o angulo morto da depressao

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O Ângulo Morto da Depressão 1 Clara Pracana Falar sobre a depressão é uma tarefa que assusta. A palavra tem múlti- plos e sobrepostos significados, numa panóplia imensa que vai da psi- quiatria à linguagem comum. A própria consonância já é desagradável: de-pressão, ou seja, algo de moribundo, de desvitalizado. Que não tem força para, que desfalece. Algo de castrado, de impotente. Ou prenúncio de mau tempo, como na depressão atmosférica. Béla Grumberger chama-lhe uma disforia específica com uma tona- lidade especial, impossível de apreender e resistente a qualquer descri- ção, por mais rica que seja do ponto de vista verbal ou literário. E acres- centa: ‘De facto, só aqueles que já vivenciaram este afeto inefável são capazes de perceber essa qualidade específica’. (Grunberger 2003: 47). É verdade, só quem nunca deprimiu não sabe como dói. Logo no início, a tarefa a que me tinha proposto começou a confi- gurar-se como deprimente. Comecei a adiá-la e a reparar que estava a adiá-la. E fui fazendo outras coisas, incluindo escrever um artigo sobre o erotismo. Aí fez-se luz. Por que estaria eu a escrever sobre o erotismo quando devia estar a fazê-lo sobre a depressão? E então decidi que ia falar não especificamente sobre a depressão, mas sobre as suas várias máscaras. Por isso intitulei este trabalho O Ân- gulo Morto da Depressão, numa alusão àquela posição do condutor em 1 A partir de uma conferência apresentada no dia 17/4/2010 no 2º Encontro Anual da AP, em Lisboa. Interações número 18. pp. 7-34. © do Autor 2010 7

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O ngulo Morto da Depresso1Clara PracanaFalar sobre a depresso uma tarefa que assusta. A palavra tem mlti-plos e sobrepostos signicados, numa panplia imensa que vai da psi-quiatria linguagem comum. A prpria consonncia j desagradvel: de-presso, ou seja, algo de moribundo, de desvitalizado. Que no tem fora para, que desfalece. Algo de castrado, de impotente. Ou prenncio de mau tempo, como na depresso atmosfrica.Bla Grumberger chama-lhe uma disforia especca com uma tona-lidade especial, impossvel de apreender e resistente a qualquer descri-o, por mais rica que seja do ponto de vista verbal ou literrio. E acres-centa:Defacto,saquelesquejvivenciaramesteafetoinefvelso capazes de perceber essa qualidade especca. (Grunberger 2003: 47). verdade, s quem nunca deprimiu no sabe como di. Logonoincio,atarefaaquemetinhapropostocomeouacon-gurar-se como deprimente. Comecei a adi-la e a reparar que estava a adi-la. E fui fazendo outras coisas, incluindo escrever um artigo sobre o erotismo. A fez-se luz. Por que estaria eu a escrever sobre o erotismo quando devia estar a faz-lo sobre a depresso? Eentodecidiqueiafalarnoespecicamentesobreadepresso, mas sobre as suas vrias mscaras. Por isso intitulei este trabalho O n-gulo Morto da Depresso, numa aluso quela posio do condutor em 1 A partir de uma conferncia apresentada no dia 17/4/2010 no 2 Encontro Anual da AP, em Lisboa.Interaes nmero 18. pp. 7-34. do Autor 20107que nem retrovisores nem espelhos laterais funcionam. Mas ele ou ela - a Coisa, o Das Ding de Lacan, est l, espreita, pode surgir da direita ou da esquerda. E apanhar-nos distrados, sem defesas.Esse ela ou esse ele ou coisa - o que ser? J veremos. Ora, que z eu ao decidir no falar sobre a depresso? Precisamente aquilo que todos ns fazemos um pouco recorrer defesa manaca.Irei defender, ao longo deste trabalho, a tese de que, quer as defesas manacas, quer a melancolia, so estratgias usadas pelo ser humano para se defender contra a angstia de morte angstia esta que pode assumir vrias faces, como veremos.Heidegger, cuja losoa consistiu, tal como a dos gregos pr-socr-ticos, no estudo do ser, um ser identicado com a existncia, entendia queemquasedoismilanosalosoaocidentaltinhaignoradoessa existncia ltima, aquilo a que ele chama o Dasein (literalmente ser-l ou ser-no-mundo). Vivemos, considerava ele, numa poca dominada pelo niilismo e pela tecnologia, em que nem sequer a metafsica tem espes-sura. Seria necessria uma outra linguagem para captar esse ser-estar-sendo-existncia de cada ser humano, que implica simultaneamente a compreenso dessa existncia. Dito de outra maneira, o Dasein a exis-tncia do ser humano que se manifesta e compreende a si prpria. Pensar e compreender a existncia era para Heidegger mais do que um ponto de chegada: era um caminho. Essa compreenso era um des-velamento,umaaletheia,comodiziamosGregos,paraquemapala-vra signicava tanto verdade (e este o signicado atual da palavra em grego moderno) como memria, algo que no est oculto e que no se esquece.Heideggerusavaumametfora:adaclareira.Numaoresta muitodensa(eleviviajuntoFlorestaNegra,nosuldaAlemanha), cortam-se algumas rvores, de forma a que a luz possa tocar o solo na clareira.O problema, dizia Heidegger, que ao desvelarmos uma parte, cobri-mos outra. O nosso conhecimento sempre parcial. Mas se a essncia do Homem est em existir, qual o signicado da existncia? Heidegger argumentava que o Homem era um ser-para-a-morte. na conscincia danitude,naangstia,naculpa,naperspetivadamorte,queoHo-mem . Existe.A nossa vida um trajeto entre dois nadas. Escreve Heidegger: a angstia a disposio fundamental que nos coloca face ao nada. J Kierkgaard, o lsofo que foi o grande terico da angstia, dizia que a angstia era o desejo dirigido para aquilo de que se tem medo. Na sua clebre expresso, era uma simpatia antipatizante, 8 Interaesuma antipatia simpatizante. Uma vertigem. Hegel escreveu que a cons-cincia sentia a angstia da ameaa integridade da existncia, causada por esse Senhor, esse Amo poderoso e absoluto que a morte.O Dasein, diz-nos Heidegger, condena-nos a viver morrendo em cada dia, mas a ser, a existir. Existir como, viver como? Desejavelmente, cum-prindoonossodesejo(que,comonotaLacan,sempreodesejodo