a depressao como mal estar contemporaneo (1)

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    A DEPRESSOCOMO MAL-ESTAR

    CONTEMPORNEO

    LEANDRO ANSELMO TODESQUI TAVARES

    MEDICALIZAO E (EX)-SISTNCIADO SUJEITO DEPRESSIVO

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    A DEPRESSO

    COMOMAL-ESTAR

    CONTEMPORNEO

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    CONSELHO EDITORIAL ACADMICO

    Responsvel pela publicao desta obra

    Elizabeth Piemonte ConstantinoFernando Silva Teixeira Filho

    Francisco HashimotoJos Sterza Justo

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    LEANDRO ANSELMO TODESQUITAVARES

    ADEPRESSOCOMOMAL-ESTARCONTEMPORNEO

    MEDICALIZAOE(EX)-SISTNCIADOSUJEITO

    DEPRESSIVO

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    Editora afiliada:

    2010 Editora UNESP

    Cultura Acadmica

    Praa da S, 108

    01001-900 So Paulo SPTel.: (0xx11) 3242-7171Fax: (0xx11) [email protected]

    CIP Brasil. Catalogao na fonteSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

    T231d

    Tavares, Leandro Anselmo Todesqui

    A depresso como "mal-estar" contemporneo: medicalizaoe (ex)-sistncia do sujeito depressivo / Leandro Anselmo TodesquiTavares. - So Paulo : Cultura Acadmica, 2010.

    Inclui bibliografia

    ISBN 978-85-7983-100-3

    1. Depresso mental. 2. Doenas mentais - Aspectos sociais. 3.Alienao (Psicologia). 4. Psicotrpicos. 5. Psicanlise. I. Ttulo.

    11-0133. CDD: 306.461 CDU: 316.74:616.891.6

    Este livro publicado pelo Programa de Publicaes Digitais da Pr-Reitoria

    de Ps-Graduao da Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita

    Filho (UNESP)

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    Gostaria, com sinceridade, de agradecer a todos aqueles que con-triburam, direta ou indiretamente, para a realizao desta pesquisa.

    De maneira especial, agradeo o apoio incondicional de meus familia-

    res, meus pais e minha irm, os quais sempre me encorajaram em minhasdecises, de modo que sem a existncia deles nada seria possvel.

    Meu agradecimento incomensurvel a todos os colegas e amigosprofissionais, hoje em sua maioria tambm professores, com os quaiscompus o grupo de pesquisa Figuras e modos de subjetivao nocontemporneo. Entre eles esto:

    Marco Antnio Rotta Teixeira, que pde acompanhar o desenvolvi-

    mento deste trabalho desde seu embrio, contribuindo de forma signi-ficativa e singular para os avanos tericos contidos nestas pginas.

    Matheus Fernandes de Castro, Thassia Souza Emidio e Mary YokoOkamoto, pelo apoio na realizao deste trabalho e pelo incentivoincondicional em minha atividade profissional como docente, a qualse iniciou paralelamente ao desenvolvimento desta pesquisa e que sfoi possvel tornar-se tambm uma realidade, graas confiana deles

    em mim depositada.Agradeo tambm aos colegas Karin Prado Telles, Lucas Martins

    Soldera, Guilherme Elias da Silva, Giselha Golfetti, Hlio Hoshina,Ftima Itsue W. Simes, Marcos Mariani Casadore, Mariele Ro-

    AGRADECIMENTOS

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    drigues Correa, Renata C. Sobral Dias, Paula Ione Fiochi, e Milenada Silva Mano, que em muitas situaes e circunstncias diferentespuderam, cada qual a sua maneira, contribuir para a problematizaoe evoluo desta pesquisa.

    Relembro, neste momento, os vrios amigos espalhados pelomundo afora em virtude de seus caminhos e buscas de realizaespessoais e profissionais, mas que, apesar da distncia, torceram em prolda realizao deste sonho. A eles agradeo, em especial ao Ebenzerde Oliveira Mller, companheiro de infinitas discusses psicanal-ticas, filosficas e musicais desde a poca de graduao; ao MarceloGermanos, que infelizmente deixou a presena de sua falta e que foiem vida invejvel filsofo e psiclogo que muito contribuiu durantenossa formao para questionamentos e problematizaes dignas denota; ao Fbio Alves Carvalho, sempre aberto a discusses tericas;e, por fim, Ana Paula Batini, que contribuiu com suas observaes,crticas e apontamentos ponderados e, especialmente, pelo incentivoirrestrito e por compreender os momentos de recluso e isolamento

    necessrios para a realizao deste trabalho.Meu agradecimento aos colegas e funcionrios da seo de ps-

    graduao, que sempre se demonstraram solcitos e compreensivosante as necessidades burocrticas que demandamos cotidianamente.

    Meus agradecimentos especiais professora Cristina Amlia Luzio eao professor Walter Migliorini pela abertura e acessibilidade, bem comopelos apontamentos capitais que tornaram possvel o amadurecimento

    das questes discutidas neste trabalho. Da mesma maneira, meu reco-nhecimento e agradecimento professora Catarina Satiko Tanaka por teraceitado o convite de participao junto banca, onde pde contribuirsignificativamente, e por encorajar-me na continuidade dos estudos.

    Agradeo aos meus pacientes pela oportunidade de humildementetentar ajud-los por meio de meu trabalho cotidiano e, sobretudo, porme tornarem possvel a tarefa de reencontrar os sentidos das teorias

    em cada caso atendido.Em especial, meu agradecimento, reconhecimento e admirao

    irrestritos ao meu orientador e amigo professor Francisco Hashimoto,que sempre demonstrou confiana em meu trabalho, encorajando-me

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    tambm a realizar mais um sonho: iniciar a carreira docente. Por meiode sua maneira sbia e especial de orientar seus alunos, pde encorajar-me a realizar este trabalho de forma livre, por isso tambm prazerosa,respeitando aquilo que concernia ao meu desejo, ao mesmo tempo emque atento a todas as necessidades para a realizao de uma pesquisacompetente, significativa e de qualidade. Sem ele, nada seria possvel.

    Chico, muito obrigado!

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    E se no tivesse o amor?E se no tivesse essa dor?E se no tivesse o sofrer?

    E se no tivesse o chorar?(Caetano Veloso, Its a long way)

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    SUMRIO

    Apresentao 13

    1 Contemporaneidade e mal-estar 272 A depresso como mal-estar contemporneo 673 Percursos: caminhos e (des)caminhos 1014 A (ex)-sistncia do sujeito depressivo 123

    Consideraes finais 167

    Referncias bibliogrficas 171

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    APRESENTAO

    No cenrio do mundo contemporneo, o predomnio de deter-minadas psicopatologias (assim designadas) fruto direto das novasconfiguraes simblicas forjadas pelos discursos sociais vigentes,

    discursos estes que atravessam os sujeitos, produzindo, assim, deter-minadas formas de subjetivao caractersticas de nosso tempo.

    Do incio do capitalismo at os dias de hoje, nunca se viu uma pocato agudamente alienante para o sujeito como a que acontece agora nanossa ditaps-modernidade(Bauman, 1998). A exacerbada valorizaoda imagem e a submisso frente s imposies da mdia, tendo comoconsequncia direta a produo de pseudovalores e pseudonecessida-

    des na contemporaneidade, caracterizam o que Debrd (1997), por suavez, denominou como a sociedade do espetculo.

    As relaes interpessoais contemporneas adquiriram novas con-figuraes decorrentes do modelo de sociedade atual. Relaes estasque so mediadas por imagens, modas, tendncias impostas pelosveculos de comunicao, globalizao de costumes, necessidades,e modos de ser dos indivduos enquanto atores da cena social. Essa

    sociedade espetacular acaba por ser, em sua essncia, uma sociedadedaaparncia. Se por um lado, em um primeiro momento, o capitalismoimpulsionou o sujeito para uma dialtica do terem detrimento do ser;hoje, por outro lado, temos o deslizamento do ter para oparecer. Em

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    um mundo onde a aparncia fundamental, o (a)parecer na cena socialse torna questo de existncia.

    Desta forma, a sociedade contempornea, com todo seu arsenaltecnolgico e, em especial, com as novas e variadas possibilidades decomunicao, promove por fim uma autntica produo circular doisolamento e da alienao: da televiso aos computadores, o sistemaespetacular cria, incessantemente, as condies de isolamento, aformao das multides solitrias. Tomada por esse sentido, a di-nmica do cenrio social contemporneo, com toda sua infinita gamade imposies e a consequente subverso das reais necessidades dosindivduos, acaba por se forjar uma verdadeira falsificao da vidasocial. O espetculo o empobrecimento, a sujeio e a negao davida real: a genuna expresso da separao e do afastamento entre ohomem e o homem.

    A partir do momento em que vivemos em um contexto que nosexige determinadas formas de (a)parecerna cena social, inevitvelque diante da impossibilidade de participao nesse teatro espeta-

    cular o indivduo adoea o mal-estar (Freud,1930; 1992), frutoda incompatibilidade entre a demanda social e as reais necessidadesindividuais.

    Ante as imposies do cenrio espetacular, o sujeito v-se pres-sionado a atender as exigncias sociais em um sentido esttico de suaexistncia. por meio da estimulao pelo discurso social que essacultura da imagem impulsiona o sujeito a uma vivncia essen-

    cialmente narcisista, o eusendo o principal objeto de investimentolibidinal e o outrousado apenas como recurso para o prazer imediato.Nessa cultura da estetizao do eu, o sujeito tem seu valor atribudopor aquilo que aparentaser, mediante as imagens produzidas para seapresentar na cena social, e, dessa forma, a exibio se transforma nolema essencial da existncia razo de seu ser.

    Entre as modalidades de sofrimentos psquicos mais frequentes na

    atualidade esto as variadas formas de drogadies, sndromes do p-nico e, principalmente, as depresses (Fuks, 1999). Essas modalidades,cotidianamente, chegam aos Servios de Psicologia como demandaspara atendimento, como nos mostra a realidade de nossa prtica pro-

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    fissional clnica. Desta forma, o interesse pelo tema proposto nestapesquisa nasceu da prpria atuao profissional em Sade Pblica,especificamente da prtica cotidiana de atendimentos clnicos em umCentro de Sade de uma cidade do interior de So Paulo.

