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Carlos Aguiar de Medeiros Inserção Externa, Crescimento e Padrões de Consumo na Economia Brasileira

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  • Carlos Aguiar de Medeiros

    Insero Externa, Crescimento e

    Padres de Consumo naEconomia Brasileira

  • Carlos Aguiar de Medeiros

    Insero Externa, Crescimento e

    Padres de Consumo naEconomia Brasileira

    Professor Associado do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio De Janeiro (UFRJ) e Pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq). Braslia, 2015

  • Governo Federal

    Secretaria de Assuntos Estratgicos da Presidncia da Repblica Ministro Roberto Mangabeira Unger

    Fundao pbl ica v inculada Secretar ia de Assuntos Estratgicos da Presidncia da Repblica, o Ipea fornece suporte tcnico e institucional s aes governamentais possibilitando a formulao de inmeras polticas pblicas e programas de desenvolvimento brasi leiro e disponibi l iza, para a sociedade, pesquisas e estudos realizados por seus tcnicos.

    PresidenteSergei Suarez Dillon Soares

    Diretor de Desenvolvimento InstitucionalLuiz Cezar Loureiro de Azeredo

    Diretor de Estudos e Polticas do Estado, das Instituies e da DemocraciaDaniel Ricardo de Castro Cerqueira

    Diretor de Estudos e PolticasMacroeconmicasCludio Hamilton Matos dos Santos

    Diretor de Estudos e Polticas Regionais,Urbanas e AmbientaisRogrio Boueri Miranda

    Diretora de Estudos e Polticas Setoriaisde Inovao, Regulao e InfraestruturaFernanda De Negri

    Diretor de Estudos e Polticas Sociais, SubstitutoCarlos Henrique Leite Corseuil

    Diretor de Estudos e Relaes Econmicas e Polticas InternacionaisRenato Coelho Baumann das Neves

    Chefe de GabineteRuy Silva Pessoa

    Assessor-chefe de Imprensa e ComunicaoJoo Cludio Garcia Rodrigues Lima

    Ouvidoria: http://www.ipea.gov.br/ouvidoriaURL: http://www.ipea.gov.br

  • Carlos Aguiar de Medeiros

    Insero Externa, Crescimento e

    Padres de Consumo naEconomia Brasileira

    Braslia, 2015

  • Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada ipea 2015

    As opinies emitidas nesta publicao so de exclusiva e inteira responsabilidade dos autores, no exprimindo, necessariamente, o ponto de vista do Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada ou da Secretaria de Assuntos Estratgicos da Presidncia da Repblica.

    permitida a reproduo deste texto e dos dados nele contidos, desde que citada a fonte. Reprodues para fins comerciais so proibidas.

    Medeiros, Carlos Aguiar de Insero externa, crescimento e padres de consumo na economia brasileira / Carlos Aguiar de Medeiros. Braslia : IPEA, 2015. 174 p. : grfs. color.

    Inclui Bibliografia. ISBN: 978-85-7811-247-9

    1. Crescimento Econmico. 2. Distribuio de Renda. 3. Oramento Familiar. 4. Consumo. 5. Salrio Mnimo. 6. Combate Pobreza. 7. Brasil. I. Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada.

    CDD 338.981

  • SUMRIO

    APRESENTAO ........................................................................................7

    PREFCIO ..................................................................................................9

    INTRODUO ..........................................................................................15

    CAPTULO 1A NATUREZA ESTRUTURAL DO CRESCIMENTO ECONMICO RECENTE EM ECONOMIAS EM DESENVOLVIMENTO ...................................19

    CAPTULO 2A EVOLUO DA COMPOSIO DA DEMANDA DAS FAMLIAS BRASILEIRAS ENTRE 2003 E 2009 ..............................................................51

    CAPTULO 3A INFLUNCIA DO SALRIO MNIMO SOBRE A TAXA DE SALRIOS NO BRASIL NA LTIMA DCADA ................................................................79

    CAPTULO 4EVOLUO DA ESTRUTURA DE OFERTA DA ECONOMIA BRASILEIRA NA LTIMA DCADA E DA DEMANDA DAS FAMLIAS BRASILEIRAS ENTRE 2003 E 2009 .................................................................................109

    CAPTULO 5A SUSTENTABILIDADE ESTRUTURAL DE UM REGIME DE CRESCIMENTO COM DISTRIBUIO DE RENDA ...............................................................143

  • APRESENTAO

    No desenvolvimentismo brasileiro entre 1960 e 1980, a difuso dos modernos bens durveis de consumo se deu num contexto marcado pela privao ou excluso da maioria da populao das condies adequadas de alimentao, moradia, sade e educao. Nas dcadas posteriores, sobretudo a partir da promulgao da Constituio Federal de 1988, a expanso do Sistema nico de Sade, a extenso da previdncia rural ao campo, a elevao do salrio mnimo real e a ampliao do Programa Bolsa Famlia, entre outras iniciativas de polticas pblicas, comearam a mudar esta realidade. Esta transformao ganhou especial momento com as circunstncias macroeconmicas externas e internas criadas ao longo dos anos 2000.

    No ciclo de crescimento desta ltima dcada houve forte expanso do consumo das famlias, em particular daquelas cuja renda principal deriva-se de ocupaes com remunerao direta ou indiretamente afetada pelo salrio mnimo. Se as transferncias de renda foram a base da reduo da pobreza rural, sobretudo na regio Nordeste, foram o aumento do salrio mnimo real, a formalizao do trabalho assalariado e a expanso do crdito ao consumidor que elevaram o nmero de famlias com poder de compra suficiente para a diversificao do padro de consumo, tanto junto massa trabalhadora urbana quanto junto baixa classe mdia. Este padro diversificado refletiu tanto o aumento da renda quanto a mudana dos preos relativos e dos estilos de vida. A massificao dos bens durveis de consumo, a ampliao do transporte privado, a elevao da alimentao fora do lar e tambm dos gastos em servios em todas as faixas de renda expressam estas transformaes.

    O padro de desenvolvimento que se afirmou possui, entretanto, alguns limites crticos ao seu prosseguimento, que se manifestam pelo baixo nvel de investimento e crescente deficit nas transaes correntes do balano de pagamento. Aumentar a competitividade da indstria sem comprometer a elevao do salrio real um grande desafio, e requer no apenas polticas cambial, tarifria e tributria, mas tambm um conjunto de investimentos voltados ao aumento da produtividade e reduo dos custos dos bens no comercializveis, particularmente importantes em habitao, transporte urbano e sade. O alto custo das moradias com infraestrutura adequada em relao renda da massa trabalhadora e a crescente privatizao nos transportes e na sade constituem forte presso sobre o custo de vida. Por um lado, se tais custos no so incorporados aos salrios, compromete-se o bem-estar dos trabalhadores. Por outro, se plenamente incorporados aos salrios, prejudica-se a competividade industrial. A proviso subsidiada dos servios pblicos , assim, um enorme desafio para a sustentao de uma via de crescimento inclusiva.

  • Insero Externa, Crescimento e Padres de Consumo na Economia Brasileira8 |

    Este livro, divulgado pelo Ipea, rene importantes elementos para o aprofundamento deste debate.

    Sergei Suarez Dillon SoaresPresidente do Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada (Ipea)

  • PREFCIO

    Este livro, elaborado pelo professor Carlos Aguiar de Medeiros no mbito de um projeto junto Diretoria de Estudos e Polticas Macroeconmicas (Dimac) do Ipea, constitui um prolongamento dos estudos sobre desenvolvimento econmico sobre os quais o autor pesquisa e leciona no Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Desde sua tese de doutoramento na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Medeiros trabalha sobre aspectos gerais e especficos ligados aos problemas do desenvolvimento, tornando-se assim um especialista de notrio saber sobre o assunto.

    O volume composto por cinco captulos. O primeiro deles trata da natureza estrutural do crescimento econmico recente. De fato, um tema clssico das experincias de desenvolvimento comparado, a saber: o da relao entre crescimento, estrutura econmica e distribuio de renda. O autor rev criticamente algumas das interpretaes recentes sobre esta relao nas economias em desenvolvimento, a partir de algumas experincias nacionais relevantes.

    Na literatura keynesiana-estruturalista examinada predomina a interpretao de que o regime de crescimento centrado no lucro levou, nos pases centrais e sobretudo nos Estados Unidos, a um forte declnio da parcela salarial e do salrio real, enquanto na sia, especialmente na China, a um excesso da capacidade exportadora. Nas economias primrio-exportadoras que passaram por um forte crescimento na ltima dcada a distribuio a favor dos salrios que, nas interpre-taes correntes sobre a doena holandesa, estaria na base dos desequilbrios da estrutura produtiva e da crescente dependncia das importaes. Medeiros discute, observado um conjunto de experincias, os principais limites destas formulaes.

    Com base na literatura recente, e considerada a grande expanso das cadeias produtivas mormente na sia , as evidncias sobre as transformaes nas conexes entre diversidade produtiva e exportadora so apresentadas e contrastadas com as experincias dos pases exportadores de produtos naturais. No mbito das diversas interpretaes sobre a dinmica do crescimento asitico discutem-se as diferenas entre as economias nas quais, por razes estruturais, as exportaes se afirmam como principal componente da demanda, e aquelas em que a estratgia de crescimento foi simultaneamente favorvel s demandas interna e externa.

    O desequilbrio na estrutura produtiva entre a produo domstica e a especializao exportadora que distinguiu o maior crescimento nos pases exportadores de commodities na ltima dcada constituiu um campo de potencial

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    conflito distributivo, particularmente evidente na Argentina, que viria a requerer abrangente poltica industrial para ser contornado.

    No captulo seguinte o autor aborda a composio da demanda das famlias entre 2003 e 2009. Com efeito, a ltima dcada trouxe importante expanso e mudana no padro de consumo das famlias brasileiras. A reduo da pobreza, o crescimento da renda familiar per capita, do nmero de famlias no estrato intermedirio de renda e a expanso do crdito ao consumidor ampliaram os mercados de bens correntes e durveis de consumo, dos servios modernos e do lazer. A maior difuso dos padres de consumo privado deu-se a partir de uma articulao estrutural entre o regime macroeconmico, a estrutura de preos e os salrios reais.

    A mudana dos preos relativos, o aumento do salrio mnimo, do emprego assalariado formal e a expanso do crdito foram essenciais para a ampliao do nmero de consumidores situados na base da estrutura das ocupaes e na frao intermediria de renda, aumentando as dimenses de uma sociedade de consumo de massas.

    Em que pese a sua grande diferenciao interna, tanto em termos de valor como de variedade, a extensa difuso na posse de bens privados no perodo 2003-2009 ocorreu em meio a um contexto distinguido pela elevao da parcela da renda comprometida com a moradia, os transportes e a sade que juntamente com a educao formam a base contempornea das carncias e da heterogeneidade dos padres de consumo da sociedade brasileira.

