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Livro 3 | Volume 1 Internacional Brasileira: temas de política externa Inserção Projeto Perspectivas do Desenvolvimento Brasileiro

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  • Livro 3 | Volume 1

    Internacional Brasileira:temas de poltica externa

    Insero

    Projeto Perspectivas doDesenvolvimento Brasileiro

    da Democracia

    Desafios ao Desenvolvimento Brasileiro: contribuies do conselho de orientao do Ipea

    Trajetrias Recentes deDesenvolvimento: estudos de experincias internacionais selecionadas

    Insero Internacional Brasileira Soberana

    Macroeconomia para o Desenvolvimento

    Estrutura Produtiva e Tecnolgica Avanada e Regionalmente Integrada

    Infraestrutura Econmica, Social e Urbana

    Sustentabilidade Ambiental

    Proteo Social, Garantia de Direitos e Gerao de Oportunidades

    Fortalecimento do Estado, das Instituies e

    Perspectivas do Desenvolvimento Brasileiro

    Livro 1:

    Livro 2:

    Livro 3:

    Livro 4:

    Livro 5:

    Livro 6:

    Livro 7:

    Livro 8:

    Livro 9:

    Livro 10:

    O projeto Perspectivas do Desenvolvimento Brasileiro foi concebido tambm para dar concretude aos sete eixos temticos do desenvolvimento brasileiro, estabelecidos mediante processo intenso de discusses no mbito do programa de fortalecimento institucional em curso no Ipea. O conjunto de documentos derivados deste projeto o seguinte:

  • Insero Internacional Brasileira: temas de poltica externa

    Livro 3 Volume 1

  • Governo Federal

    Secretaria de Assuntos Estratgicos da Presidncia da Repblica Ministro Samuel Pinheiro Guimares Neto

    PresidenteMarcio Pochmann

    Diretor de Desenvolvimento InstitucionalFernando Ferreira

    Diretor de Estudos e Relaes Econmicas e Polticas InternacionaisMrio Lisboa Theodoro

    Diretor de Estudos e Polticas do Estado, das Instituies e da DemocraciaJos Celso Pereira Cardoso Jnior

    Diretor de Estudos e Polticas Macroeconmicas Joo Sics

    Diretora de Estudos e Polticas Regionais, Urbanas e AmbientaisLiana Maria da Frota Carleial

    Diretor de Estudos e Polticas Setoriais, de Inovao, Regulao e InfraestruturaMrcio Wohlers de Almeida

    Diretor de Estudos e Polticas SociaisJorge Abraho de Castro

    Chefe de GabinetePersio Marco Antonio Davison

    Assessor-chefe de Imprensa e ComunicaoDaniel Castro

    URL: http://www.ipea.gov.br Ouvidoria: http://www.ipea.gov.br/ouvidoria

    Fundao pbl ica v inculada Secretar ia de Assuntos Estratgicos da Presidncia da Repblica, o Ipea fornece suporte tcnico e institucional s aes governamentais possibilitando a formulao de inmeras polticas pblicas e programas de desenvolvimento brasi leiro e disponibi l iza, para a sociedade, pesquisas e estudos realizados por seus tcnicos.

  • Braslia, 2010

    Insero Internacional Brasileira: temas de poltica externa

    Livro 3 Volume 1

  • Insero internacional brasileira : temas de poltica externa / Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada. Braslia : Ipea, 2010.v.1 (536 p.) : grfs., mapas, tabs. (Srie Eixos Estratgicos

    do Desenvolvimento Brasileiro ; Insero Internacional Brasileira Soberana ; Livro 3)

    Inclui bibliografia.Projeto Perspectivas do Desenvolvimento Brasileiro. ISBN 978-85-7811-059-8

    1. Poltica Internacional. 2. Brasil. I. Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada. II. Srie.

    CDD 327.81

    Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada ipea 2010

    ProjetoPerspectivas do Desenvolvimento Brasileiro

    Srie Eixos Estratgicos do Desenvolvimento Brasileiro

    Livro 3 Insero Internacional Brasileira Soberana

    Volume 1Insero Internacional Brasileira: temas de poltica externa

    Organizadores/EditoresLuciana AciolyMarcos Antonio Macedo Cintra

    Equipe TcnicaJos Celso Pereira Cardoso Jr. (Coordenao)Luciana AciolyMarcos Antonio Macedo Cintra Aline Regina Alves MartinsRodrigo Pimentel Ferreira LeoDaisy Magalhes Soares

    permitida a reproduo deste texto e dos dados nele contidos, desde que citada a fonte. Reprodues para fins comerciais so proibidas.

  • SUMRIO

    APRESENTAO ................................................................................7

    AGRADECIMENTOS ..........................................................................11

    INTRODUOINSERO INTERNACIONAL BRASILEIRA: TEMAS DE POLTICA EXTERNA ...15

    CAPTUlO 1EVOLUO GEOPOLTICA: CENRIOS E PERSPECTIVAS ..............................23

    CAPTUlO 2BRASIL E AMRICA DO SUL: O DESAFIO DA INSERO INTERNACIONAL ...87

    CAPTUlO 3RELAES BRASIL ESTADOS UNIDOS ....................................................117

    CAPTUlO 4O BRASIL E O MULTILATERALISMO CONTEMPORNEO ............................159

    CAPTUlO 5O BRASIL NA GOVERNANA DAS GRANDES QUESTES AMBIENTAIS CON-TEMPORNEAS ........................................................................................181

    CAPTUlO 6O ACORDO SOBRE OS ASPECTOS DOS DIREITOS DE PROPRIEDADE INTELECTUAL RELACIONADOS AO COMRCIO (TRIPS): IMPLICAES E POSSIBILIDADES PARA A SADE PBLICA NO BRASIL ...........................227

    CAPTUlO 7ACORDO DE INVESTIMENTO RELACIONADO AO COMRCIO (TRIMS): ENTRAVES S POLTICAS INDUSTRIAIS DOS PASES EM DESENVOLVIMENTO ................................................................................245

    CAPTUlO 8INTEGRANDO DESIGUAIS: ASSIMETRIAS ESTRUTURAIS E POLTICAS DE INTEGRAO NO MERCOSUL ..................................................................277

    CAPTUlO 9ARRANJO INSTITUCIONAL PARA FORMULAO E IMPLEMENTAO DA POLTICA EXTERNA NO BRASIL ..........................................................327

  • CAPTUlO 10MILITARES E POLTICA NO BRASIL ............................................................361

    CAPTUlO 11A PRESENA BRASILEIRA NAS OPERAES DE PAZ DAS NAES UNIDAS .. 407

    CAPTUlO 12ALM DA AUTOSSUFICINCIA O BRASIL COMO PROTAGONISTA NO SETOR ENERGTICO ...........................................................................441

    NOTAS BIOGRFICAS .....................................................................521

    GlOSSRIO DE SIGlAS ..................................................................525

  • APRESENTAO

    com imensa satisfao e com sentimento de misso cumprida que o Ipea entrega ao governo e sociedade brasileira este conjunto amplo, mas obvia-mente no exaustivo de estudos sobre o que tem sido chamado, na ins-tituio, de Eixos Estratgicos do Desenvolvimento Brasileiro. Nascido de um grande projeto denominado Perspectivas do Desenvolvimento Brasileiro, este objetivava aglutinar e organizar um conjunto amplo de aes e iniciativas em quatro grandes dimenses: i) estudos e pesquisas aplicadas; ii) assessoramento governamental, acompanhamento e avaliao de polticas pblicas; iii) treina-mento e capacitao; e ivagora plenamente com a publicao desta srie de dez livros apresentados em 15 volumes independentes , listados a seguir:

    Conselho de Orientao do Ipea publicado em 2009

    Livro 2 Trajetrias Recentes de Desenvolvimento: estudos de experi-ncias internacionais selecionadas publicado em 2009

    Livro 3 Insero Internacional Brasileira Soberana

    - Volume 1 Insero Internacional Brasileira: temas de pol-tica exterma

    - Volume 2 Insero Internacional Brasileira: temas de eco-nomia internacional

    Livro 4 Macroeconomia para o Desenvolvimento

    - Volume nico Macroeconomia para o Desenvolvimento: cresci-mento, estabilidade e emprego

    Livro 5 Estrutura Produtiva e Tecnolgica Avanada e Regional-mente Integrada

    - Volume 1 Estrutura Produtiva Avanada e Regionalmente Inte-

    - Volume 2 Estrutura Produtiva Avanada e Regionalmente Inte-grada: diagnstico e polticas de reduo das desigualdades regionais

  • Insero Internacional Brasileira: temas de poltica externa8

    Livro 6 Infraestrutura Econmica, Social e Urbana

    - Volume 1 Infraestrutura Econmica no Brasil: diagnsticos e perspectivas para 2025

    - Volume 2 Infraestrutura Social e Urbana no Brasil: subsdios para uma agenda de pesquisa e formulao de polticas pblicas

    Livro 7 Sustentabilidade Ambiental

    - Volume nico Sustentabilidade Ambiental no Brasil: biodiversi-dade, economia e bem-estar humano

    Livro 8 Proteo Social, Garantia de Direitos e Gerao de Oportunidades

    - Volume nico Perspectivas da Poltica Social no Brasil

    Livro 9 Fortalecimento do Estado, das Instituies e da Democracia

    - Volume 1 Estado, Instituies e Democracia: repblica

    - Volume 2 Estado, Instituies e Democracia: democracia

    - Volume 3 Estado, Instituies e Democracia: desenvolvimento

    Livro 10 Perspectivas do Desenvolvimento Brasileiro

    Organizar e realizar tamanho esforo de reflexo e de produo editorial apenas foi possvel, em to curto espao de tempo aproximadamente dois anos de intenso trabalho contnuo , por meio da competncia e da dedicao institucional dos servidores do Ipea (seus pesquisadores e todo seu corpo funcional administrativo), em uma empreitada que envolveu todas as reas da Casa, sem exceo, em diversos estgios de todo o processo que sempre vem na base de um trabalho deste porte.

    , portanto, a estes dedicados servidores que a Diretoria Colegiada do Ipea primeiramente se dirige em reconhecimento e gratido pela demonstrao de esprito pblico e interesse incomum na tarefa sabidamente complexa que lhes foi confiada, por meio da qual o Ipea vem cumprindo sua misso institucional de produzir, articular e disseminar conhecimento para o aperfeioamento das polticas pblicas nacionais e para o planejamento do desenvolvimento brasileiro.

    Em segundo lugar, a instituio torna pblico, tambm, seu agradecimento a todos os professores, consultores, bolsistas e estagirios contratados para o projeto, bem como a todos os demais colaboradores externos voluntrios e/ou servidores de outros rgos e outras instncias de governo, convidados a compor cada um dos documentos, os quais, por meio do arsenal de viagens, reunies, seminrios, debates, textos de apoio e idas e vindas da reviso editorial, enfim puderam chegar a bom termo com todos os documentos agora publicados.

  • Apresentao 9

    Estiveram envolvidas na produo direta de captulos para os livros que tratam explicitamente dos sete eixos do desenvolvimento mais de duas centenas de pessoas. Para este esforo, contriburam ao menos 230 pessoas, mais de uma centena de pesquisadores do prprio Ipea e outras tantas pertencentes a mais de 50 instituies diferentes, entre universidades, centros de pesquisa, rgos de governo, agncias internacionais etc.

