teatro contemporaneo comunicação

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A CENA CONTEMPORÂNEA – HIBRIDISMO DE LINGUAGENS1

Janice Shirley Souza Lima2

INTRODUÇÃO

As lutas travadas pelo artista/pesquisador envolvem as célebres

dicotomias, que o mundo ocidental enfrenta, entre razão e sensibilidade, entre

Arte e Ciência. Não obstante, novos paradigmas parecem surgir no campo

epistemológico do mundo contemporâneo (LIMA, 1999). Neste final/início de

milênio, a reflexão epistemológica começa a assumir o papel de analisar as

condições sociais dos contextos culturais e dos modelos de organização da

pesquisa científica, antes restrito à filosofia da ciência. O foco de interesse

passa a ser o conhecimento do conhecimento das coisas que “[...] não deixa

de ser conhecimento de nós próprios”. (SANTOS, 1988, p.57).

Diante dos sinais evidenciados pela crise dos paradigmas – que se

mostram incapazes de dar conta e explicar o novo contexto - o autor procura

desenhar o perfil de um novo paradigma que, pela própria condição

especulativa daquilo que se pode vislumbrar no horizonte, se denomina

emergente. O paradigma emergente insurge-se exatamente contra as célebres

dicotomias entre conhecimento científico-natural e científico social; entre 1 Comunicação originada da pesquisa de mesmo título, contemplada com a Bolsa de Aperfeiçoamento Artístico na área de Teatro, concedida pelo Instituto de Artes do Pará, e realizada no período de 1 de Março a 30 de Junho de 2002. Publicado na Revista “Traços” do Centro de Ciências Exatas e Tecnologia da Unama, V.5, nº 10, Dezembro, 2002.2 Atriz formada pelo Curso de Arte Dramática da Universidade Federal do Ceará (1982); Diretora de Interior da Federação Estadual de Teatro Amador do Ceará – FESTA (1985 –1987); Especialista em Inter-Relações Arte Escola, com ênfase em Artes Cênicas, pela Universidade Federal do Pará (1985); Mestre em Educação Políticas Públicas, pela Universidade Federal do Pará (1999); Professora Adjunto II do Curso de Artes Visuais e Tecnologia da Imagem, na Universidade da Amazônia; Chefe da Divisão de Educação e Extensão do Sistema Integrado de Museus do Estado do Pará – SIM/SECULT – (1998 – 2002); Pesquisadora Bolsista – Museu Paraense Emílio Goeldi – MPEG.

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RESUMO: Trata-se do primeiro resultado de uma pesquisa sobre a linguagem cênica contemporânea, em que se discute sinais dos paradigmas emergentes denominados parateatralidade e hibridismo, buscando argumentá-los no decorrer da leitura de espetáculos, baseada na teoria semiótica peirceana. O primeiro espetáculo lido foi “Violetango”, encenado pela Companhia Atores Contemporâneos, dirigido pelo encenador paraense Miguel Santa Brígida, que estreou em 1994 e passou por diversas transformações nesses oito anos em que vem se apresentando no Pará e noutros estados brasileiros. A leitura do espetáculo apresenta-se na forma de ensaio denominado “Violetango em Terras Parauaras”.

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conhecimento local e total; entre conhecimento e auto-conhecimento; entre

conhecimento científico e senso comum.

Surge daí a necessidade da pluralidade de métodos na pesquisa

científica e a idéia de que o conhecimento ocorre mediante uma transgressão

metodológica. A pluralidade metodológica implica em transdisciplinaridade e

personalização do trabalho científico, pelo fato de que assume uma

configuração de estilos, tecida de acordo com o critério e a imaginação pessoal

do cientista. É quando a criação científica assume sua proximidade com a

criação literária ou artística no que se refere à transformação do real (o artista

trabalhando a matéria) e subordinando-a à contemplação do resultado (a obra

de arte).

