de memrias, Verdade tropical, eleexpressa bem os dilemas e o assombro dos artistas crticos de sua gera-o diante do mercado cultural que se firmava e crescia como nunca nasociedade brasileira a partir dos anos 1960. O mercado seria, simultneae contraditoriamente, o inevitvel monstro a expandir seus tentculos,banalizando as artes; e uma conquista nacional para o Brasil, necessriapara seus artistas competirem em escala internacional. Numa condensa-

    o da ambiguidade diante do mercado, Caetano afirma que os cantorespopulares

    teriam cedo ou tarde que exibir, de forma mais ou menos nobre em cada caso, as

    marcas de origem da atividade que escolheram: produo de canes banais para

    competir no mercado. (Sendo que, no Brasil, o crescimento desse mercado significa,

    em si mesmo, uma conquista nacional) (VELOSO, 1997, p. 238).

    Retomando o livro de Berman, para compreender seu sucesso co-mercial, vale lembrar que ele foi publicado durante a breve euforia con-sumista gerada pelo Plano Cruzado, que aparentemente viera conter ainflao e estabilizar a economia. Deve-se levar em conta ainda que setrata de um produto bem-acabado da indstria editorial, que entravaem outro patamar na sociedade brasileira na dcada de 1980. No quese refere s editoras voltadas ao meio intelectual e acadmico, com forteproduo na rea de cincias humanas, havia uma tradio consolidadanos anos anteriores, em que eram comuns editoras semiprofissionais, porvezes artesanais, comprometidas ao mesmo tempo com a obteno de lucroe com a difuso de ideias crticas da ordem estabelecida. Em meio a elas,afirmavam-se empreendimentos voltados ao mercado para ideias radicais.Os anos 1960 viram o xito de editores engajados politicamente, como nioSilveira, dono da Civilizao Brasileira, e Jorge Zahar, da Zahar Editores.Eles estavam em sintonia com a intelectualidade fustica da poca e fo-ram responsveis pela publicao no Brasil das melhores obras de cinciassociais produzidas no exterior, incentivando tambm autores nacionais, o

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    que lhes deu de um lado prestgio e bons negcios, mas de outro envolveua perseguio da ditadura.

    Nos anos 1970 e 1980, a editora Brasiliense, dirigida por Caio Graco

    Prado, deu um salto na profissionalizao do mercado editorial voltadopara os setores intelectualizados da populao, cada vez mais amplos, como crescimento do acesso ao ensino superior5. A Brasiliense, contudo, talvezainda tenha sido uma transio para o modelo profissional e com presenamarcante na media, de que seria exemplo a editora Companhia das Letras,dirigida por Luiz Schwarcz, que iniciara a carreira na Brasiliense, logo ocu-pando lugar de destaque como diretor editorial, o que lhe permitiria outrosvoos.

    Luiz Schwarcz abriu uma pequena editora que funcionava inicialmentenos fundos de uma grfica no bairro paulistano da Barra Funda. A empreitadafoi possvel a partir dos conhecimentos e contatos profissionais, intelectuais,mercadolgicos e na imprensa obtidos no s por intermdio da experinciana Brasiliense, mas tambm pela formao de seu fundador, que estudouadministrao de empresas na prestigiosa Fundao Getlio Vargas, em SoPaulo, onde se formavam os principais empresrios do pas.

    O primeiro livro editado, em outubro de 1986, foi a traduo de Rumo estao Finlndia,de Edmund Wilson, obra de 1940, clebre nos meios deesquerda. Nela, o jornalista norte-americano narra em linguagem sedutorae tom irreverente a saga da intelectulidade radical, da revoluo francesa russa, de Michelet a Lnin, passando pelos socialistas utpicos, por Marx,Engels, Trotski e outros intelectuais revolucionrios (WILSON, 1986).

    Naqueles anos de 1980, marcados no Brasil pela transio da ditaduramilitar e civil democracia, havia um pblico cativo para o encanto ra-

    dical, para usar uma expresso que dava ttulo a uma coleo de livros debolso da poca, editada pela Brasiliense. Isso pode ser atestado ainda pelapublicao da srie Os economistas, que a editora Abril Cultural colocava venda em bancas de jornal de todo o pas. Obras dos autores mais clebresda cincia econmica foram reproduzidas aos milhares. Incorporavam-se

    5 Evidentemente, trata-se apenas de algumas editoras importantes cuja clientela preferencial seria o meiointelectualizado , no de sua totalidade. A consolidao da indstria cultural na publicao de livrospassou tambm pelas editoras que massificaram sua produo, vendendo em bancas de jornal como a

    Abril Cultural , e pelas editoras voltadas preferencialmente para o enorme mercado do livro didtico. Poroutro lado, ainda h at hoje vrias pequenas editoras alternativas, ao mesmo tempo buscando o lucro eafinadas com o que resta do que Berman chamaria de intelectualidade fustica.

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    tambm clssicos do pensamento econmico socialista, como O capital, deMarx, publicado em cinco tomos, entre 1983 e 1985 (MARX, 1983). E nos: foram contemplados autores como Lnin, Rosa Luxemburgo, Bukharin,

    Mandel e outros. Eram edies muito bem-cuidadas no aspecto formal,com boas tradues, em trabalho organizado profissionalmente por JacobGorender, que havia sido um intelectual destacado do Partido Comunistados anos 1940 aos 1960.

    A srie Os economistasbuscava seguir o exemplo de sucesso da coleoOs pensadores, vendida em bancas nos anos 1970, tornando acessveis obrasde dezenas de autores clssicos do pensamento ocidental. Foi assim que,em 1974, em plena ditadura, podia-se comprar em qualquer esquina o vol.

    XXXV da coleo, que trazia obras de Marx, como O dezoito Brumrio deLus Bonaparte (MARX, 1974).

    Assim, o sucesso de Rumo estao Finlndiaveio num contexto em quese consolidara um expressivo nicho de mercado para obras de esquerda. Noincio, o livro de Wilson apresentou nmeros ainda mais impressionantes doque aqueles da venda de Tudo que slido desmancha no ar, que a Companhiadas Letras publicaria apenas um ms depois. Em pouco menos de um ano,Rumo estao Finlndia teve sete reedies, com 41.000 livros. Em agostode 1989, chegou a 54.000 exemplares em nove reedies.

    Contudo, ao contrrio da obra de Berman, que manteria uma vendaconstante nos anos 1990, o livro de Wilson apresentou queda expressivanaquela dcada. Sua ltima grande tiragem, de 3.000 exemplares, foi em1989 ano que se tornaria emblemtico internacionalmente pela quedado muro de Berlin, simbolizando o fim da guerra fria e da chamada cortinade ferro, bem como a derrocada do socialismo realmente existente no leste

    europeu. Ao passo que, no cenrio poltico brasileiro, 1989 foi marcado pelavitria de Collor e da direita contra Lula, Brizola e as foras de esquerda naseleies presidenciais do final daquele ano. Os ventos j no sopravam favo-ravelmente aos crticos da ordem estabelecida. Esvaa-se o pblico encantadopela radicalidade da biografia dos intelectuais retratados por Wilson. Nadcada de 1990, seu livro teve apenas trs reimpresses, de mil exemplarescada uma, em 1993, 1995 e 1998. A 13 reimpresso s saiu em setembro de2003, com mil exemplares. A venda da obra s retomaria algum flego com

    a primeira impresso em formato de bolso, de outubro de 2006, com 8.000exemplares, no esgotados at setembro de 2009.

