a bolsa e a vida

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  • 7/24/2019 A Bolsa e a Vida

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    A Bolsa e a Vida - Jacques Le Goff

    1. Entre o dinheiro e o inferno a usura e o usurrio

    A Europa Ocidental, no auge da Idade Mdia sculos XII e ao XIX foi palco de uma mistura explosivaentre a economia e a religio, entre o dinheiro e a salvao Era a usura !ue, segundo o dicion"rio Aurlio trata#se

    do $uro de capital ou de um contrato de emprstimo em !ue o devedor se o%riga ao pagamento de $uros outam%m, tr"s a idia do lucro exagerado, da mes!uinhe&' nesta sociedade crist !ue figura o mes!uinho e avarento sugador de dinheiro, encarnado no $udeu

    detestado e ao mesmo tempo necess"rio A usura torna#se um dos grandes pro%lemas do sculo XIII, pois odesenvolvimento da economia monet"ria ameaa os velhos valores cristos Era preciso ento lutar a fim de selegitimar um lucro l(cito e diferenci"#lo da usura il(cita

    )omo ento uma religio !ue op*e +eus e o dinheiro $ustificar a ri!ue&a-ara responder a esta pergunta preciso %uscar nos documentos e textos no oficiais O eclesi"stico e o

    laico se interessam pela usura, porm a pr"tica religiosa, pelos usur"rios +ois tipos de documentos sonecess"rios para se encontrar pistas so as sumas ou manuais de confessorese os penitenciais. e tam%m osexempla.

    Os primeiros, partindo de uma mudana nas escolas teol/gicas, a confisso torna#se, alm de o%rigat/ria0I1 )onc(lio de 2atro # 34356, individual e privada ' uma %usca em detectar a gravidade do pecado pela intenodo pecador e assim, pelo exame de consci7ncia e pela %usca do arrependimento sentenciar uma penit7ncia E ousur"rio nesta nova $ustia penitencial +iante desta nova situao muitos confessores hesitantes !uanto 8spenitencias a serem demandadas necessitavam de guias Assim, te/logos e canonistas escrevem sumas emanuais

    9" o usur"rio aparece como protagonista no segundo tipo de documento, os exempla :rata#se de umape!uena hist/ria inserida em um sermo ou discurso com fins de instruo e ensinamento de uma lio +eve#selem%rar !ue na Idade Mdia o sermo era o grande ve(culo de comunicao e grande norteador dasmentalidades e da vida pr"tica)urta, cheia de ret/rica e efeitos de narrativa, a historinha dramati&a e convence;

    Um outro usurrio riqussimo, comeando a entrar em agonia final, muito se afligiu, sofreu, implorou para sua alma

    que no o deixasse porque iria recompens-la amplamente, e lhe prometia ouro e prata e as delcias deste mundo se ela se

    comprometesse a permanecer com ele. Mas que no lhe pedisse dinheiro nem mesmo uma esmola para os pobres, mnima

    que fosse. endo, afinal, que no conseguiria ret!-la, encoleri"ou-se e, indignado, disse-lhe# $%reparei-te uma boa resid!ncia,

    com abund&ncia de rique"as, mas tu tornaste to louca e to miser'el que no queres repousar nesta boa resid!ncia. (ue se

    dane) Mando-te para todos os dem*nios do inferno+. %ouco depois ele entregou seu esprito s mos dos dem*nios e foi

    enterrado no inferno. n? 5@ de 9ac!ues de 1itr, 34BC

    Esse o destino do usur"rio Assim, a usura pecado -or !u7 Eis o grande em%ate do usur"rio entre ari!ue&a e o para(so para !ue ele se salve ser" preciso a%andonar sua %olsa )omo encontrar um modo deguardar a %olsa e a vida Ele encontrar" um modo, ou encontraro para ele

    2.