Com base nas teses apresentadas, percebo que a discussão, há muito

tempo colocada em pauta, questionando se arte é conhecimento e suas

relações com a ciência, já se encontra em curso e deverá dentro de pouco

tempo tomar um novo rumo. Não querendo, no entanto, entrar no campo

escorregadio e complexo desta questão, mas assumindo o exercício da

insegurança, opto por entender que as fronteiras entre a Arte e a Ciência sejam

tão tênues que em dados momentos se fundem. Lembro Eco quando fala da

pesquisa em arte: “[...] pensamos possam ser refutadas certas objeções,

segundo as quais todo confronto feito entre procedimentos da arte e

procedimentos da ciência constituiria uma analogia gratuita”. (1991, p. 31). Da

mesma forma, quando apresenta a obra aberta como metáfora epistemológica,

o autor aponta as semelhanças entre as características estruturais das poéticas

da obra aberta e outras operações culturais que visam à definição de

fenômenos naturais ou processos lógicos.

Nesse contexto, o teatro, como expressão do comportamento humano

que reflete a multiplicidade de significados que lhe é inerente, como veículo

que possibilita a maximização da cultura dos grupos sociais que constituem

uma determinada sociedade, como forma de comunicação que possui um

código, meio pelo qual se manifestam mensagens entre atores e espectadores,

cuja linguagem também se transforma, ora é influenciado, ora influencia as

mudanças de paradigmas estéticos, sociais, econômicos e políticos.

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No mundo atual, regido pelos processos de globalização, a passagem

da economia nacional à global para os países de terceiro mundo ocorre com

perda da cultura e através do rompimento de fronteiras políticas e culturais que,

não obstante, aumentam as desigualdades sociais. Hall afirma que: “Em certa

medida, o que está sendo discutido é a tensão entre o ‘global’ e o ‘local’ na

transformação das identidades. As identidades nacionais, [...], representam

vínculos a lugares, eventos, símbolos, histórias particulares.” (1997, p. 81).

A arte, como elemento da cultura humana, também sofre os efeitos

dessa tensão, compreendendo-se assim, o repúdio da estética contemporânea

ao sugerir o fim do objeto de arte, substituindo-o pela idéia de trabalho. Neste

momento, a arte passa por um processo de dessacralização, abrindo caminho

para uma nova sociologia da arte, na qual o processo de criação do artista

parece ser mais importante do que o resultado final, o produto. Essa

concepção epistemológica provoca mudanças nas relações entre o objeto

estético e o sujeito, entre o artista e o espectador.

Na cena contemporânea, busca-se a parateatralidade, um universo que

se configura como arquipélago de poéticas e possibilidades experimentais, que

parecem buscar uma outra relação de comunicação com o público, exigindo

sua participação ativa, obrigando-o a rever sua suposta estabilidade e enxergar

e recompor em si as diversas identidades contraditórias e não resolvidas,

características do sujeito pós-moderno.

A linguagem do teatro contemporâneo é uma linguagem híbrida, ao

envolver os aspectos visuais, sonoros e gestuais, cujos elementos sígnicos

subvertem o convencional. Se antes elementos como o cenário, a iluminação e

a sonoplastia eram entendidos apenas como coadjuvantes, em relação aos

elementos principais (ator e texto), agora são assumidos com igual importância

no contexto do espetáculo. Consideradas neo-vanguardas, as manifestações

artísticas assim estruturadas reativam a linha dadaísta, redimensionando a

representação tradicional ou desenvolvendo novas possibilidades de

construtivismo, nas quais o público participa de um exercício lúdico de

desconstrução e reconstrução, tornando-se o realizador daquilo que os projetos

sugerem ou propõem.

A história do teatro paraense oferece indícios para uma larga discussão

acerca da linguagem cênica, do ápice do ciclo da borracha, quando por aqui

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passaram inúmeras companhias de teatro nacionais e internacionais, passando

pela sua derrocada, quando os profissionais desempregados se renderam ao

mais genuíno teatro paraense, o teatro do povo, os belos Pássaros e Cordões

de Bichos, até os dias de hoje. Atualmente pode-se observar, em diversas

produções teatrais paraenses, uma certa hibridização cultural propositada.

Tudo isto faz sentido numa visão pós-moderna, que propõe o desaparecimento

das fronteiras entre a cultura erudita e a cultura popular.

Como afirma Canclini: “A cultura moderna se construiu negando as

tradições e os territórios”. (2000, p. 49). Os pós-modernos repudiam a noção de

ruptura, apropriando-se de imagens de outras épocas fragmentando-as,

desconstruindo-as e reconstruindo-as e, deste modo, produzindo “[...] leituras

deslocadas ou paródicas das tradições[...]”, restabelecendo “[...] o caráter

insular e auto-referido do mundo da arte.” (2000, p. 49). Nesse contexto,

Canclini discute a novidade da desterritorialização e da hibridez pós-modernas

e afirma: “O pós-modernismo não é um estilo mas a co-presença tumultuada

de todos, o lugar onde os capítulos da história da arte e do folclore cruzam

entre si e com as novas tecnologias culturais.” (2000, p. 329).