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    Rumo estao Finlndiae Tudo que slido desmancha no arabriam umextenso catlogo de xito da Companhia das Letras, que viria a se estabelecercomo uma das editoras de maior prestgio intelectual e sucesso comercial

    nas cincias humanas e na literatura at os dias de hoje, diversificandomuito seu catlogo6. Ainda comparando as tiragens dos livros de Wilsone de Berman, o primeiro chegaria a 64.000 exemplares tirados at 2009, osegundo a 74.000. Ambos venderam muito logo aps a primeira edio, ode Wilson em primeiro lugar, mas a vendagem da obra de Berman passou frente, parece ter mantido mais interesse do pblico ao longo dos anos, ajulgar pelas reimpresses constantes.

    Talvez uma pista para entender o contraste esteja no fato de que o tema

    explcito da obra de Wilson, o encanto radical de intelectuais revolucion-rios, entraria em baixa junto ao pblico leitor a partir dos anos 1990. J olivro de Berman que de certa forma herdeiro da tradio de Wilson ede sua radicalidade7 teve melhor sorte. At porque seu tema central amodernidade, ligada capacidade de as pessoas se adaptarem aos constantese imprevisveis turbilhes de mudanas a que ela leva em todos os aspectosda vida, como davam testemunho os acontecimentos do final dos anos 1980em escala global. Continuam a impor-se metamorfoses constantes que afetamo cotidiano das pessoas, aspecto central de Tudo que slido desmancha noar, que assim conquista mais leitores.

    Um novo livro de Berman viria a ser editado pela Companhia das Letrasem 2001, intituladoAventuras no marxismo. Foram tirados 5.000 exemplaresem maio daquele ano, com uma reimpresso de 1.500 cpias em junho de2008. So nmeros compatveis com a mdia de uma edio de sucesso paraautores de cincias humanas, mas muito inferiores ao do best sellerTudo que

    slido desmancha no ar.Aventuras no marxismorene ensaios de Bermanao longo dos anos, sem a mesma pretenso de seu grande livro, mas noparece ser esse o aspecto central para compreender a disparidade de vendasentre os dois no Brasil.

    O pblico hoje interessado em aventuras no marxismo relativamentemuito mais restrito do que era nos anos 1980, quando o tema parecia ter atu-

    6 De outubro a dezembro de 1986, a Companhia das Letras editou oito livros. Seriam mais 34 no anoseguinte. Os nmeros foram crescendo gradativamente, ano a ano, at alcanar 244 ttulos lanados

    em 2008. Ver os dados em: www.companhiadasletras.com.br/20anos/titulos_especificos.php3.7 Ver, por exemplo, a resenha elogiosa de Berman, intitulada Ainda espera na estao, por ocasioda reedio do livro de Wilson nos Estados Unidos, em 1972 (BERMAN, 2001, p. 72-79).

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    alidade, ao menos na sociedade brasileira. Ainda soava como algo modernoaos ouvidos de setores sociais expressivos, integrantes dos ento chamadosnovos movimentos sociais, e tambm nos meios intelectuais que estavam

    em rpida transformao. Para muitos, esse tema parece hoje dmodouat pea de arqueologia, objeto perdido no passado, de interesse apenaspara historiadores e cientistas sociais, no mais algo vivo e contemporneoque expressa os dilemas da vida no incio do sculo XXI. Talvez isso ajudea compreender por que oAventuras no marxismopassou quase em brancotambm para a crtica.

    Ademais, esse livro de Berman foi editado junto com muitos outros daento j estabelecida e consagrada editora Companhia das Letras, um a

    mais em seu imenso e variado catlogo, sem o investimento inicial que aobra anterior de Berman obtivera no perodo fundador da casa, que editoutambm seu ltimo livro, intitulado Um sculo em Nova York espetculosem Times Square(BERMAN, 2009). possvel que o tourhistrico culturalpelo corao de Manhattan, como o livro definido no texto da quarta capa,trate de um tema que atraia mais leitores do que Aventuras no marxismo,mas dificilmente atingir o sucesso de Tudo que slido desmancha no ar,que s pode ser compreendido pela conjuno de uma srie de fatores nomomento em que foi lanado. Tome-se agora mais um deles: o livro estavaafinado com o fim do ciclo das vanguardas na histria da esquerda brasileirae com a representao do intelectual que nele prevalecera.

    Do ciclo das vanguardas ao ciclo das bases: sinais das ruas

    Ao menos desde os anos 1930, at o incio da dcada de 1970, a histriada esquerda brasileira foi marcada pelo que se poderia chamar o ciclo das

    vanguardas, que acompanhou o desenvolvimento econmico acelerado e aconsolidao do modo de produo capitalista no Brasil, a partir da mo-dernizao conservadora imposta por duas ditaduras, no perodo em quese estabelecia no pas uma tpica sociedade de classes. Influenciada pelomodelo revolucionrio leninista e depois pelas revolues chinesa e cubana,a maior parte da esquerda brasileira acreditava em concepes de vanguar-da relativamente diversificadas, mas que tinham em comum a aposta naorganizao de vanguardas polticas e/ou armadas dos trabalhadores ou do

    povo, organizadas em partidos ou grupos aguerridos, de quadros conscientesdas leis da Histria, que poderiam guiar o conjunto dos trabalhadores, dos

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    despossudos ou mesmo do conjunto do povo para realizar a revoluobrasileira, fosse ela nacional-democrtica ou socialista.

    Como sabido, a ideia de vanguarda (avant garde) tem origem nos com-

    bates militares: alguns colocam-se frente do restante da tropa, avanam,conduzindo os demais, protegidos por uma retaguarda. Politicamente, a con-cepo de vanguarda vincula-se aos bolcheviques, triunfantes na revoluorussa de 1917, tornando-se exemplo de organizao para a esquerda mundial:o Partido organizado secreta e centralizadamente colocava-se comoa vanguarda condutora das lutas do proletariado, seu organizador poltico,portador da anlise cientfica da Histria, elaborando uma conscincia declasse revolucionria.

    Durante o ciclo das vanguardas, era complexa a relao dos intelectuaiscom os partidos e movimentos de esquerda no Brasil, especialmente paraaqueles que eram militantes orgnicos e conviviam em constante tenso comos dirigentes. Esses mostravam-se desconfiados dos intelectuais e perma-nentemente temerosos de perder seu lugar para eles, mais bem preparadosteoricamente. Afinal, se o Partido de vanguarda pretendia desvendar as leisda Histria para conduzir a revoluo, era de se esperar que os intelectuaisocupassem nele um lugar de destaque, a exemplo de Lnin, Trotski, Bukharine muitos lderes bolcheviques, que eram tambm intelectuais, como haviamsido Marx e Engels, e depois vrios dirigentes da II e da III Internacional. Osintelectuais e demais militantes deveriam dedicar sua vida ao partido, porvezes sacrificando sua individualidade e vida pessoal.