desejo) e sendo capaz, como dizia Freud, de estabelecer relaes com os outros, de trabalhar, de criar. De facto, na relao com o outro que podemos viver e pensar a existncia, que podemos realizar o Dasein j que a alternativa solipsstica ainda pior. Mas o que a relao com o outro? O encontro do sujeito com o objeto, como dizia Heidegger? Mas o que este objeto? Para Freud, como sabemos, a pulso primria, vem antes do objeto, que s o objeto por causa da pulso. As escolhas de objeto, sejam objetais strictu senso ou narcsicas, visam sempre satisfazer a pulso. O objeto, diz-nos Freud, sempre o objeto reencontrado. Freud tem uma frase terrvel num dos seus textos sobre o narcisismo, que diz assim: o amor parental, to comovente e no fundo to infantil, no seno o nar-cisismo parental renascido que, transformado em amor objetal, revela sem margem para dvida a sua natureza primeira (SE 14: 91).Masvamospegarnestaquestodonarcisismo.Interessa-meaqui o narcisismo, porque quero falar-vos de duas patologias do narcisismo que no fundo so duas patologias do Eu. Duas patologias do Homem-ser-para-a-morte, como dizia Heidegger.Estas duas patologias do Eu que, por vezes, alternam de forma vio-lenta so a MELANCOLIA e a MANIA. MANIAhiperactividade toxicomanias alcoolismo erotomania ludopatia somatizaes pornograa compulsiva comportamentos ordlicos violncia agida perverses

TRIUNFO S/ A MORTE (exultao)hipocondria somatizaes culpa exibida anorexia mental restrio das funes do Eu A MORTE COMO TRIUNFO suicdio MELANCOLIA9 O ngulo Morto da DepressoTentei encontrar no mundo da realidade externa um objeto que ilus-trasseaciclotimiaeencontreialgoqueachoqueopodefazer.um objetodamecnicaautomvel,quemeatrevoapensarqueseriado agrado do Prof. Freud.Eis um amortecedor. Como veem, consiste num reservatrio de gs e noutro de leo. O mbolo desce contraindo o gs que o ego, esmaga-do (depresso acentuada: melancolia) e depois sobe libertando a lbido parafora(albidooleo).Quandosecarregadeumlado,soltado outro, num movimento de vaivm reminiscente da ciclotimia. Este m-bolo da vida, ou da morte, funciona como uma mola. Poderia ser mais lento, suponho, mas foi o que consegui arranjar. Mas o que importa, se fui bem sucedida na escolha do objeto ilustrativo, metaforizar, se tal coisa possvel, o aperto da angstia.Nas palavras do poeta Artaud, a angstia que aperta como uma pin-a o cordo umbilical da vida Aquilo a que Freud chamou a Hilosigkeit, o desamparo, o perigo inven-cvel (danger unsurmontable), como diz Lacan (2004), est a apertar a mola da vida. O que este desamparo? Freud descreve esse sentimento, essa an-gstia, esse terror, em Inibio, Sintoma e Angstia (1926), como prprio do 10 Interaeshumano, diante de foras internas e externas mais poderosas do que ns, da imprevisibilidade do futuro, da difcil aceitao das nossas fragilidades e dos nossos limites, da necessidade de integrao dos aspetos conituosos, da solido primitiva e irredutvel, da ameaa de aniquilao, do vazio, do escuro. Sentimentos paralisantes de insignicncia e de impotncia, como lhes chama Fromm. Em suma, o terrvel desamparo perante a solido e a morte, e que assume vrias formas conforme as fases da vida, desde aquilo a que podemos chamar uma proto-angstia, que corresponde ao abandono sentido pelo beb, at culpa e angstia social, passando pela angstia da castrao. De facto, h angstias para todos os gostos e para todas as fases da vida, mas julgo que todas elas tm um fundo negro que tem a ver com a angstia de morte, com o desamparo. O buraco negro, como lhe chama Grotstein (1999). Bion chamava a esse desamparo o Arf-Arf, o terror que surgia na noite. Tenho um pacien-tequelhechamaumasolidotoforte,toforteUmacoisaatroz. Carlos Amaral Dias d-lhe uma designao de que muito gosto: estar merc do objeto. Lacan (1986), por seu lado, fala da angstia como demanda do objeto que me visa e solicita a minha perda. Para Lacan, o aterrador esse Outro, simultaneamente familiar e estranho que parece que me conhece e que eu no reconheo, na medida em que no sei o que sou para ele. Que faz o bb que passou pelo trauma do nascimento e pelas au-sncias repetidas da me (e no estou a falar sequer da me ausente)? Quefazomeninodiantedaameaadacastrao,ouameninaque percebequeaesperaasortedame?Quefazoamantequeaguarda desesperado ou desesperada uma palavra do objeto todo-poderoso que lhe tomou conta de uma parte do eu? Que faz a criana invadida pela culpa, que teme a retaliao do Outro e simultaneamente a deseja?Ovdio conta a histria de Arcas, lho de Zeus e de uma ninfa a quem a inevitvel e ciumenta esposa Hera/Juno castigou transformando-a numa ursa. O jovem Arcas vai caar e depara-se com uma ursa enorme, a me perdida, que o olha com olhos de quem sabe quem ele , quando ele no sabe. Levanta o arco, angustiado, est diante da morte. A ursa tem os olhos da Medusa. Olhos vtreos, como diz Lacan. Imagino que fossemtambmolhosassimquedipoenfrentounoencontrocoma Esnge.Quemsoueu?Quemstu?Oquesoueuparati?Aeternas perguntas, no formuladas, das crianas, dos amantes e dos poetas.Que faz o menino a quem morre a me? Ou o pai? Ou os dois, como o caso daquele meu paciente. Conseguir dar-se um nome quela an-gstia?11 O ngulo Morto da DepressoDequedefesasdispeapsique,oumaisprecisamenteoEu,que est a merc tanto das pulses vindas do Id como das punies vindas doSupereu,comodorealquesimultaneamentesolicitaeameaa? que o objeto pode ser ameaador, tanto por ser persecutrio, como por no ser satisfatrio. Bion tem uma frase muito interessante: todos os objetosdequenecessitamossomausobjetos,porqueatormentam, porque suscitam o desejo impossvel. aqui que entra a mola da vida ou da morte (ver 1 ilustrao)Diantedaangstiaperanteodesamparo,operigo,afrustrao,a impotncia, a nitude, o nada, o psiquismo humano desenvolve vrias estratgias. Ali, na parte de baixo do amortecedor est a