    A bolsa: a usura

    9ac!ues de 1itr, em seu sermo modelo 5D, evoca a usura em mltiplas faces, como uma hidra de muitasca%eas A usura designa muitas pr"ticas e complica assim esta%elecer uma fronteira entre o l(cito e o il(cito nasopera*es envolvendo a co%rana de $uros Entretanto existe a usura em si !ue consiste a co%rana de $uros emopera*es onde no deveria haver $uros

    Os homens da Idade Mdia, !uando confrontados com um fenFmeno, %uscavam na G(%lia o modelocorrespondente, pois era nela !ue se espelhavam a explicao para lidar com as !uest*es do mundo Em matriade usura, nas Escrituras !uase no h" contradio ou %rechas !uanto 8 sua condenao;

    /e 'oc! emprestar dinheiro a um compatriota, ao indigente que est em sua casa, 'oc! no 'ai se comportar com

    ele como um agiota, no impor 0uros a ele Hxodo cap 44 vers 4B

  • 7/24/2019 A Bolsa e a Vida

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    1 se emprestais queles dos quais esperais receber, que m2rito tem isso3 4t2 os pecadores emprestam a pecadores

    a fim de receber o equi'alente. 1xatamente o contrrio 2 que tem 'alor, amai 'ossos inimigos, fa"ei o bem e emprestai sem

    esperar compensao alguma 2ucas cap vers JB#J5

    Kma grande influ7ncia na Idade Mdia foi o fim deste ltimo vers(culo por!ue a idia de emprestar semnada esperar est" expressa em duas palavras#chave da pr"tica e da mentalidade econFmica medieval; agratuidade0em emprestar6 e a expectati'a 0remunerao por um %eneficio ou por $uros6

    Luando a economia monet"ria se generali&a, durante o sculo XII, a usura torna#se grande personagem e

    v"rias medidas e conc(lios marcam a posio da Igre$a em com%at7#la os meados do sculo XIII h" umagravamento nas condena*es da usura explicada pelo temor da Igre$a em ver a sociedade descontrolada pelaproliferao das pr"ticas usur"rias atraindo camponeses e donos de terras a desocupar os solos edesinteressarem pela agricultura, gerando uma conse!Nente fome

    imega

    =:udo a!uilo !ue se exige alm do capital usura> +ecreto de PracianoAssim, a usura mais !ue um crime, um pecado, pois se trata de uma forma de avare&a ' um rou%o

    como prop*e

  • 7/24/2019 A Bolsa e a Vida

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    a Alta Idade Mdia muitos of(cios eram condenados ou negados tanto aos clrigos !uanto aos laicos portratar#se de um caminho f"cil para se levar ao pecado taverneiros, $ograis, al!uimistas, mdicos, mercadores,cam%istas, perfumistas, entre outros Isso por!ue muitos ta%us detinham ainda grande fora como o sangue, asu$eira, e tam%m a!ui, o dinheiro

    Inserida na mentalidade crist medieval ganhava fora a idia dos pecados capitais onde o usur"riodetinha o $ugo da avare&a, da preguia, da in$ustia e do rou%o

    Entretanto, a $ustificao do usur"rio apenas dada como uma via de =utilidade comum>, ou se$a, a

    pro%lem"tica do Estado, ou da reale&a tomar emprstimos $unto a $udeus :orna#se uma !uesto complexa para aIgre$a, pois por mais cmplices !ue se$am do pecado da usura, os pr(ncipes pelo seu poder aca%am no sendopunidos

    Kma particularidade !ue 2e Poff destaca !ue em muitos serm*es o usur"rio aca%ava por serrepresentado como animais +estaca#se o pesado %oi !ue no p"ra nunca de tra%alhar, como o leo insaci"vel, aaranha !ue utili&a as pr/prias v(sceras para apanhar as moscas, como a raposa e sua grande cauda, e o famintolo%o Alm disso, a literatura na Idade Mdia, como em o Inferno de +ante, separa um lugar no inferno aousur"rio $unto aos sodomitas;

    %or isso no recinto mais estreito com a mesma marca :'ers; tanto os de

    /odoma como os de -ara os leigos, +eus estava longe e o mundo, ro(do pela fome, penriase guerras no era to atrativo Aos poderosos e aos fracos a Igre$a di&ia !ue o mundo mergulhava na ru(na e erapreciso pensar na salvao -ara isso, por volta do ano mil, ela dispFs de dois artif(cios; de um ladoinstitucionali&ar no imagin"rio medieval o fim para a!ueles !ue procuravam desviar#se do caminho, o Inferno eseu l(der,

  • 7/24/2019 A Bolsa e a Vida

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    0laesio enormis, do direito romano6 +essa maneira, o usur"rio moderado tem a possi%ilidade de escapar entre osdedos de