    Por certo, nem todo intelectual de esquerda era militante em partidos,mas muitos deles eram seus companheiros de viagem na luta pela revoluobrasileira. Por exemplo, nos anos 1950 e 1960, foi muito expressiva a influn-

    cia na intelectualidade brasileira das ideias difundidas por Jean-Paul Sartreacerca da relevncia do engajamento poltico dos intelectuais. O pensamentode Sartre no era portador de uma tica do sacrifcio, mas incentivava oengajamento existencial mais profundo dos intelectuais com a revoluo8.

    No seria o caso de analisar agora a relao entre intelectuais e partidosde esquerda9. Mas vale constatar que, no caso brasileiro, aps a derrota da

    8 Ver, por exemplo, seu ensaio Quest-ce que la littrature?, publicado pela primeira vez em 1947, subdividido

    em diversas partes, na revista Les Temps Modernes, que Sartre fundara em 1945 (SARTRE, 1989).9 Tratei do tema, no que se refere dcada de 1950 no Brasil, em Ridenti (2008). Sobre os anos 1960 e1970, ver Ridenti (2000).

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    esquerda armada em meados dos anos 1970, davam-se claros sinais do fimdo ciclo das vanguardas e, com ele, de mudanas expressivas do lugar dointelectual na luta poltica. Iniciava-se um novo ciclo, marcado na poltica

    pelo surgimento em 1980 do Partido dos Trabalhadores (PT), que passariaa deter a hegemonia nas esquerdas, no lugar do tradicional e clandestinoPartido Comunista Brasileiro (PCB). Ento, uma tpica sociedade de classesj estava estabelecida no pas. Sua complexidade e fragmentao dificultariama organizao de vanguardas politicamente significativas. Ademais, a derrotade 1964, seguida pelo esmagamento da esquerda armada nos anos seguintes em que as vanguardas distanciaram-se das massas, como se dizia no jargoda poca colocava a necessidade de repensar a poltica de esquerda, bem

    como o lugar atribudo ao intelectual dentro e fora dela.No era s a concepo do intelectual orgnico dos partidos que ficava

    em xeque, mas a prpria tradio que vinha desde o caso Dreyfus, a exigira interveno do intelectual no terreno poltico, comunicando seu pensa-mento sociedade, com a autoridade de quem formula ideias que encarnamo esprito crtico contra qualquer tipo de conformismo. Questionava-se ointelectual como uma espcie de missionrio e, se necessrio, de confessorou de mrtir dos grandes princpios em meio aos Brbaros, para tomar aformulao de Ory e Sirinelli (1992, p. 9).

    Na sociedade brasileira, do final dos anos 1970 dcada de 1980, noturbilho da transio da ditadura democracia, entravam em crise tanto aideia do intelectual que encarnava as leis da Histria como militante de umpartido de vanguarda, como a do intelectual engajado em ensinar aos traba-lhadores ou ao povo ignorante as verdades do seu saber. As respostas para acrise foram diversificadas no meio intelectual comprometido com propos-

    tas de esquerda: alm daqueles que insistiam no modelo em crise, surgiamos que buscavam outro tipo de engajamento, no contexto de surgimentodos chamados novos movimentos sociais. Os intelectuais teriam mais aaprender com esses movimentos do que a ensinar a eles. Os trabalhadores eo povo pareciam demonstrar capacidade de organizao e luta autnoma,independentemente de qualquer tutela intelectual ou partidria. Mas a res-posta para a crise poderia ser uma terceira: o desligamento dos intelectuaisdo engajamento poltico, concentrando-se em suas carreiras profissionais e

    na observao supostamente neutra e descomprometida da sociedade.Tudo que slido desmancha no ar chegou ao pblico brasileiro em meio

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    a essa crise dos intelectuais, numa sociedade que acabara de sair de governosmilitares. Suas ideias viriam a calhar naquele momento de reconfiguraoda intelectualidade que questionava antigas certezas, vendo-se imersa e por

    vezes perdida num turbilho de mudanas polticas, sociais e culturais. Aopropor a necessidade de os indivduos estarem permanentemente abertos mudana, s transformaes da modernidade, o livro de Berman encontravaeco, paradoxalmente, tanto nos que buscavam um novo paradigma de enga-jamento, sintonizado com os sinais das ruas para usar em outro contextoo termo de Berman (2001, p. 172) em resposta s crticas de Perry Anderson como para aqueles que abandonavam o engajamento poltico.

    Naquele momento, a esquerda brasileira vivia um ciclo que se pode denomi-

    nar das bases, animado pelos novos movimentos sociais, pelo novo sindicalismo,pelas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), ligadas Teologia da Libertao,enfim, pela mobilizao social de trabalhadores urbanos e rurais, incluindo se-tores significativos das classes mdias, no perodo da transio democrtica. Esseciclo corresponde ao amadurecimento de um processo histrico, social, poltico,econmico e cultural da sociedade brasileira ao longo do sculo XX. A produ-o em moldes capitalistas avanados generalizava-se, gerando uma crescenteurbanizao10. Paralelamente, a partir do fim da dcada de 1970, avanavam aslutas dos trabalhadores por direitos sociais.

    No ciclo das bases, as concepes vanguardistas foram contestadas, masa valorizao das lutas populares autnomas no prescindia da necessidadede partidos, que deveriam ser a expresso poltica fiel de suas bases. Haviaa crtica aos partidos de quadros de inspirao marxista-leninista, mas aomesmo tempo difundia-se a frase de Marx: a emancipao da classe tra-balhadora obra da prpria classe. Conforme a interpretao dos setores

    hegemnicos de esquerda na sociedade brasileira dos anos 1980, isso queriadizer que a emancipao viria das bases e no de sua suposta vanguarda. Noque se refere aos intelectuais, eles deveriam colocar-se mais como aprendizesdo que como professores da classe trabalhadora e dos movimentos sociais,no mais a servio de um partido centralizado de quadros, mas das basespopulares e supostamente autnomas de um novo tipo de partido11.

    10 Os censos do IBGE revelam que, em 1950, 36,16% da populao era urbana; em 1960, 44,67%; em1970, 55,92%; em 1980, a populao urbana j chegou a 67,59% (32,41% rural). Conforme o censo de

    2000, 81,25% da populao vivia em cidades.11 Com o esvaziamento da mobilizao popular de base dos anos 1970-80, comearam a evidenciar-se oslimites dos discursos ideolgicos que a acompanharam, a celebrar a autonomia das bases, organizadas

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    At mesmo os antigos partidos e organizaes de inspirao marxista-leninista mostravam-se sensveis ascenso dos movimentos populares. Erao caso de pequenos grupos como os trotskistas atuantes como tendncias

    dentro do hegemnico PT a valorizar as lutas de massas e a organizao pelabase. E tambm dos antigos Partidos comunistas, legalizados em meados dosanos 1980, com atuao cada vez mais institucional, mas com dificuldadescrescentes para dirigir os trabalhadores e despossudos em geral.