    A atuao dos profissionais de Psicologia que trabalham pelo SUS(Sistema nico de Sade), e que esto ali para atender toda a populaousuria do servio, obriga estes a terem contato, cotidianamente, comos mais variados tipos de queixas, problemas, patologias, situaes derisco e/ou diversas formas de subjetivao de uma maneira geral. Aquesto da depresso, especialmente, tornou-se quase que um modis-mo nos dias de hoje. Para alm das paredes dos consultrios, ouvimosdemasiadamente que sempre algum sofre deste mal ps-moderno.Isso se deve, evidentemente, ao espantoso nmero de casos assim diag-nosticados na atualidade. Devido, ento, a essa excessiva presena dosignificante depresso ecoando nos mais variados contextos e, maisintensivamente, nas clnicas e/ou servios de Psicologia, o interessee a inquietao com esse tema s aumentou no decorrer destes anos

    atuando profissionalmente.Com relao s depresses, sabemos que na maioria dos casos o

    servio de Psicologia um dos ltimos recursos a ser procurado pelopaciente na tentativa de cura/alvio de seu sofrimento. Isto se devea um conjunto de fatores, contudo, podemos apontar como maissignificativo o desconhecimento das possibilidades da Psicologia porgrande parte da populao, somado cultura medicalizante que traz

    em si uma promessa latente de cura/bem-estar/felicidade para osofrimento humano.

    A respeito da funo da Psicologia, a qual mencionamos comodesconhecida pela maioria dos pacientes, cabe relembrarmos Figuei-redo (2004), que a define como um campo de disperso devido sdiversas linhas tericas que compem seu arcabouo de saber; ouainda Bock (2001) definindo-a como Psicologiaspelo mesmo motivo:

    a diversidade terica e os diversos campos de atuao profissional.Contudo, especificamos nosso fazer clnico dentro do referencialterico da psicanlise, o qual se diferencia das demais modalidadespsicoterpicas, pois, como aponta Sauret (2006), a(s) psicoterapia(s) de

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    acordo com seu desenvolvimento e evoluo histrica at a modernida-de preconizam um tratamento da ordem do cuidado de si. Segundoo autor, as psicoterapias aparecem como promotoras designadas aobem-estar mental, com a tarefa de adaptar o novo indivduo a seu meioambiente (idem, p.33-4).

    Salvo as variadas caractersticas das psicoterapias de diversas abor-dagens tericas, situamos a prtica clnica de referencial psicanalticocomo desempenhando um papel singular por meio do dispositivoclnico, pois a partir de Freud, a noo de sujeito do inconsciente vem tona e, dessa forma, encontramos a possibilidade em nossa atuaode poder conduzir os pacientes a uma ressignificao de seus vividospsquicos, o que no prioriza, necessariamente, como objetivo umadeterminada cura, to comum e visada pelas demais prticas psi-coterpicas, nem tampouco visa a um ajustamento do indivduo comrelao a seu meio e aos outros (normatizao). Antes, a funo dapsicologia clnica psicanaltica exercer, ao contrrio do que supe osenso comum, a possibilidade do advento da falta desse suposto saber

    que na situao clnica projetado no outro(psicoterapeuta), condiosine qua non para fazermos do dispositivo clnico uma possibilidade de(des)caminho para as individualidades que desejam e demandam cer-tezas absolutas em nossa atualidade, estas legitimadas pela tendnciaexclusiva dos tratamentos medicamentosos.

    Sendo assim, de acordo com nossa experincia, comum obser-varmos que esses pacientes diagnosticados como depressivos, quando

    chegam ao atendimento psicolgico, j se encontrem durante algumtempo sob o efeito de tratamentos medicamentosos, usados, at ento,como nica alternativa (na maioria das vezes) para o cuidado de seusofrimento.

    A depresso, considerada aqui como uma das mais presentesformas de mal-estar contemporneas, simbolicamente representao fracasso do sujeito na participao da cultura do narcisismo e do es-

    petculo. O excesso de interioridade/introspeco do deprimido, seuisolamento melanclico diante do mundo, se contrape esttica da

    performance, estimulada pelo discurso social vigente (Birman, 2001).Nesse sentido, o sujeito depressivo (ex)-siste no cenrio social, est

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    margem do estilo de existncia priorizado pelo espetculo, devido asua incapacidade de identificar-se com as representaes forjadas pelaideologia predominante das aparncias.

    No que tange ao tratamento dessas depresses, a situao no muito diferente no sentido de que a alienaode si se reproduz nasprticas da sade. Como exposto anteriormente, a tentativa de curapara o sofrimento tem como base, na maioria das vezes, as interven-es psicofarmacolgicas, as quais, por sua vez, so aliceradas empressupostos de normatizao dos indivduos. Somente muitotempo depois, hora em que eventualmente o cuidado medicamen-toso no atinge os efeitos desejados de alvio, que o paciente acabapor procurar os atendimentos psicolgicos, ou por livre e espontneavontade, ou por algum encaminhamento de outra especialidade. Emdeterminados casos, comum que a demanda de cura do pacientedirigida ao psiclogo diga respeito no s depresso em si, mastambm aos efeitos do prprio tratamento medicamentoso. Podemosobservar, na prtica clnica cotidiana, que em alguns casos especficos,

    sentimentos do sujeito como apatia, fadiga fsica e mental, pensamen-tos pessimistas etc. pioram ou intensificam-se mesmo sob o cuidadodos medicamentos.

    Se levarmos em considerao que a perspectiva biologizante (me-dicamentos) pressupe um ideal de normalidade (normatizao) quedesconsidera as particularidades subjetivas individuais, isto por fims acaba por reafirmar a alienaodo indivduo diante de si mesmo

    e diante de suas prprias condies e caractersticas subjetivas que oindividualizam como sujeito.

    Deste ponto de vista, as perspectivas biologizantes da subjetivi-dade tm no cenrio atual uma funo normatizadora que se propea trabalhar a dimenso do sofrimento humano predominantementepor meio de intervenes qumicas.

    A alienaodo sujeito tende a se confirmar no interior do prprio

    tratamento que lhe comumente oferecido de incio, pois a perspectivanormatizadora do indivduo tem como ideais os mesmos axiomas vi-gentes na cultura contempornea. O evitamento da dor a chave paraa prtica das performances espetaculares.

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    No presente trabalho utilizamos o conceito mal-estar ao designar-mos a incompatibilidade estrutural entre sujeito e sociedade, bem comoquando estivermos considerando a depresso enquanto sintoma e/ouproduo social, ao passo que em relao s demais categorias de afetosaversivos que tambm, no necessariamente, compem uma psicopato-logia, nos remeteremos como simplesmente da ordem do sofrimento.

    Em certo sentido, a contemporaneidade contribui para a existnciadessas modalidades de psicopatologias e/ou mal-estar, bem comopara a alienao do sujeito, que se faz inclusive no interior de certasprticas em cuidado sade, em virtude do que podemos denominar,entre outras coisas, como uma medicalizao do social, embasadaem uma perspectiva normatizadora sobre o sujeito.

    Consideramos a medicalizaocomo um dos processos carac-tersticos das estratgias de Bio-Poder (Foucault, 2001), em que aspossibilidades de controle sobre a vida encontram no saber mdico seuterreno mais profcuo, a saber: o controle sobre os corpos, que envolvedesde regras de higiene, costumes e preceitos morais, planejamentos

    e organizao do espao pblico, normas de comportamentos, atas condutas sexuais, sociais, enfim, uma verdadeira apropriao damedicina sobre o existir humano nos mais variados sentidos. Isto por-que, tal como nos demonstra Foucault (1979), a relao saber/poder indissocivel, o que implica dizermos que a produo de saber estatrelada s estratgias de interveno no corpo social, inseparveis queso de seus objetivos polticos de controle sobre as individualidades e a

    coletividade. A partir disso, ora nos remeteremos medicalizao dosocial enquanto processo de apropriao por parte do saber mdico detudo aquilo que em sua origem pertence a uma outra natureza (o que seevidencia claramente na questo dos diagnsticos), ora nos referiremos medicalizao no sentido medicamentoso, como a que aconteceno caso das intervenes acerca da depresso na atualidade baseadasexcessivamente no uso e abuso de psicofrmacos.

    Diante disso, do interesse bruto inicial pelo problema das depres-ses, que se faz to presente nos dias de hoje, foi possvel, paulatina-mente, fazer um recorte nesse campo to vasto, a fim de delimitarmosum objeto especfico vivel para a realizao desta pesquisa.

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    Nesse universo dos sujeitos deprimidos que chegam para osatendimentos, alguns dados tornaram-se bastante significativos parauma melhor construo do problema e do objeto a ser investigado.Um deles diz respeito ao fato de que raro, muito raro, um pacientequalquer chegar aos atendimentos psicolgicos sem um diagnsticoformulado previamente, principalmente nessa referida situao. Ocontato dirio com diversos casos intitulados depresso e as conse-quentes realizaes de psicoterapias com esses pacientes nos levarama considerar o fato de que, possivelmente, a maioria desses casos dizrespeito a momentos de altos e baixos comuns existncia humana deuma forma geral, no necessariamente correspondendo a uma psico-patologia, especialmente levando-se em considerao os dispositivospotencializadores de sentimentos de desamparo que perpassam a vidadessas pessoas. Ou ainda, muitas vezes, nem se trata de sentimentosexcessivamente penosos ou depressivos, mas, sobretudo, de senti-mentos de angstia, tambm intrnsecos prpria condio de seresdesejantes que somos.

    Sendo assim, essa constatao sempre confirmada e reafirmadano cotidiano da atuao profissional nos fez reorientar o olhar sobreopercursoque os pacientes trilham na busca de alvio/cura de suascondies de sofrimento.

    Podemos, ento, considerar que, em um primeiro momento, quandoo paciente busca algum tipo de atendimento para seu mal-estar, esseindivduo sem dvida encontra-se fragilizado; ele, inevitavelmente,

    demanda um saber do mdico que o ouve: sabero que ele tem umsaber sobre seu mal-estar. O paciente, assim, transferencialmenteconfereao mdico um lugar de Sujeito Suposto Saber (Lacan, 1958 [1957]; 1999):no imaginrio do paciente, esse mdico possui o saber sobre seu des-conforto, e isso que o indivduo demanda, em termos de desejo, desseprofissional que o ouve, porm no o escuta,como muito comum.