    Entre 1960 e 1980, em seu perodo de alto crescimento industrial, a difuso dos modernos bens durveis de consumo verificou-se em um ambiente marcado pela privao ou excluso da maioria da populao das condies adequadas de alimentao, moradia, sade e educao. O prosseguimento da urbanizao, o incremento da produtividade na agricultura, a expanso do Sistema nico de Sade (SUS) desde 1988, a previdncia rural e as transferncias de renda ao longo dos anos de 1990 comearam a mudar tal realidade. Esta mudana ganhou especial oportunidade com as circunstncias macroeconmicas criadas ao longo dos anos 2000.

    O ciclo de crescimento da ltima dcada baseou-se em forte expanso do consumo das famlias, em particular daquelas cuja renda principal vincula-se direta ou indiretamente ao salrio mnimo. O salrio mnimo um preo poltico, mas o seu poder de compra depende da reao dos demais preos e salrios. A principal mudana de preos relativos na dcada foi a valorizao da taxa de cmbio. Esta apreciao neutralizou as presses tanto da agricultura quanto das matrias-primas importadas, diretamente sobre o custo de vida1 e indiretamente sobre os preos industriais, cujo declnio, sobretudo na eletrnica de consumo, fortaleceu o efeito do cmbio sobre o poder de compra dos salrios. Com o preo da cesta bsica

    1. Segundo dados do ndice Nacional de Preos ao Consumidor (INPC).

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    contido, a elevao do salrio mnimo de base e a expanso do crdito permitiram amplo deslocamento do padro de consumo na base da pirmide. A massificao dos bens de consumo durvel e a ampliao tanto do mercado automobilstico para a baixa classe mdia quanto da alimentao do lar expressam bem a mudana de estilo de vida.

    O padro de crescimento, tal como se afirmou no perodo, aponta limites crticos. Estes se colocam basicamente em dois planos caros macroeconomia estruturalista: na estrutura dos preos relativos e na composio dos inves-timentos. Em relao aos preos so especialmente importantes o patamar da taxa de cmbio e seu impacto sobre os preos de bens-salrio estratgicos (alimentao, tarifas de servios de utilidade pblica e remdios), assim como, por conseguinte, sobre o ajustamento da estrutura produtiva ao padro de consumo. No plano de investimentos, destacam-se em particular aqueles voltados ao crescimento da produtividade, custos e organizao dos mercados de bens e servios-salrio no comercializveis particularmente importantes no custo da habitao e do transporte urbano , e, acima de tudo, na expanso da oferta de bens e servios pblicos.

    O ncleo da heterogeneidade dos padres de consumo concentra-se no acesso habitao de qualidade, aos servios de sade e aos gastos com a educao. A proviso subsidiada destes bens e a reduo dos seus custos por meio de investimentos pblicos nestas reas constituem uma poltica central de elevao do salrio real.

    O terceiro captulo do livro examina a crescente influncia do salrio mnimo sobre a taxa de salrios e sobre a renda das atividades informais observada na ltima dcada no Brasil. A recuperao do poder de compra do salrio mnimo, que praticamente dobrou ao longo da dcada passada, passou a exercer crescente influncia sobre a formao da taxa salrio de amplos segmentos de trabalhadores assalariados formais e informais, bem como da renda dos trabalhadores autnomos sem recursos de qualificao.

    A reduo da pobreza que acompanhou a elevao do salrio mnimo e das mudanas nos padres de consumo levou a um incremento da demanda por emprego formal sobre outras formas de ocupao. O salrio mnimo afirmou-se assim como referncia para a remunerao de base da economia: tendo evoludo a um ritmo superior ao do salrio mediano e do salrio mdio, diminuiu a disperso da estrutura salarial e adensou a cauda inferior da distribuio. Mudanas na composio do emprego aliadas ao crescimento mais do que proporcional do assalariamento no setor de servios, do comrcio e da construo civil detentores dos salrios mais baixos e dos preos relativos contriburam para a relativa reduo da disperso agregada.

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    O aumento do salrio mnimo teve tambm um efeito farol e um efeito propulso sobre o setor informal e o trabalho autnomo. Embora parte destas transformaes seja de natureza estrutural e institucional elas evoluram a partir de certas caractersticas do regime de crescimento que se afirmou na ltima dcada. Com a desacelerao do crescimento ocorrida a partir de 2010 e a consequente reduo do emprego formal (particularmente intensa na indstria de transforma-o), alm da maior desvalorizao do cmbio, as presses de custos aumentaram.

    Com a maior influncia do salrio mnimo sobre a taxa de salrio e sobre o salrio mdio, possvel que os aumentos decorrentes do reajuste anual possam vir a se traduzir em maiores presses sobre os custos salariais e sobre os preos, principalmente se ocorrerem movimentos voltados a recompor margens de lucro e/ou contornos salariais, sobretudo na indstria. Neste sentido, a negociao de polticas de renda de forma a manter a poltica de valorizao do salrio mnimo e evitar o acirramento no conflito distributivo torna-se crescentemente importante.

    Na sequncia, o quarto captulo da obra enfoca a evoluo na estrutura de oferta da economia brasileira na ltima dcada, e da demanda das famlias entre 2003 e 2009. No ciclo de crescimento ocorrido na economia brasileira entre 2004 e 2010, a taxa mdia do produto interno bruto (PIB) foi de 4,5%2 e o consumo das famlias cresceu a uma taxa mdia de 5,23%, o qual, dado o seu peso relativo (cerca de 60% do PIB), foi o principal componente macroeconmico do crescimento no perodo. Neste ciclo no qual os demais componentes do PIB apresentaram um crescimento ainda maior do que o consumo das famlias houve tambm um acen-tuado crescimento das importaes, cuja taxa mdia de 14,81% no mesmo perodo excedeu amplamente a do PIB e de cada componente da demanda agregada. Entre os grandes setores da estrutura produtiva, o de servios liderou o crescimento e, devido ao seu peso na economia, afirmou-se como o que mais contribuiu para a expanso do PIB.

    A expanso do consumo das famlias se deu de forma difusa e generalizada. A despeito do grande crescimento da demanda nos setores de eletrodomsticos e de eletroeletrnicos tanto os produzidos internamente como, em especial, os importados , assim como no de servios financeiros ligados expanso do crdito, a estrutura de consumo das famlias no se alterou essencialmente. Os principais blocos de consumo em termos agregados so os servios e os produtos da indstria de alimentos. Quando se observa a distribuio do consumo por faixa de renda, so perceptveis a difuso de bens de consumo durveis j na base da pirmide distributiva e o grande crescimento do consumo em geral com nfase em servios nas faixas intermedirias de renda.

    2. Calculado pelo Ipea com base nos dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE).

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    Desse modo e de forma preliminar, possvel descrever o regime de crescimento da demanda das famlias, entre 2003 e 2009, com base nas seguintes interaes: o aumento exgeno da renda devido, principalmente, elevao do salrio mnimo e s transferncias sociais levou ao incremento da demanda de alimentos, bebidas, transportes e servios pessoais setores que possuem os maiores impactos sobre a estrutura produtiva e sobre a massa de salrios e provocou forte impacto sobre o emprego assalariado. Este esteve na base do crescimento demogrfico das famlias na faixa intermediria de renda. Tal movimento foi ampliado pelos demais compo-nentes da demanda agregada com a expanso autnoma do emprego e salrios do governo, das exportaes em alimentos bsicos e do investimento, particularmente em construes. Esta dinmica de expanso do emprego e dos salrios fez progredir a parcela salarial no valor da produo da maioria dos setores. A estrutura do gasto e a expanso do consumo das classes de renda mais alta ocorreram, sobretudo, em material de transporte, servios de intermediao financeira, servios pessoais, educao e sade, que so setores intensivos em emprego, reforando, assim, a massa de salrios.

    O principal limite expanso de consumo privado das famlias encontra-se na proviso de bens e servios coletivos de transporte, sade e educao. A proviso destes bens pelo setor privado tem absorvido parcela crescente do gasto, aumentando excessivamente o custo de vida da maioria dos assalariados e excluindo parcela substancial da populao. A proviso pelo Estado destes servios constituiria a um s tempo uma elevao do salrio real e uma reduo do custo (privado) do trabalho.

    Uma discusso sobre a sustentabilidade estrutural de um regime de cresci-mento com distribuio de renda constitui o quinto captulo, que fecha o volume. A expanso do mercado interno dinamizado pelo consumo dos assalariados na base da pirmide ocupacional, a par da reduo da pobreza, iniciou um processo de desconcentrao de renda numa sociedade extraordinariamente desigual e carac-terizada por insuficincia e desigual proviso de servios pblicos. Sem uma clara poltica industrial, a estrutura produtiva manteve a sua diversidade, mas cresceu extensivamente sem avano nos setores e atividades de maior contedo tecnolgico.

    A crise de 2008 levou a um dramtico declnio das exportaes e dos investi-mentos. Entretanto, em linha com outras experincias internacionais, particularmente da China, seu impacto recessivo foi contrarrestado por polticas fiscais anticclicas. Estas, porm, foram descontinuadas em 2011: uma forte contrao do consumo do governo e dos investimentos pblicos implicou, nos anos subsequentes, uma forte desacelerao no crescimento.

    Hoje a economia brasileira depara-se com um duplo desafio: obter uma trajetria de convergncia sustentvel isto , uma taxa de crescimento superior dos pases industrializados compatvel com as restries externas e, simultaneamente,

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    uma convergncia inclusiva ou seja, um regime de crescimento segundo o qual a renda da base da pirmide distributiva cresa a uma taxa superior da renda mdia. Com base na trajetria recente, a chave de ambos os desafios consiste em uma estratgia de desenvolvimento que combine substituio de importaes e diversificao de exportaes, mantendo enquanto eixos fundamentais o aumento dos investimentos em infraestrutura e a proviso de servios pblicos.

    A novidade no ciclo de expanso recente para pases em desenvolvimento produtores de commodities residiu na extraordinria queda da vulnerabilidade externa. Esta reduo permitiu no somente um acrscimo substancial das taxas de crescimento, mas tambm, em muitos casos, como em praticamente todos os pases da Amrica do Sul, uma diminuio na desigualdade de renda. Depois de quase duas dcadas de divergncia insustentvel e de divergncia excludente, estas economias passaram por uma trajetria de convergncia inclusiva. A crise de 2008, centrada nos Estados Unidos e com persistentes impactos na Europa Ocidental, teve uma imediata influncia na maioria das economias perifricas, mas no anulou esta tendncia.

