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Feitoria de Abul,de Vitor Caldeirinha

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A Feitoria de Abul

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Vítor Caldeirinha

A Feitoria de Abul© Vítor Caldeirinha

Todos os direitos reservadosAutorizada a reprodução desde que citada a fonte

Editora: Cargo Edições, LdaISBN: 978-972-98324-3-7Depósito Legal:Capa: Dodesign1ª edição: Novembro de 2007Impressão e acabamento:SelenovaRua Horta de Bacelos - Lote B R/C e 1º - Maceira2692-390 Santa Iria de Azóia

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A Feitoria de Abul

Prefácio ................................................................................................ 7Nota do Autor ....................................................................................... 9Capítulo I A Frente Egípcia ........................................................ 13Capítulo II Evenor II .................................................................. 17Capítulo III Misterioso Vulto ........................................................ 21Capítulo IV Ruínas de Tróia ......................................................... 25Capítulo V Metro do Sul ............................................................. 29Capítulo VI A Congregação Secreta ............................................... 31Capítulo VII A Descoberta ............................................................ 33Capítulo VIII Preparativos da Expedição............................................ 35Capítulo IX A Hesitação de Andrade ............................................. 37Capítulo X Conselho Atlante ........................................................ 39Capítulo XI Despedidas ................................................................ 43Capítulo XII Início da Expedição ................................................... 45Capítulo XIII Dificuldades Inesperadas ............................................. 49Capítulo XIV Encontro Indesejado ................................................... 53Capítulo XV A Pirâmide Giratória ................................................. 57Capítulo XVI Novo Mundo ............................................................. 61Capítulo XVII A Aldeia de Chibanes ................................................. 65Capítulo XVIII O Monte Sagrado ...................................................... 71Capítulo XIX A Feitoria de Abul ..................................................... 75Capítulo XX A Tragédia ................................................................. 77Capítulo XXI A Cidade de Antília ................................................... 83Capítulo XXII A Ilha de Aea ............................................................ 87Capítulo XXIII A Expedição de Seden ................................................ 89Capítulo XXIV Volta pela Cidade ....................................................... 91Capítulo XXV A Ilha de Urz ............................................................ 93Capítulo XXVI O Velho de Azaes ...................................................... 97Capítulo XXVII A Civilização Antiga ................................................... 99Capítulo XXVIII Os Homens Primitivos ............................................... 103Capítulo XXIX O Templo dos Céus ................................................... 107Capítulo XXX A fuga dos Atlantes .................................................... 109Capítulo XXXI O Fim da Atlântida .................................................... 113Capítulo XXXII Batalha Final ............................................................. 115A Feitoria de Abul (Parte II) ................................................................... 119Parte Final ............................................................................................. 121Nomes da PB (anos 80/90 do século XX) ........................................... 123Algumas Pequenas Histórias da PB .......................................................... 125Poemas do Autor ................................................................................... 133Bibliografia com interesse ....................................................................... 141

Índice

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A Feitoria de Abul

Dedicado à minha querida esposa Sandra, que suportou horas e horas sem me ver,enquanto escrevia, aos meus lindos filhos gémeos Pedro e Diogo, aos meus pais JoséCaldeirinha e Maria de Lurdes Costa, ao meu irmão Luís e sua esposa Ana e aos meussobrinhos Sara, Tiago e Laura.`

À restante família e amigos da Praça do Brasil e colegas de trabalhos.

Vítor

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er capaz de compreender algo, pode não servir de nada… Exemplo?Após alguém capturar o conceito de infinitamente pequeno (um aparente

paradoxo), entendendo e aceitando que algo por mais pequeno que seja, é sempree ainda possível de se dividir, mais e mais, mesmo que a partir de certa altura,"mais pequeno" seja já e apenas, um numero que se torna cada vez maior, do ladodireito da vírgula…

E então, após desfrutar deste saber, pensar de imediato que:Alguém ao morrer se for capaz, de dividir o seu último segundo de vida, no

infinitamente possível, nunca vai deixar chegar o momento seguinte e com ele amorte. Ficando eternamente preso num último segundo de vida, que se reduz semacabar. Uma pequena imortalidade, interessante, mas de pouco remédio.

Um pouco como na física quântica, onde a mesma matemática, que por maisque eu tente não entendo, chega hoje a uma conclusão, essa sim que entendo bem:"O universo não existe se ninguém o estiver a observar"

Agrada-me pois esta história, e a Atlântida…nada melhor que um sonho, umadúvida, um mito, se afinal até os cálculos mais elaborados nos dirigem sempre aessas mesmas paragens.

Lembro-me agora (por efeito directo da palavra Atlântida) que, comoqualquer bom geólogo logo nos ensina: "… vivemos neste mundo por meraconcessão geológica…"

A verdade é que a força que o mundo encerra e paulatinamente aqui eali liberta, sempre nos consegue vencer, até no que de pior a humanidadetem: Basta pensarmos como sempre nos parece desproporcional e total-mente desnecessário, injusto, ignóbil, violento, enfim terrivelmente huma-no, um qualquer tremor de terra, que em segundos mata e destrói, maisque meses da pior guerra fratricida.

Agora lembro-me, para não ser simples, que há um velho ditado Japo-nês que canta algo assim: "O tremor de terra não mata, o que nos mata sãoos bens materiais que temos!"

Bem, então se a Atlântida existiu e no mar azul se afundou, como alguém que

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Prefácio

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procura agarrar o céu num simples pedaço de espelho, então eu sei e tenho acerteza que:

❖ Como Atlantes, e povo superior, nada podiam ou queriam ter!❖ E por isso, e porquê o que nos mata é o que temos!❖ Então cada Atlante teve que morrer, por nada mais possuir para além do

chão onde vivia!E se… de entre todos eles, alguns sobreviveram, e em nós estão diluídos pelo

tempo?O que os salvou, só pode ter sido, estarem entre os poucos desprezíveis que

possuíam algo.Enfim, não serem verdadeiros Atlantes, serem como nós, porque só assim,

somos eles!

Obrigado por me fazeres magicar

Angelo Campos

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ste é um livro que comecei a idealizar no início de 2003, durante as minhasviagens diárias entre Setúbal e Lisboa.

Pensei em como o Fado me fazia lembrar o som do mar. De onde viria estasemelhança? Porque é que os portugueses são independentes de Espanha, voltadospara o mar? De onde vem este sentimento geral de saudade?

Quem éramos há milhares de anos? Quem foram as nossas raízes? O que faziame sentiam as pessoas que habitavam as actuais ruínas de castros, casas, povoações,construções antigas da região de Setúbal e Lisboa? Sei que somos fruto de misturasde vários povos e temos orgulho nisso, mas quem foi a nossa base? Que contributodemos à Europa?

A canção sobre mil anos, "A Thousand Years", de Sting, misturada com o fadode Mariza, ofereceram-me a beleza e a solução, depois de ter ouvido a músicamuitas vezes na rádio RFM.

"A thousand years

Words by stingMusic by sting and kipper

A thousand years, a thousand more,A thousand times a million doors to eternityI may have lived a thousand lives, a thousand timesAn endless turning stairway climbsTo a tower of soulsIf it takes another thousand years, a thousand wars,The towers rise to numberless floors in spaceI could shed another million tears, a million breaths,A million names but only one truth to face

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Nota do Autor

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A million roads, a million fearsA million suns, ten million years of uncertaintyI could speak a million lies, a million songs,A million rights, a million wrongs in this balance of timeBut if there was a single truth, a single lightA single thought, a singular touch of graceThen following this single point , this single flame,The single haunted memory of your face

I still love youI still want youA thousand times the mysteries unfold themselvesLike galaxies in my head

I may be numberless, I may be innocentI may know many things, I may be ignorantOr I could ride with kings and conquer many landsOr win this world at cards and let it slip my handsI could be cannon food, destroyed a thousand timesReborn as fortunes child to judge anothers crimesOr wear this pilgrims cloak, or be a common thiefIve kept this single faith, I have but one belief

I still love youI still want youA thousand times the mysteries unfold themselvesLike galaxies in my headOn and on the mysteries unwind themselvesEternities still unsaidtil you love me"

A lenda da Atlântida encaixa perfeitamente neste cenário e é ideal a sua loca-lização no Atlântico, junto ao Mar Mediterrâneo, conhecido da antiguidade, nosgrandes bancos submarinos do Atlântico, do Gorringe, que um dia poderão tersido ilhas que afundaram com a subida das águas do mar ou com a ocorrência dealguma catástrofe.

Uma ligação milenar perdida entre Portugal, no continente, e as ilhas Atlântidas

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poderia explicar tudo, a saudade, o som do mar, do fado e continuamos a amar o mar.Logo que pudémos, saímos por ele fora à procura da nossa origem no mar e

achámos a América, a rota do Cabo Africano, a passagem Sul para o Pacífico. Está-nos no sangue certamente. Mas porquê?

Este livro tem por base uma mistura salutar entre a realidade histórica, omisticismo e a ficção científica. Não pretendo dizer que foi assim. Aliás, sei bemque não foi. Mas sentir-me-ia bem se tivesse sido.

Os lugares históricos que refiro não estão, propositadamente, situados no tempocorrecto e no seu devido enquadramento dos povos que os habitaram. Os lugaresantigos foram utilizados de forma livre para terem lógica com o que se pretendiacontar.

Demorei o ano de 2003 a aprender como criar um enredo e escrever um guiãocom interesse. Não é coisa simples.

Não posso negar que o estilo do livro de Dan Brown, "O Código Da Vinci",foi uma inspiração, pela ligeireza dos seus capítulos, pelo suspense que mantémno final de cada um deles e pela simplicidade com que prende e está escrito.

Depois tentei utilizar a mesma envolvente dos livros de Júlio Verne. O meuguia espiritual foi mesmo o livro de banda desenhada "Raio U", que li muitasvezes, quando jovem, e me fez sonhar com mundos em ilhas misteriosas e estra-nhas, ideais para o meu enredo.

A ligação à região de Setúbal e Lisboa, ao rio Sado e ao rio Tejo e aos locaiscom ruínas de antigos povoados era inevitável, devido ao meu interesse sobre aregião e sobre o tema da pré-história, que aumentou com as minhas viagens debicicleta de montanha pelo meio da Serra da Arrábida e com os fósseis e restosde casas que encontrei.

A Feitoria de Abul foi um local de partida para todo o livro. A partir dela andeipara trás e para a frente. Tinha que passar por ela. É central em todo o livro. Maisque a Atlântida, que provavelmente nunca terá existido. A Feitoria de Abul existiu.Foi o primeiro porto de Setúbal no rio Sado, explorado pelos fenícios, no momen-to posterior ao descrito neste livro, estando muito bem documentada e descritanuma publicação à venda no Museu Arqueológico e Etnográfico do distrito deSetúbal.

Ainda que a Atlântida não seja o verdadeiro elo de ligação que responde àsquestões sobre Portugal e sobre a região de Setúbal, que coloquei de início, existecertamente algum elo milenar, com características muito semelhantes. Algo nosatrai para o mar. Viemos de lá certamente e por estas praias ficámos, sempre comsaudade de a ele voltar.

No final, o Códice do Conhecimento Antigo de Urz, motor de desenvolvimen-to de todo o enredo deste livro e objectivo final das personagens, revela ao leitoros mais recentes segredos sobre quem somos, de onde viemos e para onde vamos.Recorrendo às mais recentes descobertas científicas da física, da cosmologia e daarqueologia, procura-se uma solução imaginativa, mas não totalmente científica,sobre a razão da existência do universo e do ser humano.

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Demorei o tempo que foi preciso e poderá não agradar a todos, mas deu-memuito gosto e gozo escrever um livro não técnico desta vez e com alguma imagi-nação. Espero que gostem. Aconselho-vos a colocarem também a vossa imagina-ção a trabalhar e a escreverem sobre o que vos agrade, mas de forma organizadae continuada.

No final, juntei algumas pequenas recordações sobre a Praça do Brasil, emSetúbal, onde vivi a infância e a juventude.

E depois alguns versos que escrevi quando andava no Liceu de Setúbal, de 1985a 1987.

Para compreender melhor o Livro:

Os anos em que decorre a história:

__________|______________________________|____________|___

Os locais em 5050 a.C. :

Nascimento de Cristo5050 a.C 2050 d.C

Localização da Atlântida

no Banco do Gorringe

Ilhas Atlantes P. Ibérica

Região Seden Aea Urz futura SetúbalCidades Antília

(capital)Atlas(capital)

Azaes(aldeia)

Feitoria de Abul

Chefia Mestor I Evenor II Vice-rei

Localização 36,8N 11,0W 36,5N 11,5W 35,0N 12,0W 38.4284ºN8.68164ºW

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Capítulo I

A Frente Egípcia

ecorre o ano 2050 d.C., nas planícies intermináveis dos desertos do Egiptoprofundo, junto às margens do rio Nilo, que corre azul, sem qualquer agitação,num ritmo lento até ao Mar Mediterrâneo. Nas margens, um vento constantearrasta grãos de areia fina, que ondulam nas dunas do rio. O Nilo é a única fonteda vida nestas paragens secas e, há muito, motivo de disputa.

O corpo de intervenção internacional da União Europeia, constituído por algunsmilhões de soldados, apoiados por voluntários da Nato, americanos e asiáticos,defrontam há vários anos as tropas da Liga Árabe, com sucessivos avanços e recuosem torno do Nilo, sem que se vislumbre sinal de vitória para qualquer um doslados.

Após vinte anos de lutas, que dizimaram e mutilaram muitos homens, a UniãoEuropeia conseguiu, progressivamente, expelir todos os seus inimigos árabes docontinente Europeu, mais uma vez na história, e entrou no Norte de África.

Ocupou as zonas do antigo Império Bizantino, onde pretende agora instalargovernos muçulmanos aliados, não radicais, que se integrem no espírito demo-crático da Europa, ainda que com uma religião diferente. Trata-se de replicar omodelo de sucesso da Turquia.

Apesar de já não possuir o poder que outrora o petróleo lhe concedia, a LigaÁrabe logrou acumular vastas riquezas durante dezenas de anos, fruto da venda doseu ouro negro. Essa riqueza tem chegado para sustentar um longo esforço deguerra santa com o resto do mundo e manter intactos os estados árabes no médiooriente e os seus governos religiosos extremistas, mesmo com os regularesbombardeamentos que as suas grandes cidades têm sofrido.

............................

Ao longe ouve-se o rebentar das granadas e bojardas, que parece entrar nosouvidos, e explosões luminosas que enchem o azul celeste de múltiplos pequenossóis e de pontos negros e fumo, gases e resíduos. Os aviões, jactos, balões, pro-jécteis e naves rasgam o céu e compõem o cenário de horror.

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Por vezes, são disparados mísseis comandados à distância ou mesmo raios deenergia destruidora, última novidade neste confronto. Cada vez mais soldados têmsido recrutados e mortos em vão nestas batalhas, que se seguiram à tentativa deocupação do Sul da Europa pelos países da Liga Árabe, com o intuito de refazero antigo império muçulmano de há vários séculos atrás.

O calor seca e esgota os corpos dos soldados, ajudado pelo efeito de estufa quese intensificou nos primeiros cinquenta anos do século XXI, com o desenvolvi-mento dos países africanos, que se industrializaram, aproveitando a mão-de-obrabarata, quase escrava, e fazendo frente ao crescimento da China e da Índia.

No cenário de guerra, os generais do exército europeu reorganizam as suastropas em grande frenesim, enquanto decorre o confronto. Cada soldado levandoo seu robot militar, acompanhante, para a luta corpo a corpo, controlado pelopensamento. É chamado o "anjo da guarda metálico". A batalha está a meio e ossoldados sobreviventes, meio perdidos, retiram para se juntarem às novas com-panhias que partem para a frente, para voltar tudo a repetir-se.

Centenas de carros de combate flutuantes, a baixa altitude, carregados dearmamento que sobressai no seu desenho aerodinâmico, defrontam-se com disparosde laser, mísseis, raios de plasma e bombas de todos os tipos e formatos, passandouns entre os outros e voltando para se confrontarem de novo, num ribombar deexplosões e som cortante de raios mortais incandescentes, acompanhados deconstantes flashes e cinzas de morte e destruição dos veículos, que são eliminadose caiem nas areias, sem vida. A confusão é total.

Uma novidade nesta guerra é a arma portátil de atracção de objectos e pessoasa curta distância, que serve para puxar os soldados inimigos, armas ou robots peloar, sendo então eliminados, ou para puxar e atirar qualquer pequeno objecto comose fosse uma arma de arremesso. Por baixo dos carros flutuantes, soldados usamabundantemente esta arma, criando uma paisagem de homens e objectos que sãopuxados e atirados em arco entre as linhas de inimigos.

Enquanto se trava esta batalha pela ocupação de uma pequena fracção de terrae rio, a cinco quilómetros, o Prof. Andrade, reconhecido arqueólogo portuguêse perito europeu em pré-história dos povos, aproveita para realizar pesquisas nasterras do Egipto, recentemente conquistadas e visitadas pelos cientistas europeuspela primeira vez, após dezenas de anos de isolamento.

- Prof. Andrade! Prof. Andrade! - gritou um estudante egípcio que surgiuapressado, com vestes compridas e finas, de um branco lixívia, tipicamente ára-bes, e chinelos de pele de cabra atados aos pés - penso que encontrámos o queprocurávamos.

- Mostra-me. Vai à frente - ordenou, ansioso, o Professor.Correram de forma desenfreada e o mais que podiam, pelo meio de buracos na

terra, tábuas com pregos, rampas por cima dos buracos na areia, escavadorasmecânicas, sob o calor do meio-dia que queimava a pele. Percorreram o pequenocaminho sinuoso, desde a moderna tenda-iglu de campanha do Professor, com todasas comodidades e automatismos da época, até ao local onde decorriam as escavações

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arqueológicas, quarenta metros abaixo de uma antiga pirâmide egípcia.Os últimos metros do percurso foram percorridos num elevador metálico com

grades de protecção até à cintura, que desceu rapidamente através de um túnelquadrangular, vendo-se passar as várias camadas de areia e terra, resultado demilhares de anos de inundações do Nilo.

- Descobrimos vestígios de um povoado importante e de material de combate,com cerca de sete mil anos. Fizemos o teste químico. Já há muito que se travamaqui batalhas - referiu com entusiasmo o responsável pela descoberta.

O local da descoberta estava rodeado de robots escavadores e de arqueólogos,trajados de forma tradicional árabe, recrutados para esta acção de investigação ecooperação entre a União Europeia e a universidade local do Cairo.

- O que ainda não percebemos, é quem terá criado aqui uma cidade há tantotempo, e aqui terá travado guerras, muito antes do império egípcio. Os objectos,a forma de construção e os artefactos são de origem completamente desconhecidapara nós. Como será possível que ninguém tivesse descoberto estes povos antes?- questionava-se um cientista local, falando alto.

Andrade olhava estupefacto, como quem não acredita no que vê, voltando acabeça, os olhos brilhantes, e a barbicha catedrática, em direcção aos arqueólogosegípcios.

- Parecem objectos atlantes. Magnífico! Magnífico! Este pode ser o concretizarda missão do meu avô, que tem sido prosseguida pela minha família: "a confir-mação de que existiu a antiga civilização do Mediterrâneo, dominando o Sul daEuropa e o Norte de África, com base no império das ilhas desaparecidas daAtlântida, no Atlântico, junto a Portugal e Marrocos.

Colocando o dedo indicador no centro dos seus óculos redondos e largos,continuou - Esta parece ser, sem dúvida, a descoberta do século. Só teremos quecomparar estes utensílios com os descobertos recentemente em Marrocos, igual-mente com sete mil anos, que ficaram a céu aberto com as grandes tempestadesde areia do último Inverno.

Mas o seu sonho era ainda mais ambicioso. Queria encontrar o grande tesouroAtlante:

O Códice do Conhecimento AntigoO Códice de Urz

Referido em vários manuscritos da antiguidade, mas nunca encontrado. O queconteria esse códice? Uma pergunta que o Professor tem colocado, a si mesmo,nos últimos anos, sempre sem resposta. Será que ainda existia? Onde estariaenterrado?

Vamos para a antiguidade para percebermos o que aconteceu.

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Capítulo II

Evenor II

ete mil e cem anos antes, em 5050 a.C, exactamente no mesmo local, o ReiEvenor II, "O Poderoso", comandava os seus exércitos de milhares de soldadosatlantes e outros oriundos dos reinos aliados, que, de Ocidente - da Atlântida - paraOriente, pretendiam alargar o império e dominar os povos do Mediterrâneo,prosseguindo o velho sonho do Império Atlanto-Mediterrânico.

Enquanto o seu irmão, Mestor, conquistara a Europa mais a norte, Evenor IIe os seus exércitos apoderaram-se de África. Mas, após muitos anos de aliançaestratégica e tolerância mútua, os irmãos estavam agora desavindos e lutavampelos territórios orientais do Mediterrâneo, tentando entrar cada um nos domí-nios do outro.

- Vamos vencer esta batalha contra o teu irmão e os seus aliados Sumers, dooriente longínquo. Mesmo em menor número, estamos melhor armados, com omoral elevado e o terreno e o tempo são favoráveis aos nossos homens, habituadosao deserto.

- Vamos a ver general, vamos a ver - vociferou o Rei.- Não podíamos estar melhor colocados no terreno para vencer, mas eles são

muitos - lembrou excitado, mas contido, o principal general de Evenor, mantendoa sua postura erecta, da qual apenas dissonavam os seus cabelos brancos ao vento.

- Que os deuses do mar nos ajudem nesta luta pelo bem. O meu irmão enver-gonhou a memória das nossas famílias. Dividiu o reino dos nossos antepassadose levou o nosso povo para uma luta fratricida, que tem deixado muitas famíliasenlutadas e os campos por lavrar. Agora, apoia estes povos bárbaros do Leste. Masnós vamos vencer e fazer o império do bem, ocupando este deserto, depois o rioNilo e mais tarde conquistaremos as cidades portuárias ao Norte do grande mare na Elenia, da Etalia Tirrania.

Do alto de uma duna de areia gigantesca, prostrado no seu belo, mas pequeno,cavalo castanho atlante, precursor do cavalo português lusitano e do cavalo árabe,levantou a sua bandeira verde listada, fazendo sinal para que os exércitos avanças-sem, conforme havia sido planeado com os generais, na tenda do Estado Maior.

Recorrendo às grandes jangadas de canas construídas no dia anterior, os exér-

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citos começaram a deslocar-se pesadamente, entrando grupos de trinta homenspara cada uma das embarcações improvisadas, sendo levados pelas lentas e calmaságuas azuis, até à outra margem, onde chegaram alagados em água do rio, suore lágrimas de emoção.

Após atravessarem o Nilo, o Rei mandou regressar as embarcações e o exércitoficou de costas para o rio e de frente para o exército inimigo. Ou avançavam ematavam ou fugiam para o rio e seriam mortos pelo inimigo, pelos crocodilossagrados e pelos monstros marinhos pré-históricos, que ainda povoavam o fundodas águas naquela altura.

A batalha começou, com o avanço do exército de Evenor II em formação deflecha, na direcção ao inimigo, levantando poeira visível a longa distância.

Logo de seguida, os soldados bárbaros Sumers são apanhados desprevenidosquando, repentinamente, se abre uma brecha nas hostes de Evenor II e dividindo-se em dois, cercam uma das falanges Sumer, dizimando quase metade do inimigo.

Evenor II está no centro da batalha, lutando com a sua enorme espada luzenteque recorta habilmente os corpos, as armaduras, braços, cabeças e pernas dossoldados Sumers que cruzam o seu caminho, de tal forma que fazia lembrar umpêndulo ao contrário, cortando, rítmica e delicadamente, o ar e a carne, impondo-se no cenário confuso da batalha.

- Evenor, estamos a derrotar esta falange dos Sumers. O resto do exército aliadodo teu irmão está a retirar - gritou o general.

- Vamos sair vitoriosos em direcção à cidade de Uenur e encher de festa aqueleporto do Mediterrâneo - referiu o Rei em tom solene, enquanto continuava amatar, sem dó, os homens que corriam na sua direcção.

O Rei era um homem bom, forte e determinado. Era o líder mais admiradona Atlântida. Mas era um guerreiro, como só se podia ser numa altura daquelas.Já o seu irmão gémeo tinha mau carácter e estava dominado por um conselho dehomens da ordem religiosa mais antiga e extremista da Atlântida, que queria, hámuito, controlar os altos dignitários do reino de Atlântida, para impor um regimeditatorial e religioso e acabar com o sistema de votação então existente.

Estes irmãos dividiram as terras e as gentes do reino da Atlântida e estavamem guerra, levando os combates e as batalhas para todo o mundo conhecido,formando e quebrando alianças com os povos indígenas, conforme a conveniênciade cada momento, como era o caso dos Sumers, no médio oriente.

O reino de Atlântida situava-se a Oeste das colunas de Heros e era compostopor três grandes ilhas atlânticas. A primeira a Norte, a principal, Aea, rica emrecursos naturais e dominada pelo irmão de Evenor II, Mestor I, "O Feroz", apartir da sua capital, Atlas.

A segunda ilha, Seden, tinha muitos palácios e templos, embora fosse umimportante centro agrícola, e tinha sete cidades governadas por Evenor II, a partirda sua capital Antilia.

A terceira, a ilha misteriosa de Urz, tinha apenas uma pequena aldeia de pes-cadores, estranhos e avessos a contactos, chamada Azaes, sendo o resto da ilha

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quase que inexpugnável, farta em perigos, criaturas e monstros, que davam azoa longas e arrepiantes histórias contadas nas praças e portos do império. Ao centroda ilha, para lá das áreas impenetráveis, existia um vulcão, onde se dizia estarlocalizado o grande templo de Urz e onde provavelmente se escondia o segredo do

Códice de Urz.

As duas metades do exército começaram a aproximar-se ao centro, apertandoo cerco, deixando um rasto de sangue e de corpos retalhados, bandeiras caídas,enquanto o vento soprava forte, como que anunciando a tragédia que, mais umavez, se repetia neste deserto quente, habituado a consumir e a alimentar-se dosrestos humanos e materiais de batalhas milenares.

No final do dia, os sobreviventes do exército de Evenor II reuniram-se e re-gressaram animados à cidade de Uenur, imponente metrópole muralhada e con-quistada, recentemente, ao Rei seu irmão e inimigo.

- Meu General! A bandeira está arreada e as portas da cidade trancadas. Nãose avista vivalma no porto - avisou bem alto o soldado que fizera o reconhecimentodo terreno a cavalo e que agora regressava, apressadamente, em pânico.

- Que dizes soldado?- Meu Rei, o general-mor do seu irmão tomou a cidadela e está alojado entre

muralhas. Não será fácil vencer as suas tropas e as dos Sumers - explicou o soldadoenquanto tentava acalmar a voz e saltava do cavalo para se ajoelhar aos pés deEvenor.

Mais tarde puderam confirmar, ao vislumbrarem a cidade, os seus murosamarelos de areia e as altas torres, pejadas de soldados inimigos espalhados aolongo da superfície irregular de defesa. As tropas de Evenor montaram acampa-mento de cerco, tomando de imediato o porto e alguns navios que aí se encon-travam.

- Encontrámos este homem no porto. É um sacerdote e sábio local, que pregaque só poderás vencer a guerra com o segredo do conhecimento antigo. Diz aindaque as profecias referem a vinda de um ser Deus para resgatar o códice do conhe-cimento da ilha misteriosa de Urz, que decifrará as mensagens e ajudará um dosirmãos e os seus descendentes futuros por milhares de anos.

O sacerdote tinha aspecto de advinho, com olhos firmes, rosto austero e longasbarbas. A roupa indicava um posição hierárquica elevada nas religiões pagãs daregião.

- Levem-no daqui. Não quero ouvir mais - disse cansado o Rei, vamos levantaro cerco e voltar às nossas anteriores linhas de defesa. Terminamos aqui esta ofen-siva de Verão. Vou à ilha misteriosa de Urz procurar esse tal códice escrito pelosdeuses. Com ele vou vencer a guerra e fazer o Império - talvez o homem tivesserazão.