Assim, optei por produzir a leitura de um espetáculo que refletisse

a inserção nesses paradigmas, cuja escrita seria em forma de ensaio. Tal

leitura partiu das seguintes questões: de que signos se serve e como os

organiza o encenador Miguel Santa Brígida no espetáculo Violetango? E

em que consistem a parateatralidade e a hibridização nesse espetáculo?

Trata-se, portanto, de um estudo de caso em que foram adotados

procedimentos relativos a outros métodos, tais como, o bibliográfico e o

documental, os quais serviram para ancorar a análise e a argumentação que

conferiram rigor conceitual e metodológico aos seus resultados.

A análise documental visou a descoberta de circunstâncias sociais e

históricas registradas em jornais e outros documentos escritos que se

constituíram fontes primárias de informação, pois os documentos são utilizados

para contextualizar o objeto de estudo, compreender as suas vinculações mais

profundas e completar ou ampliar informações coletadas através de outras

fontes.

Já o método bibliográfico ofereceu o suporte teórico iluminativo,

necessário à fundamentação das argumentações que compuseram o texto final

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do estudo. Esse método se desenvolve, segundo Gil: “[...] a partir de material

elaborado, constituído principalmente de livros e artigos científicos”. (1991, p.

72). É um método que possibilita a localização e a consulta de fontes diversas,

orientando a coleta de dados gerais ou específicos, sobre um determinado

tema.

O trabalho de campo consistiu na observação sistemática de ensaios e

apresentações do espetáculo, quando fui anotando minuciosamente os dados

descritivos necessários à composição da leitura. Diálogos com o encenador

foram fundamentais para ampliar o meu olhar. Essas formas de colher dados

reflete uma postura contemporânea em relação aos instrumentos de pesquisa,

configurando o método do estudo de caso.

A indução analítica foi utilizada como forma de sistematização dos dados

coletados e de desenvolvimento da teoria, tendo em vista o foco específico do

estudo que foi a análise da linguagem cênica contemporânea através da leitura

do espetáculo “Violetango”, baseada na teoria semiótica peirceana e nos

paradigmas da parateatralidade e do hibridismo. Essa etapa envolveu

classificação e organização das informações obtidas e o estabelecimento de

relações entre esses dados, levando em consideração os pontos de

divergência, os pontos de convergência, as tendências, as regularidades, os

princípios de causalidade e as possibilidades de generalização. (PÁDUA,

2002).

O ESPETÁCULO

“Violetango” apresenta um tema aparentemente fácil de ser tratado, o

universal triângulo amoroso. No entanto, essa aparente facilidade desmorona-

se quando, ao assistir o espetáculo se percebe a engenhosidade construtiva da

narrativa, tecida com os tangos de Astor Piazolla, com a poesia

“Desesperança” de Mário Quintana, com o figurino de Aníbal Pacha, com o

cenário construído em sintonia com o cenário natural da praça onde se

apresenta, com os movimentos e gestos das personagens e com a condução

de um ser mascarado. Tudo isto orquestrado pela maestria do encenador

paraense Miguel Santa Brígida. Para compreendê-lo, portanto, é preciso se

estar atento e se dispor a participar de um jogo ao mesmo tempo apolíneo e

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dionisíaco, em que razão e sensibilidade fazem parte das regras para o

espectador.

O cenário natural é a Praça da República, com suas árvores frondosas,

ladeada de ruas asfaltadas de intenso tráfego. Num dos seus ângulos

encontra-se o pequeno anfiteatro, onde se ergue uma tenda branca (na

montagem de Violetango de 2000 era colorida). Sob a tenda, um linóleo circular

acinzentado, sobre o qual descansam três coletes de cor escura. Numa de

suas bordas pode-se ver um rádio grande de modelo antigo, sobre o qual

repousam uma taça de vinho e envelopes de cartas enlaçados por uma fita de

cor vermelha. Ao lado, um longo tecido de cor violeta.