    Ento, a receptividade de pblico e de crtica a Tudo que slido des-mancha no arno pode ser compreendida seno no momento que se vivia,a envolver redefinies no pensamento e na prtica da esquerda brasileira,que tradicionalmente conta com a militncia ou o apoio de intelectuais.

    Esgotava-se o ciclo das vanguardas em sua histria. Uma parte dessa esquerdaabria-se para os sinais das ruas. Redimensionava-se o lugar do intelectual noprocesso de transformao. O livro de Berman era til no acerto de contasque estudantes, artistas, profissionais liberais, professores enfim, a intelec-tualidade num sentido amplo fazia com seu passado recente de combate auma ditadura que se encerrava.

    A repercusso de Tudo que slido desmancha no ar nos meios

    intelectuais brasileiros

    Os termos da resposta de Berman s crticas de Perry Anderson ajudam aentender sua recepo no Brasil. Ele no refutou os questionamentos de Andersonponto por ponto, preferiu fazer consideraes gerais sobre o quanto as ideias deseu crtico estariam distantes da experincia cotidiana catica e moderna daspessoas. A exemplo de tantos intelectuais, Anderson teria perdido o contato comas coisas e com o fluxo da vida cotidiana. Berman indagava se a modernidade

    pode ainda gerar fontes e espaos de significao, de liberdade, dignidade, be-leza, prazer e solidariedade , concluindo que ler O Capitalno ser suficientese no soubermos ler tambm os sinais da rua (BERMAN, 2001, p. 138). Essa

    em movimentos populares, no novo sindicalismo e nas CEBs. Os movimentos cujas reivindicaeseram negadas pela ditadura tenderam a ser reconhecidos como atores polticos e sociais legtimoscom a democratizao, e a ter parte de suas reivindicaes atendidas. Em geral, os movimentos sociaisperderam pujana; o novo sindicalismo mostrou-se parecido com o velho; a atuao dos setorescatlicos de esquerda enfrentaria refluxo notvel; o PT burocratizou-se e converteu-se num partido

    da ordem. O cenrio poltico e econmico tampouco favoreceu propostas de organizao popular,em sindicatos, partidos e movimentos. Talvez o refluxo seja provisrio, mas ao que tudo indica o ciclodas bases j faz parte da histria passada.

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    disposio de ouvir os sinais das ruas tinha um apelo significativo para o pblicobrasileiro dos anos 1980, como se tem argumentado.

    A resposta de Berman s crticas de Anderson foi publicada no Brasil pela

    Presena, revista pequena, porm significativa, composta majoritariamentepor intelectuais que haviam deixado recentemente o Partido ComunistaBrasileiro, afinados com o ento chamado eurocomunismo e com a propostade democracia como valor universal. Eles eram crticos do PT, que acusavamde no dar o devido valor democracia e representao poltica institu-cional. Por a se v que a ressonncia da obra de Berman era significativaem diversos setores da esquerda intelectual.

    Naquele momento, o marxismo ainda era expressivo nos meios intelec-

    tualizados. J no tinha a mesma influncia dos anos 1960 e 1970, quandointerpretaes variadas do materialismo histrico foram predominantesem importantes crculos intelectuais e acadmicos, antes do golpe de 1964e especialmente nos primeiros anos de vigncia da ditadura que ele insta-lou no poder. Nos anos 1980, pode-se constatar a permanncia da forada tradio marxista de pensamento no fato de a prestigiosa revista NovosEstudos CEBRAP produzida pelo centro de pesquisas mais conhecido doBrasil publicar a crtica de Perry Anderson ao livro de Berman em junhode 1986, ainda antes de sua edio no Brasil, em novembro daquele ano.Com isso, mostrava-se certa desconfiana em relao a suas ideias, masao mesmo tempo aguava-se o interesse dos leitores para conhecer a obracriticada, ajudando a preparar o terreno para o sucesso que viria a conhecerpouco tempo depois.

    Um aspecto a considerar, para compreender a repercusso de Tudo que slido desmancha no ar nos meios intelectuais brasileiros, sua oposio

    aos expoentes tradicionais do comunismo, que, desde Plato e os padres da Igreja,

    valorizaram o auto-sacrifcio, desencorajaram ou condenaram a individualidade

    e sonharam com um projeto tal em que s a luta e o esforo comuns atingiriam o

    almejado fim (BERMAN, 1986, p. 96).

    Ao contrrio dessa tradio, Berman salienta a proposta do Manifestocomunista, segundo a qual o livre desenvolvimento de cada um ser acondio para o livre desenvolvimento de todos (BERMAN, 1986, p. 95).Marx e Engels apontariam para uma sociedade de indivduos plenamente

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    desenvolvidos, realando a liberdade individual como pr-requisito para aliberdade coletiva.

    Na dcada de 1980, questionava-se a tica que predominara na esquerda

    brasileira at os anos 1970, de sacrifcio da individualidade em nome docoletivo, tpica por exemplo de organizaes polticas marxistas-leninistas.No processo de transio democrtica, aps a lei da anistia aos condenadospolticos pela ditadura, de 1979, o ressurgimento do pluripartidarismo em1980, as eleies diretas para os governos dos estados de 1982 e o fim dogoverno do general Figueiredo em 1985mudavam a cena poltica brasi-leira. Impunha-se a renovao dos parmetros da esquerda, em busca darevalorizao da democracia, da individualidade, das liberdades civis, dos

    movimentos populares espontneos, da cidadania, da resistncia cotidiana opresso, das lutas das minorias, dentre outras.

    Nesse contexto, j no havia justificativa para o autossacrifcio em nomedo Partido e da revoluo. Se a renncia da individualidade parecera fazersentido em conjunturas passadas, isso j no ocorreria no presente. Indiv-duos e grupos brasileiros que faziam o acerto de contas com seu passado demilitncia podiam identificar-se com a leitura doManifestofeita por Berman,a reiterar que o desenvolvimento de cada um a base para o livre desenvol-vimento de todos. A muitos j no parecia adequado atuar em partidos queimpusessem aos militantes o que Daniel Aaro Reis chamou de estratgia datenso mxima12. O livro de Berman foi, ento, bem-recebido em meios quepretendiam instaurar novas prticas e pensamentos de esquerda. Instigavaos que viam na tradio marxista de pensamento importante recurso paracompreender e transformar a realidade, desde que o materialismo histricono virasse um dogma.

    Ademais, no cenrio internacional, imperava o neoliberalismo da cha-mada era Reagan-Thatcher, na qual vises de mundo conservadoras ganha-vam destaque, at mesmo no mbito da cultura e das artes. Por exemplo,difundia-se ops-modernismo, tambm influente no Brasil dos anos 1980.Assim, contra o avano do ps-modernismo, as ideias de Berman podiamfornecer argumentos para os que defendiam a noo de modernidade. Por

    12 A estratgia da tenso mxima envolveria uma srie de mecanismos: o complexo da dvidado militantecom a organizao comunista, o leque das virtudesdo revolucionrio modelo, o massacre das tarefas

    com que o Partido sobrecarregaria seus integrantes, a celebrao da autoridadedos dirigentes, a am-bivalncia das orientaes partidrias, bem como a sndrome da traio pela qual seriam renegadosaqueles que deixassem o Partido (REIS, 1991).