Desde pequeno que ouvira falar neste códice. Mas será que agora que poderia

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decidir a guerra? Seria uma arma secreta? Na semana anterior, o mensageiro doreino avisara sobre a missão que o seu irmão preparava, com o objectivo de ir embusca do códice na ilha misteriosa de Urz, e ele não podia ficar atrás. Iria conseguircom a ajuda dos deuses ou talvez de semi-deuses.

Mas a aventura de Urz começa em 2050 d.C.

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Capítulo III

Misterioso Vulto

e volta a 2050 d.C.- João, traga-me uma cerveja do bar da entrada, por favor. O meu mini-bar está

vazio.- É para já Sr. Barroso.O segurança deixou rapidamente a porta do quarto de hotel e premiu o botão

do elevador de madeira escura, aguardando, imóvel e pacientemente, a sua che-gada. O corredor era vermelho feltro, evidenciando a qualidade de um dos me-lhores hotéis do centro de Dusseldorf.

Tinha por hábito quebrar o protocolo de segurança em pequenos momentos,para servir as ordens do "Grande Chefe". Era português e que mal haveria? Istonão era a América. Para manter o seu emprego bem pago, tinha que manter o seuchefe satisfeito.

Barroso fechou a porta do quarto mal iluminado, mas bem aquecido, e ligoua TV 3D, para conhecer as últimas notícias da "Euronews". Lá fora, a neve caíaem flocos flutuantes, preenchendo de branco os bocados de terreno mais arenosose frios.

Pensava, preocupado, no discurso político que iria proferir no dia seguinte na praçaprincipal, perante milhares de pessoas. Seria uma tentativa derradeira para convencero povo sobre o voto para a presidência da União Europeia, no Domingo seguinte.

Este povo fechado e trabalhador queria segurança, rigor, competência e paz.Mas como convencer que a guerra tinha que acabar, sem deixar no ar um senti-mento de insegurança e de incerteza em relação ao futuro?

Como garantir que acabariam os ataques bombistas atómicos a cidades e queas forças árabes não voltariam a chegar às fronteiras da Floresta Negra?

Repentinamente, um vulto saiu das escadas de serviço e aproximou-se cuida-doso da porta do quarto, utilizando um pequeno visor de calor para detectar a suavítima, no outro lado da parede.

Barroso lembrou-se da sua mulher em Lisboa e dos seus dois filhos gémeos,que àquela hora já deveriam estar a dormir. Lembrou-se também dos seus apoiantese da grande missão que tinha pela frente. Libertar a Europa de uma guerra que

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durava há anos. Fazer a paz e lançar a prosperidade na Eurásia.Porquê ocupar todos os países muçulmanos? Já tinham sido expulsos da Eu-

ropa. Para quê martirizá-los? Para os dominar?O actual presidente da União Europeia fora eleito numa fase de ocupação árabe

da Europa e aproveitara para proclamar a guerra total aos estados inimigos, atéà sua aniquilação e integração.

Mas era tempo de acabar com a guerra, assinar a paz, acalmar, conversar eformar um bloco económico euro-árabe-judaico, para fazer frente aos blocoseconómicos americano, chinês, indiano, asiático e africano.

Tomou essa missão como a sua vida.A cama estava aberta, deixando a descoberto os delicados lençóis brancos,

onde repousava e ensaiava o seu discurso mais uma vez, olhando por vezes paraa TV. Nem desconfiava o que estava para acontecer.

O elevador parou no andar de Barroso e as portas abriram-se com um forteruído e um tilintar habitual.

- Boa noite e obrigado - disse João.- Tenha uma boa noite - respondeu, ao fecharem-se as portas do elevador, um

hóspede do hotel que partilhou a subida.O vulto mexeu-se rapidamente e voltou a esconder-se na porta de serviço, que

dava acesso ao material de limpeza do andar.Sem reparar no vulto, João caminhou calmamente para o quarto 321 e deu dois

toques na porta, sinal previamente combinado.- Sr. Barroso?- Sim!- Já tenho aqui a cerveja.- Obrigado. Estava mesmo com sede. Assim vou dormir melhor e estar pre-

parado para amanhã - disse abrindo um pouco a porta.- Tenha uma boa noite Dr.- És tu que ficas por aí hoje?- Sim, a noite toda.- Ok. Bom trabalho.Fechou a porta e voltou aos seus pensamentos e preparativos, abrindo de uma

só vez a tampa da cerveja e dando um forte gole pelo gargalo.O vulto entreabriu a porta da arrecadação e olhou para o segurança que ouvia

música sentado, com uns auscultadores nos ouvidos, e lia um livro de bandadesenhada.

Encaixou o silenciador na sua arma, sem ruído, e apontou. Não gostava de tirarvidas inocentes, mas desta vez seria necessário. Com o seu anel grosso e douradono polegar, apontou e disparou sem ninguém ouvir, atingindo João na cabeça,saltando de imediato um jorro de sangue para a alcatifa vermelha, reforçando a

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sua cor. O corpo demorou alguns segundos a cair no chão fofo, quase sem ruído.Aquela alcatifa era uma mais valia para qualquer criminoso.

Dirigiu-se calmamente para o cadáver, certificando-se da morte e retirando aarma do casaco.

De seguida, deu dois toques na porta do quarto.- João?- Sim.A porta destrancou-se e o vulto deu-lhe um firme pontapé para a frente, ati-

rando Barroso para o chão do interior do quarto, que partiu de imediato o ossoda bacia, já desgastado pelos seus sessenta e oito anos.

Barroso soltou um grito de dor agudo e o vulto entrou no quarto, disparandotrês vezes para ter a certeza do sucesso da sua missão.

O mundo estava agora a salvo daquele fraco. A segurança da Europa estavagarantida. A guerra iria continuar.

No dia seguinte, para seu espanto, o Professor Andrade foi chamado à pressaao local do crime, tendo sido obrigado pela Europolice a abandonar os trabalhosno Egipto.

- Afinal em que posso ajudar? - perguntou ao sargento da polícia alemã, enquan-to subiam juntos o elevador do hotel.

- Já vai perceber.- Mas como posso ajudar a desvendar o assassínio do futuro presidente da

União Europeia, três dias antes das eleições? Sabia que as sondagens lhe davamcinquenta e cinco porcento ?

- Sim, sabia. Eu ia votar nele. Estou farto da guerra. Se querem ocupar os paísesárabes, que o façam os chineses ou os americanos sozinhos.

O elevador parou no andar 32 e as portas abriram-se de uma só vez, com ohabitual tilintar.

Caminharam passo a passo, pelo corredor vermelho, até depararem com asmanchas de sangue já seco no local, onde tombara o corpo do guarda-costas, nanoite anterior.

- Que tenho eu a ver com isto? - tornou a questionar Andrade.- Já vai ver. Já vai ver. Mais do que imagina. Deixe-se estar aí sossegado - disse

o polícia com o ar de quem faz troça, com um sorriso de orelha a orelha, deixandoo Professor boquiaberto.

- Está a ver este papel? - o polícia apontou para uma pequena folha branca quesaía da carteira de Barroso, no quarto onde fora assassinado.

O papel tinha duas frases enigmáticas:

" Império Atlante" e "Códice do Conhecimento de Urz".

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- O senhor não é especialista nos segredos da Atlântida?- Modéstia à parte, posso afirmar que sou um dos maiores investigadores nesse

domínio - referiu.- Então vai ter que nos explicar estas frases - ordenou o polícia, abanando a

cabeça afirmativamente.- Sei do que se trata. Mas sei muito pouco. Vou contar-lhe o que se dizia na

Grécia antiga.E contou tudo o que sabia durante as duas horas seguintes. Andrade sabia que

se dizia que a Atlântida tivera um império em redor do Mediterrâneo há milharesde anos atrás, mas as provas ainda não eram consistentes. Havia desaparecido outinha sido integrado nos impérios seguintes.

Já Urz é o nome de uma das ilhas míticas da Atlântida onde se dizia estarescondido um dos maiores segredos da humanidade, nunca revelado e perdidopara sempre na história humana, o códice do conhecimento.

Mais tarde, depois de se libertar da polícia alemã, seguiu num avião para Setúbal.

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indo do aeroporto do Alcochete, Andrade começou a desacelerar o veículo detransporte público pessoal alugado, ao mesmo tempo que todos os veículosdesaceleravam ao entraram em percurso mais urbano, preenchendo as oito faixasde auto-estrada, na chegada à cidade de Setúbal.

Ao fundo já se vislumbrava o azul do rio Sado, o castelo de Palmela, a serra daArrábida e a antiga estância balnear de Tróia dos anos vinte, abandonada entretantoe classificada como património arqueológico protegido, após as últimas descobertas,em 2040. As ruínas dos antigos hotéis ainda aguardavam a demolição.

À direita ficava o maior centro comercial da Europa, construído em cima dosterrenos do antigo hipermercado Jumbo.

A entrada na cidade era realizada através de túnel, por baixo da zona urbana.Andrade apreciava o compasso ritmado das luzes de presença e dos faróis dosveículos que circulavam em sentido contrário.

As saídas do túnel iam-se sucedendo: Hospital, baixa, Luísa Tody, zona por-tuária. Andrade seguiu em frente e após poucos minutos emergiu com a estrada,já no outro lado do rio Sado, junto à Marina de Tróia, ainda em funcionamento.

O Professor saiu no desvio que estava referenciado como centro arqueológicode Tróia. Ao virar o volante não se accionava a viragem das rodas do veículo, masera a própria estrada que era accionada e o direccionava para a saída, através darodas laterais que iam encostadas às paredes da via.

Passando a "direcção manual", parou o veículo numa zona de areia, junto aalguns edifícios amarelos da Administração das ruínas de Tróia, autoridade quegeria os recursos desta importante fonte de receitas da região e local arqueológicomuito visitado em Portugal, após a descoberta dos vestígios do império Atlantedo Ocidente, com milhares de anos. Só a partir de 2020 se conseguira comprovarmundialmente a existência da Atlântida, considerada apenas um mito, até então.

- Professor, como correram as escavações egípcias? - perguntou Pedro Filipe,um dos alunos de Andrade.

- Ainda estou muito espantado com os estranhos artefactos de guerra quedescobrimos, claramente do período Atlante, com mais de sete mil anos.

Capítulo IV

Ruínas de Tróia

V

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- Mas regressou mais cedo do que o previsto - constatou Pedro. - Fui chamado à Alemanha por causa do assassinato do Sr. Barroso.- Que tem a ver com isso? - Pedro estava espantado.- Havia um papel na carteira de Barroso com umas inscrições que faziam alusão

à Atlântida, mas ainda não consegui perceber porquê. Assim aproveitei e voltei.Já tinha saudades vossas e da nossa terra.

O Professor Andrade era conhecido mundialmente como uma das maioresautoridades no estudo das civilizações Atlantes e na investigação dos escassosvestígios que tinham legado. Mas nada estava muito bem explicado ainda e acomunidade científica mais céptica tinha muitas dúvidas.

- Prof. Andrade, a Sara e eu temos estado a escavar a nova zona identificadana semana passada. Os homens têm realizado um bom trabalho. Há muitas peçaspara classificar.

As ruínas já ocupavam uma grande parte da península de Tróia. Parecia ter sidoum antigo centro de produção que alimentava a exportação de produtos agrícolase piscatórios conservados, recebendo em troca mercadorias de todo o mundo.

- Prof. - continuou Pedro - está cá um representante da Universidade de His-tória de Bruxelas. O Dr. Francisco de Almeida está a realizar um estudo para aComissão Europeia sobre a validade científica das nossas investigações, paradecidirem se nos continuam a co-financiar ou não.

- Bolas, contrataram a universidade mais céptica? O Reitor é João Marin,descendente dos Condes de Sagres. É um crítico da Atlântida e um forte apoiantedo actual presidente da União Europeia.

- Mas eu acredito nos atlantes, mais do que imaginam - gritou Francisco, surgindopor detrás de uma vala da escavação nas imediações, onde ouvira toda a conversa.- Tenham confiança em mim. Posso ajudar-vos. Quero saber mais. Quero sabertudo o que descobriram.

- Porquê esse seu interesse? - Questionou Andrade desconfiado.- É um interesse mais pessoal que outra coisa. Desde pequeno que esse segredo

me intriga. E tudo o que os antigos textos gregos têm dito sobre locais misteriosos,se tem revelado verdade. Alexandria, Tróia - disse Francisco, rodando lentamenteo seu anel grosso e dourado no polegar - o Conde Marin não tem domínio sobreo meu relatório para a Comissão Europeia. Podem confiar…

- Ok, Dr. Francisco. Vamos dar uma volta à estação arqueológica para conhe-cermos o que tem sido descoberto nos últimos tempos - sugeriu Andrade aindadesconfiado.

- Temos descoberto pentes, martelos, foices e outros utensílios feitos de ligasmetálicas que não existem na região, nem eram conhecidas na altura que a dataçãoaponta pertencerem, cinco a seis mil anos antes de Cristo - disse Sara, fortalecendoo tom de voz e enrugando a testa - É uma impossibilidade. Só muito mais tardeo Homem começou a usar estes materiais.

- A minha teoria aponta para a existência de uma grande civilização atlante,

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antecessora das civilizações grega, suméria, minoíca e egípcia, que já fazia o comércioglobal com o mundo então conhecido, até à África e Ásia, e quem sabe tambémAmérica, tendo um porto de base continental localizado nesta área entre Setúbal,Tróia e Lisboa, e quem sabe à América, eventualmente na conjugação do delta dosdois grandes rios, Sado e Tejo. A partir daqui, saíam as expedições comerciais parao Norte da Europa, Mediterrâneo e África - teorizou Andrade.

Adorava esta teoria e os novos achados vinham confirmá-la. E continuou -penso mesmo que o povo português é descendente dos atlantes, que restaram dadestruição das ilhas pelas forças naturais. Não percebem? A saudade normal nopovo português, não é mais do que a saudade das ilhas e das suas terras, sem aspessoas saberem. E o fado é uma forma de a alma portuguesa cantar e recordaro mar e a sua ligação milenar. O som do fado parece o som do mar e das ondas.

- É por isso que somos diferentes dos espanhóis. Por isso tivemos o chama-mento para o descobrimento do mar em 1500. Por isso temos um futuro traçadoligado aos oceanos.

Acabaram de contornar uma das ruínas, onde ainda decorriam trabalhos deescavação, quando, de repente, surgiu um dos funcionários da estação arqueoló-gica.

- Prof., já cá está afinal? - Disse Manuel - temos estado à sua espera. Tem umamensagem importante de Lisboa.

- O que se passa Manuel?- Parece que descobriram vestígios muito estranhos no centro da cidade do

Pinhal Novo, a dez metros de profundidade, quando escavavam o túnel da linhapolvo do metro do Sul. Pedem para lá ir uma equipa imediatamente - gritou,enquanto se afastava em direcção aos escritórios, caminhando por cima de umapassadeira de madeira, localizada dois metros acima das ruínas, por onde circu-lavam, habitualmente, as centenas de turistas que visitavam o empreendimentotodos os dias, provenientes dos sete cantos do mundo.

- Ainda agora cheguei - lamentou Andrade, caminhando com a equipa paraa área de estacionamento de veículos. Estava irritado. Queria ir a ver a mulher acasa, mas isso teria que ficar para depois.

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uas horas antes, no Pinhal Novo, a escavação do túnel da nova linha Polvo,do metro do Sul, avançava continuamente. As escavações realizadas com umamáquina afunilada, que ocupava toda a frente do túnel, com dez metros de diâ-metro, progrediam milimetricamente, quando de repente se ouviu um estrondo.

- Bolas. Embateu numa rocha mais dura outra vez. Vou ter que ligar o perfu-rador - gritou irritado o funcionário operador.

Ao olhar, verificou que a rocha em que tinha batido tinha colocado a desco-berto um pequeno túnel que trespassava o túnel do metro perpendicularmente,permitindo-lhe vislumbrar pinturas de embarcações, peixes, plantas e símbolosdesconhecidos:

- Ó Sr. Engº Bandeira, ó Sr. Engº Bandeira!- Sim - a voz cansada do encarregado respondeu secamente, do outro lado do

telecomunicador. As obras deviam avançar depressa, para que os prazos estipu-lados fossem cumpridos sem penalizações e o funcionário estava sempre a inter-romper o trabalho. Quando não era por isto, era por aquilo.

Mais algumas interrupções e podia desaparecer a margem de lucro daquele dia.- Encontrei algo muito estranho aqui no fundo.- Deixe estar - retorquiu o encarregado - como vai a obra? Temos que acabar

este mês a ligação entre o Montijo e Setúbal.- Pois temos. E estava tudo a ir muito bem. Mas isto é mesmo muito estranho.

Venha cá ver - pediu o funcionário. - Não me parece que os inspectores do Estadopermitam que avance a obra hoje. Descobri uma espécie de ruínas antigas. Umtúnel cheio de desenhos nas paredes e que avança para o interior da terra.

- Bolas. Bolas. Caraças.- Os desenhos estão em muito bom estado… impressionam…- Está bem. Acalme-se. Vou avisar as autoridades para mandarem cá a equipa

de arqueólogos, para avaliar a situação e vou avisar o dono da obra.Decorridas três horas depois da descoberta, a equipa de Andrade chega ao

local.

Capítulo V

Metro do Sul

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ruges, Bélgica.No salão nobre da Câmara Municipal da cidade, decorre uma reunião secreta

com trinta pessoas encapuçadas, que não se conhecem, mas que possuem interes-ses comuns e muito poder.

- ... Em conclusão, o mundo ocidental civilizado continua ameaçado pelaignorância extremista religiosa e terrorista árabe - anunciava bem alto um dosencapuçados que ocupava o lugar central da mesa rectangular do salão - temos queajudar a manter o actual presidente da União Europeia e aumentar-lhe os seuspoderes. Temos que combater o terrorismo.

Ouviu-se então uma forte salva de palmas ecoando pela sala e todos os encapuçadosvestidos de negro se levantaram abanando positivamente as cabeças.

- Agradeço a todos a presença nesta reunião - continuou o encapuçado - Agora,vão para as vossas regiões, para os vossos países e continuem a apoiar financei-ramente as campanhas do nosso futuro presidente da União. A nossa rede secretade empresas participadas possui uma longa existência e meios de financiamentosuficientes para continuarmos a ter uma palavra final sobre o poder na Europa,como sempre aconteceu na história do mundo.

E continuou:- Desde a descoberta da biblioteca de Alexandria, as nossas origens ficaram

visíveis. Depois, em consequência, descobriram-se os vestígios da verdadeiracivilização da Atlântida, da qual somos herdeiros. Mas, como sabem, ainda nãoreencontrámos a bibliografia e a base fundamental da nossa civilização, que seperdeu, e que pensamos terá estado na origem dos escritos do antigo testamento,na época da antiga civilização Suméria, e que só mais tarde atingiu apogeu seme-lhante.

- Temos vindo a financiar o centro português de arqueologia, do Prof. Andrade,para que se descubram mais vestígios da nossa pátria. E talvez estejamos perto.Acabámos com a concorrência ao nosso candidato à presidência da União Euro-peia. Estamos no bom caminho. Depois, só temos que derrotar os árabes e alargara Europa democrática. É só uma questão de tempo. Pela paz.

Capítulo VI

A Congregação Secreta

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Em seu redor sobressaiam as paredes de madeira escura do edifício camarário,com quatro metros de altura. Estavam num palácio antigo, decorado com tapetespintados, velhos e grandes quadros e brasões de todas as cortes da Europa medi-eval. Estavam no centro da Europa. Num dos lados, as portas para gigantes e asjanelas davam acesso ao varandim dos paços do concelho, no outro as paredeseram de madeira. O ambiente era húmido com um forte cheiro a mofo.

- Até à próxima. Serão todos contactados em breve - finalizou o homem.Mal tinha acabado de dizer esta frase e já quase todos os participantes se le-

vantavam dos seus lugares em redor da mesa comprida e sólida de madeira, di-rigindo-se, ordeiramente, para a saída, sem trocarem uma só palavra.

A saída ficava nas traseiras do palácio, onde Cadilacs luxuosos, com motorista,faziam fila para recolherem os importantes encapuçadas, participantes da reunião.

O líder do grupo olhava triunfante para estas manobras, por detrás do capuz,quando o seu telemóvel tocou.

- Sr. Conde de Sagres! Tudo se está a resolver como planeámos, não é verdade?Estou muito ocupado. O que quer? Diga lá.

- Como está. Sei que venho incomodá-lo, mas é por uma razão importante.- Sim?O líder do grupo secreto mantinha regularmente contactos com o Conde de

Sagres, em Bruxelas, mas exclusivamente por telemóvel. Nunca lhe revelava a suaidentidade, assim como fazia com o grupo de empresários com que reunira. Eleera o único herdeiro directo da realeza atlante, mas tinha organizado o seu grupode influência recrutando descendentes de atlantes, sem nunca lhes revelar quemera verdadeiramente. Apenas doze pessoas conheciam a sua identidade e faziamparte das famílias nobres, que estavam juntas há milhares de anos. Só os escolhidosconheciam as suas verdadeiras intenções.

- O meu homem em Portugal, que está junto do Prof. Andrade, ligou-me muitoentusiasmado. Parece que descobriram uma entrada para uma das antigas casasatlantes de ligação, a Sul do Tejo, que ficou subterrada no maremoto - anunciouo conde aguardando a reacção.

- Fiquemos atentos. Pode ser que nos leve ao códice do conhecimento de Urz.- Sem dúvida. Vou-lhe enviando informações sobre as novidades e avanços das

descobertas.- Fico a aguardar.Não confiava naquele conde que apenas queria dinheiro e poder. Mas a par-

ceria tinha vindo a revelar-se útil para a causa. Quando não precisasse mais dele,seria "dispensado".

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o interior do túnel do metro, na cidade do Pinhal Novo, trinta quilómetrosa Sul de Lisboa.

- Venham. É já ali à frente - disse, nervoso, o encarregado da obra, enquantoavançava, passo a passo e trémulo, por um pequeno túnel de acesso ao túnel principal.Havia muitos anos que trabalhava a gerir grandes obras públicas e privadas, umemprego duro que se sentia na sua face enrijecida.

O encarregado estava preocupado. Conhecia bem as implicações que a des-coberta de plantas e animais fossilizados e de objectos do passado, com impor-tância científica, poderiam ter no prazo e na rentabilidade das obras.

- Não deve ser nada de importante, mas como somos obrigados a reportar…- tinha esperança que tudo aquilo terminasse rapidamente - é apenas um túnelvelho com alguns bonecos. Alguma brincadeira de namorados. Os vossos colegasque aqui estiveram antes falaram de uma antiga civilização qualquer, mas deve sertudo treta, não é? Aqui em Portugal?

- Deixe-se de conversa fiada e diga-nos onde é exactamente - cortou brusca-mente Andrade, enquanto o túnel alargava lentamente. Se fosse o que desconfiava,o metro do Sul bem podia esperar sentado pelas investigações e escavações nospróximos anos.

- É já ali. Avancemos.- Professor, isto é espectacular. O que nos esperará? - disse Pedro entre os

dentes, quase a tremer.Pedro sempre nutrira uma admiração muito forte por Andrade. Desde as aulas

na universidade, tinha ficado entusiasmado com a vivacidade, o entusiasmo e aforma de falar do Professor, que gesticulava abundantemente com as mãos, comos braços, com o corpo e a face, enquanto explicava a origem da humanidade deforma simples e compreensível.

Mas os seus temas de interesse variavam entre a astronomia, a física, a história,a biologia, o desporto, o corpo humano, ... Fazia os alunos sonhar que um diapoderiam ser como ele.

De repente, já no túnel principal do metro, na parede esquerda, surgiu aos seus

Capítulo VII

A descoberta

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olhares a entrada de um pequeno túnel, que descia abruptamente até desaparecerna escuridão absoluta.

A escavação destruíra parte do túnel, mostrando alguns desenhos claramenteatlantes. O coração de Andrade disparou de forma quase descontrolada. Franciscoe Pedro também não conseguiam conter a sua emoção.

- Vamos fazer uma pequena incursão. É o que nos permite o material quetrouxemos. Vamos perceber o que está em causa. Deixamos presa a ponta destecabo de aço com cento e cinquenta metros - ordenou o Professor, iniciando Pedro,de imediato, os trabalhos de preparação.

- Vou descer primeiro - decidiu Andrade. Sempre fora um aventureiro toda asua vida. Apesar de temer a morte, estava sempre pronto para um bom desafiofísico, de preferência com adrenalina.

- O túnel tem uma pequena inclinação para a direita já na zona escura. Edepois, a dez metros, há uma pequena galeria com inscrições também. Mas nãopercebi nada - adiantou o director da obra, enquanto Andrade já se preparava paradescer.

- Avancemos um a um, com cuidado - sussurrava o Professor, enquanto seguiaem primeiro lugar, desaparecendo no escuro - cheguei à galeria. É uma sala de umedifício com inscrições. Magnífico. É atlante. É atlante. É atlaaaaaaante...

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a manhã seguinte, na Universidade de Lisboa, Pedro, Sara, Andrade e Fran-cisco reencontram-se para debater o achado e preparar uma nova incursão ao local:

- Estou maravilhado e gostava de fazer uma nova expedição, o mais rapidamen-te possível - começou o Professor, ainda não refeito dos acontecimentos do diaanterior - Aquela sala possui toda a simbologia atlante conhecida e muita desco-nhecida. Onde nos levará o túnel ? Precisamos estar preparados para tudo. Istopode mudar completamente a pré-história da humanidade.

- Não vai ser fácil - completou Pedro - Pareceu-me tratar-se de uma complexarede de túneis e acessos muito bem conservados, apesar dos milhares de anos quedevem ter.

- Não fazemos ideia das aventuras e descobertas que nos esperam.A universidade era antiga, mas tinha sido remodelada recentemente, o que lhe

atribuía um aspecto novo e moderno no seu interior, com portas de vidro, com-putadores, placas de informação, mas mantinha um aspecto antigo preservado noexterior. A sala de reuniões branca estava preparada com equipamento para qual-quer tipo de evento ou reunião. Lá dentro, dispostas em forma de quadrado,estavam um conjunto de mesas para quarenta pessoas, dez em cada lado.

Os meios audiovisuais 3D com tecnologia de ponta sobressaíam num doscantos da sala. O grupo estava sentado no canto oposto do quadrado da mesa.

Pendurado numa das paredes, permanecia um mapa mundo gigante dos anos 50-60do século anterior, parcialmente deteriorado no canto inferior, pelo tempo e pelo uso.

- Parece-me que somos suficientes para a exploração, apesar das dificuldadesexpectáveis - arriscou Pedro. - O Professor é o "expert", o Francisco pode filmar,sei que é especialista nisso, a Sara pode tirar apontamentos e fotografar detalhese eu posso fazer o trabalho mais pesado, como sempre.

Apesar de ser novo e de estilo intelectual, Pedro tinha uma boa preparaçãofísica e estava pronto tanto para os trabalhos manuais mais pesados, como paraos de maior dificuldade técnica. Aspirava a ser o ideal da antiguidade clássica.

Mas a cara de Francisco estava tensa, não parecia muito satisfeito com a conversa.- Não podemos fazer assim - tinha estado a ouvir, mas pensava noutros planos

Capítulo VIII

Preparativos da Expedição

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- Ontem falei com o Ministério da Arqueologia e Património. O chefe de gabinetedo Ministro pediu-me para o preservar destes trabalhos árduos, devido ao grandevalor que possui para o País e para o turismo histórico português, que tantasreceitas representa hoje em dia.

E continuou: A melhor solução é ser eu a chefiar a equipa de expedição aostúneis e levar um colega da universidade. Aliás, já vem a caminho.

- Não pode ser! - gritou Andrade estupefacto. - Esta pode ser a maior desco-berta arqueológica de sempre e pede-me para não ir? Que se passa ? Qual o seurepentino interesse?