    Quando esse paciente busca, enfim, atendimento em Psicologia,

    o faz, sem dvida, porque seu mal-estar no cessa, apesar do trata-mento medicamentoso que lhe foi prescrito junto de seu diagnsticode depresso. assim que esse indivduo chega at ns, psiclogos,etiquetado por um diagnstico prvio e medicalizado, na maior

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    parte das vezes. Esse percurso do paciente nos labirintos e meandrosda sade produz o que podemos considerar como uma forma dealienaosubjetiva (Aulagnier, 1985), ocorrendo em dois vrticessimultneos: pelo significante depresso(diagnstico) vindo do outro,e pelos medicamentos que produzem alteraes de sensaes fsicase psicolgicas. Alienao esta similar alienao que o sujeito sofreno curso de seu desenvolvimento, precisamente no momento emque os smbolos passam a significar suas sensaes, dando origem srepresentaes, que quando o sujeito passa a ser representado peloregistro simblico fruto de sua alienao na e pela linguagem, o quetransforma a necessidadeem desejo(Lacan, 1958 [1957]; 1999). Essa,ento, seria a problemtica do percurso da cura desses pacientes: osujeito passando a (ex)-sistir subjetivamente, dada a alienao produ-zida por meio de um discurso outro(diagnstico e medicao) nessetrajeto comum s prticas em sade.

    Vale lembrar que esse percurso concretizado nas prticas em sadeest sendo considerado aqui como um modo de alienao subjetiva,

    por conta de este ser o extremo oposto de uma proposta psicotera-putica psicanaltica, uma vez que, ao invs de dar um nome para osofrimento, um nome que identifica e aliena o sujeito, a psicoterapiavisa que o paciente construa um sentido singular a sua condio eassim possa advir o sujeito do inconsciente. Nessa situao analtica,como resposta a sua demanda por saber, o indivduo depara-se com ono saber, uma vez que o psiclogo deve posicionar-se em um lugar

    de vazio (em termos de desejo) nessa relao transferencial. A nicacoisa que o profissional deve desejar que o paciente possa fazer-sesentido. Assim, o vazio, o no dito ou o no respondido do psicote-rapeuta, cria o espao necessrio para o saber do inconsciente, espaoantes preenchido e pr-enchido pelo diagnstico, pois este serve parao sujeito identificar-se e (ex)-sistir por trs desse significante outro: odiagnstico depresso como o discurso do outro.

    Considerando o fato de que a demanda do paciente depressivo noatendimento psicolgico refere-se cura de um mal-estar que insisteem exercer sua fora, mesmo diante das intervenes medicamento-sas to usuais atualmente, optamos por investigar as representaes

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    que os prprios pacientes tm acerca desses tratamentos que lhe sooferecidos. Sendo assim, questionamo-nos: que representao simb-lica/subjetiva o sujeito forja para si mesmo com relao aos cuidadosnormatizadores que lhe so ofertados para a cura do mal-estar nocenrio contemporneo?

    De uma forma geral, definimos o objetivo da pesquisa em compre-ender os significados que os pacientes atribuem a seus diagnsticos dedepresso e ao tratamento que recebem na Sade Pblica. Especifica-mente, pretendemos analisar o percurso desses pacientes na tentativade lidar com seus estados de mal-estar, bem como compreenderos sentimentos que emergem nesse processo relacionando-os com otratamento medicamentoso que recebem.

    Partindo do ponto de vista de que as depresses de modo geralcaracterizam-se como uma das modalidades de mal-estar mais insis-tentes na atualidade, e devido crescente demanda por atendimentosde pacientes que, mesmo recebendo tratamento medicamentoso, noobtm xito em seu processo de cura, torna-se relevante a pesquisa em

    questo. Levando-se em considerao, ainda, o fato de que a compre-enso interna (insight) do sujeitoacerca de si mesmo se contrape svariadas ideologias de normatizao vigentes na cultura atual sobre asade dos indivduos.

    Com relao s produes acadmicas na rea, podemos perceberque a maioria dos trabalhos de pesquisa que tratam da mesma questode interesse aqui proposta so essencialmente tericos. Verificamos,

    desse modo, pesquisas que tiveram como objetivo investigar e ques-tionar os conceitos de depresso e estud-la, rastreando determinadospercursos tericos, bem como compreend-la dentro do cenrio socialda contemporaneidade evidenciando-se, por vezes, a questo da medi-calizao, como, por exemplo, os estudos de Teixeira (2007), Amaral(2006), Farinha (2005), Wanderley (2000) e Fernandes (1999), sobreos quais comentaremos a seguir.

    Em Os destinos da tristeza na contemporaneidade: uma discussosobre depresso e melancolia, Amaral (2006) desenvolve uma crticaao enquadramento da tristeza e do luto no mbito da patologia,demonstrando historicamente como se lidou com a melancolia at o

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    aparecimento da depresso, delimitando, por fim, o campo de saberda psicanlise com relao ao tema na contemporaneidade.

    O trabalho de Farinha (2005),A depresso na atualidade: um estudopsicanaltico, aborda a questo da depresso na atualidade sob o prismapsicanaltico de Freud e Lacan. A autora prope uma reflexo tericaacerca de temas como a banalizao do conceito de depresso, o noreconhecimento desta como uma entidade clnica, a medicao sobre adepresso, a queda da lei simblica, o privilgio do gozo em detrimentodo desejo e, por fim, discute o tratamento desse mal pela psicanlise.

    EmA distimia e a construo do indivduo insuficiente: um estudosobre a depresso na contemporaneidade, Wanderley (2000) parte doconceito de distimia como exemplo maior das verses contextualistassobre a depresso na contemporaneidade. O autor evidencia as afinida-des existentes entre os dois tipos clnicos a distimia e a personalidadenarcsica e ainda um tipo cultural o indivduo ps-moderno ,enfatizando as transformaes normativas que parecem favorecer aemergncia dos quadros depressivos de baixa intensidade.

    Fernandes (1999), em Um furo no psiquismo: melancolia-depresso,realiza um estudo terico acerca da depresso-melancolia partindo dasteorias metapsicolgicas freudianas, ponderando o desenvolvimentohistrico das classificaes nosogrficas em psicopatologia, concluindo,acerca do tema, duas hipteses: o furo no psiquismo como perda doeu, ea perda doeucomo reedio de uma perda fundamental a perda da me.

    O estudo de Teixeira (2007), intitulado A concepo freudiana

    de melancolia: elementos para uma metapsicologia para os estados demente melanclicos, uma pesquisa terica com base na metapsico-logia freudiana a fim de compreender o que a psicanlise tem a dizersobre o tema, concluindo, por fim, que o estudo da melancolia conduzinevitavelmente ao estudo da formao do psiquismo de forma geral,formulando a concepo de estado de mente melanclico presentemesmo no funcionamento no patolgico do psiquismo.

    Entre outras pesquisas que se propuseram a realizar estudosdecasosutilizando-se do mtodo clnico, destacamos a de Siqueira (2006), Adepresso e o desejo em psicanlise, pesquisa na qual a autora trabalhacom o estudo de um caso clnico: um paciente do sexo feminino, idosa

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    apresentando queixa de depresso. A autora utiliza-se do caso atendidopara propor uma reflexo acerca da depresso do ponto de vista da psi-canlise, investigando a questo do fenmeno ou estrutura depressiva,seguida da reflexo acerca da compreenso psiquitrica da depresso emcontraposio psicanaltica, permeando a problemtica de depressona velhice, e finaliza compreendendo a depresso como covardia mo-ral, segundo Lacan (apud Siqueira, 2006), configurando tambm umposicionamento do sujeito em oposio ao discurso capitalista vigente.

    Finalmente, apresentamos o estudo de Peret (2003),A depresso naclnica lacaniana: um estudo de caso, trabalho em que a autora utiliza-sede dois casos clnicos atendidos em mbito particular para refletir sobrea questo da depresso pelo vis da psicanlise em Freud e Lacan. Pormeio de seu estudo, foi possvel observar que os depressivos desinves-tem libidinalmente os objetos, inibem e abandonam suas necessidadese vontades, tornando-se ensimesmados. O estudo de casos revelou emum deles o funcionamento de uma estrutura neurtica, ao passo queno outro, devido falta de mediao simblica e passividade ante a

    tirania do superego assumindo para si culpas e castigos, verificou-seuma estrutura psictica. Segundo a autora, o estudo permitiu enten-der que a depresso um no saber-fazer com as circunstncias que aprpria vida impe, e que o dilema humano situa-se em ser um ser dedesejo, pagando o preo por meio da depresso, pela fuga do exercersuas prprias escolhas.

    Conforme as pesquisas citadas, podemos perceber que muito tem

    sido estudado, produzido e pensado sobre a questo da depresso nacontemporaneidade, contudo, no foi encontrada nenhuma pesquisaque tivesse como objetivos principais trabalhar especificamente comas representaes que os prprios sujeitos depressivos constroem empsicoterapia sobre os efeitos do diagnstico e dos tratamentos medica-mentosos que recebem, bem como o impacto destes nas subjetividadesde tais indivduos. Por conta disso, se fez pertinente a proposta de pes-

    quisa em questo, bem como se torna relevante a realizao desta paraas prticas psicolgicas e o prprio desenvolvimento da profisso.

    A pesquisa foi realizada utilizando-se de uma metodologia quali-tativa, uma vez que os dados a serem obtidos referem-se a questes

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    essencialmente subjetivas dos prprios pacientes. O material utilizadopara a pesquisa foi obtido por meio defragmentos de sesses clnicasconstitudos com base nas reminiscncias do prprio pesquisador,levando-se em considerao, para isso, todo o perodo de experinciaprofissional em Sade Pblica (de fevereiro de 2005 at o momento)realizando atendimentos clnicos em Psicologia. Considerando queem nossa atuao profissional o contato com tal objeto de estudo eproblemtica especfica foi sempre constante, optamos por trabalharcomfragmentosbaseados nasprpriasreminiscnciasdo pesquisador.Entendendo que esse acmulo de experincias e coexperincias com-partilhadas (paciente-psicoterapeuta) cotidianamente no trato dessaquesto prescinde de uma metodologia que vise objetivar a reproduoliteral de contedos clnicos, na apresentao dos fragmentos clnicosutilizamos nomes fictcios, resguardando o carter tico da pesquisa.

