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A publicação da obra “O capital no século XXI” de Thomas Piketty (2014),1 embora não tivesse tal pretensão2 como principal, aflorou as discussões sobre a relação da tributação com a desigualdade. Isso porque o economista francês, analisando dados de diversos países, escancarou a concentração de renda mundo afora, ao mostrar que, por exemplo, nos Estados Unidos da América, 1% da população possuí mais de 30% das riquezas do país,3 bem como, na Europa, os 10% mais ricos controlam cerca de 60% do capital do continente.4
Outro ponto importante levantado por Piketty é a relação da desigualdade com a tributação, inclusive, quanto ao tema, ele concluiu que o Estado deve onerar mais aqueles que possuem maior capacidade contributiva,5 sob pena de um colapso geral do próprio sistema capitalista. Por essa razão, afirma que uma das soluções para se consertar o capitalismo seria a criação de um imposto global sobre a renda, pois este teria como função reduzir a disparidade de bens entre a população, evitando maiores crises.
Contudo, a discussão sobre a tributação e a desigualdade não é um mérito ou uma inovação de Piketty, pelo contrário, no cenário brasileiro, por exemplo, Misabel Derzi6 e Valcir Gassen7 há muito tempo discorrem sobre os problemas de uma tributação tida como regressiva. Ou seja, aquela que, em termos relativos, onera de forma mais gravosa aqueles que possuem menos riquezas. Defendem que no Brasil a opção do legislador pela tributação mais pesada na base tributária do consumo,8 em detrimento da renda e do patrimônio, leva à ampliação da desigualdade histórica do país, o que, em termos de justiça, revela-se inadmissível.9
1 PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. 1ª Edição. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014. 2 Piketty não tinha como intenção inicial escrever sobre desigualdade ou tributação, mas sim descrever o comportamento
do capital na história, bem como suas perspectivas de futuro, de modo que, fosse possível demonstrar uma saída para se salvar, ou melhor, controlar, o capitalismo. Contudo, no caminho para explicar que o sistema capitalista não estaria perdido, Piketty acaba por desenvolver uma teoria distributiva do capital por meio da tributação, mas que, na verdade, tem por objetivo trazer certa pacificação social, e não “justiça por justiça”. Noutros termos, buscar a igualdade por questões de justiça é tangencial para o autor, sendo sua intenção precípua alcançar uma sociedade em que o capitalismo opere de forma mais estável, menos vulnerável às possíveis revoltas e revoluções. Nesse sentido ver: PIKETTY, Thomas. Op cit. p. 352-359 e 466-468.
3 Ibidem, p. 329 4 Ibidem, p. 341 5 “(...) exige o Princípio da Justiça Fiscal ancorado na regra da igualdade geral (Art.3 I GG) que os ônus fiscais sejam
distribuídos aos sujeitos passivos em proporção à capacidade contributiva econômica; (...) O reconhecimento do princípio da capacidade contributiva como princípio fundamental da justiça fiscal e consequentemente o mais elevado critério comparativo (Vergleischsmaβtab) de isonomia de encargos tributários (s. Rz. 76) vale-se de uma evolução de séculos.” (LANG e TIPKE. Direito tributário. Volume I. Tradução de: Luiz Dória Furquim. Porto Alegre: Fabris, 2008. 199-200)
6 DERZI, Misabel Abreu Machado. Guerra fiscal, Bolsa Família e silêncio (relações efeito e regressividade). Revista Jurídica da Presidência. Brasília, vol. 16, n. 108, 2014.p. 39-64
7 GASSEN, Valcir. Equidade e eficiência da matriz tributária brasileira: diálogos sobre estado, constituição e direito tributário. Brasília: Consulex, 2012
8 Pesquisas recentes, divulgadas pela Receita Federal, vêm confirmando que, no Brasil, a tributação acaba por onerar por demais o consumo; em 2015, cerca de 50% dos valores arrecadados provêm da comercialização de bens e serviços, enquanto os tributos incidentes sobre a renda representam apenas 18,1%. Sobre o tema ver: BRASIL. Ministério da Fazenda e Receita Federal. Carga tributaria no Brasil 2015: Análise por Tributos e Bases de Incidência. Brasília, 2016 p.6. Disponível em: https://idg.receita.fazenda.gov.br/dados/receitadata/estudos-e-tributarios-e-aduaneiros/estudos-e- estatisticas/carga-tributaria-no-brasil/ctb-2015.pdf Acesso em: 27/02/2017.
9 Mais à frente será trabalhado o conceito de justiça utilizado pelo autor.
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Nesse contexto, explorando as consequências de uma tributação regressiva e sob a ótica de justiça, o presente artigo pretende analisar qual a relação da carga tributária brasileira com o Programa Bolsa Família, criado pela Lei Nº 10.836/200410 com o intuito de reduzir a pobreza e dar fim ao seu ciclo intergeracional, a partir de transferência de renda direta à parcela menos abastada da população quando cumpridos determinadas contrapartidas.11 Em suma, deseja-se investigar em que proporção o Bolsa Família é “autofinanciado” pela população mais pobre do Brasil, isto é, saber se o programa é ou não mitigado pela regressividade da matriz12 tributária brasileira.
Assim, para melhor compreensão do tema, serão analisados diversos textos e dados estatísticos no decorrer do presente trabalho, que será divido em três partes:
(i) Primeiramente, será apresentado sob qual recorte teórico será tratado o tema, ou seja, como o autor observa o direito e qual o conceito de justiça a ser utilizado;
(ii) Em seguida, serão debatidas as características da matriz tributária brasileira, bem como seus reflexos na desigualdade do país, a partir de dados empíricos;
(iii) Por fim, irá se analisar a função da tributação e sua relação com o programa Bolsa Família.
Antes de se entrar na discussão da justiça do programa bolsa-família frente à desigualdade e à regressividade do sistema tributário nacional, é importantíssimo compreender sobre qual recorte o autor irá pautar as discussões.
Dessa forma, serão utilizados como marco teórico os ensinamentos de John Rawls, autor americano que, dentre outras obras, escreveu o livro “Uma teoria da justiça”, em que buscou discorrer sobre uma releitura do contrato social a partir da ideia de que a estrutura básica de uma sociedade é a justiça.13
Em síntese, o autor defende que, na celebração do contrato social, o povo14 escolhe, a partir da racionalidade, quais são os critérios de justiça que serão utilizados para
10 BRASIL, Lei Nº 10.836, de 9 de janeiro de 2004. Cria o Programa Bolsa Família. Presidência da República, Brasília, Fevereiro de 2013. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/lei/l10.836.htm Acesso em 29/12/2016.
11 Segundo o Art. 27 do Decreto Nº 5.209/2004, são medidas necessárias para enquadrar-se como beneficiário do programa: a realização de exames pré-natal, acompanhamento nutricional, acompanhamento à saúde e de frequência escolar dos assistidos e de sua família.(BRASIL, Decreto Nº 5.209de 17 de setembro de 2004. Regulamenta a Lei no 10.836, de 9 de janeiro de 2004, que cria o Programa Bolsa Família, e dá outras providências. Presidência da República, Brasília, 2004. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/d5209.htm Acesso em 29/12/2016.)