- Como já disse, apenas preservá-lo, conforme me pediram os membros doGoverno. Mas o Pedro e a Sara podem ir se quiserem.

- Nunca aceitarei - voltou a gritar o Professor. - Aliás, sou eu que chefio aequipa e digo que você não vai.

- Não leve tão a peito, homem - pediu Francisco enquanto enviava, sem nin-guém reparar, uma mensagem escrita através do telefone de pulso. - Não o conhe-ço lá muito bem, mas sei que é importante para este País.

- Não tenho tempo para isto. Vou esclarecer tudo assim que sair daqui. Agoraponha-se fora da minha universidade, que eu tenho que ir dar uma aula. Meninos,amanhã na minha casa, na serra do Louro, em Palmela, para combinarmos eprepararmos rapidamente a expedição. Despeçam-se das famílias. Serão algunsdias de ausência, pois acamparemos lá em baixo.

Sem dizer mais uma palavra, saiu e dirigiu-se ao anfiteatro onde o aguardavauma aula cheia de alunos, da cadeira de Civilizações Pré-históricas Avançadas II.

A confusão normal acalmou com a entrada do Professor e todos os alunos sedirigiram para os seu lugares.

Repentinamente, uma das portas superiores do anfiteatro abriu-se com umestrondo e um homem encapuçado entrou e disparou dois tiros de espingarda.Todos os alunos se lançaram para debaixo das mesas, entrando em pânico, aosgritos. O Professor caiu no chão, espalhando sangue pela parede e pela alcatifa.

Um aluno mais afoito correu na direcção do agressor, derrubando-o com umforte encontrão, deitando a arma para perto de outros alunos, que a agarraram.Seguidamente, correu na direcção do Professor e verificou a sua pulsação nopescoço. Estava vivo.

- Depressa! Chamem uma ambulância - gritou enquanto rasgava a sua camisa,utilizando-a para estancar o sangue.

Entretanto, o agressor encapuçado levantou-se e lançou-se pelas escadas exterioresem fuga, como um louco, desaparecendo do recinto num ápice, sem deixar rasto.

- Professor, Professor! - gritaram os alunos.- Estou bem. Mas dói-me um pouco a perna. Fui atingido de raspão!- Professor ! - gritaram Pedro e Sara entrando na sala, atraídos pelo som invul-

gar do que lhes pareceu serem tiros de uma arma.Francisco já tinha abandonado as instalações da universidade.

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a manhã seguinte, os dois alunos e o Professor passeavam no cimo da Serrado Louro, entre o moinho recuperado e a casa de Andrade, percorrendo as passa-deiras de madeira sobrelevadas da estância turístico-arqueológica da Serra da Louro,de Chibanes.

Nesse local, podia-se avistar, em dias pouco nebulosos, toda a Península de Tróiaaté ao grande centro logístico aéreo-portuário de Sines e, para o outro lado, toda aPenínsula de Setúbal até Lisboa e Sintra, o que permitia compreender que a zonaurbana de Lisboa se estendia sem interrupção até Setúbal, num complexo emaranha-do de prédios, casas, ruas e jardins.

A zona urbana do Tejo e do Sado era ladeada por uma cintura de grandes indús-trias robotizadas, com centro na grande cidade tecnológica de Vendas Novas.

Estava um dia azul e quente. A terra seca gretava e as ervas secavam amareladas,deixando ver pedras e areia. Mas naquele cume do cretáceo, uma ligeira e confor-tável brisa facilitava a caminhada dos três amigos.

- Não sei quem me poderia querer matar! - reflectia o Professor desolado e aindaem choque, enquanto coxeava ligeiramente durante a sua caminhada - uma das balasraspou a minha perna esquerda. Foi uma sorte.

- Desconfio muito de Francisco. Com todo aquele interesse - referiu Pedro, nãodizendo nada que Andrade não tivesse pensado a noite inteira passada no hospital.

- É mão daquele Conde de Sagres, o tal João Marin. De certeza. Sempre metentou prejudicar. Só não percebo o seu interesse repentino na Atlântica. Pensei quefosse um crítico.

- Talvez não queira que remexam no passado e que se descubra a verdade sobrea Atlântida. É só uma hipótese. Mas não sei quais as verdadeiras razões.

- Ainda por cima, soube que foi o Francisco e alguém muito influente a nívelinternacional, que pediram ao Ministro para me substituírem na expedição. OFrancisco já montou a sua equipa expedicionária e entrou nos túneis ontem mesmo- confessou Andrade apreensivo.

- Mas afinal o que se passa Professor?- Não sei, mas apesar de todo o interesse científico que tenho no assunto, não

Capítulo IX

A Hesitação de Andrade

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me agrada nada a violência. Não me parece que possamos fazer mais nada. O Ministrodecidiu quem era a equipa expedicionária. A equipa já partiu. Tentaram matar-mepor qualquer motivo relacionado com esta expedição. Não quero envolver-me mais.Não quero.

- Mas Professor, penso que deveríamos ir, apesar de tudo. Para quê esse medotodo? O senhor é o maior especialista na matéria. É quem pode interpretar e avaliarmelhor cada uma das descobertas. Há muito que quer descobrir todos os segredosda Atlântida - argumentou Pedro.

- Não, não posso. Não me venhas com medos. Se te tivessem acertado com umabala, queria ver como estavas.

Sara ouvia tudo atentamente e estava a ficar muito preocupada. Tinha motivos,que só ela sabia, para querer que o Professor não desistisse. Queria muito ir naquelaexpedição. Talvez a salvação da Europa, ou mesmo do mundo, estivesse em jogonaquela expedição...

- Professor ! - exclamou enquanto parava na frente dos dois colegas de passeio,já perto da casa do Professor. - Tenho algo para lhe dizer...

- Sim ?- Penso que tenho o argumento que o fará não desistir.- Que quer dizer?- O meu pai...- Diga.- O meu pai faz parte de um grupo secreto, que pratica o bem em todo o mundo.- A Maçonaria?- Não. Um grupo mais secreto, mais antigo e mais restrito. E pratica mesmo o

bem. Influencia a política mundial e é descendente de famílias muito antigas. Talvezas mais antigas de que há memória.

- O quê? Que dizes? E que tem isso a ver com esta expedição? Não vou, já disse.Detesto violência.

- Não posso dizer mais nada, mas gostaria que estivesse hoje, ao final da tarde,no castelo de Palmela. Encontramo-nos no restaurante.

- Não gosto desses grupos secretos. Só servem os interesses económicos e po-líticos de alguns. Mas vou, só porque o pedido vem da menina e confio em si. E jános conhecemos há muito tempo. Embora desconheça a sua família.

- Vai perceber tudo hoje à tarde.

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castelo de Palmela fica localizado no cimo de um monte, que fere abrupta-mente a Península de Setúbal, quase toda plana, resultado de milhões de anos dedeposição de aluviões, dos rios Sado e Tejo, e de areias e pedras roliças formandoo delta entre os dois, durante o período Pré-Tejo.

Este delta estendia-se da Serra de Sinta, às colinas de Lisboa, passando pela Serrada Arrábida, até às serras alentejanas.

A meio do antigo delta, surge imponente o monte da cidade e do castelo dePalmela, onde se encontra em funcionamento uma pousada e um importante localde turismo arqueológico.

No restaurante da requintada pousada...- Senhor Prof. Andrade, faça o favor de se sentar na mesa.Dois homens de idade aguardavam Andrade na mesa central do restaurante,

enquanto bebiam um aperitivo de entrada, o famoso Moscatel de Setúbal.Estavam bem trajados, com aspecto cuidado e elegante. As roupas brancas ou

claras, as bengalas, os óculos e as barbas combinavam com as suas faces cheias derugas encrespadas, onde sobressaíam as olheiras negras.

Andrade agradeceu o convite, acenando com a cabeça, e ocupou o único lugarvago na larga mesa redonda, preparada com pratos e talheres, de forma requintada,todos alinhados, e copos para todas os tipos de bebidas.

- Obrigado por ter aceite ao nosso convite - disse pausadamente e em tom baixoo homem sentado a meio, que parecia ser o líder. - É com muito prazer que orecebemos e agradecemos que tenha acedido ao pedido da Sara.

- Queríamos colocá-lo ao corrente de certos factos e acontecimentos que desco-nhece, mas que são fundamentais para nós, para a Europa e para o mundo - informouo outro.

- Não sei ao que venho. Sou Professor de história. A Sara pediu-me para vir, semme explicar mais nada. Só acedi devido à longa amizade que tenho por ela.

- Vai perceber tudo a seu tempo. Sou o pai de Sara.- Sim.

Capítulo X

Conselho Atlante

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- Sou pai dela e faço parte de uma organização muito antiga, que prossegue o bemno mundo.

- Muito antiga? Que organização?- Não posso revelar o nome, mas posso contar-lhe uma história. Há milhares de

anos, existia um continente com uma antiga civilização que veio a desaparecer comum terramoto, seguido de um tsunami.

- Bem sei, a Atlântida. Se sei.- Muito bem. Adivinhou. As três ilhas estavam localizadas a sudoeste de Portugal

e desapareceram. A Península de Setúbal era o bastião e principal porto de ligaçãoentre as ilhas e o continente europeu, essencialmente com o Mediterrâneo. O portode Abul. Era uma próspera comunidade que se estendia entre o Tejo e o Sado, e queaproveitava os cais nos dois rios.

- O que me diz???- Sim, e a Tróia era uma zona industrial de apoio. Nessa altura existiam dois reis,

irmãos gémeos em disputa, Evenor e Mestor. Evenor tinha as terras da África eMestor as terras europeias. Os seus impérios estendiam-se até ao Egipto, a Sul, eaté Itália, a Norte. Evenor era um Rei bom que queria a convivência pacífica dospovos. Mestor era um Rei dominado pelo poder, que dividia e gerava conflitos, parapoder reinar.

- Como sabe tanto?- Espere. O terramoto veio fazer desabar os dois impérios irmãos, que se gladiavam

na altura. No entanto, os descendentes de Mestor construíram e expandiram, atéaos nossos dias, um império de empresas que tem como objectivo semear a guerrae governar, secretamente, o maior número de países e territórios, para que no futurovoltem a refazer o antigo império europeu-atlante, para dominar os restantes povosdo mundo.

O outro homem continuou - Em contraponto, os descendentes do Rei Evenor,o bom, criaram uma organização igualmente secreta, que tem combatido a de Mestore tem como objectivo a convivência harmoniosa de todos os povos, credos e raças,em paz e com a autonomia que cada um pretenda. Andamos nestas lutas há milharesde anos, desfazendo todos os impérios que os Mestorianos têm formado: Egípcio,Grego, Romano, Francês, Inglês, Espanhol, Português, Alemão, Holandês, Russo,Árabe, etc. Eles deram uma ajuda a formar estes impérios e dominaram-nos.

- Mantivemos a diversidade milenar dos povos da Europa. Mas os Mestorianosnão nos dão tréguas, nem olham a meios. Ainda recentemente eliminaram o nossocandidato a Presidente da União Europeia. O Bush no EUA, apoiado por deles, teveanos no poder da América e lançou a guerra e o caos por todo o lado. Lembre-sede Hitler, Napoleão. O nosso bastião da liberdade e da responsabilidade tem sidoa Inglaterra. Em tempos foi a Grécia - explicou o pai de Sara.

- É verdade o que dizem?- Sim. Mas há mais. Existia um segredo guardado na ilha de Urz, na antiga Atlântida,

... o códice do conhecimento antigo de Urz.

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- Consta que nesse códice estavam revelados, pelos antigos deuses, os cincograndes segredos do mundo sobre a Matéria, a Energia, a Mente, a Vida e o Amor.Esse códice desapareceu com a catástrofe e nunca mais ninguém o viu.

- Já ouvi falar nesse códice.- Pois é isso que está em jogo nessa sua expedição. Diz-se que antes da catástrofe,

uma das expedições que os dois irmãos reis mandaram à ilha poderá ter encontradoo códice e depositado em local seguro. Mas não se sabe. Nunca mais se ouviu falardessas expedições. No entanto, o túnel que agora encontraram poderá levar a algumapista sobre o códice. Quem possuir o códice poderá vencer esta batalha secretamilenar e dominar o mundo - fez uma pausa... - então, pode fazer a expedição fi-nanciado por nós? Tem que ser já, pois o Conde de Sagres, que trabalha para eles,já avançou com a sua expedição financiada pelo Governo português. Eles têm genteem todos os partidos e países.

- Bolas, que revelação - o Professor estava atordoado - não sei se consigo acreditarem tudo. Deixem-me pensar e dormir sobre o assunto.

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o dia seguinte, logo de manhã, Sara e Andrade batem à porta da casa de Pedro,no sopé da encosta Norte do monte Formosinho, na Serra da Arrábida, à qual seacede a partir da estrada entre Setúbal e Azeitão.

Ao chegarem, a serra estava encoberta de nuvens baixas, sobressaindo o verdeescuro dos arbustos carrasco nas curvas redondas de montes e vales.

Do cimo do monte Formosinho desciam largas cascalheiras formadas pela ero-são do mar, quando este esteve duzentos metros acima.

A floresta em redor da casa era quase mágica, escura com ramagens entrelaçadase com a terra bordada de folhas secas de várias cores, formando uma larga camadade húmus fofo e húmido.

- Pedro acorde! - gritou Andrade em tom alegre. - Acorde que temos muito quefazer.

- Quem é? - Pedro aparece à janela do primeiro andar, com a cara ensonada.- Vamos embora para o Pinhal Novo, que temos muito que explorar. Faça a mala.- Mas mudou de ideias Prof.? Que se passa?- Não posso dizer mais nada por agora. Mais tarde perceberá. Mas mudei de

ideias e quero ir já hoje e ainda de manhã.- Nós já temos as malas no carro - gritou Sara - prepara a tua.- Está bem.Voltou à cama e avisou a mulher. Esta, apesar de muito alarmada, começou a

preparar a mala do marido. Com a cara ensombrada, foi-lhe pedindo que tivessemuito cuidado. Que não tinha vida para essa coisa das expedições. E tinha medode ficar sozinha. Pedro lá a acalmou com um abraço.

Passados vinte e cinco minutos, Pedro sai disparado pela porta, passando à corridao pequeno jardim frente à casa. Ao fundo, em tons de verde forte, a serra da Arrábidacontinuava a erguer-se majestosa e bela, no meio da neblina matinal, já parcialmentebanhada pelo sol em algumas das suas colinas.

- Vamos embora - diz entrando no carro, depois de atirar a bagagem para a malatraseira do Renault Laguna, modelo 2050.

Capítulo XI

Despedidas

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- Pedro, sabes que a serra já foi uma ilha muito distante de terra? E que faziaconjunto com a ilha da serra vulcânica de Sintra? Sabes que no estuário do Tejo foramencontrados fósseis de peixes das profundezas, com luzes, e de rinocerontes, croco-dilos, tubarões, peixes-boi, dinossauros, entre outros animais hoje estranhos ao local?E que a serra teve ursos há poucos séculos? Que antes de se erguer devido aosmovimentos tectónicos da terra, por pressão da placa africana, a serra esteve debaixode água muito tempo e que, no cimo, ainda hoje se podem achar fósseis de animaismarinhos?

- Sei, Professor.- Bem sei que sabes, mas não me canso de o dizer e pensar. Tão maravilhoso que

acho toda a história geológica desta região ao longo de milhões de anos.- Professor, não sei porque mudou de ideias, mas fico muito feliz. Trago todo o

material e alimentos que precisamos para uma semana.- Espero que não precisemos de tanto tempo.- E essa sua ferida na perna?- Foi só de raspão. Coxeio, mas posso fazer qualquer esforço, desde que me

ofereçam uma ajudinha nas situações mais difíceis.- Não tenha problemas.Sara tinha um fraquinho por Pedro. Mas este já era bem casado. Agora ia poder

passar uma semana inteira com ele. Não sendo possível mais, só desejava poder estarjunto a ele, usufruindo da sua companhia e do seu sorriso, sem concorrência femi-nina. Eram afinal apenas bons amigos.

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hegados à entrada do túnel do metro do sul, pararam o carro e começaram adescarregar todo o material e bagagens que traziam: tendas de ambiente controlado,máscaras de oxigénio, detectores de vários gases, alimentos, câmara de filmar efotográfica, blocos de apontamentos, mochilas para trazer objectos, cordas, arnês,lanternas, pequena picareta/pá eléctrica, baterias, uma arma, GPS subterrâneo, etc.

- Todo este material tem que caber nas nossas mochilas pessoais. Não queroequipamento a mais - pediu o Professor, enquanto agarrava numa caixa e a atiravapara o passeio.

Sara colocou as suas coisas às costas e iniciou a descida pelas escadas da obra,seguida por Pedro e Andrade, que carregavam tudo com alguma dificuldade. Osambientes debaixo de terra exigiam algum equipamento especial devido ao perigopara a respiração e ao perigo de desabamento.

Caminharam, calmamente, pelo túnel principal que ia dar ao túnel descobertopela empresa de construção e cuja primeira parte já tinham explorado.

Próximos do final, vislumbraram dois homens entroncados, que fumavam abun-dantemente e riam junto à entrada do túnel atlante. Só mais perto repararam queos homens estavam armados de pistola no coldre e não fizeram boa cara quando seaperceberam da sua presença.

- Não podem passar por aqui. Quem são os senhores?- Isso pergunto eu. Quem são os senhores? Que fazem aqui num local de inves-

tigação arqueológica de interesse nacional? Identifiquem-se - ordenou o Professor,que começava a ficar irritado.

- Estamos aqui a trabalhar para a equipa de arqueólogos do Ministério. Fazemosparte da segurança ao túnel.

- Mas não podem impedir-nos de entrar.- Temos essas ordens. Há uma equipa lá dentro em pesquisa científica e o acesso

está vedado a todos, até novas ordens.- Temos todo o direito de aqui estar e de entrar. Sou o Professor Andrade, es-

pecialista em arqueologia. Também trabalho para o Ministério e tenho o direito deentrar.

Capítulo XII

Início da Expedição

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- Não precisa de nos dizer mais nada, Professor. Não o podemos deixar entrar.Aliás, temos ordens específicas em relação ao senhor.

- O quê? Vou fazer queixa ao Ministério e serão demitidos.- Faça como entender, caro senhor. Tenha um bom dia.Andrade ficou desesperado. Aqueles dois trabalhavam certamente para a orga-

nização de Francisco e do Conde de Sagres. Como ultrapassar esta dificuldade?Os três amigos afastaram-se ligeiramente, ficando fora do alcance da visão dos

guardas e debateram irritados o problema que tinham pela frente, sem perspectivasde resolução. Mas não iriam desistir.

- Como saímos desta? Bolas - avançou Sara.- Sei lá - disse Pedro desanimado, sentando-se no empoeirado chão do túnel.- Só vejo uma saída - o Professor olhava em volta, para o tecto do túnel, de forma

enigmática.

Passada uma hora, os dois guardas ouviram um ruído no túnel.- Parece que vem aí alguém.- Quem vem lá? - gritou um dos guardas, mas ninguém respondeu.- Vai lá ver o que se passa, enquanto eu fico de guarda ao túnel. Sintoniza o rádio.- Ok.Um dos guardas afastou-se em direcção à fonte do ruído que continuava de forma

intermitente, "pum, pum, pum", como que um bater de metal contra metal.- Quem está aí? Quem vem lá? - foi repetindo o guarda.Repentinamente, o ar começou a ficar impregnado por um cheiro horrível. O

guarda que ainda se encontrava na entrada do túnel começou a ficar enjoado e passourapidamente ao estado de quase inanimado, revirando os olhos. Finalmente, semse aperceber de mais, acabou por tombar lentamente desmaiado no chão.

- Vamos andando.Três vultos entraram no túnel do metro do Sul com a cabeça coberta por máscaras

de oxigénio, rindo e falando alto.- Conseguimos. Funcionou o "spray" que o meu pai me arranjou - Sara parecia

muito satisfeita e mesmo surpreendida com a eficácia daquela pequena lata que opai lhe tinha entregue na véspera, para usar só em caso de extrema necessidade. Alegenda da lata referia um efeito imediato de inconsciência, sem perigo para a saúde.- Uma pequena lata, mas eficaz em grandes espaços fechados.

Passaram rapidamente pelo guarda que jazia desmaiado a meio do túnel, dormin-do como uma criança.

- Vamos passar. O efeito é de seis horas. Depois nunca mais nos apanham.- Vamos embora - Pedro começou a aumentar a velocidade do passo, aproximan-

do-se quase do passo de corrida.Na chegada à entrada do túnel, o outro guarda interrompia a passagem no chão.

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Pedro pousou a mala e arrastou o corpo cinco metros para a fora, deixando a pas-sagem totalmente livre.

- Vamos embora que já estamos atrasados.- Vamos a isso - Andrade estava visivelmente satisfeito e com muita pressa. Por

vezes os rótulos não traduzem a verdade e os efeitos são diferentes de pessoa parapessoa, pelo que era melhor se apressarem antes que os guardas acordassem.

E lá iniciaram a descida pelo mesmo túnel que anteriormente tinham percorrido,arrastando as mochilas, atrás de cada um, deixando vários rastos no chão de areiaescura.

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ltrapassados os primeiros metros do túnel mais estreito, os três amigos che-garam à sala onde tinham estado na primeira visita. A sala tinha cerca de cem metrosquadrados, um piso de pedra branca, polida e enegrecida pelo tempo e uso.

Era escorregadia e húmida, com cheiros podres, resultado do tempo em quepermanecera fechada.

Com a lanterna podiam vislumbrar, marcados nas paredes, os desenhos e gra-vuras alusivas à vida da época. Eram perceptíveis as embarcações com mercadorias,reis, deuses e seus súbditos, entre aqueles o Deus Sol. Eram ainda visíveis guerreirosarmados, caçadores, animais e alguns símbolos estranhos. As paredes estavam com-pletas de gravuras e pinturas, de cima a baixo, com cores amarelas, verdes, azuis evermelhas, sempre com contornos a negro.

Ao meio da sala, uma coluna redonda, despida de desenhos, aguentava há mi-lhares de anos o peso do solo acima, que cobrira o edifício subterrâneo.

- Temos que fotografar, filmar e desenhar todas estas gravuras - ordenou pausa-damente o Professor.

- Vamos levar anos a interpretar tudo isto. Talvez nunca consigamos decifrar ospensamentos de quem os desenhou. A diversidade e qualidade são muito superioresàs que encontramos habitualmente nas pirâmides e edifícios egípcios.

- Sim, pode-se concluir que o antigo Egipto veio beber conhecimento e técnicasa esta cultura anterior, mas perdeu alguma informação e tecnologia pelo caminho,pois esta estava mais avançada.

- Comecemos por este lado - Sara deu um passo em direcção à parte esquerdada parede, olhando para trás, para os amigos.

- Sim, comecem. Eu vou tentar perceber como poderemos continuar o caminho.Vou avançar um pouco - disse o Professor.

Passados vinte minutos, Pedro e Sara acabaram o trabalho de registo dos exem-plares de arte atlante, que decorava a parede da sala, quando Andrade regressouofegante.

- Acabem tudo depressa. Uff. Temos mais uma dificuldade. Ufff.- Então?

Capítulo XIII

Dificuldades Inesperadas

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- Lá à frente, desci por um dos túneis destas catacumbas da antiga cidade. Haviaduas hipóteses para prosseguir e escolhi o túnel da esquerda. Mas, um pouco depois,o percurso estava armadilhado com uma mina robot detectora de movimento. Sentia luz vermelha de detecção no meu corpo e só lentamente consegui sair sem despoletaro engenho. Já conhecia este tipo de armas na frente egípcia, onde estive recentemente.

- Vamos ver como podemos ultrapassar isto agora - disse Sara imobilizada como medo - parece mesmo impossível.

- Avancemos. A solução surgirá depois - disse o Professor começando a caminharcom as mochilas.

Iniciaram o caminho, chegando rapidamente à bifurcação de que o Professorhavia falado.

- Desta vez, vamos pelo caminho da direita. A armadilha robotizada está no daesquerda.

- Ok.E lá foram avançando, passo a passo, por um túnel largo e comprido, com as luzes

das lanternas dançando nas paredes. De repente, encontraram à sua frente umaparede que bloqueava o caminho e que parecia ser constituída por rochas caídasrecentemente.

- Calma ! - grita cauteloso o Professor - cuidado que as rochas podem resvalarpara cima de nós. Fiquem aí que eu vou ver.

O Professor avançou, pé ante pé, e esgueirou-se junto às rochas. Mas, num abrire fechar de olhos, abriu-se um buraco estreito por debaixo do Professor, suficientepara engolir o seu corpo pela terra adentro. Nem teve tempo para gritar.

Pedro saltou para o buraco em pânico e desatou a gritar para o seu interior.- Professor! Professor!- Professor!! - gritaram Pedro e Sara desesperados.Mas nenhuma resposta se ouviu. Teria falecido na queda? Estaria inconsciente?Logo que recomposto, Pedro apontou a lanterna para o escuro do túnel, mas nem

conseguia vislumbrar o fundo, pois o túnel inclinava-se em cotovelo.- Que fazemos agora? - pergunta Sara.- Vamos fazer uma descida com cordas. Tira-as do saco.- Não. Não. Não parece seguro.- Atamos a corda a uma destas rochas maiores. E é só ter calma.Pedro laçou uma das rochas e iniciou a descida em rappel. Não desceu mais que

três metros, quando deparou com o final do túnel, sem saída.- Como está o Professor? - gritou Sara lá de cima.- Ele...Ele.. - Pedro aterrorizado nem sabia o que dizer.- O quê?- Ele não está aqui. O túnel deve ter-se fechado através de algum mecanismo, à

passagem do corpo do Professor e não parece possível forçar a grande pedra que o

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bloqueia no final. Vou voltar para cima.- Que fazemos agora? Vamos pedir socorro lá fora?- E o Professor talvez ferido ou enterrado vivo, a morrer durante o tempo de

espera?- Já sei. Vamos pelo outro túnel. Pode ser que encontremos o Professor - diz Pedro

decidido, convencendo a companheira.- Mas. E a mina sensível ao movimento?- Vamos ver.Voltaram assim à bifurcação carregando todas as mochilas, incluindo a que o

Professor Andrade havia deixado para trás. De seguida, tomaram a direcção dooutro túnel, com muito cuidado.

Pé ante pé, alcançaram uma área marcada.- O caminho correcto deve ser por aqui. O Francisco deve ter deixado a mina

para impedir que o seguissem. Ao que percebi, as minas afectam o coração humano.A sua explosão não é de fogo, como uma mina normal, mas auto-projecta-se emdirecção à vítima, desfazendo-se num gás mortal para o coração.

- Nunca mais passamos? - questiona Sara.- Pois...

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edro esgueirou-se pela esquina da última parede que os separava da mina assi-nalada pelo Professor, só colocando um olho de fora para poder ver sem ser visto.A mina estava a cinco metros de distância. De imediato o marcador luminoso vermelhodo sistema de detecção da mina apontou para Pedro, procurando sinais do ritmocardíaco humano, para poder cumprir a sua missão.

Mal sentiu a luz ofuscando o seu olho a descoberto, Pedro recolheu a cabeçaassustado.

- Nem podemos espreitar. É muito sensível. Está a cinco metros, em cima de umaespécie de banco de pedra. Mas não disparou quando espreitei. Deve necessitar dedetectar a presença humana por mais tempo.

- E se procurássemos pedras e lhe atirássemos? - arriscou Sara.- Bom, podíamos tentar. Mas é provável que despoletemos o mecanismo interno

e "pum". Finito.Fez-se uma pausa silenciosa. Tinham perdido o seu mentor... Provavelmente

estava morto ou a morrer, e eles ali estavam num impasse, sem poderem fazer nada.Se calhar o melhor seria regressarem lá a cima e avisarem as autoridades.

