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Não se pode negar o papel do Estado como sujeito promotor do desenvolvimento econômico e da geração de emprego. Para a consecução destes fins diversos são os mecanismos que podem ser utilizados pelos entes públicos, dentre os quais destacam-se as isenções tributárias, espécie do gênero benefícios fiscais, e cuja consequência imediata pode ser o desequilíbrio orçamentário.

A Constituição Federal não previu iniciativa exclusiva para o processo legislativo que concede medida isentiva, de forma que tanto o poder executivo quanto o poder legislativo podem deflagrar espécies normativas que visem a concessão do benefício.

Entretanto, o instituto possui disciplina própria, tanto no âmbito constitucional quanto infraconstitucional. A preocupação com os malefícios de ordem fiscal que podem ser provocados pela concessão das isenções levou inclusive à positivação de regras de responsabilidade fiscal a serem observadas na proposição de leis isencionais.

Neste artigo procuraremos analisar a concessão das isenções sob o aspecto da responsabilidade fiscal, fazendo uma abordagem sobre as consequências da inobservância das regras que norteiam o processo legislativo.

Para tanto, inicialmente faremos uma breve análise sobre as teorias que procuram conceituar o instituto da isenção, bem como sobre as disposições constitucionais que regem o instituto.

Em seguida analisaremos os aspectos infraconstitucionais que regem as isenções tributárias, analisando primeiramente as disposições do Código Tributário Nacional e em seguida a legislação que prescreve os mecanismos de responsabilidade fiscal.

Por fim, tomaremos emprestado do Direito Administrativo os estudos relacionados com a teoria do abuso do poder, buscando verificar a sua aderência e aplicabilidade no âmbito do processo legislativo isencional, com o fito de caracterizar as práticas nas quais sejam concedidas isenções tributárias sem a adoção das prescritas medidas de responsabilidade fiscal.

Muitas são as teorias e construções científicas que procuraram explicar e conceituar o fenômeno das isenções tributárias. Estas teorias, desenvolvidas principalmente por Rubens Gomes de Sousa, José Souto Maior Borges e Paulo de Barros Carvalho, dentre outros, abordam o instituto sob os mais variados aspectos, cujas conclusões apresentamos a seguir. maior envergadura.

Uma primeira abordagem, mais tradicional, defendida por Rubens Gomes de Sousa e outros, define a isenção como um “favor fiscal concedido por lei, que consiste

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em dispensar o pagamento de um tributo devido”1 Em uma crítica à teoria, Paulo de Barros Carvalho afirma que ela “traduz, na verdade, uma cadeia de expedientes imaginativos, para amparar uma inferência absurda e contrário ao mecanismo da dinâmica normativa.2

Aprofundando as discussões acerca do instituto, José Souto Mario Borges defendia que as isenções seriam hipóteses de não-incidência legalmente qualificadas, tendo em vista que “não há incidência da norma jurídica e, portanto, não ocorre o nascimento do tributo. Para este autor, a norma isentiva incide justamente para que a norma tributária não possa incidir”.3

Ainda tecendo críticas à teoria que define a isenção como hipótese de não-incidência legalmente qualificada, mas já demonstrando uma aproximação com a teoria que viria a ser proposta, Paulo de Barros Carvalho4 afirma que aquela “padece do vício da definição pela negativa e não explica como se dá a harmonização com a norma de incidência tributária, ainda que saibamos que nos fundamentos dessa ideia repouse a presteza da regra de isenção, que se antecipa à de tributação, para impedir que, de fato, exsurja o dever de recolhimento do tributo”.

Por fim, o próprio Paulo de Barros Carvalho construiu a sua própria definição para o instituto da isenção. Partindo dos conceitos de norma de estrutura e de normas de conduta, afirma que “as normas de isenção pertencem à classe das regras de estrutura, que introduzem modificações no âmbito da regra-matriz de incidência tributária, esta sim, norma de conduta”,5 e dessa forma concretiza sua teoria ao afirmar que “a regra de isenção investe contra um ou mais dos critérios da norma-padrão de incidência, mutilando-os, parcialmente”.6

Em síntese, após abordar todas as teorias que procuram explicar o fenômeno das isenções, Roque Antonio Carraza7 assevera que os conceitos de José Souto Maior Borges e de Paulo de Barros Carvalho tratam da isenção por ângulos diferentes, e dessa forma não se excluem, se complementam.

Apesar das diversas teorias apresentadas, o judiciário tem adota a posição no sentido de classificar a isenção tributária como favor fiscal, fazendo prevalecer no âmbito jurisprudencial os ensinamentos de Rubens Gomes de Sousa.

No plano do Direito Tributário Positivo a isenção, juntamente com a anistia, constitui hipóteses de exclusão do crédito tributário. Sob o prisma fiscal, a isenção é espécie do gênero benefício tributário, do qual também fazem parte a remissão,

1 SOUSA, Rubens Gomes. Compência de Legislação Tributária. Sâo Paulo: Resenha Tributária, 1975, p. 97.2 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 479.3 CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 942.4 CARVALHO, op. cit., p. 481.5 Ibid., p. 482.6 Ibid., p. 483.7 CARRAZZA, op. cit. p. 950.

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o subsídio, o crédito presumido, a alteração de alíquota, a modificação da base de cálculo, e qualquer outro benefício que provoque renúncia de receita.

Quanto ao conceito de renúncia fiscal, Ives Gandra8 assevera que “a renúncia fiscal consiste, pois, na dispensa de impostos e é realizada sob promessa de retorno em forma de empregos, valendo ressaltar que, às vezes, tal não ocorre. A uma, porque isto não tem sido comprovado satisfatoriamente pela corporação governamental responsável pela concessão de tal benefício. A duas, pelo prejuízo causado ao financiamento de políticas públicas nos serviços essenciais, visando a atender as demandas da sociedade”.

