a didática de história em droysen

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DOI: 10.5533/TEM-1980-542X-2014203609 Revista Tempo | 2014 v20 | Artigo A didática da história de J. G. Droysen: constituição e atualidade 1 Arthur Alfaix Assis[1] Resumo A teoria da história desenvolvida por Johann Gustav Droysen (1808–1884) distingue-se, entre outros aspectos, pela sua consistente preocupação com temas didáticos. Além de investigar os princípios que regem o método de trabalho dos historiadores e de perscru- tar os motivos que nos levam a considerar como “históricas” certas porções do passado, ela também fornece respostas à pergunta “por que escrever, estudar e aprender história?”. Em linhas gerais, Droysen propõe que a finalidade do estudo da história não deve ser nem a assimilação de exemplos práticos, nem a memorização de fatos particulares, mas o aprendizado do que designou “pensamento his- tórico”. Com esse argumento, Droysen contribuiu, penso eu, para uma redefinição importante da função didática da historiografia. O presente texto caracteriza e contextualiza tal redefinição, discutindo também seus potenciais e limites. Palavras-chave: teoria da história; ensino de história; historiografia alemã – século XIX. J. G. Droysen’s didactics of history: constitution and currentness Abstract e historical theory developed by Johann Gustav Droysen (1808–1884) stands out partly due to its consistent orientation towards didactical issues. Besides investigating the principles governing the historical method and the reasons that lead us to attribute the quality of being “historical” to certain portions of the past, it also devised answers to the question: “why should one write, study, and learn history?” . In short, Droysen argues that the main goal of studying history should be neither the assimilation of practical examples nor the memorization of particular facts, but rather the learning of what he called “historical thinking” . I believe that Droysen’s argument set in motion a very significant redefinition of historiogra- phy’s didactical function. is article characterizes and contextualizes such redefinition, underlining some of its current potentials and limits. Keywords: philosophy of history; historical education; German historiography – 19 th Century. La didáctica de la historia de J. G. Droysen: constitución y actualidad Resumen La teoría histórica desarrollada por Johann Gustav Droysen (1808–1884) se distingue, entre otras cosas, por su preocupación constante con temas didácticos. Además de investigar los principios que rigen el método de trabajo de los historiadores y examinar las razones que nos llevan a considerar como “históricos” ciertos pasados, ella también ofrece respuestas a la pregunta “¿por qué escribir, estudiar y aprender la historia?”. En resumen, Droysen sostiene que el objetivo principal del estudio de la historia no debe ser ni la asimilación de ejemplos prácticos ni la memorización de hechos particulares, sino el aprendizaje de lo que él llama “pensamiento histórico”. Con este argumento, Droysen contribuyó, creo, a una redefinición importante de la función didáctica de la escritura de la historia. Este tra- bajo caracteriza y contextualiza tal redefinición, discutiendo también su actualidad y límites. Palabras clave: teoría de la historia; enseñanza de la historia; historiografía alemana – siglo XIX. La didactique de l’histoire de J. G. Droysen: constitution et actualité Résumé La théorie de l’histoire développée par Johann Gustav Droysen (1808-1884) se distingue par sa inquiétude quant aux thèmes didactiques. En plus d’investiguer les principes régissant la méthode de travail des historiens et d’étudier les raisons qui nous fait considérer certaines parties du passé comme «historiques», elle fournit des réponses à la question «Pourquoi écrire, étudier et aprendre  l’histoire?». Généralement, Droysen propose que l’étude de l’histoire ne doit être par assimilation des exemples pratiques ni par mémorisation de certains événements,  mais plutôt par l’apprentissage de ce qui a désigné la «pensée historique». Sur la base de cet argument, Droysen a contribué à la redéfinition de la  fonction didactique de l‘historiographie. Le présent texte caractérise et replace cette redéfinition et indique ses éventuelles limites. Mots clés: théorie de l’histoire; enseignement de l’histoire; historiographie allemande, XIXe siècle. Artigo recebido em 12 de Setembro de 2013 e aprovado para publicação em 30 de Outubro de 2013. [1] Departamento de História da Universidade de Brasília (UnB) – Brasília (DF) – Brasil. E-mail: [email protected] 1 Quase a totalidade das ideias que constam deste texto foram apresentadas e discutidas em mesa redonda do 7º Seminário Brasileiro de História da Historiografia, em Mariana, Minas Gerais, em 15 de agosto de 2013; em palestra ao Grupo de Pesquisa Espaços, Poder e Práticas Sociais, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, em 12 de dezembro de 2012; e em palestra ao Grupo de Pesquisa em Lógica e Filosofia da Ciência, da Universidade de Brasília, em 3 de dezembro de 2010. Aos organizadores e participantes dessas atividades, presto aqui os meus agradecimentos. Também agradeço a Itamar Freitas de Oliveira e aos dois pareceristas anônimos da Tempo pelas atentas leituras do manuscrito e pelas muitas e valiosas sugestões de melhoramento do texto.

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Teoria da História

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  • DOI: 10.5533/TEM-1980-542X-2014203609 Revista Tempo | 2014 v20 | Artigo

    A didtica da histria de J. G. Droysen: constituio e atualidade1

    Arthur Alfaix Assis[1]

    ResumoA teoria da histria desenvolvida por Johann Gustav Droysen (18081884) distingue-se, entre outros aspectos, pela sua consistente preocupao com temas didticos. Alm de investigar os princpios que regem o mtodo de trabalho dos historiadores e de perscru-tar os motivos que nos levam a considerar como histricas certas pores do passado, ela tambm fornece respostas pergunta por que escrever, estudar e aprender histria?. Em linhas gerais, Droysen prope que a finalidade do estudo da histria no deve ser nem a assimilao de exemplos prticos, nem a memorizao de fatos particulares, mas o aprendizado do que designou pensamento his-trico. Com esse argumento, Droysen contribuiu, penso eu, para uma redefinio importante da funo didtica da historiografia. O presente texto caracteriza e contextualiza tal redefinio, discutindo tambm seus potenciais e limites.Palavras-chave: teoria da histria; ensino de histria; historiografia alem sculo XIX.

    J. G. Droysens didactics of history: constitution and currentnessAbstractThe historical theory developed by Johann Gustav Droysen (18081884) stands out partly due to its consistent orientation towards didactical issues. Besides investigating the principles governing the historical method and the reasons that lead us to attribute the quality of being historical to certain portions of the past, it also devised answers to the question: why should one write, study, and learn history?. In short, Droysen argues that the main goal of studying history should be neither the assimilation of practical examples nor the memorization of particular facts, but rather the learning of what he called historical thinking. I believe that Droysens argument set in motion a very significant redefinition of historiogra-phys didactical function. This article characterizes and contextualizes such redefinition, underlining some of its current potentials and limits.Keywords: philosophy of history; historical education; German historiography 19th Century.

    La didctica de la historia de J. G. Droysen: constitucin y actualidadResumenLa teora histrica desarrollada por Johann Gustav Droysen (18081884) se distingue, entre otras cosas, por su preocupacin constante con temas didcticos. Adems de investigar los principios que rigen el mtodo de trabajo de los historiadores y examinar las razones que nos llevan a considerar como histricos ciertos pasados, ella tambin ofrece respuestas a la pregunta por qu escribir, estudiar y aprender la historia?. En resumen, Droysen sostiene que el objetivo principal del estudio de la historia no debe ser ni la asimilacin de ejemplos prcticos ni la memorizacin de hechos particulares, sino el aprendizaje de lo que l llama pensamiento histrico. Con este argumento, Droysen contribuy, creo, a una redefinicin importante de la funcin didctica de la escritura de la historia. Este tra-bajo caracteriza y contextualiza tal redefinicin, discutiendo tambin su actualidad y lmites.Palabras clave: teora de la historia; enseanza de la historia; historiografa alemana siglo XIX.

    La didactique de lhistoire de J. G. Droysen: constitution et actualitRsumLa thoriedelhistoire dveloppe par Johann Gustav Droysen (1808-1884) se distingue par sa inquitudequant aux thmes didactiques. En plus dinvestiguerles principes rgissantla mthode de travail des historiens et dtudier les raisons qui nous fait considrer certaines parties du pass comme historiques, ellefournitdes rponses la question Pourquoi crire, tudier et aprendre lhistoire?. Gnralement, Droysen propose que ltude delhistoire ne doit tre par assimilation des exemples pratiques ni par mmorisation de certains vnements, mais plutt par lapprentissage de ce qui adsign la pense historique. Surla base decet argument, Droysen acontribu la redfinition de la fonction didactique de lhistoriographie. Le prsent texte caractrise et replace cette redfinition et indique ses ventuelleslimites.Mots cls: thoriedelhistoire; enseignement delhistoire; historiographie allemande, XIXe sicle.

