a determinacao abstrata do eu e o movimento do pensamento

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Captulo IA DETERMINAO ABSTRATA DO EU E O MOVIMENTO DO PENSAMENTO

Cada homem um mundo inteiro de representaes, que esto sepultadas na noite do Eu.

A melhor maneira de explicar-se a liberdade da vontade por uma referncia natureza fsica. que a liberdade uma determinao fundamental da vontade, do mesmo modo como o ser-pesado o dos corpos. Quando se diz que a matria pesada, poder-se-ia crer que esse predicado seja apenas acidental; ele, porm, no o , pois na matria nada sem peso; esta , antes, o prprio ser-pesado. O ser-pesado constitui o corpo e o corpo. O mesmo se passa com a liberdade e com a vontade, pois o [ser] livre a vontade. Vontade sem liberdade uma palavra vazia, assim como a liberdade s efetiva enquanto vontade, enquanto sujeito[footnoteRef:1]. [1: Grifo nosso.]

G. W. F. Hegel Princpios da Filosofia do Direito, 4

Para alm da vida e morte; ou as mortes de um sistema vivo

No mpeto muitas vezes automtico de denunciar a natureza idealista do sistema hegeliano ou as preocupaes teolgico-polticas[footnoteRef:2] que nele permanecem vivas, minimiza-se o carter realista de um pensamento que no admite a ciso[footnoteRef:3] entre a vida do homem e a efetivao de sua liberdade enquanto algo irresistvel: [pois real ou concreta, a ciso entre a vida do homem e a efetivao de sua liberdade aqui qualificada como irresistvel, porque se constitui violentamente como uma certeza.]. Talvez a imediatez desta crtica talvez se deva ao fato de que at a metade do sculo XX, as obras e escritos de Hegel tenham sido estudadas como se apresentassem a mesma fixidez de um ser morto. Bernard Bourgeois nos lembra muito bem que a natureza das mediaes e pontos de transio internos a cada uma das obras do filosofo alemo, bem como a natureza das mediaes e pontos de transio que se apresentam na relao de cada obra particular com todo o resto do sistema, constituem a vitalidade criadora do pensamento.Comment by Rodnei: Mas isso no d razo aos crticos de Hegel. [2: No encaminhamento desse estudo, vamos investigar a natureza espinosana contribui para a autoconstituio do carter imanente do pensamento hegeliano. Tal investigao tem sua importncia para melhor entendermos a natureza e a peculiaridade deste realismo construdo pea a pea por Hegel.] [3: A ciso fonte da necessidade da filosofia e, enquanto cultura de uma poca, o aspecto desprovido de liberdade, ou o aspecto dado da forma (DS, p. 20). Logo adiante, Hegel acrescenta: Superar tais oposies consolidadas, eis aquilo que unicamente interessa Razo (DS, p. 21). Tal interesse da Razo ser mais tarde identificado com o supremo interesse da filosofia, ou seja, a reconciliao entre o Conceito e a Realidade Efetiva (Cf. LFH, III, p. 455).]

Assim,sob a aparncia de um sistema rgido e morto no extremo esquematismo da articulao, na extrema diviso e dissecao do contedo[footnoteRef:4] a filosofia de Hegel, ao contrrio de seus antecessores e coevos, tem como elemento central no uma liberdade formal ou abstrata, mas a liberdade entendida enquanto a existncia total, a que integra nela todas as diferenas. Bourgeois enfatiza a ideia de que, para compreendermos os movimentos peculiares a esse projeto de liberdade concebido por Hegel, devemos no apenas perceber mas entender que, no processo das viravoltas do pensamento, o elemento universal e o elemento particular se apresentam completamente mediatizados um pelo outro. Tal mediatizao constituinte dessa atmosfera peculiar que Hegel chama de elemento do pensamento ou do conceito. [4: BOURGEOIS, Bernard. Enciclopdia e Sistema In. Enciclopdia das cincias filosficas. Vol. I. Trad. Paulo Meneses e Pe. Jos Machado; So Paulo: Loyola, 1995., 381p.]

Nesse passo vlido explicitar o porqu da opo pelo termo constituinte. Vale recordar que Kant denomina constitutivos os conceitos puros do entendimento ou categorias que constituem (fundam, estabelecem) o objeto do conhecimento; a funo das categorias , portanto, a de fazer do dado algo constitudo (disposto, ordenado) em objeto de conhecimento em virtude do que nele estabelecido. Em contrapartida, as ideias so reguladoras; no constituem o mencionado objeto por funcionar no vazio, mas so diretrizes mediante as quais pode prosseguir-se at ao infinito a investigao. As categorias esto situadas entre as intuies e as ideias: as primeiras so necessrias ao conhecimento, porque so sua condio; as segundas no facilitam o conhecimento, porquanto no so leis da realidade, mas permitem que o conhecimento possa apresentar os seus problemas e solucion-los dentro dos limites traados pelo uso regulador. A escolha do termo constituinte retoma, como se sabe, a ideia de atributo na filosofia de Bento Espinosa. Ora, no pensamento de Espinosa, a ideia de Deus a de um ser que se confunde inteiramente com a natureza, quer seja esta criada ou crie-se a si mesma. Segundo o filsofo, Deus existe necessariamente. Cada coisa que existe um modo, uma manifestao de Deus.Natura naturante a prpria substncia, Deus e sua essncia infinita;Natura naturataso os modos e as manifestaes da essncia divina: o Mundo. A natureza naturante, isto , Deus, prolonga-se na matria como modo de manifestao de Deus; este se basta a si mesmo no processo de automanifestao contnua Natureza Criadora. O atributo, sustenta Espinosa, aquilo que o entendimento conhece da substncia como constituinte da sua essncia[footnoteRef:5]. O modo, por sua vez o carter acidental e constitui as diferentes formas em que se manifestam as formas extensas e pensantes como individualidades que devem o seu ser extenso e ao pensamento, isto , aos atributos da substncia. Extenso e pensamento so, pois, atributos e caracteres essenciais da realidade. Para Espinosa, a substncia infinita compreende um nmero infinito de atributos, dos quais o entendimento s conhece os citados. Os modos so, em contrapartida, as limitaes dos atributos, as afeces da substncia. [5: Cf. ESPINOSA, B. tica, Parte I, Prop. VI, Trad. Joaquim Ferreira Gomes, Relgio Dgua Editores, 1992; 100p.]

Insistimos na ideia de que o pensamento de Hegel apresenta um carter realista, pois ao pensar o arco que vai da existncia (Existenz) efetividade (Wirklichkeit), exige a reflexo nas demoradas passagens por todas as estaes, possibilidades que aparecem no processo de desdobramento do real em si mesmo. Assim sendo, no exerccio de apresentar sistematicamente a totalidade do real, o sistema hegeliano no se esquematiza a partir de um processo de particularizao de departamentos justapostos. Ao contrrio, trata-se de um sistema que se constitui a partir de desdobramentos e mediaes que se tornam incontornveis, devido dialtica do jogo recproco de foras, interno cada particularidade. Dito de outra forma, cada objeto apresenta um movimento em si, portanto interno, no qual o objeto passa por um abismamento[footnoteRef:6], ou seja, passa ao seu contrrio e chega ao prprio fundamento. A imanncia de tal dinmica refora a ideia de que o sistema hegeliano ao perfazer-se e apresentar-se como um vir-a-ser, isto , num processo de desdobrar-se-em-leque das figuras[footnoteRef:7], o prprio sistema se apresenta enquanto ser-vivo, ou vida que vem-a-ser; vida que nas palavras do prprio Hegel o todo que se desenvolve, que dissolve seu desenvolvimento e que se conserva simples nesse movimento.[footnoteRef:8] Comment by Rodnei: Mas realista seria a melhor denominao? [6: Cf. ROSENFIELD, D. L. Poltica e liberdade em Hegel. So Paulo: Brasiliense, 1983.] [7: No pargrafo 171, alnea 2, da FE, Hegel indica que a substncia simples da vida o seu fracionamento em figuras, e ao mesmo tempo a dissoluo dessas diferenas subsistentes; e a dissoluo do fracionamento tambm um fracionar ou um articular de membros., e que este movimento o qual Hegel chama de figurao, ocorre tranqilamente abrindo-se-em-leque no meio universal da independncia. ] [8: Esse circuito todo constitui a vida, a qual no o que de incio se enunciou: a continuidade imediata e a solidez de sua essncia; nem a figura subsistente e o Discreto para-si-essente; nem o puro processo deles; nem ainda o simples enfeixamento desses momentos; mas, sim, o todo que se desenvolve, que dissolve seu desenvolvimento e que se conserva simples nesse movimento. Cf. HEGEL. G W F., 171, A verdade da certeza de si mesmo. In. Fenomenologia do esprito vol. I. Trad. Paulo Meneses e Karl-Heinz Efken; Petrpolis, 1992, 122p.]

Ao descrever a dinmica imanente ao conceito, Bourgeois nos apresenta o fundamento da importncia que a realizao do conceito tem no movimento prprio do pensamento hegeliano. S o conceito pode apreender todas as diferenas inclusive as diferenas de seu Outro na identidade delas, por ser o universal que de maneira imanente se desdobra nas particularidades; as quais, negao do universal por ele mesmo, so com isso afirmao do universal nelas. Portanto, as particularidades so negadas pelo universal enquanto nelas se rene consigo mesmo, e deste modo concreto ou sistemtico.[footnoteRef:9] [9: BOURGEOIS, Bernard. Formao do Pensamento Hegeliano In. Enciclopdia das cincias filosficas. Vol. I. Trad. Paulo Meneses e Pe. Jos Machado; So Paulo: Loyola, 1995, 384p.]

Na seqncia do texto, Bourgeois nos coloca diante da envergadura que toma a exigncia hegeliana pela exposio e o desenvolvimento do pensamento na forma sistema. A realizao na filosofia e pela filosofia do projeto de liberdade ou de totalidade devia, assim, constituir essa filosofia numa totalidade de pensamento, num sistema, numa enciclopdia.[footnoteRef:10]Comment by Rodnei: Retira carter poltico de Hegel. [10: Idem. 384p.]