12 Matriz tributária é um conceito utilizado por Valcir Gassen que pode ser definido como as escolhas feitas em um determinado momento histórico no campo da ação social, no que diz respeito ao fenômeno tributário. Abarca não só as opções no momento de arrecadação, mas também de emprego da receita pública. (GASSEN, Valcir. Matriz tributária: uma perspectiva para pensar o estado, a constituição e a tributação no Brasil. Revista dos Tribunais. São Paulo. v. 935, p 243-266, 2013.)
13 “Meu objetivo é apresentar uma concepção de justiça que generaliza e leva a um plano superior de abstração a conhecida teoria do contrato social como se lê, digamos, em Lock, Rousseau e Kant. Para fazer isso, não devemos pensar no contrato original como um contrato que introduz uma sociedade particular ou que estabelece uma forma particular de governo. Pelo contrário, a ideia norteadora é que os princípios da justiça para a estrutura básica da sociedade são o objeto do consenso original.” (RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Tradução de Almiro Pisetta, Lenita Maria Rimoli Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 12-13)
14 Rawls utiliza o termo povo para se referir a coletividade pertencente às sociedades organizadas (Estados), pois para
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aquele Estado formado, bem como que, acaso estas balizadas não fossem pautadas pela equidade,15 jamais os cidadãos aceitariam privar-se de sua liberdade total para sujeitar-se ao poder do estatal.16
Assim, explica que a escolha correta desses pilares da justiça deve ser feita enquanto os cidadãos estão cobertos pelo véu da ignorância, uma espécie de posição original, na qual todos fossem iguais, onde o dinheiro, o poder, as características físicas, as capacidades intelectuais e os preconceitos não pudessem exercer influência alguma. Neste momento, hipotético, é claro, o povo iria optar pela justiça como equidade, ou seja, apenas quando não houvesse interesse particular na definição do que seria justo, poder-se-ia conceber o melhor critério para a justiça na celebração do contrato social.17
Então, a utilização do véu da ignorância, o que esconderia do cidadão todas suas características, é um pressuposto da teoria rawlsiana, pois sem ele jamais haveria uma posição original que permitisse ao povo decidir sobre a justiça. Por exemplo, observe que os senhores de escravos, sabendo de sua posição social, jamais decidiriam que a escravidão era injusta, provavelmente argumentariam que faz parte das escolhas da vida ou algo nesses termos, a despeito de a história revelar a inexistência de qualquer senso de justiça em privar-se alguém de sua liberdade para servir a outro, seja por sua descendência, seja por dívidas. Contudo, esse mesmo senhor de escravo se não soubesse qual seu papel na sociedade, dificilmente julgaria justa a escravidão, uma vez que ele próprio poderia ser aquele que sofreria a mazela deste regime.18
Noutros termos, a equidade só seria alcançada a partir do véu da ignorância, pois do contrário, os desejos, poderes, propensões e riquezas influenciariam o povo a escolher o critério de justiça que lhes fosse mais vantajoso, a despeito daquele que, muitas vezes, por serem menos dotados de poder, não conseguem ter sua voz ouvida.
Nesse sentido, a justiça, para Rawls, seria escolhida como o desdobramento de dois princípios básicos:
ele tal distinção é relevantíssima ao tratar-se do tema justiça. (RAWLS, John. O direito dos povos. São Paulo, Martins Fontes, 2001. p. 3-5.)
15 Equidade é um conceito trabalhado por Rawls para exemplificar que a justiça deve ser imparcial, ou seja, os critérios não podem ser definidos por pessoas que tenham qualquer viés subjetivo. Sobre o tema, ver: (SEN, Amartya. A ideia de justiça. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 86-89)
16 Observe a narração do próprio autor quanto a esse momento de escolha: “Assim, devemos imaginar que aqueles que se comprometem na cooperação social escolhem juntos, numa ação conjunta, os princípios que devem atribuir os direitos e deveres básicos e determinar a divisão de benefícios sociais. Os homens devem decidir de antemão como devem regular suas reivindicações mútuas e qual deve ser a carta constitucional de fundação de sua sociedade. Como cada pessoa deve decidir com o uso da razão o que constitui o seu bem, isto é, o sistema de finalidades que, de acordo com sua razão, ela deve buscar, assim um grupo de pessoas deve decidir de uma vez por todas tudo aquilo que entre elas se deve considerar justo e injusto. A escolha que homens racionais fariam nessa situação hipotética de liberdade equitativa, pressupondo por ora que esse problema de escolha tem uma solução, determina os princípios da justiça.” (RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Tradução de Almiro Pisetta, Lenita Maria Rimoli Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 13)
17 RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Tradução de Almiro Pisetta, Lenita Maria Rimoli Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 127-128.
18 Vale destacar que este exemplo não é utilizado por Rawls em sua obra, sendo uma dedução deste autor sobre o pensamento do filósofo americano.
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“Primeiro: cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema de liberdades básicas iguais que seja compatível com um sistema semelhante de liberdades para as outras. Segundo: as desigualdades sociais e econômicas devem ser ordenadas de tal modo que sejam ao mesmo tempo (a) consideradas como vantajosas para todos dentro dos limites do razoável, e (b) vinculadas a posições e cargos acessíveis a todos.”19
O primeiro princípio da justiça, para Rawls, estaria presente quando todo o povo dispusesse de um mínimo existencial, ou seja, bens primários, compostos de sua liberdade, direitos subjetivos (autoestima) e riquezas suficientes para subsistência,20 os quais permitiriam a cada cidadão usufruir de oportunidades, isto é, decidir se abririam mão ou não de alguns de seus direitos em troca do enriquecimento.21
Por outro lado, o segundo pilar, chamado de “Princípio da Diferença” consistiria em que toda a desigualdade deve gerar benefícios ao povo em geral. Nesse ponto, Rawls afasta-se da corrente utilitarista, em voga à época,22 pois refuta a máxima de que uma ação seria moralmente aceitável, e, portanto justa, quando a maior parte do povo dela se beneficiar.
Isso porque, conforme o Princípio da Diferença, não há como conceber que uma pequena parcela da população seja privada de seus direitos fundamentais para que outra maior se engrandeça sem qualquer modo subjetivo de distribuição desse ônus.23 Rawls destaca que o correto seria que a desigualdade fosse utilizada como mecanismo de distribuição, sendo certo que, quando necessário, aqueles com mais condições devem ser privados de alguns de seus bens/direitos, para que a parcela mais pobre seja beneficiada.24
Em síntese, Rawls modifica a teoria utilitarista para inserir uma ordem nela: a privação não pode ser aleatória, devendo focar naqueles que possuem mais recursos, pois a desigualdade deve gerar benefícios à população menos abastada.
Portanto, concluísse que teoria política da justiça, estabelecida por Rawls nada mais é do que um exercício prático, no qual se deve retornar à posição original e
19 RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Tradução de Almiro Pisetta, Lenita Maria Rimoli Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 64.
20 Amartya Sem ressalta que, embora Rawls tenha se referido de forma genérica ao povo, é compatível com sua teoria a ideia de que seu desejo que esses bens primários fossem medidos subjetivamente. Por exemplo, uma mulher grávida, durante a gestação, inspira mais cuidados do que um homem de 19 anos, de forma que a ela devem ser garantidos o mínimo necessário para sua existência digna. O mesmo raciocínio é aplicável aos portadores de necessidades especiais ou físicas, pois com os mesmos bens que um homem saudável eles jamais conseguiram alcançar as mesmas oportunidades. (SEN, Amartya. Op cit. p. 96)
21 RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Tradução de Almiro Pisetta, Lenita Maria Rimoli Esteves. São Paulo: Martins Fontes p. 66-69.