    Os pacientes que buscam e/ou so encaminhados ao servio dePsicologia passam, primeiramente, por uma entrevista inicial e, pos-teriormente, aps haverem aguardado por uma vaga de atendimento

    segundo critrios baseados em urgncia, se inicia de fato o trabalhoclnico. Os atendimentos so realizados com a frequncia padro deuma sesso por semana, salvo casos de maior gravidade em que, deacordo com os princpios tcnicos e ticos, podem ser realizadas maissesses no mesmo perodo. Alguns casos submetem-se modalidadede psicoterapia breve, ao passo que outros se prolongam por um per-odo de tempo maior, como os diagnosticados como depresso, por

    exemplo, no pelo diagnstico em si, mas pelas condies de desampa-ro que geralmente tais pacientes apresentam. Desta forma, o materialutilizado (fragmentos clnicos) emerge diretamente do encontro dopsiclogo com o paciente, seja durante os prprios atendimentos, sejaainda nas entrevistas iniciais. O interesse pelo material analisado sedebrua sobre os significados subjetivos dos pacientes, bem como sobreo que esses discursos podem representar e significar qualitativamente,

    levando-se em considerao as problemticas suscitadas.Como exposto anteriormente, o interesse pela problemtica nasceu

    do exerccio profissional na prtica clnica em Sade Pblica e, destaforma, o mtodoclnicopsicanalticosustentou a viabilizao da pes-

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    quisa. As sesses de psicoterapia so realizadas semanalmente com ospacientes em questo em um Centro de Sade (CS-III) de uma cidadedo interior do estado de So Paulo.

    Para o desenvolvimento do assunto proposto, ressaltamos que estadissertao encontra-se estruturada em quatro captulos. No primeirocaptulo, propomos uma reflexo sobre determinados fenmenos so-cioculturais da atualidade compreendida como Ps-Modernidade,com o intuito de delimitarmos a contemporaneidade como condio depossibilidade para uma maior incidncia dos sentimentos depressivosde uma forma geral. J no segundo captulo, tratamos da questo dadepresso propriamente dita, entendendo-a do ponto de vista clnicobem como a articulando com algumas questes discutidas no captuloanterior. No terceiro captulo, contextualizamos a rede de serviosespecficos da Sade Pblica na qual estamos inseridos profissional-mente, evidenciando a relao dos demais dispositivos ao servio depsicologia clnica, bem como trazemos a descrio do percurso comume da demanda clnica dos pacientes depressivos. No quarto e ltimo

    captulo, realizamos a apresentao dosfragmentos clnicos, seguidosdas devidas reflexes e consideraes finais, as quais nos conduzirama compreender o processo de medicalizao da depresso, nos casosespecficos apresentados, como uma prtica exacerbadamente difun-dida na atualidade e que resulta em uma nociva perpetuao do mal-estar configurando-o como depresso devido ao seu semblanteaparente, fruto do silenciar pulsional e simblico promovido.

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    1CONTEMPORANEIDADEEMAL-ESTAR

    Cada poca possui suas caractersticas peculiares. Estas, por sua vez,so sempre determinadas por condies de possibilidades especficasde seu tempo. Da mesma forma, nossa atualidade apresenta registrossocioculturais e simblicos que emergem das condies e possibilidadesatuais e que permitem constiturem-se determinados tipos de configu-raes polticas, sociais e culturais vigentes em nossos dias.

    Em todos os perodos da Histria, o homem produziu determinadossistemas de valores, regras sociais, padres de condutas e comporta-mentos, tica, tendncias culturais, leis etc., como tambm, em conse-quncia desses dispositivos pertencentes ao seu tempo, produziram-se

    determinadas formas de subjetividade, tanto individuais quantosociais/coletivas.

    A atualidade nos apresenta um colorido prprio e bem carac-terstico que se diferencia singularmente das pocas antecessoras,um caleidoscpio formado pela confluncia e fuso de mltiplas edesordenadas pinceladas na tela de nosso tempo. Esse o cenrio e opano de fundo de onde se desvelam os dramas individuais e coletivos

    caractersticos de nosso tempo, em que os indivduos posicionam-sede maneira peculiar no espao de sociabilidade, desenhando, assim,um autorretrato de nossos dias. A cena socialps-modernae espetacularnos proporciona um verdadeiro banquete de possibilidades infinitas,

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    onde desfrutar da maior gama de possibilidades tornou-se um atributoestimulado e, por que no dizer, produzido em nossos dias.

    Diante das novas configuraes socioculturais vigentes, os in-divduos exercem estilos de existncia possveis, algumas vezes emconsonncia com os trmites da sociedade e do discurso social atual,outras se apresentando aqum ou alm deste (dependendo do pontode vista), ambos caracterizando estilos de performances e modos desubjetivao especficos da atualidade.

    Ps-Modernidade, cultura e subjetivao

    Se a gente falasse menos talvezcompreendesse mais,Teatro, boate, cinema, qualquer

    prazer no satisfaz,Palavra, figura diz quanto, quantona terra tento descansar,

    O tudo que se tem no representa nada,T na cara que o jovem temseu automvel,O tudo que se tem no representa tudo,O pouco contedo considerao.(Luiz Melodia)

    na passagem da Modernidade para a nossa atualidade ps-

    moderna (Bauman, 1998) que podemos perceber com mais clarezatodas as nuances e sutilezas produtoras de mal-estar a que estamossubmetidos no nosso cotidiano. O conceito de mal-estar a que nosreferimos aqui diz respeito ao formulado por Freud (1930; 1992),quando este reconhece o homem ocupando um lugar de eterna incom-patibilidade entre suas necessidades individuais frente s exignciassociais e culturais. Em nossa atualidade isto no diferente e, de

    qualquer maneira, estamos expostos a condies especficas que noscolocam diante do mesmo sentimento de mal-estar que outrora foiformulado por Freud, contudo, sob circunstncias especficas bemcaractersticas de nosso tempo.

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    So tempos em que inclusive o prprio tempo tornou-se algo ef-mero e impreciso, em virtude da velocidade dos acontecimentos e damultiplicidade de possibilidades que se oferecem aos nossos olhos.

    Nossa atualidade caracteriza-se principalmente, entre outras coisas,pela sensao de liberdade individual plena, to sonhada durante tantotempo. Liberdade esta que no momento presente mostra-se carentede referenciais slidos, tornando cada vez mais difcil a visualizaode um ponto norteador, algo que indique uma coisa semelhante a umsentimento de certeza para o sujeito em suas escolhas. Nessa perspec-tiva, a Ps-Modernidade oferta aos indivduos uma liberdade aparente custa de um sentimento de insegurana generalizada, e dessa formaos mal-estares ps-modernos vo se caracterizando pela liberdadefluida, e no pela opresso e represso de outrora. Se anteriormente astradies e tabus aprisionavam os indivduos, castrando-os assim desuas possibilidades, hoje, diante da to sonhada liberdade individual,o sujeito pode desfrutar dessa nova condio, contudo, no sem algumcusto. A liberdade individual em busca da felicidade e de toda possibi-

    lidade de prazer concretiza-se ao preo de um sentimento avassaladorde insegurana, uma vez que nada garantido, nada definitivo eslido como foi alguma vez em pocas anteriores. Os mal-estares,aflies e ansiedades tpicos do mundo ps-moderno resultam dognero de sociedade que oferece cada vez mais liberdade individualao preo de cada vez menos segurana (Bauman, p.156).

    Diante disto, o cenrio que se forja independe dos esforos indivi-

    duais para se conquistar algo semelhante a um sentimento de certeza esegurana: a prpria configurao sociocultural que se delineia nos diasatuais a precondio para uma vivncia em desamparo. Desamparoeste no sentido de que carecemos de referncias slidas de identificao,uma vez que se tornou impossvel fixar-se a um determinado tipo deidentidade em um cenrio em que a transitoriedade dos referenciais perptua e contnua.

    A conjuntura do cenrio contemporneo pressupe um movimentoincessante, em que nenhuma possibilidade de fixidez se faz vivel,ao preo de que fixar-se e/ou identificar-se significa perder, alhures,novas oportunidades e possibilidades que se fazem presentes no ver-

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    tiginoso movimento da contemporaneidade. Uma dita possibilidadede estabilidade, em todos os sentidos, tornou-se algo raro e escassono mundo, e a transitoriedade de possibilidades abre um vasto lequede afazeres e atuaes para os indivduos, em todas as esferas de suaexistncia, tanto individual quanto social/coletiva. As multipossibili-dades esto escancaradas diante de nossas faces, ofertando-se semprecomo bens de consumo, seja na esfera profissional, seja na amorosa,cultural, religiosa e at na ideolgica. A escolha racional na era dainstantaneidade significa buscar a gratificao evitando as consequn-cias, e particularmente as responsabilidades que essas consequnciaspodem implicar (idem, 2001, p.148).

    Na corrida do sujeito para ascender em sua vida particular e social(ascenso esta que sempre visa realizao de um desejo de felicidadee bem-estar), esse percurso para se chegar a tal fim se mostra tortuoso eincerto a cada passo que se d em direo ao objetivo almejado. No meiodo caminho, deparamo-nos com desvios impostos pela prpria dinmicado cenrio contemporneo, dada a instabilidade brutal das circunstncias

    atuais. No mesmo momento em que se conquista algo, logo se est sujeitoa perd-lo, uma vez que no nos beneficiamos de nenhuma garantia deque as conquistas sejam eternas ou ao menos duradouras. Desta forma,a incerteza um sentimento que se faz permanente, que habita o sujeitoem todos seus movimentos, e no algo passageiro que se evidenciariaapenas em determinadas situaes ou circunstncias especficas, mas umsentimento que se tornou genuno no homem contemporneo, dada a

    instabilidade dos referenciais na atualidade.Diante das infinitas possibilidades e ofertas de todos os tipos que

    se apresentam, a tarefa de escolher torna-se um fardo angustiante,em virtude do excesso fulminante de alternativas e possibilidades queaparecem. O momento da escolha ento um outro vrtice das condi-es propiciadoras de mal-estar aos sujeitos na atualidade. A dvidapassa a ser um sentimento perptuo, pois feita determinada escolha,

    no se sabe se a opo foi de fato a mais acertada, dada a infinidade depossibilidades disposio de todos.

    O discurso social, veiculado pelos meios de comunicao miditicos,transmite uma mensagem simblica e representativa de toda maleabili-

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    dade possvel, bem como desenha a caricatura de um mundo permeadopela indeterminao em que tudo pode acontecer o tempo todo.

    A instantaneidade (anulao da resistncia do espao e liquefaoda materialidade dos objetos) faz com que cada momento parea tercapacidade infinita; e a capacidade infinita significa que no h limitesao que pode ser extrado de qualquer momento por mais breve e fugazque seja. (idem, p.145)

    A prpria cadncia do samba dos dias de hoje pressupe em seu

    ritmo de execuo conquistas pouco duradouras e com nenhum atri-buto de garantia eterna. Dessa forma, pode-se aguardar ansiosamentea prxima aquisio ou a to atraente nova possibilidade, embora aindase tenha em mos a conquista anterior e mesmo que ainda no se tenhacolhido devidamente os frutos desta. At os prprios prazeres advindosdessas conquistas tornaram-se diferenciados, uma vez que a satisfao,outrora proporcionada pela aquisio de algo que h muito se sonhou e

    se buscou, agora passa a ser o gosto pela quantidadede conquistas acu-muladas seguidas de suas sucessivas perdas. Uma coleo de vitrias-relmpago e parciais se configura como um ideal, em um cenrio emque a novidade se esvai antes mesmo de amadurecer. Pouqussimotempo se tem para desfrutar de alguma vantagem sobre o que se ob-tm: os empregos no so mais sinnimos de garantia e estabilidade, apermanncia naqueles depende da atualizao profissional em tempo

    recorde, ao mesmo tempo em que nem a permanncia definitiva passaa ser to almejada, haja vista a gama de possibilidades que se perdetornando-se fidedigno a uma nica funo, por exemplo.