- Vamos lá então experimentar atirar pedras, conforme disseste - decidiu Pedro.- Como evitamos que a mina venha ao nosso encontro?- Vamos esconder-nos atrás daquela rocha mais afastada e jogaremos bilhar nas

paredes. E com um pouco de sorte e o ângulo certo. "Zás". Se tentarmos várias vezes,pode ser que dê resultado.

E assim fizeram. Foram ao local onde o Professor tinha desaparecido e recolhe-ram diversas pequenas pedras. Depois voltaram e iniciaram o lançamento dos ca-lhaus contra as paredes, tentando vários ângulos de ricochete e diferentes níveis deforça. Cada vez que tentavam, esperavam um pouco e espreitavam para verificar osresultados. Mas nada.

Só após mais de vinte tentativas, Sara pareceu ouvir a pedra bater em algo metálico.Seguiu-se um ruído ligeiro de detonação e a mina deflagrou sem consequências quechegassem ao local onde se encontravam. Felizmente estas minas ainda não eramsuficentemente inteligentes.

Capítulo XIV

Encontro Indesejado

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Esperaram um pouco para que o efeito mortal passasse e avançaram, saltandopor cima do banco de pedra onde tinha estado a perigosa mina.

À frente, um longo e alto corredor, onde sentiram uma estranha brisa fria. Estatuetasde cavalos, da altura da cintura, surgiam em diversas posições, a cada dez metrosde avanço, contendo inscrições indecifráveis na base, numa linguagem certamentedemasiado antiga.

Ao fundo, uma escada com vinte e três degraus levou-os a uma porta rendilhada,feita de um metal desconhecido, em tons de fogo. Como teria resistido ao temponaquele tão bom estado de conservação? Que material era aquele?

Parecia ter sido recentemente limpa do pó e utilizada. Foi fácil abrir a porta comum potente pontapé. Pedro não teve que utilizar a máxima força.

De repente, uma luz de fogo invadiu as caras boquiabertas dos nossos amigos,que apanharam um valente susto.

Depararam com uma sala larga, onde caberiam dois autocarros em fila, de for-mato semicircular e da altura de uma pequena igreja, com uma espécie de altar aocentro e, um pouco acima, um objecto semelhante a um recipiente de barro, comcerca de um metro de diâmetro, de onde pendiam largas chamas de fogo, consumin-do abundantemente uma espécie de combustível no seu interior.

Surpreendidos, pararam junto ao estranho vaso em chamas, olhando admirados.Alguém tinha ateado aquelas chamas havia pouco tempo. Estavam tão distraídos,que nem repararam que estavam a ser observados num dos recantos da sala, cheiade velhas estatuetas e objectos estranhos.

De um momento para o outro, ouviu-se um ruído vindo do meio das estátuas.- Quem está aí?- Pedro!! Sara!! Sejam benvindos a este templo pagão anterior a Stonehenge.- Professor!!! Está vivo?- Sim.O Professor contou a sua história. Tinha caído no buraco, indo por um túnel

escorregadio até um monte de terra endurecida pelo tempo, mas suficientementemole para amparar a sua queda. Não se tinha livrado de algumas gordas nódoasnegras. Tratava-se afinal de uma passagem directa até uma pequena sala ao ladodaquele templo, sem perigo.

Em redor, a sala continha inscrições sobre alguns dos sobreviventes de uma tragédiaque destruiu a Atlântida.

A grande civilização atlante estava acabada e os seus descendentes não aguenta-ram as invasões que se seguiram. As várias ordas de povos hiperbóreos que migra-ram do Norte da Europa, tiveram como consequência a perda, para sempre notempo, de grande parte da sua cultura e conhecimento.

- As inscrições parecem falar-nos de um sábio muito venerado que aqui exerceuo culto ao sol. Esse sábio tinha grandes conhecimentos e ligação aos deuses. Pelo quese pode entender da observação das gravuras e inscrições, terão sido realizadas nestelocal ligações entre o futuro e o passado. Não percebi esta parte das inscrições. De

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resto, fui eu que acendi o fogo. Usei um combustível fóssil qualquer que ali estava,já muito velho.

- Ainda bem que está vivo Professor. Estávamos muito preocupados. Decidimosprocurá-lo, destruímos a mina do outro corredor e chegámos aqui - disse Pedro.

- Muito bem, filmem e registem tudo e continuaremos a viagem dentro de poucotempo.

Após descansarem, comerem e filmarem tudo o que havia nas salas, preparavam-se para ir embora, quando alguém apareceu.

- Não se mexam. Deitem-se no chão - Francisco e outro homem tinham voltadoatrás para confirmar algumas das inscrições nas paredes, quando depararam como grupo expedicionário.

- Esta pistola está carregada e sei usá-la muito bem - garantiu o colega de Fran-cisco.

- Vocês são muito teimosos. Como passaram pelos nossos guardas? E pela minaanti-vida?

- Que devemos fazer com eles? Vamos matá-los.- Não. Podem vir a ser úteis para decifrar algumas das inscrições - Francisco e

o colega não podiam acreditar que o Professor ali estivesse e que pudesse ter chegadotão rápido.

- Francisco. És um malfeitor, um assassino. Não ficaste com a missão a bem,ficaste a mal e ias-me matando. E nem sabes para quem estás a trabalhar realmente,nem o que está em causa - diz o Professor enraivecido e vermelho.

- Só te queria ferir e não matar - respondeu Francisco.- Mas se quiseres, continuamos juntos e partilhamos os louros. O que já desco-

briste? - Andrade atirou o barro à parede.- Nem queiras saber. Mas não vamos fazer nada em conjunto. Vocês não vão fazer

mais nada até precisarmos. Vamos prendê-los aqui.- Ok - respondeu o amigo de Francisco - passa-me as cordas. Vou atá-los em redor

daquela coluna larga.- Sim, deixamo-los aqui e amanhã passamos por cá para os alimentar e para nos

ajudarem na parte de decifração.Depois de terem atado os três amigos, muito bem, sem se poderem mexer, em

pé e em redor da larga coluna principal, Francisco e o seu colega reexaminaram osescritos e as gravuras nas paredes e nas estátuas e, passada uma hora, voltaram a sairpela mesma pequena passagem por onde haviam surgido.

- Desta vez é que estamos tramados Professor - confessou Pedro, que estavaimobilizado entre Sara e o Professor.

- Só nos resta esperar. Vocês não têm objectos de vidro ou lâminas nos bolsosdas calças? Desculpem não ter tomado atenção ao surgimento daqueles malandros.

- Bolas - disse Sara.

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s horas passavam e os três amigos já começavam a ficar desesperados comfome e sede. E as suas mochilas com alimentos ali a poucos metros, intactas. Os seusadversários não tinham tido de tempo de inspeccionar e esconder as suas coisas.

- Estão ali - disse um dos guardas que havia ficado inanimado à entrada da gruta.- Pois vamos até lá.Chegando perto dos três presos junto à coluna, ficaram admirados.- Ei lá! Que fazem aí? Estamos muito chateados com a vossa atitude. Estamos nós

a fazer o nosso trabalho e brincam com a gente e quase nos matam. Mas quem vosprendeu aí?

- Foi a equipa do Dr. Francisco. Abandonaram-nos aqui à morte certa - disse oProfessor.

- O quê? O Dr. Francisco do Ministério? Com toda a certeza que não..- Não? Deixaram-nos aqui à morte. Vejam a gravação que está na minha mala.

Estava a filmar as paredes quando eles chegaram e deixei a máquina em "REC".Após visionarem o filme, do qual apenas se percebia o som e as vozes.- Como é possível?- O Dr. Francisco está a enganar o Ministério. Trabalha para uma seita secreta

inimiga do Estado, contra Portugal e contra a Europa - garantiu o Professor.- Nós trabalhamos para Ministério, na área da segurança. Não participamos em

mortes.- Isso não - confirmou o outro guarda.- Então tirem-nos daqui. Desatem as cordas por favor.- Bom, como é um caso de vida ou morte, fica aqui um e o outro vai chamar a

polícia secreta do Estado.- Sim - disse o outro guarda, enquanto o primeiro se afastava.- Mas, pelo menos tirem-nos as cordas e deixem-nos comer o que temos na

mochila.- Não pode ser.

Capítulo XV

A Pirâmide Giratória

A

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- Vá lá. Temos fome e sede, estou desidratado.- Hummm, ok. Liberto-lhe as mãos e tem aqui a mochila, Professor.Tirando a arma que havia colocado no mochila de manhã, o Professor apontou

ao guarda - deita já arma para o chão ou disparo sem piedade. Já...- Calma. Ena. Calma. Ok - lançou a arma ao chão.- Agora desata-me. Vá depressa. Depressa - dizia o Professor enquanto era liber-

tado e corria para as mochilas procurando beber água e comer algo.- Querem? E você desapareça daqui e não volte mais.- Vou embora, não me lixem. Tenho filhos..E assim, o grupo pegou na sua bagagem e, após saciar o corpo, continuou a

viagem pelos túneis, agora com novo vigor, perseguindo Francisco e o seu colega.À medida que avançavam, foi-se instalando no ar um forte cheiro a podre e a

queimado, da combustão de algo desconhecido. Um cheiro nunca sentido antes.Subitamente ouviram um forte estrondo e uma onda de luz intensa. O ar quase

que os atirou ao chão. Não faziam a mínima ideia do que se teria passado lá maisà frente.

Mas desconfiavam que teria sido obra de Francisco. Talvez tivessem caído emalguma armadilha ou usado algum material explosivo para abrir uma entrada. Osnossos amigo alargaram o passo, mas cautelosamente.

Passados vinte minutos, quase sempre a correrem por túneis estreitos, chegarama uma sala redonda com dez metros de altura e cerca de vinte metros de diâmetro,sendo visíveis inscrições e símbolos em toda a parte. Devia ser um local muitosagrado e secreto.

Ao centro uma pirâmide metálica que ocupava boa parte da sala.- Professor, o que é isto?- Não faço ideia, rapaz. Não faço ideia.Estava abismado com o que via. Dentro da pirâmide gigante, uma esfera de uma

espécie de metal vermelho ocupava todo o espaço interior, tocando as suas faces,ligava-se à pirâmide através de um mecanismo giratório, nunca visto anteriormente.

O acesso ao interior da bola vermelha estava franqueado. Mas, por prudência,nenhum dos nossos amigos ousou entrar sem primeiro avaliar a envolvente. DeFrancisco nem sinal.

Os nossos amigos pousaram as mochilas e contemplaram aquela obra de arte.- Estou farta e exausta. Este dia tem sido demais para mim - disse Sara pousando

as mochilas.- Precisamos de descansar um pouco - concordou Pedro.- Muito bem. Montem o acampamento enquanto eu dou uma volta de inspecção

pelo local.- Professor, que será tudo isto? Isto deve ser mais recente. Como poderia existir

este nível tecnológico há milhares de anos - interrogou-se Sara, começando a montar

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o acampamento.- Não faço a mínima ideia querida. Mas vou investigar. Também acho muito

estranho.Os dois jovens deitaram-se, cada um no seu saco de cama e adormeceram.

Passaram-se quatro horas.- Amigos, amigos, acordem. Vamos - gritava o Professor. - Venham, venham.O Professor nem tinha dormido. Tinha passado o tempo todo a observar, em

detalhe, objecto a objecto e desenho a desenho, toda a sala, sem nunca entrar naesfera. Tinha feito descobertas impressionantes.

- Amigos, pelo que consegui entender da linguagem e dos desenhos das paredes,estamos perante algo gigantesco para a humanidade. Era nesta sala que os atlantessobreviventes guardavam uma das maiores heranças dos antepassados, as tecnolo-gias dos Lemures, que não fazemos ideia quem eram, mas que os escritos afirmamter sido um povo antigo muito avançado tecnologicamente, mas cujo conhecimentose perdeu nos tempos.

A herança materializou-se nesta pirâmide metálica, com a bola de fogo ao meio,que simboliza o sol. Parece uma espécie de templo e percebi que se relaciona comos antepassados e com os descendentes. Mas não percebi mais nada.

- E Francisco? Onde estará?- Nem vivalma. Desapareceram. Mas não encontro saída desta sala que não seja

o túnel pelo qual viemos ou...- Ou...??- A pirâmide!Um silêncio de morte invadiu-os a todos.- Vamos entrar na pirâmide e na bola para investigar? Parece uma máquina de

qualquer espécie.Sara estava receosa. Tinha um forte pressentimento negativo.Que perigos inesperados os aguardavam lá dentro? Onde estavam Francisco e o

colega? Dúvidas que sobressaltavam as suas mentes num rodopio sem resposta.- Vamos entrar e que Deus nos proteja.Avançaram cautelosamente para o interior da pirâmide.- Esta pirâmide deve estar relacionada com as do antigo Egipto e do México.

Pensava alto o Professor, sem tirar os olhos da frente. Talvez seja o túmulo de umantigo Rei ou esteja relacionado com a vida depois da morte.

O interior da bola era liso e igualmente da cor de metal-fogo, sem vestígios decorrosão.

Tinham acabado de entrar, quando repentinamente a porta se fecha nas suascostas, quase por magia, e a esfera começa a girar lentamente. Para se manterem depé, os três amigos, assustados, começaram a andar no seu interior, em direcçãocontrária ao movimento. Mas a velocidade ia rapidamente aumentando.

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- O que é isto Professor?- Agarrem-se a mim. Corram. Não sei...Mas a velocidade disparou. Os três amigos desmaiaram rapidamente, tendo sido

atirados para a parede da esfera que atingia velocidades giratórias alucinantes, co-lando os seus corpos à parede, pelo efeito da força centrífuga. Que lhes iria acon-tecer?

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entiu a cara ardente do sol e um clarão brilhante inundava-lhe os olhos semi-serrados. Onde estou? O que se passou? Sentiu nas mãos a forma dos pequenos seixosrolados e frescos da humidade da manhã, polvilhados de areão grosso, como seestivesse deitado num leito de rio. O seu corpo não se movia e as tonturas que sentiaobrigavam Pedro a manter os olhos fechados, sem conseguir encarar a luz.

Passados dez minutos, abriu um olho a custo e inclinou levemente a cabeça,conseguindo vislumbrar o cascalho castanho-húmido no chão e os arbustos verde-escuro em redor, contrastando com o céu azul forte e com o sol que começava a ficarquase a pique.

O calor tendia a ficar mais intenso. Pedro apoiou-se com uma mão no chão esentou-se, procurando os colegas com o olhar, mas sem sucesso. Lembrava-se de terentrado naquela bola gigante, dentro da pirâmide e mais nada. Teriam ficado feridos?Como viera ali parar?

Logo que sentiu mais forças, levantou-se. Tinha a roupa chamuscada e um cheiroa enxofre na pele. Inspirou e, logo que ganhou forças, moveu-se lentamente, come-çando a procurar os amigos no meio dos arbustos, que tinham a sua altura e, de tãodensos, podiam ocultar um corpo a apenas dois metros.

Conhecia bem aquele tipo de vegetação típica da Arrábida. Estaria na Arrábida?A moita carrasco, como lhe chamavam devido aos picos nas suas pequenas folhasrecortadas que torturavam e feriam os viajantes mais incautos, que tivessem umpouco de pele a descoberto.

- Professor! Professor! Sara! Sara!E nada. Ninguém respondia.Ouviu um ruído nos arbustos a poucos metros, mas quando se aproximou, viu

fugir uma pequena raposa, que entrou na sua toca. De seguida, começou a procurarem círculos, aumentando o seu raio em redor do local onde tinha acordado, mas atarefa foi dificultada pelos arbustos muito serrados e espessos.

Finalmente, numa outra clareira de cascalho roliço, viu Sara deitada junto àsmochilas espalhadas por vinte metros. Mais à frente o Professor Andrade igualmentedeitado. Assustado, correu para os amigos.

Capítulo XVI

Novo Mundo

S

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- Sara! Sara, acorda! - sentiu a pulsação no pescoço e descansou. Estava viva. -Acorda Sara.

- Sim? - ouviu-se de forma ténue. - Ai a minha cabeça.- Calma Sara, está tudo bem. Abre os olhos lentamente.- Pedro, onde estamos? - o Professor já tinha começado a acordar também. - O

que se passou?- Não faço ideia Professor. Alguém nos deixou aqui.Os três amigos levantaram-se, reuniram os seus haveres, entre eles ainda estava

a pistola e algumas balas. Depois começaram a explorar o ambiente em redor.- Lembro-me de entrarmos na bola de metal, no interior da pirâmide, debaixo

de terra, no Pinhal Novo e, de começar a rolar, a rolar, a rolar e depois mais nada...- Ou fomos apanhados e drogados, para depois nos deixarem aqui, longe de tudo.

Não se vê nada. Ou não sei.- Pois, pode ter sido o Francisco e o amigo.- Não há aqui nada em redor. Só uma planície grande e lá ao fundo montanhas.

Onde estaremos? E para ali... Não pode ser !? O quê! A Arrábida? Mas... ondeestamos afinal? É a Arrábida ali. Conheço bem as suas formas. Estamos na Penínsulade Setúbal ainda. Mas não percebo em que local exacto estamos - disse o Professorestupefacto.

- Sim, parece que estamos em Setúbal, no mesmo local, só que longe de pessoase de casas - ficaram os três de boca aberta, espantados, sem perceberem o que lhestinha acontecido.

- Repare Professor - disse Sara - ali é o monte do castelo de Palmela. Mas nãoestá lá nada! - estava abismada. Sempre viveu naquela zona e a qualquer que fossea distância, sempre tivera o castelo de Palmela como referência para se guiar, mesmoquando ia passear a Lisboa. E agora não estava lá o castelo !!!

Subiram a uma rocha mais alta e olharam em redor. Era a grande planície damargem Sul do Tejo, mas em vez de amarela e polvilhada de casas, estava toda verde,com manchas castanhas aqui e ali de cascalho e veios azuis de ribeiros. Choveradurante a noite, certamente, mas o sol agora brilhava sozinho no céu azul.

Ao longe, a serra da Arrábida ondulava como que um grande monstro adorme-cido, rodeado de verde por todo o lado.

Não se vislumbrava qualquer sinal de presença humana que não fosse um peque-no rasgo de fumo longínquo no céu, que subia de uma das vertentes da serra.

Do outro lado, a serra vulcânica de Sintra aparecia no meio da neblina matinal,depois do rio Tejo, mas nem sinal da cidade de Lisboa. O que se passara? Umacatástrofe natural, uma guerra global?

- Ou estamos no céu, ou estamos todos loucos, ou passou-se algo de muito, muitograve - Pedro começava a entrar em pânico e a tremer. - Estaremos ainda drogados?O que é isto? O que é isto? - começou a andar em volta e a abanar a cabeça comose estivesse louco. Mas os amigos não o conseguiam ajudar, raiando também as

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fronteiras entre a realidade que conheciam e a loucura.Passados quinze minutos:- Calma - o Professor recuperara a racionalidade - vamos sentar-nos e meditar

sobre isto tudo - disse procurando estabilizar os próprios pensamentos.- Meu Deus! - gritou Sara.- Não sei o que aconteceu, mas este local é sem dúvida a Península de Setúbal,

mas nada está no seu sítio. Ou foi tudo destruído ou não foi construído.- O que quer dizer com isso?- Nunca ouviram falar nos "wormhole" no espaço-tempo? - lembrou-se o Pro-

fessor. - São ligações entre momentos e espaços diferentes. Aquela bola e aquelapirâmide podiam ser uma máquina do tempo.

- Isso explicava porque nada está construído.- Sim, estávamos a explorar ruínas atlantes, pensávamos nós, e se eles eram muito

avançados podiam ter esta tecnologia. Ou podiam tê-la herdado de alguma civiliza-ção anterior ou extraterrestre. Lemures?

- Mas em que ano estaremos? - Pedro, ainda não podia acreditar no que ouviae via.

- Não sei, mas este ambiente sem civilização pode ser muito perigoso. Vou andarde arma preparada. Vamos montar o acampamento e comer alguma coisa.

Pedro e Sara montaram o acampamento e aqueceram alguma comida enlatada.Depois de encherem a barriga, o Professor foi explorar o arredores, enquanto Pedroe Sara se deitaram. Estavam exaustos e não sabiam porquê.

Já meio da tarde, o Professor Andrade regressou ao acampamento.- Pessoal acordem. Estamos certamente vários séculos antes de Cristo. Não sei

quantos. Aquele aparelho em que entrámos devia ser uma máquina do tempo atlanteem stand by preparada para enviar qualquer pessoa, de qualquer tempo, para estadata e local. Se calhar aconteceu o mesmo ao Francisco e ao seu amigo. Temos queter muito cuidado - Andrade explicou a sua teoria - desconfio que estamos numséculo antes de Cristo, na época do final do império Altlante. Como sabem, osescritos apontavam para o final do império 10.000 anos antes de Cristo, mas asdatações nas últimas escavações mostram actividade imperial no continente europeuaté cerca de 5.000 anos a.C., e deixa-se de ter vestígios de comércio com as ilhasdesde então, época em que se pensa terem as ilhas sido varridas do mapa por qual-quer catástrofe natural.

E continuou.- Encontrei frutos frescos e bagas, mas não consegui caçar animais. Aproximei-

me um pouco duma aldeia na serra, de onde saía aquele fumo que vimos de manhã.- E então?- É na serra de S. Francisco. Parece-me ser a velha Chibanes, cujas ruínas já

visitámos muitas vezes. Pensávamos que só tinha sido construída e ocupada muitomais tarde, mas afinal não. Pode ter havido limpeza do local em algum momento e

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despejo dos restos em local desconhecido - disse o Professor, apontando para ofumo.

- Chibanes? E quem lá vive?- Não sei. Talvez os avós dos portugueses, dos lusitanos... Não sei. Vi de longe

e estavam alguns homens de barba, vestidos com peles, em redor de uma fogueira.As casas eram redondas, com telhado de colmo. Não me pareceu muito grande.Talvez ali vivam cem ou cento e cinquenta pessoas. É preciso andarmos com cui-dado. Como fica na cumeada da serra, têm uma vista defensiva numa grande dis-tância e num raio alargado para todo o Norte da península.

- O que havia de nos acontecer - lamentou-se Sara. - Será que vamos achar ocódice do conhecimento na própria época dele? Será que vamos falar com os meusantepassados atlantes?

- Vamos dormir e amanhã veremos o que vamos fazer, com mais clareza.

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o dia seguinte, de manhã, acordaram ao som de tambores e do trompar gravede um grande corno ou concha. Embora distantes, aqueles sons pareciam varrer aplanície entre o Tejo e o Sado, entrecruzando-se com a neblina que enchia todos oslugares deixados vagos pela vegetação. A manhã estava ainda fresca e os nossos amigoslevantaram-se apressados e assustados, desarmando as tendas rapidamente e colo-cando as mochilas em local seguro.

- Será que nos viram e vêm apanhar-nos? - questionou Sara.- Não sei, mas vamos esconder-nos no mato.Os sons pareciam vir de todos os lados e podiam ouvir-se cada vez melhor, o que

parecia indicar que se aproximavam. De um momento para o outro, começarama ouvir-se vozes e os corações dos nossos amigos bateram mais depressa. As vozesvinham do lado Norte, da direcção do Tejo.

- Vem dali. Parecem estar a passar ao lado. Vamos ver o que é. Vamos aproximar-nos devagar - disse o Professor.

Ao longe, viram uma caravana com cerca de vinte homens e três carros puxadospor bois e alguns cães. Um dos carros trazia em cima um urso morto, resultado deuma caçada, certamente. Os outros carros traziam outros animais e armas, lançasde vários tipos e redes. Enquanto avançaram passo a passo em direcção a Chibanes,alguns homens gritavam, tocavam os tambores e ecoavam sons a partir de cornosde animais. Os carros eram simples conjuntos de troncos atados assentes em peque-nos toros laterais, de largo diâmetro, que serviam de rodas. Eram muito rudimen-tares.

Os homens eram morenos e tinham todos barba grande escura e peles castanhasque lhes cobriam parte do corpo. Alguns empunhavam lanças com ponta de sílex oumetal. Adornos metálicos de cobre embelezavam o pescoço, sobressaindo por detrásda barba e dos braços, perto dos ombros.

- Vêm do Tejo. Devem ter ido caçar nas suas margens. Agora retornam a Chibanescom o produto da caçada. Maravilhoso. Nunca pensei ver isto ao vivo - o Professorestava deliciado - quem é este povo? Qual a sua origem?

- Professor, vamos atrás deles para ver o que fazem. Talvez encontremos alguma

Capítulo XVII

A Aldeia de Chibanes

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resposta para nós - disse Pedro.- Ok. Temos que achar a máquina do tempo para nos levar de volta. Talvez esteja

por aqui perto, mas o mais certo é haver uma nas ilhas de Atlântida, se existir mesmo.Penso que só mais tarde construíram aqui o templo e nele colocaram a máquina queencontrámos no nosso tempo.

O grupo indígena avançou até ao sopé da serra de S. Francisco e voltou à esquer-da, contornando-a e subindo um caminho ancestral que levava até ao cimo da serra,onde se localizaria futuramente a vila de Palmela. No cimo, na portela onde viria aser construída a paragem principal dos autocarros de Palmela e o jardim da povo-ação, viraram cento e oitenta graus à direita e iniciaram a subida pela cumeada daserra de S. Francisco.

Os nossos amigos seguiam a distancia segura, ficando cada vez mais espantadoscom a paisagem que se podia observar à medida que iam ganhando altitude. Aolonge, o Tejo corria manso e escuro, entre as margens de sapal verde e as sete colinasda futura Lisboa, carregadas de plantas, árvores e mato. No pouco do Sado que podiaver entre serras, nenhum navio, nem vestígio da cidade de Setúbal.

No cimo da montanha de Palmela, onde devia estar a vila e o castelo, estavaapenas uma pequena casa de pedra, talvez algum templo de uma divindade antiga.O cenário era maravilhoso e assustador ao mesmo tempo.

Voltaram-se para o estreito caminho que os homens tinham tomado, que subiaa serra do Louro, outro nome da serra de S. Francisco, e voltaram a perseguir acaravana de caçadores, escondidos entre rochas e arvoredos.

Subitamente, um homem barbudo e meio despido apareceu-lhes pela frente,assustador e de lança em punho.

- Rabui, caci, faloté - gritou o homem enervado.Devia ser um guarda avançado da aldeia.- Tabui palca - estes sons saíram de imediato da boca de Andrade, para espanto

dos seus amigos.- O que está a dizer Professor? Percebeu alguma coisa - perguntou admirada Sara.O homem ficou especado com as palavras que ouvira, sem saber o que dizer ou

fazer.- Ele fala uma espécie de fenício antigo. Aprendi essa língua quando estive nas

escavações em Israel. Alguns cultos ainda a utilizam como língua litúrgica.E o Professor continuou a tentar falar com o homem, com a mão junto à arma

carregada no bolso.- Eles não compreendem. Eu falo - disse o Professor em fenício antigo - viemos

em paz e temos fome.- Quem são? Que querem? - gritou o homem outra vez.- Somos do Norte. Depois do rio. Queremos comer e continuar a viagem.- Que querem daqui? Vão embora.- Queremos comer e falar. Depois vamos embora - insistiu o Professor.

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Os gritos do homem atraíram os outros homens que seguiam mais à frente, quesurgiram pela cumeada abaixo em forte corrida, com as lanças empunhadas. Segu-raram-nos e tiraram-lhes tudo o que tinham. A arma manteve-se no bolso do Pro-fessor. De seguida levaram-nos para Chibanes.

À frente do grupo iam três homens anunciando a captura na aldeia com o somlongo e grave dos cornos de animais, que ecoava pelos vales adjacentes, carregadosde neblina. Atrás vinha o Professor agarrado por dois homens, seguido por Pedroigualmente preso e Sara. Mais atrás vinham os restantes homens, descalços e meiovestidos com peles, sujos e armados.

Ao aproximarem-se da aldeia, começaram a ver qual era a origem do fumo quesubia ao céu, dia e noite. Uma fogueira no meio de casas pequenas esculpidas naspedras com formatos redondos, aglomeradas desde a cumeada até cerca de vintemetros pela encosta Norte abaixo. A encosta Sul era muito íngreme.