melancolia, que Drer famosamente ilustrou. Ora vejam: Drer: Melancolia12 InteraesRepare-se nos olhos do anjo: h uma zanga por detrs da apatia. Um dio ao objeto que j um dio ao prprio Eu. Mas ouamos o que diz Ivette Centeno (2007), que uma especialista em arte, sobre esta gravu-ra de Durer, no seu blog Literatura e Arte (novembro 2007):O Anjo de Drer tem a marca da Melancolia, estado de alma atri-budo a Saturno, e marca, nos alquimistas, da NIGREDO, anun-ciadora de uma transformao espiritual (que pode ou no vir a concretizar-se).Nacriaoartsticaessamelancoliatantopoderepresentar a pausa depressiva, depois de completada uma Obra, como um compasso de espera em que alguma coisa se aguarda, seja a re-velao, seja a mudana.No exerccio artstico a espera pela inspirao pode traduzir-se num tdio melanclico, que s um novo impulso vir modicar.No dicionrio Mito-Hermtico de Dom Pernety, lemos que a Melancolia signica a putrefao da matria. Os adeptos tambm adesignamporcalcinao,incinerao,matriaaonegro(ni-gredo) por haver algo de triste na cr negra. Mas na Obra alqu-micaanigredoanunciaasnovasfases:albedoerubedo,ada perfeio maior.O Anjo de Drer aguarda, de asas cadas, que a transformao se verique.No meu entender, esta Melancolia de Drer diz respeito quilo que notempodelesedesignavapormelancoliaimaginativa,umaestado prvioaodacriao.Eraumtipodemelancoliaconsideradoprprio dos artistas. No acho que exprima bem a melancolia, aquela de que eu estou a falar. Tentei encontrar uma pintura que expressasse melhor essa caracte-rstica da melancolia, que o fecho do sujeito sobre si prprio, um re-traimento quase orgulhoso, e acho que este quadro de Munch, chamado tambm Melancolia, expressa melhor aquilo de que vos estou a falar:13 O ngulo Morto da DepressoMunch: MelancoliaAtente-senosolhosdamulher:soaindaolhosenegrecidos,sim, mas vazios. Ou melhor, opacos. H aqui uma opacidade funesta, quase psictica, a lbido regrediu, est toda l dentro. Reparem na apatia, em contraste com o calor dos vermelho-laranja que a rodeiam.Mas vamos voltar ao slide da mola da vida. Em cima est a mania. Esta mania, curioso, que devia ter os olhos do anjo de Drer.E isto interessante, porque eu justamente entendo que tanto a ma-nia como a melancolia, ambas formas de relao especular com o real, so uma forma ilusria, claro, de triunfo sobre a morte. A mania, porque o triunfo sobre a perda do objeto, ou sobre a perda do amor do objeto. A melancolia, porque o triunfo sobre o objeto. No caso mais extremo, o suicdio, o melanclico ao matar-se mata tambm o objeto cuja sombra caiu sobre o seu Eu, como escreveu Freud.Entre estas duas estratgias, temos o abismo do viscoso, do informe, da morte.Mas anal o que a morte? Pergunta quase retrica, a minha. Freud 14 Interaesdizia que o inconsciente no conhecia a morte. Ser ela representvel? Pode representar-se o cadver. Mas a morte representvel? Vou sele-cionar as seguintes pinturas, numa tentativa de descobrir uma represen-tao da morte (quatro pinturas de Eva Hesse e outra de Munch): The Estate of Eva Hesse. Courtesy Hauser & Wirth, Zurich - London15 O ngulo Morto da DepressoMunch: Leito de MorteO ser humano tem uma ideia da morte por aproximao. por via da angstia, e angustiadamente, que vislumbra o que poder ser a morte. Fragmentao,aniquilao,liquefao,vaporizao.Desaparecimento dessa suposta unidade que era um ser humano. Queda nal no abismo. Terror sem nome. Tambm, desejo de imobilidade, de regresso ao inor-gnico (nirvana) a que Freud chamou a pulso de morte? A angstia de morte NO o mesmo que a pulso de morte, mas por vezes tocam-se, como bailarinas enlouquecidas. No esqueamos que a angstia um afeto.Irei deter-me um pouco aqui nesta questo da pulso de morte que tantas dissidncias tem causado no seio das sociedades psicanalticas como sabem, h os que so a favor, os que so contra. E h a escola kleiniana que desvirtuou a pulso de morte e a reduziu ao instinto des-trutivo. Enquanto Freud punha a nfase no desamparo do ser humano, Klein fala da angstia como resultante do perigo do trabalho interno da pulso de morte.Freud introduziu em 1920 a noo de pulso de morte como intrn-seca ao ser humano. Faz parte de ns prprios, da nossa precria exis-tncia, este vetor mortfero s contrariado por Eros. Freud vinha amadurecendo desde h anos o conceito de pulso de morte, tendo aludido a ele noutras ocasies, mas de uma forma indire-ta, atravs do princpio da constncia, cuja primeira referncia surge nos Estudos sobre a Histeria, escritos com Breuer e publicados em 1895. Mas em Para Alm do Princpio do Prazer que aquela formalmente explici-16 Interaestada, e de uma forma concisa e brutal: O propsito de toda a forma de vida a morte (SE 18:38).Todaavidacontmumapromessademorteou,sequisermos,a morte no s pr-existe vida e se segue a ela - est contida nela. Como diz Green (2002,2007), existe, na vida, um mecanismo programado para a morte. H um trabalho muito interessante sobre a programao das clulasparaamorte,chamadoLaSculptureduVivantdeJean-Claude Ameisen que bilogo. A tendncia para a morte, para o retorno ao estado inanimado, est constante e silenciosamente a trabalhar dentro do ser vivo. Os poetas eansjovinhamdizendohmuito,muitotempo,comoHeraclito, neste pequeno fragmento, em que fala daqueles que vivem a sua mor-te e morrem a sua vida (Kirk et al. 2005: 213). Ou Sneca, mais tarde: Morremosdiariamente(cotidiemorimur),jquediariamentecamos privados de uma parte da vida; por isso mesmo, medida que ns cres-cemos a nossa vida vai decrescendo (Ep. 24: 20). Ou ainda, j no sculo XVIII,EdwardYoung(1997):Onossonascimentonadamaisqueo comeo da nossa morte.Freudcaminhaparaestaconclusoadaexistnciadapulsode morte - baseando-se nas teorias de Fechner (1801-1887), autor que ele teria em grande apreo e que tornar a referir no seu Estudo Autobiogr-co (SE 20: 59). Gustav Fechner tinha publicado, na segunda metade do