Eis a percepção do espaço construído para a cena relacionado com o

espaço “natural” da praça, onde o primeiro está contido, revelando um conjunto

ao mesmo tempo harmônico e estranho, o espaço cênico em que vai acontecer

o drama. Sobre a significação cenográfica, Ratto afirma ser: “[...] um lugar, que

não é necessariamente o edifício teatral, pode assumir – e assume – todos os

valores dramaticamente potenciais que contém e provoca”. (1999, p. 21 –22).

Essa estranheza, ou melhor, esse estranhamento causado pela tenda pousada

sobre a praça tem a ver com o hibridismo que Jarry já anunciava. Segundo ele,

apud Ratto: “O cenário é híbrido, nem natural nem artificial. Se ele parecer

com a natureza, será uma duplicata inútil [...]” (1999, p. 32). Creio, assim, que

Miguel não poderia ter escolhido melhor espaço para a apresentação de

Violetango.

As personagens são quatro: uma figura masculina portando uma

máscara branca, assimétrica, e vestindo uma espécie de calça/saia.

Movimenta-se com passos e gestos amplos e bem compassados e funciona

como condutor da narrativa. Ela, Ele e o Outro são as personagens que vivem

a trama. Ela veste um vestido vaporoso em que predomina a cor lilás. Ele e o

Outro vestem roupas iguais entre si, camisa branca de mangas longas, calça

escura, e como as outras personagens, têm os pés descalços.

Procurando produzir uma leitura em descontinuidade, tracei linhas

imaginárias dividindo o espetáculo em cenas para melhor poder transitar pelas

imagens construídas pelo encenador. A primeira cena denominei de Ritual de

Abertura. É quando o Ser Mascarado acende a cortina de fogo e conduz as

outras personagens para a tenda.

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O Ser Mascarado e o fogo são os signos essenciais desse ritual. O Ser

Mascarado é um signo índice, na medida em que o seu traje o diferencia das

outras personagens principalmente pelo uso da máscara, e os seus gestos e

movimentos indicam condução. O índice, de acordo com Peirce “[...] é um

signo que se refere ao Objeto que denota em virtude de ser realmente afetado

por esse Objeto”. (1999, p. 52). O índice possui uma relação de contigüidade

com o Objeto representado. A máscara, nesse caso, é também índice do ritual,

uma vez que, de acordo com Amaral: “Os rituais se utilizam de gestos, ações,

ritmo, palavras, objetos e máscaras.” (1996, p. 27). Além disso, a máscara tem

o poder de transferir energias porque potencializa um campo de forças capaz

de produzir a metamorfose, a transcendência e dar vida a um ser divino,

conferindo qualidade espiritual ao ser humano. Amaral afirma que: “As

máscaras vêm sempre ligadas a gestos. E o gestual das máscaras rituais é um

gestual abstrato. É não-imitativo, é apenas simbólico”. (AMARAL, 1996, p. 33).

Em Violetango, o Ser Mascarado possui alguma relação de qualidade com o

Objeto representado, no caso, um ser não humano, apenas espiritual, porém,

detentor de poder sobre a humanidade, por isso o comparei ao Destino,

assumindo simbolicamente nossas raízes cristãs ocidentais. Portanto, ele seria,

também, essa figura alegórica, já que a alegoria é a representação de uma

idéia abstrata.

O fogo é, a um tempo, ícone, índice e símbolo desse ritual. Ícone na

medida em que se apresenta como representante fiel do elemento natural fogo,

portanto, numa relação direta de semelhança com o Objeto representado. O

ícone, segundo Peirce: “[...] é um signo que se refere ao Objeto que denota

apenas em virtude de seus caracteres próprios, caracteres que ele igualmente

possui quer um tal Objeto realmente exista ou não”. (1999, p. 52). É índice

porque nos remete aos rituais primitivos de nossos ancestrais, evocando nossa

memória imagética. E é símbolo pela associação de sentidos, cristalizados ou

não, que se fazem representar por opção particular de um dado grupo social,

que, não obstante, pode se fazer entender e representar por outras culturas,

universalizando-se. Sobre o símbolo, Peirce afirma ser “[...] um signo que se

refere ao Objeto que denota em virtude de uma lei, normalmente uma

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associação de idéias gerais que opera no sentido de fazer com que o Símbolo

seja interpretado como se referindo àquele Objeto”. (1999, p. 52).