    A Comisso Econmica para a Amrica Latina e o Caribe (Cepal) slida parceira do Ipea em inmeros projetos foi aliada da primeira ltima hora nesta tarefa, e ao convnio que com esta mantemos devemos especial gratido, certos de que os temas do planejamento e das polticas para o desenvolvimento temas estes to caros a nossas tradies institucionais esto de volta ao centro do debate nacional e dos circuitos de deciso poltica governamental.

    Temos muito ainda que avanar rumo ao desenvolvimento que se quer para o Brasil neste sculo XXI, mas estamos convictos e confiantes de que o material que j temos em mos e as ideias que j temos em mente se constituem em ponto de partida fundamental para a construo deste futuro.

    Boa leitura e reflexo a todos!

    Marcio Pochmann Presidente do Ipea

    Diretoria ColegiadaFernando Ferreira

    Joo SicsJorge Abraho

    Jos Celso Cardoso Jr.Liana Carleial

    Mrcio WohlersMrio Theodoro

  • AGRADECIMENTOS

    Esta publicao, nos dois volumes que a compem, busca uma reflexo sobre a poltica externa e a insero internacional da economia brasileira. Fruto da ousa-dia de vrios autores e colaboradores nas mais diversas tarefas, estes merecem receber os devidos agradecimentos.

    Em primeiro lugar, o livro jamais existiria sem a deciso, instigada pelo prprio presidente do Ipea, Marcio Pochmann, ainda em fins de 2007, e com-partilhada por seus diretores, Fernando Ferreira, Joo Sics, Jorge Abraho, Jos Celso Pereira Cardoso Junior, Mrcio Wohlers, Mrio Lisboa Theodoro e Liana Carleial, de inaugurar um processo de revitalizao institucional no instituto.

    Em segundo lugar, no se pode deixar de mencionar a atual Diretoria de Estudos e Relaes Econmicas e Polticas Internacionais (Deint) do Ipea, que mobilizou esforos no desprezveis para garantir toda a logstica das atividades que suportaram a realizao do projeto, bem como as bolsas de pesquisa do Pro-grama de Pesquisa para o Desenvolvimento Nacional (PNPD) do Ipea, com as quais foram financiadas algumas das pesquisas cujos relatrios esto reunidos nos volumes deste livro. Tampouco se pode deixar de mencionar a participao tc-nica da Comisso Econmica para a Amrica Latina e o Caribe (Cepal), particu-larmente do ento diretor Renato Baumann, o qual, por meio do convnio Ipea/Cepal, ajudou a financiar outra parte dos estudos destinados ao livro.

    Em terceiro lugar, cumpre mencionar crditos aos demais colaboradores que participaram diretamente na elaborao dos captulos, contribuindo efetivamente para a realizao desta obra.

    No que diz respeito ao volume 1 composto de 12 artigos o captulo 1, Evoluo geopoltica: cenrios e perspectivas, contou com a colaborao de Sebas-tio C. Velasco e Cruz. No captulo 2, Brasil e Amrica do Sul: o desafio da insero internacional, contribuiu Jos Lus da Costa Fiori. Tullo Vigevani colaborou com a elaborao do captulo 3: Relaes Brasil Estados Unidos. O captulo 4, O Brasil e o multilateralismo contemporneo contou com o apoio de Flavia de Campos Mello. Ana Flvia Barros-Platiau participou da elaborao do captulo 5: O Bra-sil na governana das grandes questes ambientais contemporneas. O captulo 6, O Acordo sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comrcio (TRIPS): implicaes e possibilidades para a sade pblica no Brasil, con-tou com o apoio de Andr de Mello e Souza. No captulo 7, Acordo de Investimen-tos Relacionados ao Comrcio (TRIMS): entraves s polticas industriais dos pases em desenvolvimento, contribuiu Samo Srgio Gonalves. O captulo 8, Integrando

  • Insero Internacional Brasileira: temas de poltica externa12

    desiguais: assimetrias estruturais e polticas de integrao no Mercosul, foi elaborado com a cooperao de Andr de Mello e Souza, Ivan Tiago Machado Oliveira e Samo Srgio Gonalves. Priscila Spcie, Elaini Cristina Gonzaga da Silva e Denise Cristina Vitale Ramos Mendesparticiparam da elaborao do captulo 9: Arranjo institucional para formulao e implementao da poltica externa no Brasil. Para a organizao do captulo 10, Militares e a poltica no Brasil, colaborou Antonio Jorge Ramalho da Rocha. O captulo 11, A presena brasileira nas operaes de paz das Naes Unidas, contou com o suporte de Fernanda Lira Gos e Almir Oli-veira Junior. J o captulo 12, Alm da autossuficincia: o Brasil como protagonista mundial no setor energtico, foi elaborado com a cooperao de Pedro Silva Barros, Giorgio Romano Schutte e Luiz Fernando Sann Pinto, Igor Fuser e Solange Reis.

    Quanto ao volume 2, que conta com mais 13 artigos. O captulo 1, Crise financeira e reformas da superviso e regulao, teve a colaborao de Maryse Farhi. Ricardo Carneiro contribuiu para a elaborao do captulo 2: O sistema monetrio-financeiro internacional: evoluo recente e impactos da crise. O cap-tulo 3, O eixo sino-americano e a insero externa brasileira: antes e depois da crise, contou com o apoio de Eduardo Costa Pinto. No captulo 4, Mudanas estrutu-rais na economia global: produo e comrcio, cooperou Antonio Carlos Macedo e Silva. O captulo 5, O Brasil e a integrao na Amrica do Sul: iniciativas para o financiamento externo de curto prazo, teve a participao de Andr Martins Bian-careli. Reinaldo Gonalves cooperou com a elaborao do captulo 6: Impacto do investimento estrangeiro direto sobre renda, emprego, finanas pblicas e balano de pagamentos. O captulo 7, Investimento direto e internacionalizao de empresas brasileiras no perodo recente, contou com a colaborao de Celio Hiratuka e de Fernando Sarti. O captulo 8, A internacionalizao dos bancos brasileiros, teve o suporte de Maria Cristina Penido de Freitas. Para a elaborao do captulo 9, A insero do Brasil em um mundo fragmentado: uma anlise da estrutura de comrcio exterior brasileiro, houve a colaborao de Marta dos Reis Castilho. O captulo 10, Qualidade e diferenciao das exportaes brasileiras e chinesas: evoluo recente no mercado mundial e na Aladi, teve o apoio de Celio Hiratuka e de Samantha Cunha. No captulo 11, Impactos sistmicos do padro de especializao exportador brasileiro: uma abordagem em Equilbrio Geral Aplicado, cooperaram Eduardo Amaral Haddad e Daniel da Silva Grimaldi. O captulo 12, Liberalizao do comrcio de servios: o caso do setor de telecomunicaes no Brasil, contou com o suporte de Honrio Kume, de Guida Piani e de Pedro Miranda. E, finalmente, Daniel da Silva Grimaldi e Flvio Lyrio Carneiro colaboraram com a organizao do captulo 13: Avaliao de polticas pblicas de promoo de exportao: uma anlise de microdados para o BNDES-Exim, Proex e Drawback entre 2003 e 2007.

    Em quarto lugar, preciso agradecer ao conjunto de colaboradores que participaram da estruturao do projeto que resultou neste livro, por meio de

  • Agradecimentos 13

    leitura, comentrios, debate, auxlio pesquisa e reviso dos artigos, bem como do suporte tcnico e logstico necessrio a tal empreitada. A Milko Matijascic por ter participado do projeto inicial, atuando na definio dos temas tratados nesta publicao e construindo a interlocuo direta com vrios autores. Daisy Magalhes Soares e Michelle Sassaki se agradece pelo apoio no campo adminis-trativo e logstico. Aline Regina A. Martins, Flvia Sandriany de Castro, Samira Schatzmann e ao Rodrigo P. Ferreira Leo est-se grato pelo apoio no processo de leitura, reviso, debate e validao dos textos de cada autor. Tambm cabe ressaltar a intensa colaborao de todo o corpo tcnico da Deint por meio de debates peridicos sobre os captulos do livro, o que permitiu uma viso mais ampla e de conjunto dos temas abordados. Igualmente, os editores destacam a contribuio de Ana Maria Barufi, Andr Rego Viana, Andrs Ferrari, Antnio Philipe de Moura Pereira, Bruno Poses, Cristina Reis, Fernanda De Negri, James Augusto Pires Tiburcio, Jonas Medeiros, Keiti da Rocha Gomes, Kelly Ferreira, Marcelo Dias, Maria Claudia Vater, Ricardo R. Terra, Rrion Melo, Srvulo Vicente Moreira, Sinclair Guerra, Thiago Arajo e, por fim, da Subsecretaria de Energia do Ministrio das Relaes Exteriores.

    A todos os colaboradores a equipe editorial reitera os mais profundos e sin-ceros agradecimentos, certos de que suas contribuies, sempre crticas e instigan-tes, compem, de forma sequenciada ao longo deste volume, um roteiro profcuo retomada do debate sobre as perspectivas da insero internacional brasileira.

  • INTRODUO

    INSERO INTERNACIONAl BRASIlEIRA: TEMAS DE POlTICA EXTERNA

    A primeira dcada do sculo XXI foi marcada pela dinmica extraordinria de crescimento entre 2003 e 2007, pela crise financeira sistmica do quarto tri-mestre de 2008 e pela rpida recuperao do crescimento econmico dos pases em desenvolvimento. Esses fenmenos histricos diferenciados vm sinalizando modificaes estruturais no sistema econmico e poltico internacional, como resultado da configurao de uma nova diviso internacional do trabalho dada pela dinmica da globalizao financeira e produtiva e da alterao de posies relativas de determinados Estados nacionais. Estados nacionais que buscam acu-mular poder poltico e econmico na arena internacional, que persiste altamente concentrado, especialmente nos Estados Unidos que ainda detm 23% do produto interno bruto (PIB) global e de 42% das despesas militares do mundo.

    A despeito da elevada concentrao e hierarquizao do poder e da riqueza, a nova diviso internacional do trabalho cria condies para a emergncia de novos agentes representativos no sistema internacional, tais como Brasil, ndia, Rssia, frica do Sul e especialmente a China. A crise internacional de 2008 parece no ter interrompido esse processo, mas sim reforado as tendncias em curso.

    Nesse sentido, o sistema mundial encontra-se em um ponto de inflexo histrica em que convivem mltiplas dimenses econmico-produtivas e de orga-nizao da ordem internacional. Mais especificamente sobre este ltimo aspecto, verifica-se que a governana global ainda permanece unipolar, dado o poder mili-tar e econmico moeda de curso internacional dos Estados Unidos, s que essa unipolaridade parece estar caminhando para uma bipolaridade em virtude da acelerada ascenso chinesa. Para aumentar ainda mais a complexidade e as contradies da conjuntura histrica do sistema mundial, observam-se ensaios embrionrios de multipolaridade. Para o presidente do Banco Mundial, Robert Zoellick (2010, p. 174), o aumento do poder econmico dos pases em desenvol-vimento exigir uma Nova Geopoltica de Economia Multipolar.1

    preciso destacar que nessa fase histrica (de bifurcaes) que os agentes do sistema (Estados nacionais) podem criar opes capazes de modificar o seu

    1. Ver, tambm, Garcia (2010).

  • Insero Internacional Brasileira: temas de poltica externa16

    ambiente, bem como as suas posies hierrquicas, em virtude do poder eco-nmico e poltico e, consequentemente, das estratgias de ao desses agentes na arena global. Nessas realidades emergem oportunidades para mudanas de posies relativas, ao mesmo tempo que surgem ameaas potenciais, geralmente de mdio e longo prazo, que se no forem contra-arrestadas podem gerar efeitos deletrios no futuro.