    As dificuldades para manter esta convergncia inclusiva so de grande monta e no se prendem apenas ao fato de que a economia brasileira apresentou em 2014 sintomas de estagnao e aumento da vulnerabilidade externa, mas tambm porque esta sustentabilidade impe agora uma poltica de desenvolvimento mais sofisticada. Destaca-se a importncia das polticas de investimento, visando ao reforo de produtividade dos bens-salrios, e ao maior acesso aos bens pblicos. Tal sustentabilidade requer ainda uma poltica industrial de maior abrangncia, voltada em particular para setores especficos com mais potencial tecnolgico, ao lado de mecanismos de coordenao e articulao das cadeias produtivas.

    Por fim, como o prprio autor reconhece na concluso do seu trabalho, o enfrentamento simultneo de ambos os desafios o distributivo e o de transfor-mao produtiva no condio necessria para viabilizar uma taxa de crescimento moderado e manter o status quo das coalizes sociopolticas predominantes.

    Maria da Conceio Tavares Professora emrita do Instituto de Economia da Universidade Federal do

    Rio de Janeiro (IE/UFRJ) e professora associada do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (IE/Unicamp)

  • INTRODUO

    Em 1988, o Brasil aprovou uma nova Constituio Federal (CF/88) com importante ampliao dos direitos sociais. Particularmente a extenso da previdncia social ao mundo rural e a universalizao do sistema nacional de sade sinalizaram maior intolerncia poltica extraordinria desigualdade distributiva e elevada pobreza, que historicamente caracterizaram a sociedade brasileira e o seu regime de crescimento. Entretanto, esta inteno distributiva foi delineada em um contexto macroeconmico inteiramente adverso. No ano anterior promulgao, sob o peso da dvida externa que desde 1982 interrompera o crescimento e provocara intenso conflito distributivo no pas , o governo decretara moratria dos pagamentos dos juros externos e, nos anos seguintes, o processo inflacionrio corroa os salrios, a renda e o emprego, ampliando as desigualdades e a pobreza. Com o Plano Real e a estabilizao monetria de 1994 houve, nos anos seguintes da dcada de 1990, alguma recuperao do poder de compra do salrio mnimo. Entretanto, o baixo crescimento da renda e do emprego proveniente dos processos de abertura comercial, liberalizao financeira e contrao dos investimentos pblicos novamente bloqueou, neste novo regime de acumulao, as intenes distributivas e uma maior expanso do consumo dos trabalhadores.

    No Brasil, como de resto na Amrica Latina, aps uma meia dcada perdida entre 1998 e 2002, o contexto externo mudou substancialmente no restante da primeira dcada do novo milnio. A combinao entre a forte alta nas cotaes das commodities, a expanso da demanda destas pela China, a reduo da taxa de juros nos Estados Unidos e a ampla liquidez financeira internacional destravou as restries externas da economia brasileira. Neste perodo, o Brasil pde elevar significativamente sua taxa de crescimento, seu saldo comercial, aumentar suas reservas internacionais, ao mesmo tempo que reduzia sua taxa de juros domstica. Foi notvel, neste ambiente, a evoluo simultnea do salrio mnimo real e da formalizao do emprego.

    Neste ciclo expansivo, que se estendeu at 2010, todos os componentes do produto interno bruto (PIB) cresceram a taxas substancialmente mais altas. Entretanto, devido ao seu peso sobre a renda, o consumo das famlias afirmou-se como o principal protagonista desta expanso. Desse modo, parte das intenes consagradas na CF/88, frustradas pelas restries macroeconmicas e opes de polticas econmicas que lhe seguiram, puderam afinal se afirmar nesta dcada. Esta expanso da demanda interna foi, porm, acompanhada por elevada penetrao das importaes. Os investimentos pblicos tambm apresentaram aumento no

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    perodo, porm a demanda social pelos servios pblicos cresceu a um ritmo maior do que a sua proviso pelo Estado brasileiro.

    A anlise desta evoluo constitui o principal objetivo deste enorme esforo de pesquisa empreendido pelo professor Carlos Aguiar de Medeiros, que buscou compreender no apenas as articulaes entre o consumo das famlias e a estrutura da oferta que se afirmaram na economia brasileira na primeira dcada do sculo XXI, mas tambm situar a experincia brasileira em seu contexto histrico e compar-la com outros padres de crescimento que se afirmaram contemporaneamente nas economias em desenvolvimento.

    No primeiro captulo, A natureza estrutural do crescimento econmico recente em economias em desenvolvimento, o autor disseca as conexes apresentadas na literatura keynesiana-estruturalista entre distribuio, crescimento e mudana estrutural. A partir da crtica a essa literatura e das experincias de crescimento econmico observadas em pases em desenvolvimento selecionados, examina as relaes entre distribuio, crescimento, estrutura produtiva e exportaes, considerando a expanso das cadeias produtivas, particularmente na sia, e dos pases exportadores de recursos naturais. Procura identificar os distintos padres de crescimento e as mudanas estruturais ocorridas. Diferentes trajetrias nacionais de crescimento resultaram da forma como as estratgias de acumulao se combinaram com as distintas estruturas produtivas.

    No segundo captulo, A evoluo da composio da demanda das famlias brasileiras entre 2003-2009, o professor busca discutir algumas evidncias sobre o processo de expanso e mudanas no padro de consumo das famlias brasileiras na primeira dcada do sculo XXI, a partir da Pesquisa de Oramentos Familiares (POF) de 2002-2003 e de 2008-2009. Mostra que a reduo da pobreza, o aumento real do salrio mnimo e do emprego assalariado formal, o crescimento do nmero de famlias no estrato mdio da renda e a expanso do crdito ao consumidor ampliaram o tamanho dos mercados de bens correntes e durveis de consumo, dos servios modernos e do lazer. Explicita que diversos bens e, sobretudo, servios, entraram na pauta de consumo tanto das famlias urbanas como ainda que em menor extenso das famlias rurais. O autor defende que esta difuso dos padres de consumo privado ampliando as dimenses de uma sociedade de consumo de massa se deu a partir de uma articulao estrutural entre o regime macroeconmico, a estrutura dos preos relativos e os salrios reais. Contudo, persistiu um elevado comprometimento de parcela da renda com moradia, transportes, sade e educao, reafirmando-se as carncias e a heterogeneidade dos padres de consumo na sociedade brasileira.

    No terceiro captulo, A influncia do salrio mnimo sobre a taxa de salrios no Brasil na ltima dcada, Medeiros examina o efeito do salrio mnimo sobre o emprego formal, a taxa de salrios e a distribuio de renda do trabalho no processo

  • Introduo | 17

    de reduo da pobreza e das desigualdades nas rendas do trabalho ocorridas na primeira dcada do sculo XXI na economia brasileira. Defende duas hipteses: i) o aumento do salrio mnimo real afirmou-se mais prximo da taxa de salrio, promovendo, concomitantemente, uma reduo da disperso dos salrios, dado o crescimento menor do salrio mdio. Contriburam para este resultado a maior exposio da indstria de transformao concorrncia internacional e o maior crescimento do emprego e dos preos do setor servios, agricultura e do comrcio, nos quais predominam os baixos salrios; ii) diante da alta do nvel geral de emprego em relao ao crescimento da populao economicamente ativa, o salrio mnimo agiu tanto como um farol irradiando-se para a determinao da renda do trabalho assalariado nas atividades informais , como um fator de propulso para as rendas derivadas do trabalho autnomo.

    No quarto captulo, Evoluo da estrutura de oferta da economia brasileira na ltima dcada e da demanda das famlias brasileiras entre 2003 e 2009, o autor detalha a articulao entre o novo padro de consumo com a oferta domstica e as importaes. A partir da Matriz Insumo-Produto (MIP) e das Pesquisas de Oramento Familiar (POFs) de 2003 e 2009, divulgadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE), examina a evoluo da estrutura da oferta em conexo com o comportamento da demanda das famlias. O autor procura evidenciar a composio setorial decorrente da expanso e do padro de consumo dos estratos de renda da maioria da populao brasileira. Explicita-se que o consumo das famlias cresceu a uma taxa mdia de 5,23%. As importaes, no entanto, apresentaram taxa mdia entre 2004 e 2010 de 14,81%. A queda dos preos industriais (inclusive importados), a difuso do crdito e a elevao do salrio mnimo real (e das transferncias de renda a ele vinculadas) viabilizaram a difuso do consumo das famlias tanto nos bens tradicionais como em bens de consumo durveis e servios modernos.

    No quinto captulo, A sustentabilidade estrutural de um regime de crescimento com distribuio de renda, Carlos Aguiar de Medeiros salienta as interaes entre crescimento, padres de consumo e importaes sintetizando as transformaes estruturais ocorridas na economia brasileira na primeira dcada do milnio e delineia possveis estratgias a serem implementadas a fim de avanar o desen-volvimento econmico do pas. A expanso do mercado interno, dinamizado pelo consumo dos assalariados na base da pirmide ocupacional e pela reduo da pobreza, desencadeou um processo de desconcentrao de renda em uma sociedade extremamente desigual e caracterizada por insuficiente e assimtrica proviso de servios pblicos. Todavia, o crescimento do consumo das famlias e dos investimentos em mquinas e equipamentos expandiu as importaes de bens finais, de partes e de componentes. Defende-se, ento, que a estrutura produtiva manteve sua diversidade, mas cresceu extensivamente, sem grandes avanos nos setores e atividades de maior contedo tecnolgico. Para o autor, o

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    enfrentamento desta fragilidade estrutural requer a articulao de uma estratgia de desenvolvimento que combine substituio de importaes e diversificao das exportaes. A ampliao dos investimentos em infraestrutura e a proviso de servios pblicos constituiria seu eixo primordial.

    Assim, o livro Crescimento, insero externa e padres de consumo na economia brasileira na primeira dcada do sculo XXI, elaborado pelo professor Carlos Aguiar de Medeiros, representa uma importante contribuio para a agenda de pesquisa da Diretoria de Estudos e Polticas Macroeconmicas (Dimac) do Ipea. A Dimac tem procurado aprofundar o conhecimento das estruturas da economia brasileira, bem como das variaes conjunturais dos principais indicadores macroeconmicos (consumo das famlias, consumo do governo, formao bruta de capital fixo, exportaes, importaes, evoluo das receitas e despesas do governo em suas trs esferas etc.), precondies para a compreenso e avaliao do conjunto das decises de polticas, bem como para alimentar o debate em torno de diferentes grupos da sociedade (empresrios, partidos polticos, sindicados, analistas econmicos, acadmicos, jornalistas etc.), buscando o seu aperfeioamento.