A ideia de liberdade enquanto ponto de partida

Antes de tratarmos da importncia que o movimento do pensamento tem no sistema hegeliano, vejamos melhor do que se trata essa liberdade que Hegel no se limita a postular, vejamos, mais de perto, o carter dessa liberdade para a qual o procedimento que a postula se mostra insuficiente. No segundo captulo de sua Filosofia da Histria[footnoteRef:11], Hegel define a liberdade como substncia do esprito. Em outros termos, ela constitui, de plano, a natureza mais intrnseca do esprito; mais que isso, a liberdade a mediao necessria ao desdobramento de todas as propriedades do esprito. Ora, por que nos deslocarmos at uma obra que, no sistema hegeliano, se localiza no final da fase madura? A hiptese para a qual estamos sinalizando a de que, lido a contrapelo, ou seja, no apenas no sentido de seu arco histrico, o pensamento de Hegel nos permite enxergar, por vezes vislumbrar, movimentos de transio e pontos de passagem que luz do sol no poderiam ser detectados. Ao presente estudo interessa no s o arco sistmico do pensamento de Hegel, mas tambm, e com mais interesse, os movimentos pendulares entre as esferas do esprito objetivo e o esprito subjetivo. Ao acentuar-se tal interesse pelo movimento, o que se busca por em relevo os momentos em que a dimenso da subjetividade atravessada pela objetividade. Sem dar primazia a rodeios de teor especulativo, vamos ao trecho que nos interessa, justamente por retomar o conceito de liberdade no mbito que o encaminha para a sua realizao efetiva. [11: A opo pelo captulo Determinao detalhada deste Princpio. In. Filosofia da Histria, pgs. 23-25; quase autoexplicativa, pois a inteno neste momento partir de uma definio um pouco menos especulativa do que vem a ser a liberdade do esprito.]

Concebemos a matria como pesada, desde que tenda para um ponto central: ela essencialmente composta, existe de forma particular, procura sua unidade e, portanto, procura superar-se a si mesma buscando tambm o seu contrrio. Se ela o alcanasse, no seria mais matria, teria desaparecido; ela tende idealidade, pois, na unidade, ela ideal[footnoteRef:12]. O esprito ao contrrio, exatamente aquilo que contm o ponto central: ele no possui a unidade fora de si, ele a encontrou. Ele em si mesmo e por si mesmo. A matria tem a sua substncia fora de si; o esprito o ser por si mesmo [Bei-sich-selbst-sein]. E isso a liberdade, pois quando sou dependente, ento relaciono-me a um outro que no sou eu; eu no posso existir sem um exterior; eu sou livre quando estou em mim mesmo. Esse estar em mim mesmo [Beisichselbstsein] do esprito a autoconscincia, a conscincia de si mesmo [Selbstbewutsein].[footnoteRef:13] [12: Grifo nosso. Aqui, entendemos ideal como algo que no existe exceto em pensamento ou imaginao.] [13: HEGEL, G W F.Determinao detalhada deste Princpio. In. Filosofia da Histria, 24p.]

Hegel indica, nesta passagem, que a autoconscincia apresenta dois movimentos coincidentes: ao mesmo tempo em que, por um lado, o esprito conhece a si mesmo, portanto realiza o julgamento de sua prpria natureza, por outro, voltar-se para si. Assim o esprito se produz, perfazendo o que ele em si. Parece natural afirmar que o esprito, ou o homem como tal, livre em-si-mesmo; como veremos no desenvolver desse estudo, todavia, a imediatez da qual resulta tal afirmao no apenas ser insuficiente ao seu propsito de garantir a liberdade; no mbito dessa imediatez-resultado, tal afirmao se inscreve num impasse poltico de alcance abismal.Podemos nos perguntar por ora: o que h de problemtico (ambivalente, demonaco) em declarar o homem como imediatamente coconsciente-de-si? Ao tentar uma resposta a esta pergunta, que to incontornvel quanto as fronteiras que a reposio do tema no cessa de deslocar, retomemos o passo da argumentao sobre a liberdade como autoconscincia do esprito. O primeiro aspecto a ser levado em conta o fato de a conscincia se apresentar como uma estrutura dinmica, pois, como foi dito, o esprito, ao mesmo tempo em que conhece a si mesmo, se produz, se constitui. Sabemos que na conscincia estas duas atividades se mostram distintas; ocorre que , sendo o esprito em si mesmo e por si mesmo, ambas as atividades, em certo sentido, coincidem. primeira vista, o fato de que ambas coincidam no esprito parece algo de menor importncia; tal coincidncia, contudo, nos d uma pista valiosa para captarmos a inovao tardia que o pensamento de Hegel trouxe a uma filosofia que j dava traos de sua misria. A expresso misria chega at ns pela via de um hegelianismo de esquerda bem especfico, ou um marxianismo heterodoxo, se que algo do tipo pode ser definido. Esta forma de ler o jovem Hegel apresentada por Georg Lukcs, reverbera na pequena tradio brasileira, sobretudo no pensamento de Paulo Eduardo Arantes. Como podemos ver no trecho em que recuperado um diagnstico do problema ocasionado pela tentativa de forar uma passagem do Antigo Regime aos novos tempos: At a no vai Goethe alis Hegel, como tantos outros intelectuais alemes, no tardar a unir-se a ele na mesma serenidade conformada com a misria do pas para quem nem mesmo lcito dirigir nao alem a censura de que a situao geogrfica a unifica firmemente, enquanto sua situao poltica a despedaa. No obstante, a seguirmos uma observao de Lukcs, Goethe era o primeiro a se dar conta de que no era possvel em solo alemo uma florao de obras nacional-clssicas caso o terreno no fosse previamente preparado por uma liquidao real do Antigo Regime e o consequente desenvolvimento do contedo social da revoluo burguesa.[footnoteRef:14] [14: Cf. ARANTES, , P.E., Uma Reforma Moral Intelectual e Moral. In. Ressentimento da Dialtica: dialtica e experincia intelectual em Hegel: antigos estudos sobre o ABC da misria alem ; So Paulo, Paz e Terra, 1996, 318p.]

Vamos nos contentar, por ora, em dizer que que o movimento da autoconscincia j no se limita reedio da antinomia da razo pura; ao revs, ela contm uma dinmica interna que exige seu desenvolvimento na forma de uma dialtica da liberdade.

A formulao de um problema na ordem dos novos tempos

Aos de sensibilidade aguada, soar familiar a seguinte formulao: a autoconscincia a liberdade em-si mesma do esprito; contudo, vimos que tal autoconscincia realiza o seu conceito mediante dois movimentos concomitantes, a saber, ao mesmo tempo em que o esprito se sabe livre, ele se constitui livre. Insistimos na importncia de tal coincidncia, pois parece cada vez mais claro que o constituir-se livre uma atividade que no se separa da atividade de saber-se livre, apesar da distino clara entre as duas atividades. Isto significa dizer que, para realizar o seu prprio conceito, ou seja, para vir-a-ser o que ela em si mesma, a liberdade precisa percorrer o caminho de sua prpria histria; portanto, a autoconscincia tambm se apresenta como finalidade ltima do esprito no transcurso da prpria histria. Ao mesmo tempo, a liberdade em si mesma, que encerra a infinita necessidade de se tornar consciente pois ela , segundo seu conceito, o conhecimento de si , o fim a que ela tende e a nica finalidade do esprito.[footnoteRef:15]Comment by Rodnei: Por que no recorrer definio lgico conceitual expressa na introduo da Filosofia do Direito. [15: HEGEL, G W F. Determinao detalhada deste Princpio. In. Filosofia da Histria, pg25.]

A liberdade a substancia e a nica finalidade do esprito, entretanto, a autoconscincia por si s no ultrapassa as fronteiras da interioridade do esprito; e como vimos, no basta ao esprito que sua liberdade se constitua apenas como um aspecto da ideia (ideell) de liberdade[footnoteRef:16]; tal liberdade precisa se realizar. Ora, se a liberdade no se realiza na interioridade do esprito, quais so os meios de realizao externos da liberdade? [16: Para Hegel, em contrapartida, ideell distinto de ideal: ideell est ligado a Idee (IDEIA) e no a Ideal, e, das acepes comuns de ideal, est mais prximo de (b). (b) Um aspecto do conceito ideell, porque apenas um aspecto, no o conceito todo, e porque ainda no est realizado: por exemplo, na semente, o sangue apenas ideell. Cf. INWOOD, Michael. Dicionrio Hegel. Traduo de lvaro Cabral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.]

O que em si uma possibilidade, uma capacidade, que de seu interior ainda no atingiu a existncia. Tem que advir um segundo momento para se realizar, e esse momento a atividade, a realizao, cujo princpio a vontade, a prpria atividade humana.[footnoteRef:17] [17: HEGEL, G W F. Os meios da realizao de sua ideia. In. Filosofia da Histria, 27p, Grifo nosso.]

Eis que, agora, temos diante de ns duas figuras: a primeira o esprito, cuja substancia a liberdade, e cujo destino parece traado pela exigncia de efetivar essa liberdade; o segundo a interioridade, um mundo de infinita periferia, cujas fronteiras, ainda desconhecidas, inexploradas, no cartografadas, parecem anunciar que a jornada do esprito poder ser marcada por infortnios. A topografia, bem como as demais propriedades e determinaes deste mundo no nos so dadas de antemo. Tudo que sabemos at agora que o esprito tem um destino a cumprir. Por isto, ocasio, parece oportuno um exerccio digressivo do pensamento: partirmos de uma imagem, fruto do exagero; interrogarmos, em seguida, por quais desvios o "esprito peregrino" haveria de passar at atingir as fronteiras desse mundo interior. Diz-se vulgarmente: a natureza chega sua meta pela via mais curta. Isso exato, porm, a via do esprito mediao, desvio[footnoteRef:18]. [18: HEGEL, G W F. Einleitung in die Geschichte der Philosophie; Hamburgo, F. Meiner, 1966; ed. J. Hoffmeister, 62p.]

Fronteiras de um mundo de descaminhos

Na desventura, em desespero! Miseravelmente errante sobre a terra e finalmente prisioneira![footnoteRef:19] [19: GOETHE, W. Dia Sombrio Campo. In. Fausto: uma tragdia Parte I, Traduo Jenny Klabin Segall; So Paulo, 2004, 491p.]

