pesquisa fapesp 222

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PESQUISA FAPESP AGOSTO DE 2014 AGOSTO DE 2014 WWW.REVISTAPESQUISA.FAPESP.BR n.222 TUBERCULOSE Bacilo agressivo causa morte explosiva de célula de defesa ENGENHARIA ESPACIAL Etanol é novo combustível de foguete brasileiro INDICADORES Colaborações mudam perfil internacional da produção científica ENTREVISTA VANDERLAN BOLZANI Em defesa da química natural A emergência doenças raras Trabalho de campo em todo o país enfatiza identificação e tratamento de distúrbios genéticos das 9 771519 877001 00222 R$ 9,50 n.222

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A emergência das doenças raras

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agosto de 2014 www.revistapesquisa.fapesp.br

n.2

22

tuberculoseBacilo agressivo causa morte explosiva de célula de defesa

engenharia esPacialEtanol é novo combustível de foguete brasileiro

indicadoresColaborações mudam perfil internacional da produção científica

entrevistavanderlan bolzani Em defesa da química natural

a emergência doenças rarasTrabalho de campo em todo o país enfatiza identificação e tratamento de distúrbios genéticos

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PESQUISA FAPESP 222 | 3

Catedral iluminadaA grandiosidade da cena está presente nos vários salões da Caverna

do Diabo, no Vale do Ribeira, em São Paulo. Este é chamado de

Salão da Catedral e recebe turistas que o percorrem por escadas e

passarelas. O arquiteto Marcos Silvério conseguiu unir sua profissão

com a prática da espeleologia. Ele faz mestrado na Faculdade de

Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP),

sob orientação de Anália Amorim, e estuda o uso público das

cavernas. “Estudamos as cavernas para propor a melhor maneira de

promover corretamente a segurança do visitante e a conservação do

ambiente com o mínimo de intervenção”, diz Silvério.

FotolAb

Foto enviada por Marcos Silvério, da FAU-USP

Se você tiver uma imagem relacionada à sua pesquisa, envie para [email protected], com resolução de 300 dpi (15 cm de largura) ou com no mínimo 5 MB. Seu trabalho poderá ser selecionado pela revista.

4 | agosto DE 2014

da tuberculose causam morte explosiva de células de defesa

42 NobelGanhador do prêmio de Medicina em 2007, o inglês Martin Evans fala dos desafios e possibilidades do uso das células-tronco

46 EcologiaSuçuaranas e suas presas dependem de áreas agrícolas para sobreviver no estado de São Paulo

48 ClimatologiaPesquisadores estimam temperaturas do Atlântico Sul nos últimos 12 mil anos

50 AstrobiologiaRaios cósmicos desintegram ácido fórmico, candidato a precursor de compostos biológicos

TECNOLOGIA

52 Engenharia espacialEtanol e oxigênio líquido compõem combustível de foguete suborbital desenvolvido no Brasil

58 DesenvolvimentoEstudo mostra o crescimento das empresas paulistas de software, tecnologia da informação e comunicações

62 EducaçãoPlataforma on-line usa recursos de games para motivar alunos a estudar conteúdo do ensino médio

64 BiotecnologiaEmpresa produz kits para diagnosticar doença de soja causada por fungo e vírus que atacam plantações de batatas

68 BioquímicaMembrana que filtra meio de cultura permite selecionar biomassa com proteínas, ácidos graxos ou carboidratos

HUMANIDADES

70 Ciência políticaEstudo investiga o sofisticado mecanismo de conexão entre os diferentes níveis de poder

76 Mercado de romancesEditoras francesas publicaram centenas de livros em língua portuguesa em Paris no século XIX

78 LiteraturaO escritor João Ubaldo Ribeiro contribuiu para as reflexões sobre as diferentes identidades brasileiras

agosto n.222

SEçÕES 3 Fotolab 5 Carta da editora 6 Cartas 7 On-line 8 Dados e projetos 9 Boas práticas 10 Estratégias 12 Tecnociência 82 Obituário 84 Memória 86 Resenhas 87 Carreiras 89 Classificados

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CApA16 Árduas batalhas levam à identificação e ao tratamento de distúrbios genéticos espalhados pelo país

ENTREVISTA24 Vanderlan BolzaniPesquisadora internacionalmente reconhecida por seus trabalhos na área de química de produtos naturais busca aumentar a cooperação internacional enquanto investiga moléculas de interesse farmacológico

POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

32 IndicadoresEstudo analisa mudanças no perfil de regiões do mundo em 30 anos e mostra que distância entre ricos e emergentes diminuiu

36 InovaçãoPrograma federal provoca debate sobre investimentos em ciência básica

CIÊNCIA

38 ImunologiaBactérias hipervirulentas

46 52

PESQUISA FAPESP 222 | 5

cArtA dA EdItorA

A química Vanderlan Bolzani, em sua entrevista a esta edição de Pesquisa FAPESP (página 24), aborda a determinada altura, de forma leve e pontual, a relação entre gênero e

sucesso na carreira científica, apontando efeitos nesse campo de uma cultura machista ainda disseminada na sociedade e absor-vida e reproduzida mesmo pelas mulheres. Há um sem-número de estatísticas a demonstrar que, nas regiões e países mais desen-volvidos, a metade feminina da população do planeta avançou fantasticamente desde o século XX para se tornar uma força de trabalho percentualmente equivalente à sua presença no gênero humano, mas avança devagar e segue sub-representada quando se trata da ocupação de posições de liderança em quase todos os campos de atividade humana – inclusive o da pesquisa científica.

A questão, desta vez, provocou-me uma curiosidade estatís-tica mais restrita e, digamos, quase doméstica: eu quis saber como as cientistas estão representadas no universo das en-trevistas pingue-pongue publicadas por Pesquisa FAPESP ao longo da vida da publicação, pelas quais temos grande apreço. Tais entrevistas buscam sempre personagens importantes no cenário científico e cultural do país e, às vezes, internacional, em geral marcadas por uma trajetória singular e que tenham dado inequívocas contribuições para a produção do conheci-mento científico em qualquer campo. Pois bem, das 158 entre-vistas publicadas de outubro de 1999 até este mês de agosto de 2014, apenas 26 foram concedidas por mulheres, ou seja, 16,5% do total. Já se tomarmos as últimas 25 edições da revista, também incluindo esta última, a estatística é bem menos vul-nerável a eventuais acusações de ranço machista na escolha, porque se nota um crescimento da participação feminina no total considerado: são oito as que trazem mulheres partilhan-do suas experiências e descobertas de pesquisa e de vida, ou seja, 32% do total. Registre-se logo que a equipe de jornalistas que coordeno (integrada por homens e mulheres) desfruta de ampla liberdade para propor nomes para a entrevista de cada edição, o que sugere que nosso olhar profissional tem respon-sabilidade nesses resultados estatísticos que deixamos aqui em bruto, sem maiores comentários, para a avaliação dos leitores.

* * *

A elaboração da reportagem de capa desta edição, a cargo do editor especial Carlos Fioravanti, com fotos de Eduardo Cesar, incluiu uma incursão de alguns dias em Monte Santo, municí-

pio do sertão baiano para sempre ligado à história da Guerra de Canudos e à imagem emblemática de Antonio Conselheiro. O propósito nada tinha a ver com esse episódio histórico que consagraria Euclides da Cunha, mas com uma verificação in loco de uma das doenças genéticas raras agora bem mapeadas em todo o país. A rigor, é desse mapea mento – o Censo Na-cional de Isolados (Ceniso) – que a reportagem trata (página 16). Levado a cabo por pesquisadores de várias instituições juntamente com profissionais da saúde locais e organizado pelo Instituto Nacional de Genética Médica e Populacional (Inagemp), o censo apresentou em abril deste ano um quadro dos 81 municípios onde se conseguiu constatar a existência de 4.136 pessoas com características genéticas específicas, nem sempre doenças, os chamados isolados genéticos.

Gostaria de destacar ainda no campo da saúde e medicina a reportagem do editor de ciência, Ricardo Zorzetto, sobre alguns resultados interessantes de uma investigação sobre as mais agressivas cepas da bactéria causadora da tuberculose, levadas a efeito em laboratório de biossegurança da Universi-dade Estadual do Norte Fluminense (Uenf ) e da Universidade de São Paulo (USP). Este trabalho vem permitindo uma nova compreensão de como tais cepas vencem explosivamente as células de defesa, que deveriam controlar o bacilo, e se espa-lham rapidamente pelo corpo, produzindo graves danos ao pulmão e a outros órgãos (página 38).

Chamo a atenção, nas páginas voltadas à tecnologia e inova-ção, para a reportagem do jornalista Yuri Vasconcelos sobre os foguetes suborbitais que o Instituto de Aeronáutica e Espaço (IAE) se prepara para lançar neste semestre, e especialmente para a carga útil que terão, o Estágio Propulsivo de Foguete a Propelente Líquido (EPL), um conjunto do primeiro motor--foguete produzido no país a empregar combustível líquido e seu sistema de alimentação. A melhor novidade dessa his-tória é que o combustível líquido que será testado resulta de uma mistura de etanol feito de cana-de-açúcar e oxigênio líquido (página 52).

Por último, mas não menos importante, recomendo a repor-tagem do jornalista Eduardo Nunomura na seção das humani-dades sobre uma pesquisa que trata do efetivo poder dos par-tidos no sistema político brasileiro e do sofisticado mecanismo de conexão entre os níveis de governo municipal, estadual e federal. O estudo investe claramente contra algumas visões do senso comum e vale a pena conferir (página 70).

Ciência, mulheres e estatísticaMariluce Moura | Diretora De reDação

6 | agosto DE 2014

hídrica mundial. A demanda no Brasil é de apenas 74 km3/a. Portanto, menos de 2% da quantidade ofertada. Temos, em caráter de urgência, de armazenar H20 no subsolo formando novas matas de cultura perene, protegendo e incentivando a preservação e reflorestamento das matas ciliares, proi-bindo megaprojetos de barragens. Atual-mente existem cerca de 700 projetos de Pequenas Centrais Hidrelétricas em aná-lise e à espera de licenciamento. Também faço minha pequena parte: semeio, cultivo e planto todo ano cerca de 60 mudas de araucária (pinheiros-do-paraná), na região serrana de Santo Antônio do Pinhal.Flávio Prada

Professor titular da USP (aposentado)

São Paulo, SP

FicçãoA cada mês fico mais encantado com a seção de contos de Pesquisa FAPESP. Sempre muito bem escritos e fascinantes, são uma ótima “cereja do bolo” científico que é a revista. Gostaria de sugerir, quem sabe, uma edição especial com todos os contos reunidos. As relativamente no-vas seções de Boas práticas e Carreiras também são interessantíssimas.Fabricio dos Santos Belgrano

Escola de Química-CT/UFRJ

Rio de Janeiro, RJ

CorreçõesAo contrário do que foi informado na nota “O micróbio do câncer” (edição nº 220), Trichomonas vaginalis é protozoário e não bactéria.

Na reportagem “Alianças com os mi-cróbios” (edição 220) saíram grafados incorretamente os nomes das bactérias Streptococcus pneumoniae e Neisseria gonorrhoeae. No mesmo texto, Actino-bacteria é classe e não gênero bacteriano, como foi publicado.

Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail [email protected] ou para a rua Joaquim Antunes, 727, 10º andar - CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP. As cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.

CartaS [email protected]

Debate sobre o cerradoA respeito da carta do senhor Eugênio Giovenardi (edição nº 220), comentando a reportagem “A origem do cerrado” (edi-ção nº 219), tenho a dizer que o manejo do fogo vem sendo aplicado com sucesso na África e na Austrália há algumas dé-cadas, para manter a biodiversidade das savanas. Embora os cientistas que estu-dam o manejo do fogo ainda não tenham chegado a uma fórmula que seja ideal em todas as situações, há uma certeza: não queimar é a pior opção. Sem a passagem do fogo existe uma tendência global de adensamento da vegetação das savanas, reduzindo a luz disponível para as plantas pequenas, endêmicas, e até para alguns animais que só sobrevivem a plena luz e desaparecem aos poucos. É natural que o senhor Giovenardi esteja feliz com o provável adensamento das árvores em sua propriedade. Fomos todos influenciados pelo movimento conservacionista das últimas décadas, centrado nas florestas (mas não nas savanas) e nas árvores (em detrimento dos capins, ervas ou arbustos). Todavia, é possível que tenha sentido falta dos capins nativos do cerrado, dos bacu-paris, das gabirobas e de outras plantas pequenas que são negligenciadas, embora sejam as mais raras e ameaçadas. Quanto ao pedido de orientação, a resposta, como já foi destacado na reportagem, ainda não existe, pois “precisamos aprender a usar o fogo como ferramenta de manejo con-servacionista no Brasil”.Giselda Durigan

Instituto Florestal de São Paulo

Assis, SP

 A indignação do senhor Eugênio Giove-nardi (seção Cartas, edição nº 220) com respeito à utilização do fogo no cerrado, mundialmente debatido e pesquisado, já demonstrou que o custo-benefício não compensa, com maiores prejuízos para o meio ambiente em geral. A meu ver, a parte mais importante da manifestação do leitor é como fazer a captação da água para a reposição dos aquíferos. Pesquisadores do IAG/USP afirmam que os rios brasilei-ros oferecem cerca de 5.660 quilômetros cúbicos de água por ano (km3/a), o que re-presenta perto de 12% da disponibilidade

CElSo lAFERPrEsiDEntE

EdUARdo MoACyR KRIEgERvicE-PrEsiDEntE

ConSelho SuPerior

AlEJAndRo SzAnTo dE TolEdo, CElSo lAFER, EdUARdo MoACyR KRIEgER, FERnAndo FERREIRA CoSTA, HoRáCIo lAFER PIvA, João gRAndIno RodAS, MARIA JoSé SoARES MEndES gIAnnInI, MARIlzA vIEIRA CUnHA RUdgE, JoSé dE SoUzA MARTInS, PEdRo lUIz BARREIRoS PASSoS, SUEly vIlElA SAMPAIo, yoSHIAKI nAKAno

ConSelho téCniCo-aDminiStrativo

JoSé ARAnA vARElADirEtor PrEsiDEntE

CARloS HEnRIQUE dE BRITo CRUzDirEtor ciEntífico

JoAQUIM J. dE CAMARgo EnglERDirEtor aDministrativo

ConSelho eDitorialCarlos Henrique de Brito Cruz (Presidente), Caio Túlio Costa, Eugênio Bucci, Fernando Reinach, José Eduardo Krieger, luiz davidovich, Marcelo Knobel, Marcelo leite, Maria Hermínia Tavares de Almeida, Marisa lajolo, Maurício Tuffani, Mônica Teixeira

Comitê CientíFiColuiz Henrique lopes dos Santos (Presidente), Adolpho José Melfi, Carlos Eduardo negrão, douglas Eduardo zampieri, Eduardo Cesar leão Marques, Francisco Antônio Bezerra Coutinho, Joaquim J. de Camargo Engler, José Arana varela, José Roberto de França Arruda, José Roberto Postali Parra, lucio Angnes, luis Augusto Barbosa Cortez, Marcelo Knobel, Marie-Anne van Sluys, Mário José Abdalla Saad, Marta Teresa da Silva Arretche, Paula Montero, Roberto Marcondes Cesar Júnior, Sérgio luiz Monteiro Salles Filho, Sérgio Robles Reis Queiroz, Wagner do Amaral Caradori, Walter Colli

CoorDenaDor CientíFiColuiz Henrique lopes dos Santos

Diretora De reDação Mariluce Moura

eDitor CheFe neldson Marcolin

eDitoreS Fabrício Marques (Política), Marcos de oliveira (Tecnologia), Ricardo zorzetto (Ciência); Carlos Fioravanti e Marcos Pivetta (Editores espe ciais); Bruno de Pierro e dinorah Ereno (Editores assistentes)

reviSão daniel Bonomo, Margô negro

arte Mayumi okuyama (Editora), Ana Paula Campos (Editora de infografia), Maria Cecilia Felli e Alvaro Felippe Jr. (Assistente)

FotóGraFoS Eduardo Cesar, léo Ramos

míDiaS eletrôniCaS Fabrício Marques (Coordenador) internet Pesquisa FAPESP onlineMaria guimarães (Editora)Júlio César Barros (Editor assistente) Rodrigo de oliveira Andrade (Repórter)

ráDio Pesquisa BrasilBiancamaria Binazzi (Produtora)

ColaBoraDoreS Abiuro, Alexandre Affonso, Ana lima, daniel Bueno, Carolina Rossetti de Toledo, Eduardo nunomura, Elisa Carareto, Evanildo da Silveira, Igor zolnerkevic, Juliana Sayuri, lívia Haygert Pithan, luana geiger, Mauro de Barros, nelson Provazi, Pedro Hamdan, Pedro Martinelli, valter Rodrigues, veridiana Scarpelli, visca, yuri vasconcelos, zé vicente

é ProiBiDa a reProDução total ou ParCial De textoS e FotoS Sem Prévia autorização

Para Falar Com a reDação (11) [email protected]

Para anunCiar (11) 3087-4212 [email protected] aSSinar (11) 3087-4237 [email protected]

tiraGem 43.200 exemplaresimPreSSão Plural Indústria gráficaDiStriBuição dInAP

GeStão aDminiStrativa InSTITUTo UnIEMP

PeSQuiSa FaPeSP Rua Joaquim Antunes, no 727, 10o andar, CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP

FaPeSP Rua Pio XI, no 1.500, CEP 05468-901, Alto da lapa, São Paulo-SP

SECRETARIA dE dESEnvolvIMEnTo EConôMICo,

CIênCIA E TECnologIA Governo Do eStaDo De São Paulo

FUndAção dE AMPARo à PESQUISA do ESTAdo dE São PAUlo

ISSn 1519-8774

PESQUISA FAPESP 222 | 7

youtube.com/user/PesquisaFaPesP

on-linew w w . r e v i s t a P e s q u i s a . F a P e s P. b r

Vídeo do mês

Animação composta por 10 pontos brancos ajuda a entender como o cérebro interpreta o que vê

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N Wagner Dias_ eta carinae! você

de novo? quando vai virar supernova para podermos enxergar à noite? (Nebulosa em 3D)

Carol Maria_ a matemática, sempre presente. Pra onde eu olho, lá ela está, revelada, aplicada ou escondida. (vídeo Conexões dinâmicas)

Diogo Ferreira Alves_ Parabéns, professor! Pessoas como o senhor são fonte de muitas outras mentes no nosso país. (entrevista com Demi Getschko)

Beate Seaqesser_ uma medida muito importante para garantir que todos tenham acesso aos equipamentos caros! (Qualidade compartilhada)

Valmir Both_ Pessoal, isto é sério, sem abelhas não há polinização, sem polinização não temos alimento, sem alimento morremos. misteriosamente as abelhas estão desaparecendo. (Abelhas vigiadas)

Tony Al_ muito bem! o brasil tem de ter mais pessoas assim, os estudantes de escola básica precisam saber disso. (Pesquisa premiada nos EUA)

nas redes

Assista ao vídeo:

xum grupo coordenado pelo brasileiro Nilton rennó, da universidade de michigan, nos eua, notou que o gelo formado em marte pode derreter ao entrar em contato com um tipo específico de sal encontrado na região polar do planeta, mesmo com as baixíssimas temperaturas (Geophysical Research Letters). evidências de água líquida e desse sal em marte se deram a partir de imagens e análises químicas feitas pela sonda espacial Phoenix, lançada em 2007 pela Nasa. À época, a equipe observou estranhos glóbulos que pareciam se aglutinar e formavam gotículas no trem de pouso da nave.

xum método de análise química criado na usP pode ajudar na identificação de amostras de drogas ilícitas, conforme descrito nas revistas Electrochimica Acta, Microchemical Journal e Sensors. ao contrário das técnicas usadas hoje, em sua maioria, a partir de reagentes químicos conhecidos como colorimétricos, e que podem apresentar a mesma coloração para a cocaína e para substâncias lícitas, os eletrodos quimicamente modificados desenvolvidos no brasil desencadeiam reações específicas ao entrar em contato com determinadas substâncias.

exclusivo no site

Phoenix vai pesquisar a existência de moléculas de água líquida em marte

8 | agosto DE 2014

DaDos E projEtos

TEMÁTICOEletrocatálise V: processos eletrocatalíticos de interconversão entre as energias química e elétricaPesquisador responsável: Edson Antonio TicianelliInstituição: Instituto de Química de São Carlos/USP Processo: 2013/16930-7Vigência: 01/07/2014 a 30/06/2019

Teorias ergódica e qualitativa dos sistemas dinâmicosPesquisador responsável: Cláudio Aguinaldo BuzziInstituição: Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas de São José do Rio Preto/UnespProcesso: 2013/24541-0Vigência: 01/07/2014 a 30/06/2019

Microusinagem com laser de pulsos ultracurtos aplicada na produção e controle de circuitos optofluídicosPesquisador responsável: Wagner de RossiInstituição: Instituto de Pesquisas

TEMÁTICOs E jOVEM PEsquIsadOr rECEnTEsProjetos contratados em junho e julho de 2014

Energéticas Nucleares/SDECTSPProcesso: 2013/26113-6Vigência: 01/07/2014 a 30/06/2018

a gestão do conflito na produção da cidade contemporânea: a experiência paulistaPesquisadora responsável: Vera da Silva TellesInstituição: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas/USPProcesso: 2013/26116-5Vigência: 01/08/2014 a 31/07/2018

novos agentes terapêuticos obtidos de bactérias simbiontes de invertebrados brasileiros (FaPEsP/FIC-nIH)Pesquisadora responsável: Monica Tallarico PupoInstituição: Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto/USPProcesso: 2013/50954-0Vigência: 01/07/2014 a 30/06/2019

singularidades de aplicações diferenciáveis: teoria e aplicaçõesPesquisadora responsável:

Maria Aparecida Soares RuasInstituição: Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação de São Carlos/USPProcesso: 2014/00304-2Vigência: 01/06/2014 a 31/05/2019

O inflamassoma na resposta contra patógenos intracelulares e os mecanismos microbianos relacionados à evasãoPesquisador responsável: Dario Simões ZamboniInstituição: Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto/USPProcesso: 2014/04684-4Vigência: 01/09/2014 a 31/08/2018

respostas integradas de curimbatá, Prochilodus lineatus (teleostei) às nanopartículas de dióxido de titânio (TiO2) e identificação de biomarcadores para o monitoramento ambientalPesquisadora responsável: Marisa Narciso FernandesInstituição: Centro de Ciências

Biológicas e da Saúde/UFSCarProcesso: 2014/05701-0Vigência: 01/07/2014 a 30/06/2017

jOVEM PEsquIsadOrEfeito da terapia com laser de baixa potência (LBP) em modelos experimentais de doenças pulmonares crônicasPesquisadora responsável: Ana Paula Ligeiro de OliveiraInstituição: Universidade Nove de Julho – campus VergueiroProcesso: 2012/16498-5Vigência: 01/06/2014 a 31/05/2018

Caracterização eletrofisiológica e molecular dos neurônios envolvidos na geração do ritmo e do padrão respiratório de ratos durante o desenvolvimento pós-natalPesquisador responsável: Davi José de Almeida MoraesInstituição: Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto/USPProcesso: 2013/10484-5Vigência: 01/07/2014 a 30/06/2018

Fonte Branco Ponomariova and Hannes Toivanen. Knowledge flows and bases in emerging economy innovation systems: Brazilian research 2005–2009. Research Policy, 43(2014)588–596.

região 2005 2006 2007 2008 2009

1América do Norte

34,3% 33,1% 32,5% 31,8% 30,6%

2 União Europeia – UE (28 países)

30,0% 29,9% 29,6% 29,4% 29,2%

3 Brasil 17,6% 18,0% 18,4% 18,6% 19,6%

4 Ásia 9,0% 9,4% 9,7% 10,2% 10,5%

5 Europa (sem UE) 2,3% 2,3% 2,3% 2,2% 2,3%

6 Oceania 2,0% 2,2% 2,2% 2,2% 2,3%

7 Oriente Médio 1,5% 1,6% 1,8% 1,9% 2,0%

8 América do Sul 1,6% 1,6% 1,7% 1,8% 1,8%

9 América Central e Caribe

0,9% 0,9% 0,9% 0,9% 0,9%

10 África 0,8% 0,9% 0,9% 0,9% 0,9%

Total de citações [2005-2009]

762.543

699.532

440.272

234.048

53.908

52.453

42.470

40.634

21.458

21.038

Mudança % [2005-2009]

-11%

17,2%

14,1%

30,3%

9,7%

0,5%

17%

-0,6%

11,2%

-2,6%

Localização dos pesquisadores mais citados por autores brasileirosQuantidade de citações em artigos de autores do Brasil entre 2005 e 2009, segundo a região dos autores citados

PESQUISA FAPESP 222 | 9

O plágio como um pecado menor

Fraude na revisão por pares

Boas práticas

Num texto de opinião publicado na revista Nature, o físico indiano Praveen Chaddah fez uma sugestão polêmica sobre o destino de artigos científicos que comprovadamente plagiaram outros textos. Para ele, se o plágio não envolveu a descrição dos resultados e da metodologia, mas apenas se ateve a trechos que não comprometem a veracidade e a robustez da pesquisa, seria suficiente publicar uma vistosa correção em vez de desqualificar o artigo inteiro, tirando-o de circulação, como se faz atualmente. O cancelamento da publicação do artigo, a chamada retratação, “remove resultados úteis e originais do registro científico”, diz Chaddah. Em sua avaliação, é comum que um trecho plagiado nos parágrafos de introdução ou de conclusão de um artigo seja apenas resultado da falta de domínio do idioma inglês para expressar o conceito de uma forma diferente.

O pesquisador considera o plágio uma prática antiética, mas argumenta que cientistas são diferentes de escritores. “Damos mais valor à originalidade das ideias do que à originalidade da linguagem”, afirma. “Há ofensas muito piores do que plagiar um texto, como assumir o crédito de uma ideia alheia. Isso é mais difícil de detectar do que descobrir que alguém copiou e colou um texto”, afirma Chaddah, ele próprio vítima de apropriações indevidas de ideias em artigos que publicou.

A proposta foi recebida com reservas. “O plágio é incompatível com um comportamento ético, com a criatividade, a imaginação e a originalidade, que são os pilares da ciência”, comenta o pesquisador Pedro Cintas, da Universidade da Extramadura, Espanha. Sonia Vasconcelos, professora da Universidade Federal do Rio

de Janeiro e uma estudiosa da integridade na ciência, considera que nem todos os casos de plágio justificam uma retratatação, mas discorda de Chaddah. “O autor considera que o plágio de ideias e de resultados seria mais grave que o plágio de texto. Mas há muitas situações em que o plágio textual incorpora ideias e hipóteses preciosas do autor original. Me parece falacioso assumir que a apropriação textual indevida configura um ‘plágio mais suave’ no contexto da pesquisa”, afirma.

Ela também discorda da afirmação segundo a qual “cientistas não são escritores”, feita por Chaddah. “A comunicação científica é parte integrante da atividade do pesquisador”, diz ela. “Simplificar essa tarefa de escritor e o plágio textual ao mesmo tempo, na minha percepção, parece

Uma revista científica da área de acústica, o Journal of Vibration and Control, cancelou a publicação de 60 artigos científicos depois de descobrir que houve fraude no processo de revisão dos papers. O escândalo derrubou o ministro da Educação de Taiwan, Chiang Wei-ling, que aparecia como coautor em cinco dos artigos despublicados. Uma investigação de 14 meses mostrou que Chen-Yuan Chen, ex-professor de ciência da computação da National Pingtung University of Education, conseguiu corromper o sistema de revisão por pares da revista ao criar 130 contas de e-mail fraudulentas, com as quais assumia a identidade de pesquisadores reais ou fictícios. As contas de e-mail foram usadas para criar cadastros de revisores fictícios

estimular a ideia de que escrever pesquisa é algo secundário, além de indiretamente contribuir negativamente para a formação de escritores científicos independentes. Escrever ciência não é mera regurgitação de fatos e ideias.”

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na plataforma online da editora Sage, responsável pela publicação. Os artigos submetidos à edição eram endereçados aos e-mails fraudulentos – e Chen revisava os papers, vários deles assinados pelo próprio pesquisador. Daniel Sherman, porta-voz da editora Sage, declarou que possivelmente há outros pesquisadores envolvidos, pois acha difícil que coautores dos artigos não soubessem do esquema. O editor da revista na época em que os artigos foram publicados, Ali Nayeff, professor emérito da Universidade Virginia Tech, renunciou ao cargo antes de a investigação terminar. Segundo a Sage, ele foi o primeiro a suspeitar da fraude e avisou a universidade, que prontamente iniciou uma investigação contra Chen-Yuan Chen. Ele pediu demissão em fevereiro.

10 | agosto DE 2014

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Estratégiascientistas de impacto

Da esq. p/ dir.: paulo artaxo (uSp); ernesto Gonzalez (uSp); adriano nunes-nesi (uFv); Álvaro avezum (Dante pazzanese); e Sven Wunder (cifor)

a queda do voo MH-17 da Malaysia airlines em julho na ucrânia abreviou a contribuição de pesquisadores e ativistas que estavam a caminho da 20ª conferência Mundial de aids em Melbourne, na austrália. uma das vítimas foi o holandês Joep lange, professor da universidade de amsterdã, referência em estudos sobre o papel dos remédios antir-retrovirais para prevenir a transmissão do HIv da mãe para o filho. “a pesquisa de lange abrangia desde o vírus HIv até a epidemia global”, disse à revista Nature o virologista charles boucher, do erasmus Medical center em roterdã. Jacqueline van tongeren, mulher de lange e ativista da fundação artaids, também estava no voo. outras vítimas foram pim de Kuijer, membro da onG Stop aids now; Martine de Schutter, gerente da fundação aids Fond; lucie van Mens, pioneira na defesa do uso de preservativos femininos; e Glenn thomas, coordenador de mídia da organização Mundial da Saúde.

a empresa thomson reuters, responsável pela base de dados Web of Science, divulgou uma lista com os 3,2 mil cientistas mais influentes dos últimos anos, aqueles que publicaram artigos altamente citados em 21 áreas do conhecimento entre 2001 e 2012. cinco nomes da lista são do brasil. um deles é paulo artaxo, professor do Instituto de Física da universidade de São paulo (uSp) e membro da coordenação do programa FapeSp de pesquisa em Mudanças climáticas Globais, cujos artigos receberam mais de 10 mil citações. um de seus trabalhos mais reconhecidos aborda o efeito das partículas de aerossóis emitidas em queimadas na amazônia no clima e nas nuvens. “Demonstramos o papel fundamental dessas partículas no desenvolvimento de nuvens na região e no balanço de radiação atmosférica”, explica artaxo, que chama atenção para a baixa participação de brasileiros nessa compilação. “ainda é preciso fazer muito para aumentar a relevância internacional dos artigos publicados no brasil”, diz. o cardiologista Álvaro avezum, diretor da divisão de pesquisa do Instituto Dante pazzanese, em São

paulo, é autor de 156 artigos indexados e tem mais de 16 mil citações. Seus trabalhos de maior impacto estão vinculados a pesquisas colaborativas que acompanharam centenas de milhares de pacientes de vários países e demonstraram fatores de risco associados, por exemplo, ao infarto agudo do miocárdio e ao avc. ernesto Gonzalez, professor do Instituto de química de São carlos da uSp, publicou cerca de 220 artigos e recebeu mais de 5 mil citações. ele dedica-se à pesquisa de células a combustível com etanol. “nós conseguimos quase 50% de conversão do etanol para dióxido de carbono, o que significa maior aproveitamento do etanol como combustível”, diz

contribuição abreviada

Gonzalez. o agrônomo adriano nunes-nesi, da universidade Federal de viçosa, fez, entre 2004 e 2010, um doutorado- -sanduíche e um pós-doc no Instituto Max planck de Fisiologia Molecular da planta, na alemanha, onde participou de um amplo estudo sobre os papéis fisiológicos das enzimas do ciclo de Krebs em tomates. o grupo do qual ele fez parte conseguiu aumentar o rendimento da produção do fruto. o alemão Sven Wunder, do center for International Forestry research (cifor), está há 10 anos no brasil, onde publicou vários artigos sobre política florestal. no país, ele coordenou um estudo sobre a amazônia legal, encomendado pelo Ministério do Meio ambiente em 2009.

Homenagem: flores foram depositadas na entrada da conferência Mundial de aids, na austrália

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PEsQuisa faPEsP 222 | 11

um lHc para a china

a china planeja construir um acelerador de partículas subterrâneo de 52 quilômetros de extensão até 2028. a proposta é defendida por pesquisadores do Instituto de Física de altas energias de pequim (IHep, na sigla em inglês), que batizaram o projeto de “fábrica de Higgs”, uma alusão ao bóson de Higgs. a existência da partícula elementar subatômica foi comprovada em 2012 por experimentos no Grande colisor de Hádrons (lHc), o maior acelerador de partículas do mundo, operado pelo centro europeu de

pesquisas nucleares (cern) na Suíça. com um acelerador maior do que o do cern, os chineses pretendem estudar o bóson de Higgs com mais precisão. eles calculam que seriam gastos cerca de uS$ 3 bilhões na construção do colisor, mas físicos ouvidos pela revista Nature disseram que a estimativa é conservadora e que o valor provavelmente será bem maior. a china também espera que essa seja uma oportunidade para desenvolver um colisor de uma nova geração – um supercolisor chamado de próton-próton –

tempo no megatelescópio

Um dos principais telescópios do mundo terá a participação de pesquisadores do estado de São Paulo em suas operações, resultado da integração da FAPESP ao consórcio internacional do Giant Magellan Telescope (GMT), que começará a ser construído em 2015, no Chile. O GMT en-trará em funcionamento em 2021 e am-pliará em cerca de 30 vezes o volume de informações acessíveis aos telescópios atualmente em operação. A FAPESP in-vestirá US$ 40 milhões no projeto, o equi-valente a cerca de 4% do custo total es-timado. O investimento garantirá 4% do tempo de operação do GMT para trabalhos realizados por pesquisadores de São Pau-lo, além de assento no conselho do con-sórcio, que atualmente é composto por 10 parceiros, entre eles instituições dos Estados Unidos, Coreia do Sul e Austrália. Hernan Chaimovich, membro da Coorde-nação Adjunta de Programas Especiais e coordenador dos Centros de Pesquisa,

Inovação e Difusão (Cepid) da FAPESP, disse à Agência FAPESP que estão sendo conduzidas negociações com o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação para cofinanciamento e ampliação da parti-cipação de instituições de todo o Brasil. O GMT permitirá investigar a formação de estrelas e galáxias logo após o Big Bang, medir a massa de buracos negros e mapear o ambiente imediato em torno deles. Tam-bém poderá detectar exoplanetas seme-lhantes à Terra.

no mesmo túnel. caso o projeto se viabilize, o equipamento representará um avanço notável da pesquisa na china. atualmente, o maior colisor do país tem apenas 240 metros de circunferência.

nova bibliotecaa Faculdade de economia, administração e contabilidade da universidade de São paulo (Fea-uSp) inaugurou novas instalações de sua biblioteca, que ocupam área de mais de 5 mil metros quadrados. as obras de ampliação tiveram início em 2010 e foram executadas com recursos da uSp, que investiu r$ 6,7 milhões, e da iniciativa privada. o número médio de visitantes da biblioteca deverá aumentar de 350 mil para 537 mil por ano. a nova área conta com 430 mil volumes, que formam a maior coleção na américa latina de obras de administração, economia, contabilidade e ciências atuariais. Desse total, 250 mil vieram da coleção particular do ex-ministro e professor emérito da uSp antonio Delfim netto. a biblioteca também conta com anfiteatros, um deles inspirado em modelo da universidade Harvard, nos estados unidos, e um espaço colaborativo para trabalhos em equipe.

representação gráfica do GMt, que começará a ser construído em 2015

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12 | agosto DE 2014

chamado magnetômetro, que irá estudar o campo magnético terrestre e sua interação com a radiação ionizante (ver Pesquisa FAPESP nº 219). Os outros experimentos são dois circuitos integrados projetados no Brasil para uso espacial. “A análise dos dados iniciais recebidos sobre um dos circuitos integrados com resistência à radiação apontou ótimas perspectivas para o projeto”, diz Otávio Durão, coordenador de engenharia e tecnologia espacial do projeto na sede do Inpe, em São José dos Campos, no interior paulista. Os dados dos outros dois experimentos, um circuito integrado e o magnetômetro, ainda estão sendo analisados. As atualizações, fotos, vídeos do lançamento e outras informações técnicas sobre o projeto podem ser vistos no site www.inpe.br/crs/nanosat.