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    exemplo, Francisco Foot Hardman,um dos responsveis pela edio brasi-leira de Tudo que slido desmancha no ar,escreveu na orelha do livro queo ps-modernismo recente parecer o que deve parecer: chatice repetitiva

    e sectria, em meio a uma era atnita que perdeu, enfim, o contato com asrazes de sua prpria modernidade.

    Um bom livro leva a ressonncias que seu criador jamais poderia terantevisto, como prope Berman (1986, p. 116). Ele no poderia antevera receptividade de sua obra por setores intelectualizados brasileiros, queencontravam nela elementos para encarar os novos dilemas polticos e sub-jetivos postos aos intelectuais que haviam feito oposio ditadura militar.Alm das intenes do autor, que provavelmente seria simptico leitura

    libertria feita na poca por uma parte da intelectualidade de esquerda emsintonia com os sinais das ruas, h uma possibilidade de apreciao de seulivro com a qual ele por certo no simpatizaria.

    que o acento na individualidade, presente em Tudo que slido des-mancha no ar, pode ser interpretado tambm com veio liberal ou mesmonarcisista. Alm do texto de Berman ter sido bem-recebido no Brasil peloseu lado libertrio, ele tambm o foi porque naquele tempo difundia-seuma concepo liberal do indivduo que deixava para trs o paradigma deintelectual fustico, indignado e dilacerado pelas contradies da socieda-de capitalista, agravadas nas condies de subdesenvolvimento. Nos anosde 1980, passava a ganhar fora o modelo de intelectual profissionalizado,competente e competitivo no mercado das ideias, centrado na carreira e noprprio bem-estar individual.

    A possibilidade de leitura neoliberal do livro de Berman estava presentena crtica de Perry Anderson que talvez tenha irritado Berman, j que

    ele se considerava inimigo convicto das polticas de Ronald Reagan. Nainterpretao de Anderson, a perspectiva de Berman podia implicar, invo-luntariamente, uma leitura do Manifestoajustada mar ento montantedo narcisismo da era Reagan:

    Apesar de toda a sua exuberncia, a verso que Berman d de Marx, enfatizando de

    modo virtualmente exclusivo a liberao do eu, acaba por aproximar-se desconfor-

    tavelmente por mais radical e decente que seja seu tom das suposies da cultura

    do narcisismo (ANDERSON, 1986, p. 14).

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    A anlise de Berman, ao enfatizar o eu moderno e o autodesenvolvimen-toilimitadodo indivduo na modernidade, d margem a leituras tanto liber-trias como liberais de seu livro. Os limites entre a individualidade libertria

    e a narcisista pode ser muito tnue, abrindo a hiptese de uma interpretaoconservadora deTudo que slido desmancha no ar, conveniente a setoresintelectualizados na sociedade brasileira da segunda metade da dcada de1980, em busca de justificativas para mudanas que implicavam o abandonode propostas de transformaes sociais estruturais na sociedade brasileira,ou ento queles que nunca se engajaram politicamente.

    OManifesto Comunistapode ser lido, luz da interpretao de Berman,como um texto genial que, ao invs de corresponder s esperanas radicais de

    seus autores, apresentaria intuies crticas sobre a tendncia reproduoinfinita da sociedade capitalista, restando a seus opositores enfrentar diretae abertamente os dilemas da modernidade (BERMAN, 1986, p. 116). Poisbem, provavelmente revelia do que Marshall Berman pretendesse, muitospodem concluir dessa leitura que, mostrada a inviabilidade das esperanasrevolucionrias, o melhor fruir a perptua reposio das contradies damodernidade, ao invs de lutar para super-las.

    Ento, Tudo que slido desmancha no arfoi lido no Brasil por pessoasinteressadas em compreender melhor a modernidade e suas experinciasde vida, em meio s mudanas locais e mundiais do anos 1980, quer paradar um salto qualitativo em sua participao poltica e social, quer paraabandonar o compromisso coletivo com transformaes socializantes. Noprimeiro sentido nas palavras de Berman, em resenha de 1998 sobre umanova edio doManifesto Comunista, as pessoas perceberiam que

    precisam umas das outras para ser elas mesmas. (...) Ser solidrio no se sacrificar,

    mas se realizar como indivduo. Aprender a se dar aos outros trabalhadores, que

    podem ter uma aparncia e uma maneira de falar muito diferentes da sua, mas so

    iguais a voc no fundo, liberta o indivduo do pavor e lhe d um lugar no mundo

    (BERMAN, 2001, p. 290).

    J um outro texto do prprio Berman ajuda a compreender a rota defuga da solidariedade dos intelectuais com os demais trabalhadores. Numaresenha de 1985 acerca de livros de e sobre Lukcs, Berman observa:

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    Para Lukcs, uma das foras mais prfidas do capitalismo moderno sua capacidade de

    mobilizar a energia de nossos intelectos e de nossos intelectuais para turvar nossa

    viso e paralisar nossa vontade, para nos reduzir a espectadores passivos de qualquer

    que seja o destino que o mercado reserve para ns (BERMAN, 2001, p. 211).

    Ora, ento as metamorfoses constantes impostas pelo mercado podemimplicar no s que indivduos, grupos e classes tornem-se sujeitos de suahistria, como tambm que se acomodem com as mudanas colocadaspelo mercado, independentemente de suas vontades, como se o turbilhode mudanas impusesse um destino contra o qual no seria possvel lutar,mas apenas adaptar-se a ele.

    Nesse sentido, Tudo que slido desmancha no arpode ter sido bem-aceito pelo mercado apenas como um produto de qualidade, muitobem-trabalhado pelo marketingde sua editora, devidamente embaladocomo radicalismo inofensivo para o consumo de uma multido de Nar-cisos muitos dos quais talvez mais interessados em colocar na estanteos livros da editora da moda do que propriamente em l-los. claro queessa possibilidade de interpretao desagradaria ao autor, para quem olivre desenvolvimento dos indivduos envolve a conscincia das pessoas

    de que as coisaspodemser melhores, de que elas [as pessoas] tm o poderde transformar e renovar o mundo (BERMAN, 2001, p. 212). Para ele,na concluso de seu escrito sobre Lukcs:

    Talvez, quem sabe, consigamos viver para ver o dia em que as pessoas no querem

    ser mercadorias num mercado, ainda que sejam mercadorias de luxo, e as pessoas

    que no querem ser itens num plano, ainda que sejam itens de prioridade mxima,

    descubram-se umas s outras e batalhem juntas por aquilo que Lukcs chamou de

    democracia da vida cotidiana (BERMAN, 2001, p. 228).

    Porm, malgr lui-mme, ao ressaltar a importncia do eu moderno,o livro de Berman teria ressonncias que no poderia prever. As pessoaspodem estar inconscientes das engrenagens do mercado em constante mu-tao, a coisificar os indivduos e as relaes sociais. Mas tambm podemconcluir com plena conscincia, particularmente os intelectuais, que me-lhor adaptar-se s mudanas do mercado do que pretender transform-lo,

    usufruindo pessoalmente da modernidade, sem considerar o que Berman

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    chama de significado profundo das muitas formas de reificao confortvelque passam por vida (2001, p. 228).