    Claudio Hamilton Mattos dos SantosDiretor da Diretoria de Estudos e Polticas

    Macroeconmicas (Dimac) do Ipea

  • CAPTULO 1

    A NATUREZA ESTRUTURAL DO CRESCIMENTO ECONMICO RECENTE EM ECONOMIAS EM DESENVOLVIMENTO

    1 INTRODUO

    As trajetrias de crescimento que antecederam a grande crise de 2008 e as que se afirmaram posteriormente na economia mundial suscitaram ampla reflexo sobre um tema clssico das experincias comparadas e dos padres de desenvolvimento; a da relao entre crescimento, estrutura econmica e distribuio de renda. Com efeito, entre economistas keynesianos, institucionalistas ou marxistas (e da economia poltica clssica), a principal hiptese sobre as transformaes estruturais que nos Estados Unidos levaram grande crise de 2008 baseia-se na concentrao pessoal e funcional da renda combinada com elevada expanso do comrcio, crescente financeirizao e endividamento (Foster e McChesney, 2012).

    A elevada concentrao da renda, que distinguiu a maioria das economias industrializadas nas ltimas duas dcadas, foi tambm particularmente notvel entre as economias dinmicas da sia, em particular na China, que se afirmou como grande centro manufatureiro mundial (Medeiros, 2012a). Neste pas, o alto crescimento, as transformaes na estrutura produtiva e a diversificao exportadora se deram em um contexto de amplo processo de concentrao funcional e pessoal da renda. Esta caracterstica estrutural retomou o tema da distribuio para o centro do debate da experincia chinesa. Para diversos intrpretes (particularmente de uma perspectiva keynesiana, neomarxista ou institucionalista), afirmou-se, neste regime de acumulao liderado pelos lucros e de um crescimento liderado pelas exportaes (ILO, 2013), uma elevada dependncia desta aos baixos salrios (Foster e McCheney, 2012).

    A combinao entre as possibilidades de modularizao dos processos produtivos, a abertura externa e a transio ao capitalismo na China e demais pases comunistas ou distantes do comrcio internacional teria dobrado a fora de trabalho integrada aos mercados globais; os processos de outsourcing e de fragmentao das cadeias produtivas teriam posto em ao um processo de global labour arbitrage (Akyz, 2010), deslocando o trabalho no qualificado nos pases do Norte a favor do trabalho barato dos pases em desenvolvimento. Em consequncia, houve uma substancial queda da parcela salarial tanto nas economias industrializadas quanto nas economias em desenvolvimento (ILO, 2013).

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    A relao entre crescimento econmico, industrializao, progresso tcni-co e diversificao exportadora, que caracterizou historicamente a experincia da Coreia do Sul, Taiwan, Cingapura e Hong Kong que formam hoje um grupo de novos pases industrializados asiticos , generalizada nas estratgias associadas ao que Amsden (2001) denominou ascenso do resto, essencialmente mudou. Pases asiticos da segunda gerao (como os do Sudoeste da sia) e plataformas de exportao, como o Mxico, tiveram uma grande diversificao produtiva e exportadora, ainda que sem alterarem a forte dependncia de exportaes baseadas no baixo custo da mo de obra e em uma posio subalterna nas cadeias globais de valor. A trajetria rasa de crescimento (Glassman, 2007) que se afirmou nestes pases gerou forte aumento do emprego industrial e reduo da pobreza, mas grande concentrao de renda e baixa diversificao da estrutura das qualificaes.

    Devido ao baixo crescimento dos pases industrializados, a extrema concorrncia Sul-Sul (Palley, 2011; Freeman, 2008), acentuada nos anos 2000, teria levado a um menor crescimento associado s exportaes de manufaturas, desafiando as conexes virtuosas previamente estabelecidas. Na China, a concomitncia entre o elevado superavit em transaes correntes e as altas taxas de investimento revelaria a existncia de um subconsumo cuja origem estaria no desequilbrio entre lucros e salrios (Akyz, 2010). Visto desta perspectiva, aps 2008, a sustentao do crescimento tanto na China quanto nos pases asiticos exportadores de manufaturas requereria a substituio do crescimento liderado pelas exportaes (Palley, 2011; Blecker, 1989) e a adoo de uma estratgia baseada nos mercados internos, traduzida por muitos como estratgia de crescimento liderada pelos salrios (UNCTAD, 2010; 2011; ILO, 2013).1

    No outro plano da diviso internacional do trabalho, formada pelos pases que no se integraram nos fluxos de comrcio essencialmente por meio das expor-taes de manufaturas e que apresentaram elevado peso das exportaes primrias, a ltima dcada caracterizou-se por uma elevada e difusa taxa de crescimento do produto interno bruto (PIB) per capita. Pases como a ndia, a Rssia, o Brasil, a Argentina e a maioria dos pases latino-americanos e africanos apresentaram taxas muito superiores s das dcadas anteriores. O elevado fluxo de capitais dirigidos a estas economias, a substancial melhora nos termos de troca a favor das commodities e a formao de amplas reservas internacionais esto entre os fatores externos mais gerais e significativos para o ciclo expansivo destas economias. Embora a grande crise financeira de 2008, iniciada nos Estados Unidos, tenha interrompido esta

    1. Na Tailndia, esta inflexo foi expressamente definida pelo governo poucos anos aps a crise de 1997. A via Thaksin, do primeiro ministro Taksin Shinawatra da Tailndia, por exemplo, anunciou, aps chegar ao poder, em janeiro de 2001, que ele estava determinado a transformar a trajetria de exportao de manufaturas num crescimento liderado pela demanda domstica atravs de diversas polticas (Thaksins way Thailands Prime Minister Thaksin Shinawatra, for example, announced upon taking the helm of government in January 2001 that he was determined to move the country away from mass manufacturing for exports into domestic demand-led growth through a series of policies) (Felipe e Lim, 2005, p. 7, traduo nossa).

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    trajetria levando a uma intensa contrao econmica em 2009 , as polticas anticclicas introduzidas em muitos destes pases levaram a uma retomada das taxas de crescimento, ainda que em nveis mais baixos.

    Ao contrrio da experincia asitica e da economia mundial, houve, em muitas destas economias, a combinao entre crescimento econmico e reduo da desigualdade de renda e aumento da parcela salarial (Cornia e Martorano, 2012) com maior controle nacional dos recursos naturais e elevada primarizao das exportaes. Na Rssia e na frica do Sul, onde a trajetria recente no incluiu qualquer alterao significativa na distribuio da renda, houve forte expanso do mercado interno. Na Rssia tambm houve expanso do salrio real. Estas transformaes, entretanto, teriam engendrado uma estrutura produtiva altamente vulnervel. Nas economias industrializadas, o baixo crescimento observado resultou da inconsistncia entre a queda da parcela salarial e a expanso da demanda agregada (Lavoie e Stockhammer, 2012), e nas economias dinmicas da sia, resultou da estratgia de crescimento baseada nas exportaes de manufa-turas intensivas em trabalho. J nos pases primrio-exportadores, a expanso da demanda interna e o menor crescimento das exportaes de manufaturas que se afirmaram como os principais problemas estruturais. Estes pases (bem como as economias primrias exportadoras menos desenvolvidas na frica e Amrica do Sul) estariam reproduzindo uma trajetria de crescimento insustentvel e uma desin-dustrializao decorrente da doena holandesa (Bresser-Pereira, 2010; Palma, 2005; Popov, 2009), em que as exportaes de commodities, acompanhadas por elevado endividamento externo, teriam viabilizado a expanso da renda interna e dos salrios reais, mas comprometido a estrutura produtiva e, em alguns casos, a industrializao previamente atingida. A ideia de uma armadilha de renda mdia (Felipe, Abdon e Kumar, 2012) genericamente identificada na literatura corrente como a incapacidade dos pases de evoluir de atividades de baixa produtividade para as de maior produtividade e diversificar a economia. Embora esta ideia no se aplique apenas a estes pases, estes formam o principal grupo na maioria dos estudos empricos. Com a reduo do preo das commodities nos anos mais recentes, a sustentabilidade de uma maior taxa de crescimento requeria a introduo de outra estratgia de acumulao favorvel s exportaes industriais.

    Emerge destas interpretaes uma relativa dissonncia sobre os regimes de crescimento a serem seguidos. Para o primeiro grupo de economias (liderado pela China), a retomada de um crescimento sustentvel deveria basear-se em uma estratgia favorvel elevao dos salrios na renda em um regime de crescimento baseado no consumo (UNCTAD, 2013).2 Ao contrrio desta perspectiva centrada

    2. A opinio prevalecente nos ltimos documentos da Organizao Internacional do Trabalho (OIT) e da Conferncia das Naes Unidas sobre Comrcio e Desenvolvimento United Nations Conference on Trade and Development UNCTAD (2012 e 2013) que, com a economia mundial em recesso, a estratgia de crescimento baseada nas exportaes de manufaturas conduz a uma corrida para baixo, degradando os padres salariais e gerando excesso de capacidade.

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    na demanda interna, para o segundo grupo (os primrio-exportadores), a estratgia deveria favorecer as exportaes por meio de um aumento da lucratividade das exportaes industriais.

    Objetiva-se neste captulo rever criticamente algumas destas interpretaes e conexes estabelecidas na literatura recente entre crescimento, mudana estrutural e distribuio de renda nas economias em desenvolvimento a partir de algumas experincias nacionais relevantes. Argumenta-se que, embora as interpretaes sobre regimes de crescimento tenham o indiscutvel mrito de introduzir o tema da distribuio de renda no exame das trajetrias de desenvolvimento, tais interpretaes no permitem identificar os distintos padres seguidos pelos pases nem as mudanas estruturais ocorridas. Diferentes trajetrias nacionais de crescimento resultaram da forma como as estratgias se combinaram com as distintas estruturas produtivas.

    Alm desta introduo, o captulo discute, na segunda seo, as conexes observadas na literatura contempornea entre distribuio, crescimento e mudana estrutural. Na terceira seo, as relaes entre crescimento, estrutura da produo e das exportaes em algumas economias em desenvolvimento so examinadas a partir da literatura e de algumas evidncias; na quarta seo, apresentam-se algumas notas conclusivas.

    2 DISTRIBUIO E CRESCIMENTO E MUDANA ESTRUTURAL

    Na perspectiva macroestruturalista, o crescimento do PIB decorre do crescimento da demanda interna, das exportaes, da substituio de importaes e das mudanas nos coeficientes de insumo e produto (Syrkin, 2008). Tendo em vista as interaes entre os componentes citados, a evoluo econmica altera essencialmente a estru-tura do crescimento, a distribuio e as polticas industriais e tecnolgicas, sendo tambm alterada por estes fatores.H uma relativa autonomia entre a acumulao e a distribuio, e ambas so condicionadas pela estrutura econmica.3 Independente do reconhecimento, em geral na literatura no neoclssica, do papel central da poltica industrial, a relao entre acumulao, distribuio, estrutura produtiva e crescimento no de forma alguma consensual. Conforme se observou na introduo, a nfase

    3. Na economia do desenvolvimento de base estruturalista, a estrutura produtiva em um determinado pas formada pelo conjunto de setores, atividades produtivas e de suas relaes definidas por meio de uma dada tecnologia. A introduo de novos padres de consumo e processos produtivos altera a composio intersetorial do produto que evolui da agricultura indstria e servios e da composio intrassetorial, favorecendo as atividades qualificadas. O que distingue uma economia industrializada uma particular configurao da estrutura produtiva, incluindo o setor de bens de capital e uma ampla variedade de bens e servios, que, a despeito de apresentarem distintos nveis de produti-vidade, no configuram estruturas produtivas desarticuladas ou apresentam marcadas descontinuidades tecnolgicas. A heterogeneidade estrutural um trao essencial das economias atrasadas, em que muito mais alto o desnvel da produtividade da agricultura de alimentos em relao s atividades urbanas (heterogeneidade interna) e entre o setor exportador e as demais atividades (heterogeneidade externa) (Medeiros, 2012b). Esta concepo de estrutura produtiva (setor especfico) esteve na origem da economia do desenvolvimento e, dependendo do modelo econmico usado, foi considerada um fator original limitante da distribuio de renda e da acumulao de capital.