22 Sobre o tema ver: ESTEVES, Julio. As críticas ao utilitarismo por John Rawls. In Ethic@, Revista Internacional de Filosofia Moral, Florianópolis, v.1, nº 1, p. 81-86, junho de 2002. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/ ethic/article/viewFile/14536/13310 <Acesso em: 26/12/2016.>
23 RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Tradução de Almiro Pisetta, Lenita Maria Rimoli Esteves. São Paulo: Martins Fontes p. 81-82.
24 RAWLS, John. O direito dos povos. São Paulo, Martins Fontes, 2001. p. 155-156.
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racionalmente responder, a partir dos princípios delineados, se aquela ação seria benéfica para a sociedade como um todo.
Apresentado o recorte teórico da discussão, é necessário primeiramente entender o Programa Bolsa Família, e em qual contexto político-social este benefício foi criado, para, somente assim, verificar sua relação com a tributação.
Primeiramente, o Brasil, em razão de suas características históricas de escravidão e concentração de terras e capitais,25 pode ser considerado um país em que a desigualdade chega a níveis alarmantes. Exemplificando isso, o Censo Demográfico de 201026 apresentou que, dos cerca de 160.000.000 (cento e sessenta milhões) de entrevistados, cerca de 104.000.000 (cento e quatro milhões) ou não possuem rendimento algum ou recebem menos de 1 salário-mínimo por mês.
Segundo o mesmo estudo, levando em conta apenas aqueles que informaram possuírem rendimentos, chega-se ao seguinte gráfico:
A desigualdade no país é tão evidente que, enquanto 83% da população com renda vive com até 3 salários-mínimos mensais, apenas 1% recebe salários ou rendimentos superiores a 20 salários-mínimos.
Nesse mesmo sentido, o Relatório da Distribuição Pessoal da Renda e da Riqueza da População Brasileira, publicado pelo Ministério da Fazenda em 2016, aponta que os 0,1% mais ricos da população brasileira detém cerca de 6% da renda auferida e
25 Sobre o tema, ver: VALLADARES, Lícia. Cem anos pensando a pobreza (urbana) no Brasil. In: BOSCHI; Renato R.(Org). Corporativismo e desigualdade: a construção do espaço público no Brasil. Rio de Janeiro: Rio Fundo,IUPERJ, 1991.
26 BRASIL. Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo demográfico de 2010: Trabalho e rendimento. Brasília, 2016. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/ populacao/censo2010/rendimentos_preliminares/rendimentos_preliminares_tab_pdf.shtm Acesso em: 31/12/2016.
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declarada no Brasil.27 Comparando este dado com os trazidos por Piketty,28 é possível extrair o seguinte resultado:29
Desse modo, constata-se que a renda no país é extremamente mal distribuída, pois pensar-se que 0,1% de uma sociedade detêm 6% é, quando comparado com outros países globo afora, algo surreal. Não por outra razão, o Índice de Gini, medidor da desigualdade,30 do Brasil é um dos piores entre os países “chamados de emergentes”,31 bem como sequer pode ser comparado com os índices daquelas nações tidas como desenvolvidas. Veja gráfico utilizado pelo Ministério da Fazenda do Brasil:32
27 BRASIL. Ministério da Fazenda e Receita Federal. Relatório da distribuição pessoal da renda e da riqueza da população brasileira, Dados do IRPF 2014/2015. Brasília, 2016. p. 15-16. Disponível em: http://www.fazenda.gov.br/centrais-de- conteudos/publicacoes/transparencia-fiscal/distribuicao-renda-e-riqueza/relatorio-distribuicao-da-renda-2016-05-09.pdf Acesso em: 30/12/2016.
28 PIKETTTY, Thomas. Op cit. p. 310-313. 29 Todas porcentagens utilizadas são aproximadas a partir do seguinte critério: quando o algarismo da casa centesimal for
maior ou igual a 5, acrescenta-se 1 unidade ao algarismo da casa decimal. 30 O índice vai de 0 a 1, sendo que quanto maior o número, mais desigual, em termos de distribuição de riquezas, é o país. 31 “Esses países experimentam crescimento pujante e estável, impelidos por abundante poupança local, frequentemente
superior a 30% do Produto Interno Bruto (PIB), que financia elevado volume de investimentos e que permite mudanças econômicas e tecnológicas significativas. (...)Os países emergentes têm regimes políticos diversificados mais ou menos autoritários, mais ou menos democráticos. Neles, o Estado de bem-estar social é mais ou menos generoso e realiza políticas sociais diversificadas: as transferências sociais são mais ou menos importantes e variam segundo os meios orçamentários que as políticas fiscais contrárias permitem. As populações desses países variam de 15 milhões a 1,3 bilhão. O verdadeiro papel da variável demográfica: as variáveis japonesas e chinesas transformam a repartição econômica mundial. Uma classe média em constante fortalecimento transforma progressivamente os modelos culturais e de consumo e modifica gradualmente as regras do jogo político.” (BENACHENHOU, Abdellatif. Países emergentes, tradução de Sérgio Duarte. Brasília: FUNAG, 2013.p. 14-15)
32 BRASIL. Ministério da Fazenda e Receita Federal. Relatório da distribuição pessoal da renda e da riqueza da população brasileira, Dados do IRPF 2014/2015. Brasília, 2016. p. 3. Disponível em: http://www.fazenda.gov.br/centrais-de- conteudos/publicacoes/transparencia-fiscal/distribuicao-renda-e-riqueza/relatorio-distribuicao-da-renda-2016-05-09. pdf Acesso em: 30/12/2016.
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Fonte: Banco Mundial (World Development Indication) Dados de 2013 ou último disponível. Para Brasil, IBGE/PNAD 2013.
Breve análise dos dados permite constatar que os países desenvolvidos ostentam índices de Gini menores que 0,41 e os emergentes estacionam no intervalo de 0,41 a 0,5 (indicador brasileiro). Ou seja, o Brasil, além de estar longe dos países tido como “de 1º mundo”, ainda é um dos piores no quesito emergentes, o que reforça o quão desigual é a sociedade brasileira.33
Portanto, a criação do Bolsa Família se dá em um contexto de má distribuição de renda, no qual há uma concentração de riqueza na mão de poucos, enquanto a maior parte da população vive à margem a pobreza.
Para se compreender o benefício, é necessário primeiro entender que o Bolsa Família é um programa assistencialista de transferência direta de renda para famílias de baixa renda que, como contrapartida, exige a prática de ações que visam encerrar o ciclo intergeracional da pobreza, como, por exemplo, a comprovação de frequência escolar das crianças e adolescentes beneficiados.
O programa abarca famílias em situação de extrema pobreza ou pobreza, as quais são definidas atualmente pelo Decreto nº 8.794/201634 como aquelas em que a renda per capita mensal seja inferior a R$ 85,00 (oitenta e cinco reais) e R$ 170,00 (cento e setenta reais), respectivamente.
Desse modo, retomando ao marco teórico aqui empregado, como seria possível que uma pessoa tivesse suas necessidades mínimas, ou melhor, acesso aos bens primários
33 Há que se ressaltar que o índice de Gini do Brasil vem sendo reduzido sistematicamente, de 2004 até 2013, observou-se uma queda de 0,54 até 0,5. BRASIL. Ministério da Fazenda e Receita Federal. Relatório da Distribuição pessoal da renda e da riqueza da população brasileira, Dados do IRPF 2014/2015. Brasília, 2016. p. 6. Disponível em: http://www. fazenda.gov.br/centrais-de-conteudos/publicacoes/transparencia-fiscal/distribuicao-renda-e-riqueza/relatorio-distribuicao- da-renda-2016-05-09.pdf Acesso em: 30/12/2016.