Pesquisadores da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) analisaram as capturas efetuadas pelo Programa de Monitoramento de Tubarões de Recife (Protuba) entre 2004 e 2011 e determinaram as características e o comportamento das populações mais abundantes desse tipo de peixe na zona costeira da capital pernambucana (Plos One, 10 de julho). O trabalho revelou que o relativamente pacífico tubarão-lixa (Ginglymostoma cirratum) ocorre o ano inteiro na região e o número de seus exemplares está aparentemente aumentando. Já a quantidade de espécimes do tubarão-flamengo (Carcharhinus acronotus) parece ter diminuído ao

longo dos anos. O agressivo tubarão-tigre (Galeocerdo cuvier), responsável pelos ataques a banhistas em praias de Recife, frequenta as águas costeiras da região durante o primeiro ano de vida, especialmente entre janeiro e setembro. No último trimestre do ano, ele se desloca para águas oceânicas mais profundas após atingir comprimentos entre 1,5 e 2 metros. “Os animais de maior porte visitam ocasionalmente a região, mas não permanecem muito tempo”, diz o biólogo André Afonso, um dos autores do artigo. “Em um outro estudo paralelo, constatamos que essa espécie se desloca por distâncias da ordem de milhares de quilômetros em águas brasileiras e internacionais.”

tEcnociência

País lança nanossatélite

Lançado em 19 de junho deste ano, o NanoSatC- -BR1 está funcionando muito bem. A sigla se refere ao nanossatélite científico brasileiro, concebido e desenvolvido por pesquisadores do Centro Regional Sul do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), em parceria com a Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), no Rio Grande do Sul. Os dados do satélite estão sendo recebidos pelas estações de Santa Maria e do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), ambas operadas por alunos e também por radioamadores. Com menos de 1 quilo de peso, o nanossatélite – chamado cubesat por ter a forma de um cubo com 10 centímetros de aresta (altura, largura e profundidade) – levou a bordo três cargas úteis ou experimentos. Um deles é um sensor 1

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Todos os tubarões de Recife

Tubarão- -tigre: jovens exemplares frequentam o litoral da capital pernambucana entre janeiro e setembro

NanoSatC-BR1: no espaço desde 19 de junho, com três experimentos em curso

PESQUISA FAPESP 222 | 13

Método descobre idioma de estrangeiro que escreve em inglês

Ler um texto escrito em inglês por falan-tes não nativos desse idioma pode ser suficiente para descobrir qual é a língua materna do redator. Cientistas da com-putação do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) e do Instituto de Tecnologia de Israel (Technion) desen-volveram um algoritmo que previu com 72% de acerto médio o idioma pátrio de mais de mil alunos estrangeiros que se submeteram a um teste de inglês. Os estudantes eram falantes nativos de 14

línguas distintas, entre as quais o portu-guês. Os resultados do trabalho foram apresentados no mês passado na 18ª Conferência sobre Aprendizado Compu-tacional Natural de Línguas, em Balti-more, Estados Unidos. Ao redigir em inglês, os alunos usavam certos padrões da síntaxe de sua língua materna, como a ordem típica do sujeito, do verbo e do objeto ou o modo de formular negações, que são pouco usuais no idioma de Sha-kespeare. O algoritmo não só conseguiu

Enzima facilita infecção fúngica

Um trabalho de pesquisadores brasileiros identificou um importante mecanismo que permite ao fungo Candida albicans, presente em 80% da população humana sem causar grandes problemas de saúde, aderir ao intestino. É a partir desse órgão que o microrganismo entra na corrente sanguínea, onde se torna um agente agressivo e causa a candidemia, um tipo de infecção com mortalidade de 50% mesmo em pacientes tratados com drogas antifúngicas. Uma equipe da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), do Instituto Butantan e da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) descobriu que o C. albicans expele de suas células uma enzima, a

enolase, que está presente nos biofilmes produzidos pelo fungo e é essencial para sua adesão ao epitélio intestinal (Frontiers in Cellular and Infection Microbiology, 2 de junho). A enolase é fundamental para a produção de energia do fungo. “A descoberta abre portas para o tratamento da candidemia”, diz o biólogo Marcelo Briones, da Unifesp, principal autor do trabalho. “Podemos usar a enolase como alvo para vários compostos que podem inibir a adesão do fungo e bloquear a sua infectividade.”

Esponja suga petróleo do mar

Barata, reciclável e de fácil utilização, uma esponja desenvolvida no Departamento de Química da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP absorve até 85% do petróleo derramado no mar e, segundo seus inventores, pode ser extremamente útil para controlar esse tipo de problema ecológico. Feita de polímeros flexíveis, como o poliuretano ou o PVC, a bucha é dotada de estruturas denominadas cucurbiturilas, que contam com uma cavidade central hidrofóbica capaz de acomodar moléculas de óleos ou produtos

químicos que não se misturam à água. O novo material é ideal para ser usado como complemento ao processo de bombeamento, que retira o grosso do petróleo vertido no mar, mas deixa finas camadas de óleo potencialmente prejudiciais ao meio ambiente. Esses resíduos de material poluente podem ser recuperados com o emprego da bucha, passível de ser reutilizada ao menos 10 vezes. A esponja foi patenteada pela Agência USP de Inovação e pode ser licenciada por empresas interessadas na exploração dessa tecnologia.

identificar essas peculiaridades como foi capaz de montar uma árvore com a pro-ximidade linguística entre os 14 idiomas analisados. “A coisa surpreendente é que nosso sistema inferiu essa árvore sem ter entrado em contato com uma só pa-lavra dessas línguas”, diz Yevgeni Berzak, um dos autores do estudo.

Imagens de microscopia do fungo Candida albicans: enzima enolase (em vermelho) facilita adesão ao intestino

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14 | agosto DE 2014

Avalanche vulcânica

Não é apenas a lava expelida que torna perigoso um grande vulcão. O desabamento das encostas mais íngremes, em razão de instabilidades nas vertentes que sustentam a boca da montanha durante uma erupção, pode provocar avalanches de detritos capazes de mudar a paisagem ao redor em questão de minutos. Uma equipe de geólogos da Universidade Autônoma do México e da Universidade Massey (Nova Zelândia) publicou um trabalho em que descreve detalhes de um dos maiores eventos desse tipo, ocorrido há 25 mil anos: o colapso parcial das paredes que revestiam as formas cônicas do vulcão Taranaki, também chamado de monte Egmont, situado a oeste da ilha norte que forma a Nova Zelândia. Esse desmoronamento de

setores das encostas do vulcão – ainda hoje ativo (a última erupção foi em 1854) e cujo cume atinge 2.518 metros de altitude – espalhou blocos de sedimentos de maneira caótica, alguns tendo sido transportados a uma distância de até 30 quilômetros em torno do Taranaki (Geological society of america bulletin, 30 de junho). A avalanche de material ocorreu provavelmente perto do Último Máximo Glacial, o momento mais extremo da mais recente Era do Gelo. Capitaneada pelo italiano Matteo Roverato, que agora faz um pós-doutoramento na Universidade de São Paulo, a equipe de pesquisadores estudou a típica textura fraturada, semelhante às peças de um quebra-cabeça, presente nos sedimentos espalhados pela histórica avalanche de detritos oriundos das bordas da montanha.

Luz deforma a água

As partículas de luz, os fótons, excercem uma pressão sobre as coisas que atingem. Até recentemente, os físicos debatiam qual fórmula deveriam usar em seus cálculos da força da luz sobre materiais transparentes, se a proposta por Hermann Minkowski em 1908 ou a formulada por Max Abraham em 1909. Estudos teóricos nos anos 2000 confirmaram que, na verdade, ambas as fórmulas são válidas. Nenhuma experiência em laboratório havia confirmado precisamente essa conclusão, até que uma equipe liderada por Nelson Astrath, da Universidade Estadual de Maringá (UEM) e da Universidade Estadual de Utah, Estados Unidos, analisou as ondas de apenas alguns milionésimos de milímetro que foram criadas pela força da luz de um feixe de laser que incidia sobre uma pequena superfície de água (nature Communications, julho). “A pressão exercida pelo laser que usamos na água era cerca de 300 mil vezes menor que a pressão atmosférica ao nível do mar”, explica um dos autores da pesquisa, Luis Carlos Malacarne, da UEM. “A deformação na água que medimos pode ser calculada usando equações baseadas em ambas as interpretações para as forças da luz.”

Monte Taranaki, na Nova Zelândia: colapso de encostas há 25 mil anos transportou detritos a 30 quilômetros de distância

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PESQUISA FAPESP 222 | 15

drones mapeiam áreas rurais

A Embrapa Instrumentação, de São Carlos, no interior de São Paulo, desenvolveu e aprimorou softwares de processamento para serem utilizados em imagens captadas por veículos aéreos não tripulados, os vants, também conhecidos como drones. “As análises feitas pelos softwares das imagens indicam, por meio de cores específicas, falhas na lavoura, áreas atacadas por pragas, deficiências hídricas, problemas de solo e outros que provocam prejuízos às culturas agrícolas”, diz o pesquisador Lúcio André de Jorge Castro, da

Embrapa Instrumentação, responsável pelo desenvolvimento dos programas de processamento. A interpretação das imagens será útil para os produtores se anteciparem aos problemas e tomarem

Uma fábrica de pele artificial

A produção de pele artificial para ser usa-da em testes de cosméticos se aproxima cada vez mais da escala industrial. O Fraunhofer IGB, um instituto sediado em Stuttgart (Alemanha) dedicado à ciência aplicada, criou um sistema automatizado que produz 12 mil fragmentos de pele a partir de uma amostra de tecido humano. O processo de cultivo das células – ba-seado em um modelo que emprega téc-nicas livres de patentes, sem restrição de uso comercial – demora 14 dias. “Com a proibição dos testes em animais em várias partes do mundo, a demanda por esse tipo de material deverá aumentar muito”, diz Florian Groeber, do departamento de engenharia de células e tecidos do insti-tuto, um dos pesquisadores envolvidos na iniciativa. O primeiro protótipo dessa “fábrica de tecidos”, cujo projeto se iniciou em 2007, foi mostrado ao público em 2011. Agora o sistema está pronto para ser vendido a empresas que necessitam com frequência realizar testes para se certificar de que seus produtos de beleza

não causam alergia ou irritação na pele humana. Cada amostra de pele produzi-da custa cerca de € 50. O Fraunhofer IGB não revela o preço de venda de um sis-tema automatizado para produzir pele artificial. “Estamos abertos a conversar com as empresas interessadas e negociar o valor de acordo com o tamanho do pe-dido”, afirma Groeber. No futuro próximo, os pesquisadores alemães acreditam que o sistema também poderá ser modificado para produzir outros tipos de tecidos hu-manos e pele com qualidade suficiente para ser usada em enxertos.

Sistema automatizado de cultivo celular faz, em 14 dias, modelo de pele para testar cosméticos

Paracetamol ou placebo? Tanto faz

Para crises agudas de dor lombar, tomar o analgésico paracetamol ou um placebo (preparação neutra, sem efeito farmacológico) não altera o tempo de recuperação. A conclusão é de um estudo que acompanhou 1.652 pessoas com dores nas costas que foram medicadas em 235 centros de atendimento primário de Sydney, Austrália (the lancet, 24 de julho). Por quatro semanas, os pacientes, que tinham idade média de 45 anos, receberam a droga ou o composto. Ao final do tratamento, os indivíduos que tomaram o analgésico demoraram 17 dias para se recuperar. Os que receberam placebo melhoraram após 16 dias. “Analgésicos simples, como o paracetamol, não devem ser de importância primordial para controlar episódios de dor lombar”, diz Christopher Williams, da Universidade de Sydney, principal autor do trabalho. “Os resultados do estudo sugerem que precisamos reconsiderar a recomendação universal de receitar paracetamol como um tratamento de primeira linha para esse problema. Entender por que esse analgésico funciona em outras situações, mas não para reduzir as dores nas costas, pode ser útil para desenvolvermos novos tratamentos.”

decisões. Atualmente, a tecnologia está em fase de validação em culturas como cana, citros, milho e algodão e em propriedades com tamanhos variados. Os preços estimados para os drones deverão variar de R$ 1.000 a R$ 20 mil.

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Veículo aéreo não tripulado

da Embrapa: na busca por áreas

atacadas por pragas e falhas

na lavoura

capa

O caminho de pedras das doenças raras

TexTo carlos Fioravanti

FoTos Eduardo cesar

de Monte santo, BA

pESQUISa FapESp 222 | 17

A via-sacra de Monte santo: local de peregrinação que recebe milhares de pessoas todo ano, e os ex-votos da capela no final da trilha de pedra (acima)

osé de Andrade Pereira é um homem de fibra. Em 2004, ele levou o filho mais ve-lho, que aos três anos era muito baixo, tinha dedos curtos, cabeça grande e di-ficuldade de fala – e mais uma vez estava

com forte dor de ouvido –, a um posto de saúde de Monte San-to, interior da Bahia. O médico lhe disse que, além de cuidar da dor de ouvido, não poderia fazer mais nada diante de uma doença que não conhecia e que ele deveria apenas esperar o menino morrer. Pereira reagiu: “Esperar é o que não vou fazer, nunca!”. Ele fez a viagem de seis horas até Salvador e pergun-tou a um porteiro do Hospital Universitário Professor Edgard Santos quem ele deveria procurar para tratar de um menino como aquele. Os médicos examinaram o menino e depois o irmão de 11 meses, na viagem seguinte, e concluíram que os dois tinham mucopolissacaridose tipo 6, uma doença rara de origem genética então sem tratamento. Pereira alertou: “Tem outras crianças assim por lá”. Sua visão de mundo mudou a história desta cidade do sertão baiano.

O caminho de pedras das doenças raras

Mapeamento mostra

distribuição de distúrbios

genéticos no país

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18 | agosto DE 2014

Monte Santo foi um acampamento para as tro-pas do governo que lutaram na guerra de Canu-dos. A praça principal exibe uma escultura em madeira de Antonio Conselheiro, o beato que liderou os sertanejos vistos como opositores da república nascente. Apontada para a escultura há uma matadeira, canhão usado nas batalhas em que morreram 25 mil revoltosos e 5 mil sol-dados. Nos últimos anos Monte Santo tem sido o palco de outras batalhas: a identificação, o tra-tamento e a prevenção de doenças genéticas ra-ras, que começaram a ser reconhecidas a partir da indicação de Pereira. Antes as crianças com doenças como a mucopolissacaridose permane-ciam em suas casas. Seus pais achavam que nada mais poderia ser feito.

Médicos e pesquisadores de Salvador, Rio de Janeiro e Porto Alegre foram a Monte Santo pela primeira vez em 2006 e se espantaram com a diversi-

dade de doenças raras que viam em um só lugar. Já diagnosticaram 13 pessoas com mucopolissaca-ridose tipo 6, uma proporção 240 vezes maior do que a média nacional, 84 com deficiência auditiva de possível origem genética, 12 com hipotireoi-dismo congênito, nove com fenilcetonúria, que pode causar deficiência intelectual se não tratada, quatro com osteogênese imperfeita, marcada pela extrema fragilidade dos ossos, e quatro com síndrome de Treacher Collins, que prejudica a formação dos ossos do crânio.

Acredita-se que os casamentos entre parentes, antes muito frequentes, possam ter favorecido o surgimento de doenças físicas e mentais de origem genética. Muitas pessoas se casavam sem saber que tinham ascendentes próximos em comum. José Pereira e sua esposa, Júlia Isaura dos San-

tos Pereira, souberam que eram parentes só há poucos anos, ao reconstituírem a genealogia da família com os pesquisadores de Salvador, e enfim entenderam por que tinham ouvido falar de tios com a mesma doença dos dois filhos mais velhos. Talvez as raízes mais pro-fundas desses problemas estejam na própria histó-ria do lugar. Vários relatos do historiador baiano Jo-sé Calasans indicam que o município hoje com 52 mil moradores – espalha-dos em 47 povoados ao redor do núcleo urbano – foi um centro de conver-gência de pessoas doentes em busca dos milagres do Conselheiro, que reforçou a fama religiosa do lugar. Foi ele quem reformou as capelas ao longo da via-sa-cra, um caminho íngreme e sinuoso de pedras, com 2,8 quilômetros (km) de extensão, que termina em uma capela erguida no alto do morro em 1786 por um padre italiano. Todo ano, milhares de romeiros so-bem o caminho de pedras, às vezes de joelhos ou com uma pedra na cabeça, para pagar promessas. Por serem geralmente pobres, os doentes, curados ou não, seus familiares e romeiros podem ter tido dificuldade para voltar para suas terras de origem ou preferido ficar na região.

Como deve haver mais pessoas ainda não diag-nosticadas, a médica geneticista Angelina Acos-ta, professora da Universidade Federal da Bahia

Em Monte Santo, muitas pessoas se casaram sem saber que eram parentes entre si

Monte santo ao anoitecer: palco de batalhas históricas

O território dos geneso Nordeste apresenta o maior número de municípios com grupos de pessoas

ou famílias com características genéticas específicas (isolados genéticos)

FOntES GABrielA CArdoso e lAviNiA sChuler-FACCiNi/uFrGs-iNAGeMP

*Atendimento médico já estruturado às pessoas com doenças genéticas

paRÁItupiranga 15 diafanoespondilodisostose

Maracanã (Fortalezinha) 12 surdez congênitaaLaGOaS

Água Branca* 53 aniridiaBatalha 2 condrodisplasia

Craíbas (povoado de Maruais) 8 amarelosFeira Grande 38 doença de huntington

Girau do Ponciano 2 mucolipidose iiMata Grande 2 condrodisplasia

Maravilha* 4 síndrome de KindlerOuro Branco 2 condrodisplasia

Santana do Mundaú 10 albinismo cutâneo sem problemas visuaisBaHIa

Itapé 3 síndrome de Meckel tipo iMaraú (Ilha dos Sapinhos) Albinismo óculo-cutâneo tipo iA

Miguel Calmon Albinismo óculo-cutâneo tipo iAMonte Santo* 9 fenilcetonúria, 13 mucopolissacaridose vi,

84 surdez autossômica recessiva, 12 hipotireoidismo congênito, 4 osteogênese imperfeita, 4 síndrome de Treacher-Collins

Salvador (Ilha da Maré) Albinismo óculo-cutâneo tipo iASul da Bahia 47 condrodisplasia

Geograficamente dispersa 450 albinismo de tipo indefinidocEaRÁAquiraz 4 mucopolissacaridose iiAracati 15 tricoepitelioma familiar

Mombaça 3 mucopolissacaridose ivAQuixeré 4 mucopolissacaridose vi

Tabuleiro do Norte* 4 doença de Gaucher tipo iMaRanHÃO

Cururupu (Ilha dos Lençóis)* 18 albinismo de tipo indefinidoDistrito de Regada em Cajari* 2 talidomida-Focomelia

paRaÍBaBom Sucesso 7 doença de Machado-Joseph

Campina Grande 3 mucopolissacaridose ivAConceição 1 mucopolissacaridose ivA

Congo 1 mucopolissacaridose ivACongo, Taperoá, Serra Branca 3 mucopolissacaridose iiiC

Coxixola 2 mucopolissacaridose ivAGado Bravo e regiões 10 hiperplasia adrenal congênita

Jericó 2 distrofia muscular, cinturas pélvica e escapular tipo 2B, 3 doença de Machado-Joseph

Lagoa 4 doença de Machado-JosephOuro Velho 1 distrofia muscular de BeckerQueimadas 1 surdez autossômica recessiva,

1 xantomatose cerebrotendineaSanta Cruz 1 distrofia miotônica, 1 doença de

Niemann-Pick tipo C1, 3 doença de Machado-Joseph

São Francisco 3 ataxia telandiectasiaSerra Branca (região) 36 mucopolissacaridose ivA

Sossego 2 doença de Charcot-Marie-ToothUiraúna 2 ataxia telandiectasia, 7 doença de

Machado-Joseph, 5 neurofibromatose iVieirópolis 3 atrofia muscular espinhal tipo i

pERnaMBUcOBelo Jardim 16 opsismodisplasia

Gameleira 4 síndrome de costela curta e polidactilia tipo iiOrobó 6 síndrome de laron

Quipapá 13 albinismo óculo-cutâneo tipo iipIaUÍ

Betânia do Piauí 4 síndrome do olho de peixeCanto do Buriti 2 síndrome do olho de peixe

RIO GRanDE DO nORtECoronel João Pessoa* 2 paraparesia espástica, atrofia óptica

e neuropatia (spoan) Doutor Severiano* 3 spoan

Encanto* 2 spoan Olho-d’Água do Borges* osteogênese imperfeita tipo ii, paraparesia

espástica 35 autossômica recessiva (total: 56)Ouro Branco distrofia muscular, cinturas pélvica e escapular

Pau dos Ferros* spoan Pilões Ataxia de Friedreich 1, atrofia muscular espinal ii,

distrofia muscular congênita, mucopolissacaridose vii, paraparesia espástica 35 (total: 105)

Riacho de Santana* 6 síndrome santos e 156 deficiências possivelmente genéticas

São Miguel* Acondroplasia, atrofia muscular espinhal i, displasia acetabular, distrofia muscular de duchenne, doença de Charcot-Marie-Tooth, lipodistrofia congênita generalizada tipo 2, mucopolissacaridose vii, paraparesia espástica 35, síndrome de deficiência de alfa-talassemia, síndrome de lesch-Nyhan, síndrome de usher tipo i, spoan, surdez autossômica dominante (total: 734)

Serrinha dos Pintos* Fibrose cística, paraparesia espástica 35 autossômica recessiva, 25 spoan (total: 724)

SERGIpEItabaianinha* 110 deficiência isolada do hormônio

do crescimento tipo iAGOIÁS

Faina (povoado de Araras)* 22 xeroderma pigmentosoMatO GROSSO

Jangada 2 síndrome de hurlerMatO GROSSO DO SUL

Três Lagoas 2 síndrome de FraserMInaS GERaIS

Alfenas* 15 fendas oraisBueno Brandão 3 osteogênese imperfeita tipo iii

Cambuí 2 síndrome de Meckel tipo iExtrema 2 síndrome de Meckel tipo 1

Jequitinhonha 2 hipoplasia de cabelo e cartilagemPouso Alegre 2 síndrome de Meckel tipo i

São José do Pântano* 11 síndrome de Neu-laxovaGeograficamente dispersa 6 aquiropodia

RIO DE JanEIRORio de Janeiro Ataxia espinocerebelar

SÃO paULORibeirão Preto (região)* 3 displasia dérmica trigeminal cerebelar

Vinhedo 3 doença de xarope do bordo, 1 síndrome de Fraser

Geograficamente dispersa pelo Sul e Sudeste

325 síndrome de li-Fraumeni, 3 neuropatia motora e sensorial hereditária tipo proximal (descendentes de japoneses)

paRanÁReserva

Kaingang - Mangueirinha6 artrite reumatoide

Geograficamente dispersa 103 carcinoma adrenocortical hereditárioRIO GRanDE DO SUL

Cândido Godói* 185 (91 pares e 1 trinca) gemelaridadeCaxias do Sul 3 doença de depósito de glicogênio ia

Garibaldi 2 doença de depósito de glicogênio iaGeneral Câmara* 7 doença de Machado-Joseph

Humaitá (Sede Nova) 3 ictiose congênita autossômica recessivaMontenegro* 5 anencefaliaPorto Alegre* 19 GM1-gangliosidose tipo i

São Pedro do Sul* 4 doença de Machado-JosephGeograficamente dispersa 117 câncer mama-ovário familiar

348 doença de Machado-JosephSanta cataRIna

Valongo 74 consanguinidade

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pelo governo de apenas um medicamento usado para tratar mucopolissacaridose implicaria uma economia de R$ 50 milhões, em relação ao que é gasto para atender as decisões judiciais, que obri-gam o governo a comprar os remédios. Estima-se que 13 milhões de pessoas no país tenham algu-ma doença rara, das quais, em todo o mundo, já

foram descritos 6 mil tipos, a maioria de origem genética.

DE nORtE a SULO trabalho dos pesquisado-res acadêmicos com os pro-fissionais da saúde locais em busca de outros moradores com doenças incomuns co-loca Monte Santo na linha de frente do Censo Nacional de Isolados (Ceniso), organiza-do pelo Instituto Nacional de Genética Médica e Popula-cional (Inagemp). Em abril de 2014, um artigo publicado na revista Genetics and Mo-lecular Biology apresentou um dos resultados do Ceni-so: um levantamento nacional dos municípios com grupos de pessoas ou famílias com doenças genéticas. Uma ver-são atualizada desse mapea-

mento, apresentada na página anterior, reúne 81 municípios, onde vivem 4.136 pessoas com caracte-rísticas genéticas específicas, os chamados isolados genéticos. Nem sempre são doenças. O município gaúcho de Cândido Godói, por exemplo, apresen-ta um número extraordinário de gêmeos. A equi-pe da médica geneticista Lavínia Schuler Faccini, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e membro do comitê coordenador do Inagemp, identificou 91 gêmeos duplos e um tri-plo nascidos entre 1959 e 2000 no município, hoje com 6 mil moradores. Entre 1994 e 2006, 2% das crianças nascidas em Cândido Godói eram gêmeas, o dobro da média nacional. Em um dos distritos a taxa de gêmeos chegou a 10%.

Algumas doenças genéticas se manifestam na idade adulta, mesmo depois dos 40 anos de idade, como a ataxia de Machado-Joseph, que causa a perda progressiva do equilíbrio, dos movimentos e da fala. Lavínia, com sua equipe, que faz o acon-selhamento genético dos familiares de quase 400 pessoas com ataxia em Porto Alegre, tem obser-vado que o diagnóstico em geral tardio costu-ma gerar angústia e culpa, porque as pessoas já podem ter tido filhos ou netos com as mutações causadoras da doença.

Há doenças de alcance regional, como a síndro-me de Li-Fraumeni, uma forma genética heredi-

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Y(UFBA), subiu ao auditório da Câmara de Verea-dores no início da tarde do dia 10 de julho e expôs a médicos e políticos seu plano de fazer um censo da saúde de toda a população. “Somos de univer-sidades, mas trabalhamos com vocês todos, para que nosso trabalho tenha uma aplicação prática”, ela afirmou. A secretária municipal da Saúde, Itá-cia Macedo de Andrade Sil-va, acompanhava tudo com atenção. “Quero fazer algo pela minha terra”, disse ela, explicando por que voltou à cidade depois de estudar en-fermagem em Salvador. Na manhã seguinte, a equipe coordenada por Angelina e por Kiyoko Sandes conversou com 80 agentes comunitá-rios da saúde que vão visitar os povoados em busca de ou-tros casos, a partir deste mês. O diálogo resultou em indi-cações de pessoas que ainda não haviam sido examinadas e na formação de um comitê para acompanhar o censo e o tratamento. José Pereira era um dos integrantes.

As doenças raras formam um mundo de sofrimento, so-lidão, fantasias e culpa, que começa a ser examinado publicamente. “O Sistema Único de Saúde [SUS] reconheceu que as doen-ças raras devem ser tratadas”, comenta Clarice Alegre Petramale, diretora do departamento de gestão e incorporação de tecnologias do Ministé-rio da Saúde. A política nacional de atendimento médico às pessoas com doenças raras – definidas como qualquer enfermidade apresentada por até 13 pessoas em cada grupo de 20 mil indivíduos – está em vigor desde maio deste ano. Os grupos de doenças prioritárias para atendimento devem ser anunciados até o fim deste ano.

Para a maioria das doenças raras não há medi-camentos específicos, apenas tratamento de apoio, como fisioterapia e fonoaudiologia. Quando existe medicação, é geralmente importada e obtida por meio de decisões judiciais. “Os remédios são ca-ros e muitas vezes de eficácia incerta, porque não passaram por todos os testes rigorosos de avalia-ção, já que foram testados em um número muito pequeno de pacientes”, diz Magda Carneiro-Sam-paio, diretora do Instituto da Criança da Univer-sidade de São Paulo (USP). “E os medicamentos podem ser indicados já em estágios avançados das doenças, quando não funcionam tão bem. É uma situação mal equacionada, mas não é só no Brasil.” Maíra Catharina Ramos, da Universida-de de Brasília, calculou que a compra voluntária

Uma política nacional, em vigor desde maio, deve facilitar o diagnóstico e o tratamento das doenças raras

pESQUISa FapESp 222 | 21

tária de predisposição ao câncer, já identificada em 325 pessoas dos estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Um estudo recente registrou uma prevalência al-ta, de 0,27%, da mutação causadora da doença em 171 mil bebês de Curitiba examinados, indicando que essa doença, em alguns lugares, não é rara e necessitaria de um acompanhamento intensivo, principalmente com as pessoas de risco mais alto.

O médico Eduardo Enrique Castilla, pesquisador da Fiocruz do Rio de Ja-neiro e um dos idealizadores do censo, acredita que o total de municípios já

identificados com doenças genéticas raras no Brasil deve representar apenas 20% do previsto. A lista não para de crescer porque os pesqui-sadores continuam encontrando indicações de outros lugares ainda não mapeados. Em junho deste ano, o geneticista Carlos Menck, da USP, foi a Miracatu, cidade de 30 mil habitantes a 130 km de São Paulo, e identificou quatro pessoas de uma mesma família com xeroderma pigmentoso, já diagnosticada em 22 dos moradores de um povoado no interior de Goiás. Embora a doença seja a mesma, as mutações que a causam, os genes e os cromossomos atingidos são diferentes nas pessoas dos dois estados.

Desde 2013, a equipe da médica geneticista Denise Cavalcanti, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), identificou novos clus-ters, outro nome para os isolados genéticos, de diferentes displasias esqueléticas, doenças que prejudicam o crescimento dos ossos. Os clusters estão em cinco municípios dos estados do Cea-rá, Alagoas, Pernambuco e São Paulo. Um deles, identificado em colaboração com uma médica geneticista de Fortaleza, impressiona pelo nú-mero de pessoas diagnosticadas até agora – 27, de 22 famílias. Dispersas em pelo menos 10 cida-des pequenas do interior do Ceará, elas têm uma doença bastante rara chamada picnodisostose, a mesma que determinou a baixa estatura do ar-tista francês Henri de Toulouse-Lautrec. Denise, com seu grupo, trabalha agora para identificar o possível local de origem da mutação que causa a doença, o chamado efeito fundador, no Ceará. 

“Você não imagina como é importante para as mães saber o nome da doença dos filhos, mesmo que não exista tratamento, porque aí param de andar de um médico para outro”, diz Denise. Um dia ela recebeu uma carta de uma mulher de Be-lém que agradeceu pelo diagnóstico de um filho e comentou: “Era angustiante não termos um diagnóstico, era como andar no escuro ou sem rumo”. Quando conhecem o nome das doenças,

Falhas perigosasAs mutações ajudam a confirmar o diagnóstico e a encontrar casos similares na mesma família ou localidade

os 23 pares

de cromossomos

encontrados

nas células

das mulheres

FOntES ANGeliNA ACosTA/uFBA, lAvíNiA sChuler-FACCiNi/uFrGs, líGiA PereirA CAsTro/usP

1 6 7 8 9

10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22

xxCromossomos sexuais

2 3 4 5

Mutação p.h178l, no gene da arilsulfatase B, causadora de mucopolis- sacaridose tipo 6

Mutação no gene xPv, causadora da xeroderma pigmentoso em Araras

Mutação p.252W, no gene da fenilalanina hidroxilase, causadora de fenilcetonúria

Mutação c.141+1G>A, no gene PAx6, causadora da aniridia (ausência de íris)

região das mutações em cada cromossomo

Mutação p.r337h, no gene TP53, causadora da síndrome de li-Fraumeni

Mutação c.35delG, no gene GJB2, um dos causadores de surdez

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as mães “voltam a apostar nos filhos”, observa Isabella Queiroz, professora da Escola Bahiana de Medicina e psicóloga da Apae de Salvador que atende as famílias com doenças genéticas de Monte Santo. “Já fizemos mais de 200 sessões de aconselhamento genético.” Nesses encontros, a equipe médica explica que as doenças genéticas hereditárias resultam da transmissão de genes com alterações (ou mutações), porque apenas o casamento entre parentes não é a única expli-cação. Ao ver um mapa genético da família re-lacionando as pessoas saudáveis e doentes, uma mulher entendeu a seu modo o que acontecia: “Juntou uma manchinha minha com outra de meu marido e nasceu prejudicado, é isso?”. É também quando transbordam a culpa por ter tido filhos doentes, o desamparo e a raiva. Um dos homens questionou quem o atendia: “Não posso mais ter filhos? Então estou condenado?”. A equipe de aconselhamento genético sabe que deve expor os riscos de doenças hereditárias sem intervir sobre a escolha dos casais de terem filhos.

Às vezes, casais mais jovens, antes de ter filhos, procuram voluntariamente o serviço médico para detectar eventuais mutações prejudiciais, indicando que o

número de casos de algumas doenças genéticas pode cair nos próximos anos. O hábito de casar com primos – muito mais frequente nos países muçulmanos do que no Brasil – é que talvez seja mais difícil de mudar, porque tem sido adotado há muito tempo, como forma de manter as terras em família ou por preferências pessoais. Quando visitaram Tabuleiro do Norte, município a 200 km de Fortaleza com alta prevalência de uma doença metabólica conhecida como síndrome de Gaucher, os pesquisadores ouviram os homens dizerem que as mulheres da capital eram boas

para namorar e as de Tabuleiro, boas para casar. Permanecer atrelado ao próprio lugar é que pode-ria, portanto, causar o índice elevado de doenças genéticas. Um padre de Monte Santo, conta-se, ofereceu bicicletas para os rapazes buscarem noivas em outros lugares, mas ninguém aceitou.

“Muita coisa mudou”, observa Maria Olívia Sou-sa Costa, secretária da Saúde de Monte Santo de 2008 a 2011. “Os médicos se tornaram responsá-veis pela identificação de doenças raras, e as mães ganharam consciência de seus direitos à saúde e reclamavam quando faltava infusão.” Infusão é um preparado com a enzima arilsulfatase B, que as crianças com mucopolissacaridose tipo 6 não produzem e é aplicada em sessões de quatro horas, uma vez por semana. Durante anos os pais levavam as crianças a Salvador para receberem a medica-ção, desde 2011 aplicada em um anexo do hospital da cidade. Nem tudo mudou, porém, porque nem sempre há medicação. “Tem de cobrar sempre, mas não me acanho, não”, diz Pereira. Seus dois filhos começaram a ser tratados em 2008 em Salvador, quatro anos depois do diagnóstico, já que a enzima não tinha sido ainda liberada para uso no Brasil.