Na cena seguinte, Ela, Ele e o Outro colocam os coletes, o que, a meu

ver, indica o início da trama amorosa. Ela mostra-se dividida entre a paixão e o

amor. Seus movimentos são de indecisão, ora atuam na direção de Ele (o

amor), ora na direção do Outro (a paixão). Por fim decide-se pela paixão, o

que já era, de certo modo, previsto, se pensarmos na presença do elemento

fogo na cena anterior como prenúncio dessa decisão. Convém lembrar que na

cultura ocidental fogo e paixão possuem uma relação simbólica de

coexistência. A música ”Violentango” complementa esses indícios, afinal, se

tomarmos Stanislawski como referência, onde estaria o conflito, senão nessa

disputa entre a paixão e o amor? O interessante da cena contemporânea é

exatamente a possibilidade de coexistência, numa mesma produção, de

referências e procedimentos advindos de outras épocas, outros estilos e outros

contextos. É nessa possibilidade que também se encontram o hibridismo e a

parateatralidade.

A cena que segue é a única em que ocorre verbalização. O poema

“Desesperança” de Mário Quintana é dito por Ele, enquanto desenrola a fita

dos envelopes e com eles constrói barquinhos. O Ser de Máscara derrama

vinho sobre os barquinhos de papel, gesto que, tanto pode ser indício de que

haverá derramamento de sangue, como pode também indicar a feitura de um

rio que levará os barquinhos/cartas de volta à amada. Entretanto, tudo leva a

crer que a primeira possibilidade é a mais acertada, uma vez que a cena

seguinte é exatamente a do duelo entre Ele e o Outro. Além disso, o ato de

derramar o vinho é, de certo modo, icônico ao ato de derramar sangue. Essa

ambigüidade é extremamente interessante e confere apuro estético ao

espetáculo, exigindo maior adentramento nesse universo de signos, por parte

do leitor/espectador.

O duelo é outra cena marcante, visceral, que reflete o trabalho corporal

executado pelos atores. O corpo é o suporte que materializa a narrativa,

através de movimentos e gestos mais indiciais e simbólicos do que icônicos,

permitindo belas metáforas gestuais. Do lugar onde estou, alcanço com o olhar,

no círculo de linóleo, sob a tenda, deslocamentos rápidos, precisos que

produzem assimetrias espaciais/temporais: equilíbrio/desequilíbrio,

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permanência/efemeridade, estabilidade/instabilidade, lembrando ao espectador

que a cena é jogo, não um jogo qualquer, mas o jogo composto com as regras

da alegria, da técnica e da criatividade. Apropriando-me de Ratto: “Alegria pelo

prazer que se deve provar ao fazê-lo; técnica para poder dominar todos os

aspectos que determinam sua realização; criatividade, pois sem ela ficaremos

limitados a virtuosismos estéreis”. (1999, p. 32). Mas, lembremos que a cena é

de um duelo e, nesse caso, alguém tem que morrer. Seguindo a tradição

cristã, a vítima só poderia ser o Outro. Ela e o Outro precisavam ser punidos

pela sua transgressão amorosa. E assim é que o Outro é vencido no duelo e

Ela conclui a trama seguindo o caminho por onde o Ser Mascarado vai

derramando o vinho. O Outro jaz envolto no tecido violeta. O vinho simboliza

sangue (na cultura católica, sangue de Cristo), portanto, o que resta a Ela é

seguir um caminho de dor e remorso.

Assim, as inferências produzidas nesse corpo teórico propiciaram a

composição do ensaio “Violetango em Terras Parauaras”, salientando-se

que a escolha do ensaio como forma de apresentação dos resultados da

pesquisa se deu por um desejo pessoal, pois como Canclini: “Prefiro a

maleabilidade do ensaio, que permite mover-se em vários níveis”. (2000, p.28).

Deste modo, os percursos foram se construindo na aventura de descobrir

novas trilhas e de respeitar as trilhas já construídas pelos teóricos e

metodólogos estudados, gerando sucessivas versões textuais que foram

passando por diversas modificações até chegar à forma ora apresentada.