sculoXIX,umateoriadoorganismo,segundoaqualqualquermovi-mento psicofsico que chega conscincia trabalhado pelo prazer ou desprazer, no sentido da estabilidade. Ou seja, o sistema nervoso (ou, mais abrangentemente, um sistema orgnico) tem uma tendncia inata para manter constantes as quantidades de excitao. MasFreudvaiterderesolvernestetextode1920,aquestodare-lativadominnciaentreestasforas;Lust/Unlusteatendnciaparaa estabilidade, observada em todos os organismos. E f-lo postulando a existncia da pulso de morte para alm do princpio do prazer, como diz o ttulo.Comoeleprpriogostavadereferir,ospoetaschegamsemprel antesdosoutros.Schopenhauer(1964:98)referira,emMetafsicada Morte, a nostalgia innita do paraso perdido do no-ser. Freud cita no seutextoumaoutrapassagemdeSchopenhauer,paraoqualamorte eraoresultadoeopropsitodavida,enquantoapulsosexualeraa encarnao da vontade de viver (SE 18: 50). George Steiner, com a lumi-nosidadequelhecaracterstica,enuncia-oassim:aconsumaoda libido encontra-se na morte (Steiner 2003: 33). Julgo que no possvel perceber-se o conceito da pulso de morte 17 O ngulo Morto da Depressoem Freud sem se ter em conta a questo da Hilogsigkeit, do desamparo. Eaindadeumaoutranootambmdesenvolvidapsicanaliticamen-teporFreud,adeUnheimlich,aestranhafamiliaridadeouinquietante estranheza,quedatonalidadecaractersticaangstiaequepode seraparentadaaoconceitodeangstiadeKierkegaard,carregadode ambivalncia.A pulso de morte nega a separao. E a separao o abandono, o desamparo. O retorno ao ventre materno o objetivo narcsico primrio: a beatitude, a juno do m e da origem. A trade das angstias, com que a criana se confronta, escurido, silncio, solido, f-la procurar o conforto do Outro. Mas, como faz notar Lacan, esse conforto tambm o perigo que vem do objeto. Como Lacan no se cansa de dizer, o perigo vem do Outro, tanto pela falta como pelo excesso. Alis, j Freud o tinha dito: nunca estamos mais vulnerveis do que quando amamos. que o terrvel da angstia mesmo isto: nasce dentro, como perigo interno, e conrma-se fora. Foge-se dum perigo para se cair noutro. Mas assim. Negando-se a separao, nega-se a morte. A iluso do triunfo sobre amortedoquevamostratar.Queestratgiasusamoshumanos para negar a nitude? Veremos que quase todas elas passam pelo narci-sismo. A morte, na aspirao narcsica, o nico adversrio que vale a pena desaar e vencer. Da tambm o fascnio pela morte que encontra-mos em algumas organizaes psquicas. Morte e ressurreio, paixo e xtase, o ciclo infernal da ciclotimia. Oshomensinventaramosdeusesparanosematarem,dizuma personagem de Dostoievski. Agora, que j matmos os deuses, que nos resta? A cincia? O progresso? Mas at a cincia parece por vezes apos-tada em negar a morte, numa espcie de omnipotncia manaca. Tambm h os que se matam para no morrerem, como os bombis-tassuicidas,aquemsupostamenteaguardamnoparasosetenta(se-tenta!) virgens. Algunsvendemaalmaaodiabo,comoFausto.Ehosquecalam odesejoparafugirmorte.Nocomo,nobebo,nofaosexo,no peco; morro em vida, mas que interessa? Matando a vida em mim, atin-jo a felicidade da quietude.Aviadoxtaseedomisticismoesta:pretende-seatingirogozo atravs da retirada radical do mundo e do objeto. Mesmo na proximida-de do objeto, a contemplao e a meditao tendem a dissolv-lo. Mais uma vez, semelhana do lactante que mama e dorme, pretende-se che-gar beatitude e quele sentimento ocenico que Freud, referindo-se s palavras do escritor Romain Rolland (2006), diz que nunca sentiu, mas 18 Interaesque corresponder ao restabelecimento do narcisismo original. Georges Bataille (1988), nos seus textos sobre o erotismo e religio aplica a esses religiosos/msticos a seguinte expresso: morrem para si prprios.Hosqueingeremsubstnciasquetrazemooblviotemporrioe uma sensao de triunfo sobre a morte. H os que se afogam em lcool emorremliteralmenteafogados,comoEdgarAllanPoe,quemorreu asxiado numa sarjeta. Outro grande melanclico.Hosqueprocuramnoprazerenoorgasmooantdotocontraa propriamente dita, a ceifeira que tudo nivela, como algum lhe chamou. Entre estes esto os erotmanos ou eroto-manacos. Reparem no que escreveCasanova:salegreminhajovemamiga,atristezamata-me (cit. in Cortanze 1998: 43). E ainda: Existo porque sinto []. De outra forma, seria o tdio, do qual devemos fugir como da morte (cit. in Sol-lers 1999: 34).A erotomania, tambm ela uma defesa, seria um movimento contr-rio ao do mstico: em vez do reuxo, temos a exultao, o transbordar, o invadir dos objetos e do mundo. A plenitude mxima, o orgasmo re-petido at exausto. Seria o narcisismo na sua vertente mais positiva. J no o sono satisfeito do lactante, a satisfao oral da devorao do objeto. Haindaosquenegamapassagemdotempo,osquerecusamo envelhecimento, os que se fazem cortar e esquartejar para ganhar mais algum tempo ceifeira.Outroshquesefazemvelhosemnovos,carregandoumcansao extremo, com que j parecem ter nascido. o caso de muita da poesia de lvaro de Campos (1980), como esta: O QUE HO que h em mim sobretudo cansao No disto nem daquilo,Nem se quer de tudo ou de nada:Cansao assim mesmo, ele mesmo.Cansao.A subtileza das sensaes inteis,As paixes violentas por coisa nenhuma,Os amores intensos por o suposto em algum.Essas coisas todas Essas e o que falta nelas eternamente :Tudo isso faz um cansao,19 O ngulo Morto da DepressoEste cansao,Cansao.