A Constituição Federal de 1988 trata da isenção e de outros benefícios tributários em vários dos seus dispositivos, de forma que é plenamente plausível falar na existência de um regime constitucional dos benefícios tributários, chamados em muitos momentos de incentivos tributários, benefícios fiscais, dentre outras definições.

A concessão de isenções tributária está subordinada a diversos princípios constitucionais, alguns explícitos e outros trazidos à lume pela doutrina e pela jurisprudência. Estes princípios possuem fundamento em duas ideias básicas, a de justiça e a de segurança jurídica. Fundamentam-se na ideia de justiça os princípios da capacidade contributiva, economicidade e desenvolvimento econômico. Já os princípios da legalidade, anterioridade e transparência orçamentária estão lastreados na ideia de segurança jurídica.9

Se sob a ótica da tributação o tributo deve ser exigido daquele que possui a capacidade econômica de suportar o encargo, na vertente das isenções tributárias observa-se que o benefício tributário deve ser concedido “a quem não tenha capacidade econômica para suportar o tributo”,10 de forma que a contrario sensu isenção concedida a quem pode suportar o tributo fere o aludido princípio.

O princípio da economicidade está vinculado à ideia de se “obter o maior proveito com o menor gasto”.11 Em outras palavras, ao aplica-lo à temática das isenções, exige-se que elas sejam concedidas para promover um maior resultado com o menor emprego de recursos.

Já o desenvolvimento regional, outro princípio fundamentado na ideia de justiça, exige que a concessão da isenção promova o crescimento econômico nacional e contribua para o equilíbrio econômico entre as regiões do país.

8 MARTINS, Ives Gandra da Silva; NASCIMENTO, Carlos Valder (Orgs.). Comentários à Lei de Responsabilidade Fiscal. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014. P. 139

9 TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário. 16ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2009.10 Ibid., p. 308. 11 Ibid., p. 309.

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Fundamentado na ideia de segurança jurídica temos que pelo princípio da legalidade as isenções somente podem ser concedidas por lei formal do ente tributante e desde que tenha sido votada pelo poder legislativo.

O princípio da anterioridade, também fundado na ideia de segurança jurídica, não se aplica às isenções quando a sua observância no momento da concessão, mas sim no momento da sua revogação. De forma que, a depender da isenção concedida, a lei que a revoga somente poderá entrar em vigor no exercício financeiro seguinte.

Por fim, e não menos importante, o princípio da transparência prescreve que o impacto regionalizado das isenções e outros benefícios tributários, devem ter seus efeitos sobre a receita e a despesa demonstrados, acompanhando o orçamento.

Ainda sobre o princípio da transparência é importante destacar o alerta feito por Ricardo Lobo Torres, para quem “a isenção não pode mais ser concedida ocultamente, sem a mensuração dos seus efeitos sobre o Tesouro”.12 Como se verá adiante, além da sua demonstração, pode ser necessário também a instituição de uma medida de compensação.

O constituinte originário criou assim um verdadeiro regime jurídico constitucional acerca da concessão de benefícios fiscais prescrevendo a forma de concessão, a finalidade para a qual deve ser concedida e as diretrizes a serem observadas no processo legislativo de trate da matéria.

O que se objetiva ao se conceder uma isenção ou qualquer outro incentivo fiscal é a promoção do desenvolvimento econômico de um determinado setor ou região mediante a geração de emprego e tem como consequência imediata uma redução na arrecadação tributária devida pelos contribuintes dos tributos cuja isenção afeta.13

É o que pode se depreender do Art. 4314 da Carta Magna, a seguir transcrito:

Art. 43. Para efeitos administrativos, a União poderá articular sua ação em um mesmo complexo geoeconômico e social, visando a seu desenvolvimento e à redução das desigualdades regionais. (...) § 2º Os incentivos regionais compreenderão, além de outros, na forma da lei: (...) III - isenções, reduções ou diferimento temporário de tributos federais devidos por pessoas físicas ou jurídicas; (...)

Quanto à forma de concessão da isenção, a Constituição prescreve norma destinada àquele que inicia o processo legislativo, exigindo que a isenção seja concedida por meio de lei específica e que trate exclusivamente da matéria, é o que diz o §6º do seu Art. 150.15

12 TORRES, 2009, p. 310.13 MARTINS, 2014. p. 140.14 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em <http://www.planalto.

gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em: 17 abr. 2016.15 BRASIL, 1988.

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Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: (...) § 6º Qualquer subsídio ou isenção, redução de base de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou remissão, relativos a impostos, taxas ou contribuições, só poderá ser concedido mediante lei específica, federal, estadual ou municipal, que regule exclusivamente as matérias acima enumeradas ou o correspondente tributo ou contribuição, sem prejuízo do disposto no Art. 155, § 2.º, XII, g. (Redação dada pela Emenda Constitucional Nº 3, de 1993)

A concessão de isenções está diretamente relacionada à competência tributária atribuída ao ente político, de forma que não pode um ente conceder isenção relativa a tributo cuja competência tributária não foi a si atribuída.

Neste sentido, é vedado à União instituir isenções de tributos da competência dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios, é o que determina o inciso III do Art. 151 da Carta Magna.

Ao atribuir aos Estados e ao Distrito Federal a competência tributária para instituição do imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, o constituinte instituiu também regramento a ser observado na concessão e revogação dos incentivos e benefícios fiscais, exigindo que lei complementar regule a forma como deverão ser feitos, prescrevendo também a necessidade de deliberação dos Estados.16 Estas diretrizes estão previstas no Art. 155, como se vê:

Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre: (Redação dada pela Emenda Constitucional Nº 3, de 1993) (...) II - operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior;(Redação dada pela Emenda Constitucional Nº 3, de 1993) (...) § 2º O imposto previsto no inciso II atenderá ao seguinte: (Redação dada pela Emenda Constitucional Nº 3, de 1993) II - a isenção ou não-incidência, salvo determinação em contrário da legislação: a) não implicará crédito para compensação com o montante devido nas operações ou prestações seguintes; b) acarretará a anulação do crédito relativo às operações anteriores; (...) XII - cabe à lei complementar:(...) g) regular a forma como, mediante deliberação dos Estados e do Distrito Federal, isenções, incentivos e benefícios fiscais serão concedidos e revogados.(...)