Na tragdia de Fausto, Goethe escolhe as palavras acima para sugerir que Gretchen j havia empreendido uma tentativa de fuga; aqui, as utilizamos no registro do exagero, para sugerir como a sorte de nosso peregrino ser marcada por infortnios, ora trgicos, ora traumticos. Ao sugerir a repetio de desventuras, estamos propondo, ainda que de maneira inconsentida, uma primeira forma, ou topografia representativa em que esse mundo interior parece circunscrever-se, a saber, a forma de um labirinto. Ora, diante dessa topografia representativa, pergunta-se: seria a simples repetio das desventuras do esprito um fenmeno suficientemente relevante para imaginarmos o mundo interior como a figura mtica do labirinto? A resposta, ainda que parea fruto de mero devaneio, poder tanto elucidar o problema, quanto suscitar novas questes de no rumo da formulao do problema. Quando falamos em repetio, parece natural imaginarmos que todos os elementos que compunham a situao anterior sero repostos em seus devidos termos; contudo, e at porque estamos falando do pensamento de Hegel, no disso que se trata. O esprito tem que sair desse mundo interior para realizar seu destino de ser efetivamente livre; entretanto, esse sair de si ou esse extrusar-se implica uma alterao de quem o prprio esprito era no momento precedente; por isso, esse mundo acaba por configurar portais que nem sempre so sadas, mas sim reentradas em novos nveis dessa interioridade. A cada reentrada, aumenta o grau de intensidades nos quais essa interioridade se v implicada ou pelos quais se v atravessada, as circunstncias e imposies do mundo externo. Ora, no passo em que supera uma dimenso de sua liberdade, em que portanto avana na misso de efetivar a prpria liberdade, o esprito se depara com uma dimenso em que sua no-liberdade intensificada; da vem imagem de um labirinto que impe ao esprito infortnios, ora trgicos, ora traumticos. Contudo, justamente nessa jornada em que o esprito se depara com os mais diversos graus de sua heteronomia, que ele pode proceder reminiscncia (Erinnerung) no s de sua histria original[footnoteRef:20], mas tambm dos elementos da histria universal que configuram, em cada dimenso, os termos de sua liberdade. O que j se est dizendo aqui que, no mundo da interioridade, o esprito ter de fazer a completa experincia de si mesmo antes de tornar-se livre, ou seja, antes se ser sujeito. [20: Cf. HEGEL, G W F.Tipos de Abordagem da Histria e do Princpio Universal da Histria Filosfica. In. Filosofia da Histria, 11p.]

Nesse passo de nosso estudo, aparece pela primeira vez, ainda que de maneira pouco evidente, a hiptese de que possvel determinar uma diferena essencial entre a figura do indivduo e a figura do sujeito. um objetivo central do presente trabalho, averiguar se esta distino de fato apresenta a envergadura que ela parece sugerir. Vimos at aqui que o esprito, cuja substncia a liberdade enquanto autoconscincia, tem de sair do mundo da interioridade para poder efetivar sua liberdade. De plano, temos de insistir que a liberdade por um lado substncia do esprito, por outro a finalidade para a qual ele se destina; contudo, tal finalidade consubstancia a necessidade de sair do mundo interior, pois a liberdade qual o esprito est destinado tem de pousar no solo da realidade efetiva (Wirklichkeit); portanto, a liberdade substncia e exigncia do esprito. Por apresentar a liberdade como sua substncia, o esprito livre desde o incio dessa jornada; ora, sua liberdade ainda se apresenta como algo imediatamente dado; logo, trata-se de uma liberdade meramente formal, e justamente esse carter formal da liberdade que nos interessa abordar desde pronto. Aqui surge uma primeira figurao do esprito peregrino, uma figura que, sobretudo nos novos tempos, apresentar como seu critrio de medida justamente essa liberdade imediata, a saber, o indivduo.Comment by Rodnei: ?

A hiprbole transcendental do indivduo ou o arbitramento moral da liberdade

Como ainda operamos por desvios que visam enlevar os movimentos pendulares que o pensamento de Hegel nos permite observar, partiremos de um ponto de vista geral e assertivo, para depois retomarmos os passos que melhor elucidarem nossa hiptese. Assim, poderemos, com alguma sorte, delinear com mais preciso quais so os elementos constituintes, e no apenas constitutivos do indivduo. Vamos, portanto, a essa ideia que servir como ponto de partida de nossa jornada. A liberdade, fim ltimo do esprito, tem de escapar do labirinto formal no qual parece adentrar desde a publicao da segunda edio da Crtica da Razo Pura de Immanuel Kant, assim que se instaurou no campo transcendental sob a forma de um postulado da razo. Como vimos, ao esprito no basta ser dado como livre, tal liberdade precisa realizar o seu conceito; e tal realizao, se restrita ao mundo interior, agora transfigurado em labirinto, acaba por fragmentar o processo de efetivao da autoconscincia, o que resultaria numa arbitrariedade legalizada, e consequentemente tornar o esprito um dspota cujo embrutecimento e barbrie seriam legalizados pelo rigor analtico operado pelo entendimento. Reunidos esses elementos, podemos expressar nosso ponto de partida na forma de uma questo: ora, se o processo de efetivao da liberdade pode ter como resultado a determinao do esprito como dspota, em que condies ocorrem a determinao desta no-liberdade? E quais as suas implicaes para pensar o fenmeno da arbitrariedade legalizada?Como pudemos ver, nosso ponto de partida consiste numa espcie de diagnstico das consequncias polticas do idealismo transcendental. Tal diagnstico serve, como foi dito, apenas como baliza para a leitura que faremos do processo o qual vamos denominar hiprbole transcendental do individuo. Voltemos ento ao inicio desse processo, retomemos a figura do labirinto a fim de acompanhar em que termos o indivduo fora deslocado da posio de mero espectador da esfera armilar para o posto de eixo da mquina do mundo.Para sair do do labirinto da interioridade, o caminho de volta ao claro mundo[footnoteRef:21] uma rota sinuosa, cheia de armadilhas e cadafalsos, por onde o esprito caminha impetuosamente na misso de cumprir o seu destino; e, como sabemos, sua liberdade demanda pela sada deste labirinto no qual se transforma o mundo interior. Tambm nos razoavelmente claro que um fio de Ariadne capaz de garantir a realizao externa da liberdade no pode ser apenas uma coero de ordem moral ou jurdica. Hegel ento nos lembra que apenas a vontade, e suas prefiguraes, apresentam a fora necessria para concretizar a liberdade. [21: Lembremos que a expresso chiaro mondo comparece na Divina Comdia, Inferno, Canto XXXIV,133.]

Ao primeiro relance, a histria convence-nos de que as aes dos homens derivam de suas necessidades, de suas paixes, de seus interesses, de seu carter e de seus talentos, de tal forma que nesse espetculo de atividade so apenas as necessidades, paixes e interesses que se manifestam como motivos e intervm como a fora principal.[footnoteRef:22] [22: HEGEL, G W F. Os meios da realizao de sua ideia. In. Filosofia da Histria, 26p.]

Eis que, pela primeira vez, a moral comparece no apenas como um elemento constitutivo da interioridade, mas como meio de realizao da liberdade. A ideia de que a realizao da liberdade consiste numa empreitada essencialmente moral aparecer como natural, sobretudo aos modernos. No pretendemos adiantar qualquer espcie de julgamento sobre esta ideia, ao invs disso, tomaremos como bom pretexto para fazer uso de momentos e imagens da primeira obra literria moderna a por em questo justamente a ideia de liberdade por moralidade, a saber, a Divina Comdia de Dante Alighieri. A Comdia , entre outras coisas, um poema didtico enciclopdico, no qual so apresentadas conjuntamente as ordens universais fsico-cosmolgica, tica e histrico-poltica; , tambm, uma obra de arte imitativa da realidade, na qual aparecem todos os campos concebveis da realidade; passado e presente, grandeza sublime e desprezvel vulgaridade, histria e lenda, tragdia e comdia, homem e paisagem; , finalmente, a histria do desenvolvimento e da salvao de um nico homem; Dante, , como tal, uma histria figurativa da salvao da humanidade em geral.[footnoteRef:23] [23: AUERBACH, E. .Farinata e Cavalcante. In. Mimesis: a representao da realidade na literatura ocidental, 164p. ]

De acordo com essa definio da obra, dada por Auerbach, podemos notar que a Divina Comdia nos fornece elementos representativos para tratarmos de alguns impasses morais que o esprito peregrino enfrentar em sua jornada pela efetivao de sua liberdade. Justificativa apresentada, vamos ao assunto. So desnecessrias longas explanaes sobre a fora que as paixes, o egosmo e o instinto exercem sobre os homens; os quais nos tempos de Dante , se consumidos pela absoluta incontinncia, habitariam os primeiros crculos infernais; ao mesmo tempo sabemos que, em toda sua histria propriamente dita, o homem no realizar nada de que ele no possa extrair a satisfao de suas necessidades e carncias, sobretudo na modernidade. Os novos tempos cujas medidas foram, de incio, estetizadas pelo Renascimento, e teorizadas na Reforma; e por fim, declaradas pelas Revolues populares na Frana e na Bretanha, tiveram como princpio a liberdade, ainda que abstrata, do homem particular. Esses dois momentos (Renascimento e Reforma) do arco da histria universal, ao qual Hegel chamou de Tempo Moderno, iniciaram uma emancipao abstrata, que ao atravessar o Reno e chegar Alemanha, fez nascer um mundo de ideias que os alemes chamaram Aufklrung. Com o Esclarecimento o esprito atingiu o grau mais alto de sua liberdade abstrata na forma do pensamento; nada parecia mais importante que a liberdade do pensamento em relao a si e s coisas do mundo. Ao presente estudo no objetivo nem pretenso tratar da Aufklrung em todos os seus meandros transcendentais; mais interessante nesse momento tratarmos dos aspectos relativos prtica, portanto, esfera da vontade. Podemos dizer com certa segurana que a liberdade enquanto autonomia da vontade o fundamento daquilo que Kant nos apresentou como imperativos prticos[footnoteRef:24], em seus opsculos, Resposta pergunta: Que o Esclarecimento (Aufklrung)?, de 1784; e Que significa orientar-se no pensamento?, de 1786. Nestes textos, um primeiro conceito a ser levado em conta o de orientar-se no pensamento em geral, isto , de modo terico, ou seja, orientar-se na sua forma mais ampliada: [24: Cf. KANT, I. . Que significa orientar-se no pensamento? Trad. A. Mouro; Coleo: Textos Clssicos de Filosofia. In. www.lusosofia.net, Lisboa.]

Orientar-se no pensamento em geral significa, pois, em virtude da insuficincia dos princpios objetivos da razo, determinar-se no assentimento segundo um princpio subjetivo[footnoteRef:25] da mesma razo.[footnoteRef:26] [25: O princpio subjetivo ao qual se refere Kant o sentimento da necessidade (Bedrfnis) da prpria razo. Kant explica que possvel resguardar-se de todos os erros, se no nos aventurarmos a julgar, quando no se sabe o que exigido para um juzo determinado [...] se uma necessidade real e, de fato, em si mesma inerente razo tomar necessrio o juzo, [...] torna-se necessria uma mxima segundo a qual proferimos o nosso juzo; porque a razo quer ser pacificada. Cf. KANT, I., Que significa orientar-se no pensamento?,Trad. A. Mouro; Coleo: Textos Clssicos de Filosofia. In. www.lusosofia.net, Lisboa. 7p. ] [26: KANT, I. Que significa orientar-se no pensamento?, nota 2, Trad. A. Mouro; Coleo: Textos Clssicos de Filosofia. In. www.lusosofia.net, Lisboa. 6p.]