    Artigo recebido em 12 de Setembro de 2013 e aprovado para publicao em 30 de Outubro de 2013.[1] Departamento de Histria da Universidade de Braslia (UnB) Braslia (DF) Brasil. E-mail: [email protected]

    1Quase a totalidade das ideias que constam deste texto foram apresentadas e discutidas em mesa redonda do 7 Seminrio Brasileiro de Histria da Historiografia, em Mariana, Minas Gerais, em 15 de agosto de 2013; em palestra ao Grupo de Pesquisa Espaos, Poder e Prticas Sociais, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, em 12 de dezembro de 2012; e em palestra ao Grupo de Pesquisa em Lgica e Filosofia da Cincia, da Universidade de Braslia, em 3 de dezembro de 2010. Aos organizadores e participantes dessas atividades, presto aqui os meus agradecimentos. Tambm agradeo a Itamar Freitas de Oliveira e aos dois pareceristas annimos da Tempo pelas atentas leituras do manuscrito e pelas muitas e valiosas sugestes de melhoramento do texto.

  • Revista Tempo, vol. 20 2014:1-182

    O momento didtico na obra de Droysen

    Em 1840, a trajetria acadmica de Droysen passou por uma revira-volta na sequncia da sua contratao como professor efetivo da Universidade de Kiel. Ele j tinha ento concludo os seus estudos em Berlim, traduzido e comentado dramas de squilo e Aristfanes e escrito uma importante biografia de Alexandre, o Grande a que se seguiram os dois volumes de uma Histria do Helenismo. Com a mudana para o Norte, entretanto, ele relega ao segundo plano o interesse pelo mundo antigo e passa a dedicar a maior parte das suas atenes investigativas a perodos muito mais recentes do passado.

    O principal motivo dessa mudana foi de natureza poltica. Droysen nas-cera cerca de dois anos depois do fim do Sacro Imprio Romano-Germnico e a maior parte da sua vida transcorreu num momento em que, no espao cultural alemo, inexistia uma unidade poltica realmente forte. O tipo de historiografia que ele passou a cultivar desde mais ou menos 1845 espelhava o desejo de contribuir, pela via da interpretao histrica, com um projeto de construo do estado nacional alemo. nesse esprito que se podem entender as suas duas grandes obras de histria do que era ento o tempo presente, a saber, as Conferncias sobre as guerras da liberdade (1846) e a Biografia do Conde Yorck von Wartenburg (18511852) um heri prus-siano da guerra de resistncia contra a dominao napolenica. O mesmo se pode dizer daquela obra que o prprio Droysen considerava ser o seu tra-balho mais importante, a Histria da poltica prussiana, cujos 14 volumes foram publicados entre 1855 e 1886.2

    interessante conjecturar sobre qual seria, para ns, a atualidade e a rele-vncia da obra de Droysen se ele tivesse se dedicado apenas histria prus-siana. Neste caso, plausvel pensar que teramos acerca dele uma percepo no muito distante da que hoje temos de um Heinrich von Treitschke, histo-riador que associado antes a uma ideologia poltica no mnimo complicada que a uma prtica de pesquisa digna de elogio.3

    Isso, todavia, no se passa com Droysen, basicamente por duas razes. Aprimeira prende-se ao fato de Droysen ter, nas suas obras de juventude, conferido ao conceito de

    2O melhor estudo crtico da trajetria pessoal e acadmica de Droysen ainda que hipercrtico com relao relevncia da teoria da histria deste a biografia escrita por Wilfried Nipel, Johann Gustav Droysen. Ein Leben zwischen Wissenschaft und Politik, Mnchen, C.H. Beck, 2008. Antes da publicao do texto de Nipel, a obra de referncia sobre o tema era a biografia (inconclusa) preparada pelo prprio filho de Droysen. Ver: Gustav Droysen, Johann Gustav Droysen, 1. Teil: Bis zum Beginn der Frankfurter Ttigkeit, Leipzig, B.G. Teubner, 1910. Para outros estudos biogrficos importantes, ver: Otto Hintze, Johann Gustav Droysen. In: ______., Zur Theorie der Geschichte. Gesammelte Abhandlungen, Leipzig, Koehler & Amelang, 1942, p. 150-213; Werner Obermann, Der Junge Johann Gustav Droysen: Ein Beitrag zur Entstehungsgeschichte des Historismus, Tese de doutorado, Universitt Bonn, Bonn, 1977; Stephan Paetrow, Johann Gustav Droysen in Jena. Ein Beitrag zur Entstehungsgeschichte von Droysens Historik und Geschichte der preuischen Politik, Saarbrcken, VDM, 2008; Jrn Rsen, Johann Gustav Droysen, In: Hans-Ulrich Wehler (org.), Deutsche Historiker, Gttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1973, p. 115-131. Para resumos biogrficos em portugus, ver: Arthur Alfaix Assis, Johann Gustav Droysen, In: Estevo de Rezende Martins (org.), A histria pensada. Teoria e mtodo na historiografia europia do sculo XIX, So Paulo, Contexto, 2010, p. 31-36; Pedro Spinola Pereira Caldas, Johann Gustav Droysen (18081884), In: Maurcio Parada (org.), Os historiadores: clssicos da Histria. Vol. 2: de Tocqueville a Thompson, Rio de Janeiro, PUC-Rio; Petrpolis, Vozes, 2013, p. 36-55.3Ver: Andreas Dorpalen, Heinrich von Treitschke, Journal of Contemporary History, vol. 7, n. 34, 1972, p. 21-35.

  • Revista Tempo, vol. 20 2014:1-183

    helenismo o significado de um conceito de poca que se preserva at hoje.4 Mas a segunda razo a que mais nos interessa aqui: Droysen mantm-se relativamente atual, sobretudo por causa das reflexes sobre teoria e metodologia da histria que ele siste-matizou em cursos oferecidos nas Universidades de Jena e Berlim entre 1857 e 1883. Enfim, por causados seus textos de teoria da histria que Droysen frequentemente lembrado como um autor clssico, tanto por historiadores de mente filosfica quanto por filsofos de mente histrica. Hannah Arendt, por exemplo, afirmou que ele ter sido talvez o mais denso dos historiadores do sc. XIX. Hans Georg Gadamer ressal-tou a importncia de Droysen na trajetria da moderna hermenutica, qualifican-do-o como um arguto metodlogo. Para o historiador Thomas Nipperdey, autor de uma das mais respeitadas histrias da Alemanha oitocentista, Droysen foi o grande terico do historicismo.5 Alista de elogios pode parar por aqui, pois o ponto que se pretende ilustrar est claro: segundo a percepo de diversos analistas importantes, na Alemanha do sculo XIX, Droysen foi um dos autores que melhor encaminhou as questes tericas ligadas histria e historiografia.

    A perspectiva principal que estrutura a teoria da histria de Droysen faz eco ao seu propsito de explicar os princpios que regulam o trabalho dos histo-riadores profissionais. Droysen costumava abrir as suas conferncias tericas com a afirmao de que, na sua poca, a despeito do frequente sucesso das pesquisas empreendidas pelos historiadores, as questes mais fundamentais atinentes ao conhecimento histrico tendiam a permanecer sem respostas claras.6 Ele optou por pensar, ensinar e escrever sobre temas terico-metodo-lgicos depois de ter diagnosticado a necessidade de esclarecer os historiado-res quanto natureza e importncia da disciplina histrica. Por essa razo, pode-se dizer que a teoria da histria de Droysen , antes de mais nada, uma teoria da cincia histrica (Geschichtswissenschaft).

    Tal teoria parte de uma caracterizao das especificidades do mtodo histrico, isto , de uma demonstrao de que os procedimentos de pesquisa

    4Ver, por exemplo, Hans-Joachim Gehrke, Geschichte des Hellenismus, Mnchen, Oldenbourg, 2003, p. 1: Quando falamos hoje de Helenismo como uma poca histrica, colocamo-nos dentro de uma tradio iniciada por Johann Gustav Droysen (traduo do autor); Arnaldo Momigliano, J.G. Droysen between Greeks and Jews, History and Theory, vol. 9, n. 2, 1970, p. 139-153: It was J. G. Droysen who introduced the word Hellenism to designate the civilization of the Greek-speaking world after Alexander (p. 139-140). Antes de Droysen, o termo helenismo j era usual, mas o seu campo semntico era bem mais restrito. O termo era comumente utilizado como referncia aos judeus do mundo antigo que falavam grego. Cf. Arnaldo Momigliano, J.G. Droysen between Greeks and Jews, History and Theory, vol. 9, n. 2, 1970, p. 142.5Hannah Arendt, Entre o passado e o futuro, So Paulo, Perspectiva, 2001, p. 110; Hans-Georg Gadamer, Verdade e mtodo. Vol. 1: traos fundamentais de uma hermenutica filosfica, Petrpolis, Vozes, 2008, p. 285; Thomas Nipperdey, Deutsche Geschichte 18001866. Brgerwelt und starker Staat, Mnchen, C.H. Beck, 1998, p. 517.6Johann Gustav Droysen, Historik. Vol. 1: Rekonstruktion der ersten vollstndigen Fassung der Vorlesungen (1857); Grundri der Historik in der ersten handschriftlichen (18571858) und in der letzten gedruckten Fassung (1882), editado por Peter Leyh, Stuttgart, Frommann-Holzboog, 1977, p. 3-4; 417.