Prescrição análoga é trazida pelo inciso III do §3º do Art. 156, que ao atribuir aos municípios a competência tributária para instituição do imposto sobre serviços

16 No plano infraconstitucional a Lei Complementar a que se refere o dispositivo é a de Nº 24, de 7 de Janeiro de 1975, que dispõe sobre os convênios para a concessão de isenções do imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias, e dá outras providências.

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de qualquer natureza, exige de modo semelhante a regulação da forma e condições de concessão e revogação das isenções, incentivos e benefícios fiscais, por meio de Lei Complementar.

Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre: (...) III - serviços de qualquer natureza, não compreendidos no Art. 155, II, definidos em lei complementar.(Redação dada pela Emenda Constitucional Nº 3, de 1993) (...)§ 3º Em relação ao imposto previsto no inciso III do caput deste artigo, cabe à lei complementar:(Redação dada pela Emenda Constitucional Nº 37, de 2002) (...) III - regular a forma e as condições como isenções, incentivos e benefícios fiscais serão concedidos e revogados.(Incluído pela Emenda Constitucional Nº 3, de 1993) (...)

Demonstrando preocupação com o efeito da concessão de isenções, anistias, remissões, subsídios e benefícios de natureza financeira, tributária e creditícia, o Art. 165 da Constituição determina que o projeto de lei orçamentária deve estar acompanhado de demonstrativo regionalizado do efeito daqueles benefícios sobre as receitas e despesas.

Art. 165. Leis de iniciativa do Poder Executivo estabelecerão: (...) § 6º O projeto de lei orçamentária será acompanhado de demonstrativo regionalizado do efeito, sobre as receitas e despesas, decorrente de isenções, anistias, remissões, subsídios e benefícios de natureza financeira, tributária e creditícia.(...)

Além das disposições constitucionais acima, a Carta Magna determina no inciso III do Art. 146, que cabe à Lei Complementar estabelecer sobre normas gerais em especial aquela que trata do crédito tributário, dentro do qual se inserem as isenções tributárias. A norma geral a que alude o dispositivo é o Código Tributário Nacional, cujo regramento dado às isenções será analisado a seguir.

O Código Tributário Nacional - CTN, Lei 5.172, de 25 de outubro de 1966,17 recepcionado pela Constituição Federal de 1988 como Lei Complementar, também trata das isenções tributárias em diversos dispositivos.

No Art. 176 do CTN temos a reafirmação da regra constitucional de que a concessão de isenções deve ser feita por meio de lei, ainda quando prevista em contrato. O dispositivo traz a lume também a possibilidade de concessão das isenções por prazo determinado ou indeterminado, sendo que em qualquer hipótese,

17 BRASIL. Lei 5.172, de 25 de Outubro de 1966. Dispõe sobre o Sistema Tributário Nacional e institui normas gerais de direito tributário aplicáveis à União, Estados e Municípios. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L5172.htm>. Acesso em: 30 nov. 2016.

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também a lei deve estabelecer as condições e os requisitos para a concessão das isenções tributárias.

A citação feita pelo dispositivo às isenções previstas em contrato diz respeito àqueles “casos em que governos que tentam atrair investimento para o seu território fazem um acordo com empresas, segundo o qual o Poder Público se compromete a conceder benefícios fiscais para as entidades que se instalem em seu território”18. Também nestes casos, a isenção sempre dependerá de lei, é o que determina o dispositivo.

Também é possível que na concessão da isenção, e levando em conta situações peculiares e certas condições, ela seja aplicada apenas a uma determinada região do território do ente tributante.

Quanto às espécies tributárias abrangidas pela isenção, o Art. 177 do CTN determina que ela não se estende às taxas e contribuições de melhoria, e nem aos tributos instituídos posteriormente à sua concessão.

Entretanto, é possível que a lei concessiva da isenção também abranja outras espécies tributárias, isso em virtude da expressão “salvo disposição de lei em contrário”, que permite à lei dar tratamento diverso daquele esposado pelos incisos.

Tema objeto de muitas discussões é o que diz respeito à revogação das isenções, matéria disciplinada no Art. 178. De acordo com este dispositivo as isenções podem ser revogadas ou modificadas a qualquer tempo, exceto quando concedidas por prazo certo e em virtude de determinadas condições. O tema foi inclusive objeto da súmula 544 do Supremo Tribunal Federal.

As isenções concedidas por prazo certo e em função de determinadas condições são definidas como isenções onerosas pois além do bônus da dispensa legal do tributo trazem consigo determinado ônus que funciona como condição para o gozo da isenção.19 Não se deve confundir a revogação da lei que concede a isenção com a revogação da própria isenção. A lei que veicula a isenção é revogável, mas a isenção em si não o é.20

A lei que revoga ou modifica a isenção, exceto quando dispuser de maneira mais benéfica, entra em vigor no primeiro dia do exercício seguinte ao da sua publicação.

Quanto à forma de concessão da isenção, o Art. 179 prescreve que ela pode ser concedida tanto em caráter geral quanto em caráter individual. No primeiro caso não há a necessidade de comprovação de qualquer cumprimento por parte do sujeito passivo. Já nas isenções concedidas em caráter individual, ela só se efetiva através do despacho da autoridade administrativa em requerimento no qual o sujeito passivo

18 ALEXANDRE, Ricardo. Direito Tributário Esquematizado. São Paulo: Método, 2012, p. 470. 19 ALEXANDRE, 2012.20 SABBAG, Eduardo. Manual de Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2015.