1

Primas com fenilcetonúria controlada: ao lado, raíra Anielli Carvalho silva, entre a mãe, eliana Batista Carvalho, e o irmão, ranieri Carvalho silva (esquerda), e o avô de 92 anos, José lopes de Carvalho, e o pai, José Nildo Andrade silva

Abaixo, Camilly vitória de souza Andrade, entre o pai, José Armando Moraes de Andrade, e a mãe, Cremilda Maria de souza Andrade

livro de casamentos da paróquia de Monte santo

em 1938: no caso de primos, o vigário tinha

de dar “dispensa de impedimento”

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A doença não pôde ser revertida. Hoje Jorge tem 17 anos e seu irmão Sidney, 14, ambos com menos de um metro de altura e com dificultades de mo-vimento. Vitor Gonzaga Andrade, filho de Alaíde Gonzaga Andrade, prima de Pereira, começou a receber a medicação aos dois anos e hoje, aos seis, corre como um menino saudável.

Cremilda Maria de Souza Andrade se sentiu desarvorada ao saber que a filha Camilly tinha fenilcetonúria, diagnosticada um mês depois de nascer. Foi para Salvador e começou o tratamento, que consiste em uma dieta rigorosa, sem nenhuma proteína que contenha fenilalanina, que o orga-nismo não consegue processar. “Hoje estou feliz”, diz Cremilda, mostrando com orgulho os cader-nos da filha, agora com 11 anos e sempre atenta à dieta. Camilly é prima de Raíra Anielli Carvalho Silva, de 12 anos, que também tem fenilcetonúria, detectada logo após nascer e controlada por meio da alimentação. No mesmo povoado de Raíra, po-rém, moram dois irmãos, hoje com 40 e 27 anos e a mesma mutação das meninas. Como o teste do pezinho ainda não era comum na região quando eles nasceram, a doença deles foi detectada muito depois, não foi controlada e causou os distúrbios mentais que os impedem de sair de casa.

pÉ na EStRaDaPara fazer um trabalho abrangente, os pesquisado-res têm de sair do laboratório, colocar uma roupa de estrada, viajar para lugares inimagináveis, co-nhecer os hábitos e os silêncios dos moradores do interior do país e buscar informações em outros espaços. Para localizar pessoas com maior risco de doenças genéticas, Angelina Acosta e sua equipe consultaram os livros de casamentos, batizados e mortes na paróquia de Monte Santo desde 1831,

e refizeram a história de 1.419 famílias. Depois de se perderem, encontraram o caminho das pe-dras, valioso até mesmo para os historiadores, ao verem que as mulheres ganhavam sobrenome apenas depois de casadas, os casais registravam as filhas com o sobrenome da mãe e o filho com o sobrenome do pai, além de apelidos usados como nomes – um homem conhecido como Santana na verdade chamava José da Silva. Em Monte Santo, nomes e sobrenomes se repetiam em um labirinto como o da família Buendía em Cem anos de so-lidão, cujos integrantes viviam casando entre si e depois temiam ter filhos com rabo de cavalo.

A publicação de artigos científicos ainda é im-portante, mas não é a prioridade, porque há “uma obrigação moral” de relatar as descobertas pri-meiramente às comunidades estudadas, enfatiza Castilla. Em uma manhã de sábado, Lavínia e sua equipe se puseram à frente de 200 pessoas no salão de festas da igreja de Cândido Godói para explicar o motivo do número elevado de gêmeos, muitos deles na plateia: era uma provável consequência de uma variação do gene da proteína p53, que pode-ria favorecer o desenvolvimento de dois embriões por gestação. Durante décadas se acreditou que os gêmeos eram um efeito da água supostamente especial do município. n

Artigos científicosCAsTillA, eduardo e.; sChuler-FACCiNi, lavínia. From rumors to genetic isolates. Genetics and Molecular Biology. v. 1, n. 37, p. 186-93. 2014.TAGliANi-riBeiro A. et al. high twinning rate in Cândido Godói: a new role for p53 in human fertility. Human Reproduction. v. 27, n. 9, p. 2866-71. 2012.MAChAdo, T. M. B. et al. Types of marriages, population structure and genetic disease. Journal of Biosocial Science. v. 45, n. 4, p. 461-70. 2013.

24 | agosto DE 2014

A química dos produtos naturais

entrevistA

Mariluce Moura e ricardo Zorzetto

Foi a vontade de se tornar pesquisadora e fazer uma quí-mica voltada para entender o funcionamento da natureza que levou Vanderlan da Silva Bolzani a deixar a casa dos pais em João Pessoa, Paraíba, em meados dos anos 1970,

rumo a São Paulo para fazer seu mestrado. “Vim com a cara e a coragem”, lembra Vanderlan, que anos mais tarde se tornaria professora do Instituto de Química da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Araraquara e pesquisadora internacional-mente reconhecida por seus trabalhos na área de química de produtos naturais. “Na época eu não trabalhava e, para manter uma filha em São Paulo, a família precisava ter dinheiro. Meus familiares fizeram uma reunião e meu pai falou que faria o maior sacrifício para me bancar nos primeiros meses e que depois eu deveria dar um jeito de me manter”, lembra a pesquisadora.

Formada em farmácia pela Universidade Federal da Paraíba, onde havia inicialmente cursado medicina, Vanderlan é filha de uma descendente de portugueses que se casou com um des-cendente de índios. Ela atribui o seu interesse pela química da natureza à herança genética paterna, consolidado durante a graduação, quando teve professores que despertaram sua paixão pela área da química que mais se aproxima da biologia.

Já na chegada a São Paulo, alguns sustos. O pesquisador que havia aceitado orientá-la no mestrado, Paulo de Carvalho, morreu vítima de um infarto fulminante e sua colega de quarto teve uma crise epiléptica. O apoio da família foi fundamental para que não desistisse naquele momento nem mais adian-te, quando, fazendo o doutorado e com dois filhos pequenos, seu marido, o sociólogo Jorge Bolzani, sofreu um acidente vascular cerebral (AVC) aos 38 anos que o impossibilitou de trabalhar pelo resto da vida – ele morreu em 2011 aos 60 anos.

Essas e outras adversidades não acanharam essa “nordestina tímida”, que, sob a orientação de seu grande mestre, o quími-co Otto Gottlieb, um dos pioneiros em química de produtos naturais no Brasil, conquistou reconhecimento nacional e

Vanderlan da Silva Bolzani

idAde 64 anos

especiAlidAde Química de produtos naturais

forMAção Universidade Federal da Paraíba (UFPB), graduação (1972); Universidade de São Paulo (USP), mestrado (1978) e doutorado (1982); Virginia Polytechnic Institute and State University, pós-doutorado (1992-1994)

instituição Instituto de Química de Araraquara da Universidade Estadual Paulista (Unesp)

produção científicA 198 artigos científicos, citados 2.377 vezes. Orientou 19 dissertações de mestrado e 20 teses de doutorado. Supervisionou 20 estágios de pós-doutorado

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internacional, inclusive o Distinguished Women in Science, em 2011, conferido pela American Chemical Society (ACS) e pela International Union of Pure and Applied Chemistry (Iupac).

Além da dupla jornada como mãe (ho-je também avó) e pesquisadora, Vander-lan tem forte atuação na política acadê-mica, buscando ampliar a cooperação internacional e entre áreas da ciência e reduzir o ranço cultural que atrapa-lha a ascensão da mulher aos cargos de direção na academia. Ela foi presidente da Sociedade Brasileira de Química (SBQ) de 2008 a 2010 e é vice-diretora da Agên-cia de Inovação da Unesp, onde coordena um grupo de pesquisadores que já inves-tigaram cerca de 170 extratos de plantas e isolaram 640 substâncias, algumas com potencial interesse farmacológico.

A seguir, leia os principais trechos da entrevista concedida à Pesquisa FAPESP.

Qual o prêmio mais significativo entre os que você já recebeu?O Distinguished Women in Science, um prêmio mundial, numa competição com mulheres de todos os continentes. Foram eleitas algumas de cada continente. Elas foram indicadas pelas sociedades cientí-ficas e por pesquisadores. Eu fui indicada pelo professor Adriano Andicopulo e por Alejandra Palermo, da Royal Society of Chemistry e mais colegas estrangeiros, entre eles Gerard Bringmann, da Universi-dade de Würzburg, na Alemanha, e Leslie Gunatilaka, da Universidade do Arizona, nos Estados Unidos, da área de produtos naturais.

Quando foi isso?Em 2011, o Ano Internacional da Quími-ca, que também prestou uma homena-gem às mulheres na ciência e comemo-rou o centenário do Nobel concedido a Marie Curie. Fui a única representan-te da América Latina numa premiação mundial para químicas e engenheiras químicas, sendo da área de produtos naturais. No Brasil, destaco a medalha Simão Mathias, também em 2011, desti-nada a pesquisadores que deram grande contribuição à química. Agora em 2014 recebi o Capes-Elsevier, em função da produção acadêmica. É um prêmio para mulheres de diversas áreas da ciência, e acho importante ter sido conferido a alguém de produtos naturais, porque na química, como nas outras ciências,

é comum a competição de áreas que se acham mais relevantes do que outras.

Como surgiu seu interesse pela quími-ca de produtos naturais?Deve ser uma herança atávica. Nasci em uma cidade muito pequena, próxima a João Pessoa, Santa Rita, que tinha uma indústria de tecelagem e mais nada. Mi-nha mãe era de uma família que não era pobre. Meu pai, descendente de índio, muito pobre e muito inteligente, era me-cânico de motores a diesel. Sem nunca ter feito um curso técnico, tinha quase o conhecimento de um engenheiro me-cânico. Quando eu estava na fase de al-fabetização, mudamos para Cabedelo, uma cidade portuária, e minha mãe de-cidiu que eu iria estudar numa colônia de pescadores, na praia Formosa – era linda, com um coqueiral enorme. A escola era na beira da praia e eu, muito curiosa, perguntava à professora por que o mar enchia e depois vazava. Ela dizia que a gente era muito criança para entender. Eu perguntava a mesma coisa à minha mãe e ela, muito católica, dizia que era coisa de Deus. Acho que assim começou meu gosto pela natureza.

Mas como isso a levou para a química?Meu pai queria que todos os filhos se for-massem. No ensino médio, escolhi o curso científico. Eu me identificava mais com medicina e meu pai ficou supervaidoso, imagine, ter uma filha médica! Em João Pessoa surgira o Colégio Universitário, semelhante aos colégios de aplicação, e quem passasse teria direito a um cursinho de graça. Passei. Minha mãe, à sua manei-ra, me ajudou muito para entrar na medi-cina. Ela bordava colchas, vestidos, fazia à mão bordados portugueses, para ajudar financeiramente o meu pai, e nessa fase bordava até de madrugada, numa cumpli-cidade materna para eu estudar até tarde.

E como foi cursar medicina na UFPB?Fiquei decepcionada. As primeiras aulas, de fisiologia, de anatomia, eram muito teóricas, e eu queria prática. Ao mesmo tempo, no ciclo básico, fiquei fascinada com as aulas de bioquímica. No final do segundo ano, deixei o curso.

Houve influência dos professores em sua ligação com a bioquímica?Eles foram muito importantes. Eu tinha um professor de hematologia, Jackson

Medeiros, que falava da bioquímica e da química de uma forma tão empolgante que fiquei mais apaixonada pela química do que pela hematologia. Quando entrei em farmácia, me encontrei.

Sua família reclamou?Só meu pai teve um pouco de resistên-cia. Perguntou como eu ia deixar de ser médica para ser farmacêutica se eles não tinham dinheiro para eu montar uma far-mácia. Para uma pessoa mais simples, sem muita informação, medicina, engenharia e direito são as carreiras de mais status.

Você já tinha claro que faria pesquisa? Não, fiz análises clínicas, dei plantão em pronto-socorro, e para mim só se tornou claro que eu queria fazer pesquisa quan-do comecei a estudar farmacognosia, uma disciplina básica do curso de far-mácia. Naquela época a universidade passava por transformações e vieram à Paraíba professores visitantes de quí-mica orgânica. Tive aulas com Lauro Barata, da Unicamp, que na época devia ser pós-doc na Universidade Federal do Rio de Janeiro [UFRJ], com Therezinha Tomassini, então professora na área de produtos naturais na UFRJ, e com Ro-berto Cisne, professor do Instituto Mi-litar de Engenharia [IME] no Rio. Eram muito bons, falavam com muita paixão da química de plantas e aquilo despertou meu interesse. A tendência que eu já ti-nha se consolidou, então, na graduação.

Quando você decidiu vir para São Paulo? Essa decisão também foi inspirada por meus mestres, entre eles um professor de análises clínicas, Wilmar Nunes de Brito, um dos poucos da UFPB que então ti-nham mestrado. Ele o fizera no Instituto de Química da USP [IQ-USP], orientado por Paulo de Carvalho. Era intelectual-mente fascinante, meio paizão, e me es-timulava dizendo que eu tinha jeito de cientista. Ele mandou uma carta de re-comendação ao professor Carvalho, que respondeu dizendo que seria um prazer me receber como mestranda, mas que eu teria de passar numa prova. Esse foi o primeiro passo. Havia aquela discussão no Nordeste: ir para São Paulo ou para o Rio? O professor Paulo de Carvalho me disse que São Paulo tinha uma estrutura de pesquisa mais sólida. Aí vim, com a insegurança de quem, aos 22 anos, deixa o aconchego familiar.

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Você conseguiu uma bolsa de estudos?Não, vim com a cara e a coragem. Meus familiares fizeram uma reunião e meu pai falou que faria tudo para me bancar nos primeiros meses e que depois eu deveria conseguir uma bolsa ou trabalhar para me manter. Ao chegar, fui para um hotelzinho na rua Teodoro Sampaio. Depois passei algumas semanas na Fradique Coutinho, na casa de Edna, irmã de Maria Coeli e cunhada de Saulo Almeida de Ataíde, ho-je diretor do Hospital Napoleão Laurea-no, o hospital do câncer em João Pessoa. Finalmente fui para o Crusp [Conjunto Residencial da USP].

Isso foi em 1975?Exatamente. Quando fui me matricu-lar no mestrado do IQ-USP encarei a dura realidade que até hoje contrapõe o Sudeste rico ao Nordeste pobre. Na USP, as-sim como em São Paulo, en-frentei o preconceito contra os nordestinos. Achavam que nossa formação era inferior – a minha não era, tive uma excelente formação educa-cional. Vim para fazer mes-trado sob orientação de Pau-lo de Carvalho, mas ele não trabalhava com química de produtos naturais, fazia quí-mica farmacêutica. Eu, entre-tanto, queria fazer mestrado de qualquer jeito na USP e, no Crusp, dividi apartamen-to com uma gaúcha, da bio-logia, que já era professora assistente. Um dia estávamos conversando e ela teve uma crise epiléptica. Quase morri, não sabia o que fazer. Era um final de semana, lá era muito isolado, fiquei num estresse tremendo. Outro fato trágico é que, logo depois que cheguei, Paulo de Carvalho morreu, vítima de infarto fulminante. Aí fiquei desesperada com a morte dele.

E desamparada.Falei: “Vou voltar”. Mas não podia, seria fracassar. Na época, telefonar era uma difi-culdade e minha mãe me mandou um tele-grama: “Tenha calma e fique firme”. Voltei ao Instituto de Química para falar com a coordenação e escolher outro orientador. Aí, coisas do acaso, uma pessoa no corre-dor me perguntou se eu estava procurando alguém. Era o professor Mário Motidome,

professor de química de produtos naturais. Ele me convidou a ir à sala dele e contei o que tinha acontecido. Ele e o professor Carvalho eram muito amigos e no depar-tamento estavam todos traumatizados. Os laboratórios de pesquisa ficavam todos no bloco 11, o B-11: em cima, a química farma-cêutica e, embaixo, a química de produtos naturais com o professor Otto Gottlieb, já muito famoso. Foi com Motidome que iniciei os primeiros passos de pesquisa, com uma planta de nome difícil, Mikania hirsutissima. Parecia que os horizontes tinham se aberto, foi um período muito bom. Como eu tinha que estudar para en-trar no mestrado, ele disse que eu podia passar um tempo lá para ir conhecendo o ambiente. Fui para a graduação e cursei físico-química e química inorgânica para

me preparar para a prova. Nesse período, topei várias vezes com o professor Otto Gottlieb e pensei que queria fazer mes-trado com ele. Mas, para me apresentar ao mestre, tinha que mostrar que era boa aluna e passar na prova.

Como era a rotina?Eu estudava, preparava os dados, fazia plaquinha cromatográfica, aprendi a pu-rificar substâncias, algo preliminar, mas fundamental para o que queria fazer. O professor Otto, chefe do laboratório, era brilhante, muito rígido e metódico, carac-terísticas importantes para ser cientista. O laboratório era uma bagunça, mas as pla-quinhas e tudo tinham que ser anotados. Eu tinha um caderno de pesquisa com tudo

anotado, que guardo até hoje. Engraçado que eu sou meio bagunçada, mas imponho organização aos meus alunos, que têm de ter cadernos. São Paulo foi uma grande escola e me mostrou toda a contradição que temos no país, incluindo professores excelentes e maravilhosos que conheci e de quem sou amiga. Um deles foi Hans Viertler, que também atuou na FAPESP e está aposentado. Ele dava aula de este-reoquímica, importante para se ter no-ção do arranjo molecular no espaço e de suas propriedades. Saía para tomar cerveja com a gente, dava uma aula maravilhosa. Muitas vezes ficávamos até tarde falando de muitos assuntos extracientíficos e até de futebol. Ele jogava no terrão em frente à Química com Jorge, com quem me ca-sei. Era um professor fascinante e solidá-

rio. Nesse processo de morar sozinha no Crusp, com pou-ca verba, peguei pneumonia e ia trancar a matrícula, mas ele disse para eu não trancar. Ficaria de repouso, tomando remédios e me alimentando bem e ele me passava as aulas que eu tentava deixar em dia. Não perdi a disciplina nesse período por causa da sua ge-nerosidade.

O amparo foi importante?Muito. O mestrado foi um pe-ríodo de intenso crescimento pessoal. Conheci Jorge e tive discussões enriquecedoras no Rei das Batidas, perto da USP.Mesmo sendo farmacêutica e uma estudante de química, ti-nha cabeça aberta, espírito po-

lítico, noção social, e amigos da geografia, da sociologia, da Poli, da química. A dis-cussão com colegas de áreas distintas era rica, informação com formação, o que nos diferenciava de alguns alunos de hoje, que têm muita informação e pouca formação.

Qual foi o tema de sua dissertação de mestrado?Uma Euphorbiaceae da Amazônia, dife-rente das usuais Lauraceae e Myristica-ceae que o professor Otto investigava.

O que elas têm?São ricas em dímeros de C6-C3, os lignoi-des, substâncias fenólicas biologicamen-te importantes. Os monômeros de C6-C3 são moléculas que formam a estrutura

Ao entrar na usp, encarei a dura realidade que contrapõe o sudeste rico ao nordeste pobre

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de sustentação das plantas, as ligninas. Otto inclusive diferenciou os lignoides, classificando-os em lignanas e neoligna-nas, de acordo com a via de biossíntese. Massuo Kato, do Instituto de Química da USP, tenta provar essa classificação estudando as Piperaceae. São importan-tes na defesa das plantas. Como essas substâncias são biologicamente ativas, algumas são modelos de fármacos.

O que Gottlieb queria entender era a estrutura das lignanas?Não só a estrutura, mas relacionar a quí-mica a aspectos biológicos e taxonômicos. Como químico, ele já entendia naquela época os metabólitos secundários como essenciais para entender a biologia e a filogenia das plantas. Foi um grande de-fensor da quimitaxonomia e mostrou que a química corrobora a taxonomia. Com isso, contribuiu muito para a filogenia de plantas. Ele foi um pioneiro nesse estudo no Brasil. A química de produtos naturais moderna deve muito ao professor Ot-to, aqui, e aos professores Bem Gilbert e Walter Mors, na UFRJ. Os três formaram toda uma geração de pesquisadores no Brasil. O professor Otto foi o único brasi-leiro indicado para o prêmio Nobel duas vezes. Quando entrei no laboratório, ele era um full professor e tinha os assisten-tes, que tomavam conta dos alunos – em meu caso, papel de Marden Alvarenga, pessoa importante em minha formação. Era incisivo e, como eu era nordestina e tímida, ele me dava força. Estudei uma planta da Amazônia do gênero Croton, da família Euphorbiaceae, que voltei a estudar agora por causa de seus peptí-deos. Ela fugia ao foco de Otto.

E por que você chegou a ela?Marden tinha feito sua tese com essa fa-mília de plantas e descobrira alguns ter-penos muito distintos, contendo bromo, comum em organismos marinhos. Conse-gui isolar uma substância desconhecida, e ele insistia: “Purifique porque está im-pura”. Naquela época, elucidar a estrutu-ra de uma substância nova era um enor-me desafio. Como trabalhávamos com compostos fenólicos, os sinais vistos nos espectros de ressonância magnética nu-clear (RMN) a 60 mega-hertz pareciam impurezas. Quanto mais eu purificava, mais ficava sem material e as feições es-pectrais da ressonância magnética eram as mesmas. Depois de uns seis meses veio

para a UFRJ o professor Gabor Lukacs, especialista em RMN de carbono 13, que estava começando. Passei uma semana no Rio e, quando voltei, propus a estrutura do diterpeno e mandamos a substância para Hugo Gottlieb, filho do professor Otto, que já era professor no Instituto Weizmann, em Israel. Veio a resposta de que não tinha impureza, a substância tinha um núcleo furânico e era um terpeno completamente diferente. Defendi minha dissertação com essa substância, inédita e muito diferen-te. Levou um tempo para determinarmos e publicarmos a sua estrutura correta. A essa altura, nos Estados Unidos já es-tavam começando a compilar dados de produtos naturais para montar os softwa-res de estruturas de produtos naturais. O famoso professor Carl Dejerassi mandou uma carta ao professor Otto solicitando os dados do diterpeno para incluir essa molécula, a diasiína, na compilação de dados espectrais para editar os softwares de prognóstico de estruturas moleculares.

O que é a diasiína?É a substância que isolei, um diterpeno labdânico rearranjado, uma classe de mo-léculas com 20 átomos de carbono. Diter-penos são metabólitos secundários, ad-jetivo que se deve à crença de que eram dejetos das vias metabólicas primárias e não tinham função. Essas substâncias são importantes para regular o funcionamento e a defesa de plantas e outros organismos. A natureza não gasta energia para produ-zir coisas sem função. Por vias metabólicas distintas se formam os produtos naturais como lignanas, flavonoides, diterpenos, alcaloides, iridoides, entre outros, muito importantes para regulação, defesa e equi-líbrio da natureza. Essas vias metabólicas não são aleatórias. As características gené-ticas influenciam os tipos de reação quími-ca que ocorrem nas diferentes espécies e tornam possível classificar as plantas com base nos metabólitos que produzem. Há determinadas classes de compostos que só ocorrem em certas espécies de plantas e funcionam como marcadores. Foi isso o que fiz no doutorado em quimiotaxono-mia, uma ferramenta valiosa para entender as plantas e sua filogenia.

Emendou o doutorado no mestrado?Casei e terminei o mestrado grávida da minha primeira filha. Nessa época surgiu uma oportunidade de trabalhar na Uni-versidade Federal da Paraíba. Minha filha

nasceu em março e fui em 5 de maio, como professora colaboradora. Era uma maneira de voltar para a minha universidade e para a minha família. Fomos morar na praia, uma coisa maravilhosa. Mas aí começou o problema de adaptação: Jorge reclamava que o jornal do dia chegava à noite, que a livraria não tinha os livros que queria... Ele era paulistano e, para um paulistano, morar em João Pessoa no final dos anos 1970 não era fácil. Então apareceu uma oportunidade de voltar, ele arranjou um emprego na Phebo. Liguei para o profes-sor Otto e disse que faria meu doutorado. Aí minha história acadêmica se confunde com a pessoal: eu estava no voo de volta para São Paulo com minha filha no colo e sentou ao meu lado uma senhora, Maria Aparecida Pouchet Campos, que era da Capes e diretora da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Unesp em Araraquara. Mariana era um docinho e ela começou a brincar com o bebê. Depois me deu um cartão e disse que tudo o que ela queria na farmacognosia era alguém que traba-lhasse com Otto Gottlieb. Como viríamos para São Paulo de qualquer jeito, decidi ir a Araraquara ver. Ao chegar lá, encontrei o pessoal da química que fazia mestrado na minha época. Ficaram entusiasmados. Fui para o curso de farmácia então.

Como conciliou o doutorado na USP com as aulas em Araraquara?Eu não tinha começado ainda. Fomos a Araraquara onde havia uma chance de se criar o mestrado em sociologia rural e urbana e Jorge queria ser orientado por Maria Aparecida de Moraes Silva, que estava em São Carlos. Era a chance de os dois voltarem juntos, com emprego, para São Paulo. O pai dele tinha uma empresa de cosméticos em Diadema, que faliu. Enfim, Jorge disse que conciliaríamos as coisas porque era perto – era nada, mas éramos moços e achávamos isso.

Como foi o início da vida acadêmica em Araraquara?Entrei em farmácia entusiasmada para fazer meus projetos. O primeiro foi com Rubiaceae, a planta que eu já estudava no mestrado. Aí não deu certo, porque tinha que fazer doutorado e o professor Otto falou: “Como você tem criança e não pode viajar toda hora, faça um estudo teó-rico. Vamos ver o que essas moléculas informam sobre a evolução, a filogenia das plantas, que contribuições podemos

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dar para a botânica, para a taxonomia, a biologia”. Então saí do laboratório e fui fazer um trabalho teórico, o que foi bom para minha formação. Foi um período promissor. Em 1990 ganhei uma bolsa do Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmi-co [DAAD] e passei um mês na Alemanha.

O que foi seu trabalho de doutorado?Estudei a ordem Gentianales completa e fi-zemos um belo estudo sobre a evolução de alcaloides indólicos na natureza. O trabalho com o taxón Rubiaceae nessa linha que pu-bliquei com o doutor Otto foi um sucesso. Tinha um taxonomista famoso, Elmar Rob-brecht, que estava criando uma nova taxo-nomia para as rubiáceas, algo complexo do ponto de vista biológico, para essa família de plantas que ocorre no mundo inteiro e tem produtos de grande valor econômico. Ele ficou encanta-do porque, usando só os dados químicos, chegamos à mesma conclusão que ele em sua nova taxonomia. Ele escreveu um artigo em uma revista famo-sa, citou nosso trabalho e nos convidou para um congresso internacional, na Bélgica. Fui tremendo porque foi a primei-ra vez que saí para fazer uma conferência de 50 minutos e eu ainda era quase uma estudante.

Esse trabalho direcionou sua carreira de pesquisadora?Eu estava cada dia mais deci-dida a ter uma linha de pesqui-sa. Conversando com o pro-fessor Otto, ele disse que não tinha ninguém trabalhando com ambiente marinho e que eu poderia fazer um pós-doutorado nessa área e dire-cionar a pesquisa para algo completamen-te diferente. Fiquei entusiasmada, mas aí aconteceram os infortúnios: Jorge teve um AVC isquêmico aos 38 anos e ficou muito mal. Tive de parar tudo. Pedi afastamento da universidade e, quando voltei, não quis mais saber de ambiente marinho.

Nessa fase você ficava aqui ou em Ara-raquara?Aqui e lá. Primeiro, Jorge ficou no Hos-pital Albert Einstein. Depois foi para a casa da mãe porque tinha que fazer fisio-terapia e receber cuidados. Toda sexta--feira eu vinha e voltava na terça. Numa das viagens, tive um acidente com o car-

ro, que capotou não sei quantas vezes. Não morri porque não era a época. Nes-se período, passei muito tempo na USP, no laboratório do Massayoshi Yoshida.

Você pediu afastamento das aulas em Araraquara e ficou fazendo pesquisa?Nos primeiros seis meses pedi afasta-mento completo. Eu tinha Mariana e Tia-go, pequenininhos. Achei que ia perder a carreira e continuei dando aulas, pra-ticamente parei minhas pesquisas. Mas Jorge melhorou muito e disse que eu não devia estragar minha carreira. Fiquei na dúvida, mas concordei e fui com os dois meninos para os Estados Unidos em 1992, uma experiência ótima também para eles. Fiz então meu pós-doc com David Kings-ton, na Virginia Tech.

Seu marido não voltou a trabalhar?Não conseguiu. Fazia muito trabalho voluntário, porque tinha horas em que estava perfeito e podia falar da obra de Karl Marx de ponta a ponta. De repente, dava uns brancos e ele não conseguia. Morreu com 60 anos. Foram 22 anos nes-sa luta. No final, ele ficou meio hippie aventureiro. Amava a Bahia e foi morar em uma pousada em Valença. Em 2011, no Ano Internacional da Química, eu estava em Paris quando ele passou mal na Bahia e uma amiga ligou avisando. De lá foi transferido para Salvador e, de-pois de um infarto, teve de vir para São Paulo. Desse período até a morte dele, em setembro daquele ano, fiquei prati-camente aqui.

Enquanto isso, você desenvolveu toda uma carreira.Foi uma luta, mas foi gratificante. A pós-graduação estava se estruturando e decidi que ia fazer um laboratório-modelo de química de produtos naturais. Para isso precisava de uma equipe. Arregacei as mangas e fui a primeira a trabalhar com química de produtos naturais com essa visão de filogenia no IQ-Unesp. Se você tem ciência básica de qualidade, pode trabalhar a química de produtos naturais com o que ela tem de melhor e fazer co-laboração com o pessoal da farmacologia, da toxicologia e da biologia para verificar se pode encontrar alguma biomolécula que tenha aplicação. Com esse foco, co-meçamos a estruturar os projetos.

Isso foi quando?Em 2000. Trabalhei um tempo com Aristolochiaceae com a professora Lucia Xavier Lo-pes, mas mudei logo para uma linha com Rubieaceae e ga-nhei meu primeiro Auxílio à Pesquisa da FAPESP. De-pois chegaram Marcia Nas-ser e Maysa Furlan e os ou-tros colegas, hoje são sete, que compõem o NuBBE, Núcleo de Bioensaios, Biossíntese e Ecofisiologia de Produtos Na-turais. Aqui a química de pro-dutos naturais era bem tradi-cional: isolar, determinar es-trutura e publicar. Queríamos entender melhor a natureza, tentar encontrar a relação en-tre a biossíntese e a função das macromoléculas nas plantas e

também sua função farmacológica. Cada dia nos convencíamos mais de que a na-tureza, ao longo da evolução, não produ-ziu um laboratório químico tão sofistica-do para sintetizar centenas e centenas de substâncias sem função. Há compostos biologicamente ativos que podemos usar como protótipos para fármacos. Mas ela não fez isso para o ser humano. Ela produz para a sua preservação e equilíbrio. Com esse foco, começamos a estruturar nosso laboratório. Com Alberto Cavalheiro, que é brilhante em métodos de separação, o NuBBE criou uma excelente plataforma analítica voltada para produtos naturais, principalmente porque nosso laboratório agora é verde. Angela, Dulce e Ian com-pletam o time do NuBBE.

decidi que ia fazer um laboratório-modelo de química de produtos naturais na unesp – arregacei as mangas

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isso no Brasil. Os peptídeos desempe-nham muitas funções importantes. Al-guns são antimaláricos, antichagásicos e antitumorais. Estou interessada em ver sua função nas partes em que são produ-zidos nas plantas. Estamos trabalhando com plantas da caatinga, um ambiente muito seco. Se conseguirmos provar que esses peptídeos são os responsáveis pelo funcionamento dos estômatos e permi-tem que essas plantas sobrevivam nesses ambientes, será muito importante para entender o ecossistema.

Se você chegar à conclusão de que, de fato, os estômatos evitam a perda de água, se terá entendido um mecanismo de preservação em ambientes extremos.Isso. É muito importante mostrar como as plantas resistem nesses ambientes. Há poucos estudos com relação às nossas plantas e nossos ambientes.

Além das parcerias internacionais, você trabalhou também multidisci-plinarmente. Como foi a experiência?Sempre achei que a química é uma ciên-cia central e plural. E ninguém domina tudo, por isso a colaboração é fundamen-tal. Fizemos colaborações nacionais na área da biologia, da física e principal-mente da farmacologia. Com o grupo de Glaucius Oliva, que é físico, foi interes-sante porque ele trabalha com síntese de proteína e tem larga experiência em base de dados. A parceria com ele veio muito em função da colaboração com Adriano Andricopulo. Um dia falei para ele que queria fazer uma base sobre as substâncias que já isolamos, aquelas 640. Queria colocar todas as informações para que as pessoas, empresas e universidades pudessem consultar.

Como chama a base?NuBBE Database. Ela faz o maior suces-so no exterior, mas tem poucos acessos feitos a partir do Brasil.

Essa base começou a ser formada re-centemente?Há um ano e meio. Eu tinha a ideia, mas não sabia como fazer, daí a importância da colaboração. Tinha uma aluna bri-lhante que ia fazer doutorado em quí-mica medicinal. Conseguimos um pro-fissional de informática e ele fez o siste-ma computacional. Criamos um sistema aberto em que podemos pôr muitas in-

O que é um laboratório verde?Um laboratório sustentável. Não usa clorados, nem solventes tóxicos. Todo mundo falava mal da química de pro-dutos naturais, porque era uma química suja. Para isolar alguns miligramas de uma substância pura, usava muito sol-vente clorado e orgânico, que é tóxico e se acumula na natureza. Os métodos de separação usando etanol, água e acetona foram recentemente estabelecidos com sucesso pelo Cristiano, um pós-doc que é supervisionado pelo Alberto.

Desde quando vocês são verde?Há três anos. Temos um laboratório mui-to bem montado em consequência do programa Biota. Em 1998, quando es-távamos estruturando o laboratório, fa-zendo as primeiras reuniões com Sonia Dietrich, ela me convidou para ir a Cam-pinas a uma reunião do programa Biota. Disse que eu tinha tudo para submeter um projeto só de química de produtos naturais dentro do Biota.

Era o BioProspecta?Virou depois. No início era um projeto único de bioprospecção de substâncias da Amazônia e do cerrado. Foi meu pri-meiro projeto temático, conseguimos fazer coletas muito bem organizadas e compramos equipamentos de espectro-metria de massa de alta resolução.

Vocês faziam as análises.Fazíamos a parte química e o pessoal da farmácia e da botânica, as análises de atividade.

Em animais ou em células? Fazíamos teste in vitro. Foi nesse período que conseguimos formar recursos huma-nos altamente qualificados e parcerias internacionais. Conseguimos fazer estu-dos não só em fitoquímica, de compostos produzidos pelas plantas, mas também com fungos endofíticos, que vivem no interior das plantas, e com algas mari-nhas coordenados por Angela e Dulce. Não trabalhamos só com a parte analí-tica, mas também com biossíntese, sob a coordenação de Maysa, e com ecologia, a cargo de Alberto e Ian. Estamos inte-ressados em ver como essas substâncias se comportam nas plantas. Agora, antes de me aposentar, estou montando um grupo interessado em peptídeos produ-zidos por plantas. Pouca gente estuda

formações. Existem muitas bases de pro-dutos naturais tradicionais que têm os dados da espécie e da família das plantas, da estrutura dos compostos e informa-ções físico-químicas. As bases de quí-mica medicinal geralmente têm outras propriedades importantes para a far-macologia. Nosso diferencial foi colocar nessa base as duas coisas juntas.