    Pelo lado das oportunidades, o Brasil vem conseguindo extrair dividendos econmicos e polticos associados: i) reduo de sua vulnerabilidade externa fruto do crescimento das exportaes e da melhora dos termos de troca dos flu-xos de comrcio exterior, permitindo a acumulao de reservas internacionais, reduzindo as restries externas ao crescimento e possibilitando a consecuo de polticas pblicas voltadas ao desenvolvimento econmico e social; ii) a uma insero internacional mais ativa vinculada maior participao relativa nas arenas de deliberaes globais (G-20 comercial, G-20 financeiro, reformas das instituies multilaterais, regras e normas ambientais etc.); iii) a uma maior arti-culao comercial, produtiva e poltica com os pases que compem o novo eixo Sul Sul do desenvolvimento mundial (sia, frica e Amrica do Sul); e iv) ampliao da cooperao tcnica para o desenvolvimento, sobretudo com os pases latino-americanos e africanos.

    Pelo lado das ameaas, as mudanas na diviso internacional do trabalho tendem a ampliar as presses competitivas do setor manufatureiro asitico, parti-cularmente do chins, sobre os parques industriais mais complexos de economias em desenvolvimento, sobretudo, o brasileiro, o argentino e o mexicano. Essa nova dinmica mundial tem gerado uma fora atrativa que puxa a pauta exportadora brasileira para uma reprimarizao relativa que, se levada ao extremo, pode gerar uma especializao regressiva da estrutura industrial, com queda significativa da produo industrial domstica de alta intensidade tecnolgica.

    O embaixador Antonio Patriota (2010, p. 21) deixa evidente a importncia de se delinear uma estratgia de atuao do Brasil no sistema internacional, em contexto histrico em mutao:

    (...) so oportunidades histricas que no surgem a cada gerao. O desafio que se apresenta ao Brasil o de, por um lado, compreender adequadamente o sentido dessas oportunidades e, por outro, posicionar-se no cenrio emergente de forma a conjugar interesses nacionais com o objetivo abrangente de construo de uma ordem internacional mais justa.

    Nesse sentido, faz-se necessrio discutir a insero internacional brasileira, no contexto de transformaes estruturais do sistema internacional dinmica da globalizao financeira e produtiva e o seu papel para o desenvolvimento

  • Insero Internacional Brasileira: temas de poltica externa 17

    nacional. Essa discusso remete compreenso dos instrumentos de que dispe o Estado brasileiro para realizar a sua poltica externa, ao mesmo tempo que esta fortemente influenciada pelas transformaes econmicas e polticas do sistema internacional. Com isso, o tema da poltica e da economia internacional tem ganhado centralidade no debate brasileiro e o Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada (Ipea) busca contribuir para esta discusso por meio da criao de uma nova Diretoria de Estudos em Relaes Econmicas e Polticas Internacionais (Deint) e do projeto Perspectivas do Desenvolvimento Brasileiro.

    Este livro Insero internacional brasileira , composto por dois volumes, que compem esta srie, pretende analisar a insero externa do pas, em contexto de importantes modificaes na dinmica de acumulao de poder poltico e econmico do sistema mundial, que podem ser evidenciadas a partir da anlise do movimento da globalizao financeira e produtiva e da atuao internacional do governo e dos agentes privados. A ideia que emerge da interpretao da ampla gama de temas de poltica e de economia global apresentados no conjunto de captulos do volume I (Temas de poltica externa) e volume II (Temas de econo-mia internacional) deste livro que a insero internacional brasileira no pode ser explicada apenas pela poltica externa do Estado brasileiro, j que, em boa medida, as mudanas na poltica externa s se tornam possveis em contexto de significativas transformaes econmicas e polticas do sistema mundial. Neste sentido, os volumes I e II so dimenses no estanques da insero internacional brasileira que se interpenetram e retroalimentam.

    Este volume est organizado em 12 captulos e procura discutir questes relacionadas s vrias dimenses da ao internacional do pas. Os temas abor-dados oferecem amplo quadro analtico das questes que influenciam a presena do Brasil no mundo, como as tendncias da geopoltica mundial, a participao do pas nos acordos bilaterais e multilaterais e nos vrios fruns mundiais, seu papel na integrao sul-americana, sua relao com os Estados Unidos, a par-ticipao em misso de paz da Organizao das Naes Unidas (ONU), entre outros. A ideia central que fundamenta essa tarefa a construo de uma agenda de pesquisa e de proposies de polticas a partir das reflexes oferecidas por estes trabalhos, cuja sntese apresentada a seguir.

    O captulo 1, Evoluo geopoltica, cenrio e perspectivas, faz um balano do cenrio internacional no perodo recente, destacando trs acontecimentos: a crise financeira global, o relativo malogro da Rodada Doha e a reao da Rssia ao ata-que do exrcito georgiano que elevou os nimos dos dirigentes americanos. Trata-se de examinar cada um desses acontecimentos e procurar responder, por meio do esboo de quadro interpretativo, que significado essas ocorrncias tm: so de importncia indiscutvel, mas de alcance limitado? Ou manifestaes visveis de

  • Insero Internacional Brasileira: temas de poltica externa18

    mudanas profundas, marcos inauguradores de uma nova etapa histrica? Como aquilatar suas implicaes? Quais os seus desdobramentos provveis? Para exe-cutar essa tarefa, so apresentadas as dimenses fundamentais da rearticulao do sistema internacional ocorrida no fim do sculo XX e incio do sculo XXI, discutida a questo da multipolaridade e so delineados alguns cenrios. Alm do mais, so discutidas questes-chave sobre a reconfigurao do poder mundial e a direo tomada pela conduta internacional dos Estados Unidos nesse contexto e seus desdobramentos, inclusive na crise de 2008.

    O captulo 2, Brasil e Amrica do Sul: o desafio da insero internacional, busca identificar a partir de uma abordagem de longo prazo as principais ten-dncias, mudanas, desafios e alternativas do Brasil e da Amrica do Sul, no incio do sculo XXI. A proposta do texto trazer para o debate a dinmica das relaes entre o Brasil e a Amrica do Sul, discutindo temas, tais como: as mudanas da estratgia e da ordem americana aps a crise de 1971-1973 e o aumento do ativismo militar e diplomtico desse pas; a ampliao da participao econmica da China no perodo recente; as possibilidades e as escolhas da Amrica do Sul e do Brasil no cenrio internacional hodierno; as posies do Brasil e suas relaes com as demais potncias continentais (Rssia, ndia e China); e por fim, a vocao natural e o projeto de potncia do Brasil.

    O captulo 3, Relaes Brasil Estados Unidos, discute as questes polti-cas nas relaes entre o Brasil e os Estados Unidos, assinalando a importncia dessas relaes, ao mesmo tempo que o papel dos Estados Unidos no mundo tem sido relativizado ou questionado pelo crescimento de outros plos de poder, particularmente no campo econmico. O texto descreve essas mudanas, concen-trando o foco nos aspectos comerciais e econmicos do ponto de vista brasileiro. A interpretao central do artigo que os Estados Unidos so muito importantes para o mundo e para o Brasil, mas h uma tendncia lenta, de longo prazo, para a recomposio de certo equilbrio global. O Brasil seus governos, seus atores econmicos e sociais, e o Estado percebe essa importncia e atua considerando esse cenrio de mudanas econmicas e polticas, que se evidencia desde o incio dos anos 1990, em que as relaes entre os dois pases so profcuas, porm com o reconhecimento da existncia de diferentes interesses.

    O captulo 4, O Brasil e o multilateralismo contemporneo, examina a emer-gncia do pas nas arenas econmicas e polticas globais, seu papel em negociaes como as da Rodada Doha e sua insero em foros restritos como o G-20 finan-ceiro, argumentando que essa atuao traz desafios significativos ao multilate-ral da diplomacia brasileira. No atual contexto, de avaliaes acerca das perspec-tivas do multilateralismo, de fundamental importncia a reflexo prospectiva dos possveis posicionamentos do Brasil nas principais instncias da governana

  • Insero Internacional Brasileira: temas de poltica externa 19

    mundial, uma vez que, em diversas arenas internacionais, o multilateralismo de cunho universalista defronta-se com dificuldades e limites expressos em temticas e foros variados. Entre esses, podem-se destacar as negociaes da Rodada Doha na Organizao Mundial do Comrcio (OMC), sobre mudanas climticas e sobre a reforma do sistema financeiro internacional. H que se levar em conta, tambm, os riscos da tendncia ao multilateralismo seletivo expresso em arranjos como o G-20 e suas implicaes para as estratgias de atuao internacional de pases intermedirios como o Brasil.

    O captulo 5, O Brasil na governana das grandes questes ambientais contem-porneas, procura mostrar a crescente importncia do tema ambiental na agenda brasileira, levantando a questo sobre o papel do Brasil, como pas emergente, na governana das questes ambientais. Argumenta-se que tanto o contexto internacional que demanda uma participao mais ativa de pases emergentes, por serem detentores de responsabilidade futura como a poltica externa per-mitem ao pas desempenhar uma funo relevante nas negociaes multilaterais ambientais contemporneas, ainda que alguns temas se apresentem mais acess-veis do que outros. Assim, no regime internacional do clima, o Brasil tem um papel crescente, ao passo que em outros, como o Acesso a Recursos Genticos e Benefcios deles Advindos (ABS) e nos regimes de guas, sua posio mais frgil.

    O captulo 6, O Acordo sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelec-tual Relacionados ao Comrcio (TRIPS): implicaes e possibilidades para a sade pblica no Brasil, debate as principais implicaes do acordo TRIPS acordo multilateral sobre os direitos de propriedade intelectual para a sade pblica brasileira, em particular, seus rebatimentos no programa nacional de combate ao HIV/AIDS. So discutidos, tambm, os esforos do Brasil para flexibilizar os direitos de patente no mbito da OMC. Ademais, so tecidas consideraes sobre como o pas pode melhor explorar as opes oferecidas pelo acordo para atender as suas necessidades de sade pblica e promover mais cooperao Sul Sul nesta rea.

    O captulo 7, Acordo de Investimentos Relacionados ao Comrcio (TRIMS): entraves s polticas industriais dos pases em desenvolvimento, tem por finalidade analisar o acordo TRIMS, no regime de comrcio internacional, cujo objetivo disciplinar uma srie de polticas de incentivo elaboradas pelos Estados para as empresas transnacionais, exigindo delas contrapartidas de desempenho por exemplo, metas de exportaes , como modo de promover suas polticas indus-triais e de comrcio exterior. O texto procura mostrar que o acordo reflete, em suas disposies, a assimetria de poder existente entre os pases negociadores, constituindo-se em acordo desfavorvel aos pases em desenvolvimento. Aps a assinatura do TRIMS, no fim da Rodada Uruguai (1986-1995), houve reduo

  • Insero Internacional Brasileira: temas de poltica externa20

    no espectro de opes disponveis aos pases em desenvolvimento para promover polticas pblicas, particularmente, as polticas industriais e de comrcio exterior.