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prove preencher os pressupostos legais exigidos para a concessão o benefício. E caso se trate de tributo lançado em período certo de tempo, antes da expiração de cada período o sujeito passivo deve formular requerimento que será objeto de novo despacho concessivo, de forma que isenção cessará automaticamente no caso de o sujeito passivo deixar de solicitar o reconhecimento da isenção. Por fim, alerta-se que o despacho exarado pela autoridade administrativa não gera direito adquirido à isenção.

Além das prescrições de ordem tributária, a concessão de isenções deve ser feita de forma transparente a sob o manto da responsabilidade fiscal. A seguir abordaremos as disposições de ordem fiscal que norteiam a concessão da benesse tributária.

Sob o aspecto orçamentário, a Constituição Federal de 1988 não previu expressamente o princípio do equilíbrio orçamentário, de acordo com a qual receitas e despesas devem ser equalizadas na lei anual, entretanto o induziu em inúmeros dispositivos.21

Não se pode negar o papel que as isenções tributárias exercem no estímulo ao desenvolvimento regional e às cadeias produtivas de determinados setores. Entretanto, considerando o seu efeito imediato, que é a renúncia fiscal, a concessão dessas benesses deve ser feita com observância da responsabilidade fiscal, tendo em vista o impacto que provocam no orçamento público, gerando reflexos no equilíbrio orçamentário induzido pelo constituinte.

Quanto à disciplina da Responsabilidade Fiscal na concessão das isenções tributárias, a edição da Lei Complementar 101, de 4 de maio de 2000, trouxe a lume regramento de observância obrigatória pelos titulares do poder de deflagração do processo legislativo.

O Artigo 1422 do diploma prescreve algumas condições que devem ser observadas quando da concessão ou ampliação de incentivo ou benefício de natureza tributária, cuja consequência seja a renúncia de receita.

21 TORRES, 2009, p. 124.22 Art. 14. A concessão ou ampliação de incentivo ou benefício de natureza tributária da qual decorra renúncia de receita

deverá estar acompanhada de estimativa do impacto orçamentário-financeiro no exercício em que deva iniciar sua vigência e nos dois seguintes, atender ao disposto na lei de diretrizes orçamentárias e a pelo menos uma das seguintes condições: (Vide Medida Provisória Nº 2.159, de 2001) (Vide Lei Nº 10.276, de 2001)I - demonstração pelo proponente de que a renúncia foi considerada na estimativa de receita da lei orçamentária, na forma do Art. 12, e de que não afetará as metas de resultados fiscais previstas no anexo próprio da lei de diretrizes orçamentárias; II - estar acompanhada de medidas de compensação, no período mencionado no caput, por meio do aumento de receita, proveniente da elevação de alíquotas, ampliação da base de cálculo, majoração ou criação de tributo ou contribuição. § 1o A renúncia compreende anistia, remissão, subsídio, crédito presumido, concessão de isenção em caráter não geral, alteração de alíquota ou modificação de base de cálculo que implique redução discriminada de tributos ou contribuições, e outros benefícios que correspondam a tratamento diferenciado.§ 2o Se o ato de concessão ou ampliação do incentivo ou benefício de que trata o caput deste Artigo decorrer da condição contida no inciso II, o benefício só entrará em vigor quando implementadas as medidas

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Esta compreende os institutos da anistia, remissão, subsídio, crédito presumido, concessão de isenção em caráter não geral, redução de tributo através de alteração de alíquota ou modificação de base de cálculo, bem como qualquer outro benefício que correspondam a tratamento diferenciado.

Analisando o dispositivo sobre o prisma da classificação das normas propostas por Paulo de Barros Carvalho, fica claro que trata-se de uma verdadeira norma de estrutura, que são aquelas “que prescrevem o relacionamento que as normas de conduta devem manter entre si, dispondo também sobre sua produção e acerca das modificações que se queiram introduzir nos preceitos existentes, incluindo-se a própria expulsão de regras do sistema (ab-rogação)”.23

Por outro lado, quanto à lei que concede a isenção, concordamos com Liziane Meira Angelotti, para quem “as regras isentivas são regras de comportamento e não de estrutura”.24

Uma condição obrigatória para a concessão ou ampliação de benefício tributário é que o instrumento instituidor da medida traga a estimativa do impacto orçamentário-financeiro no exercício em que a benesse entre em vigor e também nos dois exercícios seguintes, bem como o atendimento ao que dispuser a lei orçamentária.

Além da estimativa de impacto, mera previsão numérica da renúncia fiscal, a Lei de Responsabilidade Fiscal determina também que o proponente deverá obedecer uma de duas condições.

A primeira, que o proponente demonstre que a lei orçamentária já considera a renúncia tributária concedida ou ampliada, e de que não afeta as metas de resultados fiscais previstas no anexo específico da Lei de Diretrizes Orçamentárias – LDO.

A outra condição é aquela que a doutrina chama de medida compensatória. Trata-se de compensar a renúncia tributária promovida através da concessão ou ampliação do benefício, com um aumento de receita decorrente da elevação de alíquotas, ampliação da base de cálculo, majoração ou criação de tributo ou contribuição.

No mesmo sentido, as leis de diretrizes orçamentárias, que de acordo com o §2º do Art. 165 da Constituição Federal possuem como uma de suas funções as de orientar a elaboração da lei orçamentária anual e dispor sobre as alterações na legislação tributária, trazem em seus textos prescrições análogas às contidas no Art. 14 da lei complementar Nº 101 de 2000.

referidas no mencionado inciso. § 3o O disposto neste Artigo não se aplica: I - às alterações das alíquotas dos impostos previstos nos incisos I, II, IV e V do Art. 153 da Constituição, na forma do seu § 1º; II - ao cancelamento de débito cujo montante seja inferior ao dos respectivos custos de cobrança.