O caminho da cumeada passava a meio da aldeia, deixando uma fileira de casasmais nobres no cimo, de um lado, e as restantes casa no outro, pela encosta abaixo.

Algumas mulheres e crianças de cabelos negros e longos vieram receber a comi-tiva, atraídas pelo ruído e pela caça fresca. Depois de passada a confusão, gerada naaldeia pela chegada de tão estranhas pessoas, o grupo parou num pequeno largo juntoa uma pedra maior, que servia de trono ou cadeira a um membro mais velho dacomunidade. Um Ancião, que empunhava o seu imponente e trabalhado báculo depedra esculpida, símbolo do poder na região, falou:

- Quem são? O que querem? - perguntou o velho em tom forte e na língua quesó Andrade entendia. O que querem daqui?

- Amigo, Amigo! Não queremos problemas. Viemos em Paz. Paz. Somos estran-geiros do Norte - respondeu o Professor.

- O que querem daqui?- Estamos apenas de passagem. Em viagem.- Para onde?- Queremos ir à ilha do império Atlante. Conhece? O reino do Mar. Queremos

falar com o Rei e com o sacerdote da Ilha.- O reino do Mar?- Atlântida.- Reino da Atlântida. Sim. Senhores de toda a terra conhecida junto ao mar, até

ao Egipto.- Sim.- Não é bom ir à grande ilha. Muita gente. Muita confusão. Não é bom.- Temos uma missão de paz em nome dos nossos reis.- Que reis?- De Portugal e da Europa.- Nunca ouvi falar. Deve ser para além das montanhas da neve.

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- Sim.- Isso explica as vossas estranhas vestimentas.- Tenho algumas ofertas - disse Andrade tirando da mochila uma lanterna pequena

e uma bússola.- Agradeço - e voltou-se para os homens da aldeia - libertem-nos e dêem-lhes de

comida. Eles vão para a grande ilha.Ainda desconfiados, os homens levaram os três amigos para junto da fogueira

onde estavam a ser assados vários grandes pedaços de carne e se secavam algumaspeles de diversos animais. Depois de comerem e esperarem várias horas, o anciãoe dois homens vieram juntar-se a eles perto da fogueira.

- Queremos falar. Sentem-se - ordenou o ancião.- Diga - respondeu Andrade sentando-se e fazendo sinal aos seus amigos para lhe

seguirem o exemplo.- O nosso povo vive aqui há mais de quinhentos invernos. Somos descendentes

de antigos capitães da feitoria de Abul inicial, que vieram do oriente e aqui se es-tabeleceram neste rico rio, para comercializarem o peixe diferente e o sal que en-viavam para as suas terras de origem. O oceano tem estas maravilhas diferentes.Mais tarde vieram os atlantes, que floresceram a partir do seu império das ilhas domar e ocuparam todas as terras e feitorias marítimas, passando a dominar o comér-cio por mar. Os nossos avós longínquos tiveram que subir às montanhas e defende-rem-se. A nossa tribo divide-se por duas aldeias. Chibanes e Rotura. Nós domina-mos o Norte até ao grande rio e Rotura domina para sul, até ao Sado. Agora estamostodos em paz com os atlantes e ganhamos com o comércio. O império atlante éprincipalmente constituído por feitorias, fortes e pequenas cidades junto aos mares,por todo o mundo conhecido.

- Compreendo - o Professor estava maravilhado com o que ouvia. - Vivem muitaspessoas na região?

- Em Chibanes cerca de cento e cinquenta. Na Rotura cem e na Feitoria e nafábrica de Abul, vivem cinquenta atlantes e cinquenta dos nossos. Na serra sagradavivem dez pessoas. Junto ao grande rio a Norte também existem seis famílias danossa raça. Mas a Norte daquele rio só vivem indígenas, brutos e agressivos. Sel-vagens. Às vezes juntam-se em ordas e vêm até aqui atacar-nos, a nós e à Feitoriade Abul.

- Como podemos chegar às grandes ilhas? Há barcos na Feitoria?- Sim, mas têm que pagar com mercadorias.- Onde fica a Feitoria?- Ali - o ancião apontou para o rio, entre a serra de S. Luís e o monte de Palmela

- O velho do monte sagrado, que vive naquela casa lá em cima, vai partir amanhãpara a Feitoria. Ele pode ajudar-vos a negociar a vossa ida. Os atlantes são muitodifíceis para negociar. Vou mandar levar-vos lá a cima, para irem falar com ele.

- Obrigado, obrigado - agradeceu Andrade em fenício antigo.- Mas vão levar uma oferenda de Chibanes para o Rei Atlante. Existem dois reis

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que disputam o poder. Levam duas oferendas. Queremos paz com todos.O ancião e os seus dois homens levantam-se e partiram para o centro da aldeia.- De que falaram Professor? - perguntou Pedro, que estivera calado todo o tempo

com Sara, percebendo que a coisa estava a correr favoravelmente.- Vou contar-vos. Vamos para a Atlântida. Vamos procurar a máquina do tempo

e, quem sabe, o códice do conhecimento - depois o Professor contou-lhe toda aconversa que acabara de ter com o ancião.

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aquela noite, ficaram pela aldeia dormindo na tenda que montaram ao centro,numa zona mais aberta perto da fogueira. Os resultados da expedição de caçadaforam comemorados em grande pelos habitantes da aldeia, com uma festa em quehomens, mulheres, crianças e cães participaram activamente. Todos se juntaramperto da fogueira comunitária, onde se começou por assar carne, a parte que nãotinha sido conservada em sal de Abul.

Um sumo de frutos meio alcoólico foi distribuído aos homens, enquanto váriasmulheres dançavam no meio da população. Os nossos amigos, um pouco distantesde toda esta festa, foram deitar-se mais cedo na tenda. Dormitaram com dificuldade,enquanto a festa durava até amanhecer.

Já de manhã, desmontaram a tenda, prepararam as suas mochilas e pediram aoancião que mandasse alguém para os acompanhar até ao cimo do Monte Sagrado,que ficava a meia hora de distância a pé, pelo mato. Logo desceram a cumeadaolhando em volta os belos vales verdejantes, não vislumbrando qualquer casa ou sinalde presença humana, habitual naquela zona em 2050 d.C.

Mais à frente iniciaram a subida ao Monte Sagrado, num caminho serpenteandopor entre a espessa e alta vegetação. Já perto do cimo surgiu-lhes, do lado esquerdo,um pequeno muramento, que os guiou até à casa de orações onde vivia o velho queprocuravam. Viam-se bustos de deuses animais esculpidos em algumas pedras juntoao muro.

Um velho de longa barba branca e vestes de tecido amareladas com o tempo, veiorecebê-los no final da última subida.

- Sejam benvindos ao Monte Sagrado, estrangeiros. Já sei que vão para as Ilhas.Entrem - ordenou, apontando para um edifício alto, feito de pedras e barros. - Curvem-se perante a deusa Inana e os bois sagrados.

- Pedro, Sara, curvem-se perante aquelas figuras - Andrade apontava para umarocha grande esculpida com um rosto feminino de deusa suméria e para as figurasde bois alados que rodeavam a deusa. Compreendia agora que o culto da mulher emPortugal era muito mais antigo do que imaginara, tendo culminado no culto à virgemMaria.

O velho fez sinal para que entrassem no templo, local escuro e retiro de culto,

Capítulo XVIII

O Monte Sagrado

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iluminado apenas por uma pequena vela de gordura.- Entrem e sentem-se. De onde são?- Do Norte. Muito a norte. Somos mensageiros do nosso reino distante. Viemos

em embaixada à corte do Rei atlante.- Evenor. Eu sei. Estava à vossa espera há anos. Sabia que viriam hoje.- Como? - perguntou o Professor.- A salvação do mundo está nas vossas mãos.- O que diz?- Um jovem, um velho e uma rapariga aparecerão vindos de outro mundo e

ajudarão o Rei bom a recuperar o códice perdido e a salvar o mundo de agora e deamanhã. Esperava-vos e já tenho a viagem marcada.

- Diz que vamos salvar o mundo e fala de um códice - disse o Professor aos seusamigos, em português. Não percebia o que se passava.

- O quê?!?- Sim, parece que sabe alguma coisa sobre a máquina do tempo e estava à nossa

espera no dia certo.- Mas só a colocaram mais tarde no Pinhal Novo. Como é possível? - perguntou

Sara.- Um barco parte amanhã para Antília, em Seden, mas temos que partir ainda

hoje para Abul. O guarda do Monte Sagrado irá convosco. Eu já estou velho edoente.

- Quem?- Este monte era a morada de uma família de gigantes, antes de aqui ter sido

construído este templo. Foram eles que esculpiram as rochas e movimentaram osgrandes blocos de pedra. Ogo ainda aqui ficou. Tem cento e quarenta anos. Umjovem. Os seus pais partiram há muito para o interior.

- Gigante. Ele falou de um gigante.O Professor voltou-se sobressaltado para os amigos.- Entra Ogo.O templo não era muito alto e a figura do homem de três metros que entrou de

repente assustou os nossos amigos, que se encostaram a um dos cantos da sala.- Tenham calma. Apresento-vos Ogo, o Gigante - disse o velho.- Olá deuses vivos, sou um vosso servo.- Ogo tomou-vos como a missão da vida dele, está pronto para tudo e é muito fiel.- Mas de que missão fala?- Os escritos antigos é que falam e bateram certo. Vocês apareceram.- Como pode ser tão alto? - perguntou o Professor Andrade.- São descendentes de um povo muito antigo, que veio das estrelas e aqui deixou

descendentes.

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A Feitoria de Abul

- Quem é essa aberração gigante, Professor? - perguntou Pedro ainda encostadoao fundo da sala.

- Não se assustem. É amigo e vai-nos ajudar.- Olá - disse Pedro e o gigante fez-lhes uma vénia.- Não sabia que tinham mesmo existido gigantes.- Não percamos mais tempo - disse o velho - vamos partir já para Abul.Com a cabeça feita em água com tanta confusão e grandes enigmas, os três

amigos aguardaram que o velho e o gigante preparassem os seus haveres para aviagem até ao entreposto comercial de Abul.

O velho iria com eles para negociar a viagem com o barqueiro e para trocaralgumas mercadorias. Precisava de azeite, tâmaras, cerâmica, prata e marfim. Sóo gigante faria a viagem marítima com eles.

Enquanto esperavam, vieram para fora e olharam a bela bacia de Abul. O rio,limpo de embarcações, corria suave e azul. A ilha de Tróia era uma jóia verde comuma auréola amarela da areia. Mais atrás, após a caldeira, estava a vasta fábrica depeixe salgado atlante, cujas ruínas iriam ser o encanto dos arqueólogos e dos turistasdo século XXI.

Na outra margem, já bem dentro do rio, podia ver-se um casa grande, tipoarmazém. Era certamente a Feitoria de Abul, junto ao pequeno porto onde estavaacostada uma embarcação.

Em Setúbal, só se podiam ver sapais e ribeiros que serpenteavam na vasta zonahúmida plana. Olhando para Leste era visível uma extensa zona verde plana. E paraNorte, o rio Tejo e a margem Norte. Quem habitaria a capital nestes tempos?

- Vamos - disse o velho chamando os nossos amigos.Desceram pelo caminho que serpenteava o monte Sagrado, na sua vertente sul,

até chegarem à planície de sapal que ocupava a várzea da futura cidade de Setúbal.Entre pântanos, ribeiros e braços do estuário do Sado, ladeados por muita ve-

getação, seguiram um velho caminho aberto pelo tempo, que os levou, após váriashoras, à margem do rio.

Perto do rio, podiam ver as belas praias e a montanha da serra de S. Luis, queconferia uma beleza especial a toda a região. Depois seguiram junto à costa, pelossapais, junto à Mitrena, Praias do Sado, até à futura Herdade do Pinheiro, naquelaaltura ainda sem pinheiros.

O caminho demorou muitas horas dificultadas pelo terreno arenoso. Quando jáquase não conseguiam ver o Monte Sagrado, pelo escuro da noite que caía, avistaramum conjunto de edifícios e um cais palafítico com uma barca. Tinham chegado aodestino.

- Doem-me as costas - disse o gigante pouco habituado ao longos percursos.

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o entardecer, naquele dia quente, soprava um vento fresco agradável de No-roeste, provocando uma ligeira ondulação que corria ritmicamente para a costa,chocalhando vaga após vaga a embarcação ancorada no cais de Abul, contrastandocom a imagem brilhante da lua cheia, fixa no horizonte, iluminando tudo a meia luz.

Os nossos amigos chegaram perto do edifício da feitoria e pararam por ummomento. Homens com vestes brancas carregavam e arrumavam continuamentealgumas mercadorias acondicionadas em sacos e fardos, transportando-as às costaspara uma pilha próxima do cais. Eram os preparativos da viagem de retorno daembarcação.

- Não sou grande amigo do vice-rei da Feitoria de Abul. Desentendemo-nos emalgumas transacções comerciais e outros assuntos. Mas não tenham problemas -disse o velho a Andrade.

- É como no meu país. Negócios e amizade nunca andam de mãos dadas.- Entremos. Homem, você aí, vá chamar o vice-rei. O homem largou uma ânfora

que levava às costas e correu para o interior do edifício principal.A feitoria ficava numa pequena península plana e redonda, entrando pelo estu-

ário e permitindo atingir maiores profundidades para a acostagem das embarcações.Esta configuração tornava também mais fácil defender o estabelecimento de possí-veis ataques por terra.

O edifício da feitoria era alto e rectangular. Tinha poucas janelas, tendo a Oesteuma torre de defesa quadrangular, mais alta que o edifício, através da qual se acediaao interior do próprio edifício da feitoria, por uma porta elevada ligada ao chão poruma rampa inclinada em formato de "V" invertido, com dois metros de alto.

Em redor do edifício, um muramento com cerca de um metro de largura e doismetros de altura protegia o acesso aos armazéns, só possível pela entrada principal,a sul, junto à torre, com acesso directo ao cais de embarque.

Entre o cais de embarque e a feitoria, uma fossa, larga e cheia de água, preveniaeventuais ataques por via marítima, confinando o acesso e facilitando a defesa.

No cais, uma bela embarcação de vela redonda arreada aguardava o dia de sefazer ao mar cheia de mercadorias.

Capítulo XIX

A Feitoria de Abul

A

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Um pouco antes da pequena península, mais para o interior de terra, a cerca dequinhentos metros, localizava-se uma aldeia de casas de madeira onde viviam ostrabalhadores da feitoria e os serviçais agrícolas que apoiavam a feitoria.

Passado algum tempo, cinco homens surgiram na porta da torre e desceram arampa, torneando o muro e aproximando-se dos nossos amigos.

O vice-rei vinha à frente com capacete pontiagudo e uma cara séria e sisuda,seguido por quatro guardas armados de lanças, deixando os nossos amigos apreen-sivos.

- Velho, que vens aqui fazer?- Venho levar estes amigos para embarcarem para as ilhas e queria também al-

gumas mercadorias e víveres.- Devias era ter vergonha em vires aqui depois do que me fizeste.- Porquê? Por fazer a vontade à tua filha?- Ritma sabe lá o que quer. Tem doze anos.- Mas está feliz e apaixonada com o seu marido em Chibanes.- A minha filha pertence à aristocracia atlante. Pode ter um futuro brilhante nas

ilhas. Casar com um oficial da corte ou com o Rei.- Mas preferiu viver nesta linda região.- Nunca. Casaste-a com um bárbaro que vive numa aldeia porca, neste fim de

mundo.- Tens de aceitar.- Nunca. Prendam o velho.Os quatro soldados avançaram para o velho com as lanças empunhadas. Ogo

saltou em sua defesa, empurrando os guardas, mas o velho fez sinal para se afastar.- Professor, o que se passa - perguntou Pedro.- Querem prender o velho. Parece haver uma desavença por causa da filha do

vice-rei da feitoria.- E vocês estrangeiros, quero-vos dizer que o velho fica aqui preso até me tra-

zerem a minha filha. E se querem embarcar, têm que me trazer Ritma. Agora vão.Os guardas levaram o velho para o interior da feitoria, desaparecendo, apressa-

damente, pela porta da torre.- E agora o que fazemos?- Não sei Pedro. O vice-rei quer a filha aqui, para libertar o velho e deixar-nos

ir no barco. Mas ela fugiu para Chibanes e casou. Só tem doze anos.- Vamos meter-nos numa confusão - disse Sara colocando a mão na cabeça.- Sim, amanhã temos que ir a Chibanes avisar sobre o que se passa - decidiu o

Professor.- Vamos primeiro arranjar sítio para dormir.

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corde senhor - gritou o gigante Ogo para Andrade.- O que se passa?A manhã já ia avançada, mas ninguém tinha acordado devido ao cansaço do dia

anterior. Algumas nuvens tapavam o sol de vez em quando, sempre por breves minutos.- Diz Ogo.- Acordem e levantem-se. Eu vim na frente.- Não percebi?!- Vim primeiro. Fui a Chibanes avisar sobre o que se passou ontem. Os homens

ficaram exaltados e combinaram formar um grupo armado de ataque. Devem estara chegar.

- Foste sozinho?- Sim, pela noite. Não podia deixar o meu mestre preso. Estou estafado.- Muito bem. Vamos vestir-nos, meninos, que vem aí uma coluna de ataque de

Chibanes para resgatar o velho sacerdote de Palmela.- Temos que nos por a salvo, não vamos também apanhar - disse Sara.- Vamos para ali esconder-nos para acompanharmos tudo bem perto.Na feitoria a vida parecia decorrer normalmente, embora as pessoas olhassem

constantemente para o horizonte por instinto, conhecedoras que eram da fibra doshomens de Chibanes e da sua ligação ao velho.

E tinham razão para isso. Os Chibanes eram temidos. Passados trinta minutos,chegaram cerca de cinquenta homens Chibanes, velhos e novos, armados de lanças,machados, paus e arcos.

Os amigos ficaram a vê-los passar irritados e aos gritos, enquanto Ogo se lhesjuntou em direcção a Abul.

Chegados à feitoria, pararam perto do istmo da península. A Feitoria estavafortificada com madeiras pontiagudas voltadas para fora e estava bem guardada porhomens com grande força de armas.

- Tragam o vice-rei - gritou o chefe dos Chibanes aos guardas - quero falar-lhe

Capítulo XX

A Tragédia

-A

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de imediato.Depois de alguma hesitação entre os guardas, um deles correu para dentro do

edifício da feitoria, tendo decorrido um bom tempo sem que nada acontecesse, mastodos esperavam sem mais alarido.

De repente, a porta da feitoria abriu-se e saiu de lá o vice-rei acompanhado porvários guardas. - O que querem daqui?

- Liberta de imediato o nosso sacerdote ou destruiremos a feitoria.- Só se trouxerem a minha filha.- Não podemos. Seria contra a vontade dela.- O velho só sairá daqui com vida nessa condição.- Então vamos matar os teus homens e destruir tudo.- Poderemos perder agora, mas já sabem que depois virão frotas e homens do

reino que destruirão vocês e as vossas famílias. Não haverá mais paz.- Temos que aí ir libertar o velho que de nada tem culpa.- Não foi ele que a casou sem nada me dizer?O impasse estava criado. A tensão era enorme. Quem daria o primeiro passo?

E seria de cedência ou de ataque? Embora os atlantes estivessem melhor equipadoscom armamento e armaduras, eram apenas cerca de vinte guardas contra mais decinquenta Chibanes.

- Chibanes, preparar para atacar quando eu disser...- Não, não - Ritma tinha seguido a orda de Chibanes e mantivera-se escondida

até não aguentar mais a pressão. Levantou-se detrás da vegetação e correu em di-recção ao seu marido que estava no grupo de ataque. - Não te quero morto Jadeu!Não. Parem - e correu como uma louca, deixando todos os presentes, de um ladoe de outro, de boca aberta.

- Que fazes aqui? Vai-te mulher.- Ritma, vem ter com o teu pai já. Vem para casa.Ao chegar ao pé do marido desatou num pranto acompanhado de berros bem

altos.- Não vás, não quero que morras, nem que mates o meu pai.- Vai-te embora daqui. Volta para Chibanes.- Não, Não. Só se vieres comigo.- Não posso, o teu pai raptou o nosso sacerdote.- Vai ser uma tragédia e tudo por minha causa.- Vai para casa, já te disse.- Não, vou desfazer esta tragédia.- O quê?- Sim. Adeus amor - e dizendo isto, correu rapidamente por entre os guardas

atlantes para o pé do seu pai - liberta já o velho.

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E nisto, para espanto de todos, o marido de Ritma saltou sozinho por cima domuro de defesa e correu em direcção a Ritma e ao seu pai, furioso e com um machadonas mãos.

No espaço de poucos segundos, Ritma olhou incrédula para a reacção que des-pertara no marido, gritando um profundo "NÃOOOOO".

Jadeu chegou perto do vice-rei que, antecipando o seu acto, o atravessou coma sua lança, obrigando o corpo a cair imóvel no chão.

Todos ficaram sem saber o que fazer, estupefactos, e Ritma desfeita atirou-se aocorpo do marido desfalecido.

O único que teve reacção foi o pai de Ritma que acenou para dentro edifício,de onde saiu em liberdade o velho sacerdote.

- Vês o que provocaste, velho casmurro.Este gesto serviu para anular o outro, deixando os Chibanes imóveis sem re-

acção.

Após dois dias e meio de choro absoluto e ruidoso pelas planícies de Abul, Ritmadecidiu abandonar de imediato o local na barca que partia para a capital do reinoatlante, com mercadoria da região, com os três amigos Andrade, Pedro e Sara e como gigante Ogo.

A tripulação queria partir o quanto antes. Mas Ritma iria sem antes enterrar oseu amado na bela ilha de Tróia, junto à fábrica de peixe, mandando erguer umacoluna de pedra em sua honra, com a frase "Esposo Óptimo".

Sem se despedir do pai, a barca largou do cais de Abul no final de uma tarde emque o sol se punha no cimo da serra da Arrábida, deixando ensombrada toda aplanície verdejante da futura cidade de Setúbal, recortada por braços do rio queentravam pela terra adentro.

Deixando atrás de si um pequeno rasto na água calma, passou lentamente de velaserguidas à brisa suave e guiada por três golfinhos saltitantes. A barca seguiu, passan-do pelo complexo industrial de salga de peixe de Tróia, de onde recebeu um calorosoadeus oferecido pelos trabalhadores atlantes, para quem a barca levava saudades dasua terra tão distante.

Por fim saiu da barra do rio, embrenhando-se no oceano guiado pelo sol poentee, mais tarde, pelas estrelas do céu aberto estrelado.

No dia seguinte, Ritma manteve-se isolada toda a manhã, não falando com ninguéme choramingando de quando em vez, talvez recordando a vida que podia ter tido emChibanes com o seu marido.

Pedindo a Andrade que servisse de interprete, Sara foi-se aproximando lenta-mente de Ritma.

- Não comes nada Ritma?- Não tenho fome.- Esta viagem vai ser muito cansativa e vais ter que comer para teres forças.

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- Depois.- Vais levar alguns meses ou anos para te sentires melhor, mas a vida continua

e não podes deixar de comer.- Não me importa morrer e que os deuses me levem.- Sei que não é o mesmo, mas também sofri muito com a morte da minha mãe,

mas continuei a alimentar-me.- Mas ele era o meu amor, o meu companheiro de vida. Agora não tenho futuro.

Vou ter com a minha mãe em Antília. Poderão ficar na casa dela. Serão bem vindos.- Obrigada, mas temos uma missão a cumprir e depois quero voltar para a minha

terra.- Vamos ter muito tempo para me contares a tua vida. Podes ser minha amiga?- Sim, claro. Quantos dias costuma ser de viagem?- Entre sete e quinze dias, dependendo do tempo que fizer.- A viagem é muito complicada?- Não, se tiver bom tempo, como é habitual de Verão. Só temos que ter cuidado

com as feras do mar, que atacam os barcos.- Que feras? Peixes?Ritma estava outra vez receosa e chorava.- Tem calma, onde é a tua terra?- São umas ilhas muito verdes no oceano. Lindas. Aea é governada pelo rei-

Mestor I, um Rei mau que está em guerra com o seu irmão. A outra ilha é Seden,governada pelo Rei bom, Evenor II. A terceira ilha é Urz, uma ilha misteriosa, ondeninguém quer ir e onde quem vai não volta mais. Dizem que é onde está guardadoo segredo dos nossos antepassados que povoaram as ilhas.

- Então há guerra entre atlantes irmãos?- Sim, dantes o nosso império estendia-se a toda a terra dos dois lados do mar

mediterrâneo, mas agora o Sul é dominado pelo Rei Evenor II e o lado Norte édominado pelo Rei Mestor I e as batalhas continuam no mar, nas cidades costeirase lá longe, na zona onde se encontram as duas terras e acaba o mar. Morrem muitoshomens ao que dizem. Há intriga, traição. Irmão mata irmão. Por isso eu queriaviver o amor longe desta confusão.

- Quero-te confessar, eu tenho uma missão.- Sim?- Bom, nós viemos de muito longe e para voltarmos precisamos do códice do

conhecimento da ilha de Urz, de que falaste e de ver um engenho dos vosso antepas-sados. É para lá que queremos ir.

- Mas é muito perigoso!- Eu já sei, mas não temos escolha.- Tenho que vos apresentar ao meu Rei que vos ajudará de certeza.De repente, um estrondo fez estremecer fortemente todo o barco, fazendo cair

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a vela e empurrando as duas raparigas para o outro bordo.- O que foi isto Andrade ! - gritou Sara aterrorizada por entre água que lhes caía

em cima.- Não sei. Estão bem?- Sim.- Sim.Os tripulantes gritavam muito assustados, olhando e apontando para um lado e

para o outro. O mar acalmou por instantes...- Dizem que é um animal qualquer muito grande. Agarrem-se bem que pode

bater no barco outra vez.

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ubitamente, a água começou a saltar de novo, surgindo uma boca do tamanhode quatro bois, com centenas de pequenos dentes pontiagudos que sobressaiam doseu interior negro abismal.

O animal tinha um olho enorme ao centro, erguendo-se no ar a dez metros dealtura e tornando a mergulhar. Mas o seu corpo em forma de cobra continuou apassar por fora de água durante alguns segundos. Talvez fosse uma moreia giganteou uma serpente de grandes dimensões que depois desapareceu nos tempos.

Ao longe uma centena de serpentes passavam ao largo com as cabeças de forae os corpos ondulando dentro e fora de água.

- Talvez este seja um defesa do grupo e apenas nos queira afugentar e não atacarmesmo - disse Andrade esperançado.

Depois, mais três fortes pancadas no barco, numa das vezes chegou mesmo aentrar bastante água a bordo.

Os homens, encolhidos, protegiam-se e seguravam-se como podiam. Enrolandoo seu corpo em redor do casco, o animal estava prestes a virar o pequeno barco.

Foi então que um trovão se fez sentir muito perto e a chuva começou a cair. Umadaquelas repentinas chuvas de Verão em pleno oceano. Assustado com o clarão etalvez com a electricidade que o envolveu, o monstro largou repentinamente aembarcação e desapareceu nas águas escuras e tenebrosas.

Durante quase uma hora ninguém se atreveu a sair do lugar onde se protegera.Todos olhavam para fora à procura de sinais do bicho. O cardume de monstros aolonge havia desaparecido. Pouco a pouco, os homens foram acreditando que já nãohavia perigo, consertaram a vela e retomaram o rumo interrompido.

- Que outros estranhos e perigosos animais nos aguardam neste lugar e nestetempo desconhecido ? - questionava-se o Professor.

- Nunca descobrimos vestígios destes bichos na nossa época, mas o oceano é tãogrande e está tão mal explorado. Um mergulhador ao procurar conhecer o mar,comparativamente, é equivalente a uma pessoa a andar à noite, a pé, com umalanterna, a tentar conhecer a Europa toda. Ainda por cima, conhecer o mar é maisdifícil, pois tem três dimensões.