[]Para mim s um grande, um profundo,E, ah com que felicidade infecundo, cansao,Um supremssimo cansao,ssimo, ssimo, ssimo,Cansao ... lvaro de Campos (09-10-1934)Outrosfascinam-secomamorte,procuram-naincessantemente, quasedeformaciumentaepossessiva.Artaudumexemplo,entre muitos. Baudelaire, tambm. Algunsdesportosradicaishojeserotambmisso,masachoque sempre existiram seres que quiseram seduzir a morte, como se seduzi-la fosse aplac-la. Um tropismo irresistvel leva estas pessoas a serem irremedivel e compulsivamente atrados por situaes perigosas e ar-riscadas.H os que tm carradas de lhos e para quem a famlia uma exten-so narcsica do Eu. A idealizao da famlia concebida para servir uma espcie de Eu narcsico coletivo e que confere identidade, faz a abolio das diferenas, negando mais uma vez a separao. Haindaoshipocondracos.Aangstiainstala-senumrgo,a encarnaodonarcisismo,comosugereFreudnumtextosobreapa-ranoia.Eucolocariaahipocondriaaquinapartedebaixodamola,na melancolia. Hosquedesenvolvemfobiasvriaseoptampelosevitamentos, estratgiaalismuitoecaz,equeconfereumamscaraasspticae protectiva angstia e a estabiliza. Ou inventam, como na neurose ob-sessiva,rituaismgicosparaespantaraceifeiraamorte-comoo Homem dos Ratos, o paciente de Freud.Eaindahosqueprocuramaimortalidadedeformasporventura mais sublimadas, maneira dos grandes trgicos gregos. Criando obras quepermanecemnamemriadoshomens.Eassimsevodaleida morte libertando, como dizia Cames.Todas estas estratgias so defesas mais ou menos ecientes contra a angstia de morte, a dor mental que da advm. Panaceias, digamos. Mas parece que no temos outra soluo, emparedados como estamos entre dois nadas.20 InteraesAmorteliquefao,vaporizao,passagemaoinforme,comose pode ver neste poema de Chamfort (1923): CELLE QUI NEST PLUSDans ce moment pouvantable,O des sens fatigus, des organes rompus,La mort avec fureur dchire les tissus,Lorsquen cet assaut redoutableLme, par un dernier efort,Lutte contre ses maux et dispute la mortDu corps quelle animait le dbris prissable;[]Tes yeux xes, muets, o la mort tait peinte,Dun sentiment plus doux semblaient porter lempreinte;Ces yeux que javais vu par lamour anims,Ces yeux que jadorais, ces yeux que jai ferms!Sbastien-Roch de ChamfortA aniquilao do corpo humano, a nossa morte anunciada, e o terror quetalideiasuscita.Oamorfo,oviscoso,comoaartedeEvaHesse, entre alguma coisa e o nada.21 O ngulo Morto da DepressoO enfermo tem dois destinos:1. O INFERNO (MELANCOLIA)Na melancolia a lbido retrai-se sobre a mundo fantasmtico e sobre o Eu. Prottipo: o beb que recusa o alimento.Nas palavras de Amaral Dias (1995) existe uma projeo do self no inte-rior da parte do objeto nuclear percebida como m, e uma identicao do self quele objeto. O self, de forma centrpeta, fecha-se sobre si pr-prio, agravando-se os sentimentos de culpa e de autorrecriminao. Ou:2. O EFMERO (MANIA), a que, no melhor dos casos, podemos chamar os DESTINOS DE EROS. Na mania (elao) a libido exaltada transborda, invade o objeto e o mundo (prottipo: devorao oral do objeto). Ainda nas palavras de Amaral Dias, aqui o self faz um movimento centrfugo, projetando-se dentro do objeto idealizado e omnipotente.Mas vamos primeiro melancolia.A MELANCOLIACai a chuva abandonada minha melancolia,A melancolia do nadaQue tudo o que em ns se cria Virglio FerreiraFreud dedicou melancolia um texto, Luto e Melancolia, onde explica adiferenaentreolutonormalelutopatolgicoqueumaformade melancolia. A melancolia, como Freud ressalta, caracteriza-se pelo facto de o paciente no parecer ter qualquer pudor em se expor e em exibir a sua dor. Abraham (1988), por seu lado, articulou a melancolia e a de-presso com a identicao narcsica, com os fantasmas da incorpora-o do objeto, com a ambivalncia. Na melancolia, diz Freud, a perda do objeto no da ordem do consciente. A inibio - a inanio - no me-lanclico parece mais misteriosa do que no luto: o que que a pessoa perdeu? A autoestima ca mais prejudicada do que no luto, o ego mais empobrecido, esvaziado, incapaz. Em Hamlet temos um bom exemplo da restrio das funes do Eu. Omelanclicoexibeasuamelancolia.Algoseperdeunoseuego; mas o qu? Uma parte do ego ataca o prprio ego o Super-Eu, como 22 InteraesFreuddesenvolvermelhormaistarde,emCivilizaoeosseusDes-contentes (SE Vol. 21). Que parte do Eu atacada? A parte que pertence ao objeto: a sombra do objeto caiu sobre o Eu, nas palavras de Freud. Paralelamente, h uma espcie de processo de vitimizao. Desaponta-da, a libido retira-se do objeto e investe na parte do Eu que a do Outro a parte do Eu que se identicou ao objeto por incorporao.O melanclico perdeu uma parte de si prprio que j no o objeto, nem ele prprio. Diz uma paciente:Eu gostava tanto dele. Quando acabmos foi horrvel. Foi como semetivessemarrancadoumaperna,umbrao,seil.Fiquei amputada. Dentro de mim, algo morreu. No. no morreu. Fi-cou l, mas em estado de cadver. Que transporto dentro de mim h anos. Odeio-o. Odeio-me por isso.No entanto, importante entender que este objeto, cadver conser-vado, embalsamado, que ocupa o melanclico, no necessariamente uma pessoa; pode at ser uma abstrao, um ideal.Freudinterroga-sesobreaaparentefraquezadesteinvestimentono objeto, que estranhamente parece ter sido pouco resistente ao desaponta-mento. Seria assim frgil, e pouco resistente frustrao, por ter sido um investimento mais narcsico do que objetal. E que, pela mesma razo, exi-ge por vezes um reinvestimento, uma anticatexis poderosa, sob a forma da mania, para que a ferida narcsica parea fechar-se (SE Vol. 14: 258). A ambivalncia, essa coexistncia de amor e dio, tambm um fa-tor determinante no processo melanclico, diz-nos Freud. Escreve que o investimento libidinal, aquilo que comummente se designa por amor (palavra que Freud raramente usa, preciso que se diga; normalmente refere-seaestadoamoroso),esseamoreramaisimportantedoque oobjeto.Poroutraspalavras,onarcisismopredomina.Narcisovence Eros. Ou ser que Eros Narciso? A este propsito, recorro mais uma vezaFreud,eaumacartaqueeleescrevesuaentoaindanoiva, Marta,equeCarlosAmaralDiascitanoseulivroCarneeLugar(Dias 2009:90):Noqueroquemeamespelasqualidadesquemeatribuis [];precisoquemeamessemrazo.Estamosdiante,comonota Amaral Dias nesse texto, de uma assimetria irredutvel. Eros Narciso. Embora na poca em que escreveu Luto e Melancolia (SE Vol. 14) Freudnotivesseaindaconstrudooconceitodepulsodemorte, dissoquesetrataquandooEucrueleincansavelmentecastigadoe atormentado