23 CARVALHO, 2002. p. 482.24 MEIRA, Liziane Angelotti. Tributos sobre o Comércio Exterior. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 201.

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Como exemplo, pode-se verificar a Lei 13.242/2015, Lei de Diretrizes Orçamentárias25 para o ano de 2016, cujo capítulo VIII trata da adequação orçamentária das alterações na legislação, do qual transcrevemos dispositivos pertinentes.

Art. 113. As proposições legislativas e respectivas emendas, conforme Art. 59 da Constituição Federal, que, direta ou indiretamente, importem ou autorizem diminuição de receita ou aumento de despesa da União, deverão estar acompanhadas de estimativas desses efeitos no exercício em que entrarem em vigor e nos dois subsequentes, detalhando a memória de cálculo respectiva e correspondente compensação, para efeito de adequação orçamentária e financeira e compatibilidade com as disposições constitucionais e legais que regem a matéria. (...) § 14. Fica dispensada a compensação de que trata o caput para proposições cujo impacto seja irrelevante, assim considerado o limite de 0,001% (um milésimo por cento) da Receita Corrente Líquida verificada no exercício anterior ao do início de tramitação da proposta no Poder Legislativo. § 15. O conjunto das proposições aprovadas com base no § 14 deste Artigo não poderá ultrapassar a 0,01% (um centésimo por cento) da Receita Corrente Líquida implícita na Lei Orçamentária do exercício em que ocorreu a aprovação.26 (...) Art. 114. Somente será aprovado o projeto de lei ou editada a medida provisória que institua ou altere receita pública quando acompanhado da correspondente demonstração da estimativa do impacto na arrecadação, devidamente justificada. § 1º A criação ou alteração de tributos de natureza vinculada será acompanhada de demonstração, devidamente justificada, de sua necessidade para oferecimento dos serviços públicos ao contribuinte ou para exercício de poder de polícia sobre a atividade do sujeito passivo. § 2º A concessão ou ampliação de incentivos ou benefícios de natureza tributária, financeira, creditícia ou patrimonial, destinados à região do semiárido incluirão a região norte de Minas Gerais. § 3º As proposições que tratem de renúncia de receita, ainda que sujeitas a limites globais, devem ser acompanhadas de estimativa do impacto orçamentário-financeiro e correspondente compensação, consignar objetivo, bem como atender às condições do Art. 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal. § 4º Os projetos de lei aprovados ou medidas provisórias que resultem em renúncia de receita em razão de concessão ou ampliação de incentivo ou benefício de natureza tributária, financeira, creditícia ou patrimonial, ou que vinculem receitas a despesas, órgãos ou fundos, deverão conter cláusula de vigência de, no máximo, cinco anos. (grifos nossos)

Numa demonstração de preocupação com a responsabilidade fiscal e com o impacto orçamentário decorrente da instituição de benefícios tributários ou outras

25 BRASIL. Lei Nº 13.242, de 30 de dezembro de 2015. Dispõe sobre as diretrizes para a elaboração e execução da Lei Orçamentária de 2016 e dá outras providências. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13242.htm>. Acesso em 8 nov. 2016.

26 BRASIL, 2015.

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medidas que importem em renúncia de receita, o Congresso Nacional também buscou instituir mecanismos para compensar a renúncia provocada por proposições que tramitam nas casas legislativas.

Como exemplo, colacionamos abaixo dispositivo da Resolução27 do Congresso Nacional que prevê a possibilidade de apresentação, no âmbito da Comissão de Mista de Orçamento, de emenda de renúncia de receita, cujo objetivo é compensar o impacto provocado pela medida.

Art. 32. Poderá ser apresentada emenda de renúncia de receita, decorrente de projeto de lei de iniciativa do Congresso Nacional, em tramitação em qualquer das suas Casas, que satisfaça as seguintes condições: I - tenha recebido, previamente ao exame da compatibilidade e da adequação orçamentária e financeira, parecer favorável de mérito, na Casa de origem, pelas Comissões Permanentes; II - esteja, até o prazo final para a apresentação de emendas, instruído com a estimativa da renúncia de receita dele decorrente, oriunda do Poder Executivo ou de órgão técnico especializado em matéria orçamentária do Poder Legislativo. Parágrafo único. A emenda de que trata o caput somente será aprovada caso indique os recursos compensatórios necessários, provenientes de anulação de despesas ou de acréscimo de outra receita, observado o disposto no Art. 41.

Como se observa, para que a emenda de renúncia de receita seja apresentada é necessário que a proposição a que se refere que esteja em tramitação, tenha recebido parecer favorável de mérito pelas comissões permanentes da Casa de origem e esteja instruída com a estimativa da renúncia de receita que provoca.

Na Câmara dos Deputados, a Comissão de Finanças e Tributação28 também possui normativo relacionado à temática do cumprimento da responsabilidade fiscal trata-se da Norma Interna da CFT Nº 1/2016, aplicável no âmbito daquela comissão permanente, e que dispõe sobre os critérios para a utilização da reserva para compensação de proposições legislativas que criem despesa obrigatória ou renúncia de receita sujeitas à deliberação de órgão colegiado permanente do Poder Legislativo, durante o exame de compatibilidade e adequação orçamentária da legislação.

Como possui competência para averiguar a compatibilidade financeira e orçamentária das proposições, esta norma disciplina como as proposições que causem renúncia de receita e que não tragam medidas de compensação, poderão utilizar a reserva de compensação instituída no orçamento federal para aquele fim.