    Droysen mantm-se relativamente atual, sobretudo por causa das reflexes sobre teoria e metodologia da histria que ele sistematizou em cursos oferecidos nas

    Universidades de Jena e Berlim entre 1857 e 1883

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    utilizados pelos historiadores obedecem a regras que so caractersticas da disciplina histrica.7 Droysen aceita, portanto, a existncia de um pluralismo cientfico, elaborando, a partir da, uma justificao para a autonomia da his-tria enquanto um campo acadmico situado entre a filosofia e as cincias naturais. A mais conhecida citao atribuda a Droysen a de que a essn-cia do mtodo histrico o ato de compreender pesquisando (forschen-des Verstehen).8 Talformulao reflete bem o seu argumento de que a hist-ria ocupa uma posio intermediria entre a filosofia e as cincias naturais. Contrariamente filosofia (e tambm teologia), a histria seria, de um lado, uma cincia emprica. Por outro, porm, a histria refere-se ao seu material emprico de uma maneira que difere fundamentalmente de outras cincias, pois os historiadores no lidam com fenmenos naturais recorrentes, mas com os produtos singulares do pensamento e da ao humanas.9

    A teoria da histria de Droysen vai, na verdade, alm de uma metodologia her-menutica capaz de demarcar a especificidade da histria diante de outras formas de conhecimento. Est, como j bem demonstrou Michael MacLean, imbricada em fortes motivos ticos e polticos.10 Abrange, alm disso, uma srie de microteorias, que eu s poderia listar aqui sumariamente: uma teoria das etapas da pesquisa histrica, uma teoria da historicidade, uma tipologia da representao histrica, uma teoria social, uma tica histrica, uma teoria poltica, entre outras.11 Tudo isso costurado por uma viso religiosa e algo necessitarista do processo histrico, em linha com o que Droysen uma vez sugeriu que a mais elevada tarefa da cincia histrica , sim, a teodicia,12 isto , a justificao da existncia do mal num mundo criado por um Deus todo-poderoso e de bondade infinita.13

    Todavia, Droysen julgava que a cincia histrica se revestia, paralelamente, de uma utilidade algo mais prosaica. Seria til no s resoluo de certas ten-ses inerentes religiosidade crist, mas tambm a outros planos da vida pr-tica dos seres humanos. Por isso, no exagero dizer que, para ele, a atividade dos historiadores se liga ao desempenho de uma boa variedade de funes de orientao cultural. Para Droysen, a historiografia no deve ser feita como um fim em si mesmo, como uma espcie de arte pela arte, movida pela pura

    7Frederick Beiser, The German historicist tradition, Oxford, Oxford University Press, 2011, p. 291; 298.8Johann Gustav Droysen, Historik. Vol. 1: Rekonstruktion der ersten vollstndigen Fassung der Vorlesungen (1857); Grundri der Historik in der ersten handschriftlichen (18571858) und in der letzten gedruckten Fassung (1882), editado por Peter Leyh, Stuttgart, Frommann-Holzboog, 1977, p. 22.9Para uma interpretao aprofundada da concepo hermenutica de mtodo histrico desenvolvida por Droysen, ver Herbert Schndelbach, Geschichtsphilosophie nach Hegel. Die Probleme des Historismus, Freiburg, Karl Alber, 1974, p. 101-111.10Michael MacLean, Johann Gustav Droysen and the development of historical hermeneutics, History and Theory, vol. 21, n. 3, 1982, p. 347-365.11Para uma viso panormica mais detalhada da teoria da histria de Droysen, ver Arthur Alfaix Assis, What is history for?, New York, Berghahn Books, 2014, p. 190-210.12Johann Gustav Droysen, Historik. Vol. 2: Texte im Umkreis der Historik (18261882), editado por Horst Walter Blanke, Stuttgart, Frommann-Holzboog, 2007, p. 228.13Sobre a importncia da religio na concepo de histria de Droysen, ver: Wolfgang Hardtwig, Geschichtsreligion Wissenschaft als Arbeit Objektivitt. Der Historismus in neuer Sicht, Historische Zeitschrift, n. 252, 1991, p. 1-32; Dirk Fleischer, Geschichtserkenntnis als Goterkenntnis. Das theologische Fundament der Geschichtstheorie Johann Gustav Droysens, In: Horst Walter Blanke (org.), Historie und Historik. 200 Jahre Johann Gustav Droysen, Kln, Bhlau, 2009, p. 73-89.

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    vontade de compreender mais e melhor uma poro do passado. Deve,antes, consistir numa interpretao pragmtica do presente, capaz de dot-lo da autoconscincia necessria para garantir a continuidade da prpria histria enquanto processo objetivo de desenvolvimento da humanidade.14

    Segundo Droysen, a participao ativa das pessoas na vida histrica, nas diferentes esferas do mundo tico, depende da aquisio por elas de uma competncia subjetiva especfica que s a historiografia capaz de fomentar. Trata-se da competncia que lhes permite ter a conscincia de que, na sua constituio atual, tal mundo e as suas esferas (famlia, povo, lngua, direito, religio, economia, poltica, entre outras) so como so, porque assim se tor-naram.15 Atravs disso, o indivduo ascende a uma viso desnaturalizada do processo histrico, em que este deixa de ser experimentado passivamente enquanto destino inexorvel e passa a aparecer como um devir sobre o qual se pode tentar exercer algum tipo de influncia ativa.

    A conscincia da historicidade do mundo atual , pois, o que, de acordo com Droysen, confere a mais importante garantia continuidade do processo histrico. Um dos mais nobres objetivos que ele associa prtica historiogr-fica justamente o de promover a difuso e o aprimoramento de tal conscin-cia. A tarefa dos estudos histricos, afirma Droysen lapidarmente, que se aprenda a pensar historicamente.16 Com essa definio, ele queria sensibilizar os historiadores para o fato de que conhecimento histrico pode produzir um impacto prtico que transcende o puro e simples entendimento do passado. Queria, na verdade, fortalecer a possibilidade de que o conhecimento do pas-sado estimulasse, nos leitores e estudantes, a aprendizagem de uma determi-nada competncia reflexiva: a capacidade de relacionar passado e presente de maneira histrica, de enriquecer a experincia atual com o conhecimento da experincia pretrita. Em outras palavras: o grande aprendizado a ser extrado da histria era, para Droysen, em primeirssimo lugar, relativo a uma forma geral de pensamento ou conscincia e no a contedos factuais especficos. Esse argumento sintetiza boa parte da sua viso geral da historiografia enquanto uma forma de conhecimento prtico, ao mesmo tempo em que d a perceber a centralidade da reflexo didtica no corpo da sua teoria da histria.

    Ascenso e queda da justificativa exemplar

    Ao longo da trajetria de longo prazo da historiografia, definies pragmti-cas do valor da histria, como a formulada por Droysen, foram muito mais fre-quentes do que definies autotlicas, isto , do que aquelas que atribuem

    14Johann Gustav Droysen, Historik. Vol. 2: Texte im Umkreis der Historik (18261882), editado por Horst Walter Blanke, Stuttgart, Frommann-Holzboog, 2007, p. 377-379.15Idem, Historik. Vorlesungen ber Enzyklopdie und Methodologie der Geschichte, editado por Rudolf Hbner, Mnchen, Oldenbourg, 1971, p. 301.16Idem, Historik. Vol. 1: Rekonstruktion der ersten vollstndigen Fassung der Vorlesungen (1857); Grundri der Historik in der ersten handschriftlichen (18571858) und in der letzten gedruckten Fassung (1882), editado por Peter Leyh, Stuttgart, Frommann-Holzboog, 1977, p. 5.

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    historiografia um fim em si mesmo. Existe, porm, bem mais do que uma nica maneira de conferir histria importncia prtica. Por muito tempo, no pen-samento histrico ocidental, a principal forma do pragmatismo historiogr-fico correspondeu a um conjunto de argumentos que, para usar a expresso de George Nadel, se pode chamar de teoria exemplar da histria.17 Droysenesta-beleceria, mais tarde, a sua didtica do pensamento histrico precisamente em oposio a essa didtica exemplarista. Por isso, para melhor compreender a primeira, fundamental lanar um olhar sobre a segunda.

    Teoria exemplar corresponde, nesse contexto, ao argumento de que existe uma razo prtica para a escrita e o estudo da histria. Diz respeito, mais espe-cificamente, ideia de que os textos de histria comunicam s pessoas de um dado presente modelos e antimodelos de ao cuja eficcia j foi posta prova em situaes pretritas. Sendo assim, a relevncia das histrias residiria na sua capacidade de proporcionar aprendizagem poltica e/ou moral, mediada por exemplos de feitos passados.