Vocês têm interesse em fazer essas moléculas chegarem à indústria de cosméticos e medicamentos?Falei com João Batista Calixto, da Uni-versidade Federal de Santa Catarina, que está interessado em algumas delas. Ele coordena o CIEnP, um centro de pesqui-sa pré-clínica, e quer iniciar testes com plantas que estudamos. Não posso falar agora. Pedimos o registro de patente de uma e estamos em processo de fazer pro-va de conceito. Já tivemos parcerias com empresas. Uma morreu na praia.

Era com a molécula com potencial efei-to contra o mal de Alzheimer, não?Essa molécula é um inibidor reversível da enzima acetilcolinesterase. Fechamos uma colaboração com a Apsen, empresa farmacêutica que fabrica produtos con-tra doenças neurodegenerativas. Eles investiram nos primeiros estudos extra--acadêmicos, mas decidiram pela des-continuidade. Isso acontece com muitas moléculas. Aqui e lá fora.

Havia alguma complicação na fase industrial?Uma coisa é desenvolver um fitoterápico, que é um extrato, uma mistura padroni-zada que passou por testes de farmaco-logia, eficácia, segurança. Outra é fazer o escalonamento de produção de um fitomedicamento, uma substância pura. Para não devastar a natureza, a síntese em laboratório de uma substância com arranjo molecular complexo que a planta produz em miligramas é fundamental, mas não trivial. Acho que por isso o pro-jeto com essa molécula morreu.

E como fica?Eles descontinuam o trabalho e permi-tem apresentar a outra empresa. Calixto se interessa por ela se fizermos modifica-ções para usá-la no combate à dor neuro-pática. Mas não tivemos mais condições de coletar a planta para obter material e fazer a alteração estrutural.

pesQuisA fApesp 222 | 31

Vocês interagem com a indústria de cosméticos? Tivemos dois projetos com a Natura, um Finep e outro FAPESP. A prova de conceito é importante para que a empre-sa absorva o que temos. Eles começam, mas desistem.

O problema são os ensaios pré-clínicos?São. É mais difícil fazer no Brasil. Agora, com esse laboratório que tem padrão in-ternacional de qualidade, talvez seja mais fácil fazer também essa fase. Empresas brasileiras podem se interessar, e mul-tinacionais também. Não vejo problema nisso, desde que os contratos sejam bem estruturados. É o que a China faz.

Por que não avançamos?Falta uma política. Na esfe-ra estadual existe a FAPESP, com os Pipes, Pites e agora os Cepids. Na União existe a Lei do Bem, que dá bene-fícios fiscais para quem faz inovação, mas é preciso des-pertar uma nova mentalidade no setor empresarial brasilei-ro. Na área de cosmético tem a Natura, uma empresa na-cional importante com bas-tante projeto, mas até agora não fez inovação radical no sentido de lançar produtos baseados na hard science. A L’Oréal, que está se instalan-do no Rio, sempre teve foco em síntese, está tentando mudar no Brasil. Ela tem la-boratórios muito sofisticados na União Europeia, nos Es-tados Unidos e na Ásia e pesquisadores muito gabaritados que publicam seus re-sultados em revistas científicas da área. Nossa biodiversidade é um grande arse-nal que poderia ser usado. Na reunião da SBPC fiz uma conferência sobre o desen-volvimento sustentável da Amazônia, que é puramente extrativista. Precisamos dar aquele passo além do extrativismo e não damos. Nosso setor farmacêutico é muito pequeno. As multinacionais do-minam e fazem pesquisa em laboratórios nos seus países de origem.

Não poderíamos chegar lá?Poderíamos, mas teríamos de ter um pro-grama do Estado brasileiro. A FAPESP criou um projeto de cooperação de 10

anos com a GlaxoSmithKlein, que co-meça a fazer pesquisa básica e aplicada e avança. Tem também um modelo que é o dos INCTs. Talvez no futuro possamos chegar lá. Somos o país do futuro.

Faltam peças no meio de campo? Agora tem as agências de inovação que fazem a ponte. Temos no estado de São Paulo o ambiente que propicia fazer pes-quisa de qualidade e chamar as empresas para dar o salto. A indústria farmacêutica é de altíssimo risco. O custo Brasil é mui-to elevado e desestimula o empresário a investir no risco o tempo todo.

Seria preciso chegar ao estudo clíni-co para as empresas se interessarem?Quanto mais avançados, mais fácil a par-

ceria. Por que lá fora se consegue? Por que uma empresa nacional não monta uma es-trutura de pesquisa e dá esse passo? Seria um diferencial enorme para ela e para o Brasil. As multinacionais têm laboratórios muito bem montados lá fora.

Mas só os grandes conseguem isso?Se houvesse um mecanismo que dimi-nuísse o custo, poderia gerar emprego para os doutores bem formados, porque não tem mais espaço nas universidades, e tornaria possível ter pesquisa na própria empresa, como se vê na Glaxo, na Merck. Algumas estão começando, como Natura e Cristália, mas falta muito para avançar nesse ambiente competitivo. Quem ga-nha? A China.

Mas China e Índia não fazem muito me too, medicamentos produzidos a partir de moléculas já conhecidas que são alte-radas, e não medicamentos inovadores?Mas mesmo para fazer me too precisa ter expertise. Nesse ponto, a China investe muito. A base é grande e eles trabalham como formigas, assim como no Japão, que agora cria coisas boas, mas antes só copiava. Tem a ver com nossa desorga-nização cultural e nossa base de pessoal qualificado ainda é pequena.

Em paralelo às pesquisas, há sua atua­ção política na comunidade científica. Você foi presidente da Sociedade Bra­sileira de Química.A primeira mulher. Na nossa área, há mui-ta mulher na graduação, no mestrado e no

doutorado. Mas o número que ascende na carreira é pequeno.

Esse cenário não deve mu­dar com o aumento do nú­mero de mulheres na base do sistema?A base vem crescendo nos úl-timos 40 anos e não se chega lá. Há um componente cultu-ral machista, que é nosso, das mulheres também. Conhe-ço mulheres que são mui-to boas, mas maneiram pa-ra deixar o homem aparecer mais. É uma cumplicidade para a manutenção do casa-mento e da família.

As mulheres não vão à luta para ocupar os cargos ou são barradas?

Elas ascendem, mas talvez sejam menos competitivas que os homens. Ou menos eficazes na competição. Acho que há um componente cultural em barrar a criati-vidade da menina e dizer que física, quí-mica e matemática são coisas de menino.

Como foi a presidência da SBQ?Foram dois anos muito gratificantes. Es-treitamos as parcerias internacionais. Te-mos vários programas com a American Chemistry Society, a Royal Society of Che-mistry e a Iupac [International Union of Pure and Applied Chemistry]. Vamos trazer a reunião da Iupac em 2017 para o Brasil. Esse é o congresso mais importante e é a primeira vez que vem para a América do Sul. Será em São Paulo. n

o desenvolvimento sustentável com base na biodiversidade precisa ir além do extrativismo

32 z agosto DE 2014

Estudo analisa mudanças na produção

científica mundial e mostra que

distância entre ricos e emergentes caiu

em algumas áreas

Um estudo realizado por pesquisadores da Inglaterra e publicado na revista Scientometrics sugere que a pro-dução científica dos países ricos e em desenvolvimento passou por um conjunto de mudanças nos últimos 30

anos não detectado pelos indicadores gerais. O trabalho, assinado por Slavo Radosevic e Esin Yoruk, professores do University College London (UCL), indica que o peso de grupos de disciplinas no total de artigos publicados por nações de diversas regiões do planeta sofreu alterações entre os anos 1980 e 2000, ora habili-tando os países para novos desafios, ora criando desvantagens (veja quadro). O bloco de países da América do Norte, formado por Estados Unidos e Canadá, perdeu participação relativa tanto em número de artigos quanto em citações nas chamadas ciências aplicadas (como ciência da computação e engenharias), mantendo, contudo, sua proeminência em ciências da vida e ciências sociais. A Europa Ocidental ganhou participação em ciências aplicadas no período, enquanto os países do Oriente Médio regrediram em ciências sociais.

“Novas áreas científicas trazem com elas novas oportunidades de crescimento e conexões com outros campos já estabeleci-

Bruno de Pierro

Ciência em evolução

Política c&t indicadorEs y

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américa do norte

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PesQUisa faPesP 222 z 33

Áreas que sempre estiveram em vantagem

Áreas que perderam vantagem entre 2001-2011

Áreas que ganharam vantagem entre 2001-2011

Áreas que sempre estiveram em desvantagem

citação publicação

ciências aPlicadas ciência da computação, engenharias, ciência dos materiais e ciência espacial

ciências da Vida ciências agrárias, biologia, bioquímica, medicina, ecologia e meio ambiente, imunologia, microbiologia, biologia molecular e genética, neurociência, farmacologia e toxicologia, botânica etc.

ciência Básica química, geociências, matemática e física

ciências sociais humanidades em geral, como sociologia e filosofia, e economia

dos”, diz Slavo Radosevic. “Os países estão cons-tantemente lidando com o dilema que existe entre apoiar excelência científica em áreas antigas e, ao mesmo tempo, seguir novas tendências e garantir a relevância dos seus sistemas de ciência em áreas emergentes.” O estudo mostra, ainda, que nem sempre caminham juntas as trajetórias referentes à quantidade e à qualidade da produção científica: a América Latina, por exemplo, perdeu participa-ção no total mundial em número de artigos em ciências aplicadas, mas manteve sua posição em citações. Já a Ásia perdeu peso relativo nas citações de artigos de ciências da vida – aproximando-se do desempenho historicamente desfavorável em quantidade de artigos nesse campo.

Para chegar a essas conclusões, os autores do trabalho exploraram dados referentes ao núme-ro de artigos publicados e de citações obtidas em todas as áreas do conhecimento entre 1981 e 2011 de várias regiões do mundo, extraídos do

altos e baixosmudanças no perfil disciplinar mostram áreas que ganharam ou perderam força pelo mundo no período entre 1981 e 2011

eUroPa 15

oriente médio

ex-União soViética

ásia / oceania

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National Science Indicators, da empresa Thom-son Reuters. Em seguida, eles se concentraram no desempenho de cada região em 21 disciplinas divididas em quatro áreas: ciências da vida, ciên-cias básicas, ciências sociais e ciências aplicadas. “O perfil disciplinar é historicamente enraizado e pouco se alterou no decorrer das décadas”, afirma Radosevic. Ainda assim, a ampliação de colaborações científicas teve grande impacto no desempenho de países emergentes, como os Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). “Eles passaram a participar mais das atividades científicas no mundo”, diz ele.

n a América Latina, Radosevic destaca a boa atuação do Brasil e da Argentina nas ciências da vida, resultado de políticas

de incentivo à pesquisa na área. A região tam-bém conseguiu ultrapassar as taxas médias de crescimento mundial em número de publica-ções em ciências básicas e nas engenharias. Na Ásia, ele observa, o bom desempenho em áreas tecnológicas, como engenharia dos materiais, é influenciado pelos investimentos realizados nos últimos anos pela China e pela Coreia do Sul. “O expressivo aumento das atividades científicas na China poderá resultar na liderança científica em ciências aplicadas”, diz Radosevic.

Segundo o pesquisador, para que países como Brasil e China assumam posições de liderança no futuro, é preciso que a produção científica gere conhecimentos que colaborem para o crescimento econômico. Ele menciona o exemplo da ex-União Soviética, que sempre privilegiou as ciências bá-sicas. Com o fim do regime comunista na região, a pesquisa básica sobreviveu graças ao reconhe-cimento internacional das competências científi-cas desses países, que passaram a colaborar com o Ocidente. Mas a persistência nas ciências básicas, sem avanço nas áreas aplicadas, não é tão promis-sora em termos econômicos, avalia o pesquisador.

Radosevic explica que a América do Norte e parte da Europa estão se especializando em ciências da vida, campo do conhecimento que ganha importância crescente. “O perfil discipli-nar tende a se alterar conforme novas áreas do conhecimento emergem e ganham dinamismo, como hoje é o caso das ciências da vida e como foi, no passado, com a física”, diz. Em um período de 30 anos, apenas uma região passou a ser forte em uma área em que anteriormente não tinha expressão: os 15 países da formação original da União Europeia (EU15) ganharam vantagem em citação, a partir de 2001, em ciências da vida e ciências aplicadas.

“O ganho de vantagem que países europeus tiveram em ciências da vida pode ser decorrên-cia do crescimento da clínica médica na Europa continental”, diz Peter Schulz, professor do Ins-

Quantidade versus qualidadecomparação entre número de artigos publicados e citações recebidas pelas regiões nos últimos 30 anos e o impacto da produção científica

n Ex-união soviétican Ásia e oceanian américa latinan oriente médion américa do norten Europa 15

Porcentagem de papers no mUndo (%)

Porcentagem de citações no mUndo (%)

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tituto de Física Gleb Wataghin da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que em 2012 publicou também na revista Scientometrics um artigo sobre a evolução do perfil dos sistemas de ciência e tecnologia de diversos países (ver Pesquisa FAPESP nº 198). Nesse estudo, Schulz e o professor Edmilson Manganote, também da Unicamp, mostram que os Estados Unidos e o

Reino Unido seguem um padrão disciplinar mui-to semelhante, com a medicina respondendo por um quarto da produção científica. Já nos países da Europa continental a distribuição é diferente, com uma participação um pouco maior de física e química – e a medicina variando de 18% (Es-panha) a 30% (Áustria).

Para verificar as mudanças do perfil disciplinar das regiões, os autores da pesquisa utilizaram um sistema chamado Revealed Scientific Advanta-ge (RCA), desenvolvido na década de 1990 para avaliar o desempenho de países em relação ao número de artigos publicados. Quando o RCA é maior que 1, a região é forte em determinada dis-ciplina. Quando é menor que 1, é mais fraca que a média dos países. O problema é que o RCA leva em consideração apenas o aspecto quantitativo, deixando de lado as citações. Por isso, o grupo desenvolveu dois coeficientes novos: o índice de vantagem comparativa para artigos publicados (RCAPAP) e o índice de vantagem comparativa para citações (RCACIT). “O estudo acerta ao fazer essa distinção, colocando lado a lado as variações em publicação e citação. Vistas isoladamente, elas podem dar uma falsa impressão do desempenho de uma região”, salienta Schulz.

Radosevic conta que foi necessário fazer a dis-tinção no perfil disciplinar em termos de quan-tidade e qualidade para identificar quais são as regiões que mais produzem ciência de ponta no mundo. Regiões com índices de publicação altos, mas com impacto relativo mais baixo, como Amé-rica Latina e Ásia, caracterizam-se pela maior capacidade de absorver conhecimento utilizando modelos desenvolvidos em outros países. Já as regiões com índices de citação mais elevados são aquelas que estão na fronteira do conhecimento.

De um modo geral, a ciência feita em países em desenvolvimento ainda se caracteriza pela

capacidade de absorver o conhecimento produ-zido em outras regiões. Há, é certo, nuanças. A América Latina, por exemplo, tem desempenho modesto na publicação de artigos em ciência bá-sica, mas sempre esteve em vantagem na área em termos de citação, o que indica a qualidade dos trabalhos publicados. Mas, segundo o artigo, os centros produtores de conhecimento de fronteira, aqueles que produzem ciência de maior impacto, continuam sendo os mesmos de antigamente: os países da América do Norte e da Europa.

Com o avanço de novos atores, a América do Norte perdeu espaço relativo na ciência global ao longo dos anos. Hoje, o bloco é responsável por 51% das citações. Na década de 1980, o índice era de 61%. Essa redução não afetou o impacto relati-vo da pesquisa na região, que permaneceu estável nas décadas de 1980 e 1990 em 1,40 e subiu para 1,45 nos anos 2000. O impacto relativo é a razão entre os índices de citação e de artigos publicados. A América Latina, a Ásia e o Oriente Médio apre-sentam trajetórias comuns: aumento considerável do número de artigos publicados, acompanhado de crescimento em citações mais moderado, mas índices de impacto ainda baixos e estáveis.

diferentemente da América do Norte, a Eu-ropa apresentou crescimento em número de artigos publicados e em citações. Já a

participação da ex-União Soviética na ciência global experimentou mudanças sensíveis com o fim do regime comunista. Entre 1981 e 1989, era responsável por 7% dos artigos publicados no mundo e por 1,2% das citações. Entre 2001 e 2011, a taxa de publicação caiu para 3,4%, mas a de citação subiu para 1,5%.

Segundo os autores do estudo, a dominância da América do Norte e de parte da Europa como cen-tros produtores de ciência de fronteira tende a per-manecer inalterada. Para Elizabeth Balbachevsky, professora do Departamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, essa situação pode ser transformada. “O processo de absorção e acumulação de conhecimento protagonizado por países como Brasil e China é também uma etapa de ampliação de recursos humanos e institucionais, necessários para que um salto de qualidade da pesquisa seja dado no futuro”, diz ela. Mas esse resultado não é automático. Ele depende da qualidade das políticas de ciência e tecnologia e de educação. A professora lembra que, nos anos 1990, um estudo realizado pe-lo professor Peter Scott, da Inglaterra, a pedido do então Ministério da Ciência e Tecnologia brasileiro, ganhou notoriedade ao mostrar que a produção da pesquisa brasileira era menor do que a da Bélgica. “Hoje o crescimento da ciência brasileira supera a média mundial. Isso prova que a geografia da ciência está mudando”, ressalta Elizabeth Balbachevsky. n

“o perfil disciplinar tende a se alterar conforme novas áreas do conhecimento

emergem”, diz slavo radosevic

Programa federal para criar parcerias entre

empresas e pesquisadores levanta discussão

sobre investimentos em ciência básica

Inovação y

A montagem das plataformas

O governo federal lançou no dia 26 de junho o Programa Nacional de Plata-formas do Conhecimento, que propõe a criação ao longo dos próximos 10 anos

de um conjunto de parcerias entre empresas e grupos de pesquisa em 10 grandes áreas voltadas para resolver desafios tecnológicos da indústria e lançar produtos inovadores no mercado. “As plataformas serão estruturadas pela lógica da solução de problemas. Queremos estimular saltos tecnológicos que tenham impacto no desenvolvi-mento industrial e aumentem a competitividade da nossa economia”, disse à Pesquisa FAPESP Clelio Campolina Diniz, titular do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI). Ainda não estão definidos os valores a serem investidos a partir de 2015, quando o programa deve começar a ser implantado. Uma estimativa preliminar do MCTI prevê investimentos entre US$ 100 mi-lhões e 200 milhões anuais em cada plataforma.

São 10 os setores considerados estratégicos para gerar as plataformas: saúde, energia, agricultura, aeronáutica, manufatura avançada, indústria naval e equipamentos submarinos, tecnologia da infor-

mação e das comunicações, mineral, defesa e Ama-zônia. Cada setor deverá ter várias plataformas – o governo estima que pelo menos 20 arranjos serão criados. No campo da saúde, a ideia é produzir plataformas nas áreas de medicamentos, vacinas, equipamentos e serviços. Já no de aeronáutica, o objetivo é desenvolver tecnologias ligadas à produ-ção de aviões verdes (de fabricação e consumo mais sustentáveis), de veículos aéreos não tripulados – os chamados vants –, da aeronave de transporte militar KC-390 e do projeto de aviões supersônicos FX-2.

A inspiração das plataformas vem de experiên-cias internacionais como os Innovation Hubs, dos Estados Unidos, que buscam reunir os melhores cientistas e engenheiros para acelerar avanços que conduzam mais rapidamente à comercializa-ção de produtos; ou as plataformas tecnológicas europeias, que buscam desenvolver avanços de-cisivos em materiais, computação, energia eólica e alimentação, entre outras, sob a liderança da indústria. “Não queremos copiar modelos, mas também não podemos tentar reinventar a roda”, diz Campolina. “Estamos olhando o que o mun-do está fazendo, em busca de competitividade e

Fabrício Marques

36 z agOstO DE 2014

modernização tecnológica, para ampliar nossa capacidade de participar de uma corrida mun-dial”, afirmou o ministro.

cAutelAO lançamento do programa foi recebido com cau-tela pela comunidade científica. A Academia Bra-sileira de Ciências (ABC) divulgou um documento em que ressaltou a importância de promover um vigoroso crescimento no investimento em pro-gramas já existentes do MCTI e do Ministério da Educação, voltados para a formação de novos pesquisadores e a cooperação internacional, sem o que não será possível ter pesquisadores de alto nível que trabalhem nas plataformas do conheci-mento. “É fundamental ter em conta que países que avançam substancialmente em seu PIB, em inovação e comércio exterior têm igualmente feito investimentos crescentes em ciência e tec-nologia, como é o caso da China e da Coreia do Sul”, diz o documento, assinado pelo presidente da ABC, o matemático Jacob Palis. O presidente da Sociedade Brasileira de Física, Ricardo Galvão, criticou o programa quando foi apresentado num evento na Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). “É preciso estruturar o que já existe. Não se pode fazer novos programas sem olhar o que já foi feito e sem tentar resolver os problemas que existem”, afirmou.

A cautela da comunidade científica está relacio-nada, em boa medida, à experiência do programa Ciência sem Fronteiras. Lançado com a promessa de utilizar recursos próprios, acabou recorrendo a ver-bas do Fundo Nacional de Desenvolvimento Cien-tífico e Tecnológico (FNDCT), importante fonte de financiamento para projetos de pesquisa. “Somos a favor das plataformas, mas é preciso assegurar que sejam alocados novos recursos para elas”, diz a presidente da SBPC, Helena Nader. “Os Estados

Unidos têm plataformas, mas também têm os labo-ratórios nacionais, que são a base de infraestrutura para ciência e tecnologia. Eles produzem ciência básica de alto nível que dá lastro às plataformas”, afirma. Ela lembra que os recursos do FNDCT deve-rão diminuir nos próximos anos com a extinção do fundo setorial do petróleo, o CT Petro, por força da nova lei dos royalties. “Está prevista a criação de um fundo social, mas não foi regulamentado. Ele destina recursos para a educação e a saúde, e nada para a ciência e a tecnologia.” Segundo Helena Nader, as restrições orçamentárias crescentes e a ênfase na pesquisa de interesse empresarial produzem uma sinalização ruim, a de que os cientistas brasileiros contribuem pouco para o país. “Foram os cientistas que escrevem artigos, produzem pesquisa de alto impacto e formam novos pesquisadores que fize-ram avanços notáveis na agricultura e na pecuária tropical, levando, por exemplo, a soja ao cerrado. Foram os pesquisadores do Instituto Tecnológico de Aeronáutica que formaram os recursos humanos que criaram e abastecem a Embraer. É preciso ter recursos para a pesquisa básica e para a pesquisa de interesse da empresa. Não aceito que tenha só para uma”, completa.

O ministro Campolina afirma que as plataformas do conhecimento não vão rivalizar com programas já existentes. “Estamos trabalhando para ampliar recursos. Não podemos tirar de outros programas”, diz. A expectativa, segundo Campolina, é começar devagar, implantando as primeiras plataformas no ano que vem, e ir ampliando o programa nos próximos três anos. “Num primeiro momento, com poucas plataformas em implantação, não precisaremos de muito dinheiro. É um programa de médio prazo. Não podemos começar sem ter as condições objetivas para prosseguir. Vamos fazer um cronograma e dar início com a segurança de que ele será cumprido.” nil

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38 z agosto DE 2014

ciência ImunologIa y

Um bacilomuito agressivo

Contenção temporária: bacilo da tuberculose engolfado por um macrófago

pESQUiSa FapESp 222 z 39

Bactérias hipervirulentas da tuberculose causam morte explosiva

de células de defesa e aceleram sua disseminação

Um freezer com temperaturas bastante baixas, 70 graus negativos, guarda amostras congeladas do microrga-nismo causador de uma das doenças mais antigas de que se tem registro na humanidade, a tuberculose.

Trancado em uma sala de acesso restrito na Universidade Esta-dual do Norte Fluminense (Uenf), no município de Campos, no Rio de Janeiro, esse freezer abriga dezenas de tubos com bacté-rias da tuberculose coletadas em diferentes regiões do Brasil e em outros países – algumas delas classificadas como das mais agressivas em expansão em certas regiões do mundo. O acesso a essa sala do laboratório de biossegurança da Uenf é rigorosa-mente controlado pela imunologista russa Elena Lassounskaia. “Só seis ou sete pessoas bem treinadas têm autorização para entrar ali e trabalhar”, conta a pesquisadora, que nasceu em São Petersburgo e há 20 anos trabalha na Uenf, onde coordena os estudos sobre a agressividade da bactéria da tuberculose.

Experimentos feitos em seu laboratório, em colaboração com outras equipes de São Paulo e do Rio, começam a gerar uma nova compreensão de como as cepas mais agressivas do bacilo da tuberculose, em parte dos casos, vencem as células de defesa que deveriam controlá-lo e se espalham rapidamente pelo corpo, causando danos graves nos pulmões e em outros órgãos. Numa explicação simplificada, o que as variedades mais agressivas ou hipervirulentas da bactéria fazem é cres-cer mais rápido em células de defesa do pulmão e destruí-las, aumentando a liberação de compostos químicos que sinalizam para o sistema imune a ocorrência de dano celular, mostra-ram os pesquisadores em artigo publicado em julho na PLoS Pathogens. Em resumo, essas bactérias intensificam a libera-ção de sinais de perigo, exacerbando a inflamação pulmonar.

Em muitas infecções e também em inflamações causadas por pequenos danos, como uma pancada na perna, esse alerta é sau-dável e até desejável. Ele desperta a atenção de outras células de

defesa e as encaminha para a região onde surgiu o problema. As novas células convocadas englobam e digerem a célula morta, infectada ou danificada que enviou o alerta químico, resolven-do o problema. Em caso de microrganismos mais persistentes, como as micobactérias – que incluem os bacilos da tuberculose humana (Mycobacterium tuberculosis) e bovina (M. bovis) e da hanseníase (M. leprae) –, o sistema imune tem dificuldade de eliminar completamente as bactérias e mantê-las por anos em uma área restrita, formando uma barreira de células de defesa em volta das células infectadas, o granuloma.

Com as micobactérias hipervirulentas ou em pacientes com imunodeficiência, porém, o cenário muda. Dois anos atrás um grupo liderado por Roland Brosch e Jost Enninga, do Insti-tuto Pasteur, em Paris, demonstrou que micobactérias viru-lentas conseguiam romper a bolsa em que são mantidas no interior dos macrófagos, as células de defesa que detectam e englobam partículas e microrganismos estranhos ao corpo. A ruptura dessa bolsa de contenção chamada fagossomo desen-cadeia uma forma violenta de morte – a necrose – em que o macrófago explode e espalha o seu conteúdo pela vizinhança.

Essa morte estrondosa lança no tecido uma chuva de sinaliza-dores de dano celular. Eles funcionam como fogos de artifício que indicam perigo e atraem mais células de defesa para a região do dano inicial. Mas o excesso desses sinalizadores – um deles em especial, a molécula de trifosfato de adenosina (ATP) – amplia o problema: inicia um círculo vicioso de infecção e destruição de macrófagos, revelaram os pesquisadores de São Paulo e do Rio no artigo da PLoS Pathogens (ver infográfico na página 40).

“Em baixas concentrações no tecido, o ATP funciona como um ativador das células do sistema imune”, explica a imuno-logista Maria Regina D’Império Lima, da Universidade de São Paulo (USP), uma das coordenadoras do estudo, do qual parti-ciparam pesquisadores da Universidade Federal de São Paulo

Ricardo Zorzetto

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(Unifesp) e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Nessa situação, formam-se es-treitos canais na membrana das células de defesa que permitem a troca de íons com o meio externo e as ativam. Já em concentrações elevadas, o ATP induz o surgimento de grandes poros que deixam sair moléculas inflamatórias, além de disparar a morte por necrose.

O biólogo Eduardo Pinheiro Amaral, alu-no de doutorado de Maria Regina, com-provou que, ao matar os macrófagos por

necrose, as cepas hipervirulentas de Mycobac-terium conseguem escapar vivas e infectar mais macrófagos, induzindo a inflamação exacerbada do pulmão. Amaral foi um dos primeiros alunos treinados para trabalhar com micobactérias no laboratório de biossegurança nível 3 da Uenf já na iniciação científica, quando estabeleceu um modelo de infecção em camundongos para avaliar a virulência de micobactérias não tuberculosas. No mestrado, ele se concentrou em micobactérias tuberculosas mais agressivas, no laboratório de biossegurança coordenado por Mario Hirata na USP. Amaral fez uma ponte rodoviária entre São Paulo e Campos durante cerca de um ano para realizar experimentos nos dois laboratórios e

avaliar uma variedade maior de bactérias isola-das de pessoas e vacas com tuberculose.

Um dos grupos de bactérias da tuberculose estudados por Amaral pertence à família genéti-ca Beijing. “Originária da China, essa família de micobactérias é bastante agressiva e vem se disse-minando mais rapidamente do que outras”, conta Elena. “Essa já é a cepa predominante na Rússia e em países da antiga União Soviética e apresen-ta mais resistência a vários medicamentos usa-dos no tratamento da tuberculose.” Na América Latina e na Europa mediterrânea, as cepas mais comuns são de outra família de M. tuberculosis, a Latin American-Mediterranean, em que são rela-tivamente raros os casos de resistência às drogas.

Mesmo assim, a tuberculose no Brasil e no mundo continua um desafio de saúde pública. Calcula-se que 2 bilhões de pessoas estejam in-fectados com o bacilo da tuberculose, que na imensa maioria dos casos permanece em estágio dormente, do qual só desperta quando o nível de imunidade do organismo se torna baixo demais – em situações de estresse físico ou psicológico ou infecção por HIV. Uma estimativa recente, publicada em 22 de julho na Lancet, mostra que o número de pessoas com tuberculose aumentou quase 40% em pouco mais de 20 anos: subiu de

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chuva de sinalizadores químicos

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Bactéria hipervirulenta

cíRcUlO viciOSOnovas células chegam ao local da infecção e engolfam os bacilos, que outra vez as matam por necrose. mais sinais de dano são liberados, intensificando a inflamação e a perda de tecido saudável

nEcROSEa bactéria se prolifera rapidamente no interior do macrófago e o mata de forma explosiva (necrose). uma chuva de moléculas de dano (aTP) é liberada convocando reforço

SEgUndO ataQUEuma segunda leva de células de defesa chega ao local da infecção e engloba e digere os macrófagos mortos

Bactéria com virulência baixa

cOMbatECélulas de defesa chamadas macrófagos detectam as bactérias e as englobam para tentar destruí-las

inFEcçãOTransmitido pelo ar, o bacilo da tuberculose se aloja nos pulmões

apOptOSEa bactéria se multiplica lentamente no macrófago, que emite sinais de dano e aciona a morte celular programada (apoptose)

MacRóFagO

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morte por necrose libera composto indicador de danos, agrava a inflamação e inicia ciclo de destruição celular

pESQUiSa FapESp 222 z 41

8,5 milhões em 1990 para 12 milhões em 2013, embora o número de mortes tenha baixado 12,5%, de 1,6 milhão em 2000 para 1,4 milhão em 2013. No Brasil, segundo esse estudo, houve 108 mil no-vos casos e quase 6 mil mortes em 2013. “A partir de 2001, o programa de controle da tuberculose implementado no país parece ter contribuído pa-ra reduzir a proporção de casos novos de 43 em cada 100 mil habitantes em 2001 para os atuais 36 por 100 mil”, conta Elena. “O controle está melhorando, mas o problema não está resolvido.”

amaral identificou o padrão distinto de ativação dos sinais de dano do sistema imune ao trabalhar com três variedades

de bactéria da tuberculose. Ele testou duas bac-térias hipervirulentas: a cepa Beijing de M. tu-berculosis isolada de um paciente russo e uma cepa de M. bovis encontrada em um surto da tu-berculose bovina no Sul do Brasil – embora afete preferencialmente o gado, essa variedade pode causar tuberculose em humanos. As duas cepas se multiplicaram mais rapidamente nas células de defesa in vitro e nos animais infectados do que a terceira bactéria, uma cepa de M. tuberculosis usada como referência em laboratórios.

Bastaram 100 bactérias das cepas mais agressi-vas para iniciar uma infecção pulmonar capaz de matar. A cepa Beijing matou 90% dos roedores em oito meses, enquanto a M. bovis eliminou todos os animais em 40 dias. Os camundongos contami-nados com a cepa de padrão de virulência sobre-viveram até o fim do experimento. A capacidade de proliferação das bactérias mais agressivas e o nível de inflamação que causavam (atraindo mais células de defesa) foram tão elevados que deixaram os pulmões dos roedores com uma massa de três a cinco vezes superior à normal em apenas um mês. A morte dos macrófagos e o recrutamento de mais células de defesa para a área infectada destroem o tecido pulmonar e obstruem os alvéolos, causan-do falta de ar e tosse com eliminação de sangue.

O papel do ATP nessa inflamação exacerba-da se tornou evidente quando os pesquisadores realizaram os mesmos testes com camundongos geneticamente modificados para não apresentar na superfície das células de defesa uma proteína – o receptor P2X7 – que reconhece o ATP e as co-loca em ação. O grau de necrose dos macrófagos e de inflamação nos roedores sem P2X7 foi bem menor do que nos normais. “Esse resultado res-ponde a uma questão importante sobre a resposta imunológica ao bacilo da tuberculose”, conta Maria Regina, que começou a notar a importância desse receptor na morte de macrófagos por necrose em experimentos com animais com malária.

Além de ajudar a compreender como as bacté-rias mais agressivas agem, esses resultados abrem a perspectiva de que se possa intervir de modo mais eficiente no combate à tuberculose. “Se conseguir-mos controlar a inflamação por meio de compostos que bloqueiem a ativação do receptor P2X7, talvez seja possível ganhar um tempo importante para o tratamento dos pacientes mais graves”, diz Eduardo. Nos testes com as cepas mais agressivas, os camun-dongos sem essa proteína viveram de 60 a 110 dias a mais do que os roedores normais. “O controle da inflamação com compostos que ajam no P2X7 não elimina a bactéria, mas pode diminuir lesões nos te-cidos e dar mais tempo para os antibióticos agirem”, completa. Alguns compostos que atuam sobre o P2X7 estão sendo testados em animais e seres humanos. Caso seja viável, essa estratégia complementar pode ajudar a melhorar o tratamento das formas agres-sivas da tuberculose, que hoje dura ao menos seis meses e exige o uso de quatro antibióticos diferentes.