27 BRASIL. Resolução Nº 1, de 2006-CN. Dispõe sobre a Comissão Mista Permanente a que se refere o § 1º do Art. 166 da Constituição, bem como a tramitação das matérias a que se refere o mesmo Artigo. Disponível em <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/rescon/2006/resolucao-1-22-dezembro-2006-548706-normaatualizada-pl.html>. Acesso em: 9 nov. 2016.

28 O Regimento Interno da Câmara dos Deputados atribui à Comissão de Finanças e Tributação a competência de analisar a adequação financeira e orçamentária das proposições legislativas, v., Brasil. Congresso Nacional. Câmara dos Deputados. Regimento interno da Câmara dos Deputados: aprovado pela Resolução Nº 17, de 1989, e alterado até a Resolução Nº 17, de 2016 . – 17. ed. – Brasília : Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2016.

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Abaixo, transcrevemos o Art. 2º da aludida norma interna,29 o qual delimita quais proposições estão aptas a utilizar a reserva.

Art. 2º Somente estarão aptas a utilizar a Reserva as proposições que atendam aos seguintes requisitos: I – contenham a devida estimativa de impacto orçamentário-financeiro, elaborada ou homologada por órgão técnico da União, nos termos fixados na Lei de Responsabilidade Fiscal e nas Leis de Diretrizes Orçamentárias, e II - tenham sido aprovadas em seu mérito por todas as comissões permanentes precedentes à Comissão de Finanças e Tributação, inclusive as oriundas do Senado Federal.

Observa-se pelo trecho transcrito que a utilização da reserva orçamentária poderá ser feita apenas por aquelas proposições que estimem o impacto orçamentário-financeiro e que tenham tido seu mérito aprovadas por todas as comissões que antecederam à Comissão de Finanças e Tributação do Senado.

Como se vê, o nosso ordenamento jurídico está repleto de normas que buscam resguardar a responsabilidade fiscal na concessão de benefícios fiscais, em especial as isenções tributárias, que são objeto deste estudo. Assim, é cristalino que o titular da prerrogativa de iniciar o processo legislativo provocador de renúncia de receita, a exemplo do que ocorre com as isenções, salvo hipótese de dispensa legalmente prevista, tem o dever, e não a faculdade, de obedecer em especial às premissas previstas no Art. 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal.

Não obstante este dever, não são raras as situações nas quais ocorrem ou a sua inobservância ou a sua transferência pelo Poder Legislativo ao Poder Executivo. A título de exemplo transcrevemos abaixo dispositivo constante da recém aprovada Lei 13.353, de 3 de novembro de 2016,30 que transferiu ao poder executivo um dever que originariamente é daquele que iniciou o processo legislativo, prática que não se pode aceitar dentro de uma sociedade que prega a independência e harmonia dos poderes.

Art. 6º O Poder Executivo, com vistas ao cumprimento do disposto no inciso II do Art. 5º e no Art. 14 da Lei Complementar Nº 101, de 4 da maio de 2000, estimará o montante da renúncia fiscal decorrente do disposto nesta Lei e o incluirá no demonstrativo a que se refere o § 6º do Art. 165 da Constituição Federal que acompanhar o projeto de lei orçamentária cuja

29 BRASIL. Congresso Nacional. Câmara dos Deputados. Norma interna da CFT Nº 1/2016. Dispõe sobre os critérios para a utilização da “Reserva para compensação de proposições legislativas que criem despesa obrigatória ou renúncia de receita sujeitas à deliberação de órgão colegiado permanente do Poder Legislativo, durante o exame de compatibilidade e adequação orçamentária da legislação”, no âmbito da Comissão de Finanças e Tributação. Disponível em < http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/cft/documentos/regulamentos-da-cft/proposta-de-norma-interna-da-cft-no-1-2016-1>. Acesso em 9 nov. 2016.

30 BRASIL. Lei Nº 13.353, de 3 de novembro de 2016. Altera a Lei Complementar Nº 70, de 30 de dezembro de 1991, as Leis Nºs 9.532, de 10 de dezembro de 1997, e 8.894, de 21 de junho de 1994, e a Medida Provisória Nº 2.158-35, de 24 de agosto de 2001, para conceder isenções tributárias à Academia Brasileira de Letras, à Associação Brasileira de Imprensa e ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro; concede remissão e anistia de débitos fiscais dessas instituições; e dá outras providências. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2016/Lei/L13353.htm>. Acesso em 9 nov. 2016.

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apresentação se der após decorridos sessenta dias da publicação desta Lei, bem como fará constar das propostas orçamentárias subsequentes os valores relativos à aludida renúncia.

Na busca pela compatibilização de interesse Ives Gandra31 afirma que

Se é certo que à renúncia fiscal se pode recorrer com o objetivo de estimular as atividades empresariais, não menos verdade é que deve ser permeada de compensações racionais, a não causar prejuízos ao conjunto da economia e aos interesses da sociedade pagadora de tributos.

Conhecidas as exigências para a instituição de isenções que provocam renúncia de receitas, investigaremos a seguir a adequação da teoria do abuso do poder na esfera legislativa, em especial naquelas situações em que sejam instituídos benefícios sem a observância da adequada responsabilidade fiscal.

A doutrina e jurisprudência brasileiras estão bastante amadurecidas quanto ao tema abuso de poder no âmbito administrativo. Por outro lado, não se vê tal desenvoltura quanto à aplicação no campo legislativo,32 no qual a abordagem doutrinária e jurisprudencial tem dado enfoque no abuso em virtude do desvio de finalidade da lei.

Este estudo não tem a presunção de exaurir a discussão acerca da matéria, visto que, como dito, a sua abordagem ainda é inicial. Busca-se aqui traçar linhas gerais sobre a aplicação do abuso do poder na esfera legislativa, a partir da madura abordagem administrativista, averiguando o seu encaixe nas condutas legislativas da concessão de isenções tributárias com desrespeito à responsabilidade fiscal.