    O captulo 8, Integrando desiguais: assimetrias estruturais e polticas de inte-grao no Mercosul, tem como objetivo discutir as assimetrias existentes entre os pases que constituem o Mercado Comum do Sul (Mercosul) Argentina, Brasil Paraguai e Uruguai e as principais polticas adotadas para o seu enfrentamento. Sabe-se que os processos de integrao regional envolvem, por definio, dimi-nuio voluntria da autonomia dos Estados-membros na adoo de polticas, com a finalidade da obteno de benefcios econmicos e/ou poltico-estratgi-cos. Contudo, a distribuio desses benefcios sempre desigual e, geralmente, h regies subnacionais e/ou setores produtivos que so prejudicados com o processo de integrao. Isto verdade, particularmente em contextos de profundas assime-trias entre os Estados-membros e suas regies, como o caso do Mercosul. Nessa direo, o texto realiza, de um lado, o diagnstico das chamadas assimetrias estruturais existentes entre os pases do bloco dimenso econmica, posio geogrfica, dotao de fatores, acesso infraestrutura regional, qualidade institu-cional e patamar de desenvolvimento dos Estados-membros e, de outro lado, o exame das polticas de fortalecimento do bloco, apontando algumas propostas para seu aprimoramento.

    O captulo 9, Arranjo institucional para formulao e implementao da poltica externa no Brasil, mostra que os desafios a serem enfrentados pela poltica externa brasileira como resultado do crescente papel que o Brasil tem ocupado no cen-rio mundial requerem discusso sobre o novo arranjo no processo decisrio para formulao e execuo da poltica externa. Esse novo quadro institucional pode ser evidenciado pela horizontalizao ou descentralizao horizontal desse processo decisrio no prprio Poder Executivo, a partir do momento em que o Ministrio das Relaes Exteriores deixa de atuar isoladamente na conduo desta poltica outros rgos passaram a assumir esta responsabilidade. Essa discusso traz luz no apenas a dinmica decisria da poltica externa brasileira, como tambm aponta suas potencialidades e seus desafios, em termos de coordenao e de criao de mecanismos de participao mais slidos das diferentes instituies.

    O captulo 10, Militares e a poltica no Brasil, parte do entendimento de que o exame de aspectos relevantes da insero internacional brasileira no pode des-considerar o papel das Foras Armadas que vai alm do regime militar (1964-1985). Em funo disso, busca-se examinar a evoluo do arcabouo institucional e normativo que serviu para estruturar, nas ltimas dcadas, a rea de segurana e defesa nacional do pas. Para alcanar esse objetivo, analisa-se a Poltica Nacional de Defesa e o contexto em que ela foi elaborada, visto, sobretudo, do ngulo das relaes entre civis e militares. Trata-se, ainda, de explicitar as mudanas que a

  • Insero Internacional Brasileira: temas de poltica externa 21

    antecederam e o marco institucional em que a Estratgia Nacional de Defesa se insere, alm de descrever um conjunto de aspectos que tratam da institucionali-zao dessas polticas no futuro prximo.

    O captulo 11, A presena brasileira nas operaes de paz das Naes Unidas, tem como propsito discutir a participao do Brasil em misses de paz da ONU, enquanto poltica de Estado. A experincia brasileira nessas operaes traz a possi-bilidade de se indagar se h um padro histrico de contribuio do pas e avaliar de forma sistemtica de que modo o envio de observadores e tropas s misses das Naes Unidas so condizentes com as diretrizes da poltica externa do pas. Essa anlise ganha ainda mais relevncia quando se tem em conta que a Poltica Nacio-nal de Defesa, estabelecida em 2005 e consubstanciada no documento Estratgia Nacional de Defesa, explicita a necessidade da preparao das Foras Armadas brasileiras para a assuno de responsabilidades crescentes em misses de paz.

    O captulo 12, Alm da autossuficincia: o Brasil como protagonista no setor energtico, ao levar em conta a centralidade da segurana energtica para o desen-volvimento nacional e o potencial do pas como produtor e exportador de recur-sos de grande valor estratgico, procura avaliar as trs principais fontes de energia com capacidade de alavancar maior participao do Brasil no mercado energtico mundial: petrleo, biocombustvel e energia nuclear. No cabe dvida de que, entre os temas da agenda geopoltica mundial neste incio do sculo XXI, a ener-gia ocupa posio central, tanto devido s restries na oferta de petrleo e ao crescimento econmico intensivo em energia com destaque para o desempenho extraordinrio dos pases emergentes , como devido ao seu impacto nas mudan-as climticas. Nesse contexto, questionam-se e discutem-se os desafios que o Brasil deve enfrentar para ampliar sua presena no mercado mundial de energia.

  • Insero Internacional Brasileira: temas de poltica externa22

    REFERNCIAS

    GARCIA, M. A. O lugar do Brasil no mundo: a poltica externa em um momento de transio. In: SADER, E.; GARCIA, M. A. Brasil entre o passado e o futuro. So Paulo: Boitempo/FPA, 2010.

    PATRIOTA, A. A. O Brasil no incio do sculo XXI: uma potncia emergente voltada para a paz. Poltica Externa, So Paulo, Paz & Terra, v. 19, n. 1, p. 19-25, jun./jul./ago. 2010.

    ZOELLICK, R. O fim do terceiro mundo. Poltica Externa, So Paulo, Paz & Terra, v. 19, n. 1, p. 171-180, jun./jul./ago. 2010. Discurso no Woodrow Wilson International Center for Scholars, Washington, 14 Apr. 2010.

  • CAPTULO 1

    EVOlUO GEOPOlTICA: CENRIOS E PERSPECTIVAS

    1 INTRODUO

    1.1 Trs eventos

    Com o benefcio do tempo, ao fazer o balano do cenrio internacional na dobra do sculo, o historiador conceder ao ano de 2008, certamente, um lugar de destaque. E ter boas razes para faz-lo. Com efeito, o sistema internacional nesse nterim foi palco de trs acontecimentos pouco usuais.

    O primeiro, presena ofuscante na conscincia social, tem nome definido e inscrio temporal clara: a crise financeira global. Prenunciada j em meados do ano anterior, quando se tornou evidente a situao precria do mercado norte-americano de dvidas hipotecrias, a crise se manifestou abertamente em maro de 2008, com a quebra do Bearn Stearns, quinto maior banco de investi-mento dos Estados Unidos, que fora antecedida pela nacionalizao temporria do Northen Rock pelo Banco da Inglaterra. O susto, porm, no durou muito, e pouco depois a estranha impresso que se tinha era de um rpido retorno normalidade. A catstrofe ocorreu em 15 de setembro de 2008, quando o Tesouro americano decidiu deixar sua prpria sorte o Lehman Brothers, o quarto maior banco de investimento, cuja falncia, espalhou o pnico por todos os cantos do mundo, quebrando traumaticamente os laos de confiana que sustentavam a cadeia do crdito. A converso do choque financeiro em crise econmica foi quase imediata. Apesar da resistncia surpreendente exibida pela China e pela ndia, e da rpida e vigorosa recuperao brasileira, a crise econmica continuou uma realidade sombria, em maro de 2010, quando estas linhas foram escritas os pases blticos mergulhados em profunda recesso e a moeda europeia ameaada em sua integridade pela situao das contas pblicas em vrios pases da zona do euro, a comear pela Grcia.

    Parcialmente associado a esse quadro de turbulncia financeira, o segundo acontecimento foi o malogro oficializado da Rodada Doha, processo de negocia-o comercial que vinha se desenrolando, a trancos e barrancos, desde novembro de 2001. O desfecho ocorreu na reunio ministerial da Organizao Mundial do Comrcio (OMC), realizada no fim de julho de 2008, em Genebra. A agenda das negociaes era ampla, mas o impasse se deu logo no comeo: o comrcio de bens agrcolas. Depois de meses de intensas tratativas, e apesar das concesses realizadas

  • Insero Internacional Brasileira: temas de poltica externa24

    pelo Brasil, um dos interlocutores-chave no processo, a inflexibilidade demons-trada pelos Estados Unidos, de um lado, e pelo duo indo-chins, de outro, conde-nou a cpula ao colapso. A postura da ndia na negociao no surpreendeu com uma populao de um bilho de habitantes, cerca de 70% dos quais vivendo no campo, a ndia tem fortes razes para resistir aos apelos pela liberalizao do mer-cado agrcola. Pas ameaado em sua unidade interna por disparidades de toda ordem, o princpio que rege a conduta do governo indiano nesse domnio, desde a independncia, o da segurana alimentar, princpio cuja validade as flutuaes bruscas dos preos agrcolas que ocorriam naquela conjuntura vinham reforar.1 Os motivos por trs da intransigncia norte-americana eram mais opacos, mas as circunstncias do processo eleitoral em curso no pas quela poca ajudaram a explic-la. A grande novidade, porm, foi a atitude da China: com ela, tornou-se patente que o jogo na OMC, desde ento, estava mudado.

    O terceiro fato marcante foi a reao vigorosa da Rssia ao ataque do exr-cito georgiano, em 8 de agosto de 2008, provncia separatista da Osstia do Sul, operao militar de grande envergadura que apanhou de surpresa a todos, fez ruir muitos dos subentendidos consolidados desde o fim da Guerra Fria e provocou nos crculos dirigentes da superpotncia americana reaes iradas. O consenso bipartidrio sobre o episdio ficou bem expresso na contundncia das frmulas usada para condenar o ato: violao Carta da Organizao das Naes Unidas (ONU) e aos princpios do direito internacional; violncia contra um pas pequeno, que evoca a ao de Hitler e Stalin; manifestao agressiva de um projeto imperial e nas medidas sugeridas para castigar o seu responsvel: bloquear o acesso OMC; excluir do G-8; aplicar sanes econmicas e polticas (...), em caso de recalcitrncia, isolar a Rssia na comunidade interna-cional (GARDELS, 2008). Como se sabe, o depois foi menos dramtico: com a mediao do presidente francs, Nicolas Sarkosy, antes do fim de agosto as partes beligerantes chegaram a um acordo, que recomps o status quo, e afastou o fantasma da nova Guerra Fria que esteve momentaneamente no cenrio. Esses desdobramentos no diminuem em nada a importncia do conflito, apenas tor-nam mais difcil avali-lo.

    As dvidas, porm, no se restringem ao confronto na Gergia. Isoladamente, e em conjunto, os trs eventos suscitam indagaes que desde ento tm provo-cado aceso debate: que significado atribuir a eles ocorrncias de importncia indiscutvel, mas de alcance limitado? Ou manifestaes visveis de mudanas profundas, marcos inauguradores de uma nova etapa histrica? Como aquilatar suas implicaes? Quais os seus desdobramentos provveis?

    1. Para uma anlise dos fundamentos polticos e sociais da postura indiana na negociao do tema da agricultara na OMC, ver Velasco e Cruz (2008).

  • Evoluo Geopoltica: cenrios e perspectivas 25

    O objetivo deste artigo no o de examinar intensivamente cada um dos acontecimentos mencionados na busca de respostas para tais perguntas, mas de esboar um quadro interpretativo sobre o contexto geral em que eles se do, na certeza de que, se bem-sucedido o empreendimento, essas respostas sero mais facilmente encontrveis.