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    posta na distribuio da renda, na explicao da taxa e no regime de crescimento das economias em desenvolvimento tem sido maior na interpretao das ltimas dcadas.

    A noo de estrutura econmica (e de mudana estrutural) usada na literatura contempornea na tradio neomarxista, keynesiana ou institucionalista bastante distinta da que se afirmou na economia do desenvolvimento, e se define basicamente pelo conjunto das instituies prevalecentes em uma economia capitalista, confor-mando um regime (ou estratgia) de crescimento. Uma formulao importante de inspirao marxista a das estruturas sociais de acumulao (Wolfson e Kotz, 2010). Estas so formadas por um conjunto de instituies de apoio realizao dos lucros e acumulao de capital. Estas estruturas so concebidas em duas variedades, a liberal e a regulada, de acordo com a forma com que os arranjos capital-trabalho, o papel do Estado na economia, as contradies entre capitais, as contradies entre os trabalhadores e o papel das ideologias so estruturados. A estrutura social regulada corresponde, grosso modo, s do capitalismo reformado discutido por Kalecki (Kovalick, 2001) sobre a idade dourada do capitalismo. Na estrutura social liberal, iniciada nos anos 1980 nos Estados Unidos e na Inglaterra, a concorrncia irrestrita, e a reduo dos custos do trabalho e o maior peso dos motivos das finanas formam seus componentes essenciais.

    Visto dessa perspectiva, a grande mudana distributiva ocorrida nas economias centrais, especialmente nos Estados Unidos, a favor do capital e das atividades financeiras (ILO, 2013) explica-se essencialmente por uma mudana nas relaes de poder e nas estruturas sociais de acumulao. Como se observou na introduo, a movida distributiva do capitalismo contemporneo a favor do capital e da integrao financeira e comercial estaria na origem do baixo crescimento nas economias industrializadas e do excesso de concorrncia nas economias exportadoras.

    O que distingue a formulao marxista ou keynesiana e institucionalista em seu esforo interpretativo sobre as transformaes das estratgias de crescimento recente o entendimento de que o elemento estrutural a ser investigado como os investimentos reagem s mudanas na distribuio. Em um regime liderado pelos salrios, a elevao da parcela salarial conduz a um maior crescimento da demanda agregada (o efeito positivo da maior propenso ao consumo dos trabalhadores mais que compensa o efeito negativo da reduo da lucratividade sobre o investimento privado e as exportaes lquidas). Por outro lado, a elevao dos salrios reais (e da parcela dos salrios) favoreceria as economias de escala e o aumento da produtividade a mdio prazo, e ao vincular a estrutura produtiva domstica com a da demanda, a evoluo desta abriria para a diferenciao produtiva.

    Em um regime liderado pelos lucros, a expanso deste que conduz a uma maior taxa de crescimento da demanda agregada (via predomnio do efeito positivo

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    da lucratividade sobre os investimentos). Deste modo, o regime de crescimento consistente em uma dada economia definido a partir de elementos estruturais e institucionais (como a propenso a consumir, a sensibilidade dos empresrios s mudanas nas margens de lucro, dos exportadores e importadores s mudanas nos custos, nas divisas etc.) no redutveis em um determinado momento a uma varivel de escolha das polticas econmicas predominantes. A mudana estrutural decorreria de mudanas significativas nos comportamentos dos parmetros que articulam a distribuio com a acumulao (Vuolo, 2009). Como em Lavoie e Stochhammer (2012), a estrutura da economia que define se uma economia liderada pelos lucros ou liderada pelos salrios (quadro 1).

    QUADRO 1Estrutura econmica: regimes liderados pelos salrios e regimes liderados pelos lucros

    Regime liderado pelo lucro Regime liderado pelos salrios

    Estrutura econmica

    Pequena diferenciao nas propenses ao consumo, alta sensibilidade dos investimentos lucratividade, parmetro baixo do acelerador, economia aberta e elevada elasticidade preo das exportaes e renda das importaes.

    A propenso a consumir dos trabalhadores muito maior que a dos capitalistas, investimento pouco sensvel lucratividade e alto parmetro do acelerador, economia relativamente fechada, com alta elasticidade preo das exportaes e baixa elasticidade renda das importaes.

    Outros fatores

    Outras fontes de demanda (poltica fiscal, monetria), fatores financeiros (ativos financeiros, bolha imobiliria), evoluo da taxa de cmbio e mudanas na demanda mundial, mudana no preo das commodities.

    Outras fontes de demanda (poltica fiscal, monetria), fatores financeiros (ativos financeiros, bolha imobiliria), evoluo da taxa de cmbio e mudanas na demanda mundial, mudana no preo das commodities.

    Fonte: Lavoie e Stockhammer (2012, p. 4).

    Essa formulao4 tinha origem na interpretao da crise da idade dourada entre os pases industrializados como uma crise decorrente da compresso dos lucros (tal como na formulao das estruturas sociais de acumulao anteriormente esboada). Nos anos mais recentes, caracterizados por queda dos salrios na renda, o baixo crescimento na economia mundial (e na maioria das economias) seria o resultado de uma inconsistncia entre um regime distributivo favorvel ao capital e o regime de crescimento, que, em sua maior parte, descrito como liderado pelos salrios (Lavoie e Stockhammer, 2012; UNCTAD, 2013).

    O relatrio OIT (2013) apresenta uma ampla base de informaes sobre a evoluo dos salrios, as transformaes distributivas e os regimes de crescimento na economia mundial na ltima dcada. Considerando os pases em desenvolvi-mento, observa-se que nos anos 2000, at a crise de 2008, os salrios cresceram a taxas elevadas nas economias asiticas, mas esta evoluo foi essencialmente puxada pela China o salrio real cresceu mais que trs vezes. Na Tailndia, na

    4. Escapa aos propsitos deste captulo identificar os limites e os problemas analticos desta abordagem, que segue uma formulao particular da demanda efetiva, centrada essencialmente no investimento privado autnomo como varivel determinante do crescimento e da mudana estrutural (Serrano, 2005).

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    ndia e no Sul da sia, os salrios cresceram muito pouco. Na Amrica Latina, os salrios reais tiveram um forte crescimento, especialmente no Brasil; houve tambm positivo crescimento nos pases do Leste Europeu especialmente na Rssia e um moderado crescimento na frica. Mas, em geral, ao longo da dcada, o produto interno cresceu a uma taxa superior dos salrios, levando a uma queda da parcela salarial.5

    O hiato entre produtividade e salrios, que registrou forte aumento nos Estados Unidos nas duas ltimas dcadas, tambm se afirmou como uma realidade para a maioria das economias. Em que pese ter havido importantes mudanas estruturais decorrentes do comrcio e de novas tecnologias, os dados reunidos pela OIT revelam que as principais mudanas distributivas se deram intra setores produtivos, e foram fortemente influenciadas por mudanas institucionais, diminuindo o poder dos sindicatos. Em diversas interpretaes sobre as transformaes do capitalismo recente (Akyz, 2012; Lavoie e Stockhammer, 2012), argumenta-se que no apenas as instituies do mercado de trabalho (como o declnio na sindicalizao), a mudana tecnolgica e a abertura comercial das economias contriburam para a queda da parcela dos salrios na renda, mas tambm a financeirizao (vagamente definida como aumento dos motivos financeiros e do setor financeiro na economia)6 constituiu um importante fator debilitante do poder de barganha dos trabalhadores.7

    Vale notar que a imensa literatura sobre as crises financeiras das economias em desenvolvimento ocorridas nos anos 1990 destaca precisamente a globalizao financeira mais exatamente a vulnerabilidade externa (Akyz, 2012; Frenkel, 2013) como elemento central subjacente concentrao da renda e ao baixo crescimento observado nesta dcada. Tal como observado neste relatrio, um importante canal de transmisso dela derivado foi a queda do consumo do governo , que possui importante efeito distributivo (UNCTAD, 2012) , associada com o processo da globalizao financeira.

    Neste sentido, a grande mudana ocorrida na ltima dcada particularmente importante para as economias na sia, frica, Amrica Latina e na Rssia, que ao longo dos anos 1990 tiveram suas trajetrias interrompidas por fortes crises de

    5. Como documenta o relatrio OIT (2013), a parcela dos salrios caiu em dezesseis pases industrializados, em dezesseis pases em desenvolvimento e em transio e entre estes, notavelmente na China.6. Foster e McCheney (2012) definem financeirizao como uma mudana de longo prazo do centro de gravidade da economia da produo para as finanas. O aumento da parcela dos lucros financeiros, o crescimento da dvida no PIB, o crescimento do setor, a expanso dos instrumentos financeiros e as bolhas especulativas que distinguiram o capitalismo contemporneo constituram evidncias desta transformao. Estas transformaes, entretanto, podem ser explicadas no como mudanas na natureza do capitalismo, mas como decorrncia da desregulao financeira, do baixo crescimento e da estagnao dos salrios. Ver Barba e Pivetti (2008).7. Utilizando como proxy da globalizao financeira a soma dos ativos e passivos externos em relao ao PIB, as estimativas economtricas no relatrio OIT (2013) evidenciaram que nas economias desenvolvidas este foi o principal fator associado concentrao da renda.