    A atualidade, com seus trmites simblicos e seus dispositivosintrnsecos, exige do indivduo performances sucessivas, tendo estasa caracterstica principal da valorizao de uma capacidade de desligar-sede tudo que se apresenta como duradouro e slido: este o ponto

    principal do estilo de existncia estimulada pela Ps-Modernidade.A velocidadecom que as coisas acontecem em um mundo em que asfronteiras deixaram de existir, somada distncia que se tornou nulapor conta dos avanos das tecnologias da internet, demanda do sujeito

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    sempre uma leveza em seus movimentos, a fim de torn-los to rpidosquanto a evoluo das possibilidades.

    Nesse mundo, poucas coisas so predeterminadas, e menos ainda ir-revogveis. Poucas derrotas so definitivas, pouqussimos contratempos,irreversveis; mas nenhuma vitria tampouco final. Para que as possibi-lidades continuem infinitas, nenhuma deve ser capaz de petrificar-se emrealidade para sempre. Melhor que permaneam lquidas e fluidas e tenhamdata de validade, caso contrrio, poderiam excluir as oportunidadesremanescentes e abortar o embrio da prxima aventura. (idem, p.74)

    A nova configurao de tempo e espao, forjada nos dias de hoje,liquida a possibilidade de cristalizar-se um passado histrico, emvirtude da efmera instantaneidade dos acontecimentos, valorizan-do, desse modo, um presente contnuo e fugaz, em que no existemcondies de perpetuar coisa alguma. Nenhuma obra de arte capazde eternizar-se no tempo como acontecia em outras pocas, nenhuma

    msica permanecer significativa e se tornar um clssico nos diasatuais, por exemplo. Em um mundo em que tudo pode ser copiado eposteriormente modificado, adequado e adestrado, conforme necessi-dades das mais variadas ordens, o momento seguinte da criao sujeitaa obra a mutilaes de todas as formas. Uma msica que se tornarconhecida no escapar em pouco tempo de ser remixada para poderser executada em ambientes alheios a sua origem (pistas de dana e

    festas raves, por exemplo), demolindo o que lhe existia de singular eoriginal. A prpria originalidade tornou-se algo cada vez mais difcilde se concretizar, especialmente em uma configurao sociocultural emque a sensao de que tudo j foi feito e inventado se faz to presente.O fim das utopias indica a incredulidade humana no potencial criati-vo e transformador. Dessa maneira, os dolos foram derrubados e osnovos referenciais surgem e desaparecem antes de serem vivenciados

    significativamente. Assim, a possibilidade de fazer e fazer-se sentido,produzindo significados genunos, nos dias atuais, torna-se obsoleta.Toda forma de produo artstica e cultural estar sujeita ao processo deglobalizao, descaracterizando suas qualidades singulares e regionais

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    no globo terrestre, o que antes poderia diferenci-la e dar-lhe certaidentidade autntica. Todas as produes no cenrio ps-modernonascem da miscelnea produzida pelos entrecruzamentos representa-tivos e simblicos, os quais esto cada vez mais vazios de significadosdevido a sua ascenso e queda metericas.

    Nada pode ser conhecido com segurana e qualquer coisa que seja co-nhecida pode ser conhecida de um modo diferente um modo de conhecer to bom, ou to ruim (e certamente to voltil e precrio) quanto qualqueroutro. Apostar, agora, a regra onde a certeza, outrora, era procurada, ao

    mesmo tempo que arriscar-se toma o lugar da teimosa busca de objetivos.Desse modo, h pouca coisa, no mundo, que se possa considerar slida edigna de confiana, nada que lembre uma vigorosa tela em que se pudessetecer o itinerrio da vida de uma pessoa. (idem, 1998, p.36)

    Deste modo, toda atuao do sujeito passa a ser uma sequnciade aventuras, sempre cambiantes e incertas, em busca de algo que se

    faz necessrio e vital em um curto perodo de tempo representado emsua vida. Um presente fracionado que to logo se tornar passado,com prazos de validade determinados pelas sucessivas sequnciasde novos objetos e objetivos vindouros na esteira do ritmo de vidaps-moderno.

    Lanar-se no vasto leque de possibilidades infinitas, no desfila-deiro das imprevisibilidades e encruzilhadas, substitui, hoje em dia,

    a antigaperformanceque se realizava pela busca de metas e realizaesde projetos pessoais.

    Permeados que somos por um cenrio marcado decisivamente porindeterminaes constantes, as possibilidades de se investir em projetosde longo prazo tornaram-se praticamente nulas.

    O ser humano constitudo de projetos, sejam estes conscientesou inconscientes, e a capacidade de antevermos nossas aes no futuro

    sempre nos legou possibilidade de visualizar nosso devir ao longodo tempo. Sendo assim, caracterstica do homem a necessidade deconstruir projetos sobre sua prpria existncia, os quais sempre lheserviram de ponto norteador e bssola rumo realizao de seus ideais

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    almejados. Todos os projetos demandam tempo para serem efetivadose realizados, a prpria construo subjetiva daqueles necessita de umperodo fecundo para sua constituio simblica e representativa, bemcomo para sua possvel realizao e concretizao. Mas o fato queatualmente as condies caractersticas do mundo internetizado e semfronteiras, em que o passado rapidamente esquecido e o presenteefmero o que importa em primeira instncia, acabaram por podarconsideravelmente as possibilidades de projetarem-se ambies paraum futuro a mdio e longo prazo. Por esta via, os projetos pessoaisdeixam de fazer sentido, uma vez que o tempo valorizado por nossacultura atual no nos permite pensar em prazos longnquos. O tempode realizao das atividades, bem como das mais variadas conquistasque os indivduos podem adquirir, no permite que tais realizaesamaduream a ponto de tornarem-se significativas em um sentidosubjetivo. Assim, a possibilidade de experienciar, viver a experinciade fato das coisas e dos acontecimentos, retirada do sujeito em temposdemasiadamente acelerados.

    Num mundo em que coisas deliberadamente instveis so a matria-prima das identidades, que so necessariamente instveis, preciso estarconstantemente em alerta; mas acima de tudo preciso manter a prpriaflexibilidade e a velocidade de reajuste em relao aos padres cambiantesdo mundo l fora. (idem, 2001, p.100)

    Assim, toda maleabilidade demandada dos indivduos no criamais as precondies para que se solidifiquem determinados projetose modos de ser e estar no mundo. Da mesma forma, ao contrrio doque ocorria em pocas passadas, em que a busca do sujeito por firmar-se a uma identidade, algo que lhe identificasse singularmente e, destaforma, lhe fosse possvel conquistar um reconhecimento nico diantedos outros, hoje em dia, a cristalizao de tal identidade tornou-se

    praticamente impossvel e, de fato, at indesejada. Em meio aos ml-tiplos, confusos e desordenados referenciais, que em si no garantemqualquer possibilidade de reconhecimento vitalcio, o sujeito passaa evitar identificaes slidas, ao passo que sua ascenso no cenrio

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    espetacular (Debrd, 1997) depende justamente de sua capacidadede assumir vrias identidades, cada qual eficaz em um determinadomomento especfico da cena social. no cenrio concebido comoespetculo que aperformanceexibicionista dos sujeitos visa ao reco-nhecimento contnuo de seus espectadores, e para isso paga-se o preodas identidades fluidas e vazias de sentido e significado.

    O indivduo deve estar a todo momento preparado para o que hpor vir, sem poder apegar-se demasiadamente ao passado, pois nomundo contemporneo no existe lugar possvel para saudosismosde um passado que se esvai com facilidade. O desapego pela ambiode eternizar projetos e relacionamentos precondio para poderacompanhar o curso da sociedade contempornea. No se estenderem atividades duradouras, manter-se leve diante do peso dos aconte-cimentos para que se possa, com facilidade, abandonar determinadaposio a fim de usufruir de novas possibilidades. Esta a posturaexigida dos indivduos em uma sociedade de referenciais descartveise suprfluos em termos de durabilidade.

    Manter o jogo curto significa tomar cuidado com os compromissos alongo prazo. Recusar-se a fixar-se de uma forma ou de outra. No se prendera um lugar, por mais agradvel que a escala presente possa parecer. No seligar a vida a uma vocao apenas. No jurar coerncia e lealdade a nada ou aningum. [...] Proibir o passado de se relacionar com o presente. Em suma,cortar o presente nas duas extremidades, separar o presente da histria.

    Abolir o tempo em qualquer outra forma que no a de um ajuntamentosolto, ou uma sequncia arbitrria, de momentos presentes: aplanar o frouxodo tempo numpresente contnuo. (Bauman, 1998, p.113)

    Toda a instabilidade produzida na atualidade, em virtude da noo detempo predominante (o presente efmero e fugaz), somada diminuiodo espao de um mundo virtual sem fronteiras, desloca o sujeito de um

    centro norteador e o lana em um espectro de expectativas futuras, demodo constante, que o impele a uma postura de alerta a todo momento.

    Frente irrelevncia do espao, fruto da aniquilao do tempo,as possibilidades subjetivas de experimentar o mundo em condies

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    de internaliz-lo, de tornar os dados do mundo representantes sim-blicos de contedos individuais, e dessa forma dar significados sexperincias vividas, tornam-se praticamente impossveis. Em outraspalavras, o tempo da contemporaneidade no favorece a subjetivaodas experincias, produzindo, assim, sujeitos vazios de significados ereferenciais de identificao.