    Neste sentido, alm desta breve introduo, o artigo se desdobrar em 4 sees. A seo 2 ser dedicada ao estudo de duas dimenses fundamentais na rearticulao operada no sistema internacional no fim do sculo XX: o substrato poltico do pro-cesso de globalizao econmica e a nova problemtica da segurana internacional. A seo 3 abordar o debate suscitado por esse conjunto concatenado de mudanas, que pe no centro da ateno de todos analistas e atores polticos a pergunta sobre a configurao do poder mundial. Destacada a condio de supremacia inconteste dos Estados Unidos nessa quadra histrica, a seo 4 estar voltada para uma breve anlise das linhas mestras da conduta internacional da superpotncia e dos processos de crise a elas relacionados. Reserva-se para a seo 5 o debate em torno dos eventos neste estudo referidos e indicao de alguns desenvolvimentos importantes aps 2008, com as perspectivas que eles abrem.

    2 UMA NOVA ORDEM?

    O sistema internacional foi comovido por dois macroprocessos articulados de mudanas. O primeiro diz respeito crise e reestruturao da economia mun-dial; o segundo, dissoluo do bloco socialista e ao fim da lgica poltica ditada pela bipolaridade.

    Cada um desses processos foi marcado, em pontos determinados do tempo, por ocorrncias dramticas: a transformao econmica, pelos dois choques do petrleo em 1973 e 1979 e pela elevao brutal da taxa bsica de juros nos Estados Unidos, tambm em 1979; a mudana no quadro geopoltico, pela der-rubada do muro de Berlim, dez anos depois, e pela onda subsequente de con-testao que varreu a Europa Central e Oriental, culminando, em 1991, com a derrocada do prprio Estado Sovitico. Mais importantes, porm, que esses fatos emblemticos, foram as mudanas parciais e fragmentrias acumuladas ao longo do tempo, cuja combinao deu origem aos dois processos em causa.

    2.1 Transformaes na economia mundial

    Desde o incio de 1970 a economia mundial atravessa um perodo de reestrutura-o profunda, no curso do qual as relaes de cooperao e conflito entre empre-sas e naes esto sendo drasticamente redefinidas. Aspecto dos mais salientes desse processo a transformao revolucionria sobrevinda no campo da tecno-logia, com as inovaes combinadas nas reas de microeletrnica e informtica,

  • Insero Internacional Brasileira: temas de poltica externa26

    telecomunicaes, transporte, biotecnologia e novos materiais. Na variada gama de suas mltiplas aplicaes, esses avanos tm acarretado mudanas significativas na forma de organizao e nas pautas de comportamento at ento predominantes em diferentes setores de atividade econmica, alterando estruturas de mercado, erodindo fatores tradicionais de vantagens comparativas.

    Ao tornar imensamente mais fcil o acesso e o processamento de informa-es, ao possibilitar o estabelecimento de contatos eletrnicos instantneos por todo o globo, ao reduzir dramaticamente o tempo e o custo do transporte de longa distncia, as novas tecnologias do um novo mpeto internacionalizao do capital, em virtude:

    Das elevadas exigncias, materiais e humanas, implicadas em seu desenvolvimento.

    Da possibilidade que elas oferecem, por meio da automao compu-tatorizada, de combinar simultaneamente flexibilidade e economia de escala, diversificao de produtos e produo de massa (ERNS, 1989, p. 22; COHEN; ZySMAN, 1987).

    Das condies que elas criam para a conformao de um mercado de capitais abrangente, capaz de aglutinar recursos e canaliz-los para apli-caes remuneradoras em escala mundial.

    Da capacidade que proporcionam s empresas de coordenar estrita-mente suas atividades, configurando-as espacialmente em funo de estratgias que tendem a dissolver as diferenas entre espaos domsti-cos e externos.

    Este ponto decisivo. At o fim de 1960, a economia mundial pode ser esque-maticamente representada como um conjunto de mercados nacionais discretos, embora interligados, nos quais as empresas locais ou internacionais se con-frontam com base nas condies vigentes em cada um deles, escassamente afeta-das pelos resultados da concorrncia intersetorial em outros pases. No quadro das transformaes antes referidas essa imagem se desfaz: para muitas indstrias, as fronteiras nacionais se diluem, os mercados se interpenetram, o resultado da concorrncia em qualquer um deles passa a ser condicionado pela evoluo das disputas travadas nos demais, e a rivalidade entre os contendores passa a ser per-seguida em termos verdadeiramente globais (PORTER, 1986). A contrapartida desse movimento a integrao crescente que se verifica no plano das estruturas produtivas, com a configurao de cadeias interligando espacialmente diferentes fases do processo de fabricao de um dado produto. A literatura registra o fen-meno sob a rubrica da globalizao produtiva e salienta seu impacto no papel desempenhado pelo Estado.

  • Evoluo Geopoltica: cenrios e perspectivas 27

    A mudana tecnolgica, porm, no explica por si s esses desenvolvi-mentos. E no se esgota neles o processo de reestruturao. Em nvel mais profundo, o que foi posto em questo o conjunto de regularidades que, depois da Segunda Grande Guerra, conferem aos capitalismos centrais sua fisionomia prpria e por quase trinta anos asseguram s suas economias um dinamismo sem paralelo na histria.

    Aqui no se atentar caracterizao dessa crise, que foi objeto de copiosa literatura. Basta registrar que um de seus aspectos centrais foi a perda relativa de competitividade da indstria americana, a qual, em conjugao com os crescen-tes gastos militares levaram aos srios desequilbrios monetrios da dcada de 1960 e 1970. Sabe-se como essa crise foi resolvida: o rompimento unilateral do padro dlar-ouro pelos Estados Unidos, no incio dos anos 1970, com a adoo do regime de cmbio flutuante e a reafirmao do papel do dlar como moeda reserva internacional; a desregulamentao competitiva dos mercados financeiros;2 o duplo choque representado pela elevao dramtica da taxa bsica de juros nos Estados Unidos e o aumento gigantesco de seus gastos militares; finalmente, a disseminao em escala planetria das polticas neoliberais. Sabe-se tambm que, a soluo dessa crise teve como contrapartida o declnio e, final-mente, a derrocada do bloco sovitico.

    Na ltima dcada do sculo XX, o triunfo do capitalismo liberal era indiscu-tvel. Definitivamente batido o adversrio socialista e desacreditados os modelos de desenvolvimento centrados no papel dirigente do Estado, as novas oportunidades criadas com a incorporao de economias inteiras e de amplos setores de atividade econmica nos mais diversos pases ao espao da acumulao privada transmi-tiam aos mercados um sentimento de exaltao confiante, que o ritmo acelerado das inovaes tecnolgicas s fazia aumentar. Foi nesse contexto que se cristalizou a crena de que a economia mundial estava fadada a integrar-se de forma cada vez mais profunda, em um movimento inexorvel, cujo limite seria a completa dissolu-o dos sistemas produtivos nacionais.

    Ela encontrou sua expresso mais eloquente na ideia da globalizao. Acolhida com entusiasmo pelos crculos dirigentes dos mais variados pases, que a adotaram como marco de referncia para a elaborao de programas de governo e para o traado de sua conduta no plano internacional, a tese da globalizao acendeu um debate que mobilizou especialistas de inmeras disciplinas e esten-deu-se ao pblico em geral. No se pretende reabrir essa discusso, mas para desenvolver o argumento que se esboa nestas pginas precisam-se fazer dois rpidos comentrios.

    2. Faz-se aluso neste trabalho ao argumento desenvolvido por Helleiner (1996).

  • Insero Internacional Brasileira: temas de poltica externa28

    Primeiro, em seu uso corrente, o termo globalizao eivado de ambigui-dades. Por um lado, ele serve para designar, ao mesmo tempo, um estado de coisas (a economia globalizada) e um processo que embute a ideia de incompletude, de abertura para futuros diversos. Por outro, ele empregado indiscriminada-mente como conceito descritivo caso em que opera como ponto de partida para formulao de problemas e como conceito explicativo supostamente capaz de servir como chave para o entendimento da infinidade de fenmenos que o termo recobre, nesse sentido, ele enreda seus usurios em uma teia de argumentos tautolgicos.3 Convm esclarecer: sempre que se fizer uso do termo globalizao neste artigo ele ser entendido como conceito descritivo, denotando um processo complexo, no linear, reversvel, ainda que em alguns de seus aspectos.

    Segundo, nesse processo combinam-se fenmenos emergentes, resultados no intencionais de clculos e aes desagregadas de uma infinidade de agentes, e condies criadas pelo fazer estrategicamente direcionado de atores polticos, com o jogo de aes e reaes reflexivamente monitorado que elas provocam. No h globalizao sem polticas de globalizao: se se quer entender o processo, deve-se incluir na anlise a ao do Estado. E no de qualquer Estado.

    O choque de juros produzido pelo Federal Reserve (Fed), em 1979, tornara-se essencial preservao da hegemonia financeira dos Estados Unidos e do papel internacional do dlar. Mas seu preo foi uma recesso longa e profunda, que levou as taxas de desemprego no pas a patamares no alcanados havia dcadas. A recu-perao econmica, com queda nos ndices de preos, comeou a se esboar no fim de 1982. Ela foi impulsionada, sobretudo, pelo aumento do gasto pblico o colossal programa de rearmamento lanado pelo governo Reagan, aspecto central da conjuntura batizada pelos estudiosos das relaes internacionais de a segunda Guerra Fria. A desgravao tributria (reduo das alquotas do imposto de renda incidentes sobre os lucros das empresas e sobre os rendimentos de pessoas fsicas das faixas mais altas, o socialismo dos ricos, como foi batizada pelos opositores) no surtiu o efeito esperado. Ao invs de funcionar como uma mola propulsora para o investimento produtivo, como queriam os idelogos da economia de oferta, a reduo dos impostos conjugada com o aumento das despesas do governo resultou em gigantesco dficit pblico, que foi financiado sem dificuldade, com emisso de ttulos de dvida pblica. Dois corolrios da situao sumariamente descrita nesse pargrafo foram os juros altos em 1984, os juros reais pagos pelos ttulos do Tesouro mantinham-se na casa dos 8% e a valorizao do dlar. Esta, por sua vez, ampliava a tendncia histrica de deteriorao da balana comercial dos Estados Unidos.

    At ento, a poltica do governo norte-americano para a crise da dvida externa consistia em ajudar informalmente a organizao do cartel dos bancos,

    3. Ver Rosenberg (2002).

  • Evoluo Geopoltica: cenrios e perspectivas 29

    mediante o fortalecimento do Fundo Monetrio Internacional (FMI) e o empenho de sua autoridade no respaldo das decises tomadas neste rgo. No mais, insistia na retrica da no interveno, rejeitando liminarmente as tentativas dos devedores de acertar uma negociao poltica da dvida. No tocante poltica comercial, afora as medidas ad hoc de proteo, a admi-nistrao republicana depositava parte de suas fichas no propsito de forar a liberalizao dos mercados internacionais de bens e servios, por meio da ao multilateral pela abertura de mais uma rodada de negociaes no Acordo Geral sobre Tarifas e Comrcio (GATT ), com a incluso em sua agenda de novos temas, at aquele momento no sujeitos disciplina do rgo servios, propriedade intelectual e investimentos.

    No se acompanhar a ao diplomtica efetuada com esse fim, mas convm salientar dois aspectos: i) os objetivos referidos anteriormente foram claramente enunciados no primeiro documento de poltica do governo Reagan dedicado ao tema do comrcio internacional o depoimento prestado pelo representante comercial, o embaixador William Brock, no Senado, em 8 e 9 de julho de 1981;4 e ii) durante o primeiro mandato de Reagan, o esforo da administrao republi-cana se concentrou na campanha pela abertura de nova rodada de negociao no GATT, nenhum trabalho sendo desenvolvido para obter do Congresso a auto-ridade necessria concluso dos acordos comerciais abrangentes que deveriam resultar de tais negociaes.