VIOLETANGO EM TERRAS PARAUARAS3

Na pulsação noturna do coração da cidade, sob as altas copas que

telham a Praça da República, entre um e outro apito de veículos que cruzam as

ruas laterais, ergue-se a tenda colorida. Parece pousada no pequeno

anfiteatro, compondo um ambiente que desassossega os passantes menos

habituados às ocorrências idiossincráticas desse lugar. A chuva deixou aquele

cheirinho de chão molhado e das copas ainda sobram sobre nossas cabeças

3 “Violetango” é o título do espetáculo produzido pelo encenador paraense Miguel Santa Brígida, responsável pela Companhia Atores Contemporâneos. O espetáculo estreou em 1994 e passou por algumas transformações nesses oito anos em que vem se apresentando no Pará e noutros estados brasileiros. O presente ensaio proporciona uma leitura de “Violetango” relacionando as montagens dos anos 2000 e 2002. Parauara vem do Tupi para’wara, e indica naturalidade paraense.

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alguns pingos, que escorregam vagarosamente pelo rosto, lembrando que

estamos em terras parauaras. Vivíamos o ano 2000, estávamos prestes a virar

o milênio. Crianças brincavam despreocupadas e adultos conversavam

animados em pequenos grupos, desafiando os perigos da violência

contemporânea, talvez confiados na segurança de alguns policiais que

rondavam o local.

Um rastilho de pólvora! E o fogo rasga a noite abrindo o espetáculo. “A

chama determina a acentuação do prazer de ver algo além do sempre visto.

Ela nos força a olhar”. (BACHELAR, 1989, p. 11). E tudo silencia. A polifonia

citadina fica distante e então se pode ver, do fundo noturno da praça em que se

eleva o imponente e antigo prédio do Theatro da Paz, surgirem: Ela, Ele e o

Outro conduzidos pelos gestos de um Ser Mascarado. Um tango de Astor

Piazolla enche o espaço, enquanto as personagens, regidas pelo ser de

máscara, desenrolam o lírico e, ao mesmo tempo, trágico drama, cavoucando

nossa memória, abrindo espaço para restaurarmos nossas emoções primárias,

tão sufocadas pelas convenções dominantes que as tornaram amorfas.

Subjetivamente, sem verbalizações, mas com referências visuais/sonoras

precisas, que permitem ao espectador compreender a narrativa, Violetango

trata do universal tema do triângulo amoroso.

Não poderia ser de outro modo. Conhecendo-se um pouco a

sensibilidade e o repertório teatral do encenador Miguel Santa Brígida, é

possível entender o uso do fogo nesse espetáculo, assim como ele o utilizou

em “Habitantes do Fogo” (1992) e em “As Bacantes” (1996). Miguel sabe do

poder do fogo em nossa memória imagética e não se faz de rogado. Ao

relacionar paixão, amor e morte em “Violetango”, abre o espetáculo com fogo,

porque sabe, como Bachelar, que: “A chama é uma ampulheta que escorre

para o alto. Mais leve do que a areia que desmorona, a chama constrói sua

forma, como se o próprio tempo tivesse sempre alguma coisa a fazer. (1989, p.

30). O tempo é outra de suas preocupações quando fala de dor, amor e morte

em “Breve Concerto do Tempo” (1993), e em “Ad Infinitum” (1999).4

4 Alguns desses dados foram obtidos no Portfolio produzido pela Companhia Atores Contemporâneos, 2001.

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A viole(n)ta paixão, embalada pelos tangos do famoso músico, acontece

ali, diante dos nossos olhos, num ritual sinestésico e cinésico que, embora

imbuído de hermetismos estéticos, não reduz a possibilidade de comunicação,

mas exige apuro sensível/cognitivo do espectador para que este compreenda

os múltiplos sentidos que lhes são oferecidos, confirmando o que Canclini

afirma sobre a reinstalação do rito no cerne da experiência estética

contemporânea: “O primado da forma sobre a função, da forma de dizer sobre

o que se diz, exige do espectador uma disposição cada vez mais cultivada para

compreender o sentido.” (2000, p.50).

É certo que existe uma complexidade específica da linguagem cênica no

que diz respeito à diversidade de elementos que a constituem e que, por isso

mesmo, amplia a quantidade de aspectos a serem analisados, dificultando a

estruturação dos significados ou sentidos produzidos. Coelho Netto afirma que

só se pode compreender a estrutura de significação do espetáculo “[...] através

do conhecimento dos tipos de signos [...], das leis que regem sua combinação,

dos problemas de decodificação desses signos por parte do espectador”.

(1988, p.13).