Capítulo XXI

A Cidade de Antília

S

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Após uma semana de navegação calma, avistaram a terra. Era a ilha de destino.Contrastando com o balancear rangido pelas madeiras da barca, a ilha de Seden

apresentava-se muito fixa e estável à linha do horizonte, surgindo como uma longacosta a perder de vista, para um lado e para o outro, recortada por montanhas aolonge, que ondulavam sem saírem do lugar.

Seria agradável a sensação de pisar chão firme depois de tantos dias a balouçar,sem condições de conforto e sujeitos aos perigos daquele oceano pré-histórico.

Ao aproximarem-se começou a ver-se a estreita faixa de areal que bordejava todaa costa e o fumo que saía certamente de fogueiras das aldeias e lugares.

Mais próximo, podia ver-se que a ilha possuía uma longa planície fértil, decoradacom culturas agrícolas em tons de verde e castanho, tendo ao centro a entrada doporto, estreita, ladeada por altas torres de vigia e espessas muralhas de defesa depedra branca e telhados laranjas de ouricalco, um metal cor de fogo.

Feitos os devidos sinais pelo comandante da embarcação e reconhecidas as pessoas,levantaram-se as defesas da entrada para o primeiro porto interior, o porto de co-mércio.

Com a lenta passagem dos barcos, os guardas, trajando armaduras de ouricalco,tinham oportunidade de observar atentamente os tripulantes e passageiros, procu-rando qualquer indício de perigo.

Passadas as primeiras muralhas, apresentou-se um porto interior carregado deembarcações de comércio em plena operação de troca de mercadorias de todo oMediterrâneo, nos cais em redor.

A bacia e o porto ladeavam todo o palácio real numa extensão de cerca de vintequilómetros.

Ritma pretendia ir ter com a mãe à corte real, pelo que a barca se dirigiu às torresde entrada do segundo porto interior, o porto militar.

As torres e as respectivas muralhas fortificadas eram de pedra de cor negra,rodeando todo o segundo porto interior, e estavam cobertas com telhados de cobrebrilhante.

Aqui, a barca foi obrigada a parar para ser revistada, tendo os tripulantes sidointerrogados sobre a sua identidade e intenções. Ritma responsabilizou-se pelos seusquatro amigos.

Passadas as defesas de madeira da entrada, o porto apresentava-se cheio deembarcações militares muito semelhantes às futuras embarcações egípcias. No porto,soldados e artífices andavam para lá e para cá, muito atarefados.

O segundo porto interior tinha cerca de mil e quinhentos metros de largo etambém rodeava todo o edifício real. A caminho do palácio real, a barca aproximou-se das últimas torres de defesa, onde terminavam as muralhas muito mais altas queas anteriores.

A entrada estava encerrada por uma porta gigante, que se abria em duas partes,para os lados. As muralhas e as torres eras feitas de pedra vermelha e os telhados noseu interior eram dourados de ouro maciço, luzente.

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No seu interior, um pequeno canal com cem metros de largo rodeava o edifícioportuário real, que era circular ao centro, com diversos cais interiores quase para-lelos uns aos outros.

- Chegámos - Ritma parecia estar satisfeita por mostrar a grandeza de Antília aosamigos estrangeiros, a capital do reino e do império, embora tivesse facilmentedisposta a trocar tudo aquilo por uma vida pacata em Chibanes.

- Maravilhoso, é tal como foi descrito por Platão nos seus textos antigos - excla-mou o Professor Andrade.

- Sempre pensei que fosse apenas imaginação, mas afinal sempre existiu estefamoso e antigo império - disse Pedro.

- Vamos lá conhecer a terra dos nossos antepassados gloriosos - Sara estava muitoemocionada.

A embarcação acostou a um dos cais livres e foi amarrada. Aqui as pessoasandavam mais calmas e mais bem vestidas que nos outros portos. Este era o portoreal.

- Venham comigo, vou levar-vos à minha mãe. Vai ficar muito interessada nasvossas histórias, vão ver. Ela gosta muito de saber sobre mundos longínquos e des-conhecidos do nosso.

Saíram do porto por uma ponte em estacaria, chegando rapidamente à entradado palácio real. Uma grande escadaria, mais larga em baixo que em cima, era guar-dada por dois soldados trajados com ouro.

Subiram os longos degraus da escada e cumprimentaram os guardas.- Por aqui - disse Ritma.Ao passarem por um corredor, ouviram alguém a chamar:- Ritma! Ritma!- Sim, meu Rei. Sou eu.Era Evenor II.Mas alguém espreitava, boquiaberta, por detrás de uma grande coluna de pedra

cinza...

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ma semana antes, na ilha de Aea, no palácio real de Mestor I, o feroz, na cidadede Altas, um grupo de homens ajoelhados ouve o seu Rei.

- Desde que o meu irmão soube que eu vou organizar esta expedição à ilha deUrz, parece que não se fala de outra coisa no palácio de Antília, segundo me dizemos espiões. Só falam no códice do conhecimento antigo e na expedição a Urz, quetambém Evenor está a organizar, para lá chegarem primeiro.

Vamos enviar já os nossos trezentos homens para a ilha. Quero que seja umaexpedição rápida e quero ter o códice na minha mão no prazo de um mês.

- Mas Senhor, muitos perigos desconhecidos se nos vão colocar no caminho paranos atrasar. Bestas gigantes, ao que falam, homens primitivos e outros animais eperigos naturais.

- Não quero saber. Quero esse códice depressa, antes dos outros.- Sim, meu Senhor.Agora partam. Vão para os navios. Vocês são os meus melhores homens e de

vocês pode depender o sucesso nesta guerra.Assim que saíram os generais da operação, incluindo o comandante supremo da

operação, um mágico novo na terra, Mestor mandou chamar o jovem que o aguar-dava há várias horas no interior do palácio.

- Homem, vais já partir num barco comercial para Seden e vais avisar Elna, aescrava pessoal do Rei Evenor, que a nossa expedição partiu hoje com trezentoshomens e que ela deve fazer tudo para integrar a expedição de Evenor e atrasá-la,para que não passe do início ou se perca para sempre.

- Sim, Amo.- Agora vai.

Capítulo XXII

A Ilha de Aea

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lna ouviu, por detrás de uma coluna, o seu Rei chamar Ritma e sentiu voltaraquele sentimento antigo de ciúme e raiva pelo qual havia anos que tinha passado,devido a Ritma. E colocou-se em escuta...

- Querida Ritma, há quantos anos não te via.- Meu Rei ! - disse Ritma surpreendida, fazendo uma larga vénia.- Então, como te deste por terras atlânticas, do continente? E quem são esses teus

amigos estrangeiros?Ritma contou todo o drama que havia passado, mas não sem soltar algumas

lágrimas.- Estes meus amigos são de longe, das terras do Norte do continente e querem

encontrar o códice do conhecimento antigo de Urz, para poderem conhecer o ca-minho de volta à terra deles. Sabes, a lenda do livro!

- Esse é um códice sagrado. Mas não é nenhuma lenda, é real. Pertence aosantepassados dos atlantes, que vieram dos céus. E só nós, atlantes, podemos possuiresse códice, lê-lo e compreendê-lo. O que querem do códice? - perguntou admiradoEvenor.

- Eu sou descendente de atlantes que foram para o Norte - disse Sara. - Assim,poderei ler?

- Sim. Reconheço os traços ilhéus na tua face. Mas, o que pretendem do códice?- Estamos perdidos há muitos anos, vagueando pelo continente, sem sabermos

onde fica a nossa terra. E um ancião avisou-nos que encontraríamos o caminho devolta nas palavras do códice, ou junto ao local onde está guardado, em Urz - avançoucautelosamente Andrade, como explicação aceitável, uma vez que o Rei nuncacompreenderia o que era uma máquina do tempo, que era na verdade o que eles maisqueriam encontrar, para além do códice.

- Pois então vieram no momento exacto em que eu preparo uma expedição a Urz.Um velho também me disse que precisava do códice do conhecimento antigo parafazer voltar a paz à Atlântida. E acabar com esta guerra de irmãos.

- Podemos ir convosco? Temos muitos conhecimentos mágicos que poderão ajudarcontra os perigos da ilha - Andrade acendeu um fósforo, deixando os atlantes estu-

Capítulo XXIII

A Expedição de Seden

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pefactos.- Muito bem, mesmo o que eu precisava. Está formada a equipa. Vocês e o

gigante, eu, Elna - a minha escrava - e uma equipa de dez homens da minha guardapessoal. Os meus exércitos estão em batalha no Mediterrâneo e não me poderãoacompanhar.

- Muito bem - disse o Professor.- Mas muitos perigos desconhecidos nos esperam, dos quais só parte nos chegam

a partir de histórias que se ouvem. Muitos tentaram, mas nunca ninguém conseguiudescobrir o códice do conhecimento antigo de Urz.

- Temos que ter muito cuidado - disse Andrade, vendo alguém na sombra dacoluna de pedra.

Elna, que tudo ouvira, manteve-se imóvel e imperceptível, ao que pensou. Sentiuuma grande satisfação por Ritma não ir, mas ficou preocupada com as artes mágicasdos forasteiros. Talvez a sua missão viesse a ser dificultada por aqueles intrusos.

- Bom, ficam duas noites em Seden para descansar da viagem e conhecerem acidade. Mas, depois partiremos. Ficam na minha casa real. E tu Ritma, ficas poraqui?

- Sim, vou ver a minha mãe e voltar a percorrer a cidade, para ver se ainda estáigual. Farei de cicerone dos meus amigos durante a sua estadia.

- Está bem.- Venham comigo.Chegados à zona dos quartos de hóspedes do palácio real, uma serva indicou o

quarto de cada um.- Descansem um par de horas e depois encontramo-nos aqui para fazermos uma

visita à nossa capital imperial, Seden.- Até já.

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música dos tambores, que ecoava pelas ruas apinhadas de atlantes e gentes detodas as raças, provinha da praça central da cidade, onde vários músicos e artistastentavam afincadamente ganhar o dia com o que de melhor sabiam fazer. Em redorda praça, ao som de várias músicas misturadas, vendia-se peixe fresco em bancadas,fruta, legumes, animais vivos e em carcaça, peças de artesanato, cestos e loiças.

O mercado diário do centro da cidade era o ponto de encontro para venda doque se produzia na terra e nos arredores ou do que se trazia de além mar e para acompra do que é necessário às pessoas. A cidade estendia-se por mais de três qui-lómetros.

Bandos de miúdos corriam divertidos em redor dos artistas. Muitas pessoasatarefadas carregavam cestos e sacos cheios à cabeça e em carroças, com as merca-dorias para vender e trocar ou que já tinham comprado. Parecia uma medina árabe,apertada e com um mar de gente e cheiros.

Andrade mal podia acreditar no que via. Sempre tinha tentado sonhar como seriaa vida numa cidade atlante e agora ali estava, no centro da capital, em 5050 a.C.

Os três amigos e Ogo, o gigante, percorreram a cidade guiados por Ritma, passandopelo emaranhado de pessoas, que circulavam indiferentes aos desconhecidos. Erauma grande metrópole, onde as pessoas estavam habituadas a ver de tudo.

- Há muito que não vinha a Seden e já não estou habituada a tanta gente, tantaconfusão - referiu Ritma fascinada e meio estonteada.

As casas tinham quase todas dois andares e telhados arredondados laranjas deouricalco, como que descrevendo "ns" pequenos em contínuo. No centro, todas ascasas tinham grandes portas abertas ao comércio, onde desfilavam mercadorias detodo o império. Era o mercado das lojas.

Cada família do centro da cidade tinha uma loja onde vendia os produtos do mar,do campo e as mercadorias que os navios traziam diariamente de todo o império.

Os amigos continuaram a andar e saíram da zona central da cidade, por entretemplos e monumentos, chegando aos arrabaldes de Seden.

No final da cidade fortificada, subiram à muralha e, do alto da torre, puderamobservar toda a planície fértil que circundava a cidade, a perder de vista, e que era

Capítulo XXIV

Volta pela Cidade

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abraçada por sete montanhas altas, cobertas de um manto branco de neve.- Talvez tenha sido por isso que escolheram Lisboa para capital, entre as sete

colinas - gracejou Pedro Filipe.Os primeiros dois mil metros de planície, em redor da cidade, eram cobertos

de casas mais pobres, de pedra e colmo ou só colmo e madeira, de formato redondoe com o telhado de bico ao centro, onde deveriam viver as pessoas que trabalhavamos campos.

Depois, seguiam-se terrenos sem fim, cultivados e irrigados por múltiplos ca-nais, num misto pastel e verdes, recortados de vários tons, ora com árvores de fruto,ora com plantas mais rasas ou cereais.

Olhando para trás, para o lado do mar, podia ver-se o porto feito de circunfe-rências sucessivas de água e o palácio real ao centro, e um picotado de velas dasembarcações militares e de comércio, que entravam pela cidade adentro e acostavamaos diversos cais.

Após darem uma volta pelos campos, regressaram ao palácio de Evenor, já can-sados.

- Obrigado Ritma, agradecemos tudo o que fizeste por nós - disse Andrade.- Adeus Ritma - Sara despediu-se com algum carinho e um beijo de especial

amiga de viagem. - Pode ser que um dia nos voltemos a encontrar, nem que sejanoutra vida ou noutra época.

- Amanhã ficamos no palácio a descansar e a preparar a partida com Evenor -lembrou Pedro.

- Gostei de vos conhecer e agradeço a ajuda que me deram num momento difícil,quando perdi o meu amor.

- Adeus Ritma.No dia seguinte, logo pela manhã, Andrade resolveu dar uma volta pelo cais, para

ver como iam os preparativos da expedição, tendo rumado ao porto, com destinoà embarcação de Evenor.

Ao chegar junto do navio, que devia ter cerca de quarenta metros de comprido,reparou na azáfama dos homens que faziam o carregamento dos haveres e das armas.

- Bom dia senhores.- Bom dia. É o Sr. Andrade?- Sim. Quase tudo pronto para amanhã? Temos ainda malas para trazer.- Tragam tudo hoje.- Assim farei senhores. Estão optimistas?- A minha mulher tem medo. Mas eu estou desejando ir. É pelo meu Rei e pelos

meus.Repentinamente, um pequeno barco a remos saiu por detrás do navio e partiu

rapidamente na direcção oposta ao cais, não deixando reconhecer os dois vultosencapuçados que remavam ansiosamente.

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ra o dia da partida para a grande aventura de Urz. Todos estavam apreensivoscom os possíveis cenários de desfecho da viagem, sob o peso das histórias que ti-nham ouvido, mas ninguém falava no assunto. Apenas se notava nas faces.

Os homens de Evenor faziam os últimos preparativos, arrumando a carga noporão da embarcação. A chuva miudinha que, ora caía, ora parava, deixava anteverque o destino não seria fácil, pois nem o tempo ajudava.

Ogo, Elna, Evenor e os três amigos viajantes do tempo assistiram aos trabalhosa partir de terra, junto às famílias, mulheres e crianças, dos homens do Rei, quechoravam e queriam passar estas últimas horas com os seus. Evenor deixara claroque, caso não regressasse, o seu primo e fiel amigo, Fernol, deveria ficar com oscomandos do reino e as famílias dos homens que desaparecessem, ou padecessem,deveriam ser altamente recompensadas.

Três horas mais tarde, todos estavam a bordo para a partida, tendo passado assucessivas muralhas do porto e da cidade, desde o palácio real, até ao mar.

- Que perigos sobre-humanos nos esperam? - questionava-se Evenor, olhandomagnânimo para o mar. - Mas que poderes poderemos vir a possuir?

- Estamos preparados para tudo, meu Amo - lembrou Elna.Passadas apenas cinco horas de viagem, já se avistava o cume do vulcão central

de Urz, que se elevava a quase quatro mil metros, no epicentro da ilha de quarentaquilómetros de raio.

Para lá da costa, toda escarpada e impenetrável, esculpida pelas ondas gigantes,encontrava-se uma vasta floresta serrada e salpicada de cumes rochosos menos ele-vados, que se cobriam e descobriam com a passagem constante de um manto denuvens intermitentes, que adensavam o mistério e não facilitariam certamente ocaminho que era preciso percorrer.

Dizia-se que o códice estava no centro da ilha, no vulcão.- Majestade, Majestade! Entra água no porão a jorros - gritava um dos homens

da tripulação.- Não podem tapar?

Capítulo XXV

A Ilha de Urz

E

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- É muito grande. Vamos afundar.- Mas não batemos em nada?! O que se passou?Seguiu-se uma tragédia marítima, com o navio a afundar nas ondas e os homens

a saltarem para o mar, agarrando-se ao que podiam.Felizmente, com a ajuda dos deuses atlantes, só se perdeu um homem, que levou

com uma parte da carga na cabeça, que se desfez. Os restantes, ao todo quinze, foramatirados para uma pequena enseada rochosa da ilha.

Depois de descansarem, recolheram os equipamentos e os mantimentos que alichegaram e montaram as tendas da primeira base de apoio, cobertas de ramos efolhas, pois a maioria dos equipamentos tinha sido dada como perdida.

- Começamos mal - disse Pedro estafado.- Que azar - Ogo sempre tivera mau pressentimento em relação ao mar.- Devem ter sido uns sabotadores que vi ontem, junto ao barco, num bote. Nunca

imaginei que quisessem afundar-nos - desabafou Andrade.- Devem ter sido os lacaios do meu irmão, para impedir a nossa expedição. Não

foram querida Elna?- Eu? Eu não! Sou-te fiel Evenor.- Deixa-te de mentiras. Os meus espiões já me tinham avisado. Que anda Mestor

a preparar?- Nunca direi nada.- Se amas a vida, diz - os guardas apontaram as armas pontiagudas.- Eu falo. Eu falo.- Então?- Foi Mestor que me pagou para eu te espiar, mas mantém a minha mãe presa.

Mata-a se eu não quiser espiar-te.- Que sabe ele do códice?- O mesmo que tu. Soube da tua expedição e já preparou uma com trezentos

homens. Deve ter chegado ontem a Urz.- E quem sabotou o barco?- Foram dois estrangeiros. Um tal de Francisco. O novo mágico de Mestor, que

diz que o ajudará a descobrir o poder do códice e que comanda a expedição comogeneral supremo.

- Francisco? - Andrade estava estupefacto. - É um malfeitor da nossa terra, quequer o códice para fazer o mal - Andrade não podia explicar mais.

- Queriam acabar comigo ou convosco no mar? Ou com todos. Temos que tercuidado com eles - advertiu Evenor.

Enquanto dizia isto, sem que houvesse a menor brisa no ar, uma lenta e ruidosaonda de vento varreu a copa da floresta próxima do acampamento, assustando todosos presentes.

- O que será isto? - questionou um dos homens de Evenor, olhando para um lado

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e para o outro.Ficaram em silêncio durante uns dez minutos.Subitamente, um velho muito magro, surgiu do nada, com roupas esfarrapadas

e apoiado num cajado.

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que querem daqui? Vão-se embora enquanto é tempo. São mal vindos aAzaes.

Os homens de Evenor juntara-se em redor do Rei, preparando a defesa dumpotencial perigo que viesse com o velho.

- Não ouviram? Vão desta ilha.- Quem sois? - Ogo avançou lentamente para o homem.- Não interessa, não me assustas homem grande. Venho avisar-vos que a ilha não

vos quer aqui. Ide enquanto é tempo e se não quereis sofrer represálias.- Ficámos sem navio. Temos que construir outro - disse Andrade.- Apanhem o homem - ordenou Evenor.Mas o velho desapareceu rapidamente pelo meio da floresta, sem deixar rasto.- Quem seria?- Um dos habitantes da aldeia local, Azaes. Vivem junto ao mar e nunca arris-

caram ir ao centro da ilha. Os que foram não voltaram. E são avessos ao contacto.- Onde está Elna? - perguntou o Rei.- Desapareceu no meio da confusão criada pelo velho - disse um guarda.- Julga que encontrará a expedição de Mestor. Mas com os perigos da ilha, di-

ficilmente sobreviverá muito tempo - Evenor não demonstrava qualquer compaixão.- De que perigos e ameaças falaria o velho?- perguntou Sara.- Não sei amigos. Veremos. Falam em bestas gigantes e homens primitivos, entre

outros - referiu um guarda.- Vamos pernoitar e amanhã veremos - ordenou o Rei. - Cinco homens ficarão

aqui à procura de embarcações perdidas, ou a construir uma jangada, caso nadaachem, e outros quatro virão connosco para o interior da ilha. Tirem à sorte.

- A jangada é uma hipótese. As correntes levam-nos a casa de certeza - disse umdos homens.

Capítulo XXVI

O Velho de Azaes

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No dia seguinte, o grupo dividiu-se como Rei dissera, tendo partido Ogo, Andrade,Pedro, Sara, Evenor e quatro guardas.

Depois de andarem com grande dificuldade durante alguns minutos, voltarama ver o velho ao longe, que os observava a boa distância, de cajado na mão. Gritarame correram durante algum tempo no seu encalço, novamente sem sucesso.

Entretanto, chegaram a uma zona mais húmida e escura, onde não se ouvia ocantar de qualquer pássaro, mas apenas o movimento e o vergar da árvores.

Seguiram passo a passo, por onde pensavam que o velho teria ido. Surgiu entãoum clareira, no sopé de um grande monte rochoso cinzento. Foi nessa altura queviram algo que os deixou boquiabertos.

Destroços de vários navios espalhados pela terra, num espaço de cem metros.- O que será isto? - perguntava-se Pedro baixinho, fascinado e extremamente

assustado.

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medida que avançavam por entre os escombros das embarcações, apodrecidase entremeadas por vegetação rasteira, mas densa, viam alguns esqueletos mutiladosde homens e cavalos.

- Os cortes nos ossos são de garras e dentes de animais e não de espadas ou facas- disse Andrade assustado.

Provavelmente, terão naufragado com os navios terra adentro, impelidos porfortes ondas de tempestade ou por outras forças sobrenaturais. Os corpos poderiamser sido comidos vivos ou já mortos.

Depois das embarcações, apareceu um fosso com mais de vinte metros de lar-gura, não sendo possível adivinhar a sua profundidade, devido à intensa vegetação.

Olhando em volta, viram uma ponte metálica.- Mas é uma ponte moderna - reparou Sara.- É muito estranho - disse Evenor. - Não temos nada disso na nossa engenharia.A ponte era feita de um estranho metal quase transparente. Talvez uma mistura

entre cristal e metal.- Parece que temos aqui uma obra de uma civilização perdida muito avançada

- reflectiu Pedro.- Avancemos - ordenou Evenor.Passada a ponte, entraram por uma espécie de grande portão na rocha, tendo

chegado a uma gigantesca e escura antecâmara subterrânea. Os três amigos ligaramentão as suas lanternas, tendo deixado os restantes muito admirados com o seupoder. Uma escadaria redonda, escavada na rocha com um rigor espantoso, subiapor um pequeno túnel sem fim à vista.

Em redor da sala, grandes estátuas metálicas de guerreiros equipados de formaestranha, apontavam pequenas armas para a entrada da gruta, como que defendendoo seu interior de possíveis intrusos.

Subiram pelas escadas durante algum tempo. No final, encontraram uma crateracentral do monte, resultante de um antigo pequeno vulcão. O que viram deixou-osaterrados.

Capítulo XXVII

A Civilização Antiga

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Uma cidade subterrânea, escavada na rocha, em redor de um grande lago inte-rior, com uma tecnologia muito avançada.

- Esta é a maior descoberta de todas - Andrade estava fascinado. - Afinal semprese comprova a teoria da civilização perdida muito avançada dos Lemures, que ori-ginou todas as outras.

- Sim, nós os atlantes somos os eleitos. Somos os primeiros descendentes doshomens que vieram do céu e viveram em Urz - ensinou Evenor.

- Do céu? Do espaço?- Sim.- Mas ainda voltam? Têm contactos com eles?- Já não temos. Desapareceram há alguns milhares de anos. Há dez mil anos,

penso. Eles desceram dos céus em navios há vinte mil anos e fundaram a sua cidadeem Urz. Misturaram-se com os homens que aqui estavam e reproduziram uma novaespécie. Um homem muito inteligente. O povo atlante. Só depois nos fomos mis-turando com os povos mais atrasados do continente e se espalhou a espécie humanaem redor do Mediterrâneo.

- Sim! Eu sei que em 25 mil a.C. existiam seres miscigenerados, resultado docruzamento do homem de Neardental (seres próximos dos macacos que existiam)e o homem de Cro-Magnon (o homo sapiens sapiens). Mas nunca pensei que tam-bém se misturassem seres externos ao planeta. Aliás, Pedro, Conheces o menino deLapedo?

- Sim.- Foram desenterrados no local inúmeros homens com traços miscigenerados,

que depois se foram perdendo ao longo de milhares de anos. Se calhar, alguns dostraços eram extraterrestres. E só agora poderemos perceber.

- O que aqui se vê, casas, pontes, veículos, tudo destruído, são evidências nomeio da vegetação, de que tinha que ser um povo muito avançado - disse Pedro.

- Sim, eram mágicos. Poucos conhecimentos ficaram deles. O uso de metaispreciosos e pouco mais. Herdámos a sua organização e o sistema monetário, segun-do dizem os escritos - explicou Evenor.

- É impressionante! - exclamou Sara - mas o que lhes terá acontecido? Fugiramou morreram?

- A lenda diz que voltaram à sua casa e que, daqui a muito anos, regressarão paralevarem os melhores guerreiros de nós para o paraíso, para ajudar no combate contrao mal universal - disse um guarda.

- Vamos visitar a cidade, ou que resta dela - pediu Andrade.As portas eram feitas de uma espécie de fibra resistente e inquebrável. Mas

algumas estavam abertas. Ao entrarem, viam-se ecrãs partidos, zonas de repouso,luzes apagadas.

Quem seriam? De onde eram? Qual o seu objectivo? Onde estavam agora? Osnossos aventureiros não paravam de se interrogar.

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De um momento para o outro, um pequeno animal surgiu na porta da sala ondeestavam. Tinha três patas de cada lado e um aspecto muito agressivo, como que aestudar as reacções e as armas dos adversários, pronto a atacá-los.

O animal tinha uma tonalidade de pele castanha claro, com uma boca pequenae enormes olhos, com um formato de corpo couraçado e arredondado, como queum insecto, embora mais parecesse um mamífero.

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animal não mostrava qualquer receio quer das lanças quer do número deinimigos humanos que tinha pela frente. Estava criada uma situação difícil de im-passe em que cada lado avaliava cuidadosamente o outro, com elevado nível deadrenalina.

Sem dizerem nada, os homens de Evenor juntaram-se à sua frente, em formaçãode "V", defendendo o seu Rei e tentando atacar o animal. Mas o bicho atacou primeiro.

O homem que estava mais à frente nem teve tempo de se aperceber, quando oanimal se atirou à sua cara e lhe sugou rapidamente o cérebro pelos orifício dos olhos,num abrir e fechar destes.

De imediato, Andrade sacou a sua arma que guardara durante este tempo todo,pedindo para que funcionasse como deve de ser, e disparou um tiro certeiro bemna cabeça do animal, o qual fugiu muito depressa, largando líquidos de várias corespelo chão e procurando um local para morrer escondido.

Todos estavam horrorizados como que tinham visto pela primeira vez nas suasvidas e alguns espantados com o tiro que os salvou.

- Assustaste-o com o ruído dessa coisa pequena - disse Evenor.- É uma pistola que lança pontas de seta metálicas - explicou - mas de onde veio

este bicho, há certamente muitos mais.- Sim fujamos daqui enquanto é tempo - pediu Sara.- Vamos, vamos - disse Evenor.E fugiram dali muito rapidamente, entrando pela floresta adentro, sem saberem

o que mais iriam encontrar, mas retomando a direcção ao centro da ilha.- Andrade, que será aquele animal? - perguntou Pedro.- Penso que é um ser extraterrestre, deixado pela antiga civilização, por engano

ou de propósito. Talvez tenha destruído a comunidade que aqui vivia. Por isso fu-giram. Não sei. Mas percebi que o animal não se arrisca a ir à aldeia junto ao mar.Talvez não goste de água salgada.