    Com a aprovao da Lei de Comrcio e Tarifa de 1984, o Executivo ganhou essa autorizao. E mais, com a definio de objetivos de poltica comercial con-tidos nesta lei e os novos dispositivos nela criados em sua seo 301, que estabe-leceu os instrumentos de retaliao a seu alcance, o Executivo passou a contar com um instrumento poderoso para combater tudo que viesse a classificar como prticas desleais de comrcio na conduta de seus parceiros. o que se constata ao examinar o contedo desse documento.

    Para no alongar demasiadamente a exposio, far-se- isso sob forma de aluses rpidas lei, seguidas de breves comentrios.

    2.1.1 Servios

    A Seo 305, da Lei de Comrcio e Tarifa de 1984, estabeleceu que nas nego-ciaes comerciais os Estados Unidos procurariam reduzir ou eliminar barreiras sobre, ou outras distores de, comrcio internacional em servios (...), incluindo barreiras que negam tratamento nacional e restries sobre o estabelecimento e operao em tais mercados.

    4. U. S. Senate, 1981 (Apud LANDE; VANGRASSTEK, 1986).

  • Insero Internacional Brasileira: temas de poltica externa30

    Item destacado da poltica comercial do governo Reagan, anunciada em julho de 1981, a prioridade concedida ao setor de servios atendia aos reclamos de pode-rosa coalizo empresarial formada na dcada de 1970 sob a liderana dos dirigentes da American International Group, Inc. (AIG), a gigante do setor de seguros, cujos pontos de vista j tinham sido contemplados na Lei de Comrcio de 1974, que previa a extenso de toda norma referente ao comrcio exterior ao setor de servios.

    fcil entender o consenso em torno do tema. Nas duas ltimas dcadas precedentes 1960 e 1970 a participao do setor de servios na economia americana cresce incessantemente em termos de valor adicionado e, mais ainda, de emprego absorvido ,5 muitos segmentos dele desfrutando de grandes vanta-gens comparativas internacionais. Entre 1981 e 1984, os servios responderam por 40% de todas as exportaes, gerando um saldo acumulado de cerca de US$ 123 bilhes, em forte contraste com o dficit de aproximadamente US$ 234 bilhes, acumulado na balana de mercadorias (LANDE; VANGRASSTECK, 1986, p. 28). luz desse dado, entende-se a importncia estratgica atribuda abertura dos mercados externos s empresas americanas do setor de servios.

    2.1.2 Investimentos

    Nos termos da Seo 305, da Lei de Comrcio e Tarifa de 1984, os Estados Unidos procurariam reduzir ou eliminar barreiras a investimentos estrangeiros diretos que sejam artificiais ou que distoram o comrcio, expandir o princpio de tratamento nacional, e reduzir barreiras no razoveis ao stablishment (LANDE; VANGRASSTECK, 1986, p. 32).

    Novamente, o consenso bipartidrio: este objetivo tambm constava dos primeiros documentos de poltica comercial do governo Reagan. O tema, porm, era mais espinhoso e suscitava reaes diferenciadas no universo empresarial norte-americano. O prprio governo mantinha uma posio canhestra sobre o assunto, haja vista as muitas restries por ele criadas, como a legislao sobre contedo nacional no setor automotivo. As negociaes multilaterais sobre o tema pouco avanaram os acordos bilaterais tendo sido o meio mais eficaz encontrado pelos Estados Unidos para ver suas pretenses atendidas.

    2.1.3 Propriedade intelectual

    A Lei de Comrcio e Tarifa de 1984 no dedica uma seo separada aos objeti-vos a serem perseguidos nesta rea, mas eles aparecem em diferentes lugares do documento. Assim, ao tratar das indstrias de alta tecnologia ele estabelece que

    5. Entre 1959 e 1989, a participao do setor de servios excludo o governo no total do emprego nos Estados Unidos passou de 38,2% para 49,8%. Ver Spulber (1995, p. 154), essa obra analisa, de forma desagregada, a expan-so do setor de servios.

  • Evoluo Geopoltica: cenrios e perspectivas 31

    o governo buscar eliminar ou reduzir as medidas de governos estrangeiros que deixem de prover meios adequados e efetivos para naes estrangeiras assegura-rem, exercerem e fazerem cumprir direitos exclusivos de propriedade intelectual.

    A parcimnia da lei no condiz com a importncia que seria atribuda ao tema nos anos seguintes. No momento de sua elaborao, a campanha pelo for-talecimento dos direitos de propriedade intelectual comeava a dar seus primeiros frutos. Deslanchada no fim dos anos 1970 pelos produtores de artigos sensveis ao uso fraudulento de marcas e s imitaes entre eles a Levi Strauss Corporation, proprietria de uma das mais conhecidas marcas de jeans no incio da dcada seguinte ela recebeu grande reforo, com o ingresso no movimento das indstrias intensivas em informao. Desde ento, a campanha pela reforma do regime de propriedade intelectual ganhou verdadeiro alento e comeou a acumular triunfos. Em 1980, o Congresso estendeu a cobertura da lei de Copyright aos programas de computadores. No mesmo ano, a Suprema Corte admite o patenteamento de produtos biotecnolgicos. Em 1984, o Congresso cria uma forma original de direito de propriedade para semicondutores. Compreende-se, assim, a timidez da Lei de Comrcio e Tarifa de 1984 na matria. A rapidez com que ela ascenderia na escala de prioridades da poltica comercial dos Estados Unidos se explica pela magnitude dos interesses em jogo e pelo grau de internacionalizao das inds-trias envolvidas (DOREMUS, 1995).

    O elemento mais importante na Lei de Comrcio e Tarifa de1984, porm, no estava na definio de objetivos, mas nas inovaes conceituais nela contidas. A reformulao do conceito de reciprocidade era uma delas. Sobre o alcance da mudana introduzida, vale a pena acompanhar a avaliao insuspeita do senador Robert Dole ento presidente do Comit de Finanas do Senado, mais tarde candidato republicano presidncia dos Estados Unidos, nas eleies de 1996, que perdeu para Bill Clinton.

    (...) a reciprocidade significa uma mudana dramtica em relao ao principio da nao mais favorecida. Significa que outros pases deveriam nos fornecer opor-tunidades de comrcio e investimento iguais no somente s que eles oferecem a outros parceiros comerciais mais favorecidos, mas iguais ao que ns lhes oferece-mos, e a reciprocidade deveria ser medida no por acordos e promessas, mas por resultados de fato mudanas na balana comercial e expanso no investimento entre ns e nossos maiores parceiros econmicos. (Dole, 1982 apud LANDE; VANGRASSTECK, 1986, p. 38).

    Essa noo, que vinha sendo trabalhada em discursos e projetos de lei no Congresso cerca de 36 iniciativas, nas duas ltimas legislaturas, a saber: 97a (1981-1982) e 98a (1983-1984) foi a fonte de inspirao para as mudanas introduzidas na Seo 301 pela Lei de Comrcio e Tarifa de 1984. Alm de

  • Insero Internacional Brasileira: temas de poltica externa32

    ampliar o alcance desse dispositivo, para colocar em seu raio os novos temas, esta lei definia de forma extremamente elstica a noo de prticas comerciais no razoveis, uma das condies previstas na Lei de Comrcio de 1974 para emprego das medidas de retaliao. Com efeito, a Seo 304 deste documento identifica no razovel como

    (...) qualquer ato, poltica ou prtica que, embora no necessariamente viole os direitos legais internacionais dos Estados Unidos, ou seja, incompatvel com estes, de outro modo considerado injusta e desigual. Os termos incluem, mas no esto limitados a, qualquer ato, poltica ou prtica que negue a) oportunidades de mer-cado; b) oportunidades para o estabelecimento de uma empresa; ou c) proviso de proteo, adequada e efetiva, de direitos de propriedade intelectual justas e equita-tivas (LANDE; VanGrassteck, 1986, p. 47).

    Naturalmente, de acordo com a referida lei, cabia ao governo dos Estados Unidos estipular, em cada caso, o que consistia em prtica desleal e/ou inqua. Foi com esse poderoso instrumento em mos que o governo Reagan intensificou as pres-ses pela abertura de uma nova rodada de negociaes comerciais. Em 1985, foi cele-brado, finalmente, o acordo com a Comunidade Europeia. Mas a oposio liderada pelo Brasil e pela ndia incluso dos temas da propriedade intelectual e dos servios na pauta de uma nova rodada de negociaes do GATT, continuava a se manifestar. Ela foi contornada em Punta del Este, em setembro de 1986: com muita presso e a ajuda de um subterfgio, esses temas acabaram entrando, juntamente com a questo das medidas relativas ao investimento externo, na agenda da Rodada Uruguai.6

    Em uma economia em que se globaliza, normas globais. Essa era a ideia regu-ladora que parecia informar os trabalhos na rodada Uruguai do GATT. As dificul-dades de avanar satisfatoriamente no terreno pedregoso da negociao agrcola pro-longaram a Rodada por vrios anos ainda. Mas ela chegou a termo, e seu resultado foi definido como uma verdadeira reforma constitucional.

    Uma referncia rpida a dois de seus elementos ser o bastante para con-firmar o acerto dessa avaliao. A primeira, sobre o acordo alcanado na rea de propriedade intelectual. Seus dispositivos envolvem, no apenas padres gerais a serem observados pelas legislaes nacionais, mas disposies detalhadas sobre os procedimentos que devero ser aplicados para sancionar direitos individuais e corporativos de propriedade. Esse trao exemplifica um fenmeno geral: o deslocamento do foco do regime de comrcio, cujas disciplinas, mais que limi-tar as prticas restritivas dos governo, passam a regular positivamente polticas nacionais (OSTRy, 2000). Sobre o alcance dessa mudana, convm registrar a avaliao abalizada de um jurista:

    6. Sobre a aliana liderada pelos dois pases e o seu relativo fracasso, ver Narlikar (2003).

  • Evoluo Geopoltica: cenrios e perspectivas 33

    Os acordos passam por cima de convenes existentes e h muito estabelecidas, administradas pela Organizao Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI), que no contm muito de substncia no tocante aplicao desses direitos e delega Corte Internacional de Justia a soluo de conflitos. Em contraste, a Parte II do acordo TRIPS [Acordo sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comrcio] trata extensivamente das medidas de observncia, incluindo procedimentos civis e administrativos, danos, e at procedimentos cri-minais. Assim, de forma sem precedentes, o acordo TRIPS obriga os membros da OMC a prover remdios locais efetivos por meios e procedimentos prescritos. Alm disso, a observncia dessas obrigaes pode ser assegurada mediante recurso aos mecanismos de soluo de disputas da OMC. Em suma, o acordo TRIPS uma reengenharia completa orientada para comrcio e focada na conformidade com as regras do sistema internacional tradicional de proteo aos direitos de propriedade intelectual (STOLL, 2003, p. 463).7

    A segunda, sobre o dispositivo judicial referido na passagem citada. O GATT tambm dispunha de um mecanismo institucional de resoluo de disputas, mas sua importncia ficava extremamente reduzida pela exigncia de consenso que devia ser atendida para que este fosse acionado. Como o pas responsvel em situ-ao irregular podia bloquear a abertura de painis, o funcionamento do sistema favorecia fortemente a busca de solues negociadas por meio de barganhas em que falava mais alto, evidentemente, a voz do mais forte. Esses incentivos no desapareceram de todo na OMC a fase de consulta e mediao continuou sendo o primeiro estgio no processo de resoluo de controvrsias. Mas a possibilidade de bloquear um painel desapareceu. Ultrapassado um limite fixo de tempo 60 dias , se as partes no tiverem resolvido a pendncia, o rgo de Resoluo de Controvrsias (Dispute Settlement Body) pode solicitar o estabelecimento de um painel automaticamente (figura 1). Concludo os trabalhos dos rbitros, que devem observar igualmente prazos predeterminados, se a parte perdedora considerar inaceitvel o seu veredito ela pode impetrar um recurso junto a uma corte permanente de apelao, que dar a palavra final. Caso as recomendaes no sejam implementadas, depois de esgotadas as tentativas de acordo sobre compensaes devidas, a parte demandante pode pedir autorizao para retaliar (HOECKMAN, KOSTECKI, 1995, p. 47). Como a diferena entre gerao e interpretao de normas sabidamente fluida, a operao desse mecanismo tem resultado em uma produo legal que h algum tempo vem sendo objeto de estudo como um aspecto relevante do processo mais amplo de judicializao das relaes econmicas internacionais.8

    7. Para uma reconstituio abrangente do processo de externalizao do direito domstico americano nesse domnio, ver Sell (2003).8. Ver Goldstein et al. (2000).