por acusaes contra o objeto, que so deetidas sobre o 23 O ngulo Morto da DepressoEu.Estasacusaesproviriamdeumaagnciachamadaconscincia (ainda no designada, nesta fase, por Super-Eu). O melanclico, escreve Freud, prefere o conito dentro do ego, ao luto por causa do objeto.Autorrecriminaes,desprezoporsiprprio,autocrticaconstante so caractersticas do estado melanclico. O sentimento de culpa aqui exibido de forma notvel, com acusaes de egosmo, mesquinhez, de-sonestidade,etc..Isto,nohmalqueomelancliconodigade siprprio.comosedilacerado,entreoSupereueoEu,deetisseo sadismo objetal (que est l do outro lado, do lado da mania), recasse e se aninhassenuma culpa melanclica que o fecha para o mundo (lem-brem-se do co do Drer e da falta de expresso da mulher no quadro do Munch). Como escreveu Maria Torok (1995), o sujeito melanclico, nopodendointernalizar,incorporaoobjetodestri-separanore-nunciar, para no fazer o luto. DeacordocomRosolato(1975),todasasdepressestmumeixo narcsico. O suicdio, ou a sua tentativa, revelam o ncleo melanclico, asaber:identicaonarcsica,incorporaofantasmticaoral,ambi-valncia para com o objeto, prevalncia da pulso de morte desligada. Desligada de qu? De Eros, claro, que cou ali em cima, na mania. Ro-solato sugere que a melancolia poderia ser uma forma de paranoia inte-rior, em que o Super-Eu e o objeto incorporado ou seja, a parte do ego sobre o qual recaiu a sua sombra, so o perseguidor e o perseguido. A melancolia (que em grego signica: blis negra) tem sido objeto de estudodesdeosantigosgregos.Muitos,aolongodossculos,entre poetas, lsofos, historiadores, artistas, se lhe tm referido como sendo um fator de criatividade. nesses termos que Aristteles, por exemplo, se lhe refere. O seu estatuto terico e social tem sido, assim, garantido. RobertBurton(2004),umautordosculoXVIIquefazumacopiosa eesplndidaviagempelomundodamelancolia,chama-lheumater-rvel aio mas uma beno paradoxal. J se lhe chamou acdia, que em latim signicava tanto ansiedade como desgosto, e que era um dos sete pecados mortais na idade mdia. Spleen, ennui, black dog (era as-sim que Churchill chamava aos surtos depressivos), black sun (Kristeva 1989), muitas tm sido as designaes para este mal. A MANIAJ a mania, palavra tambm de origem grega, conotada com a loucura, parece ter gozado de um estatuto menos respeitvel. Talvez hoje esteja-mos num ponto de viragem, neste aspeto. H algo de libertador na ma-24 Interaesnia, em relao melancolia, que o prprio Freud reconhece. A vertente dos destinos de Eros, possivelmente.A mania, como vos disse, pu-la no outro extremo da mola, do amor-tecedor. A mania e as suas diversas manifestaes. Para Freud, a mania era uma forma de anticatexis da melancolia, para Klein e Lewin uma defesa contra a angstia depressiva. Amania,talcomoeuaentendo,tambmelaumatentativade triunfosobreamorte:sejapeloexcessopulsional,pelofrenesimhe-donista,pelaprocuradoprazeredoxtaseorgsmico(essapequena morte, como se dizia antigamente), pela busca denodada dos veculos possveisdoprazer,osobjetos(pessoas,substncias,coisas),um transbordar que deixa pressentir simultaneamente o trabalho da pulso de morte e o esforo de Eros para nos manter vivos e amantes da vida. A mania, diz Binswanger (2005), pe em causa a noo de unidade dosujeito,introduzumadisruponasuanarrativa,nocontinuumda sua biograa. A conscincia no ui no Dasein, a linha passado/presen-te/futuro est quebrada.Numa das formas da mania, a erotomania, temos o desejo alucinado: o objeto perdido supostamente reencontrado no erotismo manaco. Ra-camier (1957) dizia que o salto para fora da depresso que faz cair na exaltao manaca (a que ele nos anos 50 chama tambm euforia mrbi-da). Os objetos sucedem-se, vicariantes, e so investidos narcisicamente. Abraham (1988) descreve muito bem essa incorporao canibalesca, de-voradora, sdico-oral. A dor mental denegada e a relao de proximida-de evitada. Os objetos investidos narcisicamente podem ser pessoas, cor-pos, ou partes de corpos, ou uma droga lembrem-se da cano maldita cocanaqueroubasteomeuamantemalditacocanaodeio-teegosto de ti - uma msica dos anos 1920, mas com verses mais recentes. O investimento narcsico pode ser ainda num fetiche, como nas perverses, ou na vertigem do jogo, ou na procura compulsiva de pornograa, ou em comportamentos ordlicos, ou na violncia agida, ou noutras perverses de que nos fala, entre outros, Rosolato (1975). A violncia pode ser vista como a angstia agida, des-afetada (separada do afeto).Masnopodemosentrarnessetemaagora,emborasejatambm um tema muito interessante, o da violncia contempornea. Vamos car por aquilo que ouvimos dos nossos pacientes:Nuno, 40 anos, empresrio, trabalhador compulsivo, humor bem disposto, afvel, risonho. Queixa-se de ataques de pnico. De re-laessucessivasquepoucoduram,quemorremporsi.Tento 25 O ngulo Morto da Depressoperceber. Declara que no gosta de pensar nisso. Os ataques de pnico, para que est a ser medicado, sero a ponta do iceberg de uma enorme angstia, que ele nega. De que no quer ouvir falar, porque parar morrer. Acrescente-se que este paciente perdeu ambos os pais ainda em criana, no espao de seis anos. Primei-roopai,quandoeletinhaquatroanos,depoisame,quando tinha nove.A hiperatividade, o alcoolismo noutros casos, a toxicomania, as adi-es alimentares, o comportamento impulsivo e compulsivo, a constan-te procura de novos objetos para catexizar. Eterna e sucessivamente de-sapontada, a lbido retira-se do objeto. Investimento por natureza pouco resistenteaodesapontamento,comojreferi.possvel,masafalta est sempre l. O desespero. O estar merc do objeto. O objeto pode desapontar,abandonar.Oujdesapontou,jabandonou.Porventura uma me que no esteve l, uma mre ailleurs, como diz Andr Green (1983),umobjetodexaoambivalente,ambivalnciaessaacompa-nhada de intolerncia frustrao. este o fator constitutivo da Hilog-sigkeit, do desamparo. Estar