Na Uenf, a equipe de Elena e pesquisadores da UFRJ avaliam a ação de compostos produzidos por plantas sobre o crescimento da micobactéria e a superinflamação disparada pelas bactérias hi-pervirulentas de tuberculose. Hoje se usam anti--inflamatórios tradicionais nos casos em que a tuberculose atinge o sistema nervoso central. Mas esta pode não ser a melhor alternativa sempre. “Usar anti-inflamatórios com mecanismos de ação diferentes do convencional, em combinação com antibióticos”, conta Elena, “parece ser o futuro da terapia para os casos mais graves de tuberculose”. n

Mycobacterium tuberculosis em secreção de paciente com tuberculose

ProjetoPapel dos inflamassomas na patogenia da tuberculose causada por isola-dos clínicos hipervirulentos de micobactérias (nº 13/07140-2); Modalidade auxílio Regular a Projeto de Pesquisa; Pesquisadora responsável maria Regina d’Império lima – ICB/uSP; Investimento R$ 288.936,14 (FaPESP).

artigos científicosamaRal, E. P. et al. Pulmonary infection with hypervirulent myco-bacteria reveals a crucial role for the P2X7 receptor in aggressive forms of tuberculosis. PLoS Pathogens. 3 jul. 2014.

muRRaY, C. J. et al. global, regional, and national incidence and morta-lity for HIV, tuberculosis, and malaria during 1990-2013: a systematic analysis for the global burden of disease study 2013. Lancet. 22 jul. 2014.iM

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Riscos e benefícios das células-tronco

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Ganhador do prêmio de Medicina em 2007,

o geneticista inglês Martin Evans fala dos desafios

e possibilidades dessa abordagem terapêutica

Nascido em 1º de janeiro de 1941 em um distrito da cidade de Stroud, distante cerca de 180 quilômetros a oeste de Lon-

dres, o geneticista Martin Evans se lem-bra do que chama de seu primeiro expe-rimento. Em um cenário rural marcado pela visão de prisioneiros da Segunda Guerra Mundial que lavravam os cam-pos locais, o pequeno Martin misturou água, areia e cimento na esperança de obter um material sólido, como vira ou-tras pessoas fazerem. Mas verteu muita água e errou a mão na receita. Meio sé-culo mais tarde, precisamente em 2007, ao lado do americano Mario R. Capecchi e do também britânico Oliver Smithies, Evans recebeu o Prêmio Nobel de Medi-cina por sua contribuição na formulação de uma receita de programação celular

Marcos Pivetta, de Lindau*

* Marcos Pivetta viajou à Alemanha a convite do Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico (Daad)

que, ao contrário da velha argamassa que desandara, deu muita liga: ele des-cobriu as células-tronco embrionárias em camundongos, cuja manipulação genética permitiu a criação de mode-los animais – os roedores nocaute – que reproduzem as condições clínicas de doenças humanas. Essa técnica permite desligar deliberadamente um gene e, dessa forma, causar nos camundongos a mesma condição clínica, ou um distúbio similar, que atinge os humanos.

Desde 2012 no cargo honorário de chanceler da Universidade de Cardiff (País de Gales), Evans foi um dos 37 lau-reados com a maior honraria da ciência que participaram do 64º Encontro de Prêmio Nobel em Lindau, pequena cida-de do Sul da Alemanha, às margens do lago Constança, na divisa com a Áustria e a Suíça. No evento, o geneticista deu palestras e conversou com 600 jovens cientistas de 80 países, inclusive o Bra-

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Evans: descobridor das células-tronco embrionárias em camundongos, que permitiram modificar os genes dos animais e usá-los como modelos de doenças

sil. Nesta entrevista, concedida em uma mesa de restaurante à beira do lago, o pesquisador fala dos possíveis impac-tos das pequisas com células-tronco no desenvolvimento de tratamentos para doenças. “Boa parte das terapias com células-tronco será mais parecida com uma cirurgia”, diz ele. “Teremos de ana-lisar o risco e o benefício [desses pro-cedimentos] para a população e para o meio ambiente.”

As pesquisas médicas com células-tron-co vão gerar novos tratamentos para doenças?Realmente acho que as células-tronco farão parte de uma importante linhagem de terapias. Acredito que as coisas deve-rão ser assim. Mas espero que haja um controle severo de como serão usadas. Creio que poderão gerar uma medicina bastante personalizada se conseguir-mos atingir esse objetivo e os riscos se-

rão bem menores para os pacientes. As pessoas têm medo de que ocorra algum problema com os tratamentos à base de células-tronco e o paciente acabe desen-volvendo tumores, mas não estamos fa-lando da aplicação de uma vacina, que é um procedimento feito em grande escala, em milhares de pessoas. Se as células--tronco gerarem procedimentos per-sonalizados, será possível rapidamen-te voltar atrás e tentar resolver algum eventual problema ocasionado especi-ficamente no paciente. As pessoas terão de se perguntar se vale a pena colocar algum tipo de célula em seu organismo. Elas fariam isso por questões cosméti-cas? Na verdade, isso já está ocorrendo, embora eu não veja nenhuma motiva-ção para fazer isso. Presumo que, nesses casos estéticos, algumas pessoas achem que a questão do risco e do benefício da terapia seja compensadora. Nos trata-mentos com células-tronco, o ideal é que

os benefícios sejam enormes e os riscos os menores possíveis.

Quando novos tratamentos com célu-las-tronco vão se tornar disponíveis? Alguns já estão sendo empregados, em nível experimental. Há estudos com aplicações de células na retina. As pes-soas imaginam que é horrível fazer es-ses testes nos olhos, mas esse é um óti-mo lugar porque se trata de um órgão isolado. O pior que pode acontecer é o paciente perder a visão do olho, o que já iria ocorrer de qualquer jeito, mesmo sem a aplicação. A adoção das terapias celulares será um processo lento. Mi-nha resposta-padrão para essa pergunta, que pode não estar correta, é a seguinte: não acredito que eu ou alguém da minha geração irá se beneficiar desses novos tratamentos. Também não acho que a sua geração vai se beneficiar. Suspeito que as pessoas que estão nascendo agora têm grandes possibilidades de utilizar esses procedimentos daqui a 50 anos. Esse é o meu palpite. Mas haverá mui-tos exemplos distintos de tratamentos. As células-tronco serão um tipo de in-tervenção importante ao lado de abor-dagens farmacêuticas e provavelmente da terapia gênica. Espero que não haja muitos problemas com elas, como ocor-reu com as pesquisas com terapia gêni-ca, que fizeram os estudos nesse campo pararem por uma década.

Além de problemas técnicos ainda não superados, as pesquisas com células--tronco obtidas de embriões humanos enfrentam questões éticas. Como o se-nhor avalia essa situação?Meu trabalho sempre foi com células embrionárias de camundongos. Há res-trições nos trabalhos com animais, mas não como no caso dos humanos. Tudo de que posso falar são minhas ideias so-bre as células-tronco humanas. Já estive envolvido em comitês que tratam disso. Estamos no meio de um processo em U

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que nós e o público temos de entender onde estamos. Há pequenos progressos que estão sendo feitos nos laboratórios de pesquisa, mas as maiores decisões terão de ser tomadas quando as tera-pias começarem a sair dos laboratórios e puderem ser aplicadas nos pacientes. Teremos de ver se coisas que eram fei-tas em pequena escala, experimental-mente, podem ser consideradas éticas se aplicadas em grande escala. Teremos de analisar o risco e o benefício para a população e para o meio ambiente. É preciso levar em conta para quem se-rão os benefícios e para quem serão os riscos. Dessa forma, poderemos tomar decisões racionais e sensatas.

As células-tronco com pluripotência induzida (iPS) são realmente uma es-perança para o desenvolvimento de no-vas terapias?As coisas estão mudando rapidamente. Achávamos que os tratamentos iriam sair das células embrionárias, mas há células que virtualmente podem se com-portar como as embrionárias e gerar di-versos tecidos se submetidas a um tra-tamento químico especial. Essas célu-las, as iPS, podem ser retiradas da pele das pessoas e há muitos métodos dife-rentes de produzi-las. Nesse caso, esta-mos falando de células que podem vir de uma fonte muito menos polêmica do que as embrionárias, ou seja, de outras células adultas. Acho que os melhores tratamentos virão de células retiradas do próprio paciente que está sendo tra-tado. Muitas das normas sobre uso de células-tronco que estamos usando são uma evolução da regulação do setor de fármacos, mas essas duas áreas não são exatamente iguais. No caso das drogas, é preciso fazer muitos testes clínicos, pois esse é um tipo de tratamento que, se for aprovado, será prescrito para milhões de pessoas. No caso dos tratamentos com células-tronco, boa parte das terapias será mais parecida com uma cirurgia. Volto ao exemplo dos experimentos em que células-tronco são usadas para ten-tar tratar alguns tipos de cegueira. Em-bora estejamos usando células-tronco, estamos falando de um tipo de operação feita nos olhos. O procedimento envolve riscos e benefícios pessoais. O paciente pode achar que vale a pena se submeter ao procedimento se souber que corre o risco de perder a visão se não reali-

zar tal cirurgia. A decisão de aprovar a operação só vai afetar uma pessoa, e ninguém mais.

O senhor está convencido de que as iPS são realmente muito similares às célu-las embrionárias?Devemos ver as coisas sob dois aspec-tos. Primeiramente, diria que elas são muito similares. Em segundo lugar, nem todas as células-tronco embrio-nárias são boas. O mesmo ocorre com as iPS. Há, no momento, ao menos 12 procedimentos diferentes para obter iPS, todos baseados nas observações iniciais do professor Shinya Yamanaka [da Universidade de Kyoto, ganhador do Nobel de Medicina de 2012, por ter conseguido reprogramar células adultas para se comportarem como se fossem células embrionárias e, assim, volta-rem a ser pluripotentes]. Segundo Ya-manaka, para fibroblastos [células da pele] se tornarem iPS era necessário introduzir quatro diferentes fatores de transcrição [na verdade, inserir qua-tro genes que produzem proteínas de-nominadas fatores de transcrição, que regulam o funcionamento de outros ge-nes nas células]. Agora há pessoas que conseguem fazer isso com três fatores e quem obtenha esse resultado dando proteínas ou RNA às células adultas. A

reprogramação celular demanda tem-po. Obviamente há múltiplos processos ocorrendo dentro das células e preci-samos entendê-los. Mas essa reprogra-mação de uma célula adulta para uma iPS similar a uma célula embrionária é a mais dramática reversão em termos de desenvolvimento e diferenciação celular. É voltar totalmente para trás. Como o próprio professor Yamanaka lhe diria, ele só conseguiu fazer isso porque já sabia como deveria cultivar células embrionárias, quais condições elas necessitavam e como eram. Para mim, está claro que estamos entrando em uma nova era na qual teremos co-nhecimento e habilidade técnica para transformar um tipo de célula em outra. Dessa maneira, os pesquisadores estão fazendo células nervosas, músculos, e a biologia celular está realmente pro-gredindo.

Nos últimos anos, alguns artigos cien-tíficos que descreviam supostos im-portantes avanços nas pesquisas com células-tronco foram considerados er-rados ou fraudulentos e sua publicação foi cancelada. Como o senhor vê essa questão?Na minha área, houve cinco ou seis epi-sódios dramáticos desse tipo e eu me pergunto se eles são casos especiais. Sa-bemos que há questões éticas e interes-ses envolvidos nesses episódios. Hou-ve aquele famoso caso do sul-coreano [Hwang Woo-suk, que publicou dois ar-tigos fraudulentos na Science, em 2004 e 2005]. Falando desse caso mais recente [um artigo de janeiro escrito por uma equipe japonesa do Riken Center for Developmental Biology, publicado na Nature], os resultados pareciam muito improváveis. Fiquei surpreso de a revista ter publicado o trabalho sem ter pensado muito no assunto.

As revistas científicas precisam ser mais cuidadosas ao aceitar trabalhos para publicação?Devo responder que sim e não. Se forem altamente seletivas sobre o que acham que está certo, as revistas, na verdade, não estão fazendo seu trabalho. Os edi-tores não devem se colocar nessa posi-ção. Mas, sim, seus revisores, que devem discutir a probabilidade de os trabalhos submetidos estarem corretos. Nesse tra-balho do centro Riken, havia claramente

As células- -tronco serão um tipo importante de tratamento ao lado de abordagens farmacêuticas e provavelmente da terapia gênica

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ilustrações que não mostravam o que elas diziam que mostravam. Não estamos em uma posição de dizer se foi uma fraude deliberada ou se se tratou de uma inter-pretação excessivamente otimista das imagens. Certamente, o trabalho estava errado. Mas não sabemos como e por quê. Tendo a achar que foi uma interpre-tação demasiadamente otimista. Mas, va-mos colocar as coisas assim, o processo de edição do trabalho certamente pode ser alvo de questionamentos.

Qual foi o impacto da criação dos ca-mundongos nocaute que se tornaram modelos animais para o estudo de doenças?Hoje há a exigência de se fazer um ca-mundongo nocaute para muitas doenças. Os pesquisadores até reclamam disso. Mas é preciso fazer. Mostrei um slide em minha palestra em que, segundo uma previsão, o mercado de camundongos nocaute vai movimentar US$ 1,8 bilhão em 2018. O que isso significa? Não sei dizer. Estimamos que mais ou menos metade dos genes já foi nocauteada. Hoje há até quem esteja fazendo o caminho inverso que tínhamos que fazer no pas-sado. Antes encontrávamos um fenótipo em um experimento com animais ou em um paciente e tínhamos que procurar a mutação que era sua causa. Hoje pode-se forçar as mutações a apresentarem um fenótipo. Assim, pode-se reconhecê-las.

Que tipo de pesquisa o senhor faz agora?Nada. Estou aposentado. Falo um pouco com colegas mais novos, mas não faço nenhum trabalho de laboratório. Escrevo alguns artigos e estou também envolvido com uma empresa que faz tratamentos com células-tronco. Mas não faço mui-ta coisa.

O que mudou em sua vida, do ponto de vista pessoal e profissional, depois do Nobel?Quando recebi o Nobel, estava me apo-sentando da Universidade de Cardiff. Mas eles quiseram me manter e me de-ram um cargo honorário. Nos últimos anos, tenho sido chanceler da universi-dade. Ganhar um Nobel significa que vo-cê será inundado com convites. É muito difícil lidar com isso. Tenho sido muito feliz e sempre tive apoio da universida-de, me deram uma assistente pessoal que é muito útil.

Essa é sua segunda participação em Lindau. Por que aceitou novamente o convite?Depois do Nobel, me disseram que eu iria ser convidado para vir aqui. Lindau tem uma ótima atmosfera, é um lugar bo-nito, e o evento é muito bem organizado. É ótimo encontrar outros Nobel e adoro a multidisciplinaridade das conversas. E, é claro, há os encontros com os jovens estudantes. Em toda minha vida, parte das minhas atividades sempre foi inte-ragir e encorajar os mais jovens. Gosto muito de fazer isso.

As novas gerações estão interessadas em ciência?Sim, acho que há muita gente interes-sada em pesquisa. Mas há problemas na forma como a ciência é ensinada nas escolas. A ciência é um disciplina intelectual. É uma atividade similar à dos poetas e dos artistas. Não acho que devemos estar interessados em ape-nas uma coisa. Certamente não pensa-ria a ciência apenas como a base para possíveis aplicações tecnológicas. Esse aspecto é bom. Todos nos beneficia-mos de avanços técnicos na medicina e em outros campos. Uma carreira na medicina, e eu sei disso porque tenho amigos na área, pode ser muito recom-pensadora. Mas os melhores clínicos que conheço são aqueles que pensam sobre a profissão. n

A ciência é uma disciplina intelectual. Certamente não pensaria a ciência apenas como a base para possíveis aplicações

O geneticista inglês em um encontro em

Lindau com jovens pesquisadores: estímulo

para novas gerações

46 z agosto DE 2014

Suçuaranas e suas presas dependem

de áreas agrícolas para sobreviver

no estado de São Paulo

Ecologia y

Mudança de cardápio

Igor Zolnerkevic

as onças-pardas que vivem nas ma-tas da Região Metropolitana de Campinas talvez sonhem em se

banquetear todos os dias de um taman-duá-bandeira ou um cateto, hoje raros por ali. Infelizmente, esses grandes felinos suburbanos precisam se contentar com uma dieta menos suculenta, composta em sua maior parte de roedores, aves e serpentes. Além disso, a maioria das ca-çadas não acontece na floresta, mas em canaviais e outras plantações.

A mudança no cardápio das onças-par-das ou suçuaranas tornou-se evidente a partir de uma análise pioneira feita por pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). Eles coletaram amostras de fe-zes desses animais e, por meio de análises visuais e físico-químicas, reconstituíram a dieta das suçuaranas e de onde vinham suas presas. “As onças-pardas e os animais silvestres que elas predam não têm mais opção”, explica o biólogo Marcelo Magio-li, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da USP, em Piracicaba, primeiro autor do estudo que descreveu a dieta das suçuaranas de São Paulo em julho na Biotropica. “Sem condições de conseguir alimento nos remanescentes

Dieta menos suculenta: onças-pardas caçam animais também em plantações

pESQUISA FApESp 222 z 47

florestais, os felinos se adaptaram a buscar as presas nas áreas agrícolas.”

Antes de investigar a dieta das suçuara-nas, Magioli havia feito um levantamento dos mamíferos de médio e grande por-te que viviam nos maiores fragmentos de vegetação nativa de uma área de 665 quilômetros quadrados (km²), que inclui Campinas e municípios vizinhos, em sua dissertação de mestrado feita sob a su-pervisão de Kátia Ferraz, da Esalq. No levantamento ele identificou 27 espécies, sete ameaçadas de extinção no estado.

Sob risco de desaparecer da natureza, a onça-parda (Puma concolor) é o último dos grandes predadores em muitos dos fragmentos florestais paulistas e ocupa o topo da cadeia alimentar. Com sua prin-cipal concorrente – a onça-pintada (Pan-thera onca) – quase extinta no estado, cabe à onça-parda predar capivaras e outros herbívoros, evitando que suas populações aumentem até se tornarem pragas. Na na-tureza, a competição por alimento entre a onça-parda e outros grandes carnívoros, como a jaguatirica e o lobo-guará, ajuda a controlar as populações de outros animais. Mas a redução da vegetação nativa e a caça fazem encolher lentamente o número des-ses felinos nas Américas. “Precisamos de dados mais precisos sobre as populações de onças-pardas no estado, mas acredita-mos que estejam diminuindo”, diz a biólo-ga Lilian Bonjorne de Almeida, do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Mamíferos Carnívoros do ICMBio, que estuda as suçuaranas da serra da Cantarei-ra, na Região Metropolitana de São Paulo.

Magioli percorreu por um ano estradas de terra e trilhas das matas de Campinas e municípios vizinhos em busca de rastros, pegadas e fezes de animais. Coletou 30 amostras de fezes de onças-pardas, anali-sadas pelas biólogas Eleonore Setz e Ma-riana Canhoto, ambas da Unicamp. Elas identificaram pedaços de ossos, unhas, dentes, pele, penas e escamas das presas consumidas pelas suçuaranas, além dos pe-los do próprio animal – como os gatos do-mésticos, as onças-pardas ingerem os pró-prios pelos durante os banhos de língua.

Em seguida, os biólogos Marcelo Mo-reira e Plínio de Camargo, do Centro de

Energia Nuclear na Agricultura da USP, realizaram a análise físico-química desse material, medindo as proporções de dois tipos de átomos de carbono com massas diferentes, os isótopos estáveis. “Dife-renças nas proporções desses isótopos permitem determinar se as presas das onças se alimentavam mais de recursos originários da floresta ou dos canaviais”, explica Magioli.

pAcAS, AvES E SErpEntESA equipe examinou ainda outras 34 amostras de fezes obtidas pela bióloga Renata Miotto, também da Esalq, em uma área de 1.700 km² na região de Ribeirão Preto, Rio Claro e São Carlos, mais longe da capital (ver Pesquisa FAPESP nº 199). Embora ambas as regiões abriguem cen-tros urbanos importantes e áreas rurais dominadas pela cana, o trecho estudado por Renata tem uma área proporcional-mente maior de vegetação nativa.

O cardápio das onças-pardas de Ribei-rão Preto, São Carlos e Rio Claro incluía mais mamíferos de maior porte, que vêm sumindo da região de Campinas, como tamanduás e catetos. As onças campi-neiras também consomem mamíferos grandes como pacas e capivaras, mas se alimentam de uma proporção maior de animais menores, como aves e serpentes.

A análise dos isótopos de carbono re-velou ainda que muitas presas das suçua-

ranas em ambas as regiões possuem uma dieta bem dividida entre plantas nativas e de culturas agrícolas. Mas a proporção de presas que se alimentam preferencialmen-te das plantações aumenta nas áreas menos florestadas: quase 50% delas consumiam predominantemente plantas cultivadas pelo homem em Campinas, número que caía para 17% em Ribeirão Preto e São Car-los. “Os herbívoros estão se alimentando mais de plantações por falta de vegetação nativa”, explica Magioli. “Em especial a capivara, que prefere áreas mais abertas e se adaptou bem aos canaviais.”

Ele e seus colegas esperam que essas informações sejam úteis para a conserva-ção da espécie e para o Projeto Corredor das Onças. Coordenado pelo economis-ta Ademar Romero, da Unicamp, e pela analista ambiental Márcia Rodrigues, do ICMBio, esse programa visa melhorar a conservação dos fragmentos florestais em Campinas e criar corredores para facilitar o trânsito dos animais entre os fragmentos. “Apesar de alguns animais se adaptarem à paisagem agrícola”, diz Magioli, “os frag-mentos de vegetação nativa são essenciais para a sobrevivência deles”. n

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À noite nos camposonças-pardas consomem proporção menor de mamíferos em áreas com menos vegetação nativa

artigo científico

magioli, m. et al. Stable isotope evidence of Puma con-color (Felidae) feeding patterns in agricultural landscapes in Southeastern Brazil. Biotropica. v. 46, n.4. Jul. 2014.

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Estudo estima temperaturas da superfície do

Atlântico Sul nos últimos 12 mil anos e sua conexão

com as precipitações no continente sul-americano

a seca pela qual está passando o estado de São Paulo em 2014 surpreendeu a todos e está colo-cando em risco o abastecimento de água na capital paulista e nos

municípios vizinhos. Prevista com mais antecedência, talvez permitisse adotar medidas para manter os reservatórios mais bem abastecidos. O trabalho de um gru-po internacional de pesquisadoras pode, no futuro, ajudar a calcular com maior precisão variações de chuva e umidade na América do Sul e auxiliar a agir mais cedo. O estudo, publicado em junho na Scientific Reports, combinou estimativas de temperatura no passado e modelagem matemática para reconstruir a tempera-tura da superfície do Atlântico Sul nos últimos 12 mil anos. Além de estabelecer com maior precisão o clima no período, o trabalho pode ajudar a compreender a dinâmica entre as temperaturas no oceano e a umidade no continente.

O quarteto liderado por Ilana Wainer, do Instituto Oceanográfico da Universida-de de São Paulo (IO-USP), observou que o aumento da temperatura na porção norte do Atlântico Sul, próximo à linha do equa-dor, esteve associado a um maior volume

climAtologiA y

Chuvas do passado

de chuvas onde hoje é o Nordeste brasileiro e a menos chuvas no Sudeste nos últimos 12 mil anos. Inversamente, o Nordeste en-frentou períodos de secas mais severas e o Sudeste de mais chuvas quando a tempera-tura no sul do Atlântico esteve mais elevada.

O que melhor explicou a variação climá-tica nesses 12 mil anos, segundo as pesqui-sadoras, foi um padrão de distribuição de temperaturas no Atlântico Sul semelhante ao observado hoje, com períodos em que a temperatura das águas superficiais era mais alta ao norte e outros em que eram mais elevadas ao sul. Os pesquisadores dão o nome de Dipolo Subtropical do Atlântico Sul ao padrão de distribuição de tempe-raturas em que o oceano parece ter um polo mais quente e outro mais frio – com a inversão ocasional. “Caso tenha existido nesses 12 mil anos, esse fenômeno pode ter influenciado de modo importante a distribuição das chuvas no continente”, diz a meteorologista Luciana Figueire-do Prado, coautora do estudo e aluna de doutorado de Ilana Wainer no IO-USP.

Essa conclusão é, até certo ponto, sur-preendente. Até então se atribuía a varia-ção no volume de chuvas na América do Sul principalmente à influência do fenô-

Salvador Nogueira

meno El Niño, flutuações na temperatu-ra das águas superficiais do Pacífico que ocorrem em períodos curtos (15 a 18 me-ses). Mas alguns trabalhos já haviam mos-trado que o El Niño não explica totalmente as alterações no regime de chuvas atual da América do Sul. Parte dessa variação (cer-ca de 20%) parece decorrer das mudanças de temperatura na superfície do Atlântico Sul. Por essa razão, embora a seca de 2014 em São Paulo esteja atrelada ao El Niño, Ilana acredita que essa não seja a história toda. “Mostramos que as condições do Atlântico Sul também são importantes para definir os cenários de precipitação na América do Sul”, diz a pesquisadora. “E isso não deve ser ignorado.”

HiStória NoS SedimeNtoSA equipe partiu de dois estudos anterio-res para reconstruir as variações da tem-peratura no Atlântico Sul nos últimos 12 mil anos. Em um dos trabalhos, Maria Alejandra Gómez Pivel, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e seus co-legas do IO-USP haviam recolhido amos-tras de sedimentos marinhos extraídas a 827 metros de profundidade na Bacia de Santos. Esses sedimentos guardam fósseis im

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de seres unicelulares – os foraminíferos – que se reproduzem em uma quantidade que varia com a temperatura da água e, ao morrer, se depositam no fundo do mar. Esses fósseis permitiram estimar as tem-peraturas superficiais da margem oeste do Atlântico Sul nos últimos 13 mil anos.

A esses resultados, publicados em 2013 na Palaeogeography, Palaeoclimatology, Palaeoecology, se somaram os de outro estudo, publicado em 2005 na Paleoceano-graphy. Neste estudo, pesquisadores norte--americanos haviam colhido sedimentos marinhos a 1.992 metros de profundidade na costa da Namíbia, na África, e os datado com outra técnica. Medindo a proporção dos elementos químicos cálcio e magné-sio nos fósseis de foraminíferos, eles ob-tiveram referências indiretas de valores da temperatura na superfície do oceano naquela região nos últimos 21 mil anos.

Ilana e Luciana, em parceria com uma pesquisadora da França e outra dos Esta-dos Unidos, usaram essas medições para gerar o histórico pregresso do Dipolo Subtropical do Atlântico Sul nos últimos 12 mil anos – ou de algo parecido com ele.

Após reconstruir os padrões de tempe-ratura do oceano, as pesquisadoras fize-ram uma simulação do clima que indicas-se a distribuição das chuvas ao longo des-se período. Para comparar os resultados do modelo com a realidade, elas buscaram registros indiretos do histórico de chuvas no continente alcançados por outros gru-pos. A forma mais comum de obter esses registros é pelo estudo de espeleotemas – estalactites e estalagmites –, estruturas formadas no interior das cavernas pela deposição de sedimentos diluídos na água das chuvas. Quanto maior o volume de chuvas em certo período, mais espessa é a camada formada no espeleotema. A comparação dos dados de precipitação com as simulações permitiu construir um modelo capaz de reconstruir a dinâmica oceano-atmosfera no passado e predizer como pode ser no futuro.

As pesquisadoras querem agora apri-morar o modelo aumentando o núme-

Projetos1. investigação da evolução do oceano profundo na região do Atlântico Sul para o último milênio: impactos para a mudança do clima (nº 2013/02111-4); modalidade bolsa no Exterior; pesquisadora responsável ilana coaracy Wainer (io-USP); investimento r$ 59.257,59 (fAPESP).2. interação ar-mar na região do Atlântico Sul: mecanis-mos de variabilidade climática durante o último milênio (nº 2013/11496-7); modalidade doutorado – bolsa no Exterior; Bolsista luciana figueiredo Prado (io-USP); investimento r$ 81.928,18 (fAPESP).

Artigo científicoWAinEr, i. et al. reconstruction of the South Atlantic Subtropical dipole index for the past 12.000 years from surface temperature proxy. Scientific reports. 13 jun. 2014.

mapas das temperaturas médias da superfície dos oceanos. no maior, as águas são mais quentes nas regiões róseas; no menor, mais detalhado, a temperatura mais elevada está em vermelho

ro de amostras de sedimentos marinhos analisados. Para coletar o sedimento, elas planejam usar o Alpha-Crucis, o novo na-vio oceanográfico do estado de São Pau-lo. “O objetivo é entender esses eventos de seca ou de excesso de chuva no conti-nente sul-americano, levando em conta a variação da temperatura de superfície do Atlântico Sul e como essas mudanças de temperatura alteram o transporte de umidade e os ventos”, conta Ilana. “Tam-bém pretendemos incorporar na análise fatores externos até agora pouco explo-rados, como vulcanismo.” n

50 z agosto DE 2014

Raios cósmicos desintegram ácido fórmico,

candidato a precursor de compostos biológicos

abundante nas regiões do espaço onde se formam as estrelas, em cometas e em corpos celestes pequenos no sistema solar, o

ácido fórmico é considerado um possível precursor de moléculas essenciais à vida. Físicos e biólogos acreditam que, quan-do interage com fontes de nitrogênio, como a molécula de amônia, ele possa contribuir para formar a glicina – o mais simples dos aminoácidos e um dos blocos químicos que compõem as proteínas, encontradas em todos os seres vivos. Mas ninguém sabe ao certo se a molécula de ácido fórmico sobreviveria no espaço o suficiente para se combinar com fontes de nitrogênio e formar aminoácidos. Se estiver desprotegida, parece que não: um estudo realizado por pesquisadores brasileiros em parceria com franceses e publicado neste ano na revista Monthly Notices of the Royal Astronomical Society indica que o ácido fórmico não resiste à ação direta dos raios cósmicos. Em testes que simularam as condições encontradas no espaço, o ácido fórmico foi degradado em água (H2O), monóxido de carbono (CO) e dióxido de carbono (CO2). Mais importante do que a ausência de mo-

AstRobiologiA y

Triturador de moléculas

Maria Guimarães

léculas maiores, o experimento indica que nessas condições ele não subsiste para participar de reações com outras substâncias.

O astrofísico Alexandre Bergantini, pes-quisador da Universidade do Vale do Pa-raíba (Univap) e autor principal do artigo, conta que o estudo simulou o que aconte-ceria se raios cósmicos bombardeassem, durante 2 milhões de anos e na presença de água, essas pequenas moléculas pou-sadas sobre grãos de poeira de até 1 mi-crômetro, “menor do que o menor grão de poeira encontrado na Terra”, explica o pesquisador. No experimento realizado no Grande Acelerador Nacional de Íons Pesados (Ganil) da cidade de Caen, na França, Bergantini inseriu amostras de ácido fórmico com água em uma câmara de aço inoxidável – em que um equipa-mento especializado suga todo o ar num processo que pode demorar até uma se-mana para criar um ultravácuo em baixís-simas temperaturas, cerca de -260 graus Celsius (°C) – e as bombardeou com íons pesados como os de níquel, que viajam o Universo inteiro a altíssimas velocida-des, simulando a ação dos raios cósmi-cos. “Poucos aceleradores de partículas

trabalham com íons tão pesados”, explica Bergantini justificando a parceria forma-da para o estudo. No Brasil, não teria sido possível realizar os experimentos.

O trabalho do grupo da Univap é um descendente do famoso experimento rea-lizado pelos norte-americanos Stanley Miller e Harold Urey na década de 1950. Num aparato vedado, eles submeteram água, metano, amônia e hidrogênio a des-cargas elétricas e ao longo de dias viram o líquido mudar de cor e verificaram o surgimento de aminoácidos, como a gli-cina, entre outros compostos orgânicos. Ao mostrar que moléculas que compõem a vida surgem de substâncias inorgânicas em condições extremas, o experimen-to deu origem a um campo de pesquisa que hoje dispõe de recursos de uma pre-cisão provavelmente inimaginável para Miller e Urey, que punham os elementos em quantidade indeterminada e obser-vavam, em parte a olho nu, o que acon-tecia. “Nossos experimentos são feitos com uma ou duas moléculas, em escala nanométrica, com dosagem de radiação precisamente medida e controlada”, ex-plica Bergantini. Em seguida às reações, a espectrometria permite detectar exa-

pESQUISA FApESp 222 z 51

Pilling concorda com a estimativa. “Acre-dito que a humanidade está muito perto desse tipo de achado”, diz. Por meio das simulações feitas no Lasa, ele pretende contribuir para essa busca, feita também a partir da análise de amostras coletadas por sondas espaciais que têm pousado em corpos celestes ou de material coletado de meteoritos que caem na Terra e também por meio de sinais detectados por radio-telescópios. “Nossas pesquisas procuram acrescentar pistas sobre a formação e a origem da vida, uma vez que simulamos ambientes espaciais onde ocorre a forma-ção de moléculas pré-bióticas como ami-noácidos e bases nitrogenadas essenciais para a vida como conhecemos.” n

tamente quais moléculas surgiram e em que quantidade.

Nessa busca por detalhar a possível trajetória do ácido fórmico no espaço, os brasileiros obtiveram resultados de certa maneira surpreendentes. “Acha-mos que a água fosse servir como escudo, mas ela na verdade ajudou a destruir o ácido fórmico”, conta Bergantini. E essa deve ser a situação mais comum, já que a água está disseminada pelo espaço. Mas pode não ser tão fácil assim degradar as moléculas de ácido fórmico. É que nas nuvens onde é encontrado em maior abundância, o ácido fórmico pode estar mais protegido pela matéria que existe ali e não ser destruído tão prontamente – o que lhe daria mais tempo para reagir com compostos contendo nitrogênio e gerar moléculas bióticas.

lAborATórIo ESpAcIAlPara entender como a evolução química do Universo acontece e dá origem à vida, o astrônomo Sergio Pilling, orientador de doutorado de Bergantini, montou no último ano o Laboratório de Astroquí-mica e Astrobiologia (Lasa) na Univap, em grande parte com financiamento da

FAPESP no âmbito do programa Jovens Pesquisadores. “Podemos simular si-multaneamente os efeitos dos fótons de ultravioleta e dos elétrons do vento solar, reproduzindo de forma mais ve-rossímil alguns fenômenos espaciais”, conta Pilling. “É possível ainda atingir temperaturas de -263 °C e simular o efei-to da radiação espacial em amostras de interesse aeroespacial e aeronáutico.” O laboratório também é mantido com recursos do Conselho Nacional de De-senvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) e da própria Univap.

Outros estudos feitos no laboratório recém-instalado em São José dos Cam-pos vêm mostrando resultados diferentes quando ácido fórmico e ácido acético são expostos a luz ultravioleta e raios X, si-mulando a energia emitida pelo Sol e por outras fontes. “Estamos vendo a forma-ção de outras moléculas além das mais óbvias como CO2”, adianta Bergantini sobre os resultados ainda preliminares.

A Agência Espacial Norte-americana (Nasa) anunciou recentemente que nos próximos 20 anos pretende confirmar se há vida no Universo além da terrestre. Il

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Projetosíntese e degradação de espécies moleculares pré--bióticas em atmosferas planetárias, cometas e gelos interestelares simulados; Modalidade Jovem Pesquisador; Pesquisador responsável sergio Pilling (univap); Inves-timento R$ 459.004,82 (FAPEsP).

Artigo científicobERgANtiNi, A. et al. Processing of formic acid-contai-ning ice by heavy and energetic cosmic ray analogues. Monthly Notices of the Royal Astronomical Society. v. 437, n. 3, p. 2.720-27. 21 jan. 2014.