  • Insero Internacional Brasileira: temas de poltica externa34

    FIGURA 1Diagrama do rgo de soluo de controvrsias

    60 dias

    Na 2 reunio do OSC

    0-20 dias

    20 dias (+10 se o Diretor Geral pediu a composio do painel

    6 meses a partir da data de composio do painel

    At 9 meses a partir da data de estabelecimento do painel

    60 dias para o relatrio do painel, salvo haja apelao

    "Um prazo razovel" determinado pelo Membro que prope, e o OSC aceita; ou as partes na diferena chegam a um acordo; ou o arbtrio.

    30 dias depois de expirado o "prazo razovel"

    30 dias para o relatrio de apelao

    Prazo total para a aprovao do relatrio: normalmente at 9 meses (sem apelao), ou 12 meses (com apelao) desde a data de estabelecimento do painel at a aprovao do relatrio (Art. 20)

    90 dias

    Consultas (Art.4)

    Estabelecimento do painel pelo rgo de Soluo de Controvrsias (OSC) (art.6)

    Mandato (Art.7)Composio (art.8)

    Painel de RevisoNormalmente duas reunies com as partes (Art.12), uma reunio com terceiros (Art.10)

    Fase intermdia de revisoA parte expositiva do relatrio enviada s partes para que haja comentrios (Art.15.1)O relatrio provisrio enviado s partes para que haja comentrios (Art.15.2)

    O relatrio do painel distribudo s partes (Art.12.8; Apndice 3, pargrafo 12(j))

    O relatrio do painel enviado para o OSC (Art.12.9; Apndice 3, pargrafo 12(K))

    O OSC aprova o (s) relatrio (s) do painel / rgo de Apelao incluindo as alteraes que podem ser introduzidas no relatrio do painel como resultado do relatrio de apelao (Art.16.1,16.4 e 17.14)

    ImplementaoRelatrio da parte perdedora sobre a implementao proposta em um prazo razovel. (Art.21.3)

    Em caso de no cumprimento, as partes negociam a indenizao na espera do pleno cumprimento (Art.22.2)

    RetaliaoSe no se chega a um acordo sobre a indenizao, o OSC autoriza a retaliao na espera do pleno cumprimento (Art.22)Retaliao recproca:O mesmo setor, outros setores, outros acordos (Art.22.3)

    Durante todas as fases, bons ofcios, conciliao, ou mediao

    Grupo consultivo de especialistas (Art.13, Apndice 4

    Pedido de reunio de reviso com o painel por uma das partes (Art.15.2)

    Notificao de apelao (art.16.4 e 17)

    Diferena sobre a implementao. Possibilidade de aes, includa a interveno do painel inicialmente envolvido na implementao

    Possibilidade de arbitragem sobre os procedimentos de suspenso e os princpios de retaliao (Art.22.6 e 22.7)

    Mx.90 dias

    Fonte: rgo de Soluo de Controvrsias/OMC.

    A conjugao desses dois aspectos: o contedo substantivo das normas pro-duzidas ao longo da Rodada Uruguai e os dispositivos criados para garantir-lhes efetividade (o sistema de resoluo de controvrsias e o Trade Policy Review avaliao peridica de suas prticas comerciais a que esto sujeitos todos os membros da OMC) lana luz sobre a natureza geral do novo regime e do sistema judicial nele inserido. primeira vista, este representa um avano importante da lgica multilateralista nas relaes comerciais. Quando se leva em conta, porm, a convergncia entre as disciplinas criadas pelo Tratado de Marrakesh (1994) e as regras em vigor nos Estados Unidos, -se levado a reconsiderar esse ponto de vista. Como seus defensores faziam questo de ressaltar nos debates inter-nos sobre a ratificao do tratado, os Estados Unidos estariam em conformidade maior com as regras da OMC, que refletiam seus interesses e objetivos, do que de seus parceiros comerciais. E, como o mecanismo de soluo de controvrsia

  • Evoluo Geopoltica: cenrios e perspectivas 35

    da OMC autorizava o recurso retaliao em caso de no observncia daquelas regras, em cronograma compatvel com o da seo 301, da Lei de Comrcio e Tarifa americana, o arcabouo legal da OMC legitimava o emprego que os Estados Unidos faziam de seu imenso poder de mercado para impor seus interes-ses comerciais aos demais pases. Nesse sentido, destaca-se que o posicionamento dos Estados Unidos em favor desse mecanismo to gritantemente contrrio a tradio do GATT, se deu apenas depois de obtido o acordo com a Europa em torno do processo de deciso da rodada (single undertaking), que exclua a adeso voluntria aos cdigos negociados, como ocorrera na Rodada Tquio.

    Esse, o argumento desenvolvido em importante trabalho coletivo sobre as trans-formaes do regime internacional de comrcio, cujo arremate se reproduz a seguir.

    Assim, da perspectiva do governo dos EUA, a reforma judicial radical da Rodada Uruguai representou no uma multilateralizao do unilateralismo dos EUA, mas uma americanizao do processo de soluo de conflitos da GATT/OMC (Barton et al., 2008, p.74).9

    Complementando a anlise, caberia agregar que, no satisfeitos com as garantias oferecidas pelo Executivo, ao aprovar legislao requerida implementa-o do Tratado de Marrakesh (1994), os congressistas americanos fizeram questo de deixar formalmente estabelecido que suas clusulas e suas disciplinas s teriam efeito no territrio americano se fossem congruentes com a lei em vigor no pas. Alm disso, introduziram um dispositivo que vedava aos agentes privados a uti-lizao do Tratado como base para questionar qualquer ao de governo local, estadual ou federal em tribunais dos Estados Unidos (KWARKA, 2003, p. 48).

    Reforma constitucional. Mas incompleta. Com efeito, do ponto de vista de seu protagonista o balano das realizaes da Rodada Uruguai acusava ganhos limitados em vrias reas como servios e medidas comerciais relacionadas a investimentos e reas inteiramente descobertas caso, entre outros, de compras governamentais. No surpreende, pois, que a disposio de manter o mpeto reformista tenha sobre-vivido a ela. No estranha tampouco que continuasse a gerar viva controvrsia como a que se acendeu na reunio ministerial de Cingapura, em 1996, e terminou na deciso salomnica de criar grupos de trabalho com a misso de estudar quatro novos temas (investimentos, poltica de concorrncia, compras governamentais e facilitao de comrcio), com vista sua incorporao eventual na agenda de negociaes de uma futura rodada. Havia ainda a inteno proclamada de trazer para o frum da OMC os temas sensveis dos direitos trabalhistas e da proteo ambiental o que provocava, na maior parte dos pases em desenvolvimento, Brasil incluso, reaes indignadas.

    9. Para uma descrio das tratativas sobre o mecanismo na fase decisiva da rodada, ver Croome (1995).

  • Insero Internacional Brasileira: temas de poltica externa36

    2.2 A segurana internacional aps a Guerra Fria

    Em algum ponto, os acontecimentos desandaram. Onde situ-lo? Em maro de 1989, data da eleio consagradora de Boris Ieltsin como representante de Moscou no Congresso dos Deputados do Povo, rgo recentemente criado para coroar o programa de reforma poltica conhecida pelo nome de Glasnost?

    No faz diferena. O importante no o comeo, mas a sucesso unidire-cional dos fatos. Em 2 de maio de 1989, cmaras de TVs exibem ao mundo as imagens de soldados hngaros removendo a cerca de arame ao longo da fronteira com a ustria. Em 4 de junho: o Solidarnosk obtm vitria acachapante nas elei-es legislativas, ficando com 92 das 100 vagas no Senado e 160 dos 161 assen-tos em disputa na Cmara baixa tendo aumentado sua vantagem no segundo turno, pouco depois, essa agremiao dava Polnia o seu primeiro governo no comunista desde 1948. Em julho, fim da Doutrina Breznev com a declarao de Gorbachev de que no iria interferir nas decises dos governantes dos dois pases mencionados. Em 11 de setembro, a Hungria elimina os controles sobre a imigrao proveniente da Alemanha Oriental e convoca, uma semana mais tarde, eleies multipartidrias. Em 9 de novembro, depois de semanas de uma crise que divide a cpula do Partido Comunista (PC) e do governo da Alemanha Oriental, uma multido toma de assalto o muro de Berlim e d incio sua destruio simblica.

    Os desdobramentos desses episdios que foi acompanhado com esturpor pelos telespectadores de todo o mundo so conhecidos. O primeiro foi a revo-luo de veludo, que entregou a presidncia da Checoslovquia ao escritor dis-sidente Vclav Havel, em dezembro de 1989. O ltimo, a tentativa desastrada de golpe de Estado, em agosto de 1991, que ps fim ao regime comunista e precipitou o desmembramento da Unio Sovitica. Entre um acontecimento e outro, a anu-ncia forada de Gorbachev reunificao alem nos quadros da Organizao do Tratado do Atlntico Norte (Otan), o fim do Pacto de Varsvia (Unio Sovitica, Alemanha Oriental, Bulgria, Hungria, Polnia, Checoslovquia e Romnia), e a impotncia da URSS diante do bombardeio americano a Bagd.

    Trata-se, porm, de uma impresso equivocada. O processo de todo impre-visto e sem igual na histria que leva quele resultado subverte as coordenadas polticas do mundo e torna subitamente obsoleta boa parte da agenda que vinha concentrando h muito os esforos despendidos pelos especialistas da rea de segurana internacional. Com o fim do conflito entre blocos, o espectro da guerra atmica parecia finalmente afastado. E, com a predominncia do consenso em torno de modelos de sociedade (economia de mercado e democracia liberal) e de valores fundamentais (direitos humanos), o mundo parecia estar ingressando em uma era radiante de paz e prosperidade.