desamparado como morrer. Como se lida com o nada, com o vazio deixado pelo objeto? Ou com aestranha familiaridade do objeto que invade? Porque a angstia no nasce s da falta, mas tambm do excesso. Ponhamosaquestoassim:tantoasoluomelanclica,quecor-responde a um estilo vivencial de perda, como a soluo manaca, com osseusobjetosvicariantes,escolhemaviadoinvestimentonarcsico (sublinho que me parece que melancolia ser talvez uma das patologias que mais reduz as possibilidades de escolha por parte do sujeito). Uma parte do Eu passou a ser do Outro, o objeto foi incorporado. Desaponta, frustra. Na soluo manaca, o sujeito desinveste, retira a lbido, procura outro objeto para investir narcisicamente, objeto esse que at pode ser uma idea, uma abstrao. Ser que estamos condenados a isto mesmo, a procurar incessante-mente o objeto perdido? Das Ding, a Coisa, de que nos fala Lacan, o objeto que se quer encontrar melhor dizendo reencontrar no quer ser en-contrado. O objeto, como tal, est perdido; outros, ou outra coisa, aguar-dam-nos, para o melhor e para o pior (Lacan 1986:65). Ocorre-me uma dasltimasfrasesdeFreud,escritaemfrancspoucoantesdemorrer, frase que sempre me despertou uma sensao de inquietante estranheza: en attendant quelque chose qui ne venait point.Ser que a procura incessante do objeto, a mania, a nossa salvao 26 Interaese a nossa condenao? Ser que, como dizia Freud, amamos (investimos libidinalmente) para no adoecermos, e adoecemos se no amamos (SE Vol. 14: 84)? Duas mnadas que se procuram na procura eternamente frustradadabolhadidicaperdida.Ocontactodeduasepidermes,o intercmbio de duas fantasias, como escreveu o poeta Chamfort (1923) no poema atrs referido?Todavia,talveznemamanianemamelancoliasejamnecessaria-menteonossodestino.Existeaneuroseobsessiva,quebrincacoma morteatravsdemacabrosrituais.Hasperverses,hashisterias. Mas como evitar cair no abismo do viscoso, do informe?H uma outra alternativa, talvez a mais difcil e apenas ao alcance de alguns,nosei,queadasimbolizao.Ouseja,apartirdaposio depressiva e da elaborao do pensamento. Klein comeou por pensar asposies(depressivaeparanoide)comoconstelaesdedefesase ansiedades,ecomofasesdedesenvolvimento.Maistarde,passoua usaraexpressoposiocomomanifestaodeatitudesemrelao ao objeto, e que poderiam ocorrer em qualquer fase da vida. Na posio depressiva, segundo ela, o objeto j visto como um objeto inteiro, e no apenas nos seus aspetos parciais, maus ou bons. Esta possibilida-dedeintegraroobjetoacompanhadadealgumatristeza,ansiedade e preocupao em relao ao mal que se ter podido causar ao objeto. aqui que surgem, no discurso de Klein, a necessidade e a possibilida-de de reparao. Meltzer chama a ateno para que este objeto total visto como nico e como no sendo intercambivel. Este objeto inteiro, internalizvel,seriaogarantedeumaseguranainteriorcombasena qualpodemterlugar,edesenvolverem-seasfunesligadasaointe-lecto,comoaformaodesmbolos,asocializao,acapacidadede estabelecerrelaescomoutrosobjetosquenoame,aelaborao docomplexodedipoedarelaocomopaieaindaacapacidade de se relacionar e interessar por outras crianas. Para Klein, quando o objetointernonobom,maspelocontrriopersecutrio,temlugar umafugaparaobjetosexternos,parciais,numanegaomanacada realidade psquica.A depresso abrange um grupo complexo de ideias e emoes, com as quais o sujeito responde experincia de perda ou falhano de certas aspiraes ou expectativas. Pode fazer parte da vida quotidiana (micro-depresses) ou tornar-se uma doena severa e prolongada. A ferida nar-csica que a acompanha envolve falta de amor-prprio e de autoestima, acompanhadadesentimentodedesamparo.Odesenvolvimentodo amor pelo objeto perturbado: em vez de amor, aparece hostilidade e 27 O ngulo Morto da Depressoculpa para com o objeto e para com o self. Tambm surgem sentimen-tos de perseguio, que podem alternar rapidamente com afetos mais depressivos.Existeumalutaparapreservararelaodeobjeto:mais vale um objeto mau que objeto nenhum, sublinha Grinberg (1992). Na depresso narcsica, acrescenta este autor, o sujeito sente que no pode cumprirasaspiraesdoEuIdeal.Emalgunspacientespodepredo-minaraculpapersecutria,sendodicilmentetoleradaaausnciado analista, a quem o paciente exige interpretaes frequentes, como prova de que est l (Grinberg 1992: 280 et passim).Rosolato(1975),porsuavez,estabeleceumcontinuumentreade-pressoneurtica,acompanhadadeculpabilidadeinconsciente,ea melancolia psictica, em que a culpa fala. Nesta ltima, os afetos que acompanham a depresso neurtica (pessimismo, desinteresse, triste-za,inibio,lenticao,astenia,inferioridade)apareceriamexacerba-dos, designadamente a culpabilidade, por vezes delirante, e a hipocon-dria.Aculpabilidade,nasuaformaacusada,remetecomclarezapara as trs causas indicadas por Freud: a prematurao inicial, a represso pulsional (embora o laxismo possa ter efeito similar) e os fantasmas de morte edipianos contra o pai (Ibidem: 7).Umdosaspetosmaispositivosdaculpa,aquelequeestligado tica e s suas avaliaes, o de aceitar a prpria nitude, de ser res-ponsvel por ela. Esta forma de responsabilidade passa pela aceitao das prprias fraquezas, escolhas e erros, como arma Rosolato. essa culpa que est na base do processo civilizacional e que permite a ambi-valncia e o processo simblico, por oposio violncia sem nome.Destamassacentral,viscosaeinforme,queuseicomometfora para a angstia de morte (e para os seus correlatos, que so a angstia da separao, a angstia de castrao e a culpa, ligada quilo que Freud designouporangstiasocial),comosairquenosejapelafugapara cima da mania ou pela descida aos infernos da melancolia? Talvez pela elaboraodaansiedadedepressivaquepassa,comodizJean-Claude Rolland (2006), pelo reajustar das relaes entre o eu e os objetos in-ternos. Ouseja,pensando.Pensandonosentidobionianodotermo.Pen-sar,paraBion,implicavadoisprocessosdistintos:humpensarque d lugar a pensamentos