52 z agosto DE 2014

tecnologia ENGENHARIA ESPACIAL y

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peSQUiSa FapeSp 222 z 53

a expectativa é alta nas instalações do Instituto de Aeronáutica e Espaço (IAE), braço de pesquisa do Depar-tamento de Ciência e Tecnologia Ae-

roespacial (DCTA), localizado em São José dos Campos, no interior de São Paulo. O órgão, vin-culado ao Ministério da Defesa, planeja lançar no segundo semestre deste ano quatro foguetes suborbitais, que ultrapassam 100 quilômetros de altitude num voo em forma de parábola e propi-ciam ambiente de microgravidade. O primeiro a ir ao espaço, o veículo de sondagem VS-30, terá como carga útil o chamado Estágio Propulsivo de Foguete a Propelente Líquido (EPL), um conjunto composto pelo primeiro motor-foguete produzi-do no país a empregar combustível líquido e seu respectivo sistema de alimentação. Esses dois equipamentos, de elevado conteúdo tecnológico, são essenciais para que o país avance no domínio da tão almejada tecnologia de veículos lançadores de satélite. O combustível líquido a ser testado no foguete brasileiro apresenta um aspecto inova-dor: é formado por uma mistura de etanol feito a partir da cana-de-açúcar e oxigênio líquido, o que inclui o Brasil entre as nações que contribuem para a inovação tecnológica sustentável no setor aeroespacial.

A campanha de lançamento do VS-30/EPL, ba-tizada de Operação Raposa, está prevista para co-meçar em 12 de agosto no Centro de Lançamento de Alcântara (CLA), situado a 30 quilômetros de São Luís, a capital maranhense. Se tudo ocorrer como programado, o foguete deverá ser lançado ao espaço depois de três semanas, no início de se-tembro. Além dele, o IAE planeja lançar ainda este ano o veículo suborbital VS-40M. Esse foguete, projetado no início dos anos 1990, lançará no es-paço o Satélite de Reentrada Atmosférica (Sara), que abrigará uma série de experimentos em mi-

A partir do alto à esquerda, foguete suborbital VSB-30 (imagens 1 e 4) com detalhes dos bicos injetores e do motor (2 e 3); foguetes Sonda IV (5) e VS-40 (6), em São José dos Campos

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Etanol e oxigênio líquido compõem

combustível de foguete suborbital

desenvolvido no Brasil

gravidade zero

Yuri Vasconcelos

6

54 z agosto DE 2014

VS-40mVSb-30

Foguetes suborbitaisVeículo vai testar o primeiro motor-foguete a combustível líquido, com etanol, fabricado no Brasil

Fonte IAE

empenaSServem para

dar estabilidade

ao foguete

propUlSorFunciona com

combustível

sólido

motor l5Desenvolvido

no IAE, tem

5 kN de empuxo

telemetriamódulo que monitora

todo o funcionamento

do Estágio Propulsivo

Líquido

SamFo sistema de

alimentação do

motor-foguete é

composto por um

tanque de oxigênio

líquido (LoX), um

de etanol e um de

nitrogênio gasoso

nitrogênio gaSoSo

Tanque com o gás

pressurizante que

“empurra” o

etanol e o LoX

para o motor

eSpaço

tanQUe de loX

ALCâNTARA

tanQUe de etanol

100 km

189 km

276 km

Tempo de microgravidade 6 min

11 m 12,6 m 9,1 m

690 kg 400 kg 300 kg

1º estágio

2º estágio

carga útil

carga útil

carga útil

2º estágio

1º estágio

1º estágio

carga útilExperimentos científicos embarcados

microgravidade

VS-30/epl

peSQUiSa FapeSp 222 z 55

crogravidade. Nessa condição, é possível realizar vários tipos de experimentos científicos destina-dos, por exemplo, a conhecer melhor a estrutura de proteínas para criar novos medicamentos. Com a ausência de gravidade, os cristais de proteínas ficam maiores porque na Terra o crescimento de-les é limitado. Conhecendo melhor a estrutura das proteínas que fazem parte de um parasita é possível desenvolver fármacos mais eficazes contra várias doenças. Na microeletrônica, a microgravidade propicia o preparo mais fácil do silício ultrapuro para estudos de semicondutores.

O último lançamento, previsto para o segundo semestre, do qual estão sendo preparados dois foguetes, é do tipo VSB-30, um bem-sucedido veículo suborbital construído em parceria com o Centro Aeroespacial Alemão (Deutsche Zen-trum für Luft- und Raumfahrt, ou DLR, na sigla em alemão). Dotado de dois propulsores, o VSB-30 fez seu voo inaugural há 10 anos, em outubro de 2004. Desde então já foram lançados com sucesso 14 foguetes.

grUpo Seleto“O Brasil tem um programa consistente de desen-volvimento de foguetes suborbitais. Esses veículos espaciais de baixo custo são ideais para a reali-zação de pesquisas científicas da atmosfera e da ionosfera e para o estudo de novos materiais e de processos em ambientes de microgravidade”, afir-ma o pesquisador e chefe da subdiretoria de espaço do IAE, coronel Avandelino Santana Júnior. “Esses foguetes também ajudam na formação de recursos humanos para a área espacial e têm se mostrado o objeto ideal para a manutenção de programas de cooperação com instituições estrangeiras de pesquisa desse setor.” Desde o início de suas ati-vidades, no fim dos anos 1960, quando ainda era chamado de Instituto de Atividades Espaciais, o IAE já desenvolveu sete diferentes modelos de foguetes suborbitais: Sonda II, Sonda III, Sonda IV, VS-40, VS-30, VS-30/Orion e VSB-30. Esse feito insere o país no seleto grupo de nações que dominam a tecnologia de fabricação desses veí-culos, ao lado de Estados Unidos, França, China e Inglaterra. O emprego de um propelente líquido à base de etanol (ou álcool etílico) para mover os seus motores é, segundo Santana Júnior, mais um avanço na área. “Até onde temos conhecimento, é inédito o uso de etanol como combustível líquido em veículos desse gênero.”

O desenvolvimento do Motor L5, movido a eta-nol e oxigênio líquido (LOX), é fruto de um pro-grama de pesquisa em propulsão líquida iniciado no IAE há cerca de 15 anos. Seu objetivo final é movimentar foguetes orbitais, empregados para colocar satélites no espaço, com um combustível líquido mais seguro do que o propelente à base de hidrazina, um líquido corrosivo e tóxico, que

precisa ser importado. O etanol e o oxigênio lí-quido, por sua vez, são menos agressivos ao am-biente, mais fáceis de manusear e emitem baixo nível de fuligem. O L5 foi concebido e projetado pelo IAE com recursos da Agência Espacial Bra-sileira (AEB), enquanto o sistema de alimenta-ção do motor-foguete (Samf ) foi desenvolvido pela Orbital Engenharia, empresa de São José dos Campos, e viabilizado por meio de recursos públicos de aproximadamente R$ 2 milhões da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep). Um passo importante rumo ao lançamento do Está-gio Propulsivo de Foguete a Propelente Líquido (EPL) foi dado em dezembro de 2013. Os enge-nheiros do IAE e da Orbital realizaram com êxito um teste em solo do modelo de voo desse estágio. Na ocasião, verificou-se que todos os componen-tes do sistema funcionaram conforme esperado. O ensaio consistiu da queima em um banco de prova do motor L5 integrado ao sistema de ali-

mentação, equipamento responsável por armazenar e injetar a mistura de etanol e oxigênio líquido no motor.

Depois do sucesso do ensaio em solo, o conjunto de propulsão líqui-da precisa ser testado numa opera-ção real de voo – e esse é o objetivo da Operação Raposa. No lançamento programado para o início de setem-bro, o VS-30/EPL irá decolar movido por um estágio propulsor dotado de combustível sólido. Vinte e quatro segundos depois do lançamento, esse motor se desprenderá da carga útil – no caso, o EPL, que sofrerá ignição. O motor L5 converterá a energia quí-mica contida no combustível armaze-nado nos tanques – etanol e oxigênio líquido – em uma força propulsora para gerar um impulso de cinco qui-lonewtons, energia suficiente para

empurrar um bloco de cinco toneladas.Movida pelo propelente líquido, a carga útil

descreverá uma trajetória parabólica, própria dos foguetes suborbitais, até cair no mar. A missão será considerada exitosa se tanto o sistema de alimen-tação do motor-foguete quanto o motor L5 funcio-narem perfeitamente em voo. “Estamos confiantes de que o lançamento será um sucesso”, diz o en-genheiro do IAE Eduardo Dore Roda, gerente das linhas de foguetes VS-30 e VSB-30. “O propelente líquido permite uma queima controlada, o que é ideal para foguetes lançadores de satélites. O úl-timo estágio desses veículos normalmente utiliza propulsão líquida, que permite controlar a inser-ção do foguete em órbita”, diz ele. Segundo Roda, o domínio dessa tecnologia em motor-foguete de pequeno porte, como o VS-30, é um estágio signi-ficativo na direção do desenvolvimento de moto-

desde outubro de 2004, já foram lançados com sucesso 14 foguetes do tipo VSb-30

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56 z agosto DE 2014

res maiores. Os foguetes orbitais completam pelo menos uma trajetória inteira ao redor da Terra em altitude acima de 100 quilômetros.

O sucesso da linha de foguetes suborbitais do IAE tem extrapolado as fronteiras do país. Das 14 missões já realizadas com o modelo VSB-30, 11 partiram do Centro de Lançamento de Esrange, situado a 200 quilômetros do Círculo Polar Ártico, próximo à cidade de Kiruna, na Suécia – as outras três missões partiram de Alcântara, no Maranhão. O projeto desses veículos nasceu no início dos anos 2000. “Eles foram fabricados em conjunto com o Centro Aeroespacial Alemão para atender a uma demanda do Programa Microgravidade da Agên-cia Espacial Europeia (ESA). Até aquela época, o DLR utilizava foguetes britânicos Skylark para enviar seus experimentos ao espaço, mas a produ-ção do veículo seria descontinuada e os alemães precisavam de um veículo que o substituísse”, revela o engenheiro Eduardo Roda. O VSB-30 foi projetado para levar uma carga útil de 400 quilos a 260 quilômetros de altitude, com tempo de mi-crogravidade superior a seis minutos. O voo dos foguetes suborbitais é de curta duração e durante alguns minutos ele se encontra em condição de microgravidade. Nesse breve período, uma série de experimentos científicos pode ser executada.

Até o momento, as agências espaciais do Bra-sil, Suécia, Noruega e Alemanha, além da pró-pria ESA, já fizeram lançamentos com o VSB-30. Mais dois veículos serão lançados em outubro e novembro deste ano a partir do Centro de Lan-çamento de Andoya, na Noruega, e um terceiro deverá ser lançado do Brasil em 2015, no âmbi-to do Programa de Microgravidade da Agência Espacial Brasileira. “O foguete de sondagem é uma alternativa barata para a realização de ex-perimentos científicos em ambiente de microgra-

vidade. E o VSB-30, um veículo suborbital com dois estágios a propulsão sólida, é um foguete muito bem-sucedido”, afirma.

A cooperação entre o IAE e o DLR alemão re-monta a 1969, quando o Centro de Lançamento da Barreira do Inferno (CLBI), no Rio Grande do Norte, foi usado para o lançamento de experi-mentos científicos do Instituto Max Planck para Física Extraterrestre, da Alemanha. A cooperação se fortaleceu nos anos seguintes e redundou na construção do VSB-30, produzido integralmente no IAE e com 70% de seus componentes forne-cidos por parceiros comerciais brasileiros. “O acordo entre o IAE e o DLR para o desenvolvi-mento comum de um foguete de sondagem de

Lançamento do VSB-30 V14 (à esq.)em novembro de 2011 e do V16 em abril de 2012, ambos do campo de Esrange, na Suécia

1

um dos principais objetivos do Programa Nacional de Atividades Espaciais (PNAE) é construir um foguete orbital para lançar satélites no espaço, tecnologia dominada por pouquíssimos países, entre eles Estados unidos, França e China. Duas tentativas já foram feitas, em 1997 e 1999, com o Veículo Lançador de Satélites (VLS-1), mas nenhuma foi bem-sucedida. Em 2003, o programa sofreu um forte revés quando um dos motores do terceiro protótipo do foguete sofreu uma ignição prematura,

no Centro de Lançamento de Alcântara (CLA), no maranhão, matando 21 técnicos do IAE que estavam na plataforma.

Após o acidente, importantes alterações foram realizadas no projeto do VLS-1, um veículo de quatro estágios propulsivos projetado para lançar satélites de 100 a 350 quilos em altitudes de 200 a mil quilômetros. Em julho de 2012, foi realizada com sucesso em Alcântara a operação Salinas, que consistiu na primeira interligação do VLS-1 à nova Torre

o lançador brasileiro

móvel de Integração, estrutura usada no lançamento do foguete.

Atualmente, o projeto se encontra na fase de construção e integração de sistemas de um veículo protótipo denominado Vsisnav (Veículo Lançador do Sisnav – Sistema de Navegação). Após passar por uma intensa bateria de testes em solo, o lançamento desse veículo terá como objetivo testar os sistemas de propulsão e navegação, empregados nas fases mais críticas de um voo espacial.

peSQUiSa FapeSp 222 z 57

dois estágios com base no motor S30 já existente no Brasil surgiu em 2000. Quatro anos depois, em 23 de outubro de 2004, o VSB-30 concluiu com sucesso o seu voo de qualificação”, relembra o coronel Avandelino Santana Júnior.

Há dois anos, o DLR empregou em suas missões outro foguete suborbital nacional, o VS-40M, mais potente do que o VSB-30. Dotado de dois estágios propulsivos e capaz de transportar uma carga útil de 500 quilos a 640 quilômetros de altitude, o VS--40M levou ao espaço o experimento hipersônico alemão de reentrada atmosférica Shefex II (Sharp Edge Flight Experiment). Esses experimentos avaliam, entre outros objetivos, o comportamen-to de materiais usados na construção de veículos espaciais tripulados quando submetidos às severas condições de reentrada na atmosfera terrestre.

SiStema inercialA reentrada é também um dos objetivos do Sara, fabricado no IAE e que será lançado do Centro da Barreira do Inferno em novembro deste ano, a bordo do VS-40M, na Operação São Lourenço. O satélite é uma plataforma espacial para expe-rimentos em ambiente de microgravidade, desti-nado a operar a 300 quilômetros de altitude por, no máximo, 10 dias. Depois desse período, o Sara fará sua reentrada na atmosfera e cairá no oceano Atlântico, de onde será recuperado para avaliação dos experimentos levados ao espaço. “Entre os vá-rios experimentos a bordo do Sara, vale destacar o teste de um sistema inercial, que, no futuro, deve-rá equipar o VLS-1”, afirma o engenheiro Nelson Snellaert Tavares, gerente do projeto do VS-40M. Esses sistemas de orientação são responsáveis pelo guiamento do veículo.

Equipado com dois propulsores com propelente sólido, o VS-40 fez seu voo inaugural em 1993. Ele foi concebido com o propósito de testar em voo o funcionamento, no vácuo, do motor S44, simi-lar ao quarto e último estágio do VLS-1 – o outro propulsor do VS-40, batizado de S40, equivale ao terceiro estágio do VLS-1. Cinco anos depois, uma segunda unidade do foguete foi lançada de Alcântara. Devido ao bom desempenho desses dois voos, o IAE concluiu que o veículo poderia ser aplicado para experimentos em ambiente de microgravidade e ser mais um dentre os foguetes de sondagem desenvolvidos pelo órgão. “Em 2008, o DLR mostrou interesse pelo foguete. Apesar de naquela época o VS-40 já ser um veículo muito confiável, fizemos modificações e melhoramos sua segurança de operação, de montagem e de integra-ção. Daí, ele passou a ser denominado VS-40M, uma versão modificada da original”, diz Tavares.

A missão inaugural do VS-40M aconteceu em 22 de junho de 2012, quando foi lançado do Cen-tro de Lançamento de Andoya, na Noruega, le-vando a bordo o experimento Shefex II, avaliado em € 7 milhões. “A missão atingiu plenamente os seus objetivos”, diz o gerente do projeto VS--40M. Segundo o engenheiro Nelson Tavares, os alemães já demonstraram interesse em adquirir um novo foguete e o IAE também foi sondado por uma empresa internacional do setor aeroespa-cial interessada em uma unidade do veículo. “Já estamos pensando em melhorias e otimizações futuras a fim de tornar o VS-40M ainda mais competitivo do ponto de vista comercial para órgãos e empresas que necessitem de vetores para voos suborbitais e em ambiente de micro-gravidade”, diz ele. n

projeto dos foguetes suborbitais começou para atender a uma demanda da agência espacial europeia

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DLR

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58 z agosto DE 2014

Desenvolvimento y

sivo em pesquisa e desenvolvimento, se deve a seu dinamismo e caráter inovador e a sua posição estratégica na promoção do desenvolvimento econômico no esta-do”, diz Alda Ferreira.

A pesquisa também mostra os esforços recentes para formar profissionais capa-zes de atender às necessidades desse setor – só as instituições públicas de São Paulo aumentaram 93% as vagas em diversos cursos vinculados à computação e às tele-comunicações no período analisado pela pesquisa, diante de 32% das instituições particulares – e as dificuldades enfren-tadas nesse percurso, como a evasão de alunos. “A ideia é indicar possibilidades para estudos que avancem na discussão sobre a formação de profissionais para o setor e possam contribuir na elaboração de políticas públicas que enfrentem esse desafio”, explica Cássia Adduci.

O mercado brasileiro do setor de tec-nologia da informação e comunicação é o quarto maior do mundo, atrás de Esta-dos Unidos, China e Japão. Movimentou mais de US$ 230 bilhões em 2012. “O Brasil não chega a ser um player mundial no seg-

Estudo mostra o crescimento das empresas paulistas de

software, tecnologia da informação e comunicações e a sua

avidez por mão de obra qualificada | Fabrício marques

existe um segmento da economia brasileira que cresce a taxas “chi-nesas” (10,8% em 2012), concen-tra-se cada vez mais no estado de

São Paulo (onde ficam 48,5% das empre-sas do ramo em operação do país, ante 44,3% em 2008) e se abastece de mão de obra altamente qualificada (47,4% de graduados e pós-graduados, ante 18,8% da média do mercado de trabalho paulista). Trata-se do setor de software, tecnologia da informação e de comunicações, es-quadrinhado por um estudo lançado em maio pela Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (Seade).

Coordenado pelas pesquisadoras Al-da Regina Ferreira de Araújo e Cássia Chrispiniano Adduci, o trabalho faz um mapeamento inédito da distribuição das empresas desse segmento pelos municí-pios do estado de São Paulo e mostra uma evolução notável entre 2008 e 2012, com a criação de novos polos e a especializa-ção de outros – ainda que a capital pau-lista siga como centro hegemônico (ver quadro). “Nosso interesse em compreen-der melhor esse segmento, que é inten-

BauruInteriorização e ampliação

da cobertura dos serviços

fizeram com que a cidade

do centro-oeste paulista

ampliasse significativamente

o número de empregos

em telecomunicações

entre 2008 e 2012

Barueri e santana De ParnaíBaPróximas a São Paulo,

as cidades especializam-

-se em empresas de

software, tratamento

de dados, provedores e

hospedagem na internet.

Boa infraestrutura,

logística e incentivos

fiscais a empresas

explicam o crescimento

avanço vigoroso

PesQuisa FaPesP 222 z 59

o mapa da tecnologiaOs principais polos de software, tecnologia da informação e telecomunicações no estado de São Paulo

são PauloA capital paulista é o

principal polo, com 61%

dos empregos e 72%

das empresas entre

os municípios paulistas

selecionados. O destaque

são as empresas de

software por encomenda

e de consultoria

são José Dos CamPosA implementação do

Parque Tecnológico de São

José dos Campos fez

com que empregos ligados

ao desenvolvimento e

licenciamento de softwares

sob encomenda

crescessem de 145 em

2008 para 804 em 2012

riBeirão PretoTornou-se um polo emergente com a

criação do Supera – Parque de Inovação

e Tecnologia. Em 2012 havia 808

pessoas empregadas em atividades

de desenvolvimento e licenciamento

de softwares customizáveis,

ante 126 pessoas em 2008

CamPinasGrandes empresas de

programas sob encomenda,

instaladas em Campinas

e nas cidades de Jaguariúna

e Americana, geram

o segundo maior

contingente de pessoas

ocupadas no segmento

de software em São Paulo

mento, que é liderado por Estados Unidos, Japão, Alemanha, Coreia e China. Mas a demanda por produtos e serviços em em-presas de todo tipo é muito forte, o que explica o crescimento”, diz Alda. O estudo mostra que o segmento tem certas carac-terísticas no estado de São Paulo. De um lado, é fortemente concentrado num con-junto de 15 municípios, onde estão 70% das empresas e 87% dos empregos. As cidades são Americana, Barueri, Bauru, Campinas, Hortolândia, Jaguariúna, Jundiaí, Mogi das Cruzes, Osasco, Poá, Ribeirão Preto, Santa-na de Parnaíba, Santo André, São José dos Campos e São Paulo. Outra característica é a predominância de empresas de micro e de pequeno porte: 85% das quase 9,5 mil empresas têm até 20 funcionários. A capital paulista, que concentra 61% dos empregos e 72% das empresas entre os municípios selecionados no estudo, destaca-se em dois setores: o de empresas que desenvolvem softwares sob encomenda e as consultorias em tecnologia da informação.

A importância do polo de software paulistano também pode ser aferida pelo porte de suas empresas: das 25 compa-

léO

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S

60 z agosto DE 2014

nhias com mais de 500 funcionários lo-calizadas no estado, 19 estão na cidade de São Paulo. “Esse perfil da capital paulista é bastante conhecido”, comenta Virginia Duarte, gerente do observatório da As-sociação para Promoção da Excelência do Software Brasileiro (Softex). Segundo ela, tal perfil foi moldado em boa medida pelas demandas do mercado financeiro, que deixou de produzir softwares para contratar serviços de empresas. “As con-sultorias em tecnologia da informação ajudam a identificar as características dos programas que os clientes precisam. E as empresas de software por encomenda fa-zem a parte de codificação dos produtos solicitados”, explica. A concentração de

empresas robustas em São Paulo, observa Virginia, tem uma explicação simples: as que mais crescem acabam se mudando para São Paulo, onde está uma importan-te fatia do mercado consumidor.

novos PolosA capital paulista, mostra o estudo, ofere-ce uma série de serviços importantes para o funcionamento das empresas, ligados a criação, comercialização e distribuição de produtos. Também dispõe de uma boa infraestrutura de transportes, telecomu-nicações e tecnologia da informação, além de mão de obra qualificada. “Somam-se a isso uma ampla rede de escolas profis-sionalizantes e diversas instituições de

ensino superior, algumas com reconhe-cimento internacional, além de centros de pesquisa e laboratórios com produção em várias áreas do conhecimento”, diz o estudo da Fundação Seade. Com a con-solidação da capital paulista, certos ti-pos de empresa deslocaram-se para além dos limites da cidade, criando novos po-los. Graças a políticas fiscais, as cidades vizinhas Barueri e Santana de Parnaíba destacaram-se por abrigar empresas de tratamento de dados, provedores e hos-pedagem na internet, que requerem in-fraestrutura e espaço, mas não necessitam estar em áreas densamente urbanizadas.

O segundo maior polo de software, tec-nologia da informação e de comunicações fica na Região Metropolitana de Campinas. O início desse processo remonta à década de 1970, com a inauguração da fábrica de computadores da IBM, em Sumaré, e do Centro de Pesquisa e Desenvolvimento da Telebras, atual Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunicações (CPqD), em Campinas, já naquela épo-ca beneficiados com a pesquisa realizada na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e os profissionais formados pela instituição. Campinas é berço de em-presas como a CI&T (ver Pesquisa FAPESP nº 220), criada por ex-alunos da Unicamp há quase 20 anos, hoje presente em vários países. A análise dos empregos gerados no segmento de software na região, entre 2008 e 2012, mostra sua consolidação co-mo centro de desenvolvimento de softwa-res sob encomenda e também de progra-mas customizáveis, aqueles que podem ser adaptados para necessidades específicas dos clientes. As empresas de grande por-te especializadas no desenvolvimento de programas de computador sob encomen-da, instaladas em Jaguariúna e Americana, somadas àquelas localizadas no município de Campinas, formam o segundo maior contingente de pessoas ocupadas nessa atividade no estado de São Paulo.

Embora muito recente, a criação de parques tecnológicos em São José dos Campos e Ribeirão Preto já começou a ampliar o número de empregos nas duas cidades em empresas de tecnologia da informação. Segundo o estudo, esses dois polos emergentes constituem novas fronteiras do segmento no estado.

Uma das características das empresas de software e serviços de tecnologia da informação e telecomunicações é sua dependência de mão de obra com alta

a evolução do mercado de trabalhoEmpregos no setor de software e serviços de tecnologia da informação e telecomunicações (TIC), segundo ocupações – estado de São Paulo

Fontes mInISTérIO dO TrABAlhO E EmPrEGO – mTE. rElAçãO AnuAl dE InfOrmAçõES SOCIAIS – rAIS; fundAçãO SEAdE

2008 2012 Crescimento (%)

total das ocupações selecionadas 49.510 81.621 64,9

engenheiros em computação

Engenheiro de aplicativos em computação 226 552 144,2

Engenheiro de equipamentos em computação 227 845 272,2

Engenheiro de sistemas operacionais em computação 206 179 -13,1

engenheiros eletricistas, eletrônicos e afins

Engenheiro de manutenção de telecomunicações 28 28 0,0

Engenheiro de telecomunicações 757 554 -26,8

Engenheiro projetista de telecomunicações 221 241 9,0

Engenheiro de redes de comunicação 37 90 143,2

Tecnólogo em telecomunicações 0 85

administradores de tecnologia da informação

Administrador de banco de dados 301 556 84,7

Administrador de redes 871 2.046 134,9

Administrador de sistemas operacionais 353 774 119,3

Administrador em segurança da informação 0 120

analistas de tecnologia da informação

Analista de desenvolvimento de sistemas 23.041 31.813 38,1

Analista de redes e de comunicação de dados 2.843 3.638 28,0

Analista de sistemas de automação 597 1.053 76,4

Analista de suporte computacional 10.876 19.076 75,4

técnicos de desenvolvimento de sistemas e aplicações

Programador de internet 256 618 141,4

Programador de sistemas de informação 5.283 8.535 61,6

Programador de multimídia 120 172 43,3

gerentes de tecnologia da informação

Tecnólogo em gestão da tecnologia da informação 0 124

técnicos em eletrônica

Técnico em manutenção de equipamentos de informática 1.030 5.850 468,0

técnicos em operação e monitoração de computadores

Técnico de apoio ao usuário de informática (helpdesk) 2.237 4.672 108,9

PesQuisa FaPesP 222 z 61

qualificação. Quase a metade dos fun-cionários dessas empresas tem diploma de graduação ou de pós-graduação, ante quase 19% da média estadual. Entre 2008 e 2012, o destaque foi o aumento expres-sivo dos empregos ocupados por profis-sionais de nível superior completo, que saltou de 60.519 em 2008 para 100.869 em 2012. Já os empregos com nível de mestrado saltaram de 380 para 1.263, um crescimento de 232,4% nos municípios selecionados. A ampliação dos empregos com doutorado, de 442 para 629, foi de 42,3%, inferior ao crescimento verifica-do no total do estado. “O segmento não é intensivo de mão de obra, mas exige cada vez mais profissionais com alta qualifi-cação”, diz a pesquisadora Alda Ferreira.

análise De sistemasPara atender a uma demanda crescente de profissionais, o número de vagas em cursos superiores (como os de adminis-tração de redes, ciência da computação e uso da internet, entre outros) aumentou 37% no estado de São Paulo (de 66.259 para 90.952 vagas entre 2008 e 2012). Os principais destaques foram a ampliação de vagas nos cursos de análise e desen-volvimento de sistemas e o esforço das instituições e universidades públicas, que quase dobraram as vagas oferecidas no período. Mas o estudo também obser-vou um aumento na evasão de alunos. Novamente nos cursos de análise e de-senvolvimento de sistemas, o avanço do número de formados foi de 27,6%, aquém do aumento do número de matrículas e de vagas oferecidas, que foi de 43%. “São

cursos que exigem bom desempenho em raciocínio lógico e matemática, além de fluência em inglês. Não é trivial encon-trar essas qualificações num grande nú-mero de candidatos ao ensino superior”, diz Cássia, a próposito da evasão.

Os dados corroboram a percepção de um estudo recente da Softex sobre mercado de trabalho e formação de mão de obra em tecnologia da informação. O trabalho indi-ca que há um desequilíbrio na distribuição de vagas nos cursos superiores na área de computação no Brasil, resultado da con-centração de empresas em certas regiões e da dispersão dos cursos pelo país, e tam-bém um aumento na evasão dos cursos que ameaça a capacidade de crescimento das empresas. Segundo o estudo, os motivos

para a evasão, na casa dos 20% em cursos de computação e informática, vão desde a frustração quanto ao conteúdo dos cursos até a possibilidade de ingressar no mercado de trabalho sem diploma e deficiências na formação que prejudicam o desempenho dos alunos.

A evasão poderá tornar crônico o pro-blema da escassez de profissionais, que hoje é restrito a algumas áreas e regiões. Uma simulação feita pela Softex projeta um déficit de 408 mil profissionais em 2022. Se isso acontecer, a Softex estima uma perda de US$ 140 bilhões para o seg-mento até 2022. Outro desafio é o da qua-lidade dos profissionais. “A qualificação dos alunos de universidades e instituições de nível superior públicas no Brasil é su-perior ao das particulares”, diz Virginia Duarte. Segundo o estudo da Softex, so-mente 43% dos empregadores dizem en-contrar jovens recém-ingressos de cursos superiores ou de cursos técnicos com o perfil requerido para o trabalho.

Nem de longe é primazia do Brasil a preocupação com os profissionais ne-cessários para garantir o crescimento da indústria de tecnologia da informação. O presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, estabeleceu como uma das altas prioridades de seu governo melhorar a educação em ciências, engenharias, tecnologia e matemática para garantir a competitividade da economia – e fre-quentemente é pressionado pelas em-presas do segmento a reduzir entraves para importar mão de obra qualificada de outros países. n

Pequenas empresas são maioriaEvolução das empresas paulistas de software e serviços de TIC

Profissionais qualificadosEmpregos no setor de software e serviços de TIC em 15 cidades paulistas

Fontes mInISTérIO dO TrABAlhO E EmPrEGO – mTE. rElAçãO AnuAl dE InfOrmAçõES SOCIAIS – rAIS; fundAçãO SEAdE

Fontes mInISTérIO dO TrABAlhO E EmPrEGO – mTE. rElAçãO AnuAl dE InfOrmAçõES SOCIAIS – rAIS; fundAçãO SEAdE

Zero

1 a 4

5 a 19

20 a 99

100 a 499

500 e mais

723

983

3.072

4.433

1.881

653

127

52

2.658

1.121

266

73

número de empresas

Faixa de pessoas ocupadas

n 2008 n 2012

n 2008 n 2012

Até fundamental incompleto

fundamental completo

médio incompleto

médio completo

Superior incompleto

Superior completo

mestrado

doutorado

1.993

380

442

3.515

3.946

21.266

60.519

46.507

2.124

1.263

629

3.395

5.104

29.479

100.869

73.868

Plataforma on-line utiliza recursos de

games para motivar alunos a estudar

conteúdo de disciplinas do ensino médio

Treinamento avançado

Uma plataforma on-line chama-da Meu Tutor, criada por pes-quisadores da Universidade de São Paulo (USP) e da Univer-

sidade Federal de Alagoas (Ufal) com foco na preparação e treinamento de alunos que irão se submeter ao Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), tem se expandido rapidamente e recebido um expressivo fluxo de adesão. Somente entre abril e junho deste ano, o número de usuários ativos da plataforma, que pode ser acessada pela internet ou pelo Facebook, saltou de 5 mil para 10 mil. O Meu Tutor disponibiliza os conteú-dos de todas as disciplinas abordadas no Enem por meio de mecanismos de recompensa como pontuação, níveis a serem atingidos, rankings e missões a serem cumpridas pelos participantes. E também permite fazer os simulados do exame nacional. Para que o estudan-te se sinta motivado, ele é desafiado e quando vence ganha bonificações em prêmios virtuais.

Os pesquisadores trabalharam com três conceitos no desenvolvimento da ferramenta. Um deles é a aprendizagem personalizada, em que o ritmo é ditado pela dificuldade do aluno em assimilar

a disciplina. “O conteúdo é adequado às necessidades de cada aluno”, diz o professor Seiji Isotani, do Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação (ICMC) da USP de São Carlos, um dos criadores da ferramenta. A motivação é outro elemento utilizado no processo. “Um aluno que não está engajado e com-prometido com a sua própria educação não aprende. Para mudar esse quadro, utilizamos de maneira inteligente téc-nicas de games para motivar o aprendi-zado on-line”, diz o pesquisador. “Essa é uma das características inovadoras que diferenciam o projeto.” A plata-forma educacional também aposta na aprendizagem social ao formar grupos colaborativos, em que o conhecimento e as experiências são compartilhados. Além disso, há também a preocupação de propiciar uma aprendizagem per-sonalizada, adequando o conteúdo às necessidades específicas de cada alu-no. Na avaliação de Isotani, a inovação tecnológica pode melhorar o processo de ensino e aprendizagem de forma a aumentar a motivação e o rendimento dos alunos, o que resultará na melhora de índices escolares em avaliações na-cionais e internacionais.

Educação y

Dinorah Ereno

62 z agosto DE 2014

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Uma startup, sediada na Ufal, foi cria-da em 2012 com o objetivo de trabalhar na ferramenta e dar continuidade a no-vos projetos de uso da plataforma em trabalhos educacionais. Ela foi premiada na Olimpíada USP de Inovação 2014 na categoria Empresa Nascente e também recebeu neste ano o prêmio Alagoano Empreendedor Inovador. Atualmente é cobrada uma mensalidade de R$ 9,90 para cada aluno cadastrado. “Ao se ca-dastrar, ele pode fazer o treinamento em todas as disciplinas dadas no ensino mé-dio e realizar simulados do Enem”, diz Isotani. Caso o foco do aluno seja apenas matemática, ele pode usar a ferramenta livremente, sem pagar nenhuma taxa.

parcEria univErsiTáriaA ideia de criar uma empresa para produ-zir plataformas educacionais surgiu em 2007, durante um congresso. Na ocasião, Isotani, que estava terminando o seu dou-torado na área de computação aplicada à educação na Universidade de Osaka, no Japão, conheceu o também pesqui-sador Ig Ilbert Bittencourt, atualmente professor na Ufal. “Vimos que havia um grande potencial de uso de tecnologias inteligentes no processo de aprendiza-

gem e pouca coisa desenvolvida no Bra-sil”, relata. “Decidimos então abrir uma empresa para suprir essa lacuna.”

As pesquisas são realizadas em con-junto entre as duas universidades, com o envolvimento de 10 alunos de mestra-do e doutorado atualmente. Na empresa outras 10 pessoas trabalham no desen-volvimento de softwares. “A plataforma que criamos pode ser utilizada em di-ferentes domínios”, diz Isotani. O gru-po de pesquisa está trabalhando agora no Meu Tutor Prova Brasil – avaliação em larga escala aplicada aos alunos de 5º a 9º ano do ensino fundamental nas redes municipais, estaduais e federais – e outras frentes estão sendo estuda-das, como o treinamento de pessoas em empresas.