34 BRASIL, Decreto Nº 8.794, de 29 de junho de 2016. Altera o Decreto No 5.209, de 17 de setembro de 2004, que regulamenta a Lei Nº 10.836, de 9 de janeiro de 2004, que cria o Programa Bolsa Família. Presidência da República, Brasília, Junho de 2016. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2016/Decreto/D8794. htm#art1 Acesso em 29/12/2016.
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com uma renda mensal de apenas R$ 85,00 (oitenta e cinco reais)? A resposta é que não será, esse cidadão viverá à margem de seus direitos mínimos, pois os valores sequer são suficientes para a subsistência adequada.35
Assim, é neste cenário que o bolsa-família se insere, buscando dar a esses cidadãos acesso ao mínimo existencial, sendo que, em muitas vezes, mesmo com o recebimento do benefício, a família sequer alcança uma renda mensal maior do que o salário mínimo.36-37 Ademais, é importante notar que o benefício é subdivido em:
(i) 1 parcela fixa de R$ 85,00 (oitenta e cinco reais) (ii) 1 parcela variável de 39,00 (trinta e nove reais) por crianças e adolescentes
entre 0 e 15 anos, gestantes ou nutrizes, limitada à R$ 195,00 (cento e noventa e cinco reais)
(iii) 1 parcela variável vinculado ao adolescente entre 16 e 17 anos que esteja matriculado em Instituição de Ensino, no valor mensal de R$ 46,00 (quarenta e seis reais) por beneficiário, até o limite de R$ 92,00 (noventa e dois reais) por família.
Destacando-se que a parcela fixa é paga apenas para famílias em extrema pobreza, constata-se que os beneficiários do programa são famílias cuja renda per capita mensal gire em torno de 7,6% a 15% da média nacional, a qual, segundo o Instituo Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),38 em 2015 alcançou R$ 1.113,00 (mil cento e treze reais).
Assim, enquanto o 0,1% mais ricos da população vivem com mais de 60 vezes39 da média mensal, os beneficiários do programa bolsa-família recebem cerca 1/10 desse valor médio. Em números concretos, o 0,1% mais ricos recebem cerca de 360 vezes mais do que as famílias tidas como pobres, e 720 vezes mais do que as extremamente pobres.
35 Isso porque, segundo o Ministério da Saúde, a alimentação adequada é composta de (i) 3 refeições completas + 2 lanches; (ii) ingerir diariamente 6 cereais, 3 leguminosas e 1 porção de carnes, aves ovos ou peixes. Contudo, é certo que a família que recebe menos do que R$ 190,00 (cento e noventa reais) jamais poderá alcançar este patamar de alimentação. (BRASIL, Ministério da Saúde. Guia alimentar para a população brasileira: promovendo a alimentação saudável. Brasília: 2008. Disponível em http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/guia_alimentar_populacao_brasileira_2008. pdf. Acesso em 31/12/2016)
36 Ressalte-se que são diversas as criticas ao salário mínimo, uma vez que esse, na visão de alguns autores, sequer consegue atender às necessidades básicas da população. Nesse sentido ver: VASCONCELOS, Inessa. A teoria do mínimo existencial e o direito tributário brasileiro. In MURTA, Antônio; MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito e FEITOSA, Raymundo (coordenadores) Direito tributário e financeiro. XXIV Encontro do CONPEDI, Florianópolis: 2015. p. 127-157. Disponível em: http://www.conpedi.org.br/publicacoes/c178h0tg/z6ga0z97 Acesso em 01/01/2017.
37 Imagine uma situação hipotética, na qual uma família com 6 integrantes, mãe solteira e 5 filhos entre 0 e 15 anos. Caso a mãe seja uma diarista cuja renda mensal seja de R$ 500,00 (quinhentos reais), a família faria jus ao recebimento do benefício por estar qualificada como pobre. Mas mesmo que os 5 filhos estejam matriculados em instituição de ensino, o valor recebido será de 5 vezes R$ 39,00(trinta e nove reais),o que dá R$ 195,00. Logo, a renda mensal da família será de R$ 695,00 (seiscentos e noventa e cinco reais), valor inferior ao salário mínimo vigente em 2016 (R$ 937,00). (BRASIL, Decreto Nº 8.948, de 29 de dezembro de 2016. Regulamenta a Lei Nº 13.152, de 29 de julho de 2015, que dispõe sobre o valor do salário mínimo e a sua política de valorização de longo prazo. Presidência da República, Brasília, Dezembro de 2016. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2016/Decreto/D8794.htm#art1> Acesso em 01/01/2017).
38 BRASIL. Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Renda domiciliar per capita 2015. Brasília, 2016. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/indicadores/trabalhoerendimento/ pnad_continua/default_renda_percapita.shtm Acesso em: 31/12/2016.
39 Isso sem contar os valores sonegados pela população mais abastada, pois os dados utilizados pelo Relatório da Distribuição Pessoal da Renda e da Riqueza da População Brasileira provêm da renda efetivamente declarada pelos cidadãos brasileiros em seu IRPF dos anos-calendários de 2014 e 2015.
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Portanto, pelos números apresentados, resta evidenciada a desigualdade no Brasil, bem como que o benefício do Bolsa Família40 tem como intuito abarcar a parcela da população cuja a renda encontra-se em níveis que não permitem o acesso ao mínimo existencial.
Constatado o perfil da desigualdade no Brasil, é necessário entender um pouco sobre a estrutura da tributação no país. Sobre o tema, diversos autores reforçam a regressividade41 como característica marcante da tributação brasileira, sendo importante ressaltar que alguns afirmam que o sistema seria regressivo,42 enquanto outros que a própria matriz tributária43 assim seria.
Isso porque, segundo eles, a opção do legislador local pela base tributária do
consumo criou uma estrutura em que os mais pobres são onerados, proporcionalmente aos seus sacrifícios, de forma mais intensa do que os mais abastados. Tal percepção decorre da impossibilidade de dotar de pessoalidade44 os tributos incidentes sobre a comercialização de bens, pois, dessa forma, independentemente da condição financeira do contribuinte, o valor a ser recolhido será o mesmo.
Exemplificando o exposto, um médico que cobre quase mil reais por uma consulta, ao adquirir um saco de arroz, ou um pacote de pasta de dentes, produtos tidos como essenciais para o conceito do mínimo existencial já exposto,45 pagará o mesmo valor de tributos sobre sua compra que qualquer outro trabalhador que receba um salário mínimo. Nesse sentido, a questão a ser debatida, posteriormente, é exatamente qual o papel do Programa Bolsa Família nesse contexto de regressividade da tributação.