    A justificao exemplar da historiografia no uma especificidade da tra-dio ocidental. Na verdade, encontra-se presente em quase todas as grandes tradies historiogrficas e h, nas respectivas bibliografias especializadas, centenas, seno milhares, de referncias ao tema.18 Pensemos, por exemplo, em Ibn Khaldn, o grande clssico da historiografia islmica. O seu livro de histria universal tinha o ttulo geral de Kitab al-Ibar, que se pode traduzir por Livro dos exemplos. Na introduo do texto, pode-se ler o seguinte:

    A histria familiariza-nos com as condies dos povos do pas-sado tais como refletidas no seu prprio carter, com as biogra-fias dos profetas, com as dinastias e com as polticas dos gover-nantes. Quem quer que queira pode, portanto, [ luz da histria] chegar ao ponto de estar apto para imitar exemplos histricos em assuntos de natureza religiosa e mundana.19

    A trajetria do ramo ocidental da teoria exemplar multifacetada. Os seus primeiros registros encontram-se na obra de retricos e historiadores da era helenstica.20 Polbio talvez o mais notvel expoente dessa fase inicial, com a sua definio da histria como meio de treinamento para a vida poltica. Doretrico romano Ccero provm, todavia, a expresso que melhor sintetiza o argumento exemplar: historia magistra vitae. Ao longo dos vrios sculos que nos separam de ambos os autores, a teoria exemplar da histria ganhou

    17George H. Nadel, Philosophy of history before historicism, History and Theory, vol. 3, n. 3, 1964, p. 291-315 (esp. p. 292).18Ver, por exemplo, Ying-shih Y, Reflections on Chinese historical thinking, In: Jrn Rsen (org.), Western historical thinking: an intercultural debate, New York, Berghahn Books, 2002, p. 152-172 (esp. p. 158); David Schaberg, Chinese history and philosophy, In: Andrew Feldherr; Grant Hardy (orgs.), The Oxford history of historical writing. Vol. 1: beginnings to AD 600, Oxford, Oxford University Press, 2011, p. 394-414; Romila Thapar, Ancient Indian social history. Some interpretations, New Delhi, Orient Blackswan, 2006, p. 253.19Ab Zayd Ibn Khaldn, The Muqaddimah. An introduction to history, vol. 1, Princeton, Princeton University Press, 1967, p. 15 (traduo do autor).20Para Franois Hartog, as histrias escritas no perodo clssico, por Herdoto e Tucdides, por exemplo, no revelam a predominncia de justificativas e usos exemplares. Ver Franois Hartog, Os antigos, o passado e o presente, Braslia, Editora da UnB, 2003, p. 53-70.

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    os mais diferentes contornos e feies, combinando-se com a tradio estoica, sendo assimilada por diferentes variaes da viso crist de mundo e asso-ciando-se moderna razo de estado. Inmeros intelectuais antigos, medievais e modernos concordavam (ou teriam concordado) com o velho dito segundo o qual a histria nada mais seno uma forma de filosofia que ensina atravs de exemplos.21 Ousando um pouco, pode-se dizer que, nos universos culturais da Antiguidade, da Idade Mdia e da alta Idade Moderna ocidentais, a despeito das enormes transformaes que marcam as diferenas de um perodo a outro, existia um relativo consenso cultural acerca da utilidade exemplar da histria para a vida e do valor pedaggico dos exemplos histricos.22

    Ao padro exemplar de justificao da historiografia corresponde uma didtica da histria, no sentido de uma concepo geral do que a historiogra-fia pode ensinar e de como desta se pode aprender algo. A histria da ascen-so e queda de ambos, no que tange ao mundo ocidental, foi bem contada e documentada pelo prprio Nadel e, depois, por Reinhart Koselleck, sendo j razoavelmente conhecida.23 Com base na periodizao pensada por esses e

    21Essa passagem tem sido h muito tempo atribuda a Dionsio de Halicarnasso, importante historiador grego do sculo I a.C. O conjunto textual de que faz parte foi, muito provavelmente, escrito apenas no sculo II d.C. Ver Malcolm Heath, Pseudo-Dionysius Art of Rhetoric 811: figured speech, declamation and criticism, American Journal of Philology, vol. 124, 2003, p. 81-105.22Charles Fornara, The nature of history in ancient Greece and Rome, Berkeley, University of California Press, 1983, p. 104-120; Christian Meier, Antiguidade, In: Reinhart Koselleck et al., O conceito de histria, Belo Horizonte, Autntica, 2013, p. 37-62 (esp. p. 49-50; 57); Gabrielle Spiegel, Political utility in Medieval historiography: a sketch, History and Theory, vol. 14, n. 3, 1975, p. 314-325 (esp. p. 316-319); Odilo Engels, Compreenso do conceito na Idade Mdia, In: Reinhart Koselleck et al., O conceito de histria, Belo Horizonte, Autntica, 2013, p. 63-84 (esp. p. 80); Rommily Jenkins, The Hellenistic origins of Byzantine literature, Dumbarton Oaks Papers, vol. 17, 1963, p. 37-52 (esp. p. 50); Horst Gnther, Pensamento histrico no incio da Idade Moderna, In: Reinhart Koselleck et al., O conceito de histria, Belo Horizonte, Autntica, 2013, p. 85-118 (esp. p. 90-93; 11-114); Felix Gilbert, Machiavelli and Guicciardini: politics and history in sixteenth century Florence, Princeton, Princeton University Press, 1973, p. 228; Anthony Grafton, What was history? The art of history in early modern Europe, Cambridge, Cambridge University Press, 2006, p. 31-32; Michel Jeanneret, The vagaries of exemplarity: distortion or dismissal?, Journal of the History of Ideas, vol. 59, n. 4, 1998, p. 565-579 (esp. p. 578-579).23George Nadel, Philosophy of history before historicism, History and Theory, vol. 3, n. 3, 1964, p. 291-315; Reinhart Koselleck, Futuro passado: contribuio semntica dos tempos histricos, Rio de Janeiro, Contraponto; Editora da PUC-Rio, 2006, p. 41-60. Sobre o tema, ver tambm: Arthur Alfaix Assis, Por que se escrevia histria? Sobre a justificao da historiografia no mundo ocidental pr-moderno, In: Marlon Salomon (org.), Histria, verdade e tempo, Chapec, Argos, 2011, p. 105-132; Eckhard Keler, Geschichte: Menschliche Praxis oder kritische Wissenschaft? Zur Theorie der humanistischen Geschichtsschreibung, In: Eckhard Keler (org.), Theoretiker humanistischer Geschichtsschreibung. Nachdruck exemplarischer Texte aus dem 16. Jahrhundert, Mnchen, Wilhelm Finck, 1971, p. 7-47; Hermann Lbbe, Geschichtsbegriff und Geschichtsinteresse: Analytik und Pragmatik der Historie, Basel, Schwabe, 1977, p. 204-224; Ulrich Muhlack, Geschichtswissenschaft im Humanismus und in der Aufklrung. Die Vorgeschichte des Historismus, Mnchen, C.H. Beck, 1991, p. 44-66; Jrn Rsen, Histria viva. Teoria da histria III: formas e funes do conhecimento histrico, Braslia, Editora da UnB, 2007, p. 50-55.

    A relevncia das histrias residiria na sua capacidade de proporcionar aprendizagem poltica e/ou moral, mediada por exemplos

    de feitos passados

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    outros autores, pode-se afirmar que a teoria exemplar da histria se manteve enquanto forma preponderante de justificao da historiografia e da aprendi-zagem histrica pelo menos at a segunda metade do sculo XVIII.

    Por ironia do destino, a mais elaborada das teorias exemplares foi preparada justamente nas ltimas dcadas de hegemonia dessa antiga maneira de definir o valor da historiografia. Encontra-se nas Cartas sobre o estudo e a utilidade da his-tria, escritas por Bolingbroke em 1735. Esse filsofo de provenincia aristocrtica trilhou uma trajetria meterica no cenrio poltico ingls de incios do sculo XVIII, mas caiu em desgraa aps a entronizao de Jorge I. Mais de uma vez exilado, com os direitos polticos caados, os ttulos nobilirquicos anulados e as propriedades sob ameaa, ele volta-se, no fim da vida, para os estudos filosficos e histricos.24

    As Cartas sobre o estudo e a utilidade constituem um dos mais importantes textos sobre a ideia de histria na Inglaterra.25 Do testemunho de uma posio acerca da importncia da historiografia que se coloca em franca oposio noo, desenvolvida entre cronlogos, antiqurios e demais usurios do mtodo crtico, de que o conhecimento histrico teria um propsito em si mesmo.26 Bolingbroke despreza toda e qualquer pesquisa fatual que esteja desvinculada de propsitos prticos genunos e faz uso de uma linguagem bastante expressiva para marcar a sua posio. Afirma preferir incidir em anacronismos a correr atrs da tralha erudita que enche a cabea de um antiqurio. Equipara gramticos e fillogos a burros de carga perdidos nos labirintos da Antiguidade. Considera, enfim, que a erudio no passa de uma forma inventiva e enganosa de indolncia.27 Em linha com essas incisivas crticas erudio pela erudio, Bolingbroke argumenta fortemente pela convenincia de uma pedagogia histrica baseada em exemplos e contrariamente ao recurso a preceitos filosficos de carter te-rico. Tamanha a imperfeio do entendimento humano [...], defende ele,

    que proposies gerais e abstratas, mesmo que verdadeiras, se nos parecem obscuras e duvidveis, at que sejam explicadas por exemplos; e que as mais sbias lies de virtude dificilmente convencem o juzo e determinam a vontade, a no ser que sejam executadas atravs daqueles meios.28