A apreciação de espetáculos, tendo como prerrogativa um modo de

leitura que Demarci (1988) denomina de transversal, opõe-se à leitura

horizontal que se restringe apenas ao acompanhamento da fábula, como se o

texto fosse o único ou mais importante elemento constitutivo, capaz de fazer o

espectador compreender o tema abordado. A leitura transversal, segundo o

autor, é o adentramento no universo de signos apresentado ao espectador, que

se envolve, assim, numa série de questionamentos sobre o que lhe é

apresentado. Ao teorizar sobre a necessidade de uma leitura transversal do

espetáculo, Demarci vislumbra a possibilidade de uma melhor compreensão da

cena contemporânea. Ou seja, se os paradigmas da linguagem cênica vêm

mudando e sua estrutura tornando-se mais complexa, de algum modo o

espectador deve acompanhar essas mudanças para compreendê-lo. (LIMA,

1999)

Alguns dos paradigmas contemporâneos referentes à linguagem cênica

parecem apontar na direção da parateatralidade e do hibridismo.

Parateatralidade na medida em que esta se assume como ficção e cria um

novo estatuto, rompendo com o naturalismo e o realismo, exigindo do público

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um olhar crítico mais subjetivamente aguçado e menos passivo, lidando com a

incerteza, com o caos, transgredindo valores estabelecidos e provocando-o à

ação. “Parateatral enquanto campo de manifestações pareadas, mas

ideológica ou formalmente dissonantes com o topos teatral.” (COHEN, 1998, p.

XXXIV). O autor entende a parateatralidade como universo paralelo “[...] que

engloba repertório do teatro antropológico, ritualização, performance,

psicodrama e outras manifestações cênicas”. (1998, p.12). Esse universo

paralelo caracteriza-se pela desconstrução dos sistemas clássicos de narrativa

com suas unidades aristotélicas, enredo, conflito, personagens, criando outras

estruturas de organização híbridas que usam o hipertexto, sincronicidades,

aleatoriedade, entre outros procedimentos. Hibridismo no sentido de

“Procedimento que indica a reconstrução de textos, citações, fragmentos,

narrativas, estabelecendo hierarquias, redes de significações com vários

planos de leitura (literal, mítica, simbólica)”. (COHEN, 1998, p. 28).

A meu ver, Violetango partilha desses paradigmas. O encenador assume

a linha do Teatro do Movimento estruturado na fronteira entre a dança e o

teatro. Nesse aspecto, é quase impossível discernir quando se está na

presença de uma ou de outra linguagem, uma vez que estas se encontram de

tal forma amalgamadas, hibridizadas. A cena do duelo entre Ele e o Outro é o

melhor exemplo desse amálgama. Sua plasticidade é impressionante, talvez,

exatamente por não nos deixar descobrir se afinal se trata de dança ou teatro.

Havia na montagem de 2000 uma singularidade que vale a pena ser

mencionada. O duelo era constituído de movimentos precisos em que os

corpos praticamente não se tocavam. Em dado momento os peitos se

estufavam e os duelistas saltavam aproximando-os como numa briga de galos.

Essa imagem me fazia lembrar as Hárpias, uma das pinturas parietais do

Salão Greco-Romano do Museu do Estado do Pará, figuras mitológicas que

possuem rosto de mulher, corpo de abutre, bico e unhas aduncos e mamas

pendentes. Filhas de Taumas e Electra, sua imagem horrenda parece indicar

maus presságios. Tais referências, para mim, enquanto leitora atenta do

espetáculo, foram preponderantes para a compreensão da narrativa, ao

mesmo tempo em que esta se presentificava como bela metáfora gestual. Já

na recente montagem (2002), Miguel a transformou totalmente, tornando-a

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Page 13: teatro contemporaneo comunicação

mais visceral e dinâmica, promovendo o contato entre os corpos, porém,

diluindo um pouco a sua poesia.

Para compor o título do espetáculo o encenador retirou a letra n da

música “Violentango”, denominando-o de Violetango, justificando a mudança

pelo fato de que predomina a cor violeta no figurino e noutros elementos

visuais que compõem as cenas. Para mim, foi uma feliz idéia. A palavra

Violetango é mais sonora e poética. Desloca o sentido de violência para o

sentido de cor. Liga a cor da paixão à passionalidade do tango, permitindo que

a violência produzida pela paixão seja mostrada por outros signos.