e h os pensamentos que andam procura de pensadores.Ospensamentospodemformar-senaconjunodeuma preconceocomumarealizaonegativa,desdequeamentetenha umacertatolernciafrustrao.Porseulado,oaparelhodepensar s aprende a pensar na interao da posio depressiva com a posio 28 Interaesesquizo-paranoide(talcomodenidasporKlein),equandooconten-tor contm de facto as ansiedades da criana, permitindo tolerar a dor mental, a aprendizagem com a experincia, a transformao e o cresci-mento. Caso contrrio, no h lugar formao de pensamentos, mas a elementos beta (as coisas-em-si), que so evacuados atravs de iden-ticaes projetivas macias.Masoimportanteacapacidadedepreservarasexperinciasdo passado (transformando-as em K) e estar aberto a novas experincias. Neste sentido, a posio depressiva, que implica ambivalncia mas tam-bm a capacidade de integrar o que foi dissociado, parece ser condio de pensamento, criatividade e crescimento. E na clnica, como ? Coimbra de Matos (Matos 2001) escreveu que a grande diculdade do depressivo (ou seja, daquele que tem uma dis-posio para a depresso) a abordagem da problemtica edipiana: o indivduo,emfacedaproblemticaedipiana,fazumaviolentarecusa e regressa ao narcisismo. Ou seja, relao dual e exclusiva em que conta,sobretudo,avalorizaonarcsicadosujeitopeloobjeto.Esta recusa em face do conito edipiano a retirada depressiva ou mesmo melanclica, se a regresso persiste. O investimento objetal, diz ainda Coimbra de Matos, tem de ser acompanhado pelo investimento narcsi-co, mas ultrapassando a relao especular. O sujeito tem de ser capaz de aceitar a diferena, a alteridade e de aceitar a negatividade da experi-ncia passada de uma relao parental insuciente, em que no se sen-tiu sucientemente amado, nem apreciado, nem compreendido. Fazer a mudana equivale a aceitar a perda inexorvel e denitiva, o que no fcil para quem pensa e sente ter recebido pouco (Matos 2001: 86). Acuradadepressividade,escreveaindaCoimbradeMatos(ibidem: 87), passa pela depresso vivida at ao seu mago, o abandono total e denitivo do investimento infantil da imago arcaica. No fundo, estamos diante, de novo, da questo do desenvolvimento e da criatividade. preciso, julgo eu, dar em sacrifcio o objeto introjec-tado que, embora maligno ou, pelo menos, insatisfatrio, faz parte do sujeito. E da partirmos para a criao do futuro escolhido por ns. No se trata apenas de reparar o objeto, tal como escreveu Melanie Klein. precisomat-loecri-lodenovo.nossaimagemesemelhana,em parte, mas tambm reconhecendo a satisfao e o prazer que podem vir da alteridade, do outro, do diferente. No h prazer como o que o que nos pode dar a realidade, como dizia Freud. No fundo, trata-se daquilo que a humanidade fez nos seus primrdios: treinar a capacidade de agir sobre o meio, deprimindo-se de quando em quando no h como es-29 O ngulo Morto da Depressocapar mas mantendo a esperana e o gosto pela vida. At morrermos, sorteaqueningumescapa.Aquestosempreamesma,desdeh sculos: como viver? Ou seja, como preparar a nossa morte? Fechados na jaula da angstia e da neurose, ou da melancolia, ou aumentando as nossa opes de vida, aquilo a que os matemticos chamam o grau de liberdade, incorrendo, certo, em maiores riscos? A criatividade, que tambm uma forma de investimento libidinal, tem muitas formas de se expressar. No nos deixemos aprisionar pelos modelos estabelecidos e socialmente impostos. Criar no necessariamente pintar um quadro, ou escrever um poema. Liberdade, criatividade, tudo se passa no palco daeternalutaentreapulsodemorteeapulsodevida.AtDeus, como escreveu Heine num poema que Freud cita (SE 14: 85), teria recu-perado a sade criando.E numa homenagem criatividade, ao poder da palavra e simboli-zao, termino com um poema, Escada sem Corrimo, desse poeta ge-nial que foi David Mouro-Ferreira (1983): uma escada em caracolE que no tem corrimo.Vai a caminho do SolMas nunca passa do cho.Os degraus, quanto mais altos,Mais estragados esto,Nem sustos nem sobressaltosservem sequer de lio.Quem tem medo no a sobeQuem tem sonhos tambm no.H quem chegue a deitar foraO lastro do corao.Sobe-se numa corrida.Corre-se prigos em vo.Adivinhaste: a vidaA escada sem corrimo.30 InteraesREFERNCIASAbraham, K.1988 [1927] Selected Papers on Psychoanalysis. Londres: Karnac.Amaral Dias, C.1995(A) Re-Pensar. Porto: Ed. 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Duas estratgias psquicas inerentes ao Homem-ser-para-a-morte heideggeriano, dian-te da angstia e da dor mental. Entre a melan-colia e a mania, o investimento narcsico fecha-se sobre o self ou transborda para o mundo na procuraincessantedeobjetosvicariantes.No fundo, larvar, viscosa, informe, est a angstia demorteeaameaadadepressodiantedo vazio,danitude,doabandono,daaniquila-o.Queestratgiasusamossereshumanos paranegaraseparaoeanitude?Veremos quequasetodaselaspassampelonarcisis-mo.Porqueamorte,naaspiraonarcsica, onicoadversrioquevaleapenadesaar e vencer.Palavras-chave: angstia de morte, narcisismo, ciclotimia, melancolia, mania, pulso de morte, depresso.The Blind Spot of Depression Summary Theillusionofthetriumphoverdeathisthe themeofthisarticle.Melancholyandmania are two pathologies of narcissism and the self, constituting two psychic strategies inherent to theHeideggereianbeing-toward-deathfacing anguish and mental pain. Between melancholy and mania, the narcissist investment closes on theself,oroverowstotheworldintheend-lesssearchforvicariousobjects.Theanguish ofdeathappearslarval,viscuous,andshape-lesstowardsthevoid,nitude,abandon,and annihilation, along with the menace of depres-sion. What strategies do the human beings use todenyseparationandnitude?Almostallof them go through narcissism. Because death, in thenarcissistaspiration,isthesoleadversary worth defying and winning.Key-words:anguishofdeath,narcissism,ci-clotimia,melancolia,mania,deathpulsion, depression.34 Interaes