40 Ainda, é importante notar que, em 2015, os valores dispendidos pela União com o programa representam apenas 0,4% do PIB, enquanto, por exemplo, cerca de 1,2% foi destinado ao oferecimento de benefícios fiscais e mais de 4% ao pagamento de juros da dívida pública. Ou seja, os gastos públicos com o Bolsa Família, quando comparado as demais despesas, revelam-se relativamente baixos. BRASIL. Ministério da Fazenda. Relatório de análise econômica dos gastos públicos federais: evolução dos gastos públicos federais no Brasil, uma análise para o período 2006-15. Brasília, maio de 2016. Disponível em: http://www.fazenda.gov.br/centrais-de-conteudos/publicacoes/transparencia-fiscal/analise-economica- dos-gastos-publicos-federais/relatorio_gasto_publico_federal_site.pdf Acesso em 27/02/2017.
41 Sobre a construção da matriz regressiva brasileira ver: (D’ARAÚJO, Pedro Júlio Sales. A regressividade da matriz tributária brasileira: debatendo a tributação a partir de nossa realidade econômica, política e social. 2015. 166 f.. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade de Brasília, Brasília, 2015.
42 BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. 8ª ed. Atualizada por Misabel Abreu Machado Derzi. Rio de Janeiro: Forense, 2010. p. 1344-1345.
43 Valcir Gassen defende que a ideia de sistema tributário não é suficiente para descrever a tributação, pois não permite conceber as relações dessa com a História e próprio o Estado democrático de direito. (GASSEN, Valcir. Equidade e eficiência da matriz tributária brasileira: diálogos sobre estado, constituição e direito tributário. Brasília: Consulex, 2012. p. 32)
44 Sobre a pessoalização dos tributos, ou seja, a adequação da base de cálculo e alíquota ao sujeito passivo da obrigação tributária é importante ressaltar que até pouco tempo o Supremo Tribunal Federal vedava a adoção de critérios pessoais para os impostos incidentes sobre o patrimônio, uma vez que alegava que o se grava não era o proprietário, mas a coisa. Assim, é interessante perceber que, com a mudança de jurisprudência, e a “autorização do Judiciário” para a utilização de alíquotas progressivas, em especial no Imposto Predial Territorial Urbano (IPTU) que fora o caso de fundo analisado, há, ao menos uma atenuação da regressividade do sistema. (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário Nº 423768, Relator(a): Min. Marco Aurélio, Tribunal Pleno, julgado em 01/12/2010, DJe-086 DIVULG 09-05-2011 PUBLIC 10-05-2011 EMENT VOL-02518-02 PP-00286. Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/ listarJurisprudencia.asp
45 RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Tradução de Almiro Pisetta, Lenita Maria Rimoli Esteves. São Paulo: Martins Fontes p. 66-69
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Apesar de em regra não ter sua renda sujeita a incidência de impostos, essa parcela da população, ao utilizar praticamente toda suas economias na aquisição de bens de subsistência, é exposta a cargas tributárias altíssimas. Ressalte-se que o consumo não se restringe ao famoso ICMS, mas também abarca outros tributos como o IPI, PIS, COFINS entre outros.
Reforçando a predileção do legislador pela base do consumo, a Receita Federal publicou um estudo afirmando que o Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) foi responsável pela arrecadação de cerca de 6,72% do Produto Interno Bruto Nacional, ou seja, quase R$ 400.000.000,00 (quatrocentos milhões de reais).46 A título de comparação, perceba que todos os tributos incidentes sobre a renda não chegam a 6% do PIB, ou seja, somente o ICMS é responsável por uma arrecadação superior a toda a tributação sobre a renda no país.
Quando se compara os tributos por base de incidência, o quadro é ainda mais grave, pois, se as exações cobradas sobre as folhas de salário forem consideradas como parte integrante do consumo, uma vez que seu ônus também é repassado ao cidadão sem a utilização de critérios pessoais,47 chega-se a conclusão de que mais de 75% da tributação privilegia a manutenção da pobreza e da desigualdade, porquanto possuam características regressivas.48 Observe:
Portanto, o cenário apresentado evidencia que no Brasil a tributação é pautada no consumo, em detrimento da renda e do patrimônio, de forma que o Programa Bolsa Família insere-se em uma realidade cuja desigualdade é latente e a regressividade marca do modelo de arrecadação adotado pelo Estado.
46 BRASIL. Ministério da Fazenda e Receita Federal. Carga tributaria no Brasil 2015: análise por tributos e bases de incidência. Brasília, 2016 p.6. Disponível em: https://idg.receita.fazenda.gov.br/dados/receitadata/estudos-e-tributarios- e-aduaneiros/estudos-e-estatisticas/carga-tributaria-no-brasil/ctb-2015.pdf Acesso em: 27/02/2017.
47 Ressalvada a parcela que deve ser recolhida pelo próprio empregador que, em tese, funciona como um adicional de imposto de renda para a pessoa jurídica.
48 A relação da manutenção da pobreza e da regressividade será objeto de análise mais a frente, mas desde logo importa salientar que, conforme o marco teórico utilizado, expressado no conceito do princípio da diferença, a tributação deveria ser um meio para a redução das desigualdades, o que se revela inviável quando se está a frente de uma matriz regressiva. (RIBEIRO, Ricardo Lodi. O capital no século XXI e a justiça fiscal: uma contribuição de Thomas Piketty para uma reforma tributária no Brasil. Revista de Direito Público da Economia – RDPE, Belo Horizonte, ano 13, n. 50, p. 197-228, abr./jun. 2015
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Até o momento foram apresentadas as características da tributação e da desigualdade no Brasil, mas sem tecer tantas críticas fundamentadas ao regime, agora passa-se a analisar a tributação do país sob o prisma do conceito de justiça apresentado por Johw Rawls, bem como qual a relação desta com o programa bolsa família.
Inicialmente, é preciso retomar que, segundo Rawls, as desigualdades existentes na sociedade devem, por força dos princípios da diferença e da equidade, ser utilizadas como mecanismo de distribuição dos ônus do Estado, privando em maior parte aqueles com mais recursos.49 Igualmente, Nigel e Murphy, em sua obra o Mito da propriedade, afirmam que a tributação, além de buscar a arrecadação para financiar as atividades do Estado, deve almejar a redução das desigualdades50 inerentes à sociedade.51
Assim, por essa teoria, o fenômeno da tributação deveria se dar com base na igualdade e justiça, sendo certo que, pelo critério da equidade,52 não é possível vislumbrar uma oneração que se paute em um conceito formalista de igualdade,53 na qual todos os contribuintes são compelidos a contribuir com os mesmo valores.
Pelo contrário, deve-se buscar a igualdade material, horizontal e vertical, em que os contribuintes são estratificados em classes, conforme sua capacidade contributiva,54 devendo aqueles com mais riquezas contribuírem mais para o Estado55 para que todos sejam privados de suas riquezas em níveis proporcionais semelhantes.
49 RAWLS, John. O direito dos povos. São Paulo, Martins Fontes, 2001. p. 155-156. 50 MURPHY, Liam; NAGEL, Thomas. O mito da propriedade – os impostos e a justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
p. 101-103. 51 Mais que isso, os autores revolucionam o prisma da tributação, que antes era vista como a oneração das posses do contribuinte,
para defenderem que, na verdade, a propriedade é a renda/patrimônio que resta após o fenômeno da tributação. Inclusive, a partir deste conceito, é possível desenvolver que não há direito pré-adquirido à propriedade, sendo esta conquistada somente após a tributação, sendo certo então que a oneração não poderá ser justa ou injusta com base nos valores retidos, mas sim conforme a distribuição destes ônus pela sociedade. (MURPHY, Liam; NAGEL, Thomas.Op cit. p. 11-12)
52 SEN, Amartya. A ideia de justiça. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 84-85. 53 “Assim, repetindo a velha formula aristotélica, podermos dizer que o princípio da igualdade fiscal exige o que é essencialmente
igual, seja tributado, igualmente, e o que é essencialmente desigual, seja tributado desigualmente na medida dessa desigualdade. (...) os contribuintes com a mesma capacidade contributiva pagarão os mesmos impostos (igualdade horizontal) e os contribuintes com diferente capacidade pagarão diferentes impostos, seja em termos qualitativos, seja em termos quantitativos (igualdade vertical).” (NABAIS, José Casalta. O dever fundamental de pagar impostos: contributo para a compreensão constitucional do estado fiscal contemporâneo. Coimbra: Almedina, 2004. p. 442-443.”