O poder, enquanto prerrogativa de uma autoridade, deve ser utilizado sem abuso. Hely Lopes Meirelles aponta que “usar normalmente do poder é empregá-lo segundo as normas legais, a moral da instituição, a finalidade do ato e as exigências do interesse público”.33 Partindo desta construção, pode-se afirmar que abusa do poder aquela autoridade que não o exerce de acordo com as normas legais, que ofende a moral da instituição, com fim diverso do enunciado no ato ou de forma contrária ao que o interesse público exige. Como se vê, diante da ausência de qualquer um desses elementos restará caracterizado o abuso de poder.

31 MARTINS, 2014, p. 151.32 O mais antigo trabalho encontrado acerca do assunto foi publicado por Miguel Reale em 1976, quando elaborou parecer

analisando as modificações feitas pela Câmara Municipal de Campinas/SP a projeto de lei enviado pelo Poder Executivo Municipal.

33 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 41ª ed. São Paulo: Malheiros, 2014. P. 117

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Quanto ao uso do poder no âmbito legislativo e a sua análise em comparação com o executivo, Miguel Reale34 adverte: “não se creia que só haja desvio de poder por parte do Executivo. Na estrutura no Estado Federal, quando há normas vigentes estabelecendo um “código superior de deveres”, o ato legislativo local não escapa da mesma increpação se a lei configurar o emprego malicioso de processos tendentes a camuflar a realidade, usando-se dos poderes inerentes ao “processo legislativo” para atingir fins objetivos que não se compadecem com a ordem constitucional”.

No exercício da atividade legislativa pode-se afirmar deste modo que atua com abuso do poder aquele que dá início ao processo legislativo em desacordo com as normas legais, sejam constitucionais ou infraconstitucionais, como é o caso daquelas que prescrevem a ditames relativos à responsabilidade fiscal.

Do mesmo modo, abusa do poder de legislar aquele que deflagra processo legislativo com fim diverso no enunciado no texto da lei, bem como ao legislar contrariamente ao interesse público, situação na qual podem ser inseridas as isenções tributárias concedidas em desacordo com as normas de responsabilidade e que por consequência refletem no equilíbrio orçamentário.

A busca da realização de determinado fim através dos meios e dos motivos corretos é o que justifica a concessão do poder ao agente, de forma que “toda ação que se apartar dessa conduta, contrariando ou ladeando o desejo da lei, padece de vício de desvio de poder ou de finalidade e, como todo ato abusivo ou arbitrário, é ilegítima”.35

Assim ocorre com o poder de legislar. A Constituição Federal determina as diretrizes a serem observadas no processo de construção das espécies legislativas, de forma que atribui a determinados agentes a competência para deflagrar o processo legislativo de determinadas matérias, delineando assim os meios e os fins que se devem alcançar, e em conjunto com as regras relativas à responsabilidade fiscal fixam a forma como devem ser concedidas as isenções tributárias.

Neste diapasão “o abuso do poder ocorre quando a autoridade, embora competente para praticar o ato, ultrapassa os limites de suas atribuições ou se desvia das finalidades administrativas”.36 Quanto às isenções tributárias, a sua concessão sem as medidas previstas na lei de responsabilidade fiscal caracteriza ultrapassagem dos limites das atribuições do legislador, visto que este não possui competência para instituir tais proposições em afronta à responsabilidade fiscal, restando caracterizado assim o abuso do poder.

A doutrina administrativista conceitua o abuso de poder como “a conduta ilegítima do administrador, quando atua fora dos objetivos expressa ou implicitamente

34 REALE, Miguel. Abuso do poder de legislar. Revista de Direito Público, São Paulo, 1976, n. 39-40. P. 7635 MEIRELLES, 2014, p. 118.36 Ibid., p. 117.

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traçados na lei”.37 As causas das quais decorrem o abuso de poder podem ser de duas espécies: o excesso de poder e o desvio de poder.

O primeiro ocorre quando o agente atua fora dos limites de sua competência, já o segundo resta caracterizado quando, embora dentro de sua competência, afasta-se do interesse público que deve nortear todo o desempenho administrativo.38

Vê-se assim que a causa do abuso de poder ou está na seara da competência ou na da finalidade.

No que se refere à correção da conduta praticada com abuso de poder no âmbito administrativo, onde o tema possui uma aplicação mais consolidada, “a conduta abusiva não pode merecer aceitação no mundo jurídico, devendo ser corrigida na via administrativa ou judicial”.39

A partir das lições do direito administrativo vê-se que é plenamente possível e praticável a aplicação do estudo do abuso de poder para o âmbito legislativo, mais precisamente para o espectro do processo legislativo.

Da mesma forma que a atuação do agente público está pautada na legalidade, cujo fundamento máximo é encontrado na Constituição, o mesmo ocorre com o legislador, cujo exercício da atividade típica deve observância aos preceitos de ordem constitucional.

Dito de outra forma, a atividade legislativa ao ser exercida deve observar as diretrizes constitucionais quanto ao exercício pelos membros do Poder Legislativo, dentre as quais a manutenção do equilíbrio orçamentário e a responsabilidade fiscal, de forma que ao produzir qualquer proposição legislativa sem o atendimento dos pressupostos constitucionais e legais, certamente estará caracterizado o abuso de poder.

Deste modo, ao deflagrar o processo legislativo do qual decorra renúncia de receita, tanto os membros do Poder Legislativo quanto o chefe do Poder Executivo, visto que a Constituição confere esta competência a este último, devem atender também aos requisitos de responsabilidade fiscal, resguardando o equilíbrio financeiro orçamentário.