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    balano de pagamentos foi a reduo da vulnerabilidade externa. Aps as crises da sia, em 1997 (na Coreia do Sul, Tailndia, Malsia, Indonsia e nas Filipinas); na Rssia, em 1998; no Brasil, em 1999; e na Argentina, em 2001; a taxa real de cmbio foi fortemente desvalorizada (com elevado impacto sobre o salrio real); ao mesmo tempo, houve extraordinria elevao do preo das commodities e dos fluxos financeiros. Mas, ao contrrio dos anos 1990, houve nestas economias um maior controle destes fluxos, possibilitando a formao de amplas reservas internacionais (Frenkel, 2013). Estas circunstncias externas e internas permitiram, na maioria destes pases (o Mxico uma exceo), a introduo de polticas anticclicas e alguma recuperao dos gastos do governo (consumo e investimento). Tais transformaes foram essenciais para as maiores taxas de crescimento obtidas pela Argentina, pelo Brasil, pela frica do Sul e pela Rssia, mas tambm para a Indonsia e Tailndia (Medeiros e Reis, 2013), bem como para a evoluo posterior do salrio real.8

    Cornia e Martorano (2012) investigaram a evoluo da desigualdade da renda pessoal (medido pelo coeficiente de Gini da renda familiar per capita) na economia mundial na ltima dcada e encontraram uma grande bifurcao, em contraste com a acentuada desigualdade que atingiu todos os pases ao longo dos anos 1990. De um lado, houve um declnio da desigualdade em praticamente todos os pases latino-americanos e em muitos da frica Subsaariana e do Sudoeste da sia; de outro lado, a desigualdade continuou sua tendncia de alta entre os pases da Organizao para Cooperao e Desenvolvimento Econmico (OCDE), do Leste Europeu, alm da China, do Vietn, do Camboja, do sul da sia e os pases do Oriente Mdio e do Norte da frica. A base essencial desta bifurcao foi a combinao que se verificou, entre algumas economias do primeiro grupo (exportadoras de recursos naturais), entre maior crescimento e polticas favorveis aos trabalhadores (salrio mnimo, transferncias sociais). Em sua maioria e apesar do abandono de regimes de cmbio fixo, e em sequncia das desvalorizaes que se seguiram s crises do final dos 1990 e incio dos 2000 , houve valorizao da taxa real de cmbio.

    Na sia, em geral (aps a crise de 1997), a desigualdade aumentou com algumas excees, em particular na Tailndia e Malsia, devido essencialmente s polticas de investimento pblico (Cornia e Martorano, 2012; ver prxima seo).

    Subjacente a essa bifurcao, a hiptese interpretativa mais geral sobre os regimes de crescimento a suposio de que na sia exportadora de manufaturas

    8. Devido aos elevados fluxos financeiros que se dirigiram para estas economias e rapidez com que a crise de 2008 se transmitiu por meio deste canal, Akyz (2012) no considera ter havido qualquer descontinuidade entre a ltima dcada e os anos 1990. Entretanto, como destacado por Frenkel (2013), o menor endividamento e as maiores reservas acumuladas nesta dcada, bem como a prpria resposta crise por meio de polticas expansivas praticadas na maioria das economias, revelaram haver, no final da dcada, uma dependncia financeira muito menor que a que distinguiu os anos 1990.

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    predominou, tanto ao longo dos anos 1990 quanto na ltima dcada, uma estratgia de crescimento liderada pelos lucros ou liderada pelas exportaes (Paley, 2011; UNCTAD, 2012; 2013).

    importante observar que, nesse esquema conceitual, os elementos estruturais que definem um regime de crescimento so mltiplos e complexos, pois decorrem de elementos institucionais que possuem dependncia de trajetria e mltiplas determinaes. Ademais, so influenciados por outros fatores que podem levar a resultados inteiramente distintos daqueles previstos no funcionamento dos regimes. Os estudos sobre estes regimes constituem um campo por excelncia das interpretaes sobre as trajetrias nacionais de desenvolvimento, mas estas narrativas dificilmente permitem comparaes e resultados conclusivos. A anlise emprica predominante, entretanto, limita-se a estimar o efeito sobre o crescimento econmico associado a uma variao da parcela dos salrios ou dos lucros na renda. No relatrio ILO (2013), estimou-se o impacto de um declnio de 1% na parcela dos salrios sobre o consumo, o investimento e as exportaes lquidas para diversas economias doze na rea do euro, Estados Unidos, Gr-Bretanha, Argentina, Austrlia, Canad, China, Frana, Alemanha, ndia, Itlia, Japo, Mxico, Coreia do Sul, frica do Sul e Turquia , constatando a direo negativa sobre o consumo, que parece ser tanto maior quanto maior for o mercado interno.

    Em relao aos investimentos, o efeito observado no relatrio ILO (2013) foi positivo, com a exceo da Argentina, China, ndia, Coreia do Sul e Turquia. O relatrio atribui a inexistncia de uma relao entre a queda da parcela dos salrios e o investimento nestas economias em desenvolvimento ao fato de nestas os maiores indutores do investimento serem o investimento pblico e a poltica industrial.9

    No relatrio ILO (2013), o efeito sobre as exportaes lquidas foi positivo em todas as economias, mas sobretudo na China, em virtude de nesta economia (como aponta este relatrio) a elasticidade preo das exportaes ser muito alta, devido a sua dependncia das exportaes de bens de consumo e bens tradicionais, como txteis. Neste relatrio no h propriamente uma tipologia sobre a natureza dos regimes de crescimento. A China, a Alemanha, mas tambm a Argentina, o Canad, o Japo, a Indonsia, a Coreia do Sul e a Rssia so classificados como economias lideradas pelas exportaes; os Estados Unidos, a Inglaterra e diversos pases europeus teriam

    9. Tal constatao vai ao encontro de uma linha interpretativa explorada em diversos documentos da UNCTAD (sobretudo em: UNCTAD, 1996; Akyz e Gore, 1996), conectando a taxa de lucro com a acumulao nas experincias de desenvolvimento. Nestes documentos, o desempenho dos pases dinmicos do Sudeste da sia, em contraste com a evoluo estruturalmente inferior observada na Amrica Latina, foi atribudo existncia de um nexo lucro-investimento criado via incentivos e tributos (ao consumo de luxo) e, associado com este, o nexo exportaes-investimento. Nesta formulao, a estratgia de alto crescimento que predominou nos pases do Sudeste Asitico envolveu um conjunto amplo de mecanismos de coordenao pelo Estado, conduzindo a uma elevada canalizao dos lucros em investimentos produtivos. A abertura financeira e a remoo destes mecanismos de coordenao levaram, em consequncia, perda do nexo lucro-investimento, mais lucros e menos investimento.

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    seu regime de crescimento baseado no endividamento;10 e, por fim, em pases como o Brasil, a expanso verificada, na ltima dcada, do salrio real e do consumo das famlias constituiria um caso de regime liderado pela demanda.

    Onaran e Galanis (2012), ILO (2013) e Lavoie e Stokhammer (2012) observaram, com base nestas e em outras estimativas, que a maioria dos pases possui um regime liderado pelos salrios certamente, a economia mundial liderada pelos salrios (Lavoie e Stokhammer, 2012). Nos pases que possuem um regime liderado pelos lucros, como se considera ser o caso da China na sia exportadora de manufaturas (OIT, 2013), o efeito positivo observado do aumento da parcela dos lucros recaiu integralmente nas exportaes lquidas.

    A abordagem institucionalista sobre regimes de crescimento torna essencial-mente as economias lideradas pelas exportaes um caso particular de um regime de crescimento liderado pelos lucros. Como a maioria das economias liderada pelos salrios, essencialmente na economia aberta que a feliz coincidncia de interesses (Blecker, 1989) entre trabalhadores e capitalistas desfeita e o conflito entre a distribuio funcional e a competividade (custo do trabalho) se imporia. A queda das margens de lucro decorrente de um aumento dos salrios reais pode tornar certas exportaes no lucrativas e a elevao dos preos pode torn-las no competitivas.11, 12

    Entretanto, a busca da competitividade via desvalorizao da taxa real de cmbio poderia ter efeito negativo sobre o crescimento da demanda interna, a menos que, em funo de mudanas estruturais a ela associada, ocorra uma grande expanso das exportaes e um declnio das importaes, ambos derivados de uma elevada elasticidade preo das exportaes e importaes.13 Este efeito ambguo amplamente reconhecido na literatura emprica (ILO, 2013).

    A busca da competitividade externa baseada na reduo dos custos unitrios de trabalho afirmou-se na economia mundial com a extraordinria expanso das

    10. Devido ao foco recente nas bolhas de consumo, notvel nesta literatura a subestimao do papel positivo e essencial do crdito ao consumidor para o consumo das famlias e, em geral, na demanda efetiva.11. A ideia mais geral de competitividade em preos baseada no custo unitrio do trabalho. O custo unitrio do trabalho pode ser expresso como uma razo entre a folha salarial (W) e o valor adicionado (VA) multiplicado pela razo entre o deflator do PIB (P) e a taxa de cmbio (E). Custo unitrio do trabalho = W/VA x P/E. A primeira razo exatamente a parcela salarial. Dada esta constante, a competitividade pode aumentar (cair), com uma depreciao (valorizao) da taxa de cmbio real. Note-se que, como h um forte efeito da taxa nominal de cmbio sobre os preos, uma desvalorizao da taxa real de cmbio implica uma queda do salrio real Wp (na hiptese simplificada de que o ndice de preo ao consumo semelhante ao ndice de preos do PIB). A elevao do salrio real Wp em linha com o valor adicionado (VA) mantm o custo unitrio do trabalho estvel.12. Mas, mesmo nestas economias, independentemente de qualquer constrangimento estrutural, no se segue que um corte dos custos salariais aumente a competitividade (Blecker, 1989).13. A existncia de uma relao positiva entre o consumo agregado e o salrio real e negativa com a taxa de cmbio devido mais alta propenso a consumir dos trabalhadores e ao predomnio dos efeitos renda nas demandas sobre os bens no comercializveis constitui um importante filo da literatura macroestruturalista e das interpretaes sobre os dilemas econmicos da economia argentina. Um estudo clssico o de Canitrot e Rozenwurcel (1986). Uma discusso sobre sua atualidade na Argentina aps 2008 encontra-se em Amico (2013). Ver frente.

  • A Natureza Estrutural do Crescimento Econmico Recente em Economias em Desenvolvimento

    | 29

    cadeias produtivas e da subcontratao ocorridas nas ltimas dcadas e, para muitas interpretaes sobre as economias asiticas, constitui o principal limite para um crescimento com maior incluso social.

    O principal mrito das abordagens contemporneas sobre regimes de cresci-mento foi o de introduzir a distribuio da renda e as relaes de trabalho para as anlises das trajetrias de desenvolvimento. Entretanto, devido s ambiguidades em torno das conexes estabelecidas entre lucratividade e investimento admitida em teoria, mas na prtica no verificada , a principal proposio que emerge desta literatura a descrio das conexes (e do conflito) entre distribuio e exportaes nas trajetrias nacionais de crescimento. Mas, como ser discutido em seguida, a insero externa e a funo exercida pelas exportaes nas trajetrias de crescimento possuem dimenses estruturais e tecnolgicas no redutveis a mudanas nos padres distributivos.