    [...] atualmente, o problema da identidade resulta principalmente dadificuldade de se manter fiel a qualquer identidade por muito tempo, davirtual impossibilidade de achar uma forma de expresso de identidadeque tenha boa probabilidade de reconhecimento vitalcio, e a resultantenecessidade de no adotar nenhuma atividade com excessiva firmeza, afim de poder abandon-la de uma hora para outra, se for preciso. [...] tudoisso revertendo central e mais dolorosa das ansiedades: a que se relacionacom a instabilidade da identidade da prpria pessoa e a ausncia de pontosde referncia duradouros, fidedignos e slidos que contribuiriam paratornar a identidade mais estvel e segura. (idem, p.155)

    Podemos perceber que no mundo como nos apresentado hoje, emque as coisas materiais, os bens de consumo, as produes culturais,as diretrizes polticas e culturais, todas se mostrando leves e incertas,a tarefa do sujeito em se adequar a esse movimento perptuo rduae lhe custa abdicar de toda e qualquer possibilidade de segurana. Ainsegurana cclica tornou-se o peso do homem contemporneo, que

    desfruta desenfreadamente do presente instantneo e evita, assim,consequncias duradouras e slidas que possam repercutir no tempo.Como Freud (1930; 1992) apontou em sua metapsicologia, na defesacontra o sofrimento e o desprazer que habita o prprio sofrimento emal-estar em si. Na atualidade, todas essasperformancesatribudasao sujeito contemporneo (estas como respostas existenciais s deman-das socioculturais de nossos dias) causam seu prprio sofrimento.

    Se por um lado toda maleabilidade e leveza do sujeito garantem-nona participao do cenrio atual, por outro lado os indivduos padecemdas consequncias desses modos de ser e estar no mundo. Se consegui-mos acompanhar as exigncias das demandas do discurso social, isto

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    no se faz sem nenhuma quota de sofrimento, e este reside justamentena concretizao de um merogozoalcanado por tais posicionamentos,entre outras coisas; realizao de um gozo na medida em que tudoparece ser possvel e realizvel sem maiores impedimentos internos ouexternos. O momento seguinte s conquistas-relmpago o sentimentode vazioe incompletude eterna, mesclado de indiferena e mal-estarque se concretizam na prpria dinmica do funcionamento espetacularde nosso cenrio social.

    Diante das estruturas, ou (des)estruturas, e dispositivos ps-moder-nos, o sujeito permanece deslizando emperformancessempre titubeantese incertas, vivenciando nessa dialtica o mais intenso sentimento dedesamparo e insegurana. A realizao de pequenos e fugazes prazeres(sempre que possveis) torna-se um mpeto aos indivduos, e ao contrriodo que poderia se pensar, presenteia-os com as sensaes eternas de tdio,insatisfaoe mal-estartpicos de nossa atualidade.

    A cena social (ou o palco) do espetculo

    ... o mensageiro do sonho, nesse terrenoque tremeDa magra mo estendida, da paixoque grita e gemeDas curvas do firmamento, da claridadeda luaSolido do mundo novo, a batucadana rua...O espetculo no pode parar!Quando a dor se aproxima fazendoeu perder a calmaPasso uma esponja de rima nos ferimentosda almaO espetculo no pode parar!

    (Cordel do Fogo Encantado)

    Na cano O espetculo, mencionada aqui de forma ilustrativa,o personagem identificado na letra um palhao, que, em meio a seu

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    espetculo, se esfora para calar suas aflies e angstias, a fim de darcontinuidade ininterruptamente a sua exibio diante de seus curio-sos espectadores. Esse personagem, bem como sua postura diante daplateia, e a prpria plateia representam dramaticamente cada um dens diante da cena social forjada em nossa atualidade.

    Debrd (1997) definiu sabiamente nossa sociedade contemporneacomo uma genuna sociedade do espetculo. De 19671para c, suasconsideraes tornaram-se demasiadamente atuais, demonstrandosua brilhante capacidade intuitiva e crtica no momento em que pdeantever o desdobramento scio-poltico-cultural do sculo XXI.

    A contemporaneidade, regida sob as gides do capitalismo e do con-sumismo exacerbado, tem em suas mercadorias e produtos a matria-prima para a criao e produo das condies espetaculares.

    Basicamente, o cenrio concebido como espetculo diz respeitoa um espao de sociabilidade, em que os indivduos utilizam-se dosartefatos disponveis no mercado capitalista para elevarem-se a umaposio em que possam, ou imaginam poder, ser sempre reconhecidos

    pelo(s) outro(s). A produo frentica dos bens de consumo convocaos indivduos a ocupar um lugar que representa determinado statuse que se concretiza na rpida aquisio e no subsequente abandonodos signos flicos (objetos de desejo) na sociedade ps-moderna. Asucessiva substituio desses bens pouco durveis o que garante osucesso dos sujeitos.

    A prpria finalidade do palco social no permitir um fim ao

    desejo dos consumidores, produzindo uma insaciabilidade contnua,mantendo-se, desse modo, o eterno retorno do consumo espetacular.No espetculo, imagem da economia reinante, o fim no nada, odesenrolar tudo. O espetculo no deseja chegar a nada que no sejaele mesmo (idem, p.17).

    Como dissemos, os produtos e acessrios fabricados e expostosdesenfreadamente nas vitrines, que aguardam o apetite voraz e insa-

    civel dos consumidores, servem como adereos a serem ostentadospelos atores no espetculo.

    1 Ano de publicao de Sociedade do espetculo, de Guy Debrd.

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    Ostensivamente, os espetculos existem para dar vazo agitao doseus ntimos que lutam para se expor; de fato, so os veculos da sociedadede consumo de uma educao sentimental: expem e carimbam com

    a aceitao pblica o anseio por estados emotivos e suas expresses comos quais sero tecidas as identidades inteiramente pessoais. (Bauman,2001, p.102)

    Nesse sentido, podemos identificar na dinmica da cena contem-pornea um narcisismopropriamente dito,expressando-se por meiodo exibicionismo o narcisismo dos indivduos como mola propulsora

    das performances espetaculares. A sociedade do espetculo pressupeuma cultura essencialmente narcisista, na qual o eudeve a todo ins-tante se expor ao outro, demandando sempre seu reconhecimento eaceitao. Desta forma, os indivduos executam umaperformancedasaparncias, em que a exterioridade apresentada de forma esttica tentacapturar os olhares dos espectadores. Na atualidade, todos desejamseus 15 minutos de fama, em que podero (a)parecer na cena social

    e, consequentemente, ter suas necessidades narcsicas alimentadaspelas atenes voltadas em sua direo.O cenrio espetacular convida a todos para ascender ao palco do

    exibicionismo ps-moderno. As condies so criadas a todo instante,instigadas pelo discurso social que prioriza as personalidades capazesde se exporem coletividade, os exibicionistas descolados de nossaatualidade, aqueles que no se inibem diante do pblico vido por

    performancesdesinibidas e extrovertidas. O outro social esse que seconstitui pelo discurso miditico incluindo em sua mensagem as ca-tegorias de valoraes forjadas na atualidade, constitudas de padresalheios s prprias personalidades individuais , este discurso vigentedemanda sempre do indivduo uma versatilidade e uma incapacidadede se ruborizar diante da repercusso de sua exibio na cena social.

    Qualquer um pode aparecer no espetculo para exibir-se publicamente[...]. Quando a posse de um status miditico assume importncia mui-tssimo maior que o valor daquilo que se foi capaz de fazer realmente, normal que esse status seja transfervel com facilidade e confira o direitode brilhar, de modo idntico, em qualquer lugar. (Debrd, 1997, p.174)

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    Desta forma, o (a)parecer na cena social tornou-se questo de so-brevivncia para as individualidades, dada a primazia que relegadaa tais performances nos dias atuais. (A)parecer, no cenrio social, emambos os sentidos que a escrita da palavra pode significar neste contex-to, ou seja, aparecerdiante da massa com toda potncia dos atributosdo exibicionismo, ao mesmo tempo em que essa apario, no mximo,faz-se por apenasparecer(parecer-se, assemelhar-se) uma determinadaimagem idealizada, parecer-se com algo ou algum.

    No incio do capitalismo, a dialtica subjetiva dos indivduos con-sistia em uma degradao do ser para o ter. O sucesso naquele momentoespecfico, bem como as realizaes e conquistas satisfatrias para oego, dependia de quanto poderia acumular-se em bens e dinheiro.Ter posses que representassem sua riqueza capital era o que moviaos indivduos em termos de dinmicas subjetivas na sociabilidadedaquela poca, enquanto hoje em dia, ter j no representa muito seisto de fato no servir para a apario diante do cenrio espetacular.Temos ento, na atualidade, um deslizamento do ter para oparecer

    ou (a)parecerdiante do espao social e, neste sentido, toda realidadeindividual torna-se social.

    O que est ocorrendo no simplesmente outra renegociao dafronteira notoriamente mvel entre o privado e o pblico. O que pareceestar em jogo uma redefinio da esfera pblica como um palco em quedramas privados so encenados, publicamente expostos e publicamente

    assistidos. (Bauman, 2001, p.83)

    fcil percebermos como as exibies tornaram-se performancesexcessivamente estimuladas e valorizadas nos dias de hoje, haja vistaos tantos programas de reality shows, por exemplo, alm de toda avariabilidade possvel de relacionamentos viabilizados pela internet,onde o espao de sociabilidade forjado da maneira que o indivduo

    quiser, entre outros exemplos. Tanto na rede virtual quanto nosprogramas televisivos mencionados, o que est em evidncia sosempre o desfile e a exibio das personalidades. Nesse cenrio, oexibicionismo, produto da cultura narcisista vigente, encontra seu

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    palco de apresentao e reconhecimento, exercendo umaperformancedas aparncias e das imagens.

    O espetculo produz signos representados por imagens, imagensestas idealizadas pelos espectadores que sempre demandam mais emais signos que passam a servir de smbolos identificatrios em umcurto perodo de tempo. No momento seguinte, como o espetculono pode parar, outros smbolos sero apresentados diante de nossosolhos, outros objetos de desejo se constituiro por meio da produode pseudonecessidades concebidas na atualidade espetacular. Em umacultura em que a aparncia fundamental, a produo de imagensespetaculares garante a fidelidade do pblico ao espetculo. Consi-derado de acordo com seus prprios termos, o espetculo a afirmaoda aparncia e a afirmao de toda vida humana isto , social comosimples aparncia (Debrd, 1997, p.16).

    Esse corpo de lama que tu v apenas a imagem que sou. (Science &Zumbi, 1996)

    Por outro lado, um espetculo depende de espectadores para seusucesso, e que aqueles se deliciem com as apresentaes, uma plateiaque presenteie seus protagonistas com aplausos e reconhecimento.

    Ns todos estamos, enquanto individualidades, em convvio dialticocom a coletividade e o social, sempre personificando atitudes e posturassubjetivas diferentes que se mesclam constantemente, ao passo que

    somos inseridos no corpo social sempre nas duas condies: como pla-teia/espectadores e como personagem protagonista de algum episdiorelmpago de nossa existncia particular exposta socialmente.