Segundo Isotani, o mercado de apli-cativos e softwares educacionais tem registrado crescimento no Brasil. Ele cita dados apresentados em um estudo realizado em parceria pelas empresas Inspirare e Potencia Ventures, intitula-do “Oportunidades em educação para negócios voltados para a população de baixa renda no Brasil”, que mostram um mercado potencial de R$ 60 bilhões para a educação, sendo que cursos, games e

softwares representam 78% desse mer-cado potencial. 

Uma das principais linhas de pesquisa no Laboratório de Computação Aplicada à Educação do ICMC, que tem Isotani como um dos coordenadores, é a forma-ção de grupos de aprendizagem e uso de dispositivos móveis no ensino. Na sua ava-liação, para que os alunos aprendam de maneira colaborativa, a seleção dos gru-pos não pode ser baseada em afinidades entre os participantes, nem o ambiente de ensino deve estar restrito a uma sala de aula. “Nesses casos, os conflitos, que contribuem para novas ideias e aprendi-zados, quase sempre são evitados.” Entre os critérios a serem levados em conta para a criação de grupos com bons resultados estão alunos com níveis de conhecimen-to variados, para garantir que o grupo seja o mais heterogêneo possível, além de aspectos culturais, socioeconômicos e motivacionais dos participantes. A par-tir da identificação dessas características os pesquisadores criam algoritmos – se-quências de comandos passadas para o computador – para que esses grupos se-jam formados da melhor forma possível em ambientes apoiados por dispositivos móveis como tablets e celulares. n

pEsQuisa FapEsp 222 z 63

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pESQUISA FApESp 222 z 65

Empresa produz kits

para diagnosticar

doenças em plantações

de soja e batata causadas

por fungo e vírus

Dois projetos desenvolvidos por uma pequena empresa de biotecnologia de Campinas, a Rheabiotech, poderão ajudar

a controlar doenças de duas importan-tes culturas agrícolas do país. Em seus laboratórios estão sendo produzidos an-ticorpos que serão usados em kits para diagnosticar a ferrugem asiática da soja, causada por um fungo, e dois tipos de ví-rus que atacam as plantações de batatas. A ferrugem asiática da soja é uma doença causada pelo fungo Phakopsora pachyrhi-zi, que ataca as folhas da planta e causa o definhamento dos grãos e a consequente queda da produtividade. Os prejuízos che-garam a US$ 25 bilhões no período entre 2003 e 2013, segundo a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA). Seu controle é difícil e requer a aplicação constante de fungicidas, pois na fase ini-cial da infecção o fungo só pode ser detec-tado por exame visual com uma lupa. “O problema é que, como ele só é detectado depois que a plantação está infestada, nunca se sabe exatamente quando se deve

BiotEcnologia y

células híbridas usadas na produção de anticorpos monoclonais

Evanildo da Silveira

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Anticorpos combatem pragas no

campo

aplicar o fungicida”, explica o biólogo Luís Antônio Peroni, sócio-diretor da Rheabiotech. “Por conta dessa incerteza são feitas várias aplicações – até seis ou sete por safra –, o que aumenta os cus-tos.” O kit que está sendo desenvolvido em parceria com a empresa ParteCurae Analysis, de São Carlos, poderá antecipar o diagnóstico em até cinco dias, antes que a contaminação tenha se espalhado.

A sua fabricação começa com a obtenção de anticorpos para o fungo. Para isso, usa--se como antígeno o micélio, que é a parte do talo do fungo constituída por filamen-tos. Esse antígeno é inoculado em coelhos, quatro vezes em intervalos de 15 dias, pa-ra imunizá-los. Ou seja, o organismo do coelho produz anticorpos para combater o antígeno. “O sangue do coelho, com esses anticorpos, é retirado e dele extraído o so-ro imune”, explica a bioquímica argentina radicada no Brasil Fernanda Alvarez Rojas, sócia-diretora da Rheabiotech. “Depois, os anticorpos do soro são purificados.”

Os anticorpos obtidos são chamados de policlonais, pois são produzidos por

66 z agosto DE 2014

tidos com esse método no diagnóstico da fer-rugem asiática da so-ja, em testes de campo realizados pela Rhea-biotech ele apresen-tou alguns problemas. “Embora seja simples, esse tipo de teste exige uma estrutura mínima, como geladeira, leitor de microplacas e um funcionário capaz de interpretar os resul-tados, o que normal-mente não existe na área das lavouras”, diz

Peroni. “Por isso estamos desenvolvendo um kit diferente, que usa uma membrana de nitrocelulose, em forma de tirinha, se-melhante a um teste de gravidez.”

Para isso, foi firmada uma parceria com a ParteCurae Analysis, que atua nos segmentos agrícola, ambiental, biotec-nológico e veterinário e produz, entre outros itens, kits de diagnóstico rápido para doenças de animais e plantas. No ca-so do kit usado para detectar a ferrugem asiática da soja, ele é composto pela tira

diferentes clones de linfócitos B, células que constituem o sistema imune. Eles são uma mistura de moléculas de imunoglo-bulinas produzidas contra um antígeno específico, mas cada uma reconhecendo uma região distinta, também denomina-da de determinante antigênico ou epito-po. Hoje já estão disponíveis no mercado vários tipos de anticorpos policlonais, produzidos para testes diagnósticos ou para combater doenças infecciosas. Mas há outro tipo de anticorpos, chamados monoclonais, produzidos a partir de um único linfócito B e capazes de reconhe-cer e combater apenas uma região do antígeno. Ou seja, eles são mais especí-ficos e, por isso, representam um grande avanço para o tratamento de várias doen-ças, principalmente o câncer. O modo de produzi-los é diferente.

O passo inicial é imunizar os camun-dongos com o antígeno e, em seguida, efe-tuar a coleta do baço para obtenção dos linfócitos B ou linfoblastos. Em seguida, essas células são fundidas com outras, cancerígenas, extraídas de um mieloma murino (de camundongo). “Com isso se obtém um conglomerado de células híbri-das chamado hibridoma”, explica Peroni. “Ele tem a capacidade de crescimento ‘in-finito’ em cultura, conferida pelas células cancerosas, e também a de produzir anti-corpos, obtidos dos linfócitos B do baço do camundongo. Assim, pode-se produzir anticorpos com um número menor de animais em laboratório.”

Segundo Peroni, a escolha entre pro-duzir anticorpos poli ou monoclonais depende das técnicas e do objetivo fi-

nal. “Alguns antíge-nos são muito seme-lhantes entre si e, nes-ses casos, o melhor é usar um monoclonal, pois é possível reali-zar uma seleção dos clones mais específi-cos”, diz. “Em geral, quando o objetivo do uso dos anticorpos vi-sa homogeneidade e produção em maior escala, é interessante o uso de monoclonais, pois tendo o hibrido-ma pode-se produ-zir os anticorpos em cultura e purificá-los. Além disso, esses an-ticorpos sempre serão iguais aos originais, o que garante reprodu-tibilidade e especifici-dade no teste.”

Em relação ao tes-te para diagnosticar a ferrugem asiática da soja, a empresa pode usar tanto os poli como os monoclonais. Nos que foram realizados até agora, usan-do o método Elisa, foram empregados os dois tipos de anticorpos. O Elisa é uma téc-nica para avaliações imunológicas capaz de detectar um antígeno ou anticorpo em uma amostra, com base na interação entre eles. Se um deles está presente, um sinal visível – como uma mudança de cor – é produzido e detectado por um espectro-fotômetro. Apesar dos bons resultados ob-

Empresa desenvolveu um kit com pequena membrana de nitrocelulose, semelhante a um teste de gravidez

Estufa onde são produzidos os anticorpos (à esq.) e freezer para conservação de banco de células a -80ºc

2

pESQUISA FApESp 222 z 67

ne. “As análises com o resultado negativo formarão apenas uma linha vermelha, a do controle, que é uma forma de mostrar que o teste funcionou adequadamente.” O diagnóstico é realizado em 10 minutos.

grAndES prEjUízoSPor um processo semelhante, a Rheabio-tech está trabalhando para desenvolver kits para a detecção de dois tipos de ví-rus que atacam batatas, o potato virus X (PVX) e o potato virus Y (PVY). Nesse caso, os anticorpos policlonais contra os vírus foram desenvolvidos pelo aluno de mestrado Marcel Salmeron Lorenzi, sob orientação da professora Dagmar Ruth Stach-Machado, do Instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). A tecnologia foi licenciada pela empresa, que agora tenta transfor-má-la num produto comercial. No Brasil, a cultura de batata ocupa uma área em torno de 130 mil hectares, com produção de cerca de 2 milhões de toneladas por ano. Nos últimos anos, no entanto, tem sofrido grandes prejuízos por causa dos vírus PVX e PVY. “Eles causam problemas nas folhas e manchas nas batatas”, conta Peroni. Segundo Dagmar, é um problema

contendo anticorpos em duas posições definidas. “Numa delas são depositados os anticorpos contra o antígeno em es-tudo (região teste), no caso o micélio do fungo Phakopsora pachyrhizi”, explica a bióloga molecular Regiane Travensolo Sacomano, pesquisadora da ParteCu-rae. “Na outra são colocados anticorpos contra os ‘conjugados’ (região controle).” Ela explica que nesse kit os conjugados são anticorpos secundários, com especi-ficidade contra os anticorpos primários, marcados com alguma enzima ou outra substância que torne visível a reação. Em outras palavras, há dois tipos de anticor-pos no teste. Os primários, que reagem contra o antígeno, no caso o fungo. E os secundários, que contêm o marcador e reagem contra os primários, tornando visível a reação toda. No caso do kit de-senvolvido pela ParteCurae, os marcado-res usados são nanopartículas de ouro.

Durante o diagnóstico, o complexo an-tígeno-anticorpo conjugado migra pela membrana (tirinha) até chegar às regiões de teste e de controle. “Se aparecerem duas linhas vermelhas, significa que o resulta-do é positivo, ou seja, a amostra de folhas está contaminada pelo fungo”, diz Regia-

sério. “No Brasil, as doenças causadas por esses vírus são uma das principais limitações ao aumento da produção”, diz.

Para esses dois projetos de produção de teste para microrganismos específicos e para um terceiro, de desenvolvimento de anticorpos secundários e conjuga-dos, a Rheabiotech recebeu, entre 2004 – quando ainda se chamava Imuny – e 2014, cerca de R$ 1,3 milhão da FAPESP por meio do Programa Pesquisa Inova-tiva em Pequenas Empresas (Pipe). Em 2008, Peroni juntou-se a Fernanda, fun-dadora da Imuny, e surgiu a Rheabio-tech, com o objetivo de estabelecer uma ponte entre as pesquisas realizadas nas universidades e o mercado. n

Projetos1. desenvolvimento de kits diagnósticos para fitopatóge-nos de importância para agricultura (nº 2008/53621-4); Modalidade Programa Pesquisa inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); pesquisador responsável luís antônio Pe-roni (rheabiotech); Investimento r$ 386.992,10 (FaPEsP).

2. Produção de anticorpos para métodos imunoquí-micos – inserção no mercado (nº 2012/51000-8 e nº 2013/50045-0); Modalidade Programa Pesquisa inovati-va em Pequenas Empresas (Pipe); pesquisadora respon-sável Fernanda alvarez rojas (rheabiotech); Investimen-to r$ 256.094,26 (FaPEsP) e r$ 252.000,00 (Finep).Fo

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produção de anticorpos para detecção do fungoKit desenvolvido pela rheabiotech poderá antecipar diagnóstico de doença que ataca a soja em até cinco dias

FontE rhEaBiotEch / PartEcuraE

AntIcorpoSo fungo Phakopsora

pachyrhizi, causador da

ferrugem asiática da soja, é

aplicado em animais de teste,

que produzem anticorpos

para combater o antígeno

cEntrIFUgAçãoo sangue com anticorpos

é coletado e o soro é

separado dos demais

componentes, por meio

de centrifugação, para

obtenção do soro imune

croMAtogrAFIAos anticorpos do soro são

isolados por um processo

chamado cromatografia

de afinidade. Eles se ligam

a uma proteína fixa na

coluna cromatográfica

tEStE rápIdoEm uma tira de teste são

colocados os anticorpos

que, em contato com uma

solução contendo folhas

maceradas de soja, detectam

se elas têm a doença

tiras do tEstE

Positivo

negativo

Folhas de soja

68 z agosto DE 2014

Membrana que filtra meio de cultura

permite selecionar biomassa com proteínas,

ácidos graxos ou carboidratos

Microalgas transformadas

Um grande tanque de vidro trans ­parente para cultivo de mi­croalgas ao ar livre, chamado fotobiorreator, foi concebido

e desenvolvido por uma equipe mul­tidisciplinar composta por pesquisa­dores da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e da Universidade de São Paulo (USP). Entre as inovações, o fotobiorreator possui uma membrana porosa utilizada para filtrar o meio de cultura que serve como alimento para as células da alga Chlorella vulgaris – com­posto por substâncias como nitrato de sódio, fosfato, potássio, micronutrientes, sulfato e outros elementos inorgânicos. Essa membrana permite, pela escolha da microalga e da composição nutricional, selecionar o tipo de biomassa que será obtido no final do processo: proteínas para ração animal, ácidos graxos essen­ciais, como ômega 3, para aplicação nas indústrias alimentícia e farmacêutica, carboidratos usados na síntese de plás­ticos ou fertilizantes.

“Por meio de manipulação bioquímica em microalgas, podemos obter biomo­léculas de acordo com a necessidade de

matéria­prima das empresas”, diz a pro­fessora Ana Teresa Lombardi, do Cen­tro de Ciências Biológicas e da Saúde da UFSCar e coordenadora do proje­to na modalidade Pesquisa em Parceria para Inovação Tecnológica (Pite), que faz parte de um acordo de cooperação da FAPESP com a Braskem. “Dentre as várias aplicações possíveis, um resultado interessante e promissor que obtivemos foi a peletização [recobrimento] de se­mentes de plantas nativas do cerrado com a biomassa algal, que poderão ser utilizadas em reflorestamento”, relata. A pesquisa foi tema de uma dissertação de mestrado, já defendida. “Essas sementes envoltas em biomassa e mucilagem algal conseguem aproveitar melhor a água de chuva, pela maior retenção, o que resul­taria em menor mortalidade de sementes plantadas no campo”, ressalta.

Ana Teresa explica que, no processo de cultivo de algas, é preciso um fluxo contínuo para a entrada de nutrientes frescos. Só que em alguns momentos há um extravasamento desse fluxo e é preciso retirar o meio de cultura usa­do. “No biorreator padrão, quando es­

BioquíMica y

se meio velho é removido, há perda de células, ou seja, é como se tudo tivesse sido lavado.” Como a membrana tem po­ros extremamente pequenos, os nutrien­tes utilizados só saem depois de passar pelo processo de filtragem. Dessa for­ma, além da possibilidade de reúso do meio, é possível escolher a densidade de células que ficará no tanque e o meio de cultura que entrará no reator pelo fluxo contínuo. “As algas se adaptam rapida­mente a mudanças nos nutrientes porque passam por uma transformação intra­celular”, diz Ana Teresa. Ou seja, elas conseguem fazer uma modificação na sua composição bioquímica dependen­do do ambiente em que vivem. “Trans­formamos esse atributo microbiológico das algas em um processo tecnológico”, ressalta a pesquisadora.

O cultivo de microalgas como a Chlo-rella apresenta elevada produtividade em biomassa seca, com diversas safras ao longo do ano. Organismos fotossin­tetizantes, elas transformam a energia luminosa em energia química acumulada nas ligações que formam carboidratos, lipídios e proteínas. Além de apresen­

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tar grande eficiência fotossintética, elas ainda são ótimas fixadoras de dióxido de carbono (CO2). “O objetivo principal do projeto, a fixação de dióxido de carbono, era uma consequência da produção da biomassa com o uso do fotobiorreator”, diz a pesquisadora. A forma como o equi­pamento foi construído também permite um melhor aproveitamento da energia solar incidente, resultando em expressi­vo aumento na produção. “Em apenas 24 horas, conseguimos cinco duplicações da população algal”, diz Ana Teresa.

A princípio o biorreator seria compra­do na Holanda. Enquanto esperavam a resposta do fornecedor, os pesquisadores começaram a construir um protótipo no laboratório, inicialmente em escala de 200 mililitros. A escala foi aumentada e

um outro equipamento com 200 litros foi construído. “Ele foi tão promissor que desistimos da importação”, conta Ana Teresa. A próxima etapa foi a construção de um equipamento com mil litros, com todas as variáveis controladas. Até chegar ao fotobiorreator considerado ideal para o projeto, os pesquisadores – uma bió­loga com doutorado em química e uma botânica especialista em zooplâncton, ambas da UFSCar, além de uma enge­nheira química e dois engenheiros me­cânicos, da USP – participaram de muitas reuniões. “Fizemos um fotobiorreator de mil litros totalmente experimental, em que todas as variáveis eram passíveis de controle”, explica Ana Teresa. Para isso, todos os sistemas – agitação, borbulha­mento, filtragem e fluxo contínuo – fo­ram montados separadamente, para que funcionassem de forma independente. “O fluxo contínuo independente man­tém o ambiente químico relativamente constante, o que resulta em controle de qualidade do produto final.”

A partir do segundo ano, o projeto ga­nhou o reforço de uma pós­doutoranda, bióloga de formação, com doutoramento

em engenharia mecânica e especialista em membranas de filtragem. Com isso, o reator ganhou membranas submersas co­merciais, “fáceis de operar e trocar”, nas palavras de Ana Teresa. “É um diferencial importante do nosso reator, já que poucos no mundo contam com esse recurso.” Em dezembro de 2013, após três anos e oito meses, o projeto foi encerrado. Mas as pes­quisas sobre fixação de carbono ainda não terminaram. “Estamos utilizando agora um método de fluorescência, que também se aplica a vegetais terrestres, para quan­tificar o potencial máximo fotossintético da alga.” n Dinorah Ereno

Projetocultivo de microalgas em fotobiorreator como ferramenta para o sequestro do co2 atmosférico (nº 2008/03487-0); Modalidade Pesquisa em Parceria para inovação tecnológica (Pite); Pesquisadora responsável ana te-resa lombardi (uFscar); Investimento r$ 320.670,46 (FaPesP) e r$ 312.314,00 (Braskem).

artigo científicochia, M. a. et al. lipid composition of Chlorella vulga-ris (trebouxiophyceae) as a function of different cadmium and phosphate concentrations. Aquatic Toxicology. v. 128-9, p. 171-82. 15 mar. 2013.

Dependendo do ambiente em que vivem, as algas conseguem modificar sua composição bioquímica

70 z agosto DE 2014

Estudo investiga o sofisticado mecanismo de

conexão entre os diferentes níveis de poder

humanidades CIÊNCIA POLÍTICA y

eduardo nunomura

O poder dos partidos

pesQuisa Fapesp 222 z 71

Marcha dos Prefeitos no Congresso Nacional, em maio deste ano: desde a Constituição de 1988, eles são responsáveis pela implementação de importantes políticas públicas, como as de saúde e educação

Os partidos organizam a vida política antes e de-pois das eleições e exercem um papel-chave na relação dos municípios com os estados e a União. As políticas públicas são decididas por meio de uma articulação que passa pelas assembleias

legislativas e pelo Congresso, ou seja, pelos parlamentares. Os deputados, embora possam começar a carreira de forma localizada, progressivamente adotam uma estratégia de dis-persar seus votos em uma determinada região, o que os obriga a atender a demandas de suas bases municipais e, ao mesmo tempo, a tentar ampliá-las. Ao contrário do que diz o senso comum, não há um jogo de “toma lá, dá cá”, e sim existe no Brasil um sofisticado mecanismo de conexão entre os dife-rentes níveis de poder.

Essas conclusões resultam da pesquisa Instituições políticas e gastos públicos: um estudo dos estados brasileiros, conduzida de 2009 a 2013, sob a liderança do cientista político George Avelino Filho, professor da Fundação Getulio Vargas (FGV). FO

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Apoiado pela FAPESP na modalidade Projeto Temático, o trabalho, que procura elucidar de-terminadas características do funcionamento do sistema político no país, desdobra-se agora numa segunda etapa sob o título As instituições políticas subnacionais: um estudo comparativo dos estados brasileiros. “Foram feitos poucos estudos para entender como a política ocorre nos esta-dos. Nossa intenção foi ampliar para a política no nível estadual o que já se sabe para o sistema político como um todo”, diz Avelino.

Segundo o pesquisador, há uma discussão na ciência política brasileira que gira em torno da fraqueza dos partidos, da possível existência de “distritos informais”, e de como isso se reflete na atuação dos parlamentares. Ao serem elei-tos com votos concentrados em uma região, nos chamados “distritos informais”, os deputados privilegiariam políticas públicas mais fragmen-tadas. O fenômeno, conhecido como pork barrel, implica uma política de benefícios econômicos ou serviços concentrados em uma área circuns-crita geograficamente.

O primeiro passo em seu estudo foi ampliar o olhar também para os municípios, uma vez que o federalismo brasileiro, diferen-

temente da maioria das federações no resto do mundo, envolve três níveis de governo. Desde a redemocratização e com mais força desde a Constituição de 1988, os prefeitos são responsá-veis pela implementação de importantes políticas públicas, como as de saúde e educação. “Quere-mos entender o estado como um agregado de municípios e, mais que isso, também como locais de votação”, pondera Avelino. E, ao destrinchar o voto também no nível dos locais de votação, o estudo possibilitou a análise mais detalhada dos resultados eleitorais, aumentando a compreensão de como os deputados vêm sendo eleitos.

Um dos pesquisadores envolvidos, o econo-mista Ciro Biderman, também professor da FGV, propôs a adaptação do índice G, um indicador que mede o grau de concentração geográfica dos setores produtivos, amplamente utilizado em tra-balhos de economia regional, às campanhas dos deputados. Assim, pensando-se em uma eleição no Amapá, por exemplo, seria aritmeticamente esperado que um candidato obtivesse 60% dos seus votos em Macapá, já que essa é a proporção de eleitores da capital relativamente ao estado como um todo. Entretanto, se esse político ado-

Manifestante durante a eleição presidencial de 2006, em são Paulo

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tar a estratégia de concentrar sua campanha em uma determinada região, pode-se esperar que os votos ali recebidos sejam proporcionalmente em número maior do que a distribuição percentual do eleitorado, elevando o indicador.

n o estudo coordenado por Avelino o ín-dice G foi aplicado inicialmente às elei-ções em São Paulo e depois estendido

para todos os estados brasileiros, no período de 1996 a 2010. O que se descobriu foi que o perfil dos deputados eleitos tende a ser concentrado em termos municipais, mas algo disperso regio-nalmente. “Não é difícil entender por que isso acontece. O deputado precisa buscar apoio para além dos lugares onde é mais conhecido, precisa viajar, mas isso é caro e não pode ser aleatório. O maior cabo eleitoral são os prefeitos, e é na organização partidária que ele encontra maior eficiência para sua campanha”, diz Avelino. As-sim, uma liderança local começa se elegendo em sua cidade natal, depois parte para expandir sua atuação regionalmente e, por último, por ter se tornado conhecido como parlamentar pode des-concentrar seus votos.

A desconcentração de votos, algo equivalente a uma “estadualização” da candidatura, faz par-te de uma estratégia de diversificar os riscos e, em alguns casos, alçar voos maiores nas eleições majoritárias estaduais (Senado e governo), mas também pode representar o fim de uma carreira política. “Este é um momento de fragilização, ou seja, os candidatos saem de uma zona de conforto para a diversificação total dos ativos eleitorais, correndo o risco de não serem competitivos em nenhum lugar, o que aumenta muito a probabi-lidade de perderem a eleição”, explica Avelino.

Seu estudo comprovou que existe, de fato, uma articulação interpartidária entre prefeitos e depu-tados federais, e que esta opera dentro da lógica de uma busca de recursos federais para os gover-nos locais e com obtenção posterior de dividendos eleitorais. Ao cruzar os dados das últimas eleições em um universo de 5.221 municípios com menos de 200 mil habitantes, os pesquisadores da FGV descobriram que os prefeitos são responsáveis por um acréscimo de cerca de 20% dos votos que são destinados, dois anos depois, para os candidatos de seu partido a deputado federal. Os primeiros precisam de recursos para governar, enquanto, uma vez eleitos, os parlamentares não terão vi-da longa sem apoio local para manter e expandir sua base eleitoral.

Partidos com alta capilaridade como o PMDB, que nas eleições de 2008 elegeu cerca de 1.200 prefeitos, no universo dos 5.221 municípios es-tudados, preservam sua força – e seu poder de barganha – nas eleições municipais. Os prefeitos peemedebistas têm sido os grandes cabos eleito-

O federalismo brasileiro, diferentemente das federações do resto do mundo, envolve três níveis de governo

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Votação na Assembleia Legislativa do rio de Janeiro, em 2012: segundo o estudo, o perfil dos deputados eleitos tende a ser concentrado em termos municipais, mas algo disperso regionalmente

rais nas disputas para o Congresso. “Queremos ver como as decisões de políticas públicas se relacionam com a questão político-partidária”, diz Biderman. Uma hipótese a ser testada é se a força dos eleitos, traduzida nos votos de pre-feitos e deputados, traz dividendos concretos para as localidades. “As decisões das políticas públicas levam em consideração os votos, e por outro lado o tipo de voto é que vai definir a po-lítica pública a ser adotada”, diz.

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Os dados da pesquisa indicam que a ligação é mais forte entre prefeitos e deputados federais do que entre prefeitos e depu-tados estaduais. Essa diferença pode ser explicada pela descen-tralização dos poderes político e administrativo que reforçou as transferências de programas e repasses constitucionais fede-rais para os municípios.

A literatura da ciência polí-tica revela que a eleição de um presidente americano acaba por influenciar a votação de muitos congressistas do mes-mo partido. Esse efeito, de-nominado de coattail (“pegar carona”, em tradução livre),

ocorre de cima para baixo e em uma mesma disputa. Em outras palavras, um presidente bem avaliado tende a aumentar as chances dos can-didatos a deputado federal de seu partido. Ao aplicar esse método para as eleições brasileiras, há duas décadas, o pesquisador americano Barry Ames verificou que a influência se dava de bai-xo para cima, isto é, ocorria um efeito coattail reverso. Ele justificou os resultados afirmando que havia no Brasil uma espécie de “distrito informal”.

A pesquisa de Avelino tomou emprestada a ex-pressão coattail reverso, porém chegou a resultados diferentes. São os partidos, e não os deputados, que organizam o desempenho nas eleições nos estados, onde são eleitos todos os legisladores federais. “Por que será que o Congresso se empenhou tanto na queda da verticalização?”, indaga o pesquisador. A resposta é que os partidos têm se preocupado, desde a redemocratização, com a liberdade que têm de costurar apoios diferentes nos planos na-cional e estadual como forma de aumentar suas chances nas eleições legislativas estaduais.

em parceria com a Associação Brasileira de Ciência Política, os pesquisadores obtiveram acesso aos dados brutos do Tribunal Supe-

rior Eleitoral (TSE). Isso permitiu obter informa-ções de uma eleição no nível de uma zona eleito-ral. Em termos práticos, resultou da pesquisa a criação da plataforma Cepespdata, um software de consulta pública aos dados eleitorais (www.fgv.br/cepesp/cepespdata). De livre acesso, ela apresenta uma interface mais simplificada que a do TSE, facilitando a vida dos pesquisadores de qualquer instituição. Também com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística é possível agregar os votos no nível de uma micro ou mesorregião, isto é, conjuntos de municípios que identificam nichos mais articulados econô-mica e socialmente dentro de um estado.

Crianças assistem a comício na cidade de Tapauá (AM), em 1998: descentralização dos poderes político e administrativo reforçou os repasses federais para os municípios

são os partidos, e não os deputados, que organizam o desempenho nas eleições nos estados, onde são eleitos todos os legisladores federais

pesQuisa Fapesp 222 z 75

Protesto da população contra corrupção na Câmara Municipal de dourados (Ms): segundo os pesquisadores, a visão popular de que as regiões mais pobres são dominadas por uma política mais tradicional não foi confirmada pelos estudos

A plataforma tem permitido aos pesquisado-res fazer uma série de cruzamentos inéditos, alguns com resultados surpreendentes. Assim, estados como Rondônia, Paraná, Espírito Santo e São Paulo apresentaram níveis de concentração eleitoral acima do esperado na eleição de 2010, ao contrário de Sergipe, Rio Grande do Norte, Piauí, Acre e Amapá. Dos nove estados do Nor-deste, apenas Ceará e Alagoas tiveram um nível de concentração de seus deputados federais maior do que aquele que seria esperando pela fragmen-tação partidária. Esses dados contradizem a vi-são popular de que as regiões mais pobres são dominadas por uma política mais tradicional, baseada em redutos eleitorais e concentração de votos – sepultando de vez a existência dos “currais eleitorais” no país.

em outra vertente de investigação do projeto, os pesquisadores mapearam a formação dos secretariados de 14 estados no período de

1994 a 2010. O objetivo é explorar a diversidade dos estados brasileiros para entender melhor co-mo essas coalizões são compostas e se é possível relacioná-las com a coalizão nacional.

Essas análises necessitam de uma observação local, e por isso os pesquisadores decidiram for-mar uma rede federativa de pesquisa, compos-ta por cientistas políticos e outros especialistas com experiência em governos subnacionais. Os estudos prosseguirão no segundo projeto temá-tico aprovado em continuidade ao primeiro, e a ideia é que essa rede cubra os 27 estados. Prevê--se realizar um estudo de caso para cada reali-dade estadual e alimentar o banco de dados do

ProjetoInstituições políticas e gastos públicos: um estudo dos estados bra-sileiros (nº 2008/03595-7); Modalidade Projeto Temático; Pesqui-sador responsável George Avelino Filho (FGVsP); Financiamento r$ 293.504,60 (FAPEsP).

Artigos científicosAVELINO, G. et al. Articulações intrapartidárias e desempenho elei-toral no Brasil. Dados – Revista de Ciências Sociais. v. 55, n. 4, p. 987-1.013. 2012.AVELINO, G. et al. A concentração eleitoral nas eleições paulistas: medidas e aplicações. Dados – Revista de Ciências Sociais. v. 54, n. 2, p. 319-47. 2011.

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Cepespdata, de forma a permitir comparações entre os estados.

Os primeiros achados são promissores por revelar algo que foge do senso comum ou de ideias preconcebidas – e, em geral, negativas – sobre a política no Brasil. Mas, segundo os responsáveis pelo estudo, ainda há um longo caminho a percorrer. Avelino sugere reformas pontuais que visem fortalecer as siglas partidá-rias como mecanismos de representação, como o fim ou disciplina das coligações para as eleições legislativas e o fortalecimento da fidelidade par-tidária. “No primeiro caso, teríamos a redução do número de partidos, tornando a competição eleitoral mais compreensível para o eleitor. No segundo, aumentaríamos os custos de saída – mudanças – de partidos, o que incentivaria os políticos a investirem em seus partidos atuais. Não podemos esquecer que os partidos políticos continuam sendo o melhor meio de representa-ção dos setores populares e de sua inclusão ao sistema político democrático. Se desejamos uma sociedade mais igualitária temos de reforçar esse importante mecanismo de inclusão”, conclui. n

Editoras francesas publicaram centenas

de livros em língua portuguesa

na capital da França no século XIX

Paris lusófona

No início do século XIX, o mun-do lusófono estava em turbi-lhão. Pressionada por Napo-leão, a Casa de Bragança se re-

tirava para a colônia em 1808. No Brasil, ensejos de independência eclodiram em 1822 e Portugal se viu imerso em dis-putas internas que se arrastariam pelo século XIX. Nesse território, continua-mente movediço, um grupo expoente de livreiros, editores e autores encontrou em Paris um ambiente propício para a publicação e divulgação de impressos em língua portuguesa. Importantes edições de Almeida Garrett, José de Alencar e Machado de Assis ganhariam vida nas prensas da capital francesa – e não de Lisboa ou Rio de Janeiro. “Paris teve pa-pel importante na produção de obras em português”, diz Paulo Motta Oliveira, professor associado do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Univer-sidade de São Paulo. Estima-se que, na primeira metade do século, foram publi-cados 519 títulos em português em Paris, entre traduções e textos inéditos, sendo 104 romances, segundo levantamento

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Carolina Rossetti de Toledo

pioneiro do pesquisador Victor Ramos nos anos 1970. Outros estudos apontam que cerca de 300 mil exemplares em português tenham sido impressos em Paris na primeira metade do século XIX.

Os volumes que sobreviveram ao tem-po podem ser resgatados hoje na Biblio-teca Nacional da França, onde Paulo Motta acaba de completar uma tempo-rada de pesquisa. “Trata-se de livros de baixa qualidade física, que só sobrevive-ram porque ainda se encontravam com as páginas coladas”, descreve. Parte desse rico repertório – os romances em por-tuguês editados em Paris de 1800 a 1900 – foi objeto de investigação do projeto Resgatando um acervo oitocentista es-quecido: os romances em português publi-cados na França, apoiado pela FAPESP.

A maioria das publicações editadas na França eram impressões baratas, ainda que a partir dos anos 1870 os editores franceses começassem a publicar livros infantojuvenis em português de maior qualidade, com capa dura e ilustrações. O público poderia incluir tanto os imigran-tes portugueses e brasileiros em Paris,

76 z agosto DE 2014

Três exemplos de tradução em português de livros editados em Paris: machado de assis e José de alencar, entre outros, foram também publicados na França

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muitos fugidos das turbulências políti-cas, quanto leitores em Portugal e Bra-sil, para onde muitos dos títulos foram exportados. Alguns raros exemplares podem ser encontrados hoje na Biblio-teca Nacional de Portugal e na Fundação Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. “As narrativas ficcionais em português produzidas na França atravessavam o Atlântico e conseguiam chegar mesmo a cantos remotos do Brasil”, escreve Mot-ta, que identificou em registros oficiais de Goiás 13 títulos publicados em Paris.

EdiTOREs, livREiROs E auTOREsO panorama do mercado parisiense era constituído por vários empreendedo-res privados. De acordo com Motta, a instabilidade e o caráter experimental marcariam algumas das iniciativas edi-toriais. Até 1829, as quatro casas edito-riais que dominam esse mercado eram Barrois, Bobée, J. Tastu e J. Smith, com a publicação de 16 romances, entre eles a tradução de Zadig ou o destino, de Vol-taire, feita por um importante escritor português, Filinto Elísio, além de O tem-

plo de Gnido, de Montesquieu, e A ra-inha caprichosa, de Rousseau. Na década seguinte, essas editoras param de atuar nesse segmento. “Talvez elas tenham percebido que o mercado de romances em português não era, enfim, muito pro-missor”, observa Motta. Nos anos 1840, o cenário é ventilado por duas editoras importantes, a Pillet e a Aillaud, que foram responsáveis pela maior parte dos romances em português publicados em Paris até 1836. A Aillaud foi fundada por Jean-Pierre Aillaud, um dos livrei-ros parisienses que mais investiram na produção lusófona.

Já os autores brasileiros eram publica-dos, principalmente, por intermédio de Baptiste-Louis Garnier, que instalou uma livraria no Rio de Janeiro e editou os principais escritores nacionais do século XIX, como Machado de Assis, Joaquim Manuel de Macedo e José de Alencar. Os livros eram editados no Rio, mas im-pressos em Paris. O relacionamento de Garnier com Machado de Assis venceria duas décadas e o livreiro foi o responsá-vel pelas primeiras edições de Memórias

póstumas de Brás Cubas (1881) e Quincas Borba (1891). Esses livros eram impres-sos em Paris, mas não eram lá editados.