    Todavia, nas dcadas seguintes, a combinao entre iluminismo e histori-cismo que fermentou o pensamento filosfico e histrico nos pases de lngua alem daria ocasio ao surgimento de um novo conjunto de expectativas em relao historiografia, luz das quais o discurso exemplar acerca da apren-dizagem histrica passa a parecer mais e mais obsoleto. Estou aludindo aqui ao processo de formao do moderno conceito de histria, tal como analisado

    24Isaac Kramnick, Bolingbroke and his circle: the politics of nostalgia in the age of Walpole, Ithaca, Cornell University Press, 1992, p. 8-16. Ver tambm: Philip Hicks, Bolingbroke, Clarendon, and the Role of Classical Historian, Eighteenth-Century Studies, vol. 20, n. 4, 1987, p. 445-471.25George Nadel, New lights on Bolingbrokes letters on History, Journal of the History of Ideas, vol. 23, n. 4, 1962, p. 550-557 (esp. p. 557). (traduo do autor).26Ulrich Muhlack, Geschichtswissenschaft im Humanismus und in der Aufklrung. Die Vorgeschichte des Historismus, Mnchen, C.H. Beck, 1991, p. 391.27Bolingbroke (Henry St. John), Letters on the study and the use of history, London, T. Cadell, 1779, p. 9; 13-14.28Odem, Ibidem, p. 15.

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    por Koselleck. Nesse conceito, estaria simbolizada uma nova ordem temporal em que o tempo experimentado como um amplo e progressivo continuum a ligar passado e futuro com a intermediao do presente.

    Um dos mais fundamentais argumentos que subjazem anlise de Koselleck o de que a emergncia da noo de histria como o macroprocesso de desenvolvi-mento da humanidade se deu em paralelo com o avano da percepo da singula-ridade e da irrepetibilidade dos acontecimentos histricos. Com efeito, do final do sculo XVIII em diante, disseminou-se em parte do mundo ocidental a noo de que se vivia num tempo radicalmente novo. Isso impeliu diversos filsofos e his-toriadores, que atuavam, sobretudo, no espao cultural alemo, a adotarem uma atitude indita de temporalizao diante do passado e do presente. Comeou-se ento a enfatizar a singularidade do presente e das pocas do passado; comeou-se, enfim, a historicizar propriamente o passado e o presente. Em virtude da cres-cente tendncia para se temporalizar a relao com a experincia, o passado tor-nou-se cada vez menos diretamente relevante para o presente.29

    Essa transformao do conceito de histria, juntamente com as novas possibilidades de temporalizao da experincia por ela incentivadas, tam-bm gerou consequncias sobre a maneira de se definir o valor e a funo da historiografia. Apresentando-se como o recurso fundamental para a apreen-so cognitiva de uma experincia histrica nica e irrepetvel, a historiografia move-se ento para longe da velha exemplaridade.30 De fato, vistos desde uma perspectiva lgica, os exemplos histricos apenas podem reivindicar validade geral no contexto de uma representao do tempo que neutraliza a diferena entre presente e passado. Historicamente, tal neutralizao se deu amide por meio do recurso a um conceito supratemporal de natureza humana, isto , por meio de uma representao fixa e invarivel da essncia do humano.

    O fato que a nfase moderna nos processos, na unicidade dos aconte-cimentos e na historicidade da natureza humana fragilizou um dos pilares da teoria exemplar da histria, a saber, a ideia de que os exemplos possuem uma validade trans-histrica, ou seja, de que valem para diferentes contex-tos temporais. Alguns autores de princpios do sculo XIX parecem ter tido clara conscincia de tais mutaes. Hegel, por exemplo, no comeo da sua Filosofia da histria, afirma peremptoriamente:

    o que a experincia e a histria ensinam que os povos e os governos jamais aprenderam coisa alguma da histria e no seguiram o ensinamento que ela poderia ter inspirado. Cada poca se encontra em circunstncias to peculiares, representa uma situao to individual que as decises sobre como agir s podem ser tomadas por referncia a ela prpria.31

    29Reinhart Koselleck, Histria como conceito mestre moderno, In: Reinhart Koselleck et al., O conceito de histria, Belo Horizonte, Autntica, 2013, p. 185-222 (esp. p. 202-203); Koselleck, Futuro passado: contribuio semntica dos tempos histricos, Rio de Janeiro, Contraponto; Editora da PUC-Rio, 2006, p. 55-56.30Idem, A configurao do moderno conceito de histria, In: Reinhart Koselleck et al., O conceito de histria, Belo Horizonte, Autntica, 2013, p. 119-184 (esp. p. 160-164).31Georg Wilhelm Friedrich Hegel, Filosofia da histria, Braslia, Editora da UnB, 1999, p. 15 (traduo ligeiramente modificada).

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    O ponto mesmo reaparece no pensamento de um dos mais polivalentes intelectuais da era de ouro do idealismo alemo, Wilhelm von Humboldt. Segundo ele, [a histria no presta servio vida] ao fornecer exemplos que devem ser seguidos ou evitados, pois isto geralmente conduz ao erro e raramente ensina.32

    A ressignificao da histria enquanto conhecimento prtico

    No obstante essas e outras crticas, muito poucos foram os intelectuais que, nos sculos XVIII e XIX, trabalharam numa resposta consistente questo: para que serve a histria quando se a retira do pedestal de mestra da vida? Essa uma das circunstncias que conferem uma importncia especial teo-ria da histria de Droysen.

    Droysen foi um dos primeiros intelectuais a extrair todas as consequncias da moderna crtica justificao exemplar da historiografia. Reconhecendo a inadequao dos exemplos histricos, ele comea a reajustar o foco e as metas da aprendizagem histrica. Para ele, produtores e receptores do conhe-cimento histrico deviam concentrar-se no na transmisso e no aprendizado de mximas concretas de conduta prtica, mas, sim, no desenvolvimento de certas habilidades de pensamento. Pensamento histrico torna-se, assim, a

    etiqueta de uma significativa mudana de paradigma. A definio de Droysen assenta-se, como acabei de indicar, sobre uma

    rejeio decidida dos princpios que fornecem sustentao exemplaridade histrica. Mas seria um grande equvoco enxergar nessa atitude antiexemplar sinais de repdio geral a uma viso pragmtica de historiografia. Naverdade, Droysen pretendia reconstruir, em terreno novo, os velhos laos pragmti-cos entre histria e vida, anteriormente conservados na mxima ciceroniana. Por isso, pode-se dizer que, na sua noo de pensamento histrico, estava embutida uma tentativa relativamente moderada de substituir a teoria exem-plar da histria.

    Quando falava em pensamento histrico, Droysen dava destaque sua percepo de que histria se faz sempre na conexo entre passado e presente (e futuro, naturalmente). Uma maneira de traduzir esse seu insight com um

    32Wilhelm von Humboldt, Sobre a tarefa do historiador, In: Estevo de Rezende Martins (org.), A histria pensada. Teoria e mtodo na historiografia europeia do sculo XIX, So Paulo, Contexto, 2010, p. 82-100 (esp. p. 86).

    Hegel, no comeo da sua Filosofia da histria, afirma peremptoriamente: o que a experincia

    e a histria ensinam que os povos e os governos jamais aprenderam coisa alguma da histria

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    trusmo: pensar historicamente o mesmo que ser capaz de colocar passado e presente em perspectiva histrica. A capacidade de pensar historicamente confunde-se, assim, com a habilidade para historicizar o passado e o presente. Para Droysen, a historicizao do passado implica necessariamente uma pers-pectivao histrica do sujeito do pensamento histrico no presente. Droysen exprime aqui o ncleo duro da teoria historicista do conhecimento, nos qua-dros da qual o passado objetivo tornado conhecido pelos historiadores reper-cute dentro do prprio sujeito do conhecimento e dos seus destinatrios.33 Conhecer o passado com a ajuda das cincias histricas , assim, uma forma de autoconhecimento.