Antes do duelo, porém, há uma cena marcante, delicada e única cena

tecida com a palavra. Ele demonstra toda a sua susceptibilidade ao arremessar

o vinho nas costas de Ela. Ele apanha as cartas envoltas em uma fita

vermelha, lembranças embaladas pelos barquinhos de papel do poema

“Desesperança” de Mário Quintana, que vão se materializando pelas suas

mãos enquanto diz o poema. Quando este acaba, ouve-se ao fundo uma voz

feminina, lamuriosa a cantar “Cattulin” enquanto o Ser Mascarado movimenta-

se com um rádio antigo colado ao ouvido.

E este ser mascarado? Segundo Miguel, ele é o condutor do drama.

Penso que a máscara usada revela prontamente sua diferença em relação aos

outros (Ela, Ele e o Outro). A máscara utilizada em 2000 era vermelha com

detalhes em plumas (ou em penas?) que lhe conferiam leveza e uma certa

aura de mistério. Agora é branca, cuja inexpressividade é quebrada apenas

pela assimetria do seu recorte. “Uma máscara se constitui sempre numa via de

mão-dupla; envia uma mensagem para dentro e projeta uma mensagem para

fora.” (BROOK, 1994, p.292). Em Violetango, a máscara pode ser traduzida

como signo que revela a sutil narrativa proposta pela música. Ao espectador

não conhecedor da cultura dramática do tango é oferecida a oportunidade de

compreender a narrativa através do condutor mascarado. O Ser Mascarado é

o Destino implacável de paixão, amor e morte do triângulo amoroso criado por

Santa Brígida. Não obstante, há no espetáculo uma rede de significações que

não é composta apenas por esses signos. A movimentação, a gestualidade e a

expressividade são linhas preponderantes dessa trama.

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Sob a pulsação de “Muerta” (Astor Piazolla) vai findando Violetango. O

Outro jaz encoberto pelo longo tecido violeta, enquanto Ela segue o seu

caminho de sangue, pisando sobre o vinho derramado pelo Destino, que

jamais perde sua máscara. Despeço-me mais uma vez do espetáculo com a

boca seca, a mente nebulosa e lágrimas nos olhos. Sigo o meu caminho, ainda

embalada pelos tangos astorianos, vestida de violeta paixão, sentindo a

vertigem do tempo e o calor da chama para rever meus barquinhos de papel.

Ao assumir as emoções, não mais amorfas, não me descuidei, no entanto, da

posição de descobridora de imagens (termo usado por Bachelar), afinal não

teria sentido nenhum a tentativa de dissociar razão e sensibilidade.

REFERÊNCIAS

AMARAL, Ana Maria. Teatro de formas animadas: máscaras, bonecos, objetos. 3. ed. São Paulo: EDUSP, 1996, 313p.

BACHELAR, Gaston. A chama de uma vela. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil S.A., 1989, 112p.

BROOK, Peter. O ponto de mudança: quarenta anos de experiências teatrais (1946 – 1987). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1994, 324p.

CANCLINI, Nestor Gracia. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: EDUSP, 2000, 385p.

COELHO NETTO, José Teixeira. Preliminar. In: GUINSBURG, Jacó et alli (Org.). Semiologia do teatro. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1988.

COHEN, Renato. Work in progress na cena contemporânea. São Paulo: Perspectiva, 1998. 135p.

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DEMARCI, Richard. A Leitura transversal. In: GUINSBURG, Jacó; COELHO NETTO, José Teixeira; CARDOSO, Reni Chaves. Semiologia do teatro. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1988. p. 23-38. ECO, Umberto. Obra aberta. São Paulo: Perspectiva, 1991. 284p.

GIL, Antonio Carlos. Métodos e técnicas de pesquisa social. 3. ed. São Paulo: Atlas, 1991.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro:DP&A, 1997, 111p.

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PÁDUA, Elizabete Matallo Marchesini de. Metodologia da pesquisa: abordagem teórico-prática. 6 ed. Campinas: Papirus, 2000, 120 p.

PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 1999, 337p.

RATTO, Gianni. Antitratado de cenografia: variações sobre o mesmo tema. São Paulo: Editora SENAC, 1999, 201p. SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências na transição para uma ciência pós-moderna. Revista de Estudos Avançados – USP, 1988.

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