    Quando Tudo que slido desmancha no arfoi publicado no Brasil, estava

    em declnio o arqutipo de intelectual de esquerda dos anos 1960, engajadopoliticamente, buscando ligar-se aos trabalhadores e ao povo. Nas crticas eautocrticas hoje predominantes, aquele tipo de intelectual visto como frutodo populismo, a manipular os anseios populares, ou como um ser quixotescode um tempo de utopias que no voltam mais. Aos poucos, foi predomi-nando o prottipo do intelectual profissionalizado, desvinculado de com-promissos polticos, centrado em sua carreira, muitas vezes na universidade.Tornaram-se comuns ainda os intelectuais por vezes adeptos de propostas

    revolucionrias no passado que exercem cargos em governos que adotammedidas neoliberais. Trabalham como tcnicos a servio do funcionamentosaudvel da ordem estabelecida, sem maiores dramas de conscincia, talvezse agarrando ainda ideologia de que esto no poder para o bem do povo eda nao, uma vez amadurecidos e livres das utopias voluntaristas dos anos1960, que s aparentemente teriam sido revolucionrias.

    Pode-se imaginar esses intelectuais surfando prazerosamente nas ondasimprevisveis do oceano da modernidade, mas fica mais difcil encontrarneles o que Berman chamou de ciso fustica do intelectual, atormentadocom sua condio relativamente privilegiada, de portador de projetos devanguarda numa sociedade subdesenvolvida e desigual. A busca modernade desenvolvimento ilimitado foi deixando de dirigir-se para a rupturacoletiva com a condio de subdesenvolvimento nacional, explorao declasse e coisificao dos indivduos. Intelectuais, em especial, passaram aser crescentemente seduzidos pelo acesso individual ao desenvolvimento

    de um mundo globalizado, embora seu discurso por vezes mantenha tonsesquerdistas.

    Ainda sobre o eu moderno

    Marshall Berman um dos raros intelectuais de projeo no mundo dehoje que mantm o inconformismo dos anos 1960. To mais importantepor defender uma tradio marxista pronta a acompanhar as mudanas dacontemporaneidade, sem se deixar seduzir pelos radicais que querem ver

    tudo ir pelos ares (BERMAN, 2001, p. 281), nem pela beatificao de Marx,tampouco pelas teorias sobre a morte do sujeito, muito menos aquelas da ps-

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    modernidade. Ademais, seus textos plenos de vida e esperana contrastamcom os escritos sombrios de esquerda sobre cultura que, segundo ele,

    tornaram-se amargos (...) como se a cultura fosse s mais um departamento daExplorao e da Opresso e no tivesse nada de luminoso ou valioso em si mesma.

    Outras vezes, falam como se as mentes das pessoas fossem tbulas rasas, sem nada

    dentro, a no ser o que o capital pe ali (BERMAN, 2001, p. 285).

    No obstante, o destaque investigao do eu moderno e ao autode-senvolvimento ilimitado do indivduo, alm de impulsionar a existncia deintelectuais crticos e comprometidos com a superao da modernidade

    capitalista, pode paradoxalmente justificar o rumo tomado por intelectuaisque se resignaram ordem catica da modernidade, contemplativos desuas eternas contradies, contra as quais pouco ou nada poderiam fazer.Involuntariamente, Tudo que slido desmancha no arpermite uma leituraque ajuda a desmanchar no ar o intelectual militante, libertrio e a erigirem seu lugar o intelectual passivo, a fruir sem culpa sua liberdade e relativaautonomia, a deliciar-se com a mobilidade eterna da modernidade.

    A expresso libertria da individualidade envolve o intelectual ao mesmo

    tempo dilacerado pelos problemas da modernidade e engajado prazerosa-mente no processo de transformao. Mas a nfase no eu tambm podeser tomada como a expanso do indivduo a contemplar passivamente aautodestruio inovadora da modernidade, sua revoluo permanente.As personalidades modernas, ao assumir a fluidez e a forma abertadessa sociedade, para usar uma formulao de Berman (1986, p. 94),podem gerar um desejo de transformao socializante, mas tambmo reconhecimento de que pouco se pode fazer para mudar as encruzi-

    lhadas histricas, para resolver os dilemas da modernidade, que teriaum movimento prprio de eterna autodestruio criadora, a que todosdeveriam se ajustar.

    A modernidade pode levar as pessoas em geral, e os intelectuais emparticular, a engajarem-se na mudana, ou a preferir adaptar-se ordemem transformao constante, aceitando-a como destino. O intelectualfustico, revoltado contra o mundo ou revolucionrio a propor um novomundo, foi tpico dos anos 1960. A partir da dcada seguinte, aos poucos,foi se impondo um outro tipo: o intelectual reconciliado com o mundo, no

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    qual reconheceria o eterno e inevitvel movimento em que deve se inserir,e no combater, usufruindo ao mximo o prazer e a dor de viver em meios intempries da modernidade.

    Para resumir, Tudo que slido desmancha no arencontrou parte de seupblico no Brasil numa intelectualidade de esquerda em crise de identidade,envolta na autocrtica de seu engajamento, a ser repensado aps o fim daditadura, e particularmente sensvel valorizao da individualidade, docotidiano, da cidadania e de outros aspectos valorizados pelo autor. Mas essaintelectualidade estava no limite entre uma autocrtica que poderia colocarnum patamar superior seu engajamento contra a ordem estabelecida, ou oabandono desse engajamento. Em termos ainda mais sintticos, o livro veio

    colocar-se na tnue fronteira, s vezes difcil de estabelecer e medir, entre aindividualidade libertria e o individualismo. Se prevalecer este ltimo, osprojetos do autor correm o risco de desmanchar no mesmo ar moderno emque se decompe a ordem burguesa que eles tentam sobrepujar (BERMAN,1986, p. 115).

    Metamorfose ambulante

    Ao comentar a obra de seu ex-professor, Meyer Schapiro, num artigo de1996, Marshall Berman nota um aspecto que aproxima as perspectivas deambos: a arte moderna gera uma intensa presso, tanto no pblico comonos artistas, por metamorfose e autodesenvolvimento (2001, p. 248). Via-jando no espao e no tempo, essa frase faz imediatamente lembrar de umacano brasileira. Em 1973, o roqueiro Raul Seixas gravou uma msicana qual pronunciava frases que at hoje so muito repetidas por polticos,intelectuais e artistas quando mudam de posio: Eu quero dizer, agora, o

    oposto do que eu disse antes. Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante,do que ter aquela velha opinio formada sobre tudo.

    Em seu contexto original, a cano tinha um aspecto contracultural,de valorizao do indivduo que se permite mudar para acompanhar oturbilho da modernidade, se a cano for interpretada com base nasideias de Berman. Note-se especialmente como a letra privilegia a pri-meira pessoa do singular, o eu moderno: eu prefiro ... eu quero dizer... eu quero viver ... eu nem sei quem sou... eu sou um ator. Ademais, a

    cano enfatiza a mudana permanente (a metamorfose ambulante),

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    e a juno dos contrrios: amor e dio, amor e horror, a estrela de hojeque se apagar amanh 13.