Sendo a autonomia, ou a independncia, um elemento essencial da liberdade, ainda que abstrata, alcanada pelo esprito na forma do pensamento, nada mais prprio do ser autnomo que a necessidade[footnoteRef:27] de orientar-se apenas e to somente em si mesmo; mais ainda, sem tal capacidade de auto-orientar-se, seria inacessvel ao esprito pensar por si prprio. [27: Propositalmente consideramos a auto-orientao como uma necessidade e no apenas um dever do esprito.]

Pensar por si mesmo significa procurar em si prprio (isto , na sua prpria razo) a suprema pedra de toque da verdade; e a mxima de pensar sempre por si mesmo a Ilustrao[footnoteRef:28] (Aufklrung). No lhe incumbem tantas coisas como imaginam os que situam a ilustrao nos conhecimentos; pois ela antes um princpio negativo no uso da sua faculdade de conhecer e, muitas vezes, quem dispe de uma riqueza excessiva de conhecimentos muito menos esclarecido no uso dos mesmos.[footnoteRef:29] [28: Nesta verso portuguesa o tradutor optou por Ilustrao; contudo preferimos utilizar Esclarecimento pois se aproxima mais do sentido original no alemo.] [29: KANT, I. Que significa orientar-se no pensamento?, nota 7, Trad. A. Mouro; Coleo: Textos Clssicos de Filosofia. In. www.lusosofia.net, Lisboa. 18p.]

Da reforma da alma ao renascimento da vontade

Dizei, mesmo da, que quereis vs?[footnoteRef:30] [30: ALIGHIERI, D., Purgatrio, Canto IX,85.]

Pergunta tanto indigesta, quanto indispensvel aos modernos. Se antes era o Anjo na antecmara do Purgatrio; agora na antecmara do mundo que o Porteiro da Lei[footnoteRef:31] pergunta ao esprito peregrino. O poeta ,como se sabe, recebera 7 grilhes, ou pecados, dos quais deveria libertar-se; j o esprito no partilha da mesma fortuna, pois sua emancipao no depende mais da remisso de seus pecados; este mundo parece no estar mais disponvel. O esclarecimento, como sabemos, tem como primeiro postulado prtico a autonomia da razo, ou o livre pensamento; o princpio de tal postulado j se encontrava na Reforma, cuja bandeira foi a do esprito subjetivo livre, ou seja, um esprito autodeterminado a ser livre. [31: Aqui, assim como a imagem dantesca do Anjo do Purgatrio aparece como ponto inicial, a imagem kafkafiana do porteiro da lei aparece como o ponto ocidental do arco moderno da heteronomia. A referncia, assim como a relao entre as imagens que compem as extremidades do arco, justifica-se pelo fato de que ambas as personagens designado um papel estruturalmente semelhante, a saber, ambos dado o papel de estabelecer as condies em que a autonomia do heri pode se realizar naquele determinado espao fsico-moral.]

20) Onde est o sbio? Onde est o escriba? Onde est o inquiridor deste sculo? Porventura no tornou Deus louca a sabedoria deste mundo? 21) Visto como na sabedoria de Deus o mundo no conheceu a Deus pela sua sabedoria, aprouve a Deus salvar os crentes pela loucura da pregao. 22) Porque os judeus pedem sinal, e os gregos buscam sabedoria; 23) Mas ns pregamos a Cristo crucificado, que escndalo para os judeus, e loucura para os gregos.[footnoteRef:32] [32: Primeira Epstola de Paulo aos Corntios 1:20-23]

Eis que a Reforma de Lutero peculiarmente agostiniana no que diz respeito total dependncia do homem da graa e predestinao de Deus tratou de libertar o homem de qualquer intermediao entre ele e Deus; o que pode ser pedra de toque de todo o cristianismo germnico. Disto nos surge a seguinte questo: em que termos tal emancipao ganhou propores transcendentais na Alemanha? Se no mundo grego o princpio central do esprito era conhece-te; foi s com no cristianismo que tal princpio expandiu-se at as fronteiras da interioridade, realizada[footnoteRef:33] como personalidade individual, como eu.Comment by Rodnei: Erro [33: Abstratamente realizada.]

Como esse eu, sou para mim infinito; a minha existncia minha propriedade e minha valorizao como pessoa. Essa interioridade no vai mais alm; todo outro contedo desaparece aqui. Com isso, todos os indivduos transformam-se em tomos; ao mesmo tempo, contudo, eles so subordinados ao domnio rduo de um, o qual, como monas monadum, o poder sobre as pessoas privadas.[footnoteRef:34] [34: HEGEL, G W F. O Cristianismo. In. Filosofia da Histria, 272p.]

O indivduo, ou esse homem insular, o segundo momento de um microcosmo[footnoteRef:35] o qual Hegel chama de alma[footnoteRef:36]. Na Enciclopdia das cincias filosficas, a alma o esprito subjetivo enquanto em si ou imediato, ou o esprito-da-natureza; contudo, ainda no apresenta conscincia de sua natureza ideal; ela , entretanto, idealidade ou negatividade de todas as espcies de sensaes que nela parecem ser indiferentes umas s outras. A alma mesma uma idealidade ou totalidade de determinidades distintas infinitamente mltiplas, que nela se renem em algo nico. Porm as sensaes no desaparecem completamente no interior dessa totalidade da alma, mas permanecem enquanto suprassumidas como um contedo possvel. A alma mantm as sensaes se no para si, ao menos, em si mesma. [35: HEGEL, G W F. 391, Adendo. In. Enciclopdia das cincias filosficas. Vol. III. Trad. Paulo Meneses e Pe. Jos Machado; 50p.] [36: Aqui tratamos alma (Seele) como o princpio pertinente a qualquer coisa viva. Contudo, diferentemente de seu correspondente grego psuch, no abrange todas as atividades psquicas, apenas aquelas que o homem compartilha com os animais: qualidades e alteraes corporais, sensao, sentimento e hbito. Cf. 388-412, da Enciclopdia das cincias filosficas. Vol. III. Trad. Paulo Meneses e Pe. Jos Machado.]

Sucede que Hegel afirma que a alma tambm , enquanto individualidade efetiva, em si, um mundo de contedo concreto dotado de periferia infinita[footnoteRef:37]; de modo que a alma, em razo da riqueza infinita de seu contedo, pode ser designada como alma de um mundo, como alma do mundo determinada individualmente, sendo este mundo algo no exterior alma. Assim, segundo Hegel, sem tal mundo individual a alma no teria efetividade: em geral, no alcanaria uma singularidade determinadamente distinta. [37: HEGEL, G W F. 402. . In. Enciclopdia das cincias filosficas. Vol. III. Trad. Paulo Meneses e Pe. Jos Machado; 111p.]

S quando a alma ps negativamente o contedo variado, imediato, de seu mundo individual, [e] fez dele algo simples abstratamente universal: quando assim algo totalmente universal para a universalidade da alma, e esta, justamente por isso, se desenvolveu a [ponto de ser] o Eu essente para si mesmo, objetivo para si mesmo, esse perfeitamente universal que a si se refere: um desenvolvimento que ainda falta alma como tal; s depois da obteno dessa meta a alma chega de seu sentimento subjetivo conscincia verdadeiramente objetiva, porque s o Eu essente para si, libertado primeiro, ao menos abstratamente, do material imediato, deixa tambm ao material a liberdade da subsistncia fora do Eu.[footnoteRef:38] [38: Idem. In. Enciclopdia das cincias filosficas. Vol. III. Trad. Paulo Meneses e Pe. Jos Machado; 112p.]

A meta qual remete o trecho supracitado a luta pela libertao que a alma deve levar a cabo contra a imediatez de seu contedo substancial, para fazer-se a subjetividade simples, que existe no Eu, [e] que se refere a si mesma. Eis que finalmente nossa figura poltica entra em cena; o indivduo (das Individuum)[footnoteRef:39], ou este Eu universal; e como indivduo que o esprito inicia sua jornada para a efetivao de sua autoconscincia, ou seja, a jornada para tornar-se o que em si e para si mesmo. Isto tambm quer dizer que o indivduo, ou este eu, ainda no esprito, pois sua conscincia limita-se simples identidade de si mesmo. [39: Aqui o termo indivduo no est no sentido de pessoa, se assim fosse, a expresso utilizada seria der Einzelne. Como tambm estamos tratando do indivduo do mundo histrico, a expresso utilizada por Hegel das Individuum.]

Quando digo Eu, ento eu me viso como esta pessoa singular inteiramente determinada. Entretanto, de fato, assim nada de particular enuncio sobre mim. Eu, cada um dos outros tambm o , e, quando me designo com Eu, na verdade eu viso a mim este singular e contudo exprimo, ao mesmo tempo, algo perfeitamente universal. [O] Eu o puro ser-para-si, em que todo a particularidade est negada e suprassumida; esse [ser] ltimo, simples e puro para a conscincia. Podemos dizer que o Eu e o pensar so os mesmos; ou, mais precisamente, que o Eu o pensar enquanto [ser] pensante. [O] Eu esse vazio, o receptculo para tudo e para cada um, [...]Cada homem um mundo inteiro de representaes, que esto sepultadas na noite do Eu.[footnoteRef:40] [40: HEGEL, G W F. 24, Adendo. In. Enciclopdia das cincias filosficas. Vol. I. Trad. Paulo Meneses e Pe. Jos Machado; 79p.]

A declarao de uma conscincia-de-si racional por si mesma

Num solo hostil, crestado e cheio de aspereza[footnoteRef:41] [41: BAUDELAIRE, C. A Beatriz. In. As Flores do Mal. Trad. E notas de Ivan Junqueira.; 405p.]

Nesse passo de nosso estudo, podemos identificar que as figuras com as quais iniciamos esse exerccio, a saber, a figura do esprito peregrino, e a figura do labirinto da interioridade, retornam agora fundidas em seu estatuto moderno. Isto porque, ao mesmo passo em que o pensar enquanto ser pensante; o indivduo um mundo inteiro, o qual tomou a forma de um labirinto que no cessa de alterar-se. Ademais, podemos afirmar com certa tranquilidade, que o pensar no se constitui como um acaso da natureza; pelo contrrio, e sobretudo na modernidade, o pensar se constitui como fora, esta fora ganha ainda mais intensidade a partir da arquitetnica do entendimento erigida pela filosofia kantiana. No pretendemos realizar uma exposio exaustiva desta arquitetnica, contudo, nos momentos de maior pertinncia retomaremos alguns de seus elementos estruturais a fim de elucidar o encaminhamento da crtica mesma. Por enquanto, o elemento estrutural que nos interessa que ps Kant a relao entre o agir e o pensar necessariamente uma relao moral. Assim, o indivduo autoimpelido a pensar; contudo, no sendo efetivamente consciente de si, este pensar acaba por se mover de modo automtico. Assim, o individuo moderno emerge como um autmato, esta figura que a todo tempo lhe pareceu ser sempre outro.Comment by Rodnei: explicar

s um, com o gnio que em ti sondas; Mas no comigo![footnoteRef:42] [42: GOETHE, W. Noite. In. Fausto: uma tragdia Parte I, Traduo Jenny Klabin Segall; So Paulo, 2004, 73p.]