    3 CRESCIMENTO, EXPORTAES E MUDANA ESTRUTURAL EM ECONOMIAS EM DESENVOLVIMENTO

    As exportaes possuem uma dupla dimenso macroeconmica nas economias nacionais. De um lado, elas geram as divisas necessrias s importaes e aos pagamentos externos, de outro, constituem uma fonte autnoma da demanda agregada. Embora ambas as dimenses estejam entrelaadas e sejam essenciais para a sustentao do crescimento econmico no longo prazo, elas possuem distintos significados para as economias nacionais (Medeiros e Serrano, 2001). Para todos os pases, a importncia fundamental das exportaes decorre exatamente da primeira dimenso,14 por meio delas as economias nacionais obtm as divisas necessrias ao seu crescimento. Para outras economias, entretanto, como notoriamente entre as economias dinmicas do Leste Asitico, alm desta razo, desenvolveu-se uma estrutura produtiva em que as exportaes constituem o principal componente da demanda final (Medeiros e Serrano, 2001).

    As tabelas 1 e 2 apresentam, para algumas economias em desenvolvimento, a evoluo recente do PIB e de seus principais componentes, bem como os seus respectivos pesos. Como se depreende destes dados, em todas as economias o consumo das famlias amplamente predominante; a grande discrepncia a China, onde este componente estruturalmente mais baixo. As exportaes e as importaes enquanto parcelas do PIB so particularmente elevadas na Tailndia, na Coreia do Sul e, entre as economias grandes, na China. Nestas economias h uma evidente correlao entre formao de capital, exportaes e importaes. Exportaes e importaes so tambm elevadas na Argentina, frica do Sul, Rssia, Indonsia

    14. A noo de um hiato de divisas est na base das primeiras formulaes da economia do desenvolvimento. A demanda pode criar sua prpria oferta, como disseram Dray e Thirwall (2011), mas no as divisas necessrias.

  • Insero Externa, Crescimento e Padres de Consumo na Economia Brasileira30 |

    e no Mxico; Brasil e ndia possuem menor relao de comrcio. As exportaes lquidas foram significativas e positivas na Argentina, China, Coreia do Sul, Rssia e Tailndia; no Brasil, na ndia e no Mxico foram negativas. Estas propores evoluram distintamente entre 2003-2011.

    TABELA 1Taxa mdia de crescimento dos componentes do PIB (2003-2011)

    PIB Consumo das famlias Consumo do governo Formao de capital Exportaes Importaes

    Argentina 7,7 7,7 6,3 17,1 7,8 20,1

    Brasil 3,9 4,7 3,1 6,6 5,9 12,4

    China 10,7 8,4 8,9 13,4 16,8 17,7

    ndia 8,1 7,2 7,3 11,2 13,8 17,2

    Indonsia 5,6 4,5 7,1 7,7 9,2 9,9

    Mxico 2,4 2,9 1,6 0,9 5,9 5,2

    Coreia do Sul 3,8 2,4 4,3 2,2 10,6 8,2

    Rssia 4,8 8,2 1,5 10,5 5,3 15,0

    frica do Sul 3,5 3,9 4,9 7,4 2,0 7,2

    Tailndia 4,0 3,4 5,6 6,5 7,6 9,1

    Fonte: Naes Unidas, Contas Nacionais (National Accounts Main Aggregates Database, United Nations Statistics Division).

    Pases to diversos como Argentina, China, ndia e Indonsia tiveram um alto crescimento, seguidos por Rssia, Brasil, Coreia do Sul e frica do Sul; o Mxico apresentou um menor crescimento. Mas a composio do crescimento foi muito distinta. Na China, na ndia e na Coreia do Sul, tanto as exportaes como as importaes e o investimento cresceram a taxas muito mais altas que o crescimento do PIB. Na Argentina, na frica do Sul, no Brasil ou na Rssia, a taxa de crescimento das importaes amplamente excedeu das exportaes. Esta evoluo alterou a participao dos principais componentes do crescimento entre 2003 e 2011. Na China, as exportaes e as exportaes lquidas, bem como o investimento, aumentaram sua participao; na ndia, houve forte elevao das exportaes e dos investimentos, mas as exportaes lquidas ficaram fortemente negativas. Na Coreia do Sul, as exportaes passaram para um nvel muito mais alto, mas, de forma distinta do que se passou na China, a formao de capital foi inferior. Esta circunstncia tambm ocorreu no Mxico. Na Argentina e no Brasil, as exportaes reduziram o seu peso (as exportaes lquidas caram substancialmente na Argentina, mas permaneceram positivas; no Brasil, ficaram negativas); nestes pases, como tambm na Rssia, a participao dos investimentos no PIB aumentou. Como proporo ao PIB, o consumo das famlias caiu em todas estas economias, j o consumo do governo aumentou ou permaneceu estvel, com exceo da China e do Mxico, onde este componente caiu.

  • A Natureza Estrutural do Crescimento Econmico Recente em Economias em Desenvolvimento

    | 31

    TABELA 2Parcela dos componentes do PIB (preos de 2005)

    Consumo das famlias

    Consumo do governo

    Formao de capital

    Exportaes lquidas

    Exportao Importao

    Argentina20032011

    6356

    1215

    1126

    112

    2522

    1420

    Brasil20032011

    6260

    1921

    1620

    2-1

    1512

    1213

    China20032011

    4235

    1513

    4149

    24

    2931

    2727

    ndia20032011

    6256

    1112

    2736

    -1-5

    1525

    1630

    Indonsia20032011

    6855

    89

    2633

    71

    3026

    2325

    Mxico20032011

    6765

    1211

    2325

    -2-1

    2532

    2733

    Coreia do Sul20032011

    5553

    1315

    3029

    22

    3556

    3354

    Rssia20032011

    5150

    1818

    2125

    119

    3531

    2422

    frica do Sul20032011

    6259

    1921

    1720

    20

    2829

    2629

    Tailndia20032011

    5653

    1316

    2425

    74

    6272

    5568

    Fonte: Naes Unidas, Contas Nacionais.

    Com base nessa diversidade de experincias, a questo a examinar, se luz de alguns estudos comparativos, a natureza desse crescimento e o papel essencial das exportaes e da insero externa das distintas economias.

    Possivelmente devido pouca nfase conferida configurao da estrutura produtiva na caracterizao usual dos regimes de crescimento, no h na literatura corrente e nos estudos aplicados sobre as experincias nacionais qualquer consenso do que se entende por crescimento liderado pelas exportaes e a sua confi-gurao produtiva. Na literatura keynesiana inspirada em McCombie e Thirwal (1994), o crescimento liderado pelas exportaes descrito como um regime em que o crescimento do PIB determinado pelo crescimento da demanda externa. Na literatura sobre as experincias de desenvolvimento observado nas ltimas

  • Insero Externa, Crescimento e Padres de Consumo na Economia Brasileira32 |

    dcadas, entende-se genericamente por crescimento liderado pelas exportaes uma estratgia15 de desenvolvimento em que as exportaes so o objetivo central da poltica econmica (Felipe e Lim, 2005; Palley, 2011).

    Akyz (2013) refere-se ao crescimento liderado pelas exportaes como um processo de crescimento em que as exportaes crescem mais rpido que a demanda domstica. Mas as circunstncias em que uma estratgia favorvel s exportaes estratgia que no se ope a uma estratgia simultnea de crescimento da demanda interna se transforma em um regime de crescimento liderado pelas exportaes (e uma particular estrutura produtiva) so escassamente discutidas.

    A expanso das cadeias globais de valor isto , a formao de redes verticais de comrcio lideradas pelas empresas multinacionais ampliou de forma extraor-dinria a importncia dos custos do trabalho na produo industrial em atividades intensivas em mo de obra no qualificada. Porm, conforme aqui se discute, de forma alguma alterou a proposio cara perspectiva estruturalista e keynesiana de que a taxa de crescimento das exportaes depende crucialmente da elasticidade renda da demanda das exportaes e, portanto, do tipo de produto exportado. Antes de considerar as evidncias sobre as relaes entre crescimento e mudana da estrutura produtiva apontados nesta literatura, convm examinar algumas interpretaes sobre as conexes entre crescimento, exportaes e distribuio.

    Para Felipe e Lim (2005), uma estratgia de crescimento liderada pelas exportaes resulta em duas caractersticas: i) alto crescimento das exportaes, acompanhado por alto crescimento do PIB e da renda; e ii) aumento nas exportaes lquidas. Do mesmo modo, uma estratgia de crescimento baseada na demanda domstica ocorre com o crescimento desta acompanhada do crescimento do PIB e da renda e declnio nas exportaes lquidas. Quando a demanda domstica diminui, as exportaes lquidas aumentam e o crescimento do PIB positivo, a economia pode ser considerada como liderada pelas exportaes; se o crescimento do PIB negativo, a economia liderada pela demanda interna. Por fim, se tanto a demanda domstica quanto as exportaes lquidas crescem, o regime de crescimento poderia ser descrito como fracamente liderado pela demanda interna.

    15. Enquanto estratgia, o crescimento liderado pelas exportaes inclui tanto polticas industriais e de coordenao dos investimentos (especialmente sublinhadas nas anlises de Amsden, 2001) quanto polticas macroeconmicas de controle dos fluxos financeiros externos de forma a preservar a taxa real de cmbio. Para Palley (2011), a integrao na economia mundial, a taxa de cmbio desvalorizada e a supresso dos padres sociais e salariais so seus componentes essenciais. Na literatura corrente, as economias dinmicas da sia (como Coreia do Sul e Taiwan, ou Malsia, Tailndia, Indonsia e Filipinas, e agora a China) so normalmente identificadas como economias lideradas pelas exportaes de manufaturas. Este regime , em geral, contrastado com o que teria prevalecido na Amrica Latina e, at recentemente, em economias como a ndia, em que uma estratgia baseada no mercado interno voltada substituio de importaes teria predominado. Estas interpretaes, entretanto, no so de forma alguma autoevidentes, e h uma ampla controvrsia na literatura. Ver mais frente.

  • A Natureza Estrutural do Crescimento Econmico Recente em Economias em Desenvolvimento

    | 33

    Com base neste esquema, Felipe e Lim (2005) investigaram o regime de crescimento prevalecente na China, ndia, Coreia do Sul e nas Filipinas entre 1973-1983, 1983-1993 e 1993-2003 e calcularam a contribuio de cada componente do PIB para o seu crescimento obtido pelas respectivas taxas de crescimento ponderadas por seu peso relativo. Segundo as observaes deste estudo, com exceo das Filipinas, que em nenhum momento teve seu crescimento interno liderado pelas exportaes, nos demais pases as exportaes cresceram de forma articulada com os outros componentes da renda, ainda que com ritmos distintos. No ltimo perodo, o crescimento da demanda interna se fez acompanhar pelo crescimento tambm das exportaes lquidas. Com base neste trabalho, dificilmente a crise de 1997 (na Coreia do Sul, Tailndia e nas Filipinas) poderia ser explicada pela insuficincia de um crescimento liderado pelas exportaes.16 Alm disso, aps a crise, observa-se que em nenhum pas houve uma substituio das exportaes pela demanda interna como principal componente do crescimento. A principal concluso deste estudo que o melhor desempenho entre os pases asiticos ocorreu quando a demanda interna cresceu junto com as exportaes lquidas um crescimento fracamente liderado pela demanda interna. Esta a descrio sobre a estratgia que teria predominado na China e na ndia.