  • Evoluo Geopoltica: cenrios e perspectivas 37

    A Guerra do Golfo e a ecloso quase simultnea dos conflitos tnicos na Europa Central, com os espetculos de violncia brutal a que deram lugar, torna-ram rapidamente vetustas aquelas ideias. No que tivessem se demonstrado intei-ramente infundadas apesar de tudo, a guerra entre as grandes potncias persistia sendo uma hiptese inteiramente descartada, e a matriz liberal-democrtica con-tinuava em vigor como modelo sem rival. O mbito de sua validade, no entanto, fora redefinido. Mais do que pensar em termos de uma marcha unida em direo quele estado de coisas sumamente boas, caberia reconhecer a persistncia pro-longada de diferenciaes profundas no campo das relaes internacionais. Essa a ideia comunicada pela metfora dos dois mundos: aquele do bem-estar, do con-senso liberal e das relaes pacficas o centro capitalista , e este outro, dilacerado em conflitos crnicos e guerras pouco convencionais o antigo Terceiro Mundo.10

    No cruzamento entre essas realidades to dspares observam-se dois desen-volvimentos que marcaram profundamente a poltica internacional nessa quadra histrica. O primeiro deles diz respeito centralidade atribuda ao tema dos direitos humanos na conduo da poltica externa dos pases centrais, com o seu correlato: os questionamentos crescentes, feitos em seu nome, do conceito de soberania e dos princpios dele decorrentes da no interveno externa e da igual-dade soberana entre os Estados. A rigor, no h novidade alguma na nfase posta no tema dos direitos humanos. Ele constitui um dos pilares do edifcio da ONU e, desde o governo Jimmy Carter, vem desempenhando um papel crtico na pol-tica exterior dos Estados Unidos. O que surge de novo com o fim da Guerra Fria a disposio vigorosa de empregar o poder coercitivo para por cobro a violaes graves aos direitos humanos sempre que possvel com o aval da ONU, mas em caso de paralisia, mesmo sem mandato desta. No passado, quando a interveno externa em conflitos localizados envolvia o risco da escalada nas tenses entre as duas superpotncias nucleares, essa disposio estava ausente. O princpio da no interveno era de maneira geral observado, e quando um Estado quebrava a norma esbarrava em reaes fortes e indignadas Estados Unidos no Vietn; Unio Sovitica, na Checoslovquia. Removido o obstculo estratgico, dada a imensa superioridade tecnolgica, organizacional, econmica e cultural dos Estados Unidos e de seus aliados, o custo da interveno via-se sobremaneira reduzido, e os governos passavam a ter grandes incentivos para atender ao clamor da opinio pblica, agindo em casos de crises humanitrias sempre que a ao no esbarrasse em consideraes de ordem estratgica. Em 1993, estavam em curso, em diferentes regies do mundo, 34 misses de paz, das quais 20 lideradas pela ONU. Em 2005, o nmero de misses ascendia a 58, com a ONU frente de 21 delas (BAILES, 2006, p. 14). Esses nmeros deixam entrever um fen-

    10. Ver Goldgeier e Mcfaul (1992) e Snow (1997). Para uma crtica certeira do ponto de vista que ela expressa, ver Holsti (1999).

  • Insero Internacional Brasileira: temas de poltica externa38

    meno bastante expressivo do substrato poltico da nova poca: o advento de um padro pelo qual a ONU autorizava Estados membros a usar a fora para intervir, em seu nome, em outros Estados franchising system, como foi denominado com um dedo de ironia (PAULUS, 2003, p. 80).

    E no s isso. Em aparente reedio de um conceito do direito interna-cional oitocentista, abolido no sculo XX pela vaga da descolonizao, os direi-tos humanos apresentavam-se agora como novo padro de civilizao, critrio bsico para o reconhecimento de pases como membros da comunidade inter-nacional (DONNELLy, 1998). Esse desenvolvimento teve como contrapartida a redescoberta das virtudes do conceito medieval de guerra justa, pea axial da doutrina da interveno humanitria, nos termos da qual os Estados democrti-cos tinham o direito de violar a soberania territorial de outros Estados para defen-der grupos minoritrios das atrocidades cometidas por seus respectivos governos.

    Mais do que direito, obrigao. Outro elemento notvel nessa quadra hist-rica a forte tonalidade moral que passa a colorir o discurso poltico. Na Europa e nos Estados Unidos, principalmente, mas se estendendo por todo o mundo, orga-nizaes no governamentais (ONGs) e grupos de ativistas estruturados em redes internacionais monitoram o evolver das crises que se sucedem nas reas turbulen-tas do globo, cobrando aes efetivas de seus governos, cujas respostas avaliam luz de valores inegociveis. Nesse processo, o papel desempenhado pela mdia principalmente a de lngua inglesa, condio para que tenha o status de mdia verdadeiramente internacional dificilmente poderia ser exagerado. Compondo um sistema complexo, especializado na transmisso e na interpretao de fatos sociais, os meios de comunicao de massa operam como elementos articuladores da opinio pblica, que eles expressam e, ao mesmo tempo, conformam.

    importante chamar ateno para a natureza especular da relao entre mdia e opinio pblica, porque isso desvela o particularismo oculto nelas. A mdia internacional no veicula a opinio de um pblico qualquer; e, ao sele-cionar determinados eventos, mantendo longamente em foco seus aspectos mais dolorosos, ela confirma esse pblico em suas certezas, alimentando nele um sen-timento de indignao que o leva a reagir com impacincia ante os obstculos criados a intervenes salvadoras pelas normas do direito internacional.

    O forte condicionamento da opinio pblica, porm, tinha efeitos contra-ditrios que se fariam sentir pesadamente na conduta blica das potncias oci-dentais: ao mesmo tempo em que requeria o recurso da fora para debelar crises humanitrias, ela era muito sensvel ao risco que o exerccio da fora encerrava para a populao civil do pas-alvo. E sua tolerncia era menor ainda para o risco incorrido por seus prprios soldados.

  • Evoluo Geopoltica: cenrios e perspectivas 39

    No ps-Guerra Fria, essa contradio aparentemente insanvel foi resol-vida pela chamada revoluo nos assuntos militares. Com o desenvolvimento de armas de alta preciso, dotadas de sofisticados sistemas de orientao eletr-nicos alimentados por imagens de satlites, tornava-se possvel atingir grande distncia o alvo selecionado, reduzindo consideravelmente o risco de mortes de civis inocentes (danos colaterais) e praticamente, eliminando o risco de baixas. O primeiro ensaio, em grande escala, desse tipo de guerra se deu na Guerra do Golfo, em 1991. Sua realizao mais acabada foi a guerra da Iugoslvia, em 1999, ganha pela Otan sem o sacrifcio de um nico combatente, mas com 500 civis mortos em consequncia de ataques da Otan e de mil militares srvios (SHAW, 2005, p. 10). Entre as vrias exigncias cruzadas, a mais importante era a segu-rana de seus prprios soldados a marca extraordinria obtida pelas foras da aliana nessa guerra se explica pelo bombardeio da Srvia por avies que voavam a uma altitude tal que o fogo da bateria inimiga no os alcanava. A outra face de Janus era a exposio de civis a um risco maior. Essa era uma ilustrao da lgica de transferncia de risco que caracteriza o novo modo ocidental de guerra, segundo Shaw (2005).11

    Como outros antes e depois dele, o autor chama ateno, porm, para o custo poltico envolvido nessa modalidade de guerra o risco da perda de legitimidade (MNKLER, 2003). Pode-se intu-lo claramente quando se atenta para a conde-nao proferida por Michael Walzer, intelectual norte-americano que, ao mesmo tempo, expressava sua crena de que a interveno na Iugoslvia era necessria:

    Estamos prontos, aparentemente, para matar soldados Srvios; estamos prontos para arriscar o que eufemisticamente chamado de dano colateral. Mas no esta-mos prontos para mandar soldados americanos para o campo de batalha. Bem, eu no tenho nenhum amor por campos de batalha e aceito plenamente a obrigao dos lderes democraticamente eleitos de proteger as vidas do seu prprio povo. Mas essa no uma posio moral possvel. Voc no pode matar a no ser que esteja preparado para morrer (1999, p. 5-7).

    O segundo desenvolvimento tem a ver com o impacto da dissoluo da pol-tica de blocos no debate sobre o tema da segurana internacional. O mundo que saa da Guerra Fria no estava a salvo de ameaas. Algumas eram antigas, como aquelas envolvidas na proliferao nuclear. Muitas, porm, assumiram um carter pouco tradicional. Era esse o caso do recurso violncia organizada nas disputas pelo poder em regies da periferia, que ganhava um significado novo na medida em que no estava mais sobredeterminado pela lgica do conflito Leste-Oeste. Nesse novo contexto, os conflitos tendiam a se manifestar sob novas configuraes, fragmentando-se e ganhando frequentemente conotaes tnicas e/ou raciais, com

    11. Especialmente no captulo Rulles of risk transfer war, p. 71-94.

  • Insero Internacional Brasileira: temas de poltica externa40

    seus corolrios sombrios: atrocidades sistemticas contra populaes civis, limpeza tnica, genocdios, movimentao interfronteiras de massas humanas para escapar a este destino o problema dos refugiados. E a por em questo muitas das categorias com base nas quais o tema da paz foi secularmente pensado a distino entre violncia privada e violncia pblica, guerra civil e guerra interestatal.

    No se pode deter no exame dessas novas modalidades de guerra, mas alguns elementos adicionais a respeito destas devem ser mencionados. Ao contrrio da guerra clssica, cuja lgica interna empurra os contendores para enfrentamentos dramticos que redefinem as relaes de fora e pem fim ao conflito, as guerras sujas de que se fala so fragmentadas, dispersas; a escaramua seu trao distin-tivo, a ofensiva estratgica no tem lugar. Nesse tipo de guerra, a racionalidade derivada da primazia do poltico traduzida na pergunta sobre o tipo de paz que se busca alcanar est ausente: a violncia se converte em forma e meio de vida; os combatentes lutam para assegurar sua continuidade. Os recursos que mobilizam para esse fim decorrem de sua prpria atividade: sem o amparo de um poder poltico dotado de capacidade tributria, em grande medida, os elementos de que necessitam para sua reproduo so alcanados por meio do confisco e do saque reside a uma das conexes que ligam, com frequncia, os grupos armados envolvidos nesse tipo de conflito e as redes que exploram em bases capitalistas os circuitos do narcotrfico.

    Crime transnacional, lavagem de dinheiro, parasos fiscais por essa cadeia de relaes esses conflitos se vinculam, ainda que indiretamente, aos processos que vm transformando as bases da economia internacional. Mas no apenas por elas: como esses conflitos expressam em sua origem rivalidades polticas, tnicas e/ou religiosas, os grupos neles envolvidos tendem a se beneficiar de apoio externo, que se manifesta sob a forma de defesa de sua imagem junto opinio pblica, em todos os quadrantes do mundo, e do financiamento direto s suas respectivas causas aqui tambm o papel dos meios de comunicao eletrnicos e dos circuitos financeiros liberalizados fundamental. Ele adquire mxima relevncia quando se desloca o foco da anlise para outra forma de violncia organizada de imenso impacto no mundo do ps-Guerra Fria: o terrorismo fundamentalista transnacional. Constata-se ainda, em ambos os casos, outro efeito perverso do aspecto tecnolgico daquele processo: as tendncias cruzadas de miniaturizao e barateamento dos artefatos blicos e de sua crescente letalidade.12

    Essencialmente, uma estratgica de comunicao, na sugestiva definio de Waldman (2005), o terrorismo est longe d