A resposta do Esprito da Terra a Fausto parece nos dar o tom deste trauma que agora aparece como imanente ao homem moderno, pois vida secular no lhe permite valer-se dos critrios de medida (Matab) divinos. Se para os medievos sua no liberdade se instaurava com a herana de Ado; para os modernos, deslocados para o centro do cosmos, parece no haver grilho mais forte que a prpria automao trao substancial das incontinncias da modernidade em pensar, julgar, agir. O que parece estar desdobrando-se diante de ns a ideia de que o pensar no mais algo a ser conquistado, alis, como veremos mais adiante, Kant j define o pensar acompanhado do eu como a faculdade que eleva o homem perante todos os outros animais; o que o idealismo transcendental traz baila como objeto central o como pensar, ou mais precisamente, o pensar por si mesmo.Ao indivduo transcendental, a moralidade se coloca como meio sem o qual a liberdade no realiza a passagem do pensar ao, e justamente nesta sala de mquinas do entendimento que o indivduo negativa ,sem perceber, a possibilidade de efetivar a sua liberdade. Dissemos a certa altura de nosso estudo, que as fronteiras e propriedades topogrficas deste mundo interior so constantemente alteradas no s pela ao do esprito peregrino, mas tambm pelas circunstncias da objetividade externa que atravessam este mundo. Pois agora fica mais claro, e menos gratuito, dizermos que tais alteraes tm como origem principal o exerccio do juzo individual. O juzo individual apresenta implicaes esttico-polticas que, per si, constituem o objeto de um exerccio de exposio inesgotvel, o que de certo no objetivo, nem ambio nossa; ao nosso estudo, interessa mais do que qualquer outro elemento constitutivo do juzo individual, a imediatez, ou mais precisamente, uma instncia da imediatez apresentada sobretudo nos sculos XVIII e XIX, a saber, o preconceito. Hegel identifica que o preconceito no mais se configurava como um mero juzo carente de exame prvio, tampouco enquanto hbito de precipitar-se na generalizao do objeto, mediante a proposio de tipos puros. De fato, o preconceito constitui-se sob o signo de uma doena do nosso tempo (die Krankheit unserer Zeit)[footnoteRef:43], contudo, com a amplitude que a exigncia de um agir moral tomou sobretudo aps a edificao da filosofia prtica de Kant o que poderia caracterizar apenas um atrofiamento da crtica, acabou engendrando o que Hegel mais tarde diagnosticou como hipocondria absoluta do esprito. [43: HEGEL, G W F. 22, Adendo. In. Enciclopdia das cincias filosficas. Vol. I. Trad. Paulo Meneses e Pe. Jos Machado; 76p.]

Pode-se chamar a isso a hipocondria absoluta do esprito (die absolute Hypochondrie des Geistes), que s v a si mesma e suprime todos os vnculos e relaes de amizade, e na qual o sujeito sente dio para com as relaes objetivas e o dever, porque nisso ele teme perder-se. O que bom depende da determinao do sujeito; o sujeito engana a sua prpria conscincia moral quando toma tudo o que faz [como] conforme conscincia moral, seja isto efetivo ou no.[footnoteRef:44] [44: HEGE, G W F., Lineamentos da Filosofia do Direito (Heidelberg, 1817-1818, precisamente no 67; no porm em Berlim, nos respectivos 139 e 140 dos anos letivos que vo de 1819 a 1825). Cf. Gense des Grundlinien der Philosophie des Rechts: traduction et commentaire de la premire leon de Hegel sur la philosophie du droit, Heidelberg 1817-1818 (Manuscrit Wannenmann); tese de doutorado de Jean-Philippe Deranty, Universit de Paris-Sorbonne, maro de 1998; traduo, tomo 1, 85p.]

Estamos a um passo de dizer que a maioridade espiritual, concedida por Kant ao indivduo que realizou seu percurso como Aufklrer, no lugar de resolver o atrofiamento da crtica, o leva ao limite de nem ser mais sentido. Disso nos surge a questo: em que termos a filosofia prtica kantiana se mostra insuficiente para resolver o problema da no liberdade do esprito? Para alm disso, em que medida tais insuficincias contriburam para a intensificao da heteronomia? Comment by Rodnei: suficiente essa contraposio a Kant?

A trama do eu ou como se chegou ao que na verdade no se ...

Do percurso do Esclarecido essncia do Esclarecimento, agora se torna mais claro o contedo do primeiro postulado prtico o qual Kant estabelece como a essncia da Aufklrung: no basta ao indivduo pensar, ele tem de pensar por si; tem de orientar-se no prprio pensamento. Contudo, o segundo postulado surge no apenas como um complicador para a efetivao do imperativo prtico de pensar livremente, mas tambm nos permitir mais adiante vislumbrar a envergadura de uma tenso moderna da liberdade.

Mas tambm s aquele que, j esclarecido, no receia as sombras e que, ao mesmo tempo, dispe de um exrcito bem disciplinado e numeroso para garantir a ordem pblica pode dizer o que a um Estado livre no permitido ousar: raciocinai tanto quanto quiserdes e sobre o que quiserdes; mas obedecei! Revela-se aqui um estranho e no esperado curso das coisas humanas; como, alis, quando ele se considera em conjunto, quase tudo nele paradoxal. Um grau maior da liberdade civil afigura-se vantajosa para a liberdade do esprito do povo e, no entanto, estabelece-lhe limites intransponveis; um grau menor cria-lhe, pelo contrrio, o espao para ela se alargar segundo toda a sua capacidade.[footnoteRef:45] [45: KANT, Immanuel, Resposta pergunta: que o esclarecimento? Trad. Floriano de Sousa Fernandes. In Textos Seletos; Petrpolis: Vozes, 1985 .]

Pensai; mas obedecei! Eis a frmula em que os dois postulados prticos esto relacionados. Para Kant o indivduo deve atender a esses dois imperativos para que sua liberdade objetiva seja garantida. Ocorre que, no mesmo ano em que escreveu o opsculo Resposta pergunta: Que o Esclarecimento (Aufklrung)?, Kant escreve Ideia de uma histria universal de um ponto de vista cosmopolita, texto de carter programtico no qual o autor acaba por desvelar uma circunstncia objetiva que acabar pondo em xeque a efetivao de da liberdade. Na quarta proposio do referido texto, Kant aborda enquanto antagonismo a insocivel sociabilidade dos homens, ou seja: a tendncia do homem a entrar em sociedade, pois se sente mais como um homem num tal estado em que pode desenvolver suas disposies naturais; mas este homem tambm tende ao isolamento, pois encontra em si uma qualidade insocivel que o impulsiona a querer conduzir tudo em proveito prprio, o que o leva a esperar que os demais membros da sociedade se oponham da mesma forma que ele far oposio ao querer egosta dos demais cidados. Note-se que essa situao hipottica configura os termos da concepo liberal da Liberdade[footnoteRef:46]. Segundo Kant, esta oposio que leva o indivduo a superar sua tendncia preguia, na medida em que movido pela busca de projeo (Ehrsucht), pela nsia de dominao (Herrschsucht) ou pela cobia (Habsucht); assim, o indivduo tem de proporcionar-se uma posio entre companheiros que ele no atura, mas dos quais no pode prescindir. Para Kant, a disposio natural do homem cobia, projeo, ou mesmo busca pelo poder, consistem em patologias caractersticas de uma sociedade constituda a partir de um acordo que, em termos kantianos, extorquido patologicamente. [46: Cf. TERRA, Ricardo R., Especificidade do Direito. In: A poltica tensa; So Paulo: Iluminuras, 1995, 77p.]

Mesmo ressaltando o carter patolgico das disposies insociveis do homem, Kant lana luz sobre o fato de que tais patologias so propulsoras do comportamento humano; sem elas, com efeito, o homem permaneceria eternamente num estado de menoridade:

Agradeamos, pois, natureza a intratabilidade, a vaidade que produz a inveja competitiva, pelo sempre insatisfeito de ter e tambm de dominar! Sem eles todas as excelentes disposies naturais da humanidade permaneceriam sem desenvolvimento num sono eterno. O homem quer a concrdia, mas a natureza sabe mais o que melhor para a espcie: ela quer a discrdia.[footnoteRef:47] [47: KANT, I. Quarta Proposio In. Ideia de uma Histria Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita, 9p.]

Pudemos ver que Kant constata que a intratabilidade gerada pela disposio natural do homem a comportamentos egostas como a cobia, acaba por impulsion-los a abandonarem o estado de contentamento ocioso e de vida amestrada no qual permaneceriam eternamente, no fosse sua insocivel sociabilidade. Note-se que a disposio natural do homem a no se submeter a normas que no sejam fruto de sua prpria vontade, constitui uma situao hipottica que configura os termos da concepo democrtica da Liberdade.[footnoteRef:48] Eis a tenso poltica que constitui um impasse tico para a realizao da liberdade nos tempos modernos. Kant no se autoriza a avanar na anlise deste impasse, caso o fizesse, sua filosofia teria de lanar mo de uma lgica especulativa perante a qual ele foi forado a deter-se no limiar. [48: Cf. TERRA, Ricardo R., Especificidade do Direito. In: A poltica tensa; So Paulo: Iluminuras, 1995, 77p.]

Um ponto de inflexo na Alemanha, ou o manifesto pelo renascimento esttico-poltico do esprito

Chegamos, agora, ao ponto do maior interesse para o desenvolvimento deste trabalho: em 1797 um manifesto - manuscrito por Hegel, cuja atribuio de autoria, no entanto, controversa e provavelmente irrelevante: o prprio Hegel, ou Schelling, ou Hlderlin; ou ainda, autoria coletiva tinha como um de seus contedos a crtica mais aguda filosofia kantiana. O Systemprogramm o mais antigo programa sistemtico do idealismo alemo nome que o texto recebeu em 1907 ao ser descoberto e publicado por Franz Rosenzweig ao ser traduzido no Brasil por Rubens Rodrigues Torres Filho foi por este classificado como a certido de nascimento do idealismo alemo; contudo, este manifesto tambm chamado de fragmento de sistema, pois nada se sabe sobre o contedo de suas primeiras linhas. As pginas que chegaram at ns nos apresentam o final de uma frase, porm, justamente o que nos d o tom poltico no qual esse texto ser aqui lido.