    Uma importante costura dessa teoria historicista do conhecimento executada pelo conceito idealista e neo-humanista de Bildung. Que se aprenda a pensar historicamente uma frmula associada a uma preten-so formativa no sentido alemo do termo formao. Relaciona-se dire-tamente com um projeto de desparticularizao e universalizao das for-mas de orientao cultural da vida. Para o professor filosfico de Droysen, Hegel, a formao (Bildung) ope-se tanto subsistncia fsica quanto ao carter singular do ser humano.34 Formao , para ele, aquele processo intelectual que possibilita a autoelevao do indivduo ao geral por meio do sacrifcio do particular.35 Droysen coloca essa ideia geral de formao para funcionar em conjunto com a ideia de histria e com a prtica da his-toriografia. Ele afirma que

    o propsito da histria no pode ser nem oferecer modelos para a imitao, nem fornecer regras a serem repetidamente aplicadas. [...] O que a histria conduz alma, formando-a, um modelo do essencial, do decisivo, do poderoso; essa fora dos grandes pontos de vista. Com isso, a alma se eleva sobre as pequeninas particularidades, aprende a se sentir grande e a pensar a partir do eu da humanidade.36

    Traduzindo em linhas bem gerais: para Droysen, o pensamento histrico um dos meios da Bildung, da autoformao resultante da internalizao sub-jetiva do estoque cultural acumulado no decurso da histria da humanidade.

    de se ressaltar que, nos quadros do humanismo universalista de Droysen, o pensamento histrico no apenas o fundamento do mtodo cientfico a partir do qual se produz conhecimento acerca do passado humano. Segundo ele, embora o conhecimento histrico seja um bvio produto do pensamento

    33Johann Gustav Droysen, Historik. Vol. 1: Rekonstruktion der ersten vollstndigen Fassung der Vorlesungen (1857); Grundri der Historik in der ersten handschriftlichen (18571858) und in der letzten gedruckten Fassung (1882), editado por Peter Leyh, Stuttgart, Frommann-Holzboog, 1977, p. 106.34Georg Friedrich Hegel, Nrnberger und Heidelberger Schriften: 18081817, Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1986, p. 258.35Rudolf Vierhaus, Bildung, In: Otto Brunner et al. (orgs.), Geschichtliche Grundbegriffe: historisches lexikon zur politisch-sozialen Sprache in Deutschland, vol. 1, Stuttgart, Klett-Cotta, 1979, p. 508-551 (esp. p. 535); Gadamer, Verdade e mtodo. Vol. 1: traos fundamentais de uma hermenutica filosfica, Petrpolis, Vozes, 2008, p. 47-51. 36Johann Gustav Droysen, op. cit., p. 251-252 (traduo do autor).

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    histrico, este ltimo, inversa e dialeticamente, tambm representa a meta final do conhecimento. Isso implica que os historiadores tenham por tarefa no s o pensar historicamente, mas tambm transmitir socialmente a maneira de pensar que caracterstica do seu mtodo geral de trabalho. A transmisso e a difuso do pensamento histrico tornam-se, deste modo, a grande funo educadora da historiografia. Droysen aborda o tema da transmisso e aquisi-o da capacidade de pensar historicamente a partir de um conceito paralelo ao de pensamento histrico, tomado de emprstimo junto a Wilhelm von Humboldt: o de senso de realidade.37 Na definio idealista de Humboldt, senso de realidade figura como a competncia subjetiva elementar da per-cepo histrica. aquilo que permite ao historiador captar cognitivamente a dinmica profunda da realidade histrica e enxergar as foras que atuam por detrs da superfcie dos eventos para lhes dar forma e direo. Segundo Humboldt, os historiadores deveriam no apenas aplicar tal competncia para representar os acontecimentos passados, mas tambm buscar despertar e dar vida ao senso de realidade dos seus destinatrios.38

    Como se v, na definio metodolgica de Humboldt, j esto embutidos caracteres decididamente didticos, que Droysen posteriormente acentua-ria e sistematizaria. Para este, o senso de realidade estaria consolidado nos estudantes (escolares ou no) de histria, uma vez que eles estivessem em condio de aplicar interpretao de seu prprio presente a forma de pen-samento aprendida junto s histrias. No modelo didtico no exemplar pro-jetado por Droysen, as histrias favorecem, antes de tudo, o desenvolvimento de uma capacidade que permite ao sujeito humano perceber a historicidade do seu prprio presente; que lhe faculta, portanto, dimensionar as condies reais que estruturam o seu prprio mundo. A isso se liga a expectativa de que o desenvolvimento da capacidade de pensar historicamente tambm reforaria a capacidade subjetiva de tomar decises prticas e de agir de modo razovel. Na base dessa relao, encontra-se uma multifacetada razo histrica, ou seja, um tipo de racionalidade ao mesmo tempo cognitiva e prtica que os historia-dores no apenas exercitam, mas tambm seriam capazes de transmitir sua audincia. Tal vnculo entre conhecimento e prxis, selado por uma forma de racionalidade comum a ambos, seria mais tarde colocado em primeiro plano por Jrn Rsen no por acaso, o terico da histria em atuao nos dias de hoje que mais fortemente se inspirou no pensamento de Droysen.39

    A vizinhana entre os conceitos de pensamento histrico, senso de realidade e Bildung uma das provas decisivas da distncia entre a did-tica da histria proposta por Droysen e aquela que se encontra embutida

    37Johann Gustav Droysen, Historik. Vol. 1: Rekonstruktion der ersten vollstndigen Fassung der Vorlesungen (1857); Grundri der Historik in der ersten handschriftlichen (18571858) und in der letzten gedruckten Fassung (1882), editado por Peter Leyh, Stuttgart, Frommann-Holzboog, 1977, p. 5; 40.38Wilhelm von Humboldt, Sobre a tarefa do historiador, In: Estevo de Rezende Martins (org.), A histria pensada. Teoria e mtodo na historiografia europeia do sculo XIX, So Paulo, Contexto, 2010, p. 86 (traduo ligeiramente modificada).39Jrn Rsen, Razo histrica. Teoria da histria: os fundamentos da cincia histrica, Braslia, Editora da UnB, 2001, p. 11-15.

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    na teoria exemplar da histria. Na sua exposio referente narrativa didtica, Droysen expressa uma conscincia muito clara de tal distancia-mento. Era, afirma ele, o fundamento da histria falsamente chamada pragmtica o de que, da histria, se deveria aprender como agir, no futuro, em casos similares.40 A expresso histria falsamente chamada pragm-tica remete aqui, claro, ao tipo de historiografia que corresponde teoria exemplar da histria. Na citao mencionada, Droysen nega plausibilidade s histrias concebidas de acordo com o modelo pragmtico-exemplar. A forma de pragmatismo histrico que ele aceitava como vlida no era aquela que conduz elaborao de catlogos supratemporais de aes pretritas imitveis ou evitveis. Pelo contrrio, para ele, todo pragmatismo hist-rico plausvel somente podia surgir do estmulo fornecido pelas histrias autoformao dos seus leitores.

    Droysen clarifica a diferena entre os modos exemplar e formativo de apren-dizagem histrica, remetendo a um campo historiogrfico de suma importn-cia sua poca, a histria militar. Para os oficiais de um exrcito, aponta ele, seria mais do que interessante estudar como os grandes generais do passado se comportaram em determinados casos. Mas o que um oficial do presente pode aprender com a leitura de histrias de guerra no so regras de conduta cuja observncia garantiria o sucesso nos campos de batalha. Das histrias, ele aprenderia, sobretudo, a ganhar uma compreenso para o que foi vivido pelo esprito. Lendo-as, ele faria, assim, uma espcie de exerccio mental.41 Para Droysen, a Bildung, a formao histrica, corresponde exatamente a esse tipo de exerccio mental, ilustrado pelo caso da histria militar. Deve-se notar que o argumento aqui no concerne somente histria militar em particular, mas histria no geral. Assim como os militares leitores, tambm os adep-tos de outras profisses no encontrariam nas histrias indicaes concretas acerca de como deveriam viver suas vidas, ou de que decises deveriam tomar. De acordo com Droysen, o conhecimento que se pode extrair das histrias , com efeito, prtico, mas a sua praticidade no nem exemplar, nem imediata. Antes, pelo contrrio, a leitura de histrias representa, segundo ele, a ocasio de um exerccio mental o qual conduz ao aprendizado de uma capacidade reflexiva: a de pensar historicamente.

    O atual e o inatual

    Nunca demais lembrar que a modalidade de educao histrica teorizada por Droysen o produto de um cenrio poltico e cultural bastante distinto do nosso. Trata-se de um modelo terico que Droysen combinou a uma viso concreta de poltica e de sociedade, cujos contornos eram, mesmo no contexto

    40Johann Gustav Droysen, Historik. Vol. 1: Rekonstruktion der ersten vollstndigen Fassung der Vorlesungen (1857); Grundri der Historik in der ersten handschriftlichen (18571858) und in der letzten gedruckten Fassung (1882), editado por Peter Leyh, Stuttgart, Frommann-Holzboog, 1977, p. 250.41Idem, Ibidem, p. 250-251.