- Para a próxima trazemos água para ver o que sucede.- Sim - respondeu Andrade a Pedro.

Capítulo XXVIII

Os Homens Primitivos

O

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E lá continuaram a sua caminhada por várias horas, até anoitecer, quandomontaram o seu acampamento nocturno e decidiram descansar, embora sempre emgrande sobressalto.

"Conseguiremos atingir o nosso objectivo? Saberemos o que diz o livro doconhecimento antigo?" era o que ia na cabeça de todos.

Os nossos amigos pensavam ainda: "voltaremos a casa? O livro poderá salvar ahumanidade?".

No dia seguinte, logo de manhã, o dia estava enevoado e misterioso. Os váriosmontes cónicos, quase pelados que se podiam observar no horizonte, até ao montecentral da ilha, muito mais elevado, praticamente o dobro dos restantes, eram ro-deados por uma floresta baixa densa.

Poderiam subir e descer os montes, num percurso muito maior ou poderiam irpela floresta, onde a vegetação densa dificultava em muito o passo.

Ainda faltava pelo menos mais um dia e meio de caminhada intensa e de perigosinimagináveis naquela ilha estranha e fantástica, ao mesmo tempo.

Puseram-se ao caminho muito cedo, logo que desmontaram o acampamento. Abeleza agreste do contraste entre os montes descabelados e o emaranhado verde dasuperfície, mais a baixo, adensava a atmosfera de receio que os inundava cada vezmais.

Depois de muito caminharem, apareceu-lhes pela frente um grande fosso que osimpedia de atravessar para o centro da ilha. Apesar de terem tentado andar para umlado e para o outro, não havia maneira de o atravessar.

Depois de muito tentarem, descobriram uma longa ponte de corda que permitiaa passagem de um homem de cada vez por cima do fosso, acabando no interior daselva do outro lado, não se percebendo se a outra margem era ou não segura.

Depois de hesitarem, resolveram atravessar. Mas ao primeiro passo, um doshomens de Evenor partiu uma das cordas que seguravam a ponte à margem. Ogoapercebeu-se e conseguiu segurar a corda a tempo.

Assim, enquanto Ogo agarrava a corda, todos os companheiros atravessaram aponte seguros, chegando ao outro lado. Ogo foi o último.

Quando atravessou, a ponte rebentou todas a cordas com o seu peso, caindo naencosta do outro lado do fosso, levando Ogo uma forte pancada, que no entanto nãofoi suficiente para o fazer cair. Apesar disso, teve que se agarrar às pedras e aproveitaruma das saliências para descansar do choque.

Passados cerca de 30 minutos, Ogo recuperou as forças e subiu pela ponte caídaacima, utilizando as mãos e os pés como se fosse uma escada. Os seus amigos jádeveriam estar em cuidados, mas ninguém tinha descido à sua procura.

Ao chegar ao cimo, verificou que ninguém estava no final à sua espera. Que teriaacontecido? Teriam desistido que esperar e continuado, pensando que morrera aocair na falésia?

Sem perceber, procurou indícios em redor e viu pegadas na floresta de muitosseres com pés mais largos do que os dos humanos, embora menores que os seus.

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Os seus amigos tinham certamente sido raptados.Seguiu o rasto deixado e pouco tempo depois posicionou-se a meio de um ponto

elevado, observando uma aldeia de casas primitivas escavadas na rocha, com foguei-ras e centenas de homens-macaco.

No meio deles, os seus amigos estavam presos em grandes jaulas de madeira noexterior e não havia sinal de Sara. Que poderia fazer para libertar os seus amigos semse deixar apanhar?

- Pedro! - gritou Andrade com dificuldade - Pedro. Para onde levaram a Sara?- Parece que foi para uma das grutas.- O chefe deve querer possuir a fêmea capturada. Parecem os homens de Neardental,

tendo em conta as suas vestes. Desapareceram em todo mundo e toda a Europa emcerca de 28.000 a 30.000 a.C., mas devem ter subsistido aqui até este data. Impres-sionante, mas talvez não nos safemos desta.

Enquanto todos os homens primitivos gritavam, os nossos amigos foram levadospara uma espécie de arena rodeada de grande pedras altas, tipo Stonehenge.

De mãos libertas, mas assustados no meio daquela multidão medonha, os nossosamigos não percebiam o que lhes iria acontecer. A expectativa era enorme.

De repente, os homens primitivos trouxeram uma enorme besta de dentro deuma das grutas, que apesar de andar em dois pés, tinha chifres e uma grande bocacheia de dentes afiados.

A besta vinha atiçada, mas presa por cordas e picada pelas muitas lanças doshomens que a empurravam para a arena. Tinha cerca de três metros de altura e umcorpo que lhe devia conferir quatrocentos a quinhentos quilos.

Durante alguns minutos Evenor, os seus homens, Andrade e Pedro conseguiramfintar a besta, mas um dos homens de Evenor foi apanhado e decapitado pelos dentesdo monstro.

O corpo caiu inerte, ficando a jorrar sangue.Quando a besta avançou para os restantes, ouviu-se um ruído vindo da multidão.

Alguns do homens primitivos iam pelo ar, sem se perceber o que se passava.Por fim, Ogo, armado de duas espadas que sempre trazia à cintura, surgiu no

meio da multidão que fugia à sua passagem, e entrou na arena, para surpresa dosamigos.

A besta e Ogo olharam-se das suas elevadas estaturas, prontos para se enfrentarem.A besta foi a primeira a avançar.- Ponham-se atrás de mim - disse aos seus amigos.E avançando também com as espadas em punho, passou pela besta e tornou a

voltar, cortando um dos braços do monstro, sem ter um arranhão.A besta irritada atacou de novo, mas desta vez arrancou a mão esquerda e uma

das espadas de Ogo.

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ais ver o que é bom - gritou Ogo.Avançou novamente e, com artes que só os gigantes deveriam conhecer, conseguiu

cortar a besta em três partes, que caiu pintando a areia de abundante sangue verde.Os homens primitivos, que nunca tinham visto um humano gigante, e muito

menos imaginavam que alguém poderia matar a sua besta centenária sagrada, fica-ram muito assustados e desataram a fugir por onde podiam.

Os amigos, aproveitando a confusão, libertaram Sara de um gruta próxima,apanharam os seus haveres e embrenharam-se mais uma vez na selva, fugindo doperigo ultrapassado.

Reduzidos a sete, avançaram pela floresta e acamparam para passar a noite quese aproximava, num local já muito próximo do sopé do monte vulcânico central dailha de Urz. O vulcão expelia regularmente um bafo de fumo negro.

Perante aquele cenário e sentados junto à fogueira no seu acampamento, pude-ram assistir espantados ao surgimento de dinossauros gigantes que, ao longe, comi-am ervas e folhas das árvores.

- Professor, como podem existir nesta data. Não se extinguiram muito antes noContinente? - questionou Pedro.

- Sem dúvida. Ou esta ilha ficou protegida do evento que extinguiu os restantesdinossauros por todo o mundo, ou os homens da estrelas que aqui estiveram qui-seram brincar como deuses e recriaram estes animais a partir do ADN dos fósseisque acharam.

Na manhã seguinte chegaram finalmente ao vulcão principal da ilha. A meio daencosta vislumbraram um tipo de convento velho e abandonado, semelhante aosbudistas, enredado por vegetação que o cobria quase todo. Um caminho antigo emforma de rampa, levava à sua entrada principal.

Ao subirem, puderam ver os três leões de pedra gigantes, com dez metros dealtura, que guardavam a entrada. Que mistérios estariam no seu interior assim guar-dados? Era um templo dos céus.

Entraram com facilidade e sem oposição, contrariamente ao que imaginaram.Viram um salão muito grande, com archotes acesos por todo o lado. Ao centro,

Capítulo XXIX

O Templo dos Céus

-V

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um livro com um metro por um metro e a espessura de uma mão aberta, permaneciaaberto dentro de uma espécie de redoma de vidro inquebrável, protegido.

- Que maravilha!- exclamou Andrade.- É o Códice do Conhecimento Antigo de Urz! - gritou Evenor - levem-no.Mas verificaram que era impossível quebrar o vidro e arrancar o livro para o

levarem.- Esperem.- O professor começou a ler as inscrições antigas e a tentar decifrar.

- Penso que consigo. Preciso de tempo.- Professor, o códice está aberto numa página com o desenho da máquina do

tempo - disse Sara.- Já vejo.Passados alguns minutos, o Professor começou a carregar em vários locais da

parede e, repentinamente, o vidro subiu.- Já está.- Obrigado Professor - Francisco surgiu por uma porta com o seu colega, com

uma arma automática nas mãos. - Ninguém se mexa e ponha a sua arma no chão.Explique-lhes o que é uma arma Professor.

- Evenor, não se mexa, pois é uma arma de fogo como a minha, mas mais po-derosa - disse, enquanto deitava a sua pistola para o chão.

- Tenho cem guerreiros que rodeiam o convento. Foram os que sobraram detrezentos com que chegámos. Os outros foram mortos por criaturas estranhas dailha. Não podem sair daqui com vida. Mestor vai ter a sua vingança familiar. Nemprecisa do Códice. Mas eu preciso.

Enquanto dizia isto, disparou contra os dois guardas de Evenor, que estavamimobilizados no chão do salão.

- Professor, Evenor fica, mas se quiser podem vir connosco para 2050 d.C, maslevamos o códice nós. Preciso de si para o ler. A parte em que estava aberto diz quea máquina do tempo está já colocada na zona do Pinhal Novo, num templo dentrode uma gruta. Tem ali o mapa.

- Nem pense. Nós vamos, mas você não sairá jamais deste tempo.- Não têm hipótese - disse Francisco.Entretanto, os homens de Mestor foram entrando e prenderam os amigos, levan-

do-os de volta para a costa marítima, onde os navios os esperavam.- Ok. Ganharam Francisco. Que quer de nós.- Estude o livro durante a viagem e depois diga-me coisas. Tem pouco tempo.Agora vamos voltar apara a ilha Aea, para a cidade de Atlas. Evenor estava desolado

por ficar à mercê dos homens do seu irmão.Mas, já na praia, durante a noite, Evenor conseguiu fugir ajudado pelos seus

restantes homens, que perceberam o que se passava e acorreram com um plano defuga para o seu Rei.

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ilha de Aea surgiu no horizonte do mar azul escuro, como uma pequena faixanegra balanceando ao ritmo da embarcação. Aos poucos foi-se aproximando.

A ilha era rochosa, impenetrável por mar, sem praias, excepto numa bacia comuma pequena entrada entre duas altas rochas. Lá dentro, uma grande bacia com umaextensa praia e um porto comercial e militar, ao centro.

A cidade de Atlas, capital do império de Mestor, estava localizada por detrás doporto, protegida com muralhas negras. Os telhados negros das casas contrastavamcom as paredes brancas caiadas.

O céu estava escuro e o tempo ameaçava piorar a qualquer momento.Enquanto se aproximavam do porto, Francisco questionou Andrade sobre o que

tinha aprendido com o códice, durante toda a viagem.- Desembuche Professor. Que segredos tem o livro para nos revelar?- Nada do que julgas. Não fala sobre tecnologia. Bom, mas não tenho nada a

perder. Precisamos de trabalhar em conjunto para sairmos daqui - Andrade nãoconfiava em Francisco, mas achou que face à situação, esta seria a melhor estratégiano momento.

- Então, Professor? - Sara queria saber.- O livro relata a origem do universo e a origem da vida. E prediz o futuro.- É uma espécie de Bíblia? - perguntou Pedro.- Não. Faz revelações muito interessantes. Primeiro refere que o nosso universo

está cheio de estrelas e planetas plenos de vida. O nosso universo é um entre muitosque ora competem, ora se unem uns com os outros, para sobreviverem e se repro-duzirem. O nosso próprio universo formou-se de uma explosão fruto de um "encontrão"físico entre as membranas externas dois universos pré-existentes, já maduros, deforma premeditada.

- Como é possível Professor? Isso é treta - disse Francisco.- Cada universo tem as suas leis físicas, diferentes uns dos outros, funcionando

em dimensões e noções de tempo diferentes. O nosso universo é ainda muito novo.Primeiro formou-se a parte física das partículas, depois evoluiu a parte química, das

Capítulo XXX

A fuga dos Atlantes

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moléculas compostas por relações mais complexas entre partículas, depois surgiramas grandes estrelas tipo Pop III, as galáxias e os planetas e só depois apareceram osseres vivos, compostos de relações mais complexas entre moléculas, o ADN, etc.Finalmente surgiu a inteligência, os seres inteligentes e as sociedades organizadastecnológicas de seres, compostas de uma relação mais complexa entre seres vivos eentre os seres vivos e a matéria, a química e a vida.

- Mas a vida surgiu onde?- Espontaneamente em muitos lugares do universo, com diversos formatos, mas

com traços comuns. A vida saltou de planeta em planeta, não se conteve face àsdistâncias. Quer na sua forma celular, quer na sua forma de sociedades de seresinteligentes, a vida expandiu-se de planeta para planeta e de galáxia para galáxia,dominando a matéria, a química, a vida e, cada vez mais, o próprio universo.

- E na terra, como surgiu a vida? - perguntou Sara novamente.- Ao que parece, foi trazida por cometas ou flutuou pelo espaço até aqui na forma

mais primitiva, tendo-se desenvolvido até ao ser humano arcaico. Mais tarde, osseres que estiveram na Atlântida, há trinta mil anos, deixaram mestiços, que deramorigem ao homem moderno. O objectivo deles foi colonizar a terra com seres in-teligentes. No futuro virão aqui buscar reforços para colonizar outras galáxias evencer algumas outras formas de vida inimigas que também colonizam planetas.

- Mas tudo isto vai-nos levar onde? - Pedro estava admirado.- Segundo o Códice do Conhecimento Antigo, os seres vivos que consigam

colonizar o universo todo sofrerão alterações de determinada ordem e dimensão quenão consigo perceber e ficarão a comandar os destinos deste universo, então jámaduro, e as suas relações com outros universos, sejam de luta, de sobrevivênciaou de reprodução dos universos. Quem escreveu o livro desconhece o objectivo finaldos universos que não seja de aumento do seu número, a expansão da área ocupadapelos do mesmo tipo e a obtenção da maior quantidade de recursos e de energiapossível. Provavelmente, ultrapassado um certo patamar, o códice refere que deveráhaver um salto de alteração para uma nova dimensão de "vida superior", fruto doaumento da complexidade das relações entre universos. A esse patamar poderá serformada uma nova unidade física básica gigantesca, composta por universos unidos,uma corda vibrante gigante, e começará tudo de novo: física, química, vida, inte-ligência, universos maduros e nova corda básica.

- Ficamos na mesma, mas a uma escala maior, não é? - diz Francisco.- Sim. Não existe objectivo, mas apenas energia e criar mais complexidade a cada

vez maior escala, testando, seleccionando e procurando a melhor forma para esta-bilizar, dominar e expandir-se sobre o espaço da não energia.

- Já tinha ouvido falar na teoria das cordas que une as forças todas da natureza:a forte, a fraca, a electromagnética e a gravidade. É uma partícula muito pequena,uma corda vibratória, que constitui todos os quarks e a própria energia - disse Pedro.

- Sim - confirmou Andrade. - O nosso objectivo é contribuir para fazermos partede uma corda gigante, que por sua vez fará parte de partículas maiores de um uni-verso gigantesco. É a luta da energia para vencer a não energia.

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Ao dizerem isto, o barco aproximou-se do porto e puderam ver as casas quasetodas destruídas e uma multidão de gente de um lado para o outro, procurando lugarnos barcos que estavam acostados.

- Fiquem aqui, eu vou ver o que se passa - ordenou Francisco, enquanto saltavapara um pequeno bote que tinham colocado dentro de água.

Passados 25 minutos de interrogação e desespero, Francisco voltou de terra.- Homens, os barcos ficam ao largo por questões de segurança. Cada homem

poderá ir buscar a sua família de forma ordenada e vamos acolher algumas famíliasda nobreza.

- Mas o que se passou? - perguntaram os homens.- Desde que tirámos o Códice da ilha de Urz, todas as Ilhas Atlântidas tem sido

varridas por tempestades, terramotos e maremotos constantes. Os sacerdotes dizemque é a vingança dos Deuses e que a ilhas vão ser engolidas pelo mar. Eu não tenhodúvidas.

- Mas que deuses? - perguntou Andrade. - Deve ser algum mecanismo de des-truição das ilhas, deixado pelo extraterrestres. Bombas atómicas ou algo assim. Masporquê ?

- Meu Deus, estamos no momento de desaparecimento da Atlântida - gritouSara.

- Que horror! - Pedro e Ogo estavam em pânico também.Os homens começaram a chorar e a gritar pelas famílias. Estariam vivas?- Têm 20 minutos para irem buscar os familiares que estiverem vivos e partire-

mos para Abul. Mestor já foi para lá. Nada sabemos sobre Seden, a ilha irmã.Ao ouvir aquilo, um dos homens de Mestor tirou o Códice das mãos de Andrade

e lançou-o ao mar, tendo sido de imediato traspassado por uma bala de Francisco.- Que perda para a humanidade. Não quero exaltações. Corram para os botes.O amigo de Francisco lançou-se ao mar, mas já era tarde, o códice havia sub-

mergido para sempre nas águas escuras e profundas da baía.- Vamos ver se assim acaba a maldição para as nossas gentes - gritou um dos

homens de Mestor.- Vamos para Abul. Esqueçamos o códice. Professor, será que conseguimos

encontrar a máquina do tempo e regressar a casa? - Perguntou Francisco.- Penso que sim. O livro referia a sua localização, perto do local onde surgirá um

dia o Pinhal Novo. Vamos lá.

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ntes de abandonarem o planeta terra, o extraterrestres tinham deixado o códicedo conhecimento antigo guardado na ilha de Urz e tinham feito um acordo com osatlantes. O Códice só poderia ser utilizado pela humanidade, e pelos atlantes, dalia 10.000 anos, quando fosse necessário para a expansão do homem para fora doSistema Solar, permitindo enfrentar os perigosos habitantes dos sistemas em redor.

Os atlantes foram então avisados que caso se apoderassem do livro antes daqueleprazo, as consequências seriam desastrosas, incluindo o desaparecimento do mundoque conheciam.

E assim foi. Logo que o livro foi retirado do seu local, foram accionados meca-nismos de destruição das ilhas Atlantes, incluindo Urz. Passadas vinte e quatro horas,registou-se a primeira explosão gigantesca no mar, provocando tremores de terrasucessivos que fizeram desabar muitas das casas das ilhas e formou-se uma ondagigante, de dez metros, que varreu as ilhas, matando uma grande parte da população.

As explosões foram-se repetindo, cada vez mais próximas e mais intensas. Aspessoas gritavam e fugiam para todo o lado e para lado nenhum. Só por sorte algunsescapavam às derrocadas, aos incêndios e às ondas gigantes.

Seis horas após o último dos navios intactos ter abandonado Seden e Atlas, deram-se as explosões no centro das ilhas, cuja terra se espalhou num raio de vários qui-lómetros, dentro de água, desaparecendo no fundo dos oceanos, ficando apenas osvestígios dos actuais bancos de areia do Gorringe, ao largo de Portugal.

Capítulo XXXI

O Fim da Atlântida

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assados alguns dias, os navios comandados por Francisco chegaram a Abul. NoEstuário do Sado, centenas de embarcações cruzavam-se nas águas calmas, paradescarregarem refugiados atlantes.

Milhares de pessoas tinham desaparecido ou morrido nas tormentas que asso-lavam as ilhas Atlantes. Mas outros milhares tinham escapado e espalhavam-se pelailha de Tróia e pela margem Norte do Rio Sado, desde Alcácer até ao Portinho daArrábida. Tendas estavam montadas por todo o lado e as fogueiras enchiam os céusde fumo. Todos queriam ficar junto à praia para verem chegar os familiares pelo mar.

Os três amigos, Ogo, Francisco e o seu amigo, desceram para terra, juntamentecom os homens de Mestor e as suas famílias.

- As ilhas deverão estar quase a desaparecer para sempre, no fundo dos oceanos- comentou Sara.

- É verdade, assistimos à maior tragédia da história dos seres humanos - referiuAndrade.

- Adeus amigos. Vou ter com o meu Sacerdote ao Monte Sagrado - Ogo tinhamuitas saudades do seu monte, de onde podia ver tudo até trezentos quilómetros,em todas as direcções. - Vou acompanhar isto lá de cima.

- Adeus amigo. Obrigado por tudo - disse Sara chorosa.- Adeus, até sempre. Vão para a vossa terra, mas voltem...Os homens de Mestor e de Evenor tinham formado pequenos aglomerados em

aldeamentos diferentes, mas tinham feito tréguas de não agressão, pois estavammuito ocupados a comandar as equipes de salvação, de tratamento dos feridos e deobtenção dos recursos de água e alimentares necessários à sobrevivência do querestava dos seus povos.

No meio desta confusão, os três amigos, e os seus dois inimigos, colaboravame conseguiram escapar para o interior da floresta sem que as forças dos reis dessempor isso, caminhando durante a noite até à zona de Pinhal Novo, que na altura erauma densa mata de grandes arbustos.

- Deve ser por aqui, se bem me lembro das indicações do códice - O ProfessorAndrade guiava-se pela sua bússola electrónica, sem perceber bem como iria encon-

Capítulo XXXII

A Batalha Final

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trar a máquina.- É ali - ouviu-se.- Onde Pedro?- Ali naquelas rochas. Vejo uma espécie de entrada tapada com arbustos.- Vamos até lá.Desviaram a vegetação e entraram num túnel estreito em escadaria para baixo.

Depois de muito descerem, depararam com a sala onde tinham estado anteriormen-te. "Aí está!"

Era uma sala redonda com dez metros de altura e cerca de vinte metros de di-âmetro, sendo visíveis inscrições e símbolos em toda a parte. Era sem dúvida amesma sala.

Ao centro a mesma pirâmide metálica que ocupava quase toda a sala. Dentro dapirâmide gigante, lá estava a esfera feita de uma espécie de metal vermelho, que seligava à pirâmide através de um mecanismo giratório.

- Sim, cá está! - disse Francisco.O acesso ao interior da bola vermelha estava outra vez franqueado. Entraram de

imediato. Com isto, a porta fechou-se e a esfera começou novamente a girar cadavez mais depressa, mais depressa, até que os nossos amigos desmaiaram.

Passados alguns minutos, o Professor acordou. Foi o primeiro a acordar. Silen-ciosamente, acordou o amigos. Mas não Francisco, nem o seu cúmplice, que dor-miam profundamente.

Estavam no interior do túnel do Metro do Sul. Teriam voltado a 2050 d.C.?- Vamos confirmar. Vamos fugir de imediato.Saíram a correr dos túneis, certificaram-se que estavam no tempo correcto e

foram encontrar-se com o Conselho Atlante.Depois de contarem todas as aventuras ao pai de Sara e aos seus conselheiros,

Andrade abriu o jogo:- Mas tenho mais uma coisa para lhes dizer.- Estou admirado e espantado com a epopeia a que acabaram de viver. Viram

a morte da terra natal dos nossos antepassados. Mais deslumbrado estou com osegredos que revelou o Códice do Conhecimento Antigo. Que mais há?

- Nem queira saber. O livro secreto tinha mais. Mas isto eu não revelei a Fran-cisco.

- Mas o que é?- questionou Pedro.- Tenho o segredo do Poder das Cordas, a energia que une as partículas mais

pequenas que há. É uma arma que quebrará qualquer inimigo.- Muito bem, isso é fundamental. Escreva os planos dessa arma que os nossos

cientistas vão trabalhar de imediato nela.Nisto, Francisco e dez homens armados de metralhadoras de laser entraram no

pavilhão onde a Conselho Atlante se encontrava e começaram aos tiros.

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- Acabem com a raça deles.Seguiu-se uma grande batalha, com lasers disparados em todos os sentidos, homens

a tombar de ambos os lados. Andrade, avançou por detrás de alguns caixotes e, semque o vissem, surgiu por detrás de Francisco, que dava ordens com gestos.

Atirou-se ao pescoço de Francisco, apertando-o com os braços e tentou estran-gula-lo. Mas ele ofereceu resistência e puxou-lhe por um dos braços, atirando-o adois metros de distância. Mas enquanto corria para a arma que tinha deixado cair,o Professor levantou-se apressadamente e deu um forte pontapé no seu inimigo, quetombou como um saco.

Andrade agarrou na arma, apontando-a a Francisco, que ainda estava no chão,e disse.

- Desta vez é que te vou matar, assassino.No entanto, este sacou de uma faca que tinha na bota de cano alto e espetou-a

na perna de Andrade, que caiu a disparar para cima, sem acertar em ninguém.Quando tentou espetá-lo mais vezes, com o objectivo de matar, Andrade apon-

tou a sua arma e disparou abrindo vários buracos na cabeça de Francisco, que jorrousangue.

A batalha estava ganha. Sem o chefe, os homens da Congregação Secreta par-tiram em debandada e os restantes homens do Conselho Atlante juntaram-se paratratarem dos feridos.

Passados dois meses, a arma secreta tinha sido montada. Foi então utilizada comsucesso na guerra contra a Liga Árabe, que se rendeu de forma incondicional, pro-metendo não voltar a fazer ataques terroristas no Ocidente, com receio que a armavoltasse a ser utilizada, matando milhões dos seus num ápice, sem provocar qualquerdestruição nas infraestruturas.

Os homens do Conselho Atlante venceram as eleições em todos os países euro-peus e nos EUA e a paz voltou à terra por muitos anos.

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este momento já estou a escrever a parte dois da série "A Feitoria de Abul".Desta vez a história passa-se no tempo de Império Romano.

Na fase final da vida da Grande Roma, em 350 d.C., no século IV d.C., Cons-tante, um co-imperador, é contestado na sua competência para governar o MarMediterrâneo, que começa a estar cheio de piratas e frotas de cidades inimigas.

Para demonstrar ao povo romano o seu controlo perfeito sobre todo o marconhecido, o imperador, cuja mulher havia dado à luz recentemente, prometeu peranteo Senado que, no prazo de seis meses, uma embarcação com duas mulheres e umhomem iria à ponta do império, à Feitoria de Abul e a Cetóbriga (a nossa actualTróia), na Lusitânia, e trariam Garum, uma pasta de peixes raros do Atlântico, paraa sua esposa degustar durante os jogos de Roma. Assim, ficaria provado que qual-quer romano poderia navegar o Mediterrâneo mais profundo sem medo.

Paralelamente, incumbiu o grupo de missão à Lusitânia de saber mais sobre alocalização da Atlântida de Platão e de procurar o Códice do Conhecimento Antigo,cujos escritos afirmam ter sido recuperado do fundo do mar e escondido naquelazona.

A parte dois da série “A Feitoria de Abul” trata desta viagem de aventura e dasdificuldades que este grupo terá que enfrentar.

Em 2051 d.C., o professor Andrade descobre escritos sobre esta aventura emTróia. Uma vez que a máquina do tempo atlante já estava a ser estudada pela Uni-versidade de Lisboa, Andrade solicitou autorização do Governo para empreenderuma nova viagem, para procurar o Códice do Conhecimento Antigo. Andrade nãodecorara todo o livro na sua primeira leitura e queria saber mais sobre os seus segredos.

A Feitoria de Abul (Parte II)

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endo este o meu primeiro livro de ficção e uma edição de autor, não podia deixarde aproveitar para incluir alguns dos melhores poemas escritos durante a minha ado-lescência, alguns dos quais publicados pelo Clube dos Poetas de Setúbal, nos anos 80.

A quem não gostar de poesia, aconselho a parar por aqui.Esta parte queria dedicar à "Malta da PB - Praça do Brasil", de Setúbal, que ali

brincou, namorou e casou, e que fazia quase tudo em grupo. Ainda hoje nos jun-tamos muito, já cada um com as suas famílias.