[...] uma tica. Como a metafsica inteira no futuro desemboca na moral (Kant com seus dois postulados prticos deu apenas um exemplo disso, no esgotou nada), essa tica no ser outra seno um sistema completo de todas as Ideias ou, o que o mesmo, de todos os postulados prticos. A primeira Ideia naturalmente a representao de mim mesmo como um ser absolutamente livre. Com o ser livre, consciente de si, surge ao mesmo tempo um mundo inteiro do nada , a nica verdadeira e cogitvel criao a partir do nada.[footnoteRef:49] [49: SCHELLING, F W J. O Programa Sistemtico, In. Obras escolhidas/Friedrich von Schelling. Traduo Rubens Rodrigues Torres Filho. So Paulo, Nova Cultural, 1989. 3 ed.]

Tivemos de percorrer todo esse caminho sombrio da ideia de Liberdade hiprbole do individuo promovida pelo idealismo transcendental para que as imagens contidas nesse primeiro trecho do manifesto do idealismo alemo no fossem ainda mais ilegveis. Mais adiante, com a ajuda de Paulo Eduardo Arantes, veremos como Hegel na ocasio um jovem filsofo e preceptor alemo, observador atento e apaixonado, porm distante, dos lances mais eloqentes da Revoluo Francesa e as ideias de renovao democrtica da Itlia defendidas por um ex-ministro em meados do sculo passado[footnoteRef:50] observava o abismo da misria alem. [50: Cf. ARANTES, P.E., Ressentimento da Dialtica: dialtica e experincia intelectual em Hegel: antigos estudos sobre o ABC da misria alem ; So Paulo, Paz e Terra, 1996.]

Das imagens contidas nesse primeiro momento do programa sistemtico, sem dvida a que se apresenta com maior densidade a representao do indivduo como absolutamente livre. Podemos ver na sequncia do pargrafo que essa representao tem, como elemento prprio, a criao de um mundo inteiro a partir do nada, no qual o indivduo dado como imediatamente consciente-de-si. Cabe ao indivduo dar forma e contedo a esse mundo, todavia, sabemos que na verdade este mundo pode ser entendido como uma expanso, ou exteriorizao da interioridade, o que significa que este mundo se constituir enquanto representao.

A inteligncia ativa nessa posse a imaginao reprodutora, o surgir das imagens para fora da interioridade prpria do Eu, que agora a potncia [dominadora] delas. A relao primeira das imagens a que seu tempo-e-espao exterior imediato conservado tem com elas. Mas a imagem, no sujeito em que conservada, tem somente a individualidade na qual as determinaes do seu contedo esto entrelaadas; ao contrrio, sua concreo imediata, isto , inicialmente s espacial e temporal, que tem como Uno no intuir , ao contrrio, dissolvida. O contedo reproduzido, enquanto pertencente unidade idntica consigo da inteligncia, e posto para fora de seu poo universal, tem uma representao universal, que serve de relao associativa das imagens, de representaes que segundo as vrias circunstncias so mais abstratas ou mais concretas.[footnoteRef:51] [51: HEGEL, G W F. A imaginao, 455, 1. In. Enciclopdia das cincias filosficas. Vol. III. Trad. Paulo Meneses e Pe. Jos Machado; 240p. ]

Vamos nos deter um pouco mais nos termos chave do trecho citado; a imaginao reprodutora, definida por Hegel como o segundo grau de desenvolvimento da representao, se constitui como uma Vorstellung stricto sensu. Tomamos a imaginao como ponto de partida para entender a atividade representativa do mundo externo desenvolvida pelo indivduo, por uma srie de motivos que se apresentaro no decorrer de todo este estudo; contudo, o primeiro motivo para partirmos da imaginao o prprio Hegel que nos d ao diferenci-la da rememorao, justamente por esta no ser esse [agir] auto-ativo, mas precisa de uma intuio presente e faz surgir, de maneira no arbitrria, as imagens[footnoteRef:52]. O elemento vontade central para entendermos os termos em que o individuo conceber os elementos que vo compor este mundo vazio que ele ter de determinar; por isso a imaginao o que mais nos interessa agora. Vejamos ento por meio de que mecanismos este segundo grau de desenvolvimento da representao realiza a passagem para a determinidade, e assim dissipa a escurido noturna que envolvia o tesouro de suas imagens, e a afugenta pela luminosa clareza da presena[footnoteRef:53]. [52: Ibid. A imaginao, 455, Adendo. In. Enciclopdia das cincias filosficas. Vol. III. Trad. Paulo Meneses e Pe. Jos Machado; 242p.] [53: Ibid. A imaginao, 455, Adendo. In. Enciclopdia das cincias filosficas. Vol. III. Trad. Paulo Meneses e Pe. Jos Machado; 241p.]

Hegel nos explica que a imaginao tem, em si mesma, trs formas em que se desdobra. Vejamos como se operam esses desdobramentos:

[1] Em primeiro lugar, [...], ela no faz outra coisa alm de determinar as imagens a entrarem no ser-a. assim a imaginao apenas reprodutora. Essa tem o carter de uma atividade puramente formal.[footnoteRef:54] [54: Idem.]

[2] Em segundo lugar, porm, a imaginao no simplesmente evoca de novo as imagens nela presentes, mas as relaciona umas com as outras, e dessa maneira as eleva a representaes universais. Desse ponto de vista, a imaginao aparece, pois, como a atividade do associar das imagens.[footnoteRef:55] [55: Idid.]

[3] O terceiro grau nessa esfera aquele em que a inteligncia pe suas representaes universais [como] idnticas com o particular da imagem, dando-lhes assim um ser-a imaginrio. Esse ser-a sensvel tem a dupla forma do smbolo e do signo; de modo que esse terceiro grau compreende a fantasia simbolizante e a fantasia significante, [sendo que] esta ltima forma a passagem para a memria.[footnoteRef:56] [56: Idid.]

Podemos ver que a imaginao no se restringe apenas determinao formal das imagens que, relacionadas umas s outras, se tornam representaes universais; e que tais representaes so dotadas de um ser-a imaginrio, tornando-se, portanto, imagens simbolizantes e significantes. Ora, de suma importncia entender que a imaginao a primeira forma do representar, por meio da qual o individuo concebe, julga e age exteriormente. Como nos propomos a uma leitura esttico-poltica do pensamento de Hegel e consequentemente a da crtica que ele realiza filosofia prtica kantiana , ao nosso estudo tal importncia se amplia, pois, mesmo tratando de um aspecto esttico, no deixa de lado o aspecto poltico, portanto real, que parece acompanh-lo a cada passo.Ao retornarmos ao trecho do Systemprogramm, podemos notar uma peculiaridade quanto a essa imagem do individuo, a saber, o autor do manuscrito define o indivduo como a primeira Ideia de um sistema completo de todas as Ideias ou, o que o mesmo, de todos os postulados prticos. Visto que no abrimos mo da dimenso poltica do pensamento de Hegel, podemos dizer que s merece se chamar Ideia, aquelas ideias cuja efetivao se d em todas as esferas da objetividade, portanto mediante uma eticidade (Sittlichkeit). Portanto, o que nos interessa nesse primeiro movimento do Systemprogramm o fato de que o indivduo enquanto aquele que carrega em si o mundo intelectual ao ser constitudo na forma de primeira Ideia, tomada em seu sentido mais enftico, isto , platnico e kantiano acaba por se tornar centro nevrlgico do sistema assumindo a forma de esprito cultivado.

Caberia ao esprito cultivado cujo alimento natural, diga-se de passagem, o Estado de Direito e a liberdade acadmica projetar sobre o mundo a viso implcita na Ideia, tornando-a enfim popular.[footnoteRef:57] [57: ARANTES, , P.E., Uma Reforma Moral Intelectual e Moral. In. Ressentimento da Dialtica: dialtica e experincia intelectual em Hegel: antigos estudos sobre o ABC da misria alem ; So Paulo, Paz e Terra, 1996, 313p.]

Notemos que essa designao de portador da ideia, inscrita no indivduo durante sua formao, nos d o ton desse papel poltico dado primeiramente ao Aufklrer - esse membro da nova intelligentsia europeia e no sculo seguinte, ao intelectual. Paulo Arantes nos lembra que ningum mais do que Fichte desenvolveu o aspecto ativo do Idealismo se levarmos em conta o primado da Razo Prtica e a correlata constituio do objeto[footnoteRef:58]. Lido na chave poltica, podemos dizer que no pensamento de Fichte que a essncia da atividade ideal do Indivduo, a saber, a atividade de supervisionar do alto o progresso efetivo da humanidade e assim conduzir o destino da grande massa dos no-ilustrados, torna-se explcita e categrica no momento em que suprime-se a mediao entre o entendimento e a moralidade, proclamando o Aufklrer lcido arquiteto do mundo[footnoteRef:59]. [58: Idem.] [59: A certeza de que o intelectual o profeta dos tempos modernos ganha afinal uma formulao definitiva em 1813: Fichte chega a estabelecer a existncia de duas categorias sociais fundamentais, o povo e os tericos. Para o primeiro existe somente aquilo que funda imediatamente a ao; aos ltimos compete a viso prospectiva: so livres artistas do futuro e de sua histria, lcidos arquitetos do mundo, a partir do primeiro, tomado como matria sem conscincia. Cf. ARANTES, , P.E., Uma Reforma Moral Intelectual e Moral. In. Ressentimento da Dialtica: dialtica e experincia intelectual em Hegel: antigos estudos sobre o ABC da misria alem ; So Paulo, Paz e Terra, 1996, 313p. ]

Da Lucidez ao Desespero, ou o movimento constitutivo do EntendimentoComment by Rodnei: No est claro para mim como este trecho se conecta aos demais.

Dissemos no inicio desta investigao que o carter realista do pensamento hegeliano passa desapercebido aos olhos dos leitores, crticos ou conservadores, que no levam em conta o movimento do pensamento; portanto, as suas mediaes. Se interrompssemos nossa investigao na concluso a que chegou Bourgeois, talvez incorreramos precipitadamente no erro de acusar Hegel de salvar a filosofia kantiana de seu destino trgico[footnoteRef:60], promovendo uma retomada do programa do primeiro romantismo. Salvos beira do abismo por Paulo Arantes, recorremos critica hegeliana de que a reconduo do pensamento ao pensar sobre o pensar promovida na operao kantiana do projeto crtico acabou por devolver crtica o formalismo. [60: Quando dizemos que a filosofia kantiana tem um destino trgico, estamos apontando para o fato de que os seus postulados prticos, serviriam nos sculos seguintes como fundamento para decises polticas cujas consequncias foram catastrficas. Ora, justamente o processo constituinte destas decises polticas que nos interessa estudar nessa dissertao.]