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    da sua prpria poca, abertamente antidemocrticos e no inteiramente libe-rais.42 Especialmente depois que fracassa a tentativa de unificao da Alemanha articulada pela assembleia constituinte estabelecida com a Revoluo de 1848, os textos polticos de Droysen passam a revelar uma reduo do interesse por temas liberais, como os dos direitos fundamentais e das liberdades civis, alm de uma crescente concentrao em problemas da Realpolitik. Na teoria pol-tica que ele desenvolveu em prelees proferidas em 1850, l-se, por exemplo, que a essncia do estado constituir-se em poder, poder para dentro e poder para fora.43 Mais tarde, na sua argumentao em favor do estado forte, Droysen chega at mesmo ao ponto de afirmar que as cincias histricas deveriam ser situadas no mbito da preparao espiritual para a guerra.44

    Tambm no difcil perceber que Droysen tomava o pensamento histrico e o senso de realidade como competncias restritas a uma mera frao da sociedade. De fato, como quase todos os tericos da histria no sculo XIX, ele pressupe que as transformaes verdadeiramente hist-ricas dependem diretamente apenas de alguns indivduos, que denomi-nava artfices da histria. Era exatamente nestes que Droysen queria ver fomentada a capacidade para pensar historicamente.45 A filosofia social aqui implcita admite que, na prtica, a capacidade potencial para a tomada de conscincia histrica se restringe a prncipes, estadistas, altos funcio-nrios da burocracia, comandantes militares e, claro, intelectuais todos do sexo masculino. Alm disso, a preocupao primria de Droysen era a de promover o pensamento histrico de estadistas, burocratas, militares e intelectuais alemes e no necessariamente de outras nacionalidades. E aqui ainda preciso lembrar: ele acreditava que elites polticas aptas para pensar historicamente chegariam automtica e necessariamente concluso que ele obviamente endossava de que a Prssia estava investida da grande misso histrica de promover a unificao dos esta-dos alemes e, com isso, garantir a continuidade do prprio processo his-trico como um todo.46

    Portanto, na teoria, Droysen definiu o pensamento histrico de uma maneira aberta e universalista, mas tal universalismo s vezes se dissipou na prtica, uma vez que ele, dentro das circunstncias concretas de pensamento e atua-o sob as quais vivia, muitas vezes fez opes polticas e historiogrficas de carter particularista.47

    42Robert Henry Handy, J.G. Droysen: the historian and German politics in the nineteenth century, Tese de doutorado, Georgetown University, Washington, D.C., 1966, p. 87-99.43Johann Gustav Droysen, Historik. Vol. 2: Texte im Umkreis der Historik (18261882), editado por Horst Walter Blanke, Stuttgart, Frommann-Holzboog, 2007, p. 322.44Idem, Ibidem, p. 455.45Idem, Historik. Vol. 1: Rekonstruktion der ersten vollstndigen Fassung der Vorlesungen (1857); Grundri der Historik in der ersten handschriftlichen (18571858) und in der letzten gedruckten Fassung (1882), editado por Peter Leyh, Stuttgart, Frommann-Holzboog, 1977, p. 386-388.46Idem, Politische Schriften, editado por Felix Gilbert, Mnchen, R. Oldenbourg, 1933, p. 228-229.47Eu prprio tentei explicar essas dissonncias entre teoria e prtica no pensamento de Droysen. Ver Arthur Alfaix Assis, What is history for?, New York, Berghahn Books, 2014, esp. p. 146-170.

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    Esses descompassos entre a didtica do pensamento histrico desenvol-vida por Droysen e as suas efetivas aplicaes prticas sinalizam para a com-plexa problemtica da atualidade e legado das ideias do autor. No essencial, contudo, eu defendo que a resposta de Droysen questo por que?, isto , por que pesquisar, escrever, ensinar e aprender histria, ainda se sustenta.48 Em primeiro lugar, pela simples razo de que a capacidade de pensar his-toricamente, que Droysen conecta aprendizagem histrica, no se liga a nenhum cnone fixo de contedos. O contedo do nosso pensamento his-trico, os objetos sobre os quais pode atuar a nossa capacidade de historici-zar, no necessariamente precisam ser os mesmos privilegiados por Droysen. Na verdade, o pensamento histrico tal como teorizado por Droysen pode ser tomado como uma competncia puramente formal, aplicvel a qualquer contedo de experincia e conjugvel com diversos conjuntos de normas e valores. Assim, a preferncia de Droysen por enquadrar temas polticos desde um ponto de vista germanocntrico, pr-Prssia, masculino, burgus-ilus-trado e antipopular no implica necessariamente que ns tenhamos de ade-rir a essas mesmas escolhas e perspectivas. Nada impede, por exemplo, que se pense historicamente sobre fenmenos culturais desde uma perspectiva feminista ou marxista; ou sobre temas econmicos desde um ponto de vista conservador, e assim por diante.

    Em segundo lugar, preciso lembrar que, na obra terica de Droysen, vemos j claramente definido um horizonte de ideias bsicas dentro do qual ainda hoje se move parte significativa da reflexo sobre a aprendizagem histrica. Bastante consensual entre os especialistas em educao histrica a opinio de que o objetivo do ensino escolar de histria e da aprendizagem histrica em geral no deve ser o da mera transmisso/aquisio de informaes fatuais. J h algumas dcadas, esse consenso quanto insuficincia de uma concep-o puramente fatualista do ensino de histria tem estimulado a difuso de definies positivas com respeito aos objetivos da aprendizagem histrica.

    48Para um bom balano geral da atualidade da obra de Droysen (alm de indicaes sobre a histria da recepo desta), ver Pedro Spinola Pereira Caldas, A atualidade de Johann Gustav Droysen: uma pequena histria de seu esquecimento e de suas interpretaes, Locus, vol. 12, n. 1, 2006, p. 95-111.

    Defendo que a resposta de Droysen questo por que?, isto , por que pesquisar, escrever, ensinar e

    aprender histria, ainda se sustenta

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    Doisconceitos que resumem boa parte dessas definies so amplamente coincidentes: pensamento histrico e conscincia histrica.49

    Mas tambm importante ter em mente: a linha que vai da didtica da histria de Droysen at ns no direta e as remisses aos seus argumentos nos debates contemporneos so, antes de tudo, escassas. Alm disso, a gene-ralidade de tais conceitos didticos faz com que, muitas vezes, os seus usos e significados concretos variem bastante. O consenso genrico quanto neces-sidade de se estimular o desenvolvimento da conscincia histrica s vezes sobrepe-se cacofonia dos entendimentos colidentes sobre o que concreta-mente seria tal conscincia, mas com certeza no a abafa. Em todo caso, a his-tria das diferentes mediaes que conduziram da justificativa de Droysen para o estudo da histria s reflexes didticas atuais est ainda para ser contada.

    Em terceiro e ltimo lugar, a atualidade das definies didticas de Droysen remete problemtica do legado do historicismo em geral. A definio da fun-o da histria desenvolvida por Droysen parte importante da revoluo espiritual promovida pela afirmao do historicismo na Alemanha entre os sculos XVIII e XIX.50 Estou tomando historicismo aqui num sentido amplo, como o equivalente de uma maneira de explicar o mundo estruturada em torno da crena de que certos fenmenos podem ser bem compreendidos por meio da sua historicizao.51 Pouco se pensa nisso, mas historicizao pos-sui dois significados simultneos. Aponta tanto para um tipo de apreenso das coisas centrado naquilo que as individualiza quanto para a percepo de uma dada ordem de coisas enquanto resultado (provisrio) de um processo mais abrangente iniciado num momento anterior do tempo.52 O historicismo , por-tanto, uma maneira de olhar para o mundo que enfatiza a individualidade e a