    Neste sentido, todos somos atores e espectadores da sociedade doespetculo, quer queiramos quer no. A realidade surge no espetculo,e o espetculo real. Essa alienao recproca a essncia e a base dasociedade existente (Debrd, 1997, p.15).

    Para o espectador, o espetculo hipntico. Considerando queo cenrio espetacular da atualidade forja-se da matria-prima dascondies ps-modernas, ou seja, a velocidade, instantaneidade efugacidade dos fatos principalmente, ento temos sujeitos que, na

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    turbulncia das imagens espetaculares, buscam incessantemente poridentificaes. Os signos produzidos na sequncia estonteante do rit-mo da atualidade convocam os sujeitos a uma completa passividadesubjetiva, pela qual, como espectadores, somos alienados de nossasreais necessidades e desejos. Os espectadores tornam-se incapazes dejulgar, avaliar e criticar qualquer coisa que seja, pois isso requer umtempo de contemplao impossvel de se concretizar nos dias atuais.A sucessiva sequncia de imagens cria as condies da alienao:

    O fluxo de imagens carrega tudo, [...] como perptua surpresa arbitr-

    ria que no deixa nenhum tempo para a reflexo, tudo isso independentedo que o espectador possa entender ou pensar. Nessa experincia concretada submisso permanente encontra-se a raiz psicolgica da adeso tounnime ao que a est; [...] o discurso espetacular faz calar, alm do que propriamente secreto, tudo o que no lhe convm. O que ele mostra vemsempre isolado do ambiente, do passado, das intenes, das consequncias.(Debrd, p.188)

    Em todos os sentidos, o espetculo se encarrega da tarefa de dicoto-mizar o tempo, tornando-o um presente fugaz e efmero, excluindo osvnculos do passado e futuro, em que a nica temporalidade possvel o presente perptuo.

    Esse vivido individual da vida cotidiana separada fica sem linguagem,sem conceito, sem acesso crtico ao seu prprio passado, no registradoem lugar algum. Ele no se comunica. incompreendido e esquecido emproveito da falsa memria espetacular do no memorvel. (idem, p.177)

    O sucesso da cena espetacular consiste justamente em ludibriaro olhar dos espectadores com movimentos rpidos e sobrepostos, deforma que qualquer novidade no possa jamais se tornar velha, masantes seja substituda por mais uma novidade!

    Em meio aos diversos estmulos mercadolgicos e ideolgicos(estes subjacentes aos primeiros), os indivduos pasmam embasbaca-damente em um primitivo estado de alerta, no qual a ateno requer odesligamento de tudo que possa desconcentrar-lhe, pois participar do

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    espetculo demanda estar de prontido s novas sequncias infindveisde imagens e smbolos miditicos.

    Nunca foi possvel mentir com to perfeita ausncia de consequ-ncias. O espectador o suposto ignorante de tudo, no merecedor denada. Quem fica sempre olhando, para saber o que vem depois, nuncaage: assim deve ser um bom espectador (idem, p.183).

    Diante desse cenrio forjado em nossos dias, os indivduos noso mais capazes de distinguir eficazmente seus prprios desejos enecessidades daquelas pseudonecessidades instigadas por um discursooutro. No momento em que determinadas necessidades tornam-seimportantes socialmente, ou seja, so valorizadas como prioridadesnaquilo em que elas so capazes de representar em termos de signos/smbolos de status, o consumo de determinados produtos e estilos de(a)parecer na cena social torna-se um imperativo ao sujeito. Aderirou atender s demandas espetaculares tem seu custo (o de abdicarde representaes fixas e individuais), e tem ainda a no participaodesta cultura vigente, pois no aderir ao discurso atual significa estar

    margem da coletividade, no podendo ser reconhecido por esta.No entrecruzamento das pseudonecessidades produzidas pelo

    espetculo com a exibio brilhosa das imagens elevadas ao statusdeideais a serem consumidos, o indivduo desencontra-se de si mesmo.As pseudonecessidades so produzidas a partir do momento em queo estmulo ao consumo se faz como a ordem do dia. Na nsia por umsentimento de pertena nesta sociedade, as individualidades apressam-

    se por adquirir os artefatos mais modernos do mercado, os adereos daltima moda, a mais nova verso de determinado produto, tudo issoacontecendo antes mesmo das aquisies anteriores ofuscarem-se porsua prpria conta. O consumo de produtos, os quais so idealizadosem imagens que representam as pseudonecessidades (necessidadesproduzidas pelo discurso social), produz assim as condies de isola-mento, o verdadeiro afastamento entre o homem e o homem.

    Em ltima instncia, o que temos um cenrio alienador para ossujeitos, no qual as constelaes de imagens valorizadas por um dis-curso outro (social) convocam essas individualidades a vivncias queno lhe dizem respeito em primeira ordem, mas que, contudo, foram

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    mitigadas por meio da produo das pseudonecessidades sociais. Odesejo dos espectadores no se localiza em lugar algum, dado que oespetculo baseiase na sucessiva substituio dos smbolos de statusno cenrio contemporneo.

    A alienao do espectador em favor do objeto contemplado (o queresulta de sua prpria atividade inconsciente) se expressa assim: quantomais ele contempla, menos vive; quanto mais aceita reconhecer-se nasimagens dominantes da necessidade, menos compreende sua prpriaexistncia e seu prprio desejo. Em relao ao homem que age, a exte-

    rioridade do espetculo aparece no fato de seus prprios gestos j noserem seus, mas de um outro que os representa por ele. por isso que oespectador no se sente em casa em lugar algum, pois o espetculo estem toda parte. (idem, p.24)

    Nesse entrelaamento de performances, mesmo que o indivduorecuse sua participao nesse cenrio espetacular, ainda assim sua re-

    sistncia ao modelo de sociedade vigente se expressar sob os mesmosaxiomas da cultura dominante. O espetculo est em toda parte, e astentativas de escapar cena, do mesmo modo, emergem, fazendo-seexistir sob os trmites espetaculares. Isto porque as individualidades spodem expressar-se utilizando a mesma linguagem em que se formamas culturas dominantes, mesmo que a inteno seja a no participaoneste cenrio da atualidade.

    O indivduo que foi marcado pelo pensamento espetacular empobre-cido, mais do que qualquer outro elemento de sua formao, coloca-se deantemo a servio da ordem estabelecida, embora sua inteno subjetivapossa ser o oposto disso. Nos pontos essenciais, ele obedecer linguagemdo espetculo, a nica que conhece, aquela que lhe ensinaram a falar. Elepode querer repudiar essa retrica, mas vai usar a sintaxe dessa linguagem.Eis um dos aspectos mais importantes do sucesso obtido pela dominao

    espetacular. (idem, p.191)

    A dominao espetacular plena sobre as subjetividades individuaise/ou coletivas, ao passo que a tentativa de fuga deste regime social se

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    revestir das malhas finas do prprio espetculo, pois a cena espetacular real e cria a seu bel-prazer a realidade vivida em nossa atualidade. Umexemplo disso a representao que a violncia, de uma forma geral, tempara aos espectadores nos dias de hoje. As mortes, os assassinatos, osacidentes e roubos, enfim, tudo isso quase que se tornou algo da ordemdo natural, ao mesmo tempo em que exposto nas primeiras pginas dosjornais e garante a bilheteria e a audincia inquestionvel do espet-culo. As prpriasperformancesda violncia na atualidade desdobram-sesob essa mesma gide, como, por exemplo, as sucessivas rebelies empresdios, em que os presos expem suas armas s equipes de TV, ou aguerra do trfico, em que seus atores protagonistas, procura das lentesdas cmeras, compem-se tanto de traficantes quanto da prpria polciae suas operaes especiais etc. E mesmo aquela violncia privada queocorreu sem pretenses espetaculares, esta tambm ser exposta demodo espetacular pelos veculos de comunicao miditicos. A capturae a produo de imagens espetaculares concretizam a poltica do po ecirco para as individualidades, que buscam nos trmites do espetculo

    suas referncias de identificao.Em suma, no cenrio social contemporneo, tal como foi definido

    como uma verdadeira sociedade do espetculo, todos somos prota-gonistas e espectadores. O palco de teatralidade das individualidades alimentado por nosso narcisismo, enquanto atores da cena social, esustentado pelos picos de audincia, enquanto plateia das iluses e davivncia das pseudonecessidades, produzidas por tal configurao so-

    ciocultural. Assim, a alienao dos sujeitos um fato cclico e perptuo,pois a identificao passiva do espectador o impele a uma inrcia sub-jetiva, na qual as pseudonecessidades tomam o lugar de seu verdadeirodesejo e, do mesmo modo, sua atuao enquanto ator/protagonista ornamentada pelos smbolos espetaculares que, em ltima instncia,representam sempre apenas uma simples e efmera (a)parncia.

    Estranhos ao espetculo

    Todas as sociedades produzem seus estranhos.A partir do momento em que temos um discurso que prioriza e

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    privilegia determinadas formas de conduta e modos de ser e estar nomundo, estamos diante de um cenrio predeterminado que os indiv-duos so impelidos a ocupar.

    Na atualidade, o cenrio espetacular ps-moderno autentica ereconhece os sujeitos-personagens capazes de participar efetivamentede seus trmites, ao passo que relegam ao limbo os que, por diversosmotivos, apresentam-se aqum ou alm do discurso social vigente.

    Em todas as pocas, desde o momento em que os seres humanospassaram a se constituir em grupos, sempre houve, por assim dizer, umadiviso de classes: as classes dominantes e as classes dominadas.

    Todas as sociedades criam suas determinadas regras, bem comoseus ideais supervalorizados, contudo, jamais criam as possibilidadespara que todos os indivduos e grupos sociais consigam conquistarseu quinho de participao na cena proposta. Nos dias de hoje, essasituao facilmente visvel. De fato, a maior parte da populao(tomando-se o caso do Brasil) est margem do ideal de felicidade ebem-estar estimulado pelo discurso capitalista e consumista. O nmero

    de excludos sempre superior ao contingente de pessoas que podemdesfrutar das maravilhas do mundo novo.