54 Vale ressaltar que alguns autores defendem que o constituinte entendeu a utilização do princípio da capacidade contributiva é direcionada, no ordenamento jurídico, ao momento de formulação da norma – escolha das hipóteses de incidência dos tributos, bem como no arbitramento de alíquotas progressivas ou seletivas – não sendo possível se analisar caso a caso a existência ou não da manifestação de poder econômico. Nesse sentido: BECKER, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tributário. 5. ed. São Paulo: Editora Noeses, 2010. p. 529-536.
55 “O Princípio da Igualdade adquire, nessa fase, o caráter positivo – dever de distinguir –para conceder tratamento menos gravoso àqueles que detêm menor capacidade econômica ou para distribuir rendas mais generosas às regiões mais pobres ou menos desenvolvidas no federalismo cooperativo. Princípios como progressividade ou seletividade servem às democracias que se dizem compromissadas com a igualdade e a justiça social.” (BALEEIRO, Aliomar. Limitações constituicionais ao poder de tributar. 8ª ed. Atualizada por Misabel Abreu Machado Derzi. Rio de Janeiro: Forense, 2010. p. 9 e 11)
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Isso porque, com a mudança do paradigma do Estado Social,56 em que se deixa de observar o fenômeno tributação como mera arrecadação/invasão do direito da propriedade do contribuinte para a entender como mecanismo de distribuição dos ônus estatais,57 o princípio da capacidade contributiva passa a ser o próprio fundamento da imposição, devendo estar presente em toda a pauta política constitucional fiscal do Estado.58
Dessa forma, a tributação tida como justa e adequada ao Estado Democrático de Direito é aquela qualificada como progressiva, que permita àqueles com maiores posses contribuírem mais para as atividades do Estado,59 ou melhor, efetuarem sacrifícios iguais àqueles mais pobres.
Mais que isso, constata-se uma espécie de dever geral de pagar tributos,60 haja vista que, no Estado Fiscal, a concreção dos direitos fundamentais a cargo do Poder Público está condicionada à arrecadação, sendo certo que o recolhimento não pode ser mais observado como um sacrifício econômico de uma parte da sociedade, mas sim como o pressuposto dessa coletividade.61
Então, sendo a tributação um mecanismo para a concreção de direitos fundamentais, por meio da arrecadação e redução das desigualdades, sua análise deve ser realizada a partir da realização de tais objetivos.62 Por essa razão que se defende a inadequação da
56 KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. 2ª ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 1978. p. 127 57 “(...) exige o princípio da justiça fiscal ancorado na regra da igualdade geral (Art.3 I GG) que os ônus fiscais sejam
distribuídos aos sujeitos passivos em proporção à capacidade contributiva econômica; (...) O reconhecimento do princípio da capacidade contributiva como princípio fundamental da justiça fiscal e consequentemente o mais elevado critério comparativo (Vergleischsmaβtab) de isonomia de encargos tributários (s. Rz. 76) vale-se de uma evolução de séculos.” (LANG e TIPKE. Direito tributário. Volume I. Tradução de: Luiz Dória Furquim. Porto Alegre: Fabris, 2008. 199-200)
58 Assim, entendem: BALEEIRO, Aliomar. Limitações constituicionais ao poder de tributar. 8ª ed. Atualizada por Misabel Abreu Machado Derzi. Rio de Janeiro: Forense, 2010. p. 9 e 11; LANG, Joachim e TIPKE, Klaus. Direito Tributário. Volume I. Tradução de: Luiz Dória Furquim. Porto Alegre: Fabris, 2008. p. 198; NABAIS, José Casalta. O dever fundamental de pagar impostos: contributo para a compreensão constitucional do estado fiscal contemporâneo. Coimbra: Almedina, 2004. p. 439-448; TORRES, Ricardo Lobo. O Princípio da Tipicidade no Direito Tributário. Revista de Direito Administrativo, v. 235, 2004. p. 193-232.
59 Perceba que é função do Estado, pelo marco teórico e argumentação até então desenvolvida, promover a redução das desigualdades, sendo certo que a tributação não é o único meio para tanto. Destacando-se os programas sociais como uma opção adequada também a concreção da finalidade estatal. (CARVALHO NETTO, Menelick. A contribuição do direito administrativo enfocado da ótica do administrado: para uma reflexão acerca dos fundamentos do controle de constitucionalidade das Leis no Brasil. Um pequeno exercício de teoria da constituição. Fórum Administrativo, Belo Horizonte, v. 1, n. 1, 2001. p. 11-20.)
60 “É que não podendo o estado dar (realizar prestações sociais), sem antes receber (cobrar impostos), facilmente se compreende que, quanto menos ele confiar na autorresponsabilidade dos cidadãos relativa à satisfação das suas necessidades(autossatisfação), mais se descura o princípio da subsidiariedade. (...) Pelo que, o dever de pagar impostos constitui um dever fundamental como qualquer outro, com todas as consequências que uma tal qualificação implica.” (NABAIS, José Casalta. O dever fundamental de pagar impostos: contributo para a compreensão constitucional do estado fiscal contemporâneo. Coimbra: Almedina, 2004. p. 185-186)
61 Nigel e Murphy aduzem que “a propriedade privada é uma convenção jurídica definida em parte pelo sistema tributário; logo, o sistema tributário não pode ser avaliado segundo seus efeitos sobre a propriedade privada, concebida como algo dotado de existência e validade independentes. Os impostos têm de ser avaliados como um elemento do sistema geral de direitos de propriedade que eles mesmos ajudam a criar” (MURPHY, Liam; NAGEL, Thomas.Op cit. p. 11-12). Igualmente, Nabais também afirma: “Noutros termos, o imposto não pode ser encarado, nem como um mero poder para o Estado, nem simplesmente como um mero sacrifício para os cidadãos, mas antes como o contributo indispensável a uma vida em comum e próspera de todos os membros da comunidade organizada em estado. Com efeito, um estado, para cumprir suas tarefas, tem de socorrer-se de recursos ou meios a exigir de seus cidadãos, constituindo justamente os impostos esses meios ou instrumentos de realização das tarefas estaduais.”. (NABAIS, José Casalta. O dever fundamental de pagar impostos: contributo para a compreensão constitucional do estado fiscal contemporâneo. Coimbra: Almedina, 2004. p. 185)