    Estudos sobre a ltima dcada, mas com classificaes distintas ou com foco na estrutura produtiva, concordam, refutam ou qualificam estas concluses. Como se observou nas tabelas 1 e 2, entre 2003-2011, nos pases examinados por Felipe e Lim (2005), as exportaes lquidas aumentaram apenas na China, afirmando-se a um regime fracamente liderado pela demanda interna; nos demais, ou permaneceram estveis como na Coreia do Sul, ou caram, o que denotaria, segundo esta metodologia, a presena de regimes liderados pela demanda interna.

    A principal crtica s metodologias seguidas neste e em estudos semelhantes a de que, devido extraordinria expanso do contedo importado das exportaes especialmente elevado nas cadeias produtivas, que se afirmou na economia mundial e, sobretudo, na sia , nem as exportaes sobre o PIB refletem de fato a contribuio destas para o crescimento, nem as exportaes lquidas expressam corretamente a dependncia da economia s exportaes, na medida em que todas as importaes (necessrias expanso interna da renda) so deduzidas das exportaes (Akyz, 2010). Deste modo, a forma mais adequada de estimar a contribuio das exportaes calcular o seu valor adicionado (das exportaes em termos do PIB; VAx/PIB) e, por meio das estimativas de insumo-produto, obter o multiplicador das exportaes sobre os demais componentes do PIB. Com base nesta metodologia, Akyz (2010) conclui que a contribuio das exportaes chinesas para o crescimento

    16. Tal como se observou anteriormente, a liberalizao financeira e o seu excesso de endividamento foram o vetor essencial desta crise (bem como das que sacudiram os demais pases perifricos nos anos 1990).

  • Insero Externa, Crescimento e Padres de Consumo na Economia Brasileira34 |

    do PIB manteve-se na ltima dcada (at a crise de 2008) em torno de 50% do PIB (muito superior razo encontrada em outros pases grandes), o que faria da China um caso de economia liderada pelas exportaes. A continuidade do crescimento na China passaria por uma mudana por meio de uma reestruturao industrial e distribuio de renda para um crescimento liderado pelo consumo.

    A metodologia proposta por Akyz (2010) traz o indiscutvel mrito de explicitar que o contedo importado das exportaes (e dos demais componentes do PIB), e no as exportaes lquidas ou as exportaes em relao ao PIB, que permite analisar a contribuio direta desta para o crescimento do PIB e, conse-quentemente, identificar os regimes de crescimento. Ademais, destaca a importncia dos efeitos de encadeamento (ainda que apenas por meio do consumo) para a anlise dos mecanismos do desenvolvimento. Isto particularmente importante na interpretao das trajetrias de crescimento das duas ltimas dcadas, caracterizadas por uma grande expanso do comrcio em bens intermedirios integrados verticalmente nas cadeias produtivas. Nestas, as conexes entre crescimento, exportaes e progresso tcnico que se afirmaram historicamente na Coreia do Sul e em Taiwan tornaram-se atualmente mais porosas, particularmente entre os pases asiticos da segunda gerao como Tailndia, Malsia, Indonsia, Filipinas, China e Vietn e no Mxico, no contexto latino-americano.

    A integrao destes pases nas cadeias de valor organizadas pelas empresas multinacionais se deu no apenas devido s estratgias nacionais, mas esta insero foi em grande parte condicionada pela estrutura produtiva prvia e pelos arranjos e dinmicas construdas pelas firmas japonesas, coreanas e de Taiwan, na sia, e dos Estados Unidos, sobretudo no caso do Mxico. Como as cadeias globais de valor so particularmente desenvolvidas na produo de automveis, equipamentos eletrnicos (principalmente na tecnologia de informao TI), mquinas eltricas, vesturio e qumica, a integrao dos pases da segunda gerao na produo de atividades de montagem de bens de consumo finais nestas indstrias decorreu, no caso asitico, das estratgias e da experincia prvia dos pases da primeira gerao, como o Japo, a Coreia do Sul e Taiwan, nestes setores. Como notado, a comear da China, os pases que se inseriram nestas cadeias de valor viram um crescente hiato entre salrio real e produtividade e, consequentemente, queda na parcela salarial. Se, por um lado, acirrou-se a concorrncia baseada no baixo custo em dlares do trabalho (e, consequentemente, na taxa real de cmbio), de outro, as possibilidades de crescer a partir das exportaes tornaram-se mais frgeis como eloquentemente demonstrado na experincia mexicana , devido aos vazamentos decorrentes das importaes de partes e componentes.

    De acordo com os dados da OECD (2013), em pases como Camboja, Malsia, Tailndia, Cingapura e diversos pases da Europa Central, o contedo de valor adicionado externo na demanda final excedia 25% do PIB em 2009; seguia um pouco

  • A Natureza Estrutural do Crescimento Econmico Recente em Economias em Desenvolvimento

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    abaixo, mas ainda com uma proporo muito alta a Coreia do Sul, Taiwan e o Mxico (em contraste com a baixa proporo observada na Indonsia, China, Argentina e no Brasil). Seguramente esta proporo crucialmente depende do peso das exportaes de manufaturados no PIB e do contedo importado destas. Na Coreia do Sul, em Taiwan, nas Filipinas, no Vietn e na Tailndia, a participao do valor adicionado externo nas exportaes foi superior a 40% em 2009.

    Tanto na Indonsia como na Tailndia (Medeiros e Reis, 2013), houve, na ltima dcada, significativa expanso das exportaes tradicionais, com maior contedo local, e, ao contrrio do que se deu no Mxico, houve tambm uma maior expanso dos investimentos e da demanda interna. Apesar das estratgias de diversificao produtiva e expanso autnoma da demanda domstica (como, por exemplo, a que se deu na China em contraste com a experincia mexicana), o resultado final, em termos do desempenho econmico dos pases exportadores de manufaturas, foi crescentemente inferior, nesta era de fragmentao das cadeias produtivas, ao historicamente observado entre a primeira gerao de pases asiticos.

    Como se observou em Medeiros, (2012b) e tambm em Felipe e Lim (2005), uma economia em que as exportaes possuem uma alta participao (como o caso da China) no necessariamente uma economia liderada pelas exportaes entendida como um regime em que a taxa de crescimento da renda interna guarda persistente relao com o seu crescimento. Isto historicamente se afirmou em diversos pases asiticos integrados nas cadeias produtivas industriais, mas no na China, cujo ciclo parece ter seguido mais de perto a taxa de investimento fortemente induzida pelas empresas estatais (Medeiros, 2012b). Na mesma dcada em que houve aumento das exportaes lquidas que se deram em um contexto de valorizao da taxa real de cmbio do renminbi em relao ao dlar e de forte elevao do salrio real e dos custos de trabalho (Ceglowsky e Golub, 2011) , afirmou-se na China um grande ciclo de investimentos em infraestrutura urbana e residencial, pondo em marcha um elevado circuito de emprego e renda, compensando a queda do emprego conectado s exportaes. Ao contrrio das exportaes, estes componentes possuem um contedo importado muito menor, e sua expanso, particularmente acentuada aps 2008, explica em grande parte a expanso econmica chinesa recente.17

    Do notvel contraste, em termos de crescimento econmico, entre a China e o Mxico resultou exatamente que, neste primeiro pas, a integrao nas cadeias produtivas constituiu uma das fontes de crescimento, ao lado da expanso do

    17. Discutiu-se em Medeiros (2012a) que um dos traos essenciais do ciclo expansivo chins da ltima dcada foi a simultnea elevao da taxa de salrio real, ainda que abaixo da produtividade (ILO, 2013), e a difuso dos modernos bens de consumo tanto nas cidades quanto no campo, em que pese o declnio observado no consumo das famlias na renda nacional. Os investimentos na indstria pesada levaram a uma grande mudana na estrutura produtiva, resultando em elevada demanda por importaes de matrias-primas e alimentos, com importantes impactos sobre a estratgia de acumulao e de diversificao das exportaes.

  • Insero Externa, Crescimento e Padres de Consumo na Economia Brasileira36 |

    mercado interno, puxado essencialmente por investimentos em infraestrutura e na indstria pesada (no integrada nas cadeias globais de valor). Este segundo componente, como amplamente descrito na literatura especfica, esteve inteiramente ausente no Mxico, onde a integrao nas cadeias produtivas ocorreu em meio a uma desintegrao das exportaes (da produo) com a economia domstica com cerca de 70% das exportaes de manufaturados sob o regime de maquiladoras (Moreno-Brid, Valdivia e Santamara 2005).

    A inexistncia de uma definio comumente aceita sobre regime de crescimento torna, entretanto, bastante arbitrria a sua utilizao na descrio das trajetrias de crescimento. Para Nagaraj (2013), a elevada taxa de crescimento observada na ndia na ltima dcada foi claramente um episdio de crescimento liderado pelas exportaes18 e, simultaneamente, tendo em vista a estrutura de seu financiamento, um crescimento liderado por dvida. O crescimento das exportaes se deu de forma combinada com uma forte expanso dos investimentos externos, sobretudo em comunicaes e em servios e atividades financeiras. Considerando o setor industrial, um estudo especial da UNCTAD (2012) discutiu precisamente a contribuio das exportaes para o elevado crescimento do produto industrial (7,8% entre 2000 e 2009) observado na ndia. Tendo em vista o crescimento duas vezes maior da taxa de crescimento das importaes sobre as exportaes industriais (21% contra 10,2% entre 2000-2009), a concluso deste relatrio baseado em testes economtricos foi a de que o crescimento industrial indiano foi liderado pela demanda interna.

    Jetin (2012) analisou, a partir de um esquema analtico kaleckiano, o regime de crescimento que teria predominado na Tailndia durante o perodo 1960-2009. De um modelo de crescimento inicialmente baseado na substituio de importaes, a Tailndia teria construdo, a partir de 1978, um regime de crescimento liderado pelas exportaes industriais intensivas em mo de obra, que se afirmou sobretudo depois de 1991, com a demolio do trabalho organizado, levando a forte represso dos trabalhadores (at as eleies de Thaksin em 2001). Nesta dcada e na seguinte, a parcela dos salrios cai sistematicamente (como observado na seo anterior) e recupera-se a lucratividade, decorrente especialmente de investimentos de modernizao. Segundo este estudo, o regime de crescimento que se afirmou nesta dcada baseou-se essencialmente no aumento das exportaes e declnio concomitante da demanda interna (decorrente da concentrao da renda).19

    18. Como se observou no critrio usado por Felipe e Lim (2