“Centrei a pesquisa nos livros em por-tuguês editados na França. Eles repre-sentam um complemento do que era pu-blicado em Portugal – e talvez no Brasil. Até os anos 1840, há, claramente, uma tentativa de publicar as mais diferen-tes obras, em muitos casos reeditando traduções que já haviam saído em Por-tugal ou no Rio”, diz o pesquisador. A partir da década de 1840, a publicação se especializa. Segundo Motta, os autores mais publicados em Portugal até 1850 – Alexandre Dumas e Eugênio Sue – são praticamente ignorados pelos editores parisienses. Por outro lado, um escritor importante, mas até então pouco tra-duzido, Walter Scott, teve sete de seus livros traduzidos em Paris. “Tudo parece indicar que os editores tentavam ocupar os nichos ainda não explorados pelas traduções portuguesas e provavelmente brasileiras, algumas vezes com acertos, outras com fracassos”, observa.

Ainda que algumas das investidas edi-toriais não tenham prosperado e se limi-tem hoje a edições obscuras, elas tiveram grande importância ao longo do século XIX e permitem compreender de forma mais clara a intrincada rede de produção e circulação de romances em português naquele período, espaço em que Paris ti-nha um papel secundário, mas relevante. O melhor entendimento da função ocu-pada por cada um dos editores e livreiros parisienses na formação do arcabouço literário lusófono continua a ser objeto de pesquisa de Paulo Motta, que organi-za um dicionário com verbetes com os livros, autores, tradutores e editoras do período, com previsão de publicação no fim de 2015. n

Projetoresgatando um acervo oitocentista esquecido: os roman-ces em português publicados na França (nº 2012/20334-8); Modalidade bolsa no Exterior – regular; Pesquisa-dor responsável Paulo motta oliveira; Investimento r$ 95.483,61 (FaPEsP).

PEsQuisa FaPEsP 222 z 77

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PESQUISA FAPESP 222 | 79

O escritor João Ubaldo Ribeiro

contribuiu para as reflexões sobre as

diferentes identidades brasileiras

João Ubaldo sentado na raiz de uma árvore nas ruínas da Igreja de Nosso Senhor de Vera Cruz, em Itaparica, 1989. Na época, ele estava escrevendo O sorriso do lagarto

Quando tomou posse na Academia Brasileira de Letras (ABL), em 1992, disse o escritor baia-no João Ubaldo Ribeiro, lembrando seu prede-cessor, Carlos Castello Branco: “Tampouco sou homem de letras no sentido rigoroso do termo.

Sou apenas um romancista, um contador de histórias”. Pa-ra os estudiosos de sua obra ele foi mais do que isso: era um pensador da identidade de seu povo. Cronista, jornalista e roteirista, o intelectual que morreu no Rio de Janeiro em ju-lho, aos 73 anos, era considerado, sobretudo, o narrador de uma história do Brasil.

João Ubaldo formou-se em direito, fez mestrado em admi-nistração e em ciência política, tornou-se professor na Uni-versidade Federal da Bahia (UFBA), mas desistiu da vida aca-dêmica. Os pesquisadores que estudam sua obra consideram que ele ganhou relevância não só como escritor, mas também como intelectual e cientista político. Nesse campo, Viva o povo brasileiro teve papel vital. Para Rita Olivieri-Godet, professo-ra titular de literatura brasileira na Université Rennes 2, na França, as páginas de Viva o povo brasileiro mostram a ilha

Juliana Sayuri

Contra a colonização do

pensamento

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80 | agosto DE 2014

de Itaparica, na Bahia, como um microcosmo do país. “O livro faz parte das obras fundamentais do pensamento brasileiro sobre o Brasil. Ubal-do pertence à classe dos grandes intérpretes da nação”, diz ela. Para a pesquisadora, pelo viés de um amplo afresco dos processos históricos constitutivos da sociedade brasileira e de seus deslocamentos, o romance revisita as diversas visões interpretativas produzidas por intelec-tuais e escritores ao longo dos séculos. “E re-serva um lugar de destaque às manifestações da cultura afro-brasileira, o que lhe permite inter-rogar as origens dos dramas sociais vividos pela população mestiça, negra e pobre, explorando o saber histórico das lutas”, observa Rita, autora de Construções identitárias na obra de João Ubaldo Ribeiro (Hucitec/EdUEFS/Academia Brasileira de Letras, 2009).

Prestes a celebrar 30 anos de sua primeira edi-ção, em outubro próximo, Viva o povo brasileiro é considerado a obra-prima ubaldiana por mergu-lhar justamente nas contradições nacionais entre o real (o processo histórico de colonização) e o imaginário (a narrativa). Segundo Helena Bo-nito Couto Pereira, professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie, a narrativa se insere no domínio da metaficção historiográfica – um tipo de ficção que problematiza a própria possibili-dade de conhecimento histórico através de uma releitura intencionalmente subversiva do passa-do. No enredo marcado entre os séculos XVII e XX, com pitadas de ironia literária, ingredientes do universo fantástico e doses de subversão do discurso oficial, o autor explora trajetórias de diferentes personagens, entre representantes das três etnias responsáveis pelo povoamento do país (o branco, o índio e o negro). “Num extre-mo, encontram-se personagens que remetem a Macunaíma, no irrefreável egoísmo e no descom-promisso moral. Noutro, personagens autentica-mente dedicados às lutas políticas, especialmente pela emancipação dos escravos – mas, mais que isso, pela instauração de uma sociedade mais justa”, diz Helena, que é também pró-reitora de

Pós-Graduação e Pesquisa do Mackenzie. “Trata--se, portanto, de uma obra que suscita reflexões sobre a desigualdade socioeconômica brasileira e de seus corolários, como violência, miséria e crueldade, resultantes do processo de coloniza-ção e da complexa composição étnica do país.”

Ubaldo contribuiu para o pensamento antro-pológico, histórico e sociológico sobre as dife-rentes identidades no Brasil, dos tempos colo-niais ao presente – nas mesmas veredas, mas mais literárias, que Sérgio Buarque de Holanda (Raízes do Brasil, 1936) e Darcy Ribeiro (O povo brasileiro, 1995), entre outros. Das diferentes construções no livro, salta aos olhos do leitor uma identidade mestiça, plural e transcultural. De acordo com Rita Olivieri-Godet, por um lado, há a identidade “legitimante”, que corresponde ao olhar das elites e das instituições no poder ao longo de quatro séculos de história. Por outro, a identidade “resistência”, perspectiva dos atores sociais nas posições desvalorizadas pela lógica dominante. Para seus estudiosos, o principal le-gado é a condição intrínseca à obra ubaldiana de se rebelar contra toda e qualquer forma de colonização do pensamento, das mais evidentes e brutais às mais sutis.

Os especialistas dizem que João Ubaldo assu-miu o papel de um escritor intelectual, nos termos do pensador palestino Edward Said, buscando retratar com pena afiada e crítica as angústias individuais e as mazelas sociais, a partir de valo-res universais. “A missão literária de João Ubaldo era empenhada com o povo. Como um atuante representante intelectual, ele se dedicou intei-ramente à atividade literária engajada e política, uma vez que lutou contra as formas de poder com competentes práticas intelectuais, porque soube como usar as palavras e quando intervir por meio delas, pois seus romances foram concebidos como um modo de testemunhar as mazelas sociais, de legar ao seu leitor a consciência das condições de subdesenvolvimento do país ex-colonizado”, afirma a linguista Angela Antunes Conceição, au-tora da tese de doutorado Caminhos e trilhas do

Viva o povo brasileiro é considerado a obra-prima de João Ubaldo por mergulhar nas contradições nacionais entre o real e o imaginário

PESQUISA FAPESP 222 | 81

comunitarismo cultural em José Luandino Vieira (Nosso musseque) e João Ubaldo Ribeiro (Viva o povo brasileiro): uma identidade em (trans)formação, defendida na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), em 2011.

“Sem perder de vista sua preocupação com a sociedade, o romance ubaldiano ainda inspira uma ‘vida’ à alminha do povo brasileiro, do opri-mido, do marginalizado e, ao mesmo tempo, do opressor, da elite, do burguês. João Ubaldo Ri-beiro capta magistralmente a alma pluralizada do Brasil”, pondera Angela. Almas brasileiras bravas, como mostram as últimas páginas do romance: “Não se sabe, nada se sabe, tudo se escolhe. Tudo se escolhe, como sabem as alminhas agora tiri-tando no frio infinito do cosmos, que as balança como as arraias empinadas pelos meninos de que têm saudades. Almas brasileirinhas, tão peque-titinhas que faziam pena, tão bobas que davam dó, mas decididas a voltar para lutar”.

 DE ItAPArICA PArA o mUnDoOs livros de João Ubaldo não ficaram restritos ao Brasil. Títulos como Setembro não tem senti-do (1968), Sargento Getúlio (1971), O sorriso do lagarto (1989), A casa dos budas ditosos (1999) e O albatroz azul (2009) foram traduzidos para 12 idiomas. Além de edições em inglês, francês, alemão, espanhol e italiano, suas letras reverbe-raram em línguas mais distantes como esloveno, finlandês, hebraico, norueguês e sueco. Ao lon-go de sua carreira, o escritor foi laureado com distinções como dois Jabuti (1972, por Sargento Getúlio, e 1984, por Viva o povo brasileiro) e o Prêmio Camões (2008). No exterior, venceu o prêmio Die Blaue Brillenschlange (1995) e o An-na Seghers (1994), concedido pela Academia de Artes de Berlim, na Feira do Livro de Frankfurt.

E se o intelectual baiano valorizou nos seus escritos a brasilidade, seu cosmopolitismo não foi esquecido. Ao lado de Jorge Amado, ele é um dos autores mais conhecidos no exterior. A con-sideração é de Rita, que integra o Institut Uni-

versitaire de France, há 20 anos fora do Brasil. “Ele é estudado nos cursos de licenciatura e pós--graduação na França. Nos últimos anos, sua pre-sença no país, participando de mesas-redondas e palestras, também ajudou a mobilizar o público em torno de sua obra”, conta a autora, que em novembro lançará Viva o povo brasileiro: a ficção de uma nação plural (Editora É Realizações, 2014).

O próprio Ubaldo fez traduções para o inglês de suas obras, como Sargento Getúlio e Viva o povo brasileiro. Um trabalho hercúleo, consi-derando os requintes literários e as linhas his-tóricas das duas obras. Por se tratar de um caso singular, essa proeza garantiu ao autor prestígio extra entre seus pares. Quem depois mergulhou nessa arena foi Maria Alice Gonçalves Antunes, diretora do Instituto de Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e autora de estudo que se transformou no livro O respeito pelo original: João Ubaldo Ribeiro e a autotradu-ção (Annablume, 2009). Entre outras considera-ções, Maria Alice indica que o texto traduzido é um exercício de equilíbrio entre o leitor es-trangeiro e a cultura brasileira – e o autor sou-be se aproximar do leitor estrangeiro, sem apa-gar a cultura original de seu texto. “Sempre há mudanças quando se traduz, mas não gosto de comentar as possíveis perdas que ocorrem nas traduções. Isso vem de uma visão de tradução como atividade de segunda classe. Quantas obras e autores brasileiros, de literatura e de teorias científicas, estariam aprisionados dentro de um espaço geográfico e cultural se não fosse a tra-dução?”, argumenta a linguista.

Os pesquisadores são unânimes em afirmar que as histórias de João Ubaldo Ribeiro per-mitem uma identificação do leitor com ques-tões universais, essencialmente complexas e humanas. Se há linhas do escritor dedicadas ao “exótico” latino-americano, há nas entrelinhas os dramas simplesmente humanos. E gingando entre o ser brasileiro e o cosmopolita, o regio-nal e o universal, o singular e o plural, vive aí o legado de sua obra. n

82 | agosto DE 2014

O ex-deputado Plínio de Arruda Sampaio teve influência

no plano de governo que abriu caminho para a criação da FAPESP

o ex-deputado Plínio Soares de Arruda Sampaio, morto aos 83 anos em decor-rência de um câncer, foi enterrado no dia 9 de julho, exatos 55 anos depois de

o então governador Carvalho Pinto (1910-1987) ter enviado à Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo a Lei 5.444, que consolidava seu Plano de Ação do Governo (Page) e sua visão de estado. O plano, que entre diversas propostas previa a constituição de uma fundação para administrar recursos orçamentários destinados à “investi-gação técnica e científica”, teve forte influência de Arruda Sampaio. O Page virou lei no dia 17 de novembro de 1959 e, 11 meses depois, em 18 de outubro de 1960, Carvalho Pinto sancionou a Lei 5.918, que criou a FAPESP.

Promotor público formado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e ex-presidente da Juventude Universitária Ca-tólica, ocupou o cargo de subchefe da Casa Civil de Carvalho Pinto e foi indicado coordenador da equipe de técnicos e especialistas responsável pela elaboração do conjunto de documentos que compunham o Page. Também foi secretário dos Negócios Jurídicos do governo estadual e, entre 1961 e 1962, trabalhou na prefeitura de São Paulo na gestão de Francisco Prestes Maia (1896-1965).

Arruda Sampaio elegeu-se deputado federal pe-lo Partido Democrata Cristão (PDC) em 1962 e foi relator do projeto de reforma agrária que integrava as reformas de base do governo João Goulart. Após o golpe de 1964, teve os direitos políticos cassados por 10 anos, pelo Ato Institucional nº 1. Exilou-se no Chile por seis anos, a convite do então presiden-te do país, o democrata-cristão Eduardo Frei, tra-balhando na Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO). Mudou-se para Washington em 1970 para trabalhar num progra-ma da FAO e do Banco Interamericano de Desen-volvimento. Nos Estados Unidos, fez mestrado em economia agrícola na Universidade Cornell. Voltou ao Brasil em 1976, filiou-se ao MDB, deu aulas na Fundação Getulio Vargas, fundou o Centro de Es-

ObituáriO y

Plínio em campanha pelo governo paulista, em 1990: trajetória política entre a democracia cristã e o socialismo

tudos de Cultura Contemporânea e participou da campanha pela redemocratização.

Deixou o MDB em 1978 e participou da fun-dação do Partido dos Trabalhadores. Foi eleito deputado federal constituinte, em 1986, com 63,9 mil votos. Na Constituinte, foi membro da Comis-são de Redação, da Comissão de Sistematização e da Comissão da Organização do Estado e pre-sidiu a Subcomissão de Municípios e Regiões. Fez parte do bloco suprapartidário de articulação da Igreja Católica, como membro da Comissão de Acompanhamento da CNBB na Constituinte.

Foi candidato do PT ao governo do estado, em 1990, sendo derrotado por Luiz Antonio Fleury Filho, do PMDB. Desfiliou-se do PT em 2005 e ajudou a fundar o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL). Em 2010 candidatou-se à Presidência da República pelo PSOL. Recebeu 886,8 mil votos e ficou em quarto lugar no pleito que elegeu Dil-ma Rousseff. Era casado com Marietta Ribeiro de Azevedo e tinha seis filhos – um deles, Plínio de Arruda Sampaio Junior, é professor do Insti-tuto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). n

Homem público

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PESQUISA FAPESP 222 | 83

Professor emérito da uSP,

José Sebastião Witter foi pioneiro

em estudos sobre o futebol

ohistoriador José Sebastião Witter, professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-

-USP), morreu no dia 7 de julho, aos 81 anos, em Mogi das Cruzes (SP). Formado em história pela FFLCH-USP, Witter foi orientando no mestrado e no doutorado do professor catedrático Sérgio Buarque de Holanda, de quem foi assistente.

Especializado em história do Brasil, publicou ao longo de sua carreira 15 livros e grande número de capítulos em obras coletivas e artigos em revistas especializadas e sobre temas culturais. Entre os temas de pesquisa de Witter estavam a imigração alemã, a fundação do primeiro partido republicano, arquivos históricos – e o futebol. Dirigiu o Arquivo Público do Estado de São Paulo de 1977 a 1987, o Instituto de Estudos Brasileiros da USP de 1990 a 1994 e o Museu Paulista da USP, mais conhecido como Museu do Ipiranga, de 1994 a 1999.

“Trata-se de um raríssimo inovador na área à qual dedicou sua vida, que inovou a cultura de todas as instituições por onde passou, trabalhan-do intensamente pela sua modernização e sem ficar refém das adversidades, empreendendo sempre. Também foi um autor inovador – pio-neiro, por exemplo, nos estudos acadêmicos do futebol”, afirmou à Agência FAPESP o colega e amigo José de Souza Martins, também professor emérito da FFLCH-USP e membro do Conselho Superior da FAPESP.

Professor primário num colégio público de Mo-gi das Cruzes, Witter graduou-se em história na USP com a ajuda de uma prerrogativa instituída nos anos 1940. Ela permitia a professores aprova-dos no vestibular da USP o afastamento de suas funções para que pudessem fazer o curso supe-rior na área escolhida. Entre a sua diplomação como professor primário e a sua contratação no Departamento de História, convidado por Sérgio Buarque de Holanda, Witter lecionou sempre em escolas públicas, como ressaltou em entrevista à

ObituáriO y

Witter: “Sempre fui um bom professor. Aprendi a ensinar dando aulas nos cursos primário e secundário”

Pesquisa FAPESP em junho de 2006. “Sempre fui um bom professor, não tenho falsa modéstia. Aprendi a ensinar dando aulas nos cursos primá-rio e secundário”, afirmou.

Nos anos 1970, inovou ao dar tratamento acadê-mico ao futebol. Como professor do Departamento de História da FFLCH, ministrou o primeiro curso de história do futebol na USP. Mais tarde, organi-zaria obras como Futebol e cultura, em colaboração com José Carlos Sebe Bom Meihy, e escreveria O que é futebol e Breve história do futebol brasilei-ro. Ao lado desse curso, trabalhou sempre como professor na área de história do Brasil colonial, imperial e republicano nos cursos de graduação.

Witter trabalhou na preservação e proteção dos acervos documentais e na modernização dos arquivos históricos. “Dono de uma concep-ção inovadora na proteção e disponibilização de acervos documentais, é o grande responsável pelo enorme salto nas condições de realização da pes-quisa histórica no estado de São Paulo. Sem ele, ainda estaríamos não muito longe das modestas condições de pesquisa que aqui havia nos anos 1950”, disse José de Souza Martins. n

Inovador da história

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84 z agosto DE 2014

Neldson Marcolin

A divulgação de

pesquisas já causava

polêmica entre

pesquisadores no

século XIX

MeMória

as críticas às imprecisões e exageros das notícias a respeito de estudos e descobertas científicas, quase sempre feitas por pesquisadores, estão longe de ser

um moderno efeito da comunicação de massa ou de um número maior de pessoas escrevendo sobre ciência, tecnologia e inovação na imprensa. Entre 1896 e 1898, o diretor do Observatório Astronômico do Rio de Janeiro (hoje Observatório Nacional), o belga Luiz Cruls, manteve uma seção na Revista Brasileira em que comentava e explicava fatos científicos e, não raro, criticava erros que circulavam nos periódicos da época. “É singular como a opinião pública acolhe com extraordinária credulidade as fantasias mais extravagantes. Agora é um óptico que pretende construir uma objetiva de 30 metros de diâmetro...”, escreveu ele em 1896, segundo estudo de Moema de Rezende Vergara, pesquisadora do Museu de Astronomia e Ciências Afins (Mast), publicado no livro Ciência, história e historiografia (Via Lettera/Mast, 2008).

Um ano depois, Cruls fez um comentário por ocasião de determinada chuva de meteoros que desapontou quem teve a atenção chamada para o fenômeno pelo

Parque Zoobotânico do Museu Goeldi no fim do século XIX: imprensa ignorava o trabalho científico

Vulgarização controversa

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PeSQUiSa FaPeSP 222 | 85

Vulgarizador – jornal dos conhecimentos úteis. Foi nele que se publicou a tradução do artigo de Flammarion sobre a chuva de meteoros que frustrou a quem assistiu ao fenômeno. A cópia digitalizada da coleção do jornal está disponível no site do Mast (www.mast.br).

De acordo com estudo feito por Moema, a palavra vulgarização foi usada no Brasil por cientistas e literatos entre 1870 e 1930. “Em 1931, o médico Miguel Ozório de Almeida publicou o livro A vulgarização do saber, no qual fala da importância de o público compreender, pelo menos em linhas gerais, as bases do desenvolvimento científico”, diz a pesquisadora. Divulgação científica só começou a aparecer na imprensa como sinônimo de vulgarização depois desse período. No acervo do jornal O Estado de S.Paulo, por exemplo, digitalizado desde a primeira edição, de 1875, é possível encontrar o termo apenas a partir de 1941.

astrônomo francês Camille Flammarion. “A decepção, porém, tinha sua razão de ser, à vista dos artigos de C. Flammarion, que, com seu costumado estilo de poeta, descreveu a anunciada chuva de estrelas sob cores tão sedutoras que, na verdade, a não se realizarem [seria] o caso de atribuir o malogro a algum engano [dos astrônomos]”, criticou Cruls. Para ele, a maioria das pessoas só conhecia a astronomia por meio de “descobertas ruidosas anunciadas pelos jornais diários”, não raras vezes, fantásticas e duvidosas.

Em 1907, o zoólogo suíço Emílio Goeldi, diretor do Museu Paraense (MPEG) que leva seu nome, em Belém, fez outro tipo de crítica à imprensa. “Se alguma coisa eu tenho a lamentar, é que a imprensa paraense tivesse deixado em um quase abandono esta parte do serviço público. Vivíamos aqui em esquecimento chegando eu a observar que, em geral, no Brasil, as obras científicas só impressionam o jornalismo depois que as trazem dos centros estrangeiros. Não atribuo isso à má vontade, mas ao pouco caso que se liga às coisas locais”, queixou-se ele ao repórter Manoel

Lobato, na edição de 8 de março da Folha do Norte, quando o entrevistou por ocasião de sua saída do museu rumo à Universidade de Berna, na Suíça. A notícia de 1907 foi encontrada em 2012 pelo historiadora Anna Raquel de Matos Castro, do MPEG.

“É bom lembrar esses episódios para mostrar que as questões sobre divulgação científica discutidas hoje têm, a rigor, uma longa história no Brasil”, diz Moema Vergara. O que muda é o contexto. “No final do século XIX havia uma preocupação da elite intelectual em construir uma nação e as discussões sobre os avanços da ciência permeavam esse debate.”

Na época, o termo usado para ventilar ao público leigo as descobertas restritas aos especialistas era “vulgarização científica”, uma tradução simples do francês vulgarisation scientifique, ainda hoje utilizado na França. Não por acaso, circulou no Rio de 1877 a 1880 O Fo

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Acima, luiz Cruls em seu gabinete na década de 1890: artigos sobre divulgação científica e críticas às “descobertas ruidosas”

Abaixo, emílio Goeldi posa com a família e funcionários do museu em março de 1907, quando retornou à Suíça

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86 | agosto DE 2014

autor chama de “flexibilidade ética”, ou seja, a condescendência com condutas que fogem aos padrões eticamente aceitáveis.

Ao tratar do relacionamento com os colabora-dores no Brasil, o autor discorre sobre a evolução no respeito ao trabalhador e no surgimento de ga-rantias legais trabalhistas. Narra sua experiência pessoal de consultor ao implantar canais de co-municação em empresas para dar oportunidade para que os empregados fossem ouvidos.

Um tópico corajosamente abordado no livro é o que trata de problemas no relacionamento das em-presas com a área política e de governo. Pressões, corrupção, busca de vantagens e outros aspectos dificultam o comportamento eticamente correto das empresas, como mostram alguns exemplos de casos práticos narrados pelo autor.

A parte didática do livro são os oito passos que servem para implantar um programa e código de ética. Dentre eles, destaca-se o terceiro passo, o qual trata da preparação de um pré-código, ou seja, uma primeira versão completa do código. O autor detalha os tipos de relacionamento e as po-líticas da empresa que devem constar no código.

Após a descrição dos oito passos, são apresenta-das 30 perguntas comuns que os comitês de ética das empresas costumam receber e que mostram desafios na implantação de um programa de ética.

O autor inclui um posfácio, no qual aborda a im-portância dos profissionais de comunicação e rela-ções públicas diante dos códigos. Segundo sua expe-riência, usualmente – e inadequadamente – os pro-fissionais desta área ficaram de fora dos comitês de ética das empresas nas quais trabalhou ou palestrou.

Por fim, o livro traz um apêndice, que aborda a nova Lei Anticorrupção, nº 12.846/2014. Fica enfatizada a importância de “preparar ou ajustar de forma adequada e participativa os Códigos de Ética ou Conduta com a nova lei” (p. 107).

A obra apresenta uma válida e atualizada contri-buição para dirigentes de empresas e organizações que pretendam se inserir em um processo nacio-nal e internacional de padronização moral das condutas profissionais no ambiente corporativo.

No livro Programas e códigos de ética e con-duta, de Mario Ernesto Humberg, publi-cado em 2014, o autor apresenta orienta-

ções práticas sobre a criação de códigos de ética e implantação de programas de ética em empresas no contexto brasileiro, apontando as vantagens de adotar essas medidas. Trata-se de um livro de caráter instrumental, sendo que o próprio autor o refere como “manual” (p. 109). Tem como pon-to diferencial a vasta experiência profissional do autor, que, além de formação acadêmica diversifi-cada, possui atuação como consultor de empresas no processo de elaboração de programas de ética.

O autor narra que os valores e crenças dos fun-dadores e donos de empresas e organizações, an-tigamente, é que pautavam sua conduta. Esses valores eram transformados em normas, quase sempre restritivas e principalmente sobre as rela-ções com os empregados ou funcionários e clien-tes. Um exemplo apontado são as antigas placas com vedações escritas de determinadas condutas no ambiente de trabalho.

Com o surgimento dos códigos de ética, as nor-mas de comportamento empresarial passam a ser mais claras e com caráter menos personalista. Sua origem está localizada no cenário norte-america-no, na década de 1970, como uma reação à divulga-ção de um sistema de corrupção envolvendo em-presas de equipamentos militares. Assim, passa-se a falar em ética empresarial, ética organizacional ou ainda ética nos negócios.

No Brasil, só a partir do ano 2002 é que as em-presas começam a formular e divulgar seus códi-gos de ética ou de conduta. Vários motivos podem levar os dirigentes a tal formulação, mas o autor aponta que sua implantação trata de “adicionar valor à empresa que dirigem e obter ganhos no clima interno e nas relações externas” (p. 29).

A obra mostra que os códigos são uma espécie de freio moral, legal e social diante do natural objetivo de maximizar os lucros por parte das empresas, acio-nistas e dirigentes em geral. Entretanto, os códigos, por si sós, não detêm comportamentos inadequados se não houver um engajamento da direção supe-rior com sua aplicação e com a punição de desvios.

As dificuldades para implantar programas de ética no Brasil são discutidas, sendo que uma de-las é a forte tendência ao comportamento que o

Uma contribuição para empresas

reseNha

Programas e códigos de ética e conduta: vale a pena implantar?Mario Ernesto HumbergCLA Cultural110 páginas, R$ 35,00

Lívia haygert Pithan

Lívia haygert Pithan é professora da disciplina de ética do Programa de Pós-graduação em Medicina e Ciências da Saúde da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e professora da Faculdade de Direito da PUC-RS.

carreiras

PESQUISA FAPESP 222 | 87

TrajeTória

De volta à casaBianca Zadrozny começou na iBM nos estados Unidos, lecionou na UFF e voltou para o centro de pesquisas da multinacional no Brasil

A engenheira de computação Bianca Zadrozny coordena desde fevereiro de 2012 a área de Análise de Dados de Recursos Naturais do Laboratório de Pesquisas da IBM no Brasil. O objetivo dos pesquisadores que atuam nesse setor é desenvolver técnicas avançadas de análise de dados que transformem a imensa quantidade de conteúdo gerado por empresas dos setores de petróleo, gás e mineração em informação para melhorar processos e tomadas de decisão. “Nosso foco é um tipo de análise chamado de ‘modelagem preditiva’, que visa usar dados históricos para criar modelos que

geram previsões”, diz. Aos 37 anos, Bianca ocupa uma posição de destaque no laboratório fluminense da multinacional de informática IBM. Filha de pais brasileiros, mas nascida na Filadélfia, nos Estados Unidos, a pesquisadora tem um vínculo estreito com seu país natal que acabou por moldar sua trajetória profissional. Ainda durante o curso de graduação, na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), ela fez um intercâmbio na Universidade da Califórnia, em Berkeley.

Com o diploma de bacharel na mão, Bianca candidatou-se a uma bolsa de doutorado na

Universidade da Califórnia, em San Diego. “Nos Estados Unidos é possível fazer o doutorado logo depois da graduação. Ganhei a bolsa e desenvolvi minha tese na área de inteligência artificial, com foco em mineração de dados.” Durante o doutorado, ela fez dois estágios de verão no Thomas J. Watson Research Center, o principal laboratório de pesquisas da IBM. Depois de defender sua tese, acabou contratada para trabalhar no mesmo grupo de Análise de Dados da IBM, liderado pelo pesquisador indiano Chid Apte. A carreira profissional de Bianca deu uma guinada quando ela decidiu voltar para o Brasil, Il

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carreiras

88 | agosto DE 2014

TrajeTória proFissional

Conhecimento técnico na práticaBióloga juliana Machado Ferreira funda onG para desenvolver ações contra o tráfico de animais

Aos 34 anos, a bióloga Juliana Machado Ferreira poderia se dar por satisfeita com uma promissora carreira de pesquisadora no Instituto de Biociências da Universidade de São

Paulo (USP), onde concluiu o doutorado em 2012. No entanto, desde o mestrado, em 2006, ela dava sinais de que o laboratório não era seu hábitat natural. Não por falta de afinidade com a pesquisa básica, mas, como ela mesma diz, pela necessidade de colocar em prática o conhecimento técnico obtido na universidade na luta contra o tráfico ilegal de animais silvestres. Assim, ao longo dos anos em que esteve no Laboratório de Biologia Evolutiva e Conservação de Vertebrados, sob coordenação do professor João Morgante, Juliana dividiu seu tempo entre a pesquisa sobre genética de populações e o ativismo na SOS Fauna, organização não governamental (ONG) que trabalha em parceria com instituições de governo, Polícia Civil e Polícia Federal na luta contra o comércio ilegal de animais. “Comecei a participar de operações de apreensão de animais junto à Polícia Civil de São Paulo e a compreender o alcance político que a pesquisa científica pode ter na sociedade por meio do Terceiro Setor”, diz Juliana, que há dois anos fundou a ONG Freeland Brasil, com o objetivo de desenvolver ações envolvendo pesquisa, educação e investigação contra o tráfico de animais.

O interesse pelo assunto surgiu ainda no mestrado, em 2005, quando teve a oportunidade de conhecer o Laboratório de Criminalística dos Estados Unidos, único no mundo usado apenas para crimes contra a fauna e a flora. No doutorado, a bióloga desenvolveu marcadores moleculares para inferir a origem de aves de algumas espécies apreendidas em São Paulo. A dificuldade de saber de onde os animais vieram é um problema frequentemente encarado no momento de devolvê-los à natureza. Isso porque indivíduos de uma mesma espécie podem apresentar diferenciações genéticas causadas pelo processo de adaptação em biomas distintos. “Animais soltos em uma população muito diferenciada podem ter problemas para se adaptar em outro local. A abordagem genética permite, em teoria e dependendo dos dados presentes, verificar essas diferentes populações dentro de uma espécie e evitar situações desse tipo”, explica. A facilidade para falar em público chamou a atenção do TED, uma organização internacional sem fins lucrativos que promove conferências sobre vários temas da atualidade e as divulga na internet. Em 2010, ela discursou em Long Beach, na Califórnia, para uma plateia composta por diversos líderes. “No TED, aprendi que meu trabalho pode ter um alcance mais abrangente”, diz Juliana. “Hoje meu trabalho tem um impacto mais amplo e é voltado também para ajudar na definição de políticas públicas de combate ao tráfico de animais silvestres, mas ainda mantenho relações com o laboratório.”

em 2006. Largou o bom emprego na IBM – que lhe rendeu uma patente em coautoria com o cientista Naoki Abe, intitulada Methods for Multi-Class Cost-Sensitive Learning – e fez concurso para professora do Departamento de Ciência da Computação da Universidade Federal Fluminense (UFF), em Niterói. “NA UFF tive o prazer de trabalhar como pesquisadora por três anos no laboratório ADDLabs [Laboratório de Documentação Ativa de Design Inteligente], da professora Ana Cristina Bicharra Garcia. Foi lá que tive minha primeira experiência em um projeto da área de recursos naturais, desenvolvendo uma ferramenta para monitoramento de equipamentos em uma plataforma de petróleo”, diz. Depois de cinco anos lecionando na UFF, Bianca sentiu-se atraída para voltar para a IBM, quando a empresa decidiu montar um centro de pesquisas no Brasil. “Sempre gostei muito do ambiente acadêmico, mas a minha principal motivação era desenvolver projetos de pesquisa em áreas de meu interesse.” Em janeiro de 2011, ela foi contratada para trabalhar na área de Análise de Dados de Recursos Naturais e, apenas um ano depois, tornou-se gerente do setor.

Com a experiência de quem já passou por uma instituição de ensino e está num centro de pesquisa de uma multinacional de ponta, Bianca faz um balanço sobre sua atuação profissional e as possibilidades para quem deseja ser pesquisador. “Na iniciativa privada, a pesquisa tem que estar alinhada com as áreas de negócio da empresa, enquanto no setor acadêmico há uma abrangência maior de temas que podem ser trabalhados. Além disso, numa empresa há mais contato com problemas do dia a dia e busca de resultados relevantes no curto prazo. Na minha experiência na IBM, percebi um grande incentivo ao trabalho de equipe, com pesquisadores de diversas áreas e países combinando esforços ”, diz ela. Fo

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Conferência Brasileira de Ciência e Tecnologia em BioenergiaBrazilian BioEnergy Science and Technology Conference

De 20 a 24 de outubro de 2014

inscreva-se e participe do principal eventodo ano voltado à bioenergia

De caráter internacional e com a participação

de palestrantes renomados, a conferência será

um fórum de discussão sobre os principais avanços

na área de bioenergia, incluindo aspectos

tecnológicos, sociais, econômicos e ambientais

relacionados à produção e uso de bioenergia

Oito minicursos serão ministrados no evento:

melhoramento da cana-de-açúcarmanejo agrícola da cana-de-açúcarprodução de etanol no Brasilrotas bioquímicas para produção de etanol celulósicorotas termoquímicas para a produção de biocombustíveisbiorrefinariasmotores movidos a biocombustívelsustentabilidade da produção de bioenergia.

Os participantes poderão realizar visitas técnicas à Usina São Manoel, em São Manoel; ao Centro de Tecnologia Canavieira (CTC), em Piracicaba (SP), e ao Laboratório Nacional de Ciência e Tecnologia do Bioetanol (CTBE), em Campinas.

para maiores informações, acesse

www.bbest.org.br

Pós-graduandos podem participar do BE-BASIC

International Design Competition for Students, enviando

o seu plano de inovação para a produção sustentável

de produtos baseados em bioenergia. O autor da melhor

proposta será premiado (R$ 30 mil)

e poderá colocar a sua ideia em prática