Percepo redutora que devolve especulao o formalismo agora passado a limpo que esta atribuira primeira Crtica. Hegel, de fato, distinguira na operao kantiana, como seu efeito maior, a reconduo do conhecimento do seu interesse pelos objetos e de sua ocupao com eles, a ele mesmo, ao elemento formal.[footnoteRef:61] [61: ARANTES, P.E., Entre o nome e a frase. In. Ressentimento da Dialtica: dialtica e experincia intelectual em Hegel: antigos estudos sobre o ABC da misria alem, 397p.]

Como um gajeiro ao avistar o novo mundo, podemos, com certa ousadia, apontar a ideia ainda no anunciada de que a filosofia kantiana, ao atribuir ao Ich denke a potncia de predicar a realidade e o Outro, acaba por eclipsar a mediao que existe entre o Nome e a Frase, ou, em outro plano, entre o sujeito e seu predicado. Se a visada for certeira, interesse e exigncia deste estudo investigar dois desdobramentos do problema da ausncia da mediao identificado por Paulo Arantes, os quais nos permitiro visualizar um pouco melhor o carter realista do pensamento de Hegel.O primeiro desdobramento, aquele que nos interessa neste primeiro momento, atinente ao prprio pensamento, mais precisamente, diz respeito forma cientfica do discurso filosfico, visto que o impulso imediatez, que parece autorizar o sujeito a predicar-se a si mesmo e ao mundo que o cerca, impossibilita ao pensamento o exerccio de expor todas as particularidades de seu objeto at esgot-las. Assim sendo, como veremos no trecho a seguir, a prpria forma sistemtica pela qual, e na qual, o conceito realiza seu movimento sideral impossibilitada pela precipitao em se dizer Eu.

Mas antes de tudo, o que a concesso frase emperra o desempenho da Forma cientfica, cujo declnio de certo modo anuncia e do qual se beneficia. A racionalidade da cincia filosfica reside na forma sistemtica da exposio, regida pela norma da subsuno integral, pelo princpio da exausto (Erschpfung) infuso, em derradeira instncia, no andamento microlgico da frase: numa certa etapa do movimento dialtico da prpria proposio, explica Hegel, o predicado aparece como essncia que esgota (erschpft) a natureza do sujeito.[footnoteRef:62] [62: ARANTES, P.E., Entre o nome e a frase. In. Ressentimento da Dialtica: dialtica e experincia intelectual em Hegel: antigos estudos sobre o ABC da misria alem, 398p.]

perceptvel que o movimento ao qual Paulo Arantes nos remete o da dialtica da Aparncia; momento inicial da Fenomenologia do Esprito no qual Hegel, ao analisar as peripcias da conscincia natural lanando-se a conhecer e predicar objetos, trata especulativamente da questo das condies de possibilidade de se dizer Eu. Nesse trajeto, Hegel nos apresenta como em cada um dos modos da conscincia a saber, nos modos conhecimento sensvel, percepo e entendimento se desiludindo e passo aps passo vai relegando ao abandono o hbito da imediatez.Desde o primeiro passo de sua fenomenologia, Hegel critica a imediatez desqualificada com a qual Kant, porque as flores no cessam de ser lembradas, inicia sua Antropologia de um ponto de vista Pragmtico. Se, no modo como veremos a seguir, a antropologia kantiana tem por ponto de partida a imediata conscincia-de-si ou, em termos hegelianos, conscincia pensante; conscincia infeliz[footnoteRef:63] que tem sob o estatuto de princpio a diferena que podemos perceber imediatamente na extensividade existente entre o sujeito e o objeto Hegel inicia sua cincia da experincia da conscincia com uma investigao especulativa de quais so os limites desta imediatez desqualificada. [63: No 207 da Fenomenologia do Esprito, Hegel chamar de conscincia infeliz, a conscincia pensante que j se determinou, como liberdade abstrata, uma conscincia-de-si cuja essncia duplicada. Isto porque, enquanto vida simples, contingente, e de fato animal - uma conscincia-de-si perdida - tambm, em sentido contrrio, volta a transformar-se em conscincia-de-si universal igual-a-si-mesma, por ser a negatividade de toda singularidade e de toda diferena. Dessa igualdade, ou nessa igualdade-consigo-mesma, recai a conscincia naquela contingncia e confuso, pois justamente essa negatividade movimentada s tem a ver como singular e s se ocupa com o contingente. A contradio imanente conscincia que, ao desvanecer toda inessencialidade do seu pensar, acaba por realizar-se exatamente como algo inessencial, faz com que esta conscincia contraditria, cindida dentro de si, se apresente como um um desvario inconsciente que oscila para l e para c, de um extremo da conscincia-de-si igual a si mesma, ao outro extremo da conscincia casual, confusa e desconcertante.]

Que o ser humano possa ter o eu em sua representao, eleva-o infinitamente acima de todos os demais seres que vivem na terra. por isso que ele uma pessoa, e uma e mesma pessoa em virtude da unidade da conscincia em todas as modificaes que lhe possam suceder[footnoteRef:64], ou seja, ele , por sua posio e dignidade, um ser totalmente distinto das coisas, tais como os animais irracionais, aos quais se pode mandar vontade, porque sempre tem o eu no pensamento, mesmo quando ainda no possa express-lo, assim como todas as lnguas tm de pens-lo quando falam na primeira pessoa, ainda que no exprimam esse eu por meio de uma palavra especial. Pois essa faculdade (a saber, a de pensar) o entendimento.[footnoteRef:65] [64: Grifo nosso.] [65: KANT, I., Da conscincia de si mesmo, 1. In. Antropologia do ponto de vista pragmtico, 27p.]

Eis que, j na Antropologia, Kant nos apresenta a pedra angular do todo projeto crtico que viria desenvolver, a saber, a faculdade do entendimento. A importncia da faculdade do entendimento no projeto crtico de tal ordem, que sem ele o grande monumento da arquitetnica crtica kantiana, a saber, a viso moral do mundo, seria desprovida da solidez lgico-argumentativa que a possibilitou se alastrar pela Europa como um espectro cuja substncia lhe permitira usurpar as vestes de Virglio. Contudo, ainda no vamos nos ocupar do problema neste grau de complexidade, s nos autorizamos ousadia de enlev-lo, devido exerccio sadio e por isso mesmo recomendvel de se mirar os limites do horizonte ao qual se dirige.

Neste momento, nos interessa justamente essa invariabilidade do entendimento que, segundo Kant, permite, de plano, que a pessoa, enquanto conscincia, se represente como conscincia-de-si apenas pelo fato de esta se encontrar em oposio espacial entre a pessoa e os objetos de sua conscincia; portanto nos interessa a invariabilidade como o entendimento apreende e conceitua objetos. Gerard Lebrun nos permite enxergar, de maneira incisiva, o problema da atemporalidade com que o pensamento se realiza enquanto entendimento, recuperando o critrio que Descartes emprega em sua teoria das naturezas simples.

Sabe-se segundo que critrio Descartes reconhece esses pensamentos primitivos: eles so tais que "o esprito no os pode dividir num maior nmero em que o conhecimento seja mais distinto". O que equivale a dizer que so, antes de tudo, evidncias indecomponveis no presente de meu campo de conscincia, que sua "firmeza" garantida pela "fixidez" da conscincia de si. Com isso, tocamos no que h de irrevogavelmente representativo no recorte que o Entendimento efetua. no instante que idealiza o contedo por ele isolado, uno minimo momento temporis. espantoso que a referncia ao tempo condicione tanto o privilgio concedido ao Cogito quanto a teoria das naturezas simples. A tal ponto que essa presena do tempo como uma ameaa a ser afastada: preciso apagar o trao do tempo em que se desdobram as "longas cadeias de razes"; preciso que Deus garanta que as evidncias de outrora possam passar legitimamente como evidncias presentes. Consegue entretanto o pensamento de Entendimento neutralizar a temporalidade?[footnoteRef:66] [66: LEBRUN, G., As Astcias da Representao. In. A Pacincia do Conceito, 75p.]

Ao tratar da questo proposta ao final do trecho supracitado, Lebrun nos permite qualificar o Saber, fruto da imediatez com a qual a invarivel conscincia pensante conceitua e predica objetos, no mais como fruto da pura precipitao, mas tambm, na qualidade de uma infelicidade prematura. O Saber imediato constitudo pela conscincia pensante infelicidade prematura: porque sendo incapaz de resolver sua contradio interna, o entendimento, esta faculdade da Razo cuja atividade em geral a de abstrair dos objetos o seu contedo essencial, por fora deste mesmo movimento de desvanecer o inessencial dos objetos, acaba por conceitu-los por meio de representaes provenientes da pura frequentao do sensvel. Alm disso, o Saber originado na conceituao promovida pelo entendimento sempre um saber abstrato, pois, ao aceitar que algo seja verdadeiro apenas na minha cabea, o entendimento acaba por aceitar que o Saber se resigne a ser uma saber de superfcie, portanto Saber que falsifica o real.

O drama do pensamento de Entendimento destacar-se do sensvel, enquanto continua a operar com a mesma ingenuidade e sem reexaminar as representaes que provm da freqentao do sensvel (o "tempo", por exemplo). Por isso, no peca por "intelectualismo", mas, em vez disso, porque permanece mergulhado no imediato.[footnoteRef:67] [67: LEBRUN, G., As Astcias da Representao. In. A Pacincia do Conceito, 78p e 79p; Grifo nosso.]