Não se trata de cerceamento do exercício da atividade legislativa, que pode e deve ser exercida livremente. A discricionariedade é uma das características do seu exercício, mais evidenciada na atuação do Poder Legislativo. Contudo, como assevera Heringer Júnior, “isso não significa que também a lei não possa desbordar de seus limites”.40

37 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2012. p. 4638 CARVALHO FILHO, 2012, p. 46.39 Ibid., p. 46.40 HERINGER JÚNIOR, Bruno. Desvio do poder legislativo: fundamentos jurídico-constitucionais para sua sindicância

judicial. Revista do Curso de Direito da FSG, Caxias do Sul, ano 2, n. 4, p. 25-34, jul./dez. 2008, p. 28.

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Sobre o aspecto da discricionariedade, Caio Tácito já alertava quanto à “necessidade de temperamento da latitude discricionária de ato do poder legislativo, ainda que fundado em competência constitucional e formalmente válido”.41

Gilmar Mendes, ao abordar o processo de construção das leis nos ensina que o “conjunto de atos que uma proposição normativa deve cumprir para se tornar uma norma de direito forma o processo legislativo, que é objeto de regulação na Constituição e por atos internos no âmbito do Congresso Nacional”.42

Partindo para o campo das sanções, que não será objeto de aprofundamento neste estudo, Ives Gandra43 declara que “a concessão de incentivos e benefícios fiscais deve ter, doravante, amparo na LRF. O dirigente que assim não agir estará sujeito à perda da função pública, suspensão dos direitos políticos e pagamento da multa. Incorrerá, pois, em ato de improbidade administrativa capitulada na legislação que rege a matéria (Lei n. 8429, Art. 10, VII)”.

Em síntese, uma análise sistemática das regras constitucionais e infraconstitucionais que tratam do processo legislativo, e em especial das normas que abordam a concessão de benefícios tanto sob o aspecto tributário quanto sob o aspecto de responsabilidade fiscal levam à clara conclusão de que ao conceder benefícios sem adotar medidas que compensem o seu impacto no orçamentos dos entes federados, o Legislativo abusa do seu poder de legislar, colocando inclusive o chefe do Poder Executivo diante da possibilidade do cometimento de crime de responsabilidade por desrespeito à lei orçamentária, não obstante a possibilidade de aplicação de sanções ao próprio legislador, conforme sugerido pela doutrina.

Os benefícios fiscais, dentre os quais encontra-se a isenção, exercem papel fundamental na redução das desigualdades regionais e na geração de empregos.

A Constituição Federal dispõe ao longo do seu texto de diversos dispositivos que tratam destes institutos, prescrevendo os seus objetivos, a forma com devem ser concedidos, o seu disciplinamento em relação aos tributos estaduais e municipais, bem como a sua repercussão e tratamento no âmbito orçamentário.

No plano infraconstitucional, e exercendo o papel de norma geral de direito financeiro, a Lei de Responsabilidade Fiscal, denominação dada à Lei Complementar 101, de 4 de maio de 2000, alude acerca da matéria em seu Art. 14.

41 TÁCITO, Caio. Desvio de poder legislativo. Revista Trimestral de Direito Público, São Paulo, Nº 1, p. 62-68, 1993. P. 64.42 MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; COELHO, Inocêncio Mártires. Curso de direito constitucional.

2ª ed. São Paulo: Saraiva. 2008. P. 87343 MARTINS, 2014, p. 144.

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Considerada norma de estrutura, visto que é destinada ao detentor da prerrogativa de iniciar o processo legislativo, o dispositivo estabelece condições a serem observadas quando da concessão ou ampliação de incentivo ou benefício de natureza tributária da qual decorra renúncia de receita.

Prescrição similar é encontrada também nas Leis de Diretrizes Orçamentárias editadas pela União, na qual localizam-se dispositivos com idênticas exigências, bem como hipótese legal de dispensa das medidas compensatórias quando o impacto provocado pela ampliação ou concessão de benefícios seja irrelevante, sendo caracterizado desta forma quando não seja superior a 0,001% (um milésimo por cento) da Receita Corrente Líquida verificada no exercício anterior ao do início de tramitação da proposta no Poder Legislativo.

O que se observa a partir da análise feita neste estudo é que o ordenamento jurídico exige do detentor da prerrogativa de iniciar o processo legislativo além da observância das questões relativas à constitucionalidade da lei, seja sob o aspecto formal e/ou material, a observância, em igual grau de importância, da responsabilidade fiscal.

De outro modo, pode-se dizer que para conceder isenção tributária, provocadora de renúncia fiscal, o legislador (típico ou atípico), deve trazer dentro da proposição estimativa do impacto orçamentário-financeiro no exercício em que deva iniciar sua vigência e nos dois seguintes, atender ao disposto na lei de diretrizes orçamentárias e: i) demonstrar que a renúncia foi considerada na estimativa de receita da lei orçamentária e de que não afetará as metas de resultados fiscais; ou ii) instituir medidas de compensação por meio do aumento de receita, proveniente da elevação de alíquotas, ampliação da base de cálculo, majoração ou criação de tributo ou contribuição.

Tomando por empréstimo as lições da teoria do abuso de poder, já amadurecidas no âmbito do poder legislativo, observou-se sua perfeita adequação ao espectro do processo legislativo.

Assim, a conclusão a que se chega após o presente estudo é de que atua com abuso do poder de legislar, aquele que propõe legislação concessiva de isenção tributária sem a observância dos preceitos constitucionais e sem atender às medidas de responsabilidade fiscal previstas na legislação vigente quando da instituição do benefício.

Questão que se deve perquirir em futuras pesquisas é tratar da forma de responsabilidade do agente que propõe, sanciona ou derruba veto de proposição na qual houve abuso do poder de legislar. De antemão, premissa básica para tal discussão é a de que não se pode tolerar tal prática, visto que configura grave atentado às finanças públicas e à consecução das políticas de interesse da coletividade.

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