    Em uma sociedade de consumo, os indivduos necessitam depoder aquisitivo considervel para conseguir usufruir dos produtosque lhes garantiriam acesso ao espetculo. Em sua raiz, a essncia doideal capitalista pressupe sempre uma pequena elite dominadoraem contraposio a uma maioria de excludos e marginalizados. As

    formaes de qualquer espcie de elite dependem, intrinsecamente,da produo dos excludos e dominados. Desta forma, a prpria pos-sibilidade de participao efetiva por parte das classes assujeitadastorna-se praticamente impossvel, uma vez que as condies bsicaspara a viabilizao disso lhes so retiradas de antemo. Geralmente, assubclasses possuem subempregos (quando possuem), sobrevivendo desubsalrios, construindo subestilos de existncia, sendo perpetuamente

    subjugadas pelas elites espetaculares.

    Se os estranhos so pessoas que no se encaixam nos mapas cog-nitivos, moral ou esttico do mundo [...] se eles poluem a alegria com

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    a angstia, ao mesmo tempo em que fazem atraente o fruto proibido;se, em outras palavras, eles obscurecem e tornam tnues as linhas defronteira que devem ser claramente vistas; se, tendo feito tudo isso,

    geram a incerteza, que por sua vez d origem ao mal-estar de se sentirperdido ento cada sociedade produz esses estranhos. [...] ela nopode seno gerar pessoas que encobrem limites julgados fundamentaispara a sua vida ordeira e significativa, sendo assim acusadas de causara experincia do mal-estar como a mais dolorosa e menos tolervel.(Bauman, 1998, p.27)

    Assim sendo, podemos compreender que esses estranhos, pro-duzidos no mago das condies sociais, representam uma parcela defracassados e incapazes. Ao mesmo tempo em que sua existncia precondio para a possibilidade de existncia das elites, esses exclu-dos so identificados pelos signos do fracasso social. So, por assimdizer, a vergonha do ideal de sucesso espetacular, esses que devem serescondidos do palco social, pois sua simples presena incomoda as clas-

    ses dominantes, uma presena ameaadora, representantes-smboloda misria e da falta de sorte. A sociedade proclamou-se oficialmenteespetacular. Ser conhecido fora das relaes espetaculares equivale aser conhecido como inimigo da sociedade (Debrd, 1997, p.180).

    Hoje em dia, todo o espectro de instabilidades e incertezas dosdispositivos ps-modernos estes se concretizando na liquefaodas instituies e dos bens durveis , tudo isto perpetua, por fim, a

    marginalizao dos excludos da sociedade espetacular. Indivduosque nascem e crescem sob condies biopsicossociais desfavorveismuito raramente conseguiro reverter tal situao ao longo de suaexistncia. Isto porque a continuidade do espetculo depende daininterrupta reproduo da misria e de seus excludos. As elites, apossibilidade de existir determinado status, mesmo que imaginrio,a existncia da fama e de posies de destaque, tudo isso s possvel

    em uma configurao social em que a heterogeneidade das classes alicerce das relaes desiguais de poder. Algo s pode ser desejado ealmejado quando falta quele que o contempla. Do mesmo modo, oreconhecimento provm dos pares de iguais, mas fundamentalmente

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    daqueles que so inferiores a tal condio e que desejam o mesmostatuse reconhecimento dos personagens assistidos.

    No requeridas como produtoras, inteis como consumidoras elasso pessoas que a economia, com sua lgica de suscitar necessidades esatisfazer necessidades, poderia muito bem dispensar. O fato de estarempor perto e reivindicarem o direito sobrevivncia um aborrecimentopara o restante de ns. [...] No h emprego suficientemente significativopara todas essas pessoas vivas e no h muita perspectiva de, algum dia,equiparar o volume de trabalho com a multido daqueles que o querem

    e o necessitam para escapar rede de transferncias secundrias e aoestigma a ela associado. (Bauman, 1998, p.196)

    Os ditos fracassados na cena espetacular encontram-se, porassim dizer, em uma posio subjetiva de extremo desamparo em re-lao sociedade do espetculo. Como se no bastasse sua misriaem termos de recursos financeiros e materiais, esses sujeitos aindasofrem as sucessivas frustraes simblicas da contemporaneidade

    capitalista ao extremo.Por fim, os estranhos ao espetculo no pertencem somente s

    classes dominadas, aquelas sem favorecimento financeiro e educacio-nal, em suma, os ditos pobres e miserveis. O espetculo produz seusestranhos, independente da classe social a que pertencem os indivduos.Assim, os estranhos na atualidade so todos aqueles indivduos queno compartilham da adeso ao espetculo, seja por motivos de fora

    maior provindos de circunstncias reais, seja por uma inteno e opovoluntria. A relutncia do sujeito em aderir s identificaes com ossmbolos brilhosos do espetculo, preservando sua identidade parti-cular em meio a toda cultura globalizante e massificadora, o destina aum rtulo de inimigo nocivo da sociedade.

    Neste cenrio, o espetculo est em toda parte, e as demandasveiculadas pelos discursos sociais fazem o sujeito titubear diante de

    suas decises. O mal-estar pertencente aos estranhos, neste sentido,diz respeito ao sentimento de dvidapermanente produto das mul-tipossibilidades espetaculares , bem como um sentimento de culpaedvidapara com a sociedade do espetculo.

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    Sociedade do consumo

    Poder participar efetivamente e atender as demandas e exignciasde uma sociedade que se desenvolve sob o primado do capitalismopressupe que sejamos vidos consumidores da avalanche de bens eprodutos a nossa disposio. Hoje temos ao nosso dispor uma varie-dade infinita de bens de consumo, uns superando os anteriores antesmesmo que os primeiros encontrem sua prpria inutilidade pelo ex-cesso de uso. Alis, a caracterstica fundamental da nossa atualidadeps-moderna que no se visa, como outrora, uma alta e desejadadurabilidade das coisas. Ao contrrio, a mensagem transmitida amensagem da maleabilidade e flexibilidade, alcanando assim umavelocidade estonteante de sucessivas substituies de produtos aomenor sinal de alguma novidade.

    Esta sociedade, concebida sabiamente por Debrd (1997) comouma sociedade do espetculo, obtm seus artefatos do capitalismoexacerbado (produtos e mercadorias) para compor seu cenriogla-

    mourosoe convidativo aos indivduos. Desta forma, a possibilidadede atuar satisfatoriamente no palco forjado socialmente depende,intrinsecamente, da alta capacidade de consumo dos indivduos e dasociedade de uma forma geral. E consumir sempre cada vez mais, poisessa aperformance que o sistema demanda de seus consumidores.

    Como bem sabido, dado o ritmo em que novos produtos so lana-dos no mercado e exibidos brilhosamente nas vitrines, os consumidores

    permanecem sempre um passo aqum das evolues ofertadas. ComoBauman (2001, p.86) nos ilustra: Na corrida dos consumidores, alinha de chegada sempre se move mais veloz que o mais veloz doscorredores; mas a maioria dos corredores na pista tem msculos muitoflcidos e pulmes muito pequenos para correr velozmente.

    Assim, os produtos recm-adquiridos tornam-se descartveis nomesmo momento em que surge um novo modelo de certo utenslio.

    Escancaram-se diante do consumidor infinitas possibilidades em umcurtssimo intervalo de tempo, o que torna seu apetite pelo consumoalgo com o qual passa-se a conviver com uma quota necessria deangstia.

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    O mundo cheio de possibilidades como uma mesa de buf com tantospratos deliciosos que nem o mais dedicado comensal poderia esperar pro-var de todos. Os comensais so consumidores, e a mais custosa e irritante

    das tarefas que se pode pr diante de um consumidor a necessidadede estabelecer prioridades: a necessidade de dispensar algumas opesinexploradas e abandon-las. A infelicidade dos consumidores deriva doexcesso e no da falta de escolha. (idem, p.75)

    O excesso torna-se sufocante para o consumidor que, por mais quese esforce em sua escolha, permanecer sempre com um sentimento

    de dvida com relao s aquisies que acaba de realizar. Diante depossibilidades mil, nenhuma garantia totalmente confivel e suasescolhas se exercem sempre de forma titubeante.

    Na corrida para acompanhar as evolues tecnolgicas de celulares,televisores, computadores, enfim, aparelhos de toda espcie, estamosfadados a alcanar sempre, no mximo, um segundo lugar no pdiomercadolgico. Em consequncia da excessiva oferta desses bens de

    consumo, o desejo do consumidor que se torna uma pseudonecessi-dade eternamente insacivel.A mercadoria, uma vez exposta como um atributo altamente valo-

    rizado em determinado momento (no presente-relmpago) da cena so-cial, passa a ser um verdadeiro objeto de fetiche para os consumidores,os quais idealizam o produto, conferindo-lhe caractersticas fantsticase ideais. Esse objeto passa ento a representar simbolicamente um

    determinado indicador de statusno cenrio espetacular, um verdadeiropassaporte para o rol da fama, onde o sujeito possa se sentir reconhecidopelo outro social. Contudo, essa pseudonecessidade, produzida peloestmulo do consumo em excesso, cria uma verdadeira insaciabilidadedo desejo consumidor. Fruto da multiplicidade de alternativas dispo-nveis e da incerteza das escolhas realizadas, a insatisfao e o posteriorsentimento de frustrao so perptuos.

    O mpeto de consumo, exatamente como o impulso de liberdade, tornaa prpria satisfao impossvel. Necessitamos sempre de mais liberdade doque temos [...]. nessa abertura em relao ao futuro, na ultrapassagem detoda situao encontrada e preparada de antemo ou recm-estabelecida,

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    nesse entrelaamento do sonho e do horror da satisfao, que se achamas razes mais profundas do turbulento, refratrio e autopropulsor dodinamismo da cultura. (idem, 1998, p.175-6)

    Ao passo que os consumidores servem-se da ampla liberdade deescolha e esbaldam-se na aquisio nunca suficiente de mais e maisprodutos, na mesma proporo das aquisies o sentimento de mal-estar e incompletude perpetuam-se. Em meio s ofertas vindouras noritmo velozmente vertiginoso, a produo das pseudonecessidades incessante, ao tempo que suas realizaes, de forma completamente

    satisfatria, so sempre impossveis.

    O outro como mercadoria

    Em nossa atualidade, todas as caractersticas peculiares deste pero-do, como foram consideradas anteriormente, regem todas as condutashumanas. Desta forma, as relaes, os inter-relacionamentos dos indi-

    vduos, obedecem aos mesmos trmites lquidos da cultura atual.Tratando-se dos relacionamentos, nos dias de hoje o que temos

    uma tendncia a acumular-se relaes que no visam durabilidadee ao compromisso. Evitar o comprometimento com o outro preservaaberto o leque de possibilidades, e dessa maneira pode-se obter o toalmejado prazer imediato e livre de consequncias.

    Hoje em dia os relacionamentos de bolso esto na moda, aqueles

    nmeros de telefones guardados na manga que podem nos gara