    A mesma cano tem servido, em novos contextos, para justificar o

    abandono de posies crticas da ordem estabelecida por ativistas e porintelectuais de esquerda que se incorporam lgica da sociedade produtorade mercadorias. Em outras palavras, de um lado a cano expressa e inspiraa coragem moderna para mudar de posio, quebrar dogmas, contestarverdades estabelecidas e assumir mudanas. De outro lado, pode vir a jus-tificar a mudana do indivduo, como se ela por si s fosse positiva, no sequestionando que mudana seria essa.

    O tema da modernidade, do autodesenvolvimento ilimitado dos indiv-

    duos, sempre abertos a mudanas, viria a aparecer em diversas obras de artebrasileiras a partir dos anos 1970, no contexto do fim da vaga radical, quandoartistas e intelectuais deparavam-se com o avano da indstria cultural e damodernizao conservadora da ditadura. Para dar apenas mais um exemplo,tambm no mbito da msica popular, vale retomar resumidamente a anlisede Sampa, cano de Caetano Veloso dedicada metrpole de So Paulo,gravada em 1978 no LPMuito14. Ela pode ser examinada com base nas ideiasde Marshall Berman, a fim de iluminar a virada individualizante de artistase intelectuais, especialmente a partir do fim dos anos 1970.

    Em versos como o povo oprimido nas filas, nas vilas favelas/ da fora dagrana que ergue e destri coisas belas/ da feia fumaa que sobe apagando asestrelas/ eu vejo surgir teus poetas de campos e espaos , Sampaexpressa a

    13 Eis mais alguns versos da letra: .../ Eu prefiro ser/ Essa metamorfose ambulante/ Do que ter aquelavelha opinio/ Formada sobre tudo/ ... / Sobre o que o amor/ Sobre o que eu nem sei quem sou/ Sehoje eu sou estrela/ Amanh j se apagou/ Se hoje eu te odeio/ Amanh lhe tenho amor/ Lhe tenhoamor/ Lhe tenho horror/ Lhe fao amor/ Eu sou um ator/ ...

    14 Uma anlise da cano encontra-se em Modernidade em Sampa (RIDENTI, 2000, p. 303-313). Eis a letrade Sampa:Alguma coisa acontece no meu corao/ que s quando cruza a Ipiranga e a avenida SoJoo/ que quando eu cheguei por aqui eu nada entendi/ da dura poesia concreta de tuas esquinas/da deselegncia discreta de tuas meninas/ ainda no havia para mim Rita Lee/ a tua mais completatraduo/ alguma coisa acontece no meu corao/ que s quando cruza a Ipiranga e a Avenida SoJoo/ Quando eu te encarei frente a frente no vi o meu rosto/ chamei de mau gosto o que vi, de maugosto, mau gosto/ que Narciso acha feio o que no espelho/ e a mente apavora o que ainda no mesmo velho/ nada do que no era antes quando no somos mutantes/ e foste um difcil comeo,afasta o que no conheo/ e quem vem de outro sonho feliz de cidade/ aprende depressa a chamar-te de realidade/ porque s o avesso do avesso do avesso do avesso/ Do povo oprimido nas filas, nasvilas favelas/ da fora da grana que ergue e destri coisas belas/ da feia fumaa que sobe apagando

    as estrelas/ eu vejo surgir teus poetas de campos e espaos/ tuas oficinas de florestas, teus deuses dachuva/ Panamricas de fricas utpicas, tmulo do samba/ mas possvel novo Quilombo de Zumbi/e os Novos Baianos passeiam na tua garoa/ e novos baianos te podem curtir numa boa.

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    tenso entre viso slida e viso diluidora da vida moderna, a autodestruioinovadora, a polaridade da tragdia fustica entre o desenvolvimento infinitoe a destruio insacivel. Tudo associado questo da individualidade do

    homem desacomodado e livre do halo da experincia mistificadora do sagra-do, que aparece nitidamente no trecho final: e os Novos Baianos passeiamna tua garoa/ e novos baianos te podem curtir numa boa.

    Os artistas aparecem como pessoas comuns, simples mortais a viver amodernidade, novos baianos a passear sob o cu cinzento da fumaame-tropolitana. Eles esto expostos garoa, dura realidade de So Paulo, ondevivem seres perenemente mutantes. Mas, apesar de expostos s intempries,eles encontram espao para fruir a liberdade, curtindo numa boa a vida na

    grande cidade, aprendendo a se deliciar na mobilidade da modernidade,para usar uma expresso de Berman (1986, p. 94).

    Em So Paulo, so chamados de baianos todos os migrantes da regionordeste do pas que acorrem metrpole em busca de trabalho. OsNovos Baianos da cano podem ser eles, e tambm os artistas da Bahiaque se mudaram para So Paulo, como o prprio Caetano Veloso e ogrupo musical Novos Baianos, que curtem numa boa a vida na cidade. Noltimo verso, fala-se em novos baianos, sem o artigo definido, abrindoo texto para que o adjetivo novospossa ser interpretado no sentido deoutrosbaianos, novas pessoas que viro, no desenvolvimento infinito damodernidade.

    As contradies da modernidade podem levar o artista, cujo halo se per-deu em meio ao turbilho da metrpole, a engajar-se na mudana, ajudandoa criar novos quilombos de Zumbi, refazendo no presente a utopia do mo-vimento de escravos revoltosos em busca de liberdade. Ou ele pode preferir

    curtir numa boa a vida na metrpole, livre do dilaceramento fustico dointelectual, aceitando o destino das personalidades infinitamente mutantes nametrpole antropofgica, deglutidora de influncias diversas. Essa tendnciaj era detectada no tropicalismo pelo poeta Cacaso, em 1972:

    se em pocas anteriores o descontentamento com o presente social produzia um

    impulso de transform-lo, agora se produz um inconformismo puramente formal

    expositivo. Se a sociedade j no pode ser transformada, pelo menos podemos curti-

    la (BRITO, 1997, p. 151).

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    313Intelectuais e modernidade: Marshall Berman e seu pblico brasileiro

    Talvez essas palavras sejam injustas com os tropicalistas, luz do textode Berman. Afinal, curtir numa boa, isto , usufruir da modernidade, noimplica necessariamente uma atitude contemplativa. Mas canes como

    Sampapermitem essa leitura de descompromisso com mudanas estruturaisda realidade. A cano compartilha com Tudo que slido desmancha no arcerta celebrao da modernidade e da individualidade que se colocaram nafronteira entre a individualidade libertria e o individualismo.

    No se trata, contudo, de propor uma anlise em que os intelectuais dosanos 1960 sejam idealizados como majoritariamente altrustas e crticos,enquanto os intelectuais a partir dos anos 1970, e sobretudo dos 1980, seriamcaricaturados como egostas. No se trata de supor de modo maniquesta

    que antes os intelectuais eram bons e revolucionrios, passando depois a sermaus e reacionrios. As mudanas no se deram s pelo seu livre-arbtrio,independentemente da organizao e das estruturas da sociedade, comose o virtual desaparecimento da figura do intelectual fustico dependesseapenas da vontade dos intelectuais. H circunstncias histricas, polticas,econmicas e culturais a serem consideradas. Tanto assim que o fenmenono se restringe sociedade brasileira.