62 PIKETTY, Thomas. Op cit. p. 480-485.
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tributação sobre o consumo como mecanismo principal de financiamento do Estado, uma vez que, embora essa cumpra sua função arrecadatória, deixa a desejar quanto à redução das diferenças sociais, pois ignora o aspecto pessoal do contribuinte.63
Pautar-se a oneração no consumo, como faz o ordenamento jurídico brasileiro, pode gravar mais aquela parcela da população cuja renda é baixa, tendo em vista que esses utilizam seus rendimentos, em quase sua integralidade, para adquirir bens e serviços essenciais. Nesse sentido aponta a pesquisa disponibilizada pelo Instituo Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE):64
Assim, observe que quanto menos recebe uma família no Brasil, mais ela tende a gastar com o consumo de bens mercadorias e serviços, de forma que essa parcela menos abastada acaba sendo alvo certo do IPI, ICMS, PIS e COFINS. Exemplo disso, é que a unidade familiar cuja renda mensal de gire em torno de 1 salário-mínimo acaba por dispender quase a totalidade dos valores recebidos com o seu próprio consumo.65
Logo, os dados apresentados apenas reforçam que essa opção fiscal, além de não cumprir a função de reduzir as desigualdades, acaba por agravá-la, sendo impensável,
63 Aqui há de se ressaltar que o princípio da seletividade é utilizado como um dos mecanismos para atenuar esse problema, pois busca onerar produtos supérfluos ou de alto luxo. Contudo, remanesce a dificuldade de se distinguir os contribuintes quanto àquelas mercadorias tidas como essenciais e amplamente consumida tanto pela população mais carente como pela mais abastada. Mais que isso é de ressaltar que o objetivo da seletividade, em sua maioria, consiste em aumentar a tributação sobre determinado bem para desestimular o seu consumo, conforme ocorre com o álcool e cigarros, por exemplo, e não para diferenciar o arroz mais caro daquele mais barato, ou o filet mignon do coxão duro.
64 BRASIL. Ministério do Planejamento. IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa de orçamentos familiares 2008-2009 – POF. Rio de Janeiro, 2010. p. Disponível em http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/ liv45130.pdf Acesso em: 10/03/2017.
65 Outra conclusão relevante que se extraí da Pesquisa de Orçamentos familiares é de que quanto maior a renda mais a família poderá poupar ou investir seu dinheiro, o que conforme já alertado por Piketty, apenas agravará a desigualdade, pois as taxas de remuneração do capital são altíssimas, especialmente no Brasil. PIKETTY, Thomas. Op cit. p. 406-418
93,6 92 88,7
84,1 79,1 78,1
67,1
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em pleno Estado Democrático, fundado na equidade,66 que se inverta o princípio da diferença para beneficiar os contribuintes mais abastados.
Portanto, conclui-se que o fenômeno tributário é um meio para a finalidade do Estado, é um instrumento para se garantir aos cidadãos os seus direitos fundamentais, devendo, pelo princípio da diferença e da equidade, alcançar de forma mais intensa aqueles cuja capacidade contributiva revele-se maior.
Até o momento foram identificadas algumas premissas essenciais para a discussão quanto à relação do bolsa família e a tributação, quais sejam: (i) a tributação brasileira pauta-se na grandeza do consumo;67 (i) a oneração do consumo tem como efeito colateral ignorar os aspectos pessoais do contribuinte, de modo que a parcela mais pobre acaba por realizar sacrifícios maiores para arcar com os tributos.68
Nesse contexto, constatou-se, ainda, que a tributação do Brasil, por ser calcada primordialmente no consumo, tem como objetivo principal a arrecadação, esquecendo- se de outra fundamental função atribuída a este mecanismo que é o de reduzir as desigualdades.
Contudo, qual seria a relação do programa bolsa família com a tributação não equitativa que se observa no Brasil?
A Constituição Federal, encampando a doutrina da teoria da Justiça de John Rawls, optou por constituir um Estado garantista, em que, além de buscar a redução das desigualdades, ainda se obriga a prover a todos os brasileiros diversos serviços e direitos fundamentais, independentemente de sua posição na sociedade. Assim, retomando que a concreção desses direito representa um custo,69 a divisão desse ônus deveria ser realizada com base no primado da capacidade contributiva.
Entretanto, conforme exposto, o que se observa é exatamente o contrário, o Estado onera mais aqueles com menos recursos, tendo em vista a predileção pela base do consumo. Nesse sentido, não existindo a concreção das funções da tributação, bem como tendo em vista a inércia do Poder Legislativo sobre o tema,70 as políticas sociais surgem como mecanismo de compensação da regressividade e desigualdade.
66 RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Tradução de Almiro Pisetta, Lenita Maria Rimoli Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 13
67 Ver item 3.2 do presente artigo. 68 Ver item 4.1 do presente artigo. 69 Sobre o tema, Gilmar Mendes assevera: “Embora os direitos sociais, assim como os direitos e liberdades individuais,
impliquem tanto direitos a prestações em sentido estrito (positivo) quanto direitos de defesa (negativos), e ambas as dimensões demandem o emprego de recursos públicos para sua garantia (...). ” (MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional.7ª ed. São Paulo, Saraiva, 2012. p. 677.)
70 Misabel Derzi destaca um silêncio sobre o tema, tendo em vista que os próprios prejudicados, a população mais pobre, sequer percebe o prejuízo a que se submetem. (DERZI, Misabel Abreu Machado. Guerra fiscal, Bolsa Família e silêncio (relações efeito e regressividade). Revista Jurídica da Presidência. Brasília, vol. 16, n. 108, 2014.p. 39-64)
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Noutros termos, os programas sociais representam o instrumento encontrado pelo Estado para que na sociedade todos possuam o chamado mínimo existencial, haja vista que a tributação local, por critérios de comodidade e facilidade na arrecadação,71 não cumpre tal função.
Perceba que não se defende que o único fundamento para a necessidade de tais projetos assistencial seja a tributação, pelo contrário, a própria Constituição Federal72 defendeu a redução de desigualdade como um objetivo do Estado:
“Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.”
Aduz-se, ao revés, que o aspecto tributário apenas reforça o dever constitucional. Contudo, é preciso destacar que o programa bolsa família, embora realize a transferência direta de renda, ainda não é suficiente para a concreção do objetivo estatal, e aqui, reside a sua principal relação com a tributação.
Isso porque, embora os beneficiários recebam um numerário significante frente a sua renda, essa transferência configurara mero retorno da tributação indevida. Explica-se, tendo em vista que o princípio da capacidade contributiva é o orientador da justa imposição,73 há a necessidade de evitar-se a tributação de atos desprovidos de capacidade econômica, sendo o consumo quando efetuado exclusivamente para a subsistência desprovido de qualquer relevância econômica.
Exemplificando, embora a Lei Nº 12.839/2013 tenha reduzido a zero a alíquota do PIS, da COFINS e do IPI incidentes sobre alguns produtos da cesta básica], os outros continuam a ser tributados, bem como os Estados em geral permanecem a cobrar o ICMS sobre essas operações.74 Inclusive não há como condenar os Estados da Federação75 por não desonerarem tais mercadorias, até porque sua fonte de custeio
71 GASSEN, Valcir. Matriz tributária: uma perspectiva para pensar o estado, a constituição e a tributação no Brasil. Revista dos Tribunais. São Paulo. v. 935, p 243-266, 2013.
72 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Organização de Alexandre de Moraes. 16.ed. São Paulo: Atlas, 2000.