Éramos sempre cerca de 20, um grupo bem conhecido em Setúbal nos anos 80e 90, não porque praticássemos actos de grande vandalismo como outros, mas porqueapesar de seremos sérios, honestos e bons estudantes (nem todos), conseguíamosimpor respeito com firmeza ao pessoal dos restantes bairros, através da união, dasolidariedade total e do desenvolvimento de actividades, divertimentos e brincadei-ras constantemente em grupo.

Não passávamos uns sem os outros. Mas éramos todos muito homens.Antes de entrar nos poemas, quero deixar os seus nomes para a memória e o

resumo de algumas histórias mais divertidas.

Parte Final

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AngeloAlbertoCarlosCoutoElsaEduardoEduardo IIFilipeHenriqueJoão PedroJoãoJorgeJoséLuís (irmão)

Nomes da PB (anos 80/90 do século XX)

Luís IIManuelNunoNuno IIPauloPaulinhoPedroRogérioRuiAntónioValterVítor (eu)

Espero não me ter esquecido de ninguém.

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ão são histórias, nem contos, mas apenas pedaços de lembranças que ficamregistados nestas poucas páginas, para que os meus amigos possam recordar a partirdaqui e para que as restantes pessoas possam conhecer um pouco destas infânciase juventudes felizes, sem se enfadarem. Fica a faltar muito, que talvez publique numlivro próprio um dia.

a ) Lá AtrásLá atrás, era o termo utilizado para designar as traseiras norte dos prédios da

Praça do Brasil, onde havia um largo de terra para brincarmos em pequenos.Havia um campo de futebol antigo, do tempo do meu primo Tozé. Havia ainda

a cabana do velho Badio, guarda dos prédios em construção nas imediações, e queandava sempre a correr atrás de nós.

Para lá de lá atrás, estavam pequenos quintais de agricultura de entretenimentode moradores dos prédios, como era o caso do avô do Jorge, consentidos pelo Tavaresda Quinta.

i. Soldadinhos na Barraca de TijoloRecordo os pães com manteiga e tuli-creme, de chocolate e avelã, que as nossas

mães lançavam, das varandas de nossas casas, nos prédios, para o nosso lanche datarde, dentro de sacos de plástico, e o copo de água que sempre bebia na casa da avódo Jorge, no R/C do meu prédio, depois de muito corrermos lá atrás.

Após as aulas na escola Santana, a 5 minutos, ia sempre lá para trás. Lembro-me do grupo de soldadinhos que em meninos formávamos com 7 ou 8, comandadospelo Paulo, marchando, brincando e fazendo muitas traquinices.

Uma vez fizemos uma barraquinha de tijolos, com tábuas por cima, e quandocomeçou a chover, fomos todos lá para dentro, protegidos. Belos tempos.

Lembro-me de ter pegado fogo ao prado lá trás, ter espetado um prego na sandáliae ter derrubado um poste de telefone, que por sua vez fez cair as telhas de uma casavelha, tudo numa manhã.

Algumas Pequenas Histórias da PB

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Além dos tijolos, brincávamos muito com azulejos quadrados de 1 cm de lado,que utilizávamos para tudo. Havia muitos lá atrás.

O caminho da quinta do Ti Zé, que ligava ao portão da Estrada dos Ciprestes,seguia por entre duas partes da quinta, cultivadas, com umas cercas pequenas dearrame a separar, que tinham sempre bichos muito interessantes.

No final do caminho estava a casa do Ti Zé, pequena casa de um só quarto,isolada, com um cão sempre preso que nos assustava, e galinhas aqui e ali.

Por ali em frente, à direita, ia-se para as quintas, guardadas e cultivadas. Quasenunca arriscávamos lá ir. À esquerda, tínhamos pequenos montes e vales de terra,de torrões amarelos, ervas altas e cobras, até à zona de obras. Esta zona de obras tinhaprédios, trabalhadores e um portão para o outro lado. Ao meio tinha um moinhopara mistura de cimento, com montes de areia. Em redor, prédios que nunca maisacabavam, com as paredes abertas, onde era perigoso entrar.

Lá atrás, havia lixo por todo o lado, que caía dos sacos rebentados que os moradoreslançavam lá para trás, ao fim do dia.

Brincávamos com muita coisa gira, comprimidos, seringas, pomadas, latas despray.

ii. As BicicletasHouve um momento em que aprendi a andar de bicicleta, na que a minha avó

me tinha dado, laranja e moderna. Não sem cair muitas vezes. Tinha sempre osjoelhos com sangue.

Depois começámos todos a ir mais longe de bicicleta, até ao Bonfim, até aoLiceu. Andávamos sempre de bicicleta.

O Couto tinha uma bicicleta especial com guiador em "V" elevado para trás ecom banco de encosto e mudanças ao meio. Era um sucesso. Chegávamos a darvoltas ao campo do vitória e a ir ver a estação ou até à beira-mar.

iii. Folhas de AmoreiraTínhamos sempre muitas épocas de entretenimento diferentes, ciclicamente. A

época do pião, do espeta com um ferro para jogar ao mundo, do lencinho, dasescondidas, das bicicletas, das fogueiras, dos bugalhos, etc.

Os dois prédios em construção, lá atrás, eram locais óptimos para as escondidas.Saltávamos de janela para janela, da varanda do primeiro andar cá para baixo, parao cimo de um monte de entulho. Havia buracos para as caves. Havia o buraco doelevador muito perigoso. De lá tirávamos inocentemente fios de cobre que usávamospara fazer fisgas e seus grampos de arame.

Havia o tempo das fisgas de pedra, dos tubos de atirar milho a sopro, da apa-nhada, do mata, do futebol, do rei manda, do lá vai alho.

E havia também o tempo das folhas de amoreira e dos bichos da seda. Alguémarranjava bichos da seda que distribuía, que faziam casulo e se transformavam em

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borboletas. Mas a melhor parte, era ir, em grupo, apanhar folhas de amoreira paraos bichos. Só conhecíamos uma árvore junto a um tanque de água, muito bonito,no interior das quintas para lá de lá atrás. Eram belas tardes passadas a subir àsárvores.

iv. Os Micheys da PBComo todos os grupos de bairro, na Praça do Brasil também tínhamos os nossos

rivais. Por exemplo, um grupo de miúdos das traseiras Oeste da Praça do Brasil,onde raramente íamos, mas muito semelhante às nossas, também com lixo. O Cigaliderava aquele grupo. Muito simpático e sempre cheio de ideias e de energia.

Na altura, formámos um clube de futebol e fomos pedir quotas aos vizinhos,tínhamos o campo nas traseiras, lá atrás. Eram os Mickeys e havia equipamento decamisola branca e calções vermelhos, se bem me lembro, que íamos sempre compraràs sete de manhã lá frente. Também lá combinávamos para jogar à bola. No final jáninguém aparecia.

Tínhamos a sede do clube no edifício do junta de freguesia, depois do colégioSantana, e não deixávamos mais nenhum menino entrar. Foi então que o grupo rivalde lá trás formou o clube dos Pelezinhos, que cresceu e hoje é um grande clube dacidade de Setúbal. Os Mickeys desapareceram, pois nós também passámos a teroutros interesses com o tempo.

Lembro-me que, na altura, se chegou a fazer um foguetão movido com pólvorade fósforos e levantou voo.

b) Lá à FrenteLá à frente, era o termo que utilizávamos para designar a Praça do Brasil pro-

priamente dita.Antes, era toda ela um jardim verde e passava uma estrada mesmo junto ao café

da Brasília. Tinha um largo de piso vermelho, com um muro branco descente, como busto de Olavo Bilac na parte mais alta e um banquinho de pedra em volta. Haviacaminhos pelo meio da relva e cavalinhos e baloiços a Norte. E uma árvore que eugostava muito subir.

Após passar a parque de estacionamento, fizeram os bancos lá da frente, ondenos encontrávamos habitualmente, junto ao café Bilac.

Lá atrás fizeram o novo parque infantil e um pequeno campo de futebol com ummuro, onde não podíamos jogar depois dos 11 anos. Uma vez mudei o sinal comtinta e gozei o pagode. Era o tempo da velha da Sopa.

i. A Baixa de SetúbalLá à frente nos encontrávamos e de lá partíamos para a baixa, pelo Bonfim ou

pelo Bairro Salgado. Vi os primeiro filmes de cinema na esplanada no Bairro Salgadoe um filme do Bucha e do Estica no antigo cinema Bocage, no centro comercial como mesmo nome.

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De lá à frente íamos em grupo à baixa e às escolas uns dos outros. Não falareiaqui da escola, pois separava já muito bem esses dois mundos, que nada tinham uma ver com o outro. Na PB era um rapaz da rua e na escola era um bom aluno.

Lá em baixo procurávamos conhecer miúdas. Fazíamos voltas sem fim à baixa.Piscinas. Sempre a olhar para as miúdas, mas poucas conhecíamos. Acabava-se porir à beira-mar, para o castelo de S. Filipe ou para os conventos de S. Paulo, brincar.

Nesta altura, tínhamos sempre muitos inimigos na rua. Cães, ciganos, tiposchanfrados, pedófilos e grupos de miúdos de outros bairros.

ii. Noites de MotasUma coisa que nunca mais me vou esquecer, foram as noites passadas de mota

com o António. Íamos para todo o lado com os nossos capacetes desenhados, sem-pre devagar. Ele é que conduzia, pois a mota era dele e eu não tinha carta. Íamosao snooker, às festas, à praia. Sempre de noite, depois de ele vir do trabalho.

Mas o giro foi cairmos várias vezes. Uma na Figueirinha, parámos e caímos.Outra junto à PSP da Avenida da Portela, onde ele deixava a mota presa. Caí-lhe emcima, literalmente. A melhor foi na descida da Restinguinha, quando vínhamos daFigueirinha. Andámos a rojo mais de 50 metros e fiquei com as calças de ganga comose fossem saias, todas abertas.

Foi a mania das motas e das Casal Boss. O Jorge tinha, o Angelo tinha. Vá lá quenunca ninguém se aleijou a sério. Depois veio a época dos carros. O Angelo tinhao Max, no qual íamos para todo o lado.

O Francisco tinha o Fiat 127, que um dia se virou na descida da Restinguinha.O Carlos comprou o AlfaRomeu de cimento-cola que se virou na ida para S. Pauloe só mais tarde os outros tiveram os seus primeiros carros.

Lembro-me de ir pé a todo o lado. Lisboa, Tróia, Santo André, para acampar.A primeira vez que fui a Palmela, foi a pé, para ir às vindimas. Mas pouco vindimei.E ia de bicicleta a Azeitão, Palmela, Sesimbra e Barreiro, de onde regressei a pé umavez, com um pneu furado.

iii. Café BilacQuando não estávamos lá à frente nos bancos, sentados na parte de baixo ou em

cima, a colar pastilhas no poste de luz, estávamos no café Bilac, onde nos encontrá-vamos todos numa ou duas mesas para beber café. Depois, íamos jogar snooker como Arvela.

Muitas vezes não conseguia jogar bem, falhava algumas bolas, o que irritava.Passei várias horas sentado no Bilac, sozinho ou acompanhado. Era para onde

ia quando saía da escola e não tinha nada para fazer.

iv. PraiaDe vez enquanto íamos à praia todos juntos. Íamos para Tróia todos juntos, em

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grande grupo, com cerca de 20 miúdos, tudo rapazes. Levávamos a bola e sandes.Em grupo, na praia, ocupávamos uma grande superfície e escolhíamos estas ouaquelas raparigas para conhecer. Mas como éramos muitos, descambava quase semprepara a parvoíce e acabávamos por não conhecer nenhuma. Mas chateávamo-las. Sótropelias.

No Verão, íamos todos os dias para a Figueirinha à boleia. Formávamos umgrupo grande junto ao esporão, de onde nos atirávamos para a água. O pessoal emvolta ia-se afastando para não levar com nada, na guerra de conchas e de areia queera normal acontecer.

Divertíamo-nos muito e ouvíamos o Tonight I'm Yours, do Rod Stewart. Asboleias por vezes eram perigosas.

v. FestasMuitas vezes íamos a festas. A primeira que fui, foi numa discoteca da tarde que

havia junto à antiga sede da judiciária, em Setúbal. O Stringfellows.Depois começámos a ir à Cubata a pé, onde havia sempre confusão e porrada.

Também íamos ao "10" e depois ao Seagull. Íamos ao Leo Taurus, a antiga Ostra,a Tróia, ao Rosamar e ao Montijo. Por vezes íamos ao Bairro Alto. Dependendo deque alguém do grupo se lembrasse e da boleia que tivéssemos.

No Seagal nadávamos na pista. Passávamos pela Varanda onde se namorava ouvomitava. O regresso de carro era sempre muito perigoso e alguns carros caíam naravina. Por vezes íamos ao Bingo à noite, mas não jogava.

vi. DrogaA droga sempre foi um dos problemas de 3 ou 4 rapazes da nossa rua, mas que

não andavam tanto com o nosso grupo de amigos. Alguns resistiram poucos anos,apesar de serem dos mais duros da rua. Outros ainda estão nesse flagelo.

c) A BarracaEstas histórias não podiam passar sem a barraca, marco fundamental da vida da

nossa geração na PB. Construída pelo Carlos, Couto, Nuno, Jorge, etc., enfim portodos, aos poucos, tinha um poço de água e um quintal com portão e horta. Tinhaum poste ao meio e quatro postes em redor. Nunca caiu. Alguns dos construtorestornaram-se engenheiros civis. Tinha tábuas nos lados e em cima, onde o plásticoe as alcatifas protegiam da chuva. No chão estava um pavimento de cimento, quepor vezes levava creolina para desinfectar. Localizava-se onde hoje está uma bombade gasolina da Repsol, junto à Praça do Brasil.

i. Construção da Barraca e do QuintalA barraca era a nossa segunda casa. Por vezes a primeira, onde nos encontráva-

mos diariamente. "Vou à barraca" dizia à minha mãe vezes sem conta.Como vivíamos em prédios, aquele era o nosso quintal, que desejávamos ter em

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nossas casas. Além disso, ali estávamos sós. Ali nos encontrávamos, jogávamos àscartas e dali partíamos para todo o lado.

Lembro das tardes de domingo de chuva na barraca.Uma vez discutíamos e destruímos as cercas do quintal. Jogávamos a dinheiro.

Ao escudo e a vinte e cinco tostões. Ouvíamos música, contávamos histórias. Tí-nhamos bancos e velas para a noite. Uma vez até tivemos um sofá. As nossas namo-radas também lá iam.

Havia os cães, nossos grandes amigos. O Capeto e o Beizi (baptizado com letrasque cada um disse). Era sempre muito osso e arroz aguado que levávamos p'ró cão.Adoravam-nos.

ii. CapetoO Capeto era um cão muito inteligente, preto, mas arraçado de pastor alemão

e merece um capítulo especial.Andava sempre com a gente, defendia-nos. Era o cão da PB, uma companhia e

muito meigo. Até que um dia lhe deram com uma paulada na cabeça, saindo os olhose ficou cego. Nada via, mas conseguia andar por todo o lado sem bater em nada,levantando as patinhas da frente.

iii. "Non ou a Vã Glória de Mandar"Um dia juntámo-nos na Barraca e bebemos e comemos durante a noite toda.

De manhã, fomos para a Praça do Bocage, apanhar o autocarro, para sermos actoresno filme de Manuel de Oliveira.

No caminho, o condutor parou milhares de vezes devido às coisas que lhe diziam,ameaçando deitar a viatura para uma ribanceira.

No local da filmagem, não havia comida e bebida suficiente para todos e ficámosde seca com centenas de pessoas. Horas e horas. Logo que pude saí dali. Nemcheguei a filmar. Outros ficaram.

d) O PalmeirasO café Palmeira foi a nossa segunda casa um pouco mais tarde. Íamos todos os

dias para lá. O Couto fazia parte do mobiliário da casa e depois veio a casar coma São, dona do café. Bebíamos, estudávamos, conversávamos lá. Era o local de en-contro. Estava por nossa conta. "aquece-me uma sopa" era a frase da época. Era aoalmoço, à noite, de manhã.

i. JantaresPor essa altura começaram as namoradas e os jantares com bebidas alcoólicas.

Era sempre até não poder mais ou ficar com a dupla. Ou seja ficar outro.Muitas, muitas histórias. Conto apenas aquela em que fiquei todo mordido por

mosquitos nos pés. A primeira vez foi na Barraca com o Jorge, durante a tarde e a

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noite toda.Depois algumas farra em Lisboa, na casa do Couto. A famosa casa. Na Cubata

e nas jantaradas dos Melros ou a acampar em Milfontes ou Santo André, a ver a vialáctea. O pior eram as misturas, que acabavam sempre mal.

ii. CarnavalO carnaval era sempre em Tróia ou em Sesimbra, para onde o pessoal ia de

véspera, para uma pensão. À noite, juntávamo-nos num restaurante ou num bar eandávamos pela Avenida com pistolas de água e máscaras. Por fim já só ia eu e oManuel. Lembro-me de salvar o Couto de cair do muro para a praia, e de ele terficado com o braço roxo.

iii. AlmoçajantasNuma fase mais final da PB, juntávamo-nos nas almoçajantas, numa quinta para

lá da Bela Vista. Febras e sangria corriam ao som de conjuntos que tocavam. Era umconcerto da PB.

O melhor de tudo era quando juntávamos o dinheiro de todos e íamos ao Jumbocomprar carne e bebidas. Era uma festa de rir e rir.

Pode ser que um dia escreva um livro com as histórias contadas por cada um.

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Como era LindoQuando era Criança,O mundo que viaO Mundo de Esperança.

Pelos filtros MaternosO mundo Chegava,E quando Mais,Mais Pressa me dava.

Julgava estarNum Mundo perfeito,Onde Tudo Para mimTinha Sido feito.

O Mundo cresceu,O Filtro Parou,Olhei em voltaE tudo Mudou.

Não estava maisNum mundo perfeito,Mas na confusãoDe um Mundo desfeito.

Poemas do Autor

Desilusão1985

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O medo veioE a Raiva também ,A esperança ficouDe um mundo além.

Cá vou estandoNo passar do dias,Sentado à esperaTalvez de um Messias.

Esta letra foi transformada em canção, com música de João Araújo.

Corredores x passarinho1987

Apenas me saem corredores por esta caneta.O passarinho, coitado, nem aparece nesteAmontoado de fios e resistências.Sou um robot, de onde, outra vez ouFinalmente, só saem corredoresMetricamente medidos.Curvas em ângulo rectoEntre o código binário e a cópia,Começo…, não começo…, tento, mas cedovejo a porcaria, a mecanização, a cópia,a estupidez, o não chegar lá, o desesperode estar a ser um alegre paxá.O passarinho não vem,Há dias e dias que o espero.Fugiu.Já não sei porquê, nem como era lindo.Talvez por eu só ter sentimentosFingidos, computados, sociais.

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Deusa1987

Perdida deves estar,Ó Deusa do amor,Nesta terra de mortais.Sei que vieste para me amar.Que sorte foste pôrNeste ninho de Dor.Onde afinal,Só já existe amor.Ó que bela vos mostrais.Por favor,Deusa do Amor,Deusa do Luar,P´ró OlimpoNão vais voltar.Pois,Senão retorna a dor.

Religiosos1987

Saltam juntosDe ramo em ramo,Tratam de assuntosDo seu amo.Pombinhos meus,Ide depressa,Pois DeusPode não estar nessa.E lá iam,De árvore em árvore,Juntos sorriam,Mas nunca o viam,De árvore em árvore.

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Aulas1987

Sentado no pequeno banco, sentia que subia.Sorria. Cumprimentava.Submetia-me às moralidades estranhas e superiores.E esforçava-me. Esforcei-me muito.A minha mãe levava-me um café ou um copo de leite quente, para esfriar as ideias.Usava todos os métodos.Só me descuidava no horário e fazia algumas baldas.Estudava.

Padrinho Zé1987

Herói da Guerra, Mas perdeu a perna,Mão na terra, mas a família governa.Tinha mulher e filho, e uma prótese na perna,Trabalhava, trabalhava, sempre com vontade eterna.Meu 1º leitor, comprava a minha edição,Sinto verdadeiro amor, no fundo do coração.Veio nos jornais, precisava de uma operação,De dinheiro para a família, todos deram um tostão.Padrinho assim não há, uma homem espectacular,Trabalhava de lá para cá, a sustentar o lar.Um dia adoeceu, ficou muito magrinho,Foi para o hospital, todos diziam coitadinho.Morreu, enterrou-se, ninguém maisComprou os meus jornais.

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Futuro pró jovem1987

Olho o presenteE vejo o futuro,Que não está ausente,Mesmo que escuro.

E olho as gentesQue foram como nós,Que estão cientesE não perderam a vós.Tenho esperança em nósE num futuro melhor,Com Deus ou sós.Mas com muito suor,Chegaremos à paz.Ainda que sem nós.

Fernando Pessoa1987

Críticos parvos, escutai:Não faleis sobre mim como quem cospe,Não digais às pessoas, palavras confusasE estúpidas sobre mim.Que não quero meter medo, nem baralhar ninguém.Leiam-me, desentendam-me, mas sozinhos.Não sejais parvinhos.Não me façam ser odiado.Por favor, obrigado.

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Prisão SocialReflexão1987

Reconheço e sei bemQue tabus sempre estavamNo progresso e tambémÀ desgraça levaram.

Ao tomar conhecimentoQue já era homem,Veio ao meu pensamento:O que é que eles comem?Porque tenho de serTão forte e mau?

Têm que compreenderQue não sou de pau.

Nuclear1987

Batam tambores tantoQue nem cantando vão.Nem se ouvem as sombrasdos que sentados estão.Se se ouvissem sem se sentirDiríamos que era festa,Mas desta vez ninguém vai ficar para dizerO que quer que seja.É o último tamborA última guerra.

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Ultramar1987

Um dia vi saltarem soldados,Vi catanas e mato.Vi medo e aventura.Vivia-se para matarE para morrer!Senti a sede,A fome,A dor,A tristeza das perdas,A raiva da fúria,Não de vencer, nem de lutar,Mas de vingar,Mãos, pensos, sangue, lágrimas,Armas, tabaco, saudade, braços, mortos.Sempre uma certezaDuma vivência inútilPara mim e para o País.

Cavalo1987

Correr! Correr! Correr! Correr!

Correr! Ai! Ai! Fugir! Fugir!

Fuuugiiir! Correr! Correr!

Haaaa! Parar! Pescoço! Agora!

Parar! Parar! Descançar! Beber! Sede!

Água! Bom! Bom! Humm! Tchoca! Tchoca!

Iiiiii! Susto! Fugir! Fugir! Correr!

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Setúbal1987

Parvas elevações verticaisSurgem rude e acastanhadas,Fortes e Acampanadas,

Homens, trabalham devagar.

Na vida verde da vinha,Vagarosas uvas vão indo,Pelas vias, para as vagas de vinho.

Lentos cães ladram ao gado.

O Sol alto queima as sombras,E endurece enquanto aquece.

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Hospitais

- Minha senhora, senhora enfermeira !Disse ao ver passar a matraquear as socas chulerentas a largar pêlo, abrigando

os presuntos deformados de banha descaída em camadas de sedimentos cronológi-cas e couratão esbranquiçado privado de humidade do roçar contínuo nas costas dasalpergatas, em horas passadas nas veredas a pé entre o bairro, nos arredores de vilasperiféricas, e aquele hospital central, onde ainda se usam máquinas, paredes e camasde sem anos atrás.

Os pés adivinhavam um rabo fora das cuecas a três quartos e a querer rebentardo saco de células que o sustinha, e uma cara de passadora a ferro de cabeça peladapelo calor tropical do vapor do suor e detergente de camisas e casacos de criaturassem tempo, mulher que tinha evoluído orgulho da família de pastores da Estrela ehavia entrado por baixo do médico chefe, como ajudanta de enfermagem, únicaesperança constante não concretizada da atenção que aqueles doentes terminaistinham, abandonados pelas famílias.

- Minha senhora, que aparelho...que aparelho é este?À sua volta paredes doentes apresentavam bolhas alérgicas de bolor empolado,

infecções latentes no antigo branco, que apenas aguardavam uma pequena distrac-ção sua para o fazerem seu manjar, entre novelos de tubos flexíveis que nasciam detubos de ferro pintados a cores por cima de camas de criança em aço bege, comlençóis de flanela debotados e borbotados com logótipos feios de hospitais nãoconhecidos.

Mesas decrépitas faziam o possível por destoar dos diferentes tipos de cadeirasgastas desconfortáveis de almoços de rabos cansados com chinelos a arrastar e canjasde peixe a cheirar a mau bife, em tabuleiros cinzentos de bactérias expectantes,familiares das do chão passado vezes a fio com o esfregão sujo de anos de mijo,defecação e sangue jorrados, onde assentavam os pés da máquina farta de botões eluzes, números e dizeres que o aqueciam e em quem confiava uma solução milagrosa,esperança remota de cura, das horas que passavam juntos e em que ela o media emnoites longas de gemidos e dor. Ela sabia.

- Como funciona? Para que é o botão?

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As suas noventa primaveras não tinham amainado a vontade de saber de tudoe principalmente de coisas modernas de esperança como era a sua companheira, jádum novo século, no tempo mais moderno de sempre, que o observava e controlava,confortando-o por estar certamente em boas mãos, entre fios vermelhos e verdes,luzes amarelas qual painel de avião, domínio do homem pela máquina, mãos dechapa em que entregava a sua alma e que lhe mantinha a ténue chama-piloto daesperança.

Nunca tinha estado num hospital excepto quando levou uma dose de cavalo antesde partir para cumprir serviço na Índia, onde conheceu pessoas estranhas de quemnunca gostou e donde regressou para ser um excelente pai por muito tempo e tirarfotos por dezenas de anos para que o filho estudasse e tivesse futuro, apanhando carasde seres que nunca lhe interessaram ou de porcarias que aconteciam aos outros como seu olho de papel.

- Sempre gostei de saber mais, mas já não consigo ouvir o que diz.- Cale-se e durma.Aqui não é ninguém, é utente ser dominado escravo do sistema e dos esbirros

graduados que ordenam a todos os vitelos que ali caem, sejam lá quem tenham sidofora dali. Comunismo e os porcos. Há semanas que o filho formiga ocupada nãovinha e ele ali preso pelos carrascos do Estado com pernas que se recusaram fun-cionar pela primeira vez havia duas semanas mas para sempre, era normal disse omédico que passou cinco minutos na semana passada, já não vai andar mais.

Sempre adorara caminhar com a mulher e o filho pela cidade e noutras cidades,com as pernas companheiras incansáveis que tinham assistido fortes a tudo, aonascer do filho, ao casamento, às fotos, às lamúrias da mulher, aos passarinhos.Pouco faltava para morrer abandonado, menino preso naquele corpo de velho queninguém queria ver, a quem tinham que limpar o rabo, desolado em pânico semperceber como ali tinha chegado e como sairia, àquele estado, mesmo fazendo sempreo que devia, sem perceber o que se seguia, num fosso de sentidos, num deserto desentimentos de mirrado vegetal.

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A Feitoria de Abul

Stephen Hawking "O Universo numa Casca de Nós"http://www.hawking.org.uk/home/hindex.html

João Aguiar "O menino de Lapedo"http://www.spautores.pt/revista.aspx?idContent=584&idCat=147http://www.ipa.min-cultura.pt/pubs/slides/

Nova, Teoria das Cordashttp://www.pbs.org/wgbh/nova/elegant/

Feitoria de Abul e Ruínas de Tróiahttp://www.troiaresort.com/natureza/reserva.htm

Chibaneshttp://www.moinhosvivos.com/defaultArticleViewOne.asp?categoryID=305&articleID=390&lId=1

Atlântidahttp://lendasdeportugal.no.sapo.pt/distritos/madeira.htm

Horm holeshttp://en.wikipedia.org/wiki/Wormhole

Raio Uhttp://pt.wikipedia.org/wiki/Edgar_P._Jacobs

Bibliografia com Interesse

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