Lebrun nos permite retomar o problema da imediatez num patamar elevado, ou seja, situando-o na prpria forma pela qual a relao entre o imediato desqualificado, e o exerccio da conceituao desobrigada de desenvolver as mediaes internas ao seu prprio encaminhamento, , para Hegel, atividade da razo que produz Saber irreal. Portanto, torna-se ainda mais importante para esse momento inicial, investigar o carter realista do pensamento hegeliano: como e por que ele s se faz perceptvel, se levarmos em conta a importncia que Hegel d s mediaes; ora, tal importncia se d a pensar, precisamente, no desenvolvimento de um saber que no se resigna em ser um saber meramente abstrato, mas que pela exigncia de seu movimento imanente, tem de se realizar efetivamente. Assim, vamos retomar, com algum cuidado, o caminho proposto pro Hegel nos primeiros captulos da Fenomenologia do Esprito.No primeiro captulo, Hegel nos prope acompanhar o movimento da conscincia natural orientada na certeza sensvel, cujo contedo concreto, diz ele, faz aparecer imediatamente essa certeza como o mais rico conhecimento, e at como um conhecimento de riqueza infinda, para o qual impossvel achar limite; nem fora, se percorremos o espao e o tempo onde se expande, nem [dentro], se penetramos pela diviso no interior de um fragmento tomado dessa plenitude.[footnoteRef:68] Logo no primeiro movimento, nosso narrador[footnoteRef:69] nos chama a ateno para um segredo presente no puro ser que a certeza sensvel enuncia como sua verdade. [68: HEGEL, G W F., A certeza sensvel: ou o Isto ou o Visar, 91. In. Fenomenologia do esprito. Trad. Paulo Meneses e Karl-Heinz Efken; Petrpolis, 1992, 74p.] [69: A escrever.]

No entanto, h muita coisa ainda em jogo, se bem atendemos, no puro ser que constitui a essncia dessa certeza, e que ela enuncia como sua verdade. Uma certeza sensvel efetiva no apenas essa pura imediatez, mas um exemplo da mesma. Entre as diferenas sem conta que ali se evidenciam, achamos em toda a parte a diferena-capital, a saber: que nessa certeza ressaltam logo para fora do puro ser os dois estes j mencionados: um este, como Eu, e um este como objeto. Para ns, refletindo sobre essa diferena, resulta que tanto um como o outro no esto na certeza sensvel apenas de modo imediato, mas esto, ao mesmo tempo, mediatizados. Eu tenho a certeza por meio de um outro, a saber: da Coisa; e essa est igualmente na certeza mediante um outro, a saber, mediante o Eu.[footnoteRef:70] [70: Ibid, A certeza sensvel: ou o Isto ou o Visar, 92. In. Fenomenologia do esprito, vol. I. Trad. Paulo Meneses e Karl-Heinz Efken; Petrpolis, 1992, 75p]

O segredo do saber imediato revela-se pelo seu negativo, ou seja, a verdade do saber imediato demanda a explicitao e a considerao do saber mediatizado. Assim, sujeito e objeto esto sempre mediatizados um pelo outro; e justamente na mediao que os no-este do sujeito e os no-isto do objeto aparecem. Ocorre que nesse movimento o que assistimos ao espetculo do desvanecimento do Eu tanto quanto do objeto. Isto porque h uma dialtica prpria certeza sensvel na qual esta, devido ao seu prprio encaminhamento, acaba por desubstancializar a si mesma e a todo objeto que aparece diante dela, revelando assim a verdade da certeza sensvel qual Hegel d o nome de universal:

A verdade do isto sensvel para a conscincia tem de ser uma experincia universal; mas o que experincia universal , antes, o contrrio. Qualquer conscincia suprassume de novo uma verdade do tipo: o aqui uma rvore ou: o agora meio-dia, e enuncia o contrrio: o aqui no uma rvore, mas uma casa. A conscincia tambm suprassume logo o que afirmao de um isto sensvel, nessa afirmao que suprassume a primeira. Assim, em toda certeza sensvel s se experimenta, em verdade, o que j vimos: a saber, o isto como um universal, - o contrrio do que aquela afirmao garante ser experincia universal.[footnoteRef:71] [71: Ibid., A certeza sensvel: ou o Isto ou o Visar, 109. In. Fenomenologia do esprito, vol. I. Trad. Paulo Meneses e Karl-Heinz Efken; Petrpolis, 1992, 81p.]

Nesse movimento que a conscincia realiza, tanto o sujeito quanto o objeto so paulatinamente desubstancializados: vir a ser sujeito da substncia; isto tem por conseqncia fundamental uma alterao no prprio agir da predicao. Por outro lado, sabemos que a agudeza do pensamento hegeliano no se dilui no exerccio ingnuo de um niilismo ad eternum. A questo, aqui, apreender o retorno do imediato enquanto imediato requalificado. que, agora, quando o Eu singular profere um juzo sobre um objeto universal, portanto mediatiatizado, o Eu no consiste no puro enunciar de um saber imediato.

Quando o que se diz de uma coisa apenas que uma coisa efetiva, um objeto externo, ento ela enunciada somente como o que h de mais universal, e com isso se enuncia mais sua igualdade que sua diferena com todas as outras. Quando digo: uma coisa singular, eu a enuncio antes como de todo universal, pois uma coisa singular todas so; e igualmente, esta coisa tudo que se quiser. Determinando mais exatamente, como este pedao de papel, nesse caso, todo e cada papel um este pedao de papel, e o que eu disse foi sempre e somente o universal. O falar tem a natureza divina de inverter imediatamente o 'visar', de torn-lo algo diverso, no o deixando assim aceder palavra. Mas se eu quiser vir-lhe em auxlio, indicando este pedao de papel, ento fao a experincia do que , de fato, a verdade da certeza sensvel: eu o indico como um aqui que um aqui de outros aquis, ou que nele mesmo um conjunto simples de muitos aquis, isto , um universal. Eu o tomo como em verdade, e em vez de saber um imediato, eu o apreendo verdadeiramente: [eu o percebo].[footnoteRef:72] [72: Ibid., A certeza sensvel: ou o Isto ou o Visar, 110. In. Fenomenologia do esprito, vol. I. Trad. Paulo Meneses e Karl-Heinz Efken; Petrpolis, 1992, 82p.]

Notemos que a verdade da certeza sensvel se encontra em algo que lhe externo, ou seja, na percepo. Tal processo de explicitao da contradio parece repetir-se em cada uma das estaes que compe a volta ao mundo da conscincia. A contradio se intensifica de tal modo que a figura da conscincia, a que corresponde presente estao, passa por um processo de inverso, ou mais propriamente, de interverso. Destas interverses, a que mais interessa a esse momento de nossa argumentao aquela pertinente figura da percepo, mais propriamente no momento em que ela j se configura como percepo entendente.

Mas a natureza dessas abstraes as rene em si e para si. O bom senso a presa delas, que o arrastam em sua voragem. Querendo conferir-lhes a verdade, ora toma sobre si mesmo a inverdade delas, ora chama iluso uma aparncia das coisas indignas de confiana, separando o essencial de algo que lhes necessrio e ainda assim, que-deve-ser-inessencial; e mantm aquele como sua verdade, frente a este. [Com isso] no salvaguarda para essas abstraes sua verdade, mas confere a si mesmo a inverdade.[footnoteRef:73] [73: Ibid., A Percepo ou: a coisa e a iluso., 131. In. Fenomenologia do esprito, vol. I. Trad. Paulo Meneses e Karl-Heinz Efken; Petrpolis, 1992, 94p.]

Como podemos ver, a percepo entendente se lana condio de uma conscincia-de-si to certa de sua liberdade, que faz desvanecer at aquele outro outro que se fazia passar por real. Ela faz desvanecer, no apenas o "objetivo" enquanto tal, como tambm o prprio "perceber". Ela faz desvanecer, igualmente seu consolidar do que estava em risco de perder-se: a sofistaria e seu verdadeiro determinado e fixado por sua conta. Esta coleo de evanescncias compe um dos momentos chave da Fenomenologia do Esprito, aquele que mais interessa a este primeiro captulo, a saber, a passagem conscincia infeliz. Por isso mesmo, convm ver mais de perto cada uma delas.Segundo Jean Hyppolite, a conscincia infeliz ou uma conscincia ingnua, que ignora ainda sua infelicidade, ou uma conscincia que transps sua dualidade e reencontrou a unidade para alm da separao.[footnoteRef:74]. Entretanto, em sentido estrito, a conscincia infeliz o resultado do desenvolvimento da conscincia de si.[footnoteRef:75]. Isto significa que a conscincia infeliz um resultado de natureza ambivalente (demonaca para os alemes), ou seja, constitui uma subjetividade que, apesar de ser erigida em verdade, tem de experimentar a no unidade consigo mesma. Dissemos durante toda a argumentao que o esprito tem uma meta a cumprir, a de se tornar autoconsciente, ou seja, tornar-se livre, mas s agora podemos dizer que o esprito peregrino enquanto conscincia-de-si se descobre enquanto uma conscincia duplicada, cindida por dentro. Como podemos ver no seguinte trecho. [74: Cf. HYPPOLITE, J., A conscincia infeliz Gnese e estrutura da Fenomenologia do esprito de Hegel, So Paulo: Discurso Editorial, 1999, 205p.] [75: Idem.]

Essa nova figura portanto uma figura que para si a conscincia duplicada de si como libertando-se, imutvel e igual a si mesma. a conscincia de si como absolutamente confundindo-se e invertendo-se; e como conscincia dessa sua contradio.[footnoteRef:76] [76: HEGEL, G W F., A liberdade da conscincia de si. Estoicismo e Ceticismo, 206. In. Fenomenologia do esprito, vol. I. Trad. Paulo Meneses e Karl-Heinz Efken; Petrpolis, 1992, 140p.]

Decerto a conscincia-de-si tambm a conscincia da contradio que lhe prpria, porm o que nos interessa o momento da conscincia-de-si que est prestes a tomar cincia desta no unidade. A conscincia percipiente[footnoteRef:77], assim como a conscincia-de-si ctica, opera de modo a dissolver tudo que no lhe aparece como prprio. Dito de outra forma, a conscincia ao realizar a passagem do coisismo da percepo relatividade do entendimento[footnoteRef:78] dissolve, desvanece, tudo o que no seja fruto de sua absoluta identidade, ou seja, desvanece todo outro que lhe parecia real, at que reste apenas a certeza de si. [77: Expresso percipiente foi cunhada pelos tradutores brasileiros de Jean Hypollite, na obra Gnese e estrutura da Fenomenologia do esprito de Hegel, So Paulo: Discurso Editorial, 1999.] [78: Cf. HYPPOLITE, J., A conscincia infeliz Gnese e estrutura da Fenomenologia do esprito de Hegel, So Paulo: Discurso Editorial, 1999, 130p]

Processo semelhante se passa com a conscincia-de-si ctica, que, como vimos, desvanece o que determinado ou a diferena que se imponha como firme e imutvel, de qualquer modo e venha donde vier. O resultado de tal processo o surgimento de uma inabalvel certeza autoconsciente de sua liberdade. Entretanto, nem a conscincia percipiente nem a conscincia ctica elevam-se condio de conscincia-de-si, ao contrrio, revelam a fora aniquiladora da conscincia. Assim, perguntamos-nos: se ainda num plano abstrato o esprito peregrino chega a esse momento no qual a aniquilao a fora motriz da conscincia, em que condies podemos falar de efetivao da vontade?