73 LANG, Joachim e TIPKE, Klaus. Direito tributário. Volume I. Tradução de: Luiz Dória Furquim. Porto Alegre: Fabris, 2008. p. 198
74 É verdade que alguns estados reduziram as alíquotas, outros zeraram, mas em regra, há a tributação desses produtos. 75 Misabel Derzi discorda dessa posição. A autora afirma que os Governadores ao se envolverem na Guerra Fiscal escancaram que
o problema não é a falta de recursos, mas sim a falta de planejamento: “O silêncio do Bolsa Família quanto à regressividade do sistema tributário é um sintoma geral de desconhecimento que obscurece os males da concorrência tributária e seus efeitos. Quando os governadores dos estados das regiões mais pobres do País levantam o argumento de que precisam lutar por investimentos e empregos, se esquecem de dizer aos cidadãos pobres de seu estado que, como consequência do aumento das isenções e benefícios tributários para alguns, perderão receita e, necessitando manter os mesmos níveis de arrecadação para atender os serviços públicos essenciais, deverão elevar o ICMS para todos, especialmente incidente sobre o consumo dos alimentos, dos medicamentos, dos combustíveis, da energia e da comunicação. Tais medidas penalizarão
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principal reside no ICMS, razão pela qual a redução da arrecadação poderá gerar consequências financeiras preocupantes, dada a crise que assola esses entes da Federação.76
Desse modo, pontuando que nem todos os bens adquiridos para a subsistência integram a cesta básica, o beneficiário é contribuinte, e, em algumas hipóteses, tem uma parte significativa de sua renda revertida aos cofres públicos. Isto é, embora receba um valor a título de transferência de renda direta, o assistido é compelido a devolver parte dessa quantia ao próprio Estado pela via da tributação.77
Conforme exposto nos capítulos anteriores, quanto menor a renda mais esta é revertida para o consumo imediato. Dessa forma, sendo a tributação sobre o consumo a opção legislativa brasileira, tem-se que os menos abastados observam grande parte de sua renda ser revertida aos cofres públicos mesmo sem possuírem capacidade contributiva para tanto.
O Programa bolsa-família, então, é mitigado pela própria tributação que, por não atender a suas funções essenciais, tende a elevar as disparidades econômicas encontradas no Brasil. Ou melhor, o bolsa-família pode ser considerado mera devolução do tributo sobre o consumo arrecadado de seus beneficiários sem a verificação da expressão de qualquer poderio econômico.78 Há uma relação de autofinanciamento entre essa tributação em tese indevida e o benefício recebido.
Nesse sentido, retomando aos ensinamentos de Rawls, pelo princípio da diferença, a tributação brasileira não poderia ser classificada como justa, uma vez que a redução da desigualdade não se vale do critério orientador da privação daqueles com mais riquezas.
Assim, o Bolsa Família é um beneficio que não se justifica tão somente como programa assistencial (princípio do mínimo existencial), mas sim como um mecanismo de balanço dos problemas encontrados na matriz tributária brasileira, isto é, uma deficiência na distribuição dos ônus do Estado, e por consequência, da própria, justiça pela tributação.
A título de direito comparado, o Brasil deveria olhar para o exemplo do Canadá no que se refere à regressividade da tributação sobre o consumo. Neste país, o legislador, percebendo os malefícios dessa oneração sobre a população pobre, instituiu espécie de devolução dos tributos cobrados sobre o consumo quando o cidadão for qualificado como de baixa renda.79
exatamente os mais pobres. DERZI, Misabel Abreu Machado. Guerra fiscal, Bolsa Família e silêncio (relações efeito e regressividade). Revista Jurídica da Presidência. Brasília, vol. 16, n. 108, 2014.p. 39-64
76 Sobre a crise financeira dos Estados da Federação, ver o Projeto de Lei Complementar 343/2017: BRASIL, Câmara dos Deputados. Projeto de Lei Complementar Nº 343/2017. Disponível em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/ fichadetramitacao?idProposicao=2124451 Acesso em: 13/06/2017.
77 DERZI, Misabel Abreu Machado. Guerra fiscal, Bolsa Família e Silêncio (relações efeito e regressividade). Revista Jurídica da Presidência. Brasília, vol. 16, n. 108, 2014.p. 39-64
78 Ibidem. 79 Para aprofundamento no benefício ver: GODOI, Marciano Seabra. Tributação do consumo e efeitos redistributivos:
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Por via transversa, o Bolsa Família adquire tal finalidade, mas sem ser eficaz aos demais cidadãos que também possuem renda baixíssima, mas não o suficiente para serem beneficiários da política pública. O problema, então, é, em sua grande parte, legislativo. Falta ao Congresso uma maior atenção com as implicações e consequências das escolhas tributárias.
Portanto, conclui-se que o Bolsa Família é um programa voltado para a redução das disparidades econômicas, cuja legitimidade reside não somente no dever constitucional de erradicação da pobreza, mas também na própria estrutura tributária do país que, por ser demasiadamente regressiva, exige uma contrapartida à população menos abastada como forma de evitar o aumento constante e desenfreado da desigualdade no país.
Constatou-se que a tributação brasileira é regressiva, ou seja, onera, em termos relativos, por demais aqueles cidadãos que compõe a parcela mais pobre da população em detrimento daqueles com maiores riquezas.
Ademais, percebeu-se que a consequência última dessa opção legislativa é que o próprio Estado reforça a estrutura desigual da sociedade brasileira, ao invés de fazer uso da tributação como mecanismo de redução das diferenças. Ou seja, a tributação brasileira não pode, no conceito de justiça trabalhado por John Rawls, ser classificada como justa, haja vista que o princípio da diferença – isto é, a repartição dos ônus sociais de forma a e reduzir as desigualdades – não é observado pela legislação local.
Assim, enquanto essa característica não for devidamente tratado no âmbito do Poder Legislativo, a criação de políticas sociais que minimizem a desigualdade será essencial, pois, do contrário, o passar dos anos apenas levará a ampliação do abismo entre o capital detido pela população mais rica e aquela mais pobre, criando um ambiente insustentável.
Nesse cenário, o Programa Bolsa Família, além de buscar efetivar os direitos dispostos na Constituição Federal, ainda se presta a equilibrar as mazelas da tributação para essa parcela da população tão vulnerável. Ou seja, embora o benefício não tenha sido pensado sob a ótica da tributação, esse desempenha função relevante na concreção de um dos objetivos do Estado Moderno que é a distribuição dos ônus de acordo com a capacidade contributiva de cada um de seus integrantes.
Reflexamente, a tributação é fator de mitigação do benefício, uma vez que, conforme exposto, a intenção do legislador ao criar o programa era concretizar a ideia de mínimo existencial, sendo a matriz tributária um mecanismo de redução do efetivo
alíquotas reduzidas conforme a essencialidade dos produtos/serviços (seletividade) versus alíquotas uniformes com transferências financeiras (refundable tax credits) para famílias de baixa renda In Caderno de Finanças Públicas. Brasília, n. 16, p. 311-332, dez. 2016.
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numerário disponível aos assistidos. Noutros termos, o programa é autofinanciado pelos tributos incidentes sobre o consumo pagos por seus próprios beneficiários.
Portanto, o Bolsa Família, além de ser instrumento de redistribuição de renda, e por consequência de redução das desigualdades, é mecanismo de balanço da tributação deficiente encontrada no país, sendo, assim, o meio utilizado para se compensar a parcela mais carente da sociedade pelas mazelas da regressividade da matriz tributária brasileira.
ALVES, Henrique Napoleão. Tributação e injustiça social no Brasil. Revista Espaço Acadêmico, v. 133, junho de 2012, p. 69-78, 2012.
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