    Por exemplo, na Frana, o pas paradigmtico para a anlise dos intelec-tuais, Ory e Sirinelli constatam uma dupla crise no meio intelectual, espe-cialmente aquele de esquerda, a partir dos anos 1970 (ORY e SIRINELLI,1992). A primeira seria uma crise ideolgica, desencadeada por uma srie deacontecimentos, como a fuga dos boat peopledo Vietn, a guerra do Vietncom o Cambodja15, o problema reiterado da perseguio aos dissidentessoviticos, entre outros. Em segundo lugar, haveria uma crise cultural quedesembocaria em crise de identidade dos intelectuais: eles se veriam num

    vazio com a perda de paradigmas e, ademais, teriam sido substitudos naconscincia nacional, pelo menos em parte, pela difuso das mdias audio-visuais.

    Por sua vez, Russel Jacoby (1990) trata do declnio, a partir da dcadade 1950, do intelectual atuante na vida pblica norte-americana. Constataa eliminao das moradias, restaurantes, cafs e livrarias modestos dos

    15 Essa guerra, em especial, gerou mal-estar nos meios intelectuais europeus que apoiaram as lutas de libertaono Terceiro Mundo, como atesta o depoimento de Benedict Anderson no prefcio segunda edio de

    seu livro clssico sobre o nacionalismo, publicado pela primeira vez em 1983 no Reino Unido, portanto namesma poca em que saiu Tudo que slido desmancha no ar. Ele citou o desconforto com essa guerracomo principal motivo para escrever Comunidades imaginadas(ANDERSON, 2008, p. 19).

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    centros das cidades, a desarticulao do espao urbano barato e agradvelonde vicejava uma intelligentsiabomia. perda desse espao, somam-sea restrio da vida intelectual aos limites dos campiuniversitrios, situados

    nos subrbios, bem como a comercializao acelerada da cultura. Ento,a literatura e a crtica se tornam carreiras, no vocaes; os autores in-dependentes dariam lugar profissionalizao da vida cultural. A institu-cionalizao de intelectuais e artistas neutralizaria a liberdade de que emteoria dispem, de modo que eventuais e cada vez mais distantes sonhoscom a revoluo conviveriam com o investimento na profisso, no qualprevaleceria a realidade cotidiana da burocratizao e do emprego.

    Em suma, parece haver se estabelecido uma tendncia geral institu-

    cionalizao dos intelectuais, que s parece problemtica para aqueles que,como Marshall Berman, considerando-se inimigos da ordem estabelecida,constatam que ocupam um lugar dentro dela, talvez como

    a espcie de estimulantes que o capitalismo necessita. (...) Nesse clima, ento, inte-

    lectuais radicais encontram obstculos radicais: suas idias e movimentos correm o

    risco de desmanchar no mesmo ar moderno em que se decompe a ordem burguesa

    que eles tentam sobrepujar (BERMAN, 1986, p. 115).

    A radicalidade dos obstculos, entretanto, no significa que so insupe-rveis. Num tempo marcado pelo fim das certezas, para usar uma expres-so de Wallerstein (2004), os caminhos seguem entretanto abertos, e sovrios. Como aquele da sociologia como esporte de combate proposta porBourdieu, ou da sociologia pblica incentivada por Burawoy (2009), parano mencionar a continuidade renovada do materialismo histrico. Afinal,como ensinavam velhos mestres, tudo que existe merece perecer. Tudo que slido desmancha no ar.

    Referncias Bibliogrficas

    A, Benedict. 2008. Comunidades imaginadas:reflexes sobre a ori-gem e a difuso do nacionalismo. So Paulo: Companhia das Letras.

    A, Perry. 1986. Modernidade e revoluo. Novos Estudos CEBRAP,So Paulo, n. 14,, p. 2-15.

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    315Intelectuais e modernidade: Marshall Berman e seu pblico brasileiro

    _____. (1987) Os sinais da rua: uma resposta a Perry Anderson. Presena,Rio de Janeiro, n. 9, p. 122-138.

    _____. (2001)Aventuras no marxismo. So Paulo: Companhia das Letras.

    _____. (2009) Um sculo em Nova York espetculos em Times Square. SoPaulo: Companhia das Letras.

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    B, Antonio Carlos Ferreira de. 1997. No quero prosa/ Cacaso. Org. deVilma Aras. Rio de Janeiro/ Campinas: Ed. UFRJ/ Ed. da Unicamp.

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    M, Karl & E, Friedrich. 1996. Manifesto do Partido Comunista.6. ed. Petrpolis, RJ: Vozes.

    M, Karl.1974. Os pensadores. So Paulo: Abril Cultural._____. 1983. O capital. So Paulo: Abril Cultural.O, Renato. 1988. A moderna tradio brasileira: cultura brasileira e

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    laffaire Dreyfus nos jours. 2 ed. Paris: Armand Colin.R, Daniel Aaro. 1991.A revoluo faltou ao encontro. So Paulo, Brasi-

    liense.R, Marcelo. 1998. O sucesso no Brasil da leitura do Manifesto co-

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    R, Marcelo. 2000. Em busca do povo brasileiro artistas da revoluo,

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    W, Edmund. 1986. Rumo estao Finlndia:escritores e atores daHistria. So Paulo: Companhia das Letras.

    ResumoA recepo no Brasil ao livro de Marshall Berman, Tudoque slido desmancha no ar, ajuda

    a compreender o entrelaamento entre o campo intelectual e a indstria cultural, bem

    como as relaes entre o mercado e o pensamento de esquerda nos anos 1980. O sucesso

    da obra pode ser explicado por uma conjuno de fatores, desde o investimento editorial

    inovador no mercado, at a predisposio para receb-la nos meios intelectualizados, em

    plena transio da ditadura para a democracia. Mudava o lugar do intelectual na sociedade

    brasileira, em meio a redefinies tambm no pensamento e na prtica de esquerda.

    Palavras-chave:modernidade; intelectuais; anos 1980; indstria cultural brasileira; indi-vidualidade, engajamento poltico.

    Abstract

    The article analyses the extraordinary reception in Brazil of Marshall Bermans book about

    modernism, modernity and modernization, All that is solid melts into air. 34.000 copies

    were sold in only 12 months after its Brazilian edition of 1986. Till our days 74.500 copies

    of the book were published, which is a huge number for Brazilian standards. Bermans

    audience in Brazil testifies the relation between intellectual field and cultural industry, as

    well as the links between market and leftwing thought in the eighties. The success of the

    book can be explained by a series of factors, from the innovating editorial investment to

    the predisposition to accept it by intellectuals and artists in a particular moment, when

    the country was facing the transition from dictatorship to democracy. The place of artists

    and intellectuals was changing in Brazilian society, as was their political commitment.

    Key words: modernity; intellectuals; eighties; cultural industry in Brazil; individuality;

    political commitment.

    Recebido em outubro de 2009Aprovado em outubro de 2009