    49Ver, por exemplo, Bodo von Borries, Historisch Denken Lernen. Welterschlieung statt Epochenberblick. Geschichte als Unterrichtsfach und Bildungsaufgabe, Opladen, Barbara Budrich, 2008; Ignacio Muoz Delaunoy, La historia y sus funciones, In: Ignacio Muoz Delaunoy; Luis Osandn Millavil (orgs.), La didctica de la historia y la formacin de ciudadanos en el mundo actual, Santiago, Ediciones de la Direccin de Bibliotecas Archivos y Museos, 2013, p. 25-43 (esp. p. 39-40); Karl-Ernst Jeismann, Geschichtsbewutsein Theorie, In: Klaus Bergmann et al. (orgs.), Handbuch der Geschichtsdidaktik, Seelze-Velber, Kallmeyer, 1997, p. 42-45; Hans-Jrgen Pandel, Geschichtsunterricht nach PISA. Kompetenzen, Bildungsstandards und Kerncurricula, Schwalbach am Taunus, Wochenschau, 2007; Pieter van Veuren, Does it make sense to teach history through thinking skills?, Koers, vol. 60, n. 1, 1995, p. 29-39; Sam Wineburg, Historical thinking and other unnatural acts. Charting the future of teaching the past, Philadelphia, Temple University Press, 2001. O mesmo vale tambm para o debate brasileiro sobre o tema. Ver, por exemplo, Oldimar Cardoso, Para uma definio de didtica da Histria, Revista Brasileira de Histria, vol. 28, n. 55, 2008, p. 153-170; Luis Fernando Cerri, Didtica da Histria: uma leitura terica sobre a Histria na prtica, Revista de Histria Regional, vol. 15, n. 2, 2010, p. 264-278; Estevo de Rezende Martins, Histria: conscincia, pensamento, cultura, ensino, Educar em revista, n. 42, 2011, p. 43-58 (esp. p. 52-58); Rafael Saddi, O parafuso da didtica da Histria, Acta Scientiarum Education, vol. 34, n. 2, 2012, p. 211-220.50Friedrich Meinecke, A formao do historicismo consideraes preliminares, In: Jurandir Malerba (org.), Lies de Histria. Da histria cientfica crtica da razo metdica no limiar do sculo XX, Porto Alegre, EdiPUC-RS, 2013, p. 263-272 (esp. p. 263).51No se trata, destarte, de historicismo na acepo popularizada por Karl Popper. Sobre as diferentes acepes do termo, ver Friedrich Jaeger, Historismus, In: Friedrich Jaeger (org.), Enzyklopdie der Neuzeit. Vol. 5, org., Stuttgart, J.B. Metzler, 2007, p. 532-539. Na traduo de Historismus para o portugus, optei por historicismo em vez de historismo, por ser a primeira opo a mais prxima da terminologia mais comumente utilizada entre os autores no alemes que tratam da matria.52Maurice Mandelbaum, History, man, & reason: a study in nineteenth-century thought, Baltimore, The Johns Hopkins Press, 1971, p. 41-43.

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    transitoriedade das coisas.53 A sua premissa fundamental a de que os fen-menos humanos apenas so bem compreendidos quando se coloca o que ou foi sob a perspectiva do seu prprio devir.54

    Contudo, desde o final do sculo XIX, a viso de mundo historicista foi repetidas vezes colocada em xeque. A intensificao de processos, tais como a industrializao da Alemanha, a democratizao, a secularizao e o advento da Primeira Guerra Mundial, teria retirado credibilidade do tipo de fundamen-tao de valores e normas favorecido na era clssica do historicismo.55 Alm disso, a pretenso nutrida pelo historicismo clssico de ser a nica forma leg-tima de abordagem dos assuntos humanos fragilizou-se com a consolidao de abordagens a- ou anti-histricas desenvolvidas no mbito da economia, da lingustica, da psicologia, da sociologia, da antropologia e de outras cincias.56 O descrdito do historicismo atingiu um patamar particularmente elevado quando, nos anos 1960 e 1970, muitos historiadores que pretendiam renovar a cena historiogrfica alem, pelo aporte de conceitos e mtodos das cincias sociais, definiram o seu projeto como uma tentativa de superao do histori-cismo.57 Para piorar, o desconforto inaugurado aps a Segunda Guerra Mundial com categorias desenvolvimentistas, como progresso ou evoluo social, bem como a posterior crtica ps-moderna das metanarrativas, prepararia terreno para que se chegasse at mesmo a falar na dispensabilidade do conceito de histria e da prpria tradio historiogrfica.58

    Tudo isso colide com a noo de pensamento histrico de Droysen e com a didtica histrica a ela vinculada. Mas no creio que isso seja motivo suficiente para atirar ao limbo o legado de Droysen e muito menos do historicismo e da tradio historiogrfica moderna. A maior parte da literatura sobre a crise do historicismo dramatiza em excesso o impacto de tal crise, que parece ter sido realmente traumtica apenas nos quadros da tradio da filologia bblica e da reflexo neokantiana sobre a fundamentao de valores universais.59 Noutras

    53Beiser, The German historicist tradition, Oxford, Oxford University Press, 2011, p. 2-5. 54Johann Gustav Droysen, Historik. Vol. 1: Rekonstruktion der ersten vollstndigen Fassung der Vorlesungen (1857); Grundri der Historik in der ersten handschriftlichen (18571858) und in der letzten gedruckten Fassung (1882), editado por Peter Leyh, Stuttgart, Frommann-Holzboog, 1977, p. 162; Johann Gustav Droysen, Historik. Vol. 2: Texte im Umkreis der Historik (18261882), editado por Horst Walter Blanke, Stuttgart, Frommann-Holzboog, 2007, p. 508.55Herman Paul, A collapse of trust: reconceptualizing the crisis of historicism, Journal of the Philosophy of History, vol. 2, n. 1, 2008, p. 63-82 (esp. p. 73-74).56Reinhart Koselleck, Wozu noch Historie?, In: Wolfgang Hardtwig (org.), ber das Studium der Geschichte, Mnchen, DTV, p. 347-365 (esp. p. 348-351). 57Ren Gertz, O historicismo e a moderna histria social alem, In: Flvia Varella et al. (orgs.), A dinmica do historicismo. Revisitando a historiografia moderna, Belo Horizonte, Argumentum, 2008, p. 149-168 (esp. p. 151 et seq.); Thomas Welskopp, Limites e perspectivas da cincia social histrica, Histria da Historiografia, n. 6, 2011, p. 14-41 (esp. p. 19).58Para uma reavaliao crtica de parte de tais diagnsticos gerais, ver Pietro Rossi, Naufrgio sem espectador: a idia de progresso, So Paulo, Editora da Unesp, 2000, p. 122-132. Para uma crtica radical da historiografia, que procura afirmar com todas as letras ser hoje dispensvel tanto o conceito de histria quanto o conhecimento produzido pelos historiadores acadmicos, ver Keith Jenkins, Why history? Ethics and postmodernity, London, Routledge, 1999, p. 1.59Allan Megill, Why was there a crisis of historicism?, History and Theory, vol. 36, n. 3, 1997, p. 416-429 (esp. p. 419-422); Frank Ankersmit, Meaning, truth, and reference in historical representation, Ithaca, Cornell University Press, 2012, p. 5-7.

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    searas, o impacto da historicizao parece ter sido menos duro, neutro ou at mesmo positivo. Pense-se somente numa abordagem interdisciplinar muito estimada hoje em dia, a histria dos conceitos, abordagem essa que, em larga medida, fruto do processo de historicizao da filosofia iniciado na Alemanha do sculo XIX.60

    De qualquer modo, as muitas crises do historicismo no parecem ter sido fortes o suficiente para invalidar a posio segundo a qual uma maneira pri-vilegiada de entender o mundo humano do passado e do presente enfocar conjuntos de transformaes que produziram certas ordens de coisas singu-larizveis. Tambm no parecem ter conduzido a uma convico irrefutvel de que haveria algo de errado em tentar enriquecer a compreenso do pre-sente com a compreenso do passado e vice-versa. Afinal de contas, quantos historiadores reais parecem estar seriamente dispostos a abrir mo dos pro-cedimentos reunidos no termo historicizao? Como bem observou Srgio da Mata, uma histria radicalmente anti-historicista deixa de ser histria.61

    Como se v, eu particularmente defendo que o historicismo e a sua didtica da histria continuam atuais. O historicismo comps, entre outras coisas, uma descrio geral do que est em jogo na prtica historiogrfica, a qual, na minha opinio, at hoje uma das melhores ofertas disponveis no mercado da teoria da histria. Agora, trata-se de uma descrio composta j h muitas dcadas, com o auxlio de um vocabulrio idealista que h muito deixou de ser satisfa-trio.62 difcil associar o trabalho dos historiadores de hoje investigao de foras ticas, ou do devir das ideias, tarefa da teodiceia, ou a conceitos como esprito, eu da humanidade, esprito nacional, artfices da histria, para ficar apenas com alguns exemplos extrados da obra do prprio Droysen. E mesmo o termo Bildung, com as suas infinitas dificuldades de traduo e as suas intrincadas conotaes msticas, religiosas, psicolgicas e filosficas, tal-vez no seja a melhor aposta da reflexo internacional sobre a aprendizagem histrica. Nada disso interfere, porm, nas premissas centrais do historicismo. Estas podem e devem, como Frank Ankersmit sugeriu recentemente, ser tra-duzidas num vocabulrio mais contemporneo.63 Uma tal traduo que no s interpreta, mas tambm busca atualizar a didtica historicista de Droysen, corresponde a boa parte do que acabei de tentar fazer.

    60Gunter Scholtz, Begriffsgeschichte als historische Philosophie und philosophische Historie, In: Hans Joas; Peter Vogt, Begriffene Geschichte. Beitrge zum Werk Reinhart Kosellecks, Frankfurt am Main, Suhrkamp, 2011, p. 264-287.61Srgio da Mata, Elogio do historicismo, In: Flvia Varella et al. (orgs.), A dinmica do historicismo. Revisitando a historiografia moderna, Belo Horizonte, Argumentum, 2008, p. 49-62 (esp. p. 55).62Ankersmit, Meaning, truth, and reference in historical representation, Ithaca, Cornell University Press, 2012, p. 256.